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Desconstrucao do direito: Uma agenda critica do direito a partir da filosofia politica de Jacques Derrida Daniel Carneiro Leao Pés-Doutorando da UFPE e da PUC-Rio. Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional. LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agosto de 2023 Resumo: Este texto diz resp a desconstrugio do direito segundo a obra de Jacques Derrida, De um lado, a ideia é elaborar a relagio entre direito, justica e desconstrucio, de ‘outro, destacar a importancia do exercicio critico € movimentos da desconstrugio na atualidade. A contribuigdo que se busca com esse estudo de facilitar © acesso & filosofia politica de Jacques Derrida e de aproximé-la das questdes do direito, Palavras-chave: Desconstrucao, Direito, Jacques Derrida. Deconstruction of law: A critical agenda of law from the poli philosophy of Jacques Derrida Abstract: This text concerns the deconstruction of law according to the work of Jacques Derrida, From one end the idea is to elaborate the relationship between law, justice and deconstruction, on the other is to highlight the importance of critical exercise and deconstruction movements taday. The purpose of this article is is to facilitate access to Jacques Derrida's political philosophy and also to bring it closer to legal issues. Keywords: Deconstruction, Law, Jacques Derrida, 70 LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agostode 2023 I. Derrida, Desconstrugio e Justiga Nesse momento, ndo poderia ser diferente, parte-se da pergunta: ‘Por onde comegar? Ou, como comegar?” De inicio, gostariamos de falar brevemente da desconstrugio como movimento € exercicio critico em que se faz 0 pensamento de Jacques Derrida’, Além disso, apresentar como a desconstrugao habita o direito, a partir de elaboragdes que abrem espago para lidar com os temas em questao. + Jacques Derrida (1930-2004) foi um filésofo franco-argelino que escreveu obras a partir da segunda metade do Séc, XX, desde 1967 (antes disso, escreveu sua tese de doutorado sobre a légica geométrica de Edmund Husserl, que foi publicada em 1962. Isso, depois de imimeros estudos sobre o referido autor, alias, seu mestrado trata disso, js em 1954. E, altima obra sobre Husserl €*A voz eo fendmeno’ de 1967), ano de publicagdo dos livros: “Gramatologia’s ‘A Voz e 0 Fendmeno’; €°A Escritura e a Diferenga’. Em 1972, publicou: “Margens da Filosofia’ ‘Posigbes’ A disseminacao’; e“Esporas Os Estilos de Nietzsche’. Depois dessa virada da década de 60 aos anos 70, ele continuou a escrever textos sobre filosofia, psicanslise, literatura, historia do pensamento, fenomenologia, dentre outros saberes, com o autores como Plato, Socrates, Aristoteles, Hegel, Kant, Kierkegaard, Benjamin, Husserl, Saussure, Kafka, Hobbes, Marx, Nietzsche, Rousseau e Freud, enquanto dialoga com seus contemporaneos, Lacan, Levinas, Blanchot, Artaud, Ricouer, Bataille, Deleuze, Foucault, Guattari, Paul de Man, Jean Genet, Hyppolitte e Canguilhem. Dentretantos trabalhos dessa 6poca, posso destacar:"Mal de Arquivo's ‘0 Cartio-Postal’s Glas’ "Heidegger a Questio do espirito’s ‘Do espirito’ ‘Dar a morte’ e “Paixdes’. Até que, no comeso da década de 90, Derrida trabatha textos com maior énfase em temas de filosofia politica e de critica social, que enfrentam problemas éticos contemporaneos. Tal insisténcia e estilo persistem até a sua morte em 2004. Em 1993, escreveu ‘Espectros de Mars’, no ano seguinte publicou ‘Forga de Lei’ ‘Poiticas da Amizade’. Ainda, a0 final dessa década e com a passagem ao Séc. XXI, o autor tratou de cosmopolitismo, direito internacional, hospitalidade, soberania ealteridade, quando realizou: ‘Monolinguismo do outro’ (199%); Cosmopolitismo de todos os Paises: mais um esforgo!” (1997); ‘Da Hospitalidade’ (1997); ‘De que amanha... Dislogo’ com Elizabeth Roudinesco (2003); ‘Vadios’ (2003); e “Filosofia em