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Eudoro de Sousa -DIONISO EM CRETA € outros ensaios SA NACIONAL CASA DA MOEDA Estudos Gerais Série Universitaria Eudoro de Sousa DIONISO EM CRETA e outros ensaios IntrodugGo de Antonio Tetmo IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA LISBOA 2004 INTRODUCAO Julgo lembrar-me de ter ouvido ao Eudoro de Sousa dizer que os li- pros verdadeiramente dignos de atencdo se devem ler do fim para 0 prin- cipio, que & como quem diz, da direita para a esquerda ou da luz para a sombra... Amava destrocar os lugares-comuns, desmontar 0 que parece evidente. «O meu nome, Eudoro, nao diz, como parece sugerir a etimologia, que eu sou uma bela dadiva dos deuses ao mundo; 0 que ele quer dizer, e pela mesma etimologia, é que eu sou uma boa prenda.» Ler do fim para o principio é como Aristoteles procedia perante 0 grande livro da natureza, Ensinou, como se sabe, que a melhor das cau- sas é a final. Terd alguém reparado que esta ideia se exprime, antes de tudo 0 mais, no seu nome: Aristételes? Claro que ainda ha, de acordo com a etimologia do nome, uma ideia mais alta: a do perfeito iniciado. Obedecendo a sugestio, e tomando a letra 0 que ela nos diz, se co- mecarmos a ler 0 livro do proprio Eudoro pelas tiltimas linhas, ali de- pararemos, com efeito, na conclusio 0 principio regulador do imenso licido silogismo que € todo 0 Dioniso em Creta. Essas linhas sio, como pode ver-se, as seguintes: «Os comentadores de Platao, que a todo 0 passo citavam livros drficos, e para os quais Orfeu era 0 Tedlogo- -Poeta-Muisico-Hierofante, nfo podiam chegar a sintese, porque a sin- tese é irrealizdvel no sentido da tese ou da antitese. Mas Orfeu era um simbolo do anseio por realiza-Ia. Estaria ela jé realizada, ou a caminho de realizagao, no Cristianismo? Uma pedra conservada no museu de Berlim ostenta, sob um Cristo crucificado, esta inscrig@o: ORPHEOS BAKKIKOS.» 2 Nos termos do autor do que citamos, a tese era a imanéncia de uma religiao cosmobioldgica, a antitese foi a transcendéncia do «deismo fi- loséfico ou metafisico», E escreve: «Os neoplaténicos, comentando Pla- tao, conheciam a primeira pelos cultos de mistério e a segunda pela metafisica platonico-aristotélica. Plotino nao soubera, nem quisera ten- tar a sintese.» Quem, pois, realizou a sintese foi o Cristianismo, um Cristianismo de «um Cristo quase pagdo», como escreveu Leonardo Coimbra, um deus que danga: Orfeu Dionisiaco. Como entender, porém, a legenda sob a imagem do Crucificado? Eudoro de Sousa nao cessa de interrogar ¢ de se interrogar sobre 0 que tera sido 0 segredo nunca revelado dos mistérios gregos. «Culto ver- dadeiro», escreve cle, «e, por conseguinte, religido auténtica, era ainda e sempre a dos mistérios.» Tudo leva a suspeitar que, no espirito do gran- de helenista, a Missa catélica seja a forma revelada dos mistérios de Eléusis, onde a espiga pode muito bem ter representado 0 que na Missa é 0 pao da Eucaristia e, se, em vez de Eléusis, pusermos os mistérios de Dioniso, logo a analogia se completa pelo vinho. Todavia, para que seja como se nao diz mas se intui em Eudoro de Sousa, necessdrio se torna que Cristo nao seja s6 0 Crucificado, mas 0 deus, como Baco ou Dioniso, que ressuscitow da morte. Eudoro nao’o diz. Perante 0 enigma do que seriam in nuce os mis- térios gregos, enigma insoltivel pelo método dito cientifico de indugao a partir do pouco que saiu para fora, o fildlogo portugues segue na peugada dos helenistas alemaes para lhes passar adiante com a sobera- na intuigdo de que ali, onde quer que no templo se celebrem tais mis- térios, algo se passard que pela muisica e pela danca realize as niipcias do Céu e da Terra, do transcendente apolineo e do imanente dionisiaco. Todavia, para que tal se dé, impde-se que pelo nedfito o deus antes des- ¢a aos infernos. De novo o Cristianismo projecta a sua luz nas som- bras do passado. Introdugio é, como a palavra o pode sugerir, a abertura de uma porta que dé para um caminho pelo labirinto da discursividade. E, todavia, verdade que o que vimos propondo como introdugiio a Dioniso em Creta esta longe de estar explicito. Eudoro de Sousa como que nao se arrisca a dizer claramente o que pensa. Limita-se a apontar, a indicar, como quan- do diz, por exemplo: «Historidvel, na Grécia, é s6 uma religif@o que, saturada de imanéncia e apelando para a transcendéncia, mas ndo po- dendo ‘esperar 0 inesperado’, s6 0 acharé quando chegar a hora da Reve- lacao. Para as almas mais abertas aos quatro ventos do espirito, nao te- ria sido a impossibilidade de realizar a pressentida coincidéncia dos opostos, uma eficientissima praeparatio evangelica?» Ao escrever isto nao tera Eudoro de Sousa em mente Sao Paulo? A religiao catélica tem por base n@o um mito, mas um evento histo- rico. E 0 que geralmente se apresenta como garantia de veracidade. Claro que poder-se-ia responder, recorrendo a Aristételes, que a poe- sia é mais verdadeira do que a histéria. Eudoro de Sousa, neste ponto, diria certamente que, sendo na Grécia de Homero 0 mito a propria poe- sia, s6 quando 0 mito