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SUSAN SULEIMAN CRISES DE MEMORIA E A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL JAcQueEs Fux e ALCIONE CUNHA DA SILVEIRA Tradugao Belo Horizonte Editora UFMG 2019 “ESCOLHENDO NOSSO PASSADO” Jean-Paul Sartre como memorialista da Franca ocupada A historia, em particular a historia nacional, € sempre escrita a partir da perspectiva do futuro. Pierre Nora, “Comment écrire Vhistoire de France?” [Como escrever a historia da Franca?”) Assim escolhemos nosso passado a luz de certo fim, mas, a partir das, ele se impée ¢ nos devora. Sartre, Being and Nothingness (O ser e 0 nada}! O amplamente noticiado julgamento de 1997 de Maurice Papon, alto funciondrio francés acusado de crimes contra a hu- manidade por seu papel na deportagao de judeus de Bordeaux em 1942 ¢ 1943, demonstra que, 50 anos apés o acontecimento, a Franga ainda nao havia finalizado suas histérias da Segunda Guerra Mundial. O julgamento de Papon, tal como os outros de uma série comegada com o de Klaus Barbie em 1987, confirma mais uma vez que a nogao de uma histéria nacional é proble- matica, ou absolutamente insustentavel. Ainda que certos fatos tenham sido comproyados ¢ sejam aceitos por todos, os signifi- cados variam de acordo com determinados grupos e momentos por eles recordados. Esse entendimento esta na base do ambi- cioso projeto hist6rico conduzido por Pierre Nora, Les liewx de mémoire, ¢ explica, incidentalmente, seu tremendo sucesso. Se, conforme afirma Nora, @ existéncia de “‘uma Franga’ tornonge ,entdo a tinica maneira de escrever a puramente problemati historia da Franga é a partir do “segundo grau”, focalizandg menos os proprios acontecimentos do que as miiltiplas maneiny pelas quais eles sio interpretados € repassados para a Memérig 2 Volumes similares de historiadores especializados nq la memoria passaram a ser produzidos na Alemanha ¢ publica. histéria d em outros paises europeus. Os intelectuais, em seus reconhecidos papéis de intérpretes de acontecimentos publicos, contribuem significativamente para a formagio de memérias coletivas. Jean-Paul Sartre, sem diivida 9 principal intelectual francés do século XX, desempenhou para 9 ptiblico subsequente do pés-guerra, tanto na Franga quanto no exterior, um papel fundamental na interpretagao da experiéncia francesa durante a Segunda Guerra Mundial. Conforme ja sa- lientado frequentemente pelos historiadores, o problema enfren- tado pela Franca depois da libertagao é tnico entre as nacdes curopeias: justificar quatro anos de colaboracao com o ocupante alemao ¢ ao mesmo tempo reivindicar um lugar de direito na mesa de negociagao como um dos vencedores da Alemanha. Além disso, como a Franca poderia recuperar uma heranga republicana apés quatro anos sob 0 autoritario governo de Vichy? A solugao gaullista para esse problema, que funcionou extre- mamente bem por muitos anos, é brilhantemente analisada por Henry Rousso, no livro The Vichy Syndrome. O general De Gaulle oferece aos franceses um “espelho unitario e unifi- cador” de seu passado imediato, encobrindo diferengas internas e sugerindo que praticamente todos, com excegao de pouquissi- mos “traidores” (que seriam devidamente julgados e punidos), haviam resistido unanimemente ao inimigo. A ret6rica de De Gaulle é extremamente poderosa, conforme mostra seu primeif discurso apés a libertagao de Paris em 25 de agosto de 1944.A0 associar grandes gestos as suas palavras, De Gaulle prociam para a multiddo reunida em frente ao Hotel de Ville, na imen prefeitura da cidade: “Paris libertada! Libertada por si mes™» 26 libertada por seu povo, (...) com o apoio de toda a Franga, da Franga lutadora, da tinica Franga, da verdadeira Franga, da eterna Franga!”’ Rousso explica que com essas poucas frases 0 “general De Gaulle langa as bases do mito fundador do periodo pos-Vichy”. A partir de entao, ele “procura incansavelmente es- crever e reescrever a histéria dos anos de guerra”, sempre com 0 objetivo de mostrar uma Franga unida em sua oposigao ao ocupante. Isso ficou conhecido como o “mito resistencialista”.* Naturalmente, nao era somente De Gaulle que tinha neces- sidade de “escrever e reescrever” a histéria dos anos de guerra. Todos aqueles que sobreviveram a derrota de 1940 e aos anos posteriores 4 Ocupacao sentiam necessidade de uma narrativa que explicasse seu passado imediato e, em certo sentido, justifi- casse-o para si mesmos e também para os outros. Quem melhor do que um escritor talentoso para lhes oferecer tal narrativa — um escritor que, além disso, fosse jovem o suficiente para repre- sentar a nova geragao do pés-guerra, mas com idade e talento suficientes para falar com autoridade? Os trés ensaios de Sartre sobre a Ocupagao, “La République du silence” [“A repiiblica do siléncio”], “Paris sous l’Occupation” [“Paris sob a Ocupagao”] e “Qu’est-ce qu’un collaborateur?” [(“O que é um colaborador?”], foram escritos e publicados entre a libertacao de Paris e o fim da guerra (agosto de 1944 e agosto de 1945), quando 0 “mito fundador” da Franca pos-Vichy foi elabo- rado. Curiosamente, este foi também 0 periodo da emergéncia do proprio Sartre como a principal presenga intelectual nao apenas da Franga do pés-guerra, mas do mundo. Acredito que o papel de Sartre como memorialista da Franga ocupada e como lider intelectual de uma geragdo estao de fato associados, e que essa associagao pode ser demonstrada rastreando-se os argumentos e a historia da publicagao de seus trés ensaios. Esses ensaios ~ que, apesar de bem conhecidos, tém recebido até agora uma atengao critica surpreendentemente reduzida — sao cruciais tanto paraa constru¢ao da carreira de seu autor quanto de uma certa “ima- gem da Franga” propagada no pais € no exterior apés a guerra. 27 CELEBRANDO A LIBERTAGAO: “UN PROMENEUR DANS PARIS INSURGE” Antes de seus ensaios sobre a Ocupacao, Sartre ajuda a celebrar a libertacao de Paris. Com o paradoxal titulo de “Un promeneur dans Paris insurgé” [“Um pedestre na Paris insurgente”), ele pu. blica, de 28 de agosto a 4 de setembro de 1944, sete artigos euforicos no recém-liberado Combat, jornal que circulou de for- ma clandestina, juntamente com varios outros, durante a Ocu- pacao, A libertagao de Paris, envolvendo batalhas de rua entre membros da Resisténcia e alemaes remanescentes, com 0 apoio entusidstico de grande parte da populagao local, ocorreu ao longo de um periodo de seis dias, entre 19 e 25 de agosto, quando a Segunda Divisao Blindada Francesa, comandada pelo gene- ral Leclere, entrou em Paris e recebeu a capitulagao alema.5 Os artigos de Sartre (que, segundo a biégrafa de Simone de Beauvoir, foram na verdade escritos por ela, embora Sartre os tenha assi- nado) relatam um momento heroico da histéria em desenvolvi- mento, fato que pode explicar o tom de exaltagao lirica, bastante atipico em se tratando de Sartre e Beauvoir, que domina esses textos.' O segundo artigo, “Naissance d’une insurrection” [“O nascimento de uma insurreic40”], descreve, por exemplo, uma multidao que se reagrupa apés ter sido dispersada por soldados alemaes: “Ainda nao sio combatentes, pois nao possuem armas, nem regulamentos, mas também nAo sao totalmente civis. Esco- lheram seu lado. Permanecem nas janelas, nas ruas, um pouco palidos, firmes, vigilantes. A guerra esta 14, sob o sol.”” O artigo seguinte, intitulado “La colére d’une ville” [“A ira de uma cidade”], evoca “a memoria de Oradour”, a cidade e seus habitantes brutalmente destruidos pelos alemies alguns meses antes, concluindo de forma sonora: Toute la matinée, c’est la colére qui souffle sur la ville, Cette foule a enfin décidé de prendre son destin dans ses propres mains. Vers 11 heures, on voit apparaitre les premiéres barricades, Le chemin qui 28 mene de la docilité douloureuse a l’insurrection est enfin parcouru. A partir de ce moment, il n’y aura plus que des combatants.