Tempo de Terror- Didlogos com Habermas « Derrida’ (2004). Além dessestrabalhos, estdo sendo publicados todos os seminarios da EHESS (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Socialed. Custa dizer, diversas obras de Derrida ainda nao foram traduzidas para © portugués, como algumas sio de dificil acesso, inclusive, muitas delas tém tiragem limitada € esto esgotadas, jf outras foram traduzidas e publicadas em Portugal apenas. Fernanda Bernardo tem feito enorme esforgo de trazer Derrida a0 portugués. Os livros que identifico traduzidos, por ela e outros tradutores, io: ‘A Besta e 0 Soberano (Vol. 1); "A Farmécia de Platio’; ‘A Religido’ ‘A Universidade sem condigio’; A voz e o fendmeno’; ‘Adeus a Emmanuel Lévinas' ‘Aporias: Morrer ~ Esperar-Se nos Limites ‘da Verdade’s ‘Cada vez 0 impossivel’ ‘Carta a um amigo Japonés’; ‘Che cos la poesia’ ‘Circo “Cosmopolitas de todos os Paises, mais um esforgo!’; ‘Da hospitalidade’s ‘Dar a morte ‘De que amanha. Dialogo com Flizabeth Roudinesco’; ‘Do espirito’; ‘Enlouquecer o Subjétil’ Escritura e a diferenga”s “Especttos de Marx’; “Esporas - Os estilos de Nietzsche’; ‘Essa estranha instituigdo chamada literatura’; “Estados-de-alma-da-psicandlis’ “EU - a psicandlise’; “Filosofia em ‘Tempo de Terror - Dislogos com Habermas e Derrida’ ‘Forga de Lei; Geneses, genealogias,géneros e o genio’ "Gramatologia’ ‘Heidegger e a Questdo do Espirito; ‘Historia da mentira: prolegdmenos’ ‘Khora’; Limited Inc’; ‘Mal de arquivo: uma impressio freudiana’; ‘Margens da Filosofia’; ‘Monolinguismo do outro’; ‘O Animal que Logo Sou’; ‘O Cartao- postal: de Sécrates a Freud’;‘O Olho da Universidade’; “O outro cabo’; ‘Paixdes'Papel-Maquina’s “*Posigdes’s ‘Salvo o nome’ “Torres de Babel’; ‘Um bicho-da-seda de si: pontos de vista passajados no outro vu’; "Vadio’. Derrida fer critica a temas relacionados ~ sobretudo ~ com a linguagem, fenomenologia, presenga e violéncia, ao elaborar conceitos como os de escrita, disseminagao, evento e margens, pelos ™movimentos da desconstrugao e os tragos de ‘diferenga’. Escreveu tanto quanto qualquer outro filésofo de 71 LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agosto de 2023 Derrida (2008a e 2008b) nao concebe a filosofia como totalidade, ou, por um. centro de significancia, como também nao reconhece falta a ser suprida e nem algo a ser descoberto para Ihe dar sentido, por exemplo, uma verdade, uma esséncia, Ble faz. critica — desconstrugao da ~ & metafisica ocidental e da presenga, pois, esta concebe a existéncia pelo privilégio dos significados e como resoluta de sobreposigbes hierrquicas (esséncia e aparéncia; abstrato e concreto; corpo e alma; ideia e realidade; etc.), onde se estabelece seu tempo, como elaborou reflexdes sobre as mais diversas questdes crticas. Aqui, abro um pequeno paréntese para mencionar o panorama de estudos sobre Jacques Derrida e sua filosofia politica, Ao redor ‘do mundo, autores como Stanley Fish, Costas Douzinas, Pheng Cheah, Geoffrey Bennington, Michael Naas, Drucilla Cornell, Catherine Malabou, Nicholas Royle, Simon Critchley, David Wood, Peter Goodrich, Samuel Weber, Jacques Le Ville, Gayatri Spivak, Judith Butler, Fernanda Bernardo, John Caputo e Elizabeth Roudinesco, estudam a obra de Derrida e enfrentam dilemas atuais. Quanto aos temas da politica e do Aireito, acredito que os textos de John Caputo ¢ Michael Naas servem de base para introduzir efaciitar a compreensio do pensamento de Derrida. De outro lado, Stanley Fish, Pheng Cheah e Jacques De Ville ajudam na mobilizagao da desconstrugdo e enfrentamento desses temas, como as eritcas de Drucilla Cornell, Gayatri Spivak e Judith Butler. Esta iltimas, em especial, do direcionadas as questdes prementes de género, guerra, raga ealteridade. Além disso, destacoo trabalho da Critical Legal Studiesbritanica sobre a lei e 0 direito. Jé no Brasil, existem estudos de teoria do direito flosofia e pensamento