é& a matéria que busca no rito a propria forma é que a verdade esté garantida. Isto aconteceu, antes de Homero, no mun do mindico e persistird nos mistérios para cd de Homero, mas s6 com o Cristianismo se realizaré perfeitamente. Porquanto 0 Cristianismo sera a tinica religiao em que 0 mito é hist6ria e a historia é mito ou, noutros termos, 6 a religido em que 0 mito do deus biquico que ressuscita da morte se realiza historicamente e é depois presente, ¢ ndio apenas memo- rado, na Missa crist A revista brasileira Humanidades dedica todo 0 quinquagésimo niimero, como se do seu jubileu se tratasse, a Eudoro de Sousa, osten- tando na capa o seguinte elucidativo subtitulo: Presenga da GRECIA, Prémio Eudoro de Sousa. Apenas um portugués colabora na revista Trata-se do fildsofo hermeneuta Joaquim Domingues, que foi, alids, quem estabeleceu a bibliografia completa do grande helenista. Mostrando a intima relagao entre O Culto e a Cultura no pensamento de Eudoro de Sousa, langa simultaneamente a sugestiio, documentando e raciocinando, que procurei desenvolver nas linhas anteriores. Sem a sua sugestio, tudo ficaria encerrado no circulo fechado, conquanto vastissimo, da pesquisa pela erudigio. A Joaquim Domingues devo o convite para escrever esta introducao. Sugeriu 0 meu nome ao grande amigo da filosofia portuguesa e, também dle, filésofo portugués Anténio Braz Teixeira, fazendo-o, julgo eu, por saber que a minha vida intelectual esteve, no inicio e no fim, intima- mente associada ao magistério pessoal de Eudoro de Sousa. Fé-lo talvez pensando que a introdugao a um livro, além de uma ou de outra chave de abertura no sentido do pensamento, deve dar uma ideia bem pessoal do autor, sem o que a relagdo do leitor com o livro corre o risco de nao ser de «razio animada». Fui discipulo de Eudoro de Sousa nos meus anos mogos, por volta dos vinte. Veio isto em consequéncia de eu ter sido recebido no circulo da filosofia portuguesa, onde pontificavam do natural para 0 sobrenatu- ral Alvaro Ribeiro e José Marinho. Na fantasia do adolescente, Alvaro correspondia a Aristételes e Marinho a Platio. Eudoro, até pela J mia, lembrava a figura espiritual de Sécrates, Um més depois de he ter sido confiado, deu-se um acontecimento que foi o meu primeiro encontro com o espanto e que ainda hoje se repercute em mim como um aviso ¢ um chamamento. Todos quantos, ainda imaturos, leram René Guénon sabem como os envolveu e subjugou uma estranha conviccao de que a sabedoria do 9 metafisico francés, expressa num tom infalivel, passou para eles, trans- mitindo-lhes um sentinento de superioridade sobre os outros que chega a rocar a idiotia. Foi o que se deu comigo. Eu viera de completar a lei- tura em segredo de O Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo e dirigi-me para a Brasileira do Rossio, café hoje transformado em banco, onde encontrei 0 Eudoro de Sousa. Eu estava cheio de mim e, por conse- guinte, oco. Pedi delicadamente licenca para me sentar @ sua mesa. Nao fiz nem disse nada, julgava eu, que pudesse revelar 0 meu baixo estado de espi- rito. De repente, 6 espanto!, interpelou-me com violéncia: «— Olha la! Tu estés parvo? Es um rapaz simpitico e todos nés te temos por muito inteligente. Queres dar cabo de ti?» A minha alma deu uma volta sobre si mesma e varri o demonio da auto-suficiéncia. Varri-o até hoje. Ele viu isso e, olhando-me em siléncio, pés-se depois a conversar como se nada se tivesse passado. Contarei ainda outro episédio bem significativo da sua superior perso- nalidade que se deu em Brasilia, para onde, vinte anos mais tarde, ele me chamou como colaborador no Centro de Estudos Classicos, que dirigia. Eudoro de Sousa era um professor extraordindrio. Durante 0 ano dava uma meia diizia de aulas. Acabavam todas com os ouvintes de pe batendo palmas. O seu estilo de ensinar era espantoso. Nao conheci nada de igual em toda a minha vida de aluno e de professor. O episédio a que me referi passou-se numa aula sobre o Egipto. O an- fiteatro onde decorreu a aula estava repleto de alunos e de professores. Eudoro de Sousa caminhava de extremo a extremo da parte inferior do anfiteatro com movimentos que lembravam os de uma fera. De repente parou e comecou a falar. Falava com os préprios siléncios que fazia entre as frases. Em dado momento, referindo-se as pirémides, disse que elas eram o resultado da criagao religiosa de um povo. La em cima, na tlti- ‘ma fila, junto ao iiltimo degrau da escada de acesso, um individuo, em tom insolente, interrompeu-o vociferando que as pirdmides tinham sido feitas pelos escravos subjugados pelos senhores do dinheiro e do poder. A resposta de Eudoro de Sousa foi memordvel. Comegou a subir os de- graus que levavam até ao homem. Em cada degrau parava e dizia 0 nome de um egiptélogo. Subiu assim toda a escada. O siléncio era a expressaio da enorme expectativa de toda a assisténcia. Quando chegou em frente do homem, depois de ter mencionado alemies, ingleses, russos, franceses, olhou-o cara a cara com os seus grandes olhos socraticos, dizendo silaba a silaba: «— Todos estes sibios ensinam