® Durante toda a manh, a ira impregna a cidade. A multidao finalmente decide tomar seu destino nas préprias maos. Por volta de 11 horas, aparecem as primeiras barricadas. O caminho que conduz da docilidade dolorosa a insurreicio € finalmente percorrido. A par- tir deste momento, havera apenas combatentes. Passagens como essas podem sair diretamente de um romance de Malraux ou Nizan, engajados escritores dos anos de 1930, que celebram a “fraternidade viril” ou o fervor revolucionario. Mas também possuem uma resson4ncia similar ao discurso de De Gaulle que enaltece uma Franga livre, heroica e unida. Uma passagem do artigo, que descreve a entrada das tropas de Leclerc em Paris, alcanca o auge de um fervor unanimista: Ils regardent, ils rient, ils sourient, ils nous saluent de leurs deux doigts écartés en forme de V et nous sentons que leur coeur bat au méme rythme que le nétre. Des femmes, des gamins ont envahi les camions et les autos, des voitures de FFI défilent derriére les tanks, civils et militaires sont d’une seule race: des Frangais libres.” Eles olham, riem, sorriem, satidam-nos com os dedos abertos em for- ma de V e sentimos que seus coracées batem no mesmo ritmo do nosso. Algumas mulheres e criangas invadem os caminhées e carros; carros repletos de Forces Francaises de l’Intérieur [combatentes da Resisténcia] seguem os tanques; civis e militares so uma raga Gnica: franceses livres. O apelo a uniao de todos os franceses diante das arduas tare- fas futuras repercutiu nas colunas de todos os jornais durante os dias seguintes A libertagao. Escritores tao diversos quanto o fil6- sofo catélico Maritain e o filésofo ateista Camus concordavam que a uniao era essencial; em seus discursos, De Gaulle nao apenas fez um apelo a uniao, mas a pressupés retoricamente. Ao falar “da verdadeira Franga, da eterna Franca”, unanime em sua resisténcia ao ocupante, ele expressa um desejo em vez de 29 descrever uma situagao real. Em termos retéricos, a Pressuposi. giao é um meio de persuadir seu interlocutor de que algo existe, sem verificagdo empirica. Sera que, naqueles primeiros dias de setembro de 1944, Sartre pressupés a unido de todos os franceses? Ele nao fala de uma “France éternelle”, mas compartilha com De Gaulle, bem como com a maioria dos franceses ¢ de muitos americanos e ingleses, 0 desejo de que a Franga tivesse sido unanime em sua rejeicag ao ocupante. O desejo de acreditar que toda a Franga resistira aos alemiaes, ainda que apenas uns poucos houvessem realmente lutado contra eles na Resisténcia, corresponde ao que Pierre Nora define como a escrita da histéria a partir do ponto de vista do futuro, O futuro da Franga, apés a libertagao, é o de uma nagio forte entre aquelas que venceram os alemaes. Portanto, era ne- cessario que toda a Franga tivesse resistido ao ocupante. Nesta perspectiva, o futuro perfeito é o tempo, histérico por exceléncia, “NINGUEM FALHOU COM ELA”: _ TRES ENSAIOS SOBRE A OCUPACAO O pequeno texto de Sartre, “A republica do siléncio”," faz sua primeira aparigao dramatica menos de duas semanas apés a libertagao, em 9 de setembro de 1944, no primeiro exemplar gratuito publicado livremente de Les Lettres Frangaises; periddico dirigido por um grupo de escritores da Resisténcia, o Comité National des Ecrivains [Comité Nacional dos