politico sobre Jacques Derrida, que investigam temas tao caros como ética, politica, decisdoe violencia, Emboraa recepga0 «do pensamento dele ainda sea timida’ nesses termos (sem esquecer, claro, a importancia de todo o trabalho de recepcio pela literatura e modernismo brasileiro, de grande repercussio, com Haroldo de Campos ¢ Silviano Santiago. Além do trabalho de filologia, conceituagao e tradugao de Evando Nascimento, que confere substancialidade para os estudos sobre Derrida no Brasil, como também, as tradugdes de Pierro Fyben. Contudo, aqui, detenho-me A delimitagdo proposta), ressalto o trabalho de alguns professores que tém contribuido & desconstrugio com leituras que possuem énfase politica e/ou voltadas ao direito, como Paulo César Duque-Fstrada, Ricardo Timm, Rafael Haddock-Lobo, Bethania Assy, Carla Rodrigues, Vera Karam de Chueiti, Katya Kozicki, Roberto Yamato e Florian Hoffmann. Ainda, mais especificamente sobre politica e dreito, destaco alguns trabalhos académicns recentes como a tese de doutorado de Moysés Pinto Neto:"A escritura da natureza: Derrida e o materialismo experimental’ (PUC-RS), também, a dissertagio ‘de mestrado de Manoel Carlos Uchoa de Oliveira: Desconstrugao edireito: uma leitura sobre Forga de le de Jacques Derrida (UFPE). Do mesmo modo, a de Luana Couto Campos: Margens,entreo Humano e o Animal’ (PUC-Rio) ea de José Antonio Magalhaes: ‘Direito e Violéncia em Jacques Derrida: Seguido de uma leitura das manifestagdes de junho de 2013" (UFR). 2 Derrida questiona a clausura metafisica quando afilosofia e o pensamento ocidental reduzem aescrita & fala, de certo modo a escrita se confunde com o proprio movimento da desconstrucio, significa dizer, ele faz todo um esforgo para no recair no dominio dos significados, presengas e ideais, caracteristicos do transcendental e da metafisica ocidental, e, 0 faz, com a liberagio pela diferenga. Algo presente em seu pensamento desde seus primeiros textos, como 'Gramatologia’ eA escritura e a diferenga’. Nao pretendo detalhar como se da desconstrugao e nem explicar suas implicagdes flos6ficas, apenas vou introduzir 0 ‘exercicio da desconstrugio e colocéla em movimento em dire¢o ao tema em questio. Acredito que iversos trabalhos realizados na PucRio, sob a orientagio de Paulo Cesar Duque Estrada, sio particularmente relevantes para guiar esses estudos de compreensio da desconstrucao e da filosofia de Derrida, como as tess de Carla Rodrigues, Ana Maria Continentino, Rafael Haddock Lobo, Ana Cristina Oliveira e Maria Continentino Freire. Existem outros trabalhos com direcionamento mais especifico, como ‘0s de Roberto Yamato, Maira Matthes da Costa, Tatiana Grenha e Andre Sotck. Todos podem ser encontrados no repositério da universidade: https://www.maxwell.vrac puc-rio.br/ 72 LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agostode 2023 em diego & hegemonia, em suas palavras, € 0 logocentrismo: “[.] uma predominanci da hegemonia soberana, organizando tudo a partir das suas forgas [...]” (DERRIDA, 2008, p. 455)’. Derrida pensa com a diferenga, jd que as coisas, pensamentos e sentidos s6 existem a partir de movimentos constantes, dispersos e diferenciados. Ble segue inversio caracteristica do empirismo, pois, a esséncia depende da experiéncia, logo, é possivel afirmar que nao ha significado que preexista & referencia que se faz’. Com a diferenga, enti, a presenga é sempre cindida. E, por isso, é justamente com a inscrigao e as reinscrigdes da experiéncia que se faz a desconstrugao para Derrida, pela inevitével diferenca de mundo, passando por problemas relacionados com origem, indecidibilidade, violéncia e fronteira. A diferenga & con do a existéncia da desconstrugao, ou, a desconstrugao se da com os deslocamentos das estruturas pela diferenca. © movimento de Derrida (com a desconstrugio) desestabiliza e coloca em cena aporias que estio na constituigio da filosofia