que as piramides foram uma obra de devogio de todo um povo.» Desceu lentamente a escada, bebeu um golo de dgua e continuow tranquilamente a falar. A asistencia interrompeu-o para o aplaudir de 10 pé. Eudoro de Sousa foi para o Brasil porque em Portugal niio 0 deixa- ram ensinar. Hoje, ali, nos meios culturais, bem conhecido e muito admirado, é aqui, até nos meios universitdrios, vagamente referido, quando nao é totalmente ignorado. A edigho de Dioniso em Creta pela Imprensa Na- cional, seguindo-se a de Origem da Poesia e da Mitologia e Outros Ensaios ¢ de Horizonte e Complementaridade e de Sempre 0 mes- mo acerca do mesmo, também pela Imprensa Nacional, pode ser que torne mais popular, entre n6s, 0 estudo da Grécia, através de um homem nado e criado «na terra mais antifilosdfica do planeta». ANTONIO TELMO n DIONISO EM CRETA e outros ensaios DIONISO EM CRETA «Formulagdes e fundamentagoes vao nascendo de novo; a iluminagao da existéncia pode progredir; no entanto, os problemas fundamentais da existén- cia humana talvez nem tanto se hajam modificado, desde o paleolitico.» Burkert Ao contrario da filosofia, em que os testemunhos da tradic¢ao (directa e indirecta), criticamente interpretados, permitem uma clara delineacao do seu desenvolvimento histérico, desde o pri- meiro dos Jénios até o tiltimo dos Neoplaténicos, a religido grega permanece auténtica selva sevaggia, em que 0 filsofo e o historia- dor a todo o passo se enredam em contradi¢ées imobilizantes. Nao estranhamos, portanto, que, em desespero de causa, se chegasse a conviccéo de que um dicionario enciclopédico constituiria, neste campo da pesquisa, a forma de exposigao menos sujeita a trair os ditames mais rigidos do que quer que passe por inquebrantavel honestidade cientifica 1. E, na verdade, se as grandiosas publica- oes de Daremberg e Saglio, Roscher e Pauly-Wissowa-Kroll 2, por sua natureza, se constituem em mero conjunto de fichas, alfabeti- camente ordenadas, também a leitura dos famosos tratados de 1 © «manifesto» é de Hermann Usener, Goternamen. Versuch einer Lehre von der religisen Begriffsbildung, 3." ed., Frankfurt, 1948 (a 1.* ed. 6 de 1895). Prefacio da 1. edigao. 2 Ch. Daremberg/E. Saglio, Dictionnaire des antiquités grecques et romaines, Pa- ris, 1877-1919; H. W. Roscher (ed.), Ausfidhrliches Lexikon der griechischen und rimischen Mythologie, Leipzig, 1884-1937 (ha uma reedigio fotostitica da Olms, Hildesheim); Pauly-Wissowa-Kroll-Ziegler, Real Encyclopiidie der klassischen Allertumswissenschaft, Stuttgart, em curso de publicagao, desde 1895. (J4 entrou na letra Z; entretanto foram publicados 11 volumes suplementares.) 15 Preller-Robert, Otto Gruppe, L. R. Farnell, Wilamowitz-Moellen- dorff, Otto Kern, A. B. Cook e Martin Nilsson 3, apesar do imenso esforgo e do real talento dispendidos em tecer um fio de historici- dade que nos conduza através da labirintica documentacao literd- ria e artistica, sempre deixa em nosso espirito, como ressaibo amargo, a quase certeza de que nunca sera possivel escrever uma verdadeira histéria da religiao grega. Nao cremos pecar por excesso de pessimismo afirmando que, no dominio da religiosidade, a filologia historicista, tao auspi- ciosamente inaugurada por Carl Ottfried Miller 4 em 1825, 0 mais que conseguiu em matéria de organizagao sistematica foi demonstrar, mal-grado seu, que 0 vasto e complexo horizonte do factico e do fenoménico nos aparece sulcado por linhas de forca que visualizam a oculta tensdo entre dois pélos que se designa- ram por «olimpico» e «ct6nico», «patriarcal» e «matriarcal», «ur- bano» e «agrarion, chelénico» e «pré-helénico», «indo-europeu» e «mediterranico», «apolineo» e «dionisiaco», «ptiblico» e «secre- to», «local» e «universal», e assim por diante. Porém, e explo- rando o simile, digamos que, interrompida a corrente que cria e alimenta 0 campo de forcas e, por conseguinte, anulada a ten- sao entre os dois pélos, como quer que 'sejam denominados, todas aquelas paginas de histéria se desorientam e imobilizam em verbetes de enciclopédi De origem mais recente e, ao que parece, muito mais produti- vos no sentido da pretendida historicidade sao os métodos com- parativos dos fillogos e historiadores da religiao grega que pro- curam na etnologia a solucéo de problemas suscitados pela mais intima e assidua convivéncia com a tradigao cléssica. O imenso repositério que James Frazer publicou sob o titulo de O Ramo de 3 L. Preller e C. Robert, Griechische Mythologie — Die griechische Heldensage, Berlin, 1894-1920 (hé edigéo mais recente, mas sem alteragdes, da colaborago de C. Robert sobre a Lenda Heréica, publicada pela Weidmann); Otto Gruppe, Griechische Mythologie und Religionsgeschichte, Miinchen, 1906; L. R. Farnell, Cults of Greek States, r-v, Oxford, 1896-1909; Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff, Der Glaube der Hellenen, ru, em parte, péstumo, Berlin, 1926-1932 (2.