Escritores], que ja circulava clandestinamente ha dois anos. A primeira pagina do Les Lettres Francaises, na qual 0 ensaio aparece, é ela propria testemunho de um desejo de unido entre uma ampla gama de vozes. Sobre 0 texto de Sartre, hd um ensaid que celebra a “alma” da Franga, escrito pelo conhecido autor cat6lico Frangois Mauriac. (Mauriac publicara um livro com * Editions de Minuit em 1943, sinal de forte compromisso com * Resisténcia). Ao lado do ensaio de Mauriac, ha wm texto part? dario mais severo do editor-chefe, o comunista Claude Morg®® 30 0 destaque central éo “Manitesto dos Eseritores Pranceses”, as» ainado por todos ox membros do Comité National des Perivains, aque se Houta em segredo desde 1941 © inclata alguns dos nomes mais conhecicos da Resistdneia intelectual: Vercors (pseuddnimo: de Joan Beatlor), Paul Bluard, Jean Pauthan, Mauriac, Louis Aragon, Andee Malraux, Albert Camus e Edith Thomas, as como Sartre! “Peemanegamos unidos na vitéria ena liberdade COMO estive mos na Cristera © Na Opressdo”, proclama o Mani- testo, Valea pena notar que entre og assinantes, Sartre ndo era 0 mais Lamoso = tornansesia em uN ano = mas era conhecido nos etreulos intelectuais como romancista (La mansée [A ndusea]” € publicado em 1938), como fildsofo (Lire et le néant [O ser ¢ © nade] aparece em 1943) © como autor de alguns brilhantes artigos de critica literdria, Além disso, havia conquistado con= sideravel notoriedade na primavera de 1944 com a pega Hut ta um animado debate nos clos [Entre quatro parex da Ocupagio. Ele participava das reunides do Comité QUE SUS jornais National des rao clandestino Les Lettres Frangs ant, Nunca publicara com as Scrivains desde 1943 e havia contribuido com trés sy Mas nao era artigos py conhecido como um grande rési Editions de Minuit, ao contrario de Aragon, Eluard, Paulhan, Vercors e muitos outros. O fato de ter duas pegas produzidas alema nao era propriamente repreensivel naquela i im, a sob a cens época, mas também nao era um sinal de resisténcia, 2 presenga central de Sartre na primeira pagina de Les Lettres cada, nao é de todo dbvia. Frangaises, apesar de nio ser injus Em certo sentido, sua autoridade como résistant foi criada, mais do que confirmada, por esse acontecimento, Fis, entio, Sartre afirmando na famosa sentenga de aber tura de “A repuiblica do siléncio”; “Nunca fomos mais livres do que durante a ocupagdo alema”, A quem exatamente esse “nés” se refere? Esse pronome aparece no menos do que 2 vezes (duas como 0 possessivo “notre”) nas primeiras 20 tehes do texto, confirmando o que pode ser chamado de sua retori- ca unanimistas entretanto, a extensio do pronome (Quem estat 3 incluido em “nous”? Alguém esta excluido?) nao Perm, 5 “ ay ner an estavel. As vezes parece que 0 “nous” inclui todos a Be ‘Wueles que TAM A Oey. 0; em Outras, o pronome se refere apenas a alguns franc Ceseg est pa e nao a outros. ) na Franga ou virtualmente todos que sobrevive O mais interessante é que este deslizamento semantico, Pe © que pode ser chamado de “76s vacilante”, nao se Caracterizg como uma fraqueza do texto, mas, sim, como sua forca, nao como uma negligéncia, mas como uma estratégia retérica, ais parecem referir-se a todos. Sartre incluj até mesmo uma mengao aos judeus, a tinica que aparece nesses As linhas inici: trés ensaios: “éramos deportados em massa, como trabalhadores [trabalhadores forgados enviados como membros do “Service dy Travail Obligatoire” para a Alemanha], como judeus, como pri- sioneiros politicos [presumivelmente membros da Resisténcia]”, Algumas linhas depois, o unanime “nés” é qualificado por uma exclusao: “Et je ne parle pas ici de cette élite que furent les vrais Résistants, mais de tous les Frangais qui, 4 toute heure