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© de Roger Chartier T*edigéo: 2002 ‘Titulo original em francés: Au bord de la falaie-Lhistoire entre certitudes etinqu Direitos reservados desta edicio: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Capa e projeto grifico: Carla M. Luzzatto Iustracio da capa: Diego Velisquez, "Las hilanderas", leo sobre tela, Museo de Prado, Madrid; manipulado eletronicamente. ‘Traducio: Patricia Chittoni Ramos Revisio: Rosangela de Mello Editoracio eletrénica: Fernando Piccinini Schmitt Roger Chartier & hisioriador, Dietor de estudos na Ecol des Hautes Etudes en Sconces = EHESS, Conhecido por seus trabalhos de historia cultural eespecialista em st6rias do lvoe da litura, publicou e dirigia inimera obras C4866 Chartier, Roger ‘A beira da falésia: a hist6ria entre incertezas ¢ inquie- tude / Roger Chartier, trad. Patricia Chittoni Ramos. ~ Porto ‘Alegre : Ed. Universidade/UFRGS, 2002. 1, Hist6ria - Filosofia. 2. Histéria ~ Sociologia. I. Titulo. DU 930.23:101 980.28:904 Catalogacio na publicacio: Ménica Ballejo Canto - CRB 10/1023 ISBN -85-7025-623-X Sumirio Introdugio geral / 7 ‘Pranetea Pare, Percurso Introducio / 21 1. Historia intelectual e histéria das mentalidades / 23 2. O mundo como representacao / 61 3. A historia entre narrativa e conhecimento / 81 4. Figuras ret6ricas e representacdes hist6ricas / 101 ‘SEGUNDA PARTE Leituras Introdugao / 119 5. “A quimera da origem”. Foucault, o Iuminismo e a Revolugao Francesa / 123 6. Estratégias e taticas. De Certeau e as “artes de fazer” / 151 7, Poderes e limites da representagao. Marin, o discurso ¢ a imagem / 163 8. O poder, o sujeito, a verdade. Foucault leitor de Foucault / 181 ‘TERCEIRA PARTE Afinidades Introducao / 201 9. A hist6ria entre geografia e sociologia / 203 10. Filosofia e hist6ria / 223 11. Bibliografia c historia cultural / 243 12. Historia e literatura / 25: Fontes / 273 Indice de autores citados / 275 Introdugio geral “A beira da falésia”. Era com essa imagem que Michel de Certeau caracterizava 0 trabalho de Michel Foucault.' Ela me parece designar lucidamente todas as tentativas intelectuais que, como a nossa, colo- ‘cam no centro de seu método as relagdes que mantém os discursos € ‘as priticas sociais. O empreendimento ¢ dificil, instavel, situado a beira do vazio, E sempre ameagado pela tentagio de apagar toda diferenga enire légicas heterénomas mas, no entanto, articuladas: as que orga- nizam os enunciados e as que comandam 0s gestos ¢ as condutas. Seguir assim “a beira da falésia” também permite formular mais seguramente a constataco de crise ou, no ménimo, de incerteza fre- qitentemente enunciada hoje em dia acerca da histéria.” Aos elas oti- mistas ¢ conquistadores da “nova hist6ria” sucedeu, com efeito, um * Michel de Certeau, “Microtechniques et discours panoptique : un quiproquo”, in Michel de Certeau, Histoire psychanalyse entre scence ficion, Pats, Gallimard, 1987, p 37-50. Bm lingua francesa, trés publicagGes caletivassituam a disciplina histrica: Hioir soca Ue, histoire globe? Actes du cologue des 27-28 janvier 1989, Christophe Charle (ed. Pats, Editions de la Maison dessciences de homime, 1993, Passsrecomposés. Champs el chanties de histoire Jean Boutier ¢ Dominique Julia (ed