* ed., Basel, 1956); Otto Kern, Die Religion der Griechen, -ul, Berlin, 1926-1938; A. B. Cook, Zeus. A Study in Ancient Religion, tl, Cambridge, 1914-1940; Martin P. Nilsson, Geschichte der griechischen Religion, Ll, Miinchen, 1941/1950 (ha nova edigao de cada um dos volumes), * Carl Ottfried Miller, Prolegomena zu einer wissenshiftliche Mythologie, Gottingen, 1825 (estd anunciada uma reedicao fotostatica). 16 Ouro passa, ha trés quartos de séc lo, pelo mais celebrado mo- numento a inexaurivel fecundidade desta metodologia. £ sobeja- mente conhecida a argumentagao com que Wilamowitz 6, em nome da escola hist6rico-filolégica, opugnou a coetanea tendéncia para explicar 0 «helénico» pelo «nao-helénico». Mas, ainda que discutiveis nos principios e rectificaveis nos resultados, 0 certo é que sempre foram triunfando de toda a critica «reaccionaria» ideias tais como a de Erwin Rohde, que, em sua Psyche, recorre- ra ao animismo de Tylor para iluminar as origens do «culto dos mortos e da crenca na imortalidade entre os Gregos». Sem duivida, a escola histérico-etnolégica tem seu calcanhar de Aquiles. Nao é, todavia, a comparagao, pura e simples, entre fac- tos historicos e factos etnolégicos, ou o mero confronto entre o «antigo» e 0 «primitivo», que irremediavelmente compromete a validez e 0 alcance da investigagao, no campo das religides classi- cas. O perigo mortal — neste caso, a inviabilidade de uma verda- deira historia da religiao grega, com fundamento na etnologia — reside em que 0 método, levado a extremos limites, s6 atinge os pontos em que se revela o substrato de quanto se possa dar como historia, entendida esta como processo de evolucdo ou de desen- volvimento. Noutros termos: por sua natureza, 0 método compa- tativo s6 tende a relevar e esclarecer 0 que antecede a historia, permanecendo fora dela, j4 que, dentro dela, nunca participou do movimento que institui a prdpria historicidade. Dir-se-ia, por conseguinte, que, no dominio da religiao, teriam necessariamente de abortar todos os ensaios de uma historiografia cientifica. Nem a escola hist6rico-filolégica, nao querendo elucidar 5 J. G. Frazer, The Golden Bough, 1-xn, mais um volume suplementar, de indi- ces. Hi uma edicao abreviada, em inglés, e, desta, pelo menos trés versdes em outras linguas: alemao, francés e castelhano. Esta (La Rania Dorada) foi publicada pelo Fondo de Cultura Economica, 3." ed., México, 1956. © Der Glaube der Hellenen, ed. de Basileia, vol. 1, pp. 8 © segs. 7 Psyche — Seelenkult und Unsterblichkeitsglaube der Griechen, 1-n, Tabingen, 1891-1894 (10.* ed., 1925). Ha uma edicao abreviada, com importante introducso de Hans Eckstein (Leipzig, s. d., Kriners Taschenausgabe, vol. 61), que foi traduzida para castelhano e publicada pelo Fondo de Cultura Economica, México, e tradu- ‘cdo francesa completa (Paris, Payot). Edward B. Tylor, Primitive Culture; Researches into the Development of Mythology, Philosophy, Religion, Art and Custom, t-, 1." ed., London, 1871. Acrescente-se que na escola hist6rico-etnolégica também influiram poderosamente, pelo menos na Alemanha, as pesquisas de Wilhelm Mannhardt: Waldt- und Feldkulte, -, Berlin, 1875-1877 (ha nova edigao fotostatica da Olms) €, sobretudo, Mythologische Forschungen, Strassburg-London, 1884. 7 © grego senao pelo grego, nem a escola hist6rico-etnolégica, pre- tendendo explicar 0 grego pelo néo-grego, conseguiram, até hoje, estabelecer os fundamentos e delinear os argumentos de um siste- ma que dé uma razao hist6rica & cadtica e tumultuosa eventualida- de, da qual os documentos literarios e 0s monumentos arqueol6- gicos nos prestam testemunhos fidedignos. Eis por que, quase decorrido século e meio de afincado estudo neste sector da «cién- cia da antiguidade classica, status quaestionum poderia resumir- ~se nesta conclusao naturalissima, embora paradoxal: de certo modo, esséncia da religido grega é a sua nio-historiabilidade. Com efeito, todas as descobertas e hipéteses que vem compon- do a actual feigao de que se reveste a arqueologia pré-helénica colocam-se surpreendentemente ao longo de uma trajectéria de cujo sentido parece coincidir com o da tese de A Origem Micénica da Mitologia Grega, proposta em 1932 por Martin P. Nilsson *. As ligdes do emérito professor de Lund, entao publicadas pela Uni versidade de Berkeley, na Calif6rnia, sé tinham por modesto es- copo demonstrar que, na sua maior parte, a lenda herdica e a mi- tologia, cujos documentos mais antigos se acham entretecidos na «intriga» da epopeia, teriam surgido na segunda metade do 1! mi- lénio a. C.