ocidental e do direito, ao lidar com os ‘entulhos’ ¢ interdigGes da dogmatica e da lei, pois, volta sua atengao ao que foge pelos restos, tragos, rastros e espectros’. A desconstrugdo nos convida & heterogeneidade que habita toda identidade, entao, em oposigao a filosofia do reconhecimento, as teorias identitérias e ao multiculturalismo®, Apesar de serem debates que nao pertencem neste texto. mais especificamente, entendemos que 0 pensamento liberal ndo é um pensamento politico da diferenga, vez que a liberdade nao é considerada em meio & composigao de forga e pelas formas sociais > *Logocentrismo, precisamente, em meu uso sempre foi designado como uma forga hegemdnica: forgando, impondo a hegemonia, nao apenas um signo autoritirio do logosdo discurso, como linguagem que jéé uma interpretacio |..." (DERRIDA, 2009, p. 455, tradugio nossa). "A desconstrucio ser uma hiperlégica do concreto e do singular. Tendo em conta que adesconstrugio adopta uma postura empirista fruto da sua apresentagdo, como acontecimento, o processo ou fase de derrube das categorias logocéntricas de um texto pode comegar, na realidade, por qualquer parte, no existindo um comego absoluto” (MENESES, 2013, p. 186). 5 Sobre a diferenga na desconstrugdo, Ana Maria Continentino (2006) fez uma sintese no segundo capitulo de sua tese (‘A Alteridade no pensamento de Jacques Derrida: Escritura , Meio-Luto, Aporia’), intitulado de: Desconstrugao da origem’. © Spivak, desde 0 preficio de ‘Gramatologia’ (DERRIDA, 2008a), em 1976, enfatiza a heterogeneidade interior que afeta as estruturas e se dé na experiencia, Convém, entdo, pensar com a diferenga ea alteridade. 73 LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agosto de 2023 em que se realizam, mas, como atributo do sujeito, valor moral e ideal de esfera publica. Allds, existem tendéncias liberais da desconstrugio, das quais, este trabalho se afasta’ A desconstrugio em Derrida (2010, p. 10 e seguintes), para sintetizar, pode ser introduzida pelo enunciado: ‘A desconstrugao € algo que acontece’. Significa dizer, a desconstrugio nao levaré a um fim desejado € nem é metodologia, mas, acontece. E, “Acontece como?’ Por meio de processos continuos de interrogagao, deslocamento investigagdo das fronteiras, para além de dualismos, pois nao é algo exterior, mas também nao é uma presenga, A desconstrugao esta sempre em movimento enquanto contestadas as bases estruturadas do conhecimento e suas hierarquias, com isso, provoca transformagdes. Ora, a desconstrugio conjuga critica da histéria, conceito ou tema (por exemplo, da linguagem em ‘Gramatologia’ e do direito em “Forga de Let’), com aquilo que os excede (por exemplo, da escritura e seus tragos na ‘Gramatologia’ e da justiga e sua impossibilidade em ‘Forga de Lei’). Com isso, a desconstrusio da realidade e da presenga é capaz de oferecer uma outra coisa: “[.] algo que nunca existiu de maneira satisfatéria e continua por vir” (DERRIDA, 2010, p. 46). Essa outra coisa &a justi¢a. O proprio Derrida (2010, p. 20 e seguintes) afirmou que a desconstrugao sempre enderegou o problema da justiga, com questionamentos sobre a fundagao da lei, moral e politica. Dito isso, a desconstrugao é a possibilidade de justiga. II. Desconstrugao do Direito Mais do que em qualquer outro texto, a desconstrugio do direito aparece em ‘Forga de lei: 0 fundamento mistico da autoridade’, em sua primeira parte, com a conferéncia intitulada ‘Do direito & justiga’, que, foi apresentada no. evento Em artigo sobre: 0 pensamento de Jacques Derrida e sua recepgio no seio dos estudos juridicos: uma anilise critica’, Juliana Neuenschwander e José Antonio Magalhaes destacaram alguns dos problemas de leituras ‘iberais' da desconstrugio do direito:“[..] o ambito do direito tenderia a domesticar o pensamento dda desconstrugio como uma reagio ao potencial que tal pensamento teria de desestabilizar seus pressupostos mais fundamentais ~ dirigem-se, € claro, a leituras mais ‘iberais’ (no sentido norte- Americano) que, a0 falhar em traduzir a radicalidade ea capacidade de abalo institucional do pensamento de Derrida, transformam-no em mais um pensador liberal do direito, adaptavel & boa consciéncia das es juridicas” (NEUENSCHWANDER; MAGALHAES, 2016, p. 105). 