du jour et de la nuit, pendant quatre ans, ont dit non.” [“E nao falo aqui daquela elite que foram os verdadeiros Resistentes, mas de todos os Franceses que, a cada momento do dia ou da noite, durante quatro anos, disseram ndo.”] Aqui, Sartre coloca os “verdadeiros Resistentes” em uma categoria separada: suas palavras de enaltecimento nao se referem a essa elite minoritaria (presumivelmente, eles nao precisam ser enaltecidos), mas a to- dos os franceses “comuns” que disseram ndo ao ocupante. Isso significa todos? Ao permitir 0 sexismo linguistico que inclui mulheres sob a categoria de “franceses”, parece que to- dos so incluidos. Mas é af que o nds vacilante entra em j0g0- Gramaticalmente, a sentenga de Sartre nao diz que todos 0s franceses disseram ndo. Ele fala de “todos os franceses que disseram nao”, mas nao de “todos os franceses, que dissetam nao”. A auséncia de uma virgula antes do pronome relativo € crucial, pois restringe o antecedente: alguns franceses "4° disseram ndo, e Sartre refere-se apenas Aqueles que 0 fizeta™ 32 Gramaticalmente nao ha ambiguidade aqui (a oragao adjetiva sem virgula é chamada pelos gramaticos de “adjetiva restriti- va”), mas retoricamente nao é bem assim. Podemos deduzir a auséncia da unanimidade - ela esta gramaticalmente implicita, mas nao declarada. Em “Qu’est-ce qu’un collaborateur?”, Sartre realmente declara que “a nagao disse nao” para o ocupante: a na¢ao, ou sej ja, todos os franceses. Aqui, ele nao vai tao longe, mas a retérica de seu texto, baseado na insistente repetigao do “nos” e numa declaragao mais indireta do que direta, inclina-se fortemente na diregio daquele significado. A partir de entao, o deslizamento semantico desse texto se torna mais e mais pronunciado. Por exemplo: Mais la cruauté méme de l’ennemi nous poussait jusqu’aux extré- mités de cette condition en nous contraignant a nous poser de ces questions que l’on néglige dans la paix : tous ceux d’entre nous — et quel Frangais ne fut une fois ou l’autre dans ce cas ? — qui connais- saient quelques détails intéressant la Résistance se demandaient avec angoisse : « Si on me torture, tiendrai-je le coup ? »'* Mas a propria crueldade do inimigo nos empurra até o limite dessa condigao [de dizer no] ao nos forcar a questionar aquilo que negli- genciamos em tempos de paz: todos aqueles entre nds — e qual francés ndo esteve em um momento ou outro nessa posi¢o? — que conheciam alguns detalhes sobre a Resisténcia se perguntaram angustiadamente: “Se me torturarem, conseguirei resistir?” Apés excluir a “elite que foram os verdadeiros Resistentes” da sentenga anterior, Sartre estende aqui a angistia da tortura, possivelmente sentida pelos membros da Resisténcia, 4 toda a populagao por meio de uma questao retorica: “qual francés ndo esteve em um momento ou outro nessa posigaéo?” Pode- mos pensar que ele exagera, que poucos franceses realmente correram o risco de serem torturados pela Gestapo, mas 0 interesse desse texto nao é factual. Seu poder é retdrico, ainda que a custa de fatos. 33 Algumas linhas depois de: lizado da tortura, o texto desliza do pronome “nos “nous” para “i s reflexdes sobre o medo Boner, as Para “eleg» A ceux qui eurent une activité clandestine, les conditions de leyp lutte apportaient une expérience nouvelle: ils ne combattaient pas ay grand jour, comme des soldats ; en toute circonstance ils étaient Seuls, ils étaient traqués dans la solitude, arrétés dans la solitude, Para aqueles engajados em atividades clandestinas, as condigdes de suas lutas proporcionaram uma nova experiéncia: eles ndo lutaran em plena luz do dia, como soldados; em todos os instantes, estiveram, sozinhos, foram cagados na solidio, presos na solidao. Aqui comega o desenvolvimento