— por consequéncia, muitos séculos antes da data em que presumivelmente foram compostas a Iliada e a Odisseia. Por outras palavras: a tese de Nilsson nao pretendia, de modo ne- nhum, exceder 0 ambito da filologia e da arqueologia classicas, circunscrito pelos problemas que se nos defrontam, ao abordar- ® A tese foi publicada pela primeira vez em 1924, em breve artigo, incluso Ro volume colectivo dedicado a J. Wackernagel, sob 0 titulo Der mykenische Ursprung der griechischen Mythologie (v. Opuscula Selecta, vol. 1, Lund, 1951, pp. 391- -398), e, mais tarde, no vill volume das Sather Classical Lectures, com © mesmo ti- tulo: The Mycenaean Origin of Greek Mythology (abreviado: MOGM), Berkeley, California, 1932. A ideia surgira do confronto entre os resultados da pesquisa mitografica e das investigagdes arqueolégicas. Com efeito, os grandes ciclos da lenda heréica, literariamente plasmados por Homero e os poetas do «Ciclo», & depois, no lirismo coral e na tragédia dtica, encontram-se tradicionalmente liga- dos aos nomes de antiquissimas cidades micénicas, verificando-se que a impor- tancia «mitogénica», digamos assim, dessas cidades é, para usar a terminologia matemitica, fungao crescente da sua importancia arqueolégica (MOGM, p. 28). facto, copiosamente documentado, nao surpreenderé a quem recorde a historia da arqueologia, a partir de 1870, e as retumbantes descobertas de Schliemann: nao ha diivida de que ainda hoje, como ontem, na idade herdica da arqueologia pré-helénica, os mitos gregos servem de heuristica para a exumagao das grandes jazidas da Idade do Bronze, no Egeu. 18 mos 0 estudo das raizes da poesia épica e da composicao dos poemas homéricos. Mas —e para esta adversativa chamamos ex- pressamente a atengao do leitor —, todas as pesquisas efectuadas em torno e apés aquela data (1932), dir-se-ia que, na verdade, o foram, nao s6 para mais profundamente justificar a tese da ori- gem pré-homérica da mitologia e da lenda her6ica, como também, e sobretudo, para nos persuadir de que pré-helénica teria sido a ori- gem de todos os aspectos autenticamente religiosos da religiao grega°. ® Antes da edigdo definitiva (1932) de A Origem Micénica da Mitologia Grega, Nilsson publicou em The Minoan-Mycenaean Religion and its Survivals in Greek Religion (abreviado: MMR), Lund, 1927 (2° ed., 1950), um volumoso repertério da arqueologia mindica, descrevendo, classificando e interpretando as obras de arte que pudessem fundamentar alguma hipétese plausivel acerca da religiio de Creta. O livro constitufa, por antecipacdo, o natural complemento da tese que em 1930 iria defender em suas ligdes de Berkeley (v. nota precedente). Efectivamen- te, se as conferéncias da California propugnavam a origem micénica da lenda herdica, este trabalho perseguia a finalidade de demonstrar a origem mindica de algumas das principais figuras do panteao grego da época classica. Nao era difi- cil empresa, quanto ao Zeus-Kretagenes e as divindades femininas, como Atena e Artemis; ainda subsistiam sérios motivos para duvidar, quanto a identificagao de Here, mas nenhum, no respeitante a divindades «menores», que a tradicao mito gréfica localizava no reino de Minos, nomeadamente, Ariadne, Dictina, Pasiphae e Britomartis. Entretanto, encalgando as pisadas de Nilsson ou, por vezes, em ma- nifesta atitude polémica contra a sua catitelosa reserva, e jé antes, contra a critica «eaccionéria» da escola hist6rico-filologica, esforcaram-se Axel Persson («Der Ursprung der Eleusinischen Mysterien», Archiv fiir Religionswissenschaft, 1922, pp. 287 € segs.) e Charles Picard (numerosos artigos, desde 1927, em especial, «Sur la Patrie et les Pérégrinations de Déméterm, Revue des Etudes Grecques, 1927, pp. 336- -369, e «Die Grosse Mutter von Kreta bis Eleusis», Eranos Jahrbuch, 1938, pp. 91- 119) por radicar em Creta 0 mais primitivo culto de Deméter. A partir de 1930, também o italiano Uberto Pestalozza e seus discipulos testemunham eloquente- mente sobre o irresistivel fascinio que 0 substrato mediterrineo exerce sobre a maioria dos fildlogos e arquedlogos que se propdem inquirir as origens da reli- gido grega. Verifique-se esta tendéncia, levada ao extremo, nas obras entusidsticas de Pestalozza: Pagine di Religione Mediterranea, 1, Milano, 1942-1945, e Religione Mediterranea, Vecchi e Nuovi Studi, ibidem, 1951. Este conceito de «substrato medi- terraneo» penetrara timidamente na arqueologia e na historia das religides classi- cas, pela porta que Paul Kretschmer lhe abriu com a sua Einleitung in die Geschichte der Griechischen Sprache, Gottingen, 1896; e, desde 1921, data em que 0 filésofo Ludwig Klages, na Alemanha, dé os primeiros passos no sentido da reabilitacao de Bachofen, a doutrina do substrato encontrou-se cada vez mais comprometida com a hipétese do matriarcado. Talvez. seja excessiva € tendenciosa a posigao dos historiadores e teorizadores da religido grega, que, como Pestalozza, véem pro- jectar-se sobre toda a rea do Mediterraneo Oriental a sombra agigantada de uma Soberana das Feras («pétnia therOn»), divindade tinica, cujos aspectos muiltiplos e 19 Objectar-se-4, e com fundamentada razao, que, assim proce- dendo, bem se cumpriu o mister do historiador: pesquisa das ori gens de quanto se dé por eventualidade humana, passada ou pre- sente, também pertence a historia. Todavia, se estendermos o curso da perquiricdo da origem e do originado, para tras e para a frente daquela época estabelecida como originaria (epoca micé- nica), no propésito, digamos, de descrever toda a linha, recta ou sinuosa, em que se desenvolveram a mitologia e os rituais ade- rentes ao nome de qualquer das grandes divindades gregas, 0 que nos aguarda é a surpresa de ndo acharmos, como parametros cro- nol6gicos, sendo as distancias que separam os testemunhos resi- duais de uma tradicao extremamente fragmentaria. E bem de ver que, em tais circunstancias, pouco ou nada vale o argumento ex silentio; e que, negando-lhe a validez absoluta, teremos de consi- derar seriamente a possibilidade de que «a auséncia de prova nao prove a auséncia», mormente quando pensamos na oralidade ca- varios teriam povoado os templos gregos e orientais de deusas-maes, altaneiras e ubérrimas, e de deusas-virgens, intimoratas e indémitas. Mas 0 certo € que, entre as duas guerras mundiais, a arqueologia colheu no alto e médio Eufrates copiosa documentagéo para uma tese que se nos afigura bem pouco vulnerdvel aos ata- ques da critica e do desdém da hipercritica (a documentacao anatélica, mais recentemente exumada, poderia constituir-se na chave de ctipula para todos os elementos de prova, ja reconhecidos. Cf. infra, «Addendum» sobre Catal Hiiyiik). A obra de Johann Jakob Bachofen (1815-1887) voltou a ser acessivel, na soberba edicdo de Basileia (iniciada em 1943), em que colaboraram helenistas de renome, tais como Olof Gigon, Ernst Howald, Kari Schefold e Peter Von der Miihl. O juizo dos nossos contemporaneos sobre o seu valor vem excelentemente formulado por F. Wieacker na recensao dos seis primeiros volumes, publicada pela revista Gnémon (vol. 28, 1956, pp. 161-173), e, especialmente, quanto a doutrina do ma- triarcado, por Karl Meuli, no posfacio da edigao de Basileia (Das Mutterrecht, vol. 1, 1948, pp. 1079-1117), apurando-se, em resumo, que 0 «Mutterrecht» e a «Natursymbolik» antes valeriam como «mito romantico» do século xix do que como resultado de pesquisa cientifica no campo da mitologia e das religides an- tigas {cf. C. A. Bernoulli, Johann Jakob Bachofen und das Natursymbol, Basel, 1924, e © prefécio (de 300 pp.!) que Alfred Baumer escreveu para a antologia de Manfred Schroeter, Der Mythus von Orient und Occident, Miinchen, 1926 (nova edicao, 1958)]. Todavia, cremos que ainda est por escrever o livro que exponha a plena luz da evidéncia 0 quanto devem, directa ou indirectamente, as sugestées do discutido professor de Basileia fildsofos, arquedlogos, psicdlogos e filélogos — para nao falar de socidlogos —, que nao 0 citam ou s6 em transcurso aludem a alguma das suas paginas. Nao estaré presente a metafisica erstica de Bachofen, por exemplo, em Die mittelmeerischen Grundlagen der antiken Kunst, de Kaschnitz- -Weinberg (Frankfurt, 1944), em Religion und Eros, de Walter Scubart (3.* ed., Miinchen, 1952; 1.*, 1944), e nos trabalhos de Pestalozza acima mencionados? 20 racteristica da transmissio dos mais antigos espécimes dos gran- des géneros literarios, na escassez do livro até adiantados anos do século V e nas conhecidas vicissitudes da sua hist6ria, até 0 ponto em que nos defrontamos com o dissabor de nao possuirmos, hoje, nem talvez a centésima parte do quanto se escreveu e publicou até o derradeiro sopro de vida do paganismo greco-latino. Dai, facilmente se depreende quao desesperada se torna a tarefa de distinguir 0 «antigo» do «moderno» e 0 «mais recente» do «mais remoto». Em muitos casos, quem ou 0 que podera assegurar-nos de que a acgdo ou a situagdo descrita por dois versos de Calimaco, ou mesmo de Nono, nao seja tanto ou mais antiga do que aquela que nos foi relatada por Homero ou Hesiodo? Sem diivida, quan- to aos textos, na sua redaccdo final, a datagdo é certa ou quase certa; mas, no respeitante a contetido, quem ousara decidir acerca de quais e quantos elos perdidos néo remetem a modernidade helenistica ou romana para além da antiguidade micénica ou pré- -micénica (tanto mais que essa antiguidade rondava os poetas «modernos», em cultos e mitos ainda «presentes» nos reinos helenisticos e nas provincias romanas do Oriente)? Nesta perspectiva ha problemas faceis de resolver e que efec- tivamente j4 se encontram resolvidos. Quanto a Dioniso e De- méter, por exemplo, nenhum fildlogo responsavel cedera hoje a tentacdo de considerd-los como divindades «menores», na idade homérica, argumentando com os poucos versos que a epopeia Lhes dedica. Sabe-se que a razo de semelhante escassez reside no pro- prio «espirito» da poesia épica. Pois bem, o facto agora menciona- do, s6 por si, j4 assinala o inicio de uma prometedora linha de investigacoes: referimo-nos a busca de um critério de datagao, in- trinseco A natureza do fenémeno religioso observado. Em princi pio, de modo esquemitico, e sujeito a aplicacdo de todas as re- gras acolhidas e exercidas pela critica, poderiamos afirmar que um facto religioso, testemunhado por documento de qualquer género literdrio ou monumento arqueolégico de qualquer época, tem pro- babilidades de ser tanto mais antigo quanto mais se afasta daque- les padrées de conduta, individual ou social, que foram surgindo e se desenvolveram ao longo do conhecido processo do que, no mundo antigo, é efectivamente historidvel. E claro que semelhan- te processo cifra-se, afinal, num verdadeiro e auténtico progresso na «humanizagio» do homem, apesar dos muitos e diversos obs- taculos que, uma vez ou outra, teria de contornar, e nao obstante © passo decisivo que constituiria os homens em Humanidade s6 viesse a ser dado pelo Cristianismo. 21 Nem tentamos imaginar até onde nos levaria a aplicagao de tal critério, em matéria de historiografia, no horizonte de toda a religiosidade classica, Sabemos que a hist6ria jé feita anda ligada 4 convicgao de que a cronologia das «fontes» nos fornece 0 tinico alicerce, firme e inabaldvel, de uma construgao prestigiada de ple- na validez cientifica, Mas também sabemos que uma hist6ria, as- sim construida, ainda nao se apercebeu de que apenas objectivou o desenvolvimento da reflexao filos6fica (ou as suas «projeccdes» antropologicas, sociolégicas e politicas) seguindo diversos e neces- ios momentos de abstractividade, sobre 0 fendmeno religioso, que a razao discursiva nao capta em toda a sua concregao. Reincidindo no inicio das presentes consideracGes: nao ha uma pagina do que quer que passe por «historia da religiao grega» onde irrefutavelmente se demonstre que o decorrer dos tempos alterou, no essencial, uma diacosmese, uma certa ordenagao do Cosmos ou, em terminologia quase equivalente e mais divulgada, esta ou aquela Weltanschauung, que uma vez se tenha designado pelo nome de uma divindade grega, sobretudo, quando se verifi- ca a inexisténcia de marcos bem firmes, que, no tempo, inequivo- camente assinalem 0 principio e o fim de uma ininterrupta repe- tigdo (ou renovagao!) da mesma simbélica criadora de mitos e rituais que nao divergem sendo como variantes de um s6 tema fundamental. Uma dessas divindades é Dioniso; pelas reflexes precedentes se justificam as paginas que seguem. Cultura Minéica é a formula com que, por empréstimo lendario, se denominou a requintada civilizacio que, na Idade do Bronze, floresceu na ilha de Creta. Nos primeiros decénios deste século, além de Cnosso, soberba morada do Minotauro, foram arranca- dos as terras do olvido os paladcios de Festo, Malia e Haghia Triada, a cidade de Gtirnia, 0 antigo porto de Palaikastro e os tholoi da Mesara —s6 para mencionar 0s monumentos mais afa- mados —, e em curso de exploragao encontram-se 0 paldcio de Zakro e os admiraveis afrescos de Tera; no entanto, os museus que recolhem e expdem a maior e melhor parte dos preciosos achados arqueolégicos continuam sendo outras tantas paginas daquele «li- vro de imagens sem texto», a que se referia Nilsson 1, ao tentar a sua primeira reconstituicao da vida religiosa do povo cretense. 10 A History of Greek Religion, Oxford, 1925, p. 10. 22 Entre os seus elementos mais caracteristicos, além da peculiar estrutura dos palacios, a que em seguida aludiremos, sobressaem estes quatro: 1) a frequentissima figuragao plastica de cenas cul- tuais, em que intervém, com absoluto predominio, uma divin- dade feminina; 2) a ndo menos frequente estilizagao do bucranio, a que os Ingleses chamam «horns of consecration»; 3) a ldbrys ou bipene, machado de dois gumes, que, sem dtivida, foi instrumen- to de sacrificio do Touro Sagrado, e talvez entre na composigao da palavra «Labirinto»; e, finalmente, 4) os thdloi ou sepulturas cir- culares, cobertas por falsa abéboda, com acesso através de um drémos mais ou menos extenso 1. Centro de difusao das tiltimas formas mencionadas — «emer- géncias arquitecténicas das cavernas subterraneas» 1? —, 0 mais proximo de Creta situa-se no nordeste africano. Nao admira, por- tanto, que o primeiro olhar dos arquedlogos, em busca das ori- gens da civilizacao cretense, se voltasse para o Egipto, com o qual, alids, os soberanos da Ilha mantiveram assiduas relagdes, em épo- cas historicas °. Mas, em Creta, a presenca do thdlos associa-se & dos outros elementos acima mencionados, e estes nao se encon- tram no Egipto ou na Libia em épocas tao altas que permitam supor a difusao simultanea de todo o complexo, da Africa para o 11 Diga-se de passagem que exemplares monumentais destas sepulturas de cipula acham-se, nao em Creta, mas na Argélida: 0 «Tesouro de Atreu» é a glé- ria de Micenas, nao de Cnosso! 12 A formula é de Kaschnitz-Weinberg (v. nota 9, no final, op. cit., p. 39). 13 Na sequela de Evans e de Pendlebury, ainda ha pouco Shachermeyer de- fendia a origem norte-africana (v. Die dlteste Kulturen Griechenlands, Stuttgart, 1955, pp. 219 e segs.). Alids a solugao «oriental» é a que, entre os pesquisadores «de campo», reine maior ntimero de sufrégios, pois os antecedentes libicos e egip- cios sao, do ponto de vista morfolégico, outras tantas espécies dentro do género megalitico, ea ideia que esté na origem do thélos nao difere essencialmente da que promoveu a construcao desses tipicos monumentos do periodo neolitico, disper- s0s por todo o mediterraneo, desde a costa atlantica da Europa até o Oriente Préximo, Houve até quem aventurasse a hipétese de que os mesmos portadores da cultura micénica proviessem, em tiltima anélise, da Lusitania, por tao natural que parece a sequéncia das formas, desde as mais rudes e primitivas, no extremo ocidente da Ibéria, até as mais perfeitas e evolufdas, no litoral mediterraneo da Argélida [v. D. J. Wélfel, «Die Religion des vorindogermanischen Europa», no 1° vol,, pp. 131-539, de Kénig (ed.), Christus und die Religionen der Erde, Freiburg, 1951]. £ claro, todavia, que pouca verosimilhanga caberé a uma teoria difusionista, argumentada pela consideragio de um tinico elemento cultural. De resto, a maioria dos arquedlogos, ainda que a opiniao seja discutivel, concorda em fixar no Oriente os primeiros rudimentos da cultura megalitica 23 Egeu. S6 ha noticia de uma cultura calcolitica que parece reunir, ses quatro elementos caracteristicos: thélos, bucranio, ldbrys e fdolos femininos —é a de Halaf-Arpatchiah, na bacia do Eufrates. Teria efectivamente a cultura mindica nascido no Oriente Médio? Vinte e Cinco Anos de Descobertas na Mesopotamia '4 e em outras regides da Asia e do Mediterraneo contribuem para confirmar a hipotese fascinante que, em 1944, Heinz Mode propés acerca de As Primitivas Culturas da India ¢ Suas Relagdes com 0 Ocidente 15: ao difundir-se, a corrente cultural de Halaf-Arpatchiah ter-se-ia divi- dido em dois ramos, um para Oeste, dando origem as primeiras civilizagdes do mar Egeu, e outro para Leste, promovendo o surto das civilizagdes pré-arianas do vale do Indo, nomeadamente, Harappa e Mohenjo-Daro. £ claro que a teoria explica, com satis- fatéria verosimilhanga, a dbvia analogia entre as duas civilizacées marginais extremas, em especial, aquela que se verifica entre cenas gravadas em sigilos do Indo, representando saltos de acrobatas, talvez femininos, por cima de touros ou biifalos, e as conhecidis- simas «tauromaquias» de Creta. De modo que, no 1! milénio a. C., a civilizacdo de Creta repre- sentaria o climax mediterraneo de uma cultura calcolitica que tivera inicio no Oriente e na época de Halaf, achando-se original- mente relacionada com a Mesopotamia pré-semitica, e mesmo pré-sumeriana; em seu 4pice, a cultura mindica constituiria a ulti- ma fase de um desenvolvimento auténomo, porque, como insu- Jar, permanecera menos sujeita a tendéncias contrarias e influén- cias contraditérias, quais foram as dos Sumerianos e Semitas, no Oriente, e dos Indo-Europeus, na Peninsula Balcanica 16, Ora, na 1 E 0 titulo de um interessante optisculo de Malowan: Twenty-five Years of Mesopotamian Discovery, London, 1956. 15 Indische Friinkulturen und ihre Bezéehungen zum Westen, Basel, 1944 (v. nota seguinte). 16 Vale a pena insistir neste ponto, relevando mais alguns factos estabeleci- dos e lembrando as teorias propostas. Foi Anton Moortgat («Die Entstehung der sumerischen Hochkultur», Der Alte Orient, vol. 43, 1945) quem pela primeira vez chamou a atencao para a diversidade fundamental dos temas ornamentais nas ceramicas de Halaf e de Samarra. Na primeira, domina a simbologia agriria — idolos femininos, lébrys, bucranio e cruz de malta; na segunda, prevalece a simbologia da caca e da pesca, e, em Sialk, na época de Samarra, verifica-se que nao ha vestigios de figurinhas de argila do tipo deusa-mae. O sabio orientalista designou por «povos da montanha» (Bergvblker) os portadores da cultura de Halif, ‘opondo-os assim aos povos da planicie, que seriam os futuros representantes da 24 regido e na época a que parece ascender a remota origem da lizagao de Creta é que se presume haver nascido o culto da gran- de deusa egeo-anatélica, que tao relevante papel desempenhou na religiao, ou nas religides, da Grécia pré-helénica cultura de Obeid, e, talvez, os sumerianos da histéria, Conclusoes semelhantes, quanto & diversidade das duas culturas calcoliticas do Oriente Médio, extraiu Parrot (A. Parrot, Archéologie Mésopotamienne, vol. u, 1953, pp. 136 e segs.) da tematica e da sintaxe ornamental da ceramica e outros monumentos, ¢ lembra como alguns temas de Halaf-Arpatchiah, como 0 touro e a idbrys, ainda se encon tram associados, em épocas hist6ricas, na figuracéo do Teshub hurrito-hitita e do Japiter Dolichenus, ambos de pé, sobre um touro, brandindo a bipene. Mas, ao que nos parece, a nota mais importante que o ilustre escavador de Mari registrou nesta pagina da arqueologia mediterranea (sensu lato) é a que diz respeito ao tran- sito da cultura de Halaf para a cultura de Obeid, quando afirma (op. cit., p. 184) que o naturalismo de Halaf é banido de Obeid «com um rigor que nao pode ser fortuito». Desapareceram, por esse tempo, 0 bucranio e o thélos; e se o templo que, pela primeira vez no Mundo Antigo, aparece em Obeid é construfdo a ima- gem da habitagéo, «é porque explicitamente se reconhece que a divindade pode e deve residir entre 0s homens e, como eles, carece de um asilo e de um tecto» (ibidem, p. 201). Esta observacao a propésito do génio arquitecténico da gente de Obeid ¢ tanto mais importante quanto é certo que, em Halaf, ainda nao hé teste- munho da existéncia de templos expressamente edificados com o intuito de abri- gar a estétua da divindade, ¢ ainda se reveste de mais impressionante significado se nos lembrarmos que 0 mesmo acontece em Creta e na Grécia pré-arcaica, onde as ceriménias do culto decorrem em lugares sacralizados pelas hierofanias naturalisticas (montanhas, grutas, bosques, rios, etc.) ou ent

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