74 LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agostode 2023 ‘Desconstrugao e a possibilidade da justiga’, realizado na Cardozo Law School em 1989. Onde, Derrida (2010, p. 13) vislumbra que se existisse apenas um local para a desconstrugao seria aquele da justiga e do direito, mais precisamente, as faculdades de direito, © titulo ‘Forga de lei’ reconhece uma forga implicada no préprio conceito do direito e interior de lei, pois, 0 direito se da por um golpe de forga, mas que tem sua autoridade afirmada de forma mistica, a0 que se segue com o subtitulo: {...]o fundamento mistico da autoridade’, Segundo Derrida (2010, p. 25 e seguintes), isso revela um impeto performativo da forga instauradora do direito, quando faz apelo A crenga, dai o fundamento mistico de sua autoridade. Ele destaca a agdo da forga simbélica sobre 0 contexto institucional e também social do direito, em especial, pelos atos de fala. Nesse sentido, fala da iterabilidade por sua forga perlocuciondria (presente tanto na legitimagao da violencia instauradora como na manutengio do. direito), conjuntamente com a autodeterminagao soberana de uma ipseidade, ao dar a si propria sua lei como origem da razdo do mais forte e manifestagio predominante. Alids, 0 fundamento ultimo da lei, autoridade e igo, nao é fundado senao em si mesmo, como violéncia sem fundamento, mas, isso nao significa que o direito esteja simplesmente a favor de uma forga social, pois, ele tem uma relagao int a € interna com poder, forsae violéncii Essa éa questo. E, ao ser investigado o fundamento tiltimo dessa razao juridica, encontra-se a interdigao da lei e a sua forga (DERRIDA, 2010, p. 25 e seguintes). Para Derrida (2005, p. 17), 0 direito esta relacionado com a forga, j4 que — to enforce the law ~ faz: “|..] alusdo direta, literal & forga que vem [...] nos lembrar que 0 direito é sempre uma forca autorizada, uma forga que se justifica ou que é justificada para aplicar-se”, Ele coloca em questo a relagdo entre direito e forga, onde se dé, a todo tempo, 0 ‘direito da forca’ ea “forga do direito’, quando o direito prescreve normas, toma decisoes e autoriza instituigdes na medida em que enuncia eimpde a lei. Com isso, ajurisprudéncia € 05 significados do direito sio pensados diante da ‘razio da forga’, que confere os pressupostos do direito como discurso, norma e da condigGes a lei (DERRIDA, 2019, p. 75 LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agosto de 2023 18 e seguintes). A relagdo entre o direito e a forga é particularmente relevante para entender como se da a desconstrugao do direito. Para Derrida (2010, p. 27): [..] © direito é essencialmente desconstrutivel, ou porque ele & fundado, isto & construido sobre camadas textuais interpretaveis e transformaveis (e esta é a historia do direito, a possivel e necesséria transformagio, por vezes a melhoria do direito), ou porque seu fundamento tiltimo, por definigio nao é fundado. Que 0 direito seja desconstruivel, néo é uma infelicidade. Pode-se mesmo encontrar nisso a chance politica de todo © progresso histérico. Mas o paradoxo que eu gostaria de submeter & discussio é o seguinte:é esta estrutura desconstrutivel do direito ou, se preferirem, da justia como direito, que assegura também a possibilidade de desconstrucio. A desconstrugio, entio, se move entre a justiga e 0 direito (para além dos dualismos representados pelo ‘ou/ow’, ja que nao se trata da relagao de duas coisas separadas ou dialeticamente relacionadas, em sentido diverso, pois, Derrida segue a produtividade e causalidade do ‘selentio’). De um lado, ha o direito como aparato juridico e célculo que tenta dissimular aporias fundamentais do direito, como o abismo entre a universalidade da lei e as singularidades da vida. f ai onde se encontra toda uma economia do discurso juridico, De outro, a possibilidade da justiga como acontecimento se dé para além da estrutura dogmitica e institucional do direito, que, esta sempre por vir, conquanto excede a instituigao juridica e a cinde temporalmente. Logo, 0 direito € essencialmente desconstruivel. B, se 0 direito exige em nome da justiga, esta demanda ser estabelecida pelo direito, por uma economia politica de cilculos, dispositivos instituigdes, porém, a justiga esta para além do direito. A distancia entre ambos, alis, é 0 que permite a desconstrugdo, quando esta ocorre no intervalo. entre a indesconstrubilidade da justia e a desconstrubilidade do direito. Contudo, a todo tempo, eles se encontram em relagao de pressuposicdo entre si, Dito isso, a impossibilidade que a justiga experimenta & a condigao de sua existéncia', pois, ela persiste em virtualidade como ameaga constante, até por isso permite * Aimpossibilidade ésensivel e real, com urgéncia absolutae incondicional...do aqutagora...ela nao espera a estrutura da promessa, porém, é sempre aporética, ji que foge A presenca. Afinal, ultrapassa seus préprios limites como acontecimento. Tal elaboragio faz.com que Derrida néo se limite & dilética de fins e meios, 76 LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agostode 2023 a continua atu: izagao do direito e nao se resume a conceito juridico, instrumento legal e ideal. A justiga aparece como possibilidade da desconstruio e experiencia do impossivel, € aporia de um por vir. E, a desconstrugao € 0 avesso do direito, entio, a desconstrugao é justi¢a (DERRIDA, 2010, p. 28). A desconstrucao, entao, é caracterizada por um duplo movimento de aumento hiperbélico da responsabilidade e exigéncia da justiga. Afinal, surge como demanda ética sem limites ¢ desmesurada diante da meméria, como foge a qualquer legado quando enderega as singularidades (DERRIDA, 2010, p. 38). Com isso, 0 crédito dos axiomas e 0 arranjo de significados s4o suspensos pela desconstrusio, num intervalo em que as mudangas acontecem pelas exigéncias de um suplemento de justiga com incalculivel desproporgao, Entretanto: “Esse excesso da justiga sobre o direito e sobre o célculo, esse transbordamento do inapresentavel sobre o determinavel, nao pode e nao deve servir de Alibi para ausentar-se das lutas juridico-politicas [...]” (DERRIDA, 2010, p. 55). Por isso, a desconstrugao sé existe em movimento, como verbo, desconstruir, e, ela consiste em questionar os discursos e as condigdes de sua realizagao, contrariamente as hierarquias estabelecidas e as pretensdes de completude da filosofia ocidental e do direito, conferindo abertura em oposigao a fechamentos. Mas, é preciso ter o alerta constante de que ela nao é uma saida radical descompromissada e niilista, nem uma conformagao de termos, como cileulo seguro, previsto e delimitado, pois: [..] © que se chama correntemente de desconstrugio nao corresponderia de nenhum modo, segundo a confuséo que alguns tem interesse em espalhar, a uma abdicagao quase niilista diante da questio ético-politica-juridica da justica e diante da oposigdo entre justo ¢ injusto, mas um duplo movimento que assim eu esquematizaria: O sentido de uma responsabilidade sem limites, portanto necessariamente excessiva, incalculével diante da meméria, ¢, por conseguinte, a tarefa de lembrar a histéria, a origem e o sentido, isto & os limites dos conceitos de justiga, de lei e de direito, dos valores, normas, prescrigées que ali se impuseram e se sedimentaram, permanecendo, desde entio, mais ou menos legiveis ou pressupostos (..] Essa responsabilidade diante da meméria € uma responsabilidade diante do proprio conceito de responsabilidade que regula a justiga € a justeza dos nossos comportamentos, de nossas decisées tedrica, ‘ou, a pensamento que encerra seus signiicados na linguagem, Interessa, j dito, 0 que sobra. 0 restos (DERRIDA, 2010, p. 51 e seguintes) 77 LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agosto de 2023 praticas, ético-politicas [..] Toda desconstrugio dessa rede de conceitos, em seu estado atual ou dominante, pode assemelhar-se a uma irresponsabilizagio, quando, pelo contrario, & um acréscimo de responsabilidad que a desconstrugio faz. apelo, Mas, no momento em que o crédito de um axioma é suspenso pela desconstrugio, naquele momento estruturalmente necessirio, pode-se sempre acreditar que ja nao ha lugar para a justiga, nem para a propria justica, nem para © interesse tedrico que se orienta para os problemas da justica. £ um momento de suspensio, aquele tempo de epokhé sem 0 qual, com efeito nio ha desconstrugio possivel. [..] estruturalmente presente no exercicio de toda responsabilidade, se considerarmos que esta nio deve abandonarse a0 sono dogmatico, assim regenerar-se (DERRIDA, 2010, p. 37/38). Nesse contexto, é preciso ter a cautela de nao cair em ‘extremos’ (simplificagao radical levaria & destruiga0 ~ por exemplo, violéncias destrutivas etotalitarismos) e nem incorporar os poderes estabelecidos ¢ modos dominantes (submissio aos padroes ~ levaria a afirmagdo da légica prevalente de certa burocracia ~ por exemplo, captura do capitalismo e aparelhamento de estado). Por tiltimo, destacam-se estudos como os da Critical Legal Studies no ambito da critica do direito, quando a: [uu] desconstrugio do direito positivo interveio e desvendou tanto as reivindicagdes historicas de continuidade, legitimidade da ordem legal, como as reivindicagdes sistémicas de coeréncia, a racionalidade ou a integridade argumentativa baseada em direitos moral [..] Podese dizer de fato que a lei esta oferecendo o terreno perfeito para as operagdes de desconstrugio, jé que parece seguir lealmente todos os principios padrées que a desconstrugio ataca (DOUZINAS, 2005a, p. 62, tradugao nossa). Derrida (2010, p. 14), reconheceu tal importincia: “[..] julgo que os desenvoh imentos da Critical Legal Studies |...] que se situam na articulagao entre literatura, afilosofia, o direito e os problemas politico-institucionais, sao, hoje em dia, do ponto de vista da desconstrugao, dos mais fecundos € necessirios”. E, completa: “Eles respondem, a meu ver, aos programas mais radicais de uma desconstrugao que desejaria, para ser consequente com relagao a ela mesma, nao permanecer fechada em discursos puramente especulativos, tedricos e académicos, mas pretender, [..] mudar as coisas € itervir de modo eficiente e responsavel [...]”. 78 LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agostode 2023 O exercicio da desconstrugao, por fim, pde em cena aporias que estio na realizagao do direito e lida com todo um ‘resto’ diante da lei. Tendo em mente que, 0 direito sem justica é como um corpo sem alma, o desafio da desconstrugao é 0 de conceber novas formas de experimentagio do politico ¢ um pensamento filoséfico desestabilizador das clausuras da filosofia, dogmatica e jurisprudéncia do direito. IIL. Conclusa jo direito porvir Por fim (e, porvir), destacamos que a desconstrugao do conceito de direito, ou, da tradigio do direito, move o olhar critico & produgao social e & politica de forgas, 0 que revela a importancia da imersio nos eventos politicos, quando a preocupagao se volta de forma direta para os temas do direito, da ética e da politica. Logo, se apresenta a necessidade de pensar os eventos juridico-politicos da atualidade, e, com isso, acenar para um direito que se entenda como processo produtivo e também capaz. de mover esforgos no sentido da justiga. Tal critica consiste em questionar os discursos ¢ as condigdes de sua realizagao, contrariamente as hierarquias estabelecidas e as pretenses de completude da filosofia e do direito ocidentais, conferindo abertura em oposigio a fechamentos. A partir deste texto, especialmente relacionado aos movimentos do direito, por este conferir legitimidade as insti igdes de estado (como direito estabelecido, ou, direito de estado), como por exceder a soberania de estado/direito em sentido estrito (como excesso, ou, para além... que Ihe confere a possibilidade de justiga). Derrida fala da justiga que excede a todo direito, a todo célculo, a toda linguagem, a toda tradugdo ou representagao, a toda interpretabilidade ou aplicabilidade, e um direito que se faz necessério para que a justica nao seja impotente, para que ela seja interpretivel ¢ aplicdvel sobre a realidade, mas que nunca pode traduzir totalmente a justiga, nunca pode fazer justiga a essa justiga. Ele afirma que, sea justica deve ter forga, & preciso calcular com 0 direito, afinal, o direito se caracteriza pela sua forga de lei. E ai que a desconstrugao acontece como um golpe de forga, enquanto o direito, de seu proprio interior, esté ligado a justiga e a violéncia. Para tanto, compete afastar 79 LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agosto de 2023 qualquer busca por origem ou plenitude de sentidos, pois, 6 assim, & possivel pensar toda uma economia do direito diante dos acontecimentos. Dito de outra forma, a violéncia desconstrdi e permite desconstruir 0 direito. Nao significa dizer, porém, que a desconstrugio se limite a qualquer violencia, ou se identifique com ela, mas que a desconstrugio se da justamente na negociagao entre forga e direito, Por ser a desconstrugio justamente aquilo que acontece, como singularidade, nio redutivel ao desdobramento daquilo que ja se apresentava por possivel. A desconstrugio, entdo, se confunde com as proprias condigdes de possibilidade do acontecimento, pois ultrapassa aquilo que se pode calcular, no caso, 0 proprio direito. E, com isso, abre possibilidade para a justiga, ou, para cria um ‘novo direito’ (melhor dizendo, continuamente criar novos direitos e meios de realizé-los) ‘Ao considerar, entdo, a condigao imanente da desconstrugao do direito ao porvir, © que se busca € ultrapassar os limites do direito estabelecido, deslocar suas estruturas e icas da atingir novos dominios sociais, abrindo horizontes para mudangas sociais e cr violencia na atualidade, Se a desconstrucdo habita o direito, & nesse habitat que estaremos empenhados em transformé-lo pelos caminhos e descaminhos da justiga. IV. Referéncias CONTINENTINO, Ana Maria. A Alteridade no pensamento de Jacques Derrida: Escritura, MeioLuto, Aporia. Rio de Janeiro, PUC, Departamento de Filosofia, 2006. DERRIDA, Jacques. The Beast & the Sovereign (volume 1). Chicago: The University of Chicago Press. 2008a. ‘The Beast & the Sovereign (volume I1). Chicago: The University of Chicago Press. 2009b. ___. Forea de Lei. Sao Paulo: Martins Fontes, 2010. __. Aescritura ea diferenga. Sao Paulo: Perspectiva, 2008a, ____. Gramatologia. Sao Paulo: Perspectiva, 2008b. ____. Vadios. Coimbra: Terra Ocre, 2005. 80 LUGAR COMUM, Rio de Janeiro, 9.67, agostode 2023 O soberano Bem. Braga: Palimage editora. 2004. ‘Globalisation, Peace, and Cosmopolitanism’ in Negotiations (Elizabeth Rottenberg, trans. and ed.). Stanford, CA, Stanford University Press, 2002. . Espectros de Marx: O estado da divida, o trabalho de luto e a nova internacional. Rio de Janeiro: Dumara Distribuidora. 1994. - Positions. Paris: Minuit, 1972 DOUZINAS, Costas. Oubliez Cri 2005a. jue. Law and Critique, vol. 16, n° 1, jan., p. 47-69, MENESES, Ramiro. A desconstrugdo em Jacques Derrida: o que & o que nao é pela estratégia. Universitas Philosophica, 60, aio 30: 177-204, Bogota, Colombia. 2013. NEUENSCHWANDER, Juliana; MAGALHAES, José Anténio.O. pensamento de jacques derrida e sua recepgao no seio dos estudos juridicos: uma andlise critica. 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