da “reptiblica do siléncio”, pois essa frase refere-se em primeiro lugar aos membros dos movimentos da Resisténcia organizada. Um résistant que é preso e torturado sentia-se responsavel por todos os outros do grupo, independentemente da posigdo; por isso a Resisténcia ¢ uma “democracia verdadeira”, “a mais forte das Reptiblica A caminho desta conclusao, relativa apenas 4 Resisténcia ), 0 texto desliza para um “nds” que é quase imperceptivel: “Cette responsabilité organizada (logo, a “eles” mais do que a “n6 totale dans la solitude totale, n’est-ce pas le dévoilement méme de notre liberté?” [“Essa responsabilidade total, na solidao total, nao é o proprio desvelamento da nossa liberdade?”]. Podemos perguntar o que faz esse “nds” coletivo no meio de tantos “i referentes aos torturados herdis da Resisténcia. A resposta ¢ fornecida bem no final do texto, quando encontramos o mais audacioso — e evidente — deslizamento semantico: Cette république sans institutions, sans armée, sans police, il fallait que chaque Frangais la conquiére et l’affirme 4 chaque instant contre le nazisme, Personne n’y a manqué et nous voila 4 présent au bord d’une autre République. 34 Essa reptiblica sem instituigdes, sem exército ¢ sem polfcia, era preciso que cada francés a conquistasse ¢ a afirmasse a cada instante contra 0 nazismo, Bissnos agora, As vésperas de uma outra Republica,” No espago de uma tinie entenga, a “reptiblica do siléncio” se desloca da Resisténcia para todos os frances © nazismo torna 6, ea luta contra se uma luta da qual toda a populagao fran- cesa participa a todo instante, u animemente: Personne n'y a manqué |Ninguém falbou com ela|. O proprio Sartre parece ter percebido, com o passar do tempo, que 0 exagero ret6rico aqui é muito forte, muito flagrantemente “resistencialista”. Ele omite essa sentenga da versio do ensaio que a ‘ece cinco anos mais tarde em seu livro Situations, III."” Mas a sentenga perma- nece em todas as outras versdes do ensaio, em francés ou inglés, reimpressas até entao, O que dizer hoje sobre es trecho de oratéria maravilho- randiloquente? Um critico hostil tal como Gilbert Joseph (em seu livro Une si douce Occupation [Uma doce Ocu- pagdo}) trata-o como uma “fantasia de herofsmo”, parte de uma samente égia calculada por Sartre para ganhar um lugar dominante no firmamento literario do pés-guerra.'’ Mas a realidade me parece mais complicada e mais interessante do que isso. Se ha uma fantasia de heroismo em funcionamento aqui, e podemos facilmente admitir que sim, entao devemos pensar sobre ela nao como um movimento primariamente carreirista, nem mesmo uma questao de psicologia individual, mas como um fendémeno coletivo. © trabalho cultural e politico realizado por esse tex- to em setembro de 1944 é considerdvel: gragas a seu talento como escritor, Sartre consegue construir uma versio do passado imediato na qual nao apenas seus leitores franceses, mas todos os francéfilos do exterior que necessitavam de tranquilizagao, reconheciam uma imagem da Franga que poderiam aceitar e, até mesmo, amar, num momento em que a guerra ainda nao havia terminado e as forgas francesas continuavam lutando junto aos aliados, 35 Anna Boschetti, em seu influente liveo Sartre et Les Temps Modernes [Sartre ¢ os tempos modernos], argumenta que o vel dadeiro puiblico de Sartre, aquele que o torna famoso, Consiste em intelectuais atraidos pelo seu prestigio triplo (ou, no voea. bulirio do mentor de Boschetti, Pierre Bourdieu, pelo seu “ca. -filésofo-ensaista, pital cultural acumulado”) como romanci: De acordo com Boschetti, os pequenos textos programiaticos de Sartre, “Presentation of Les Temps Modernes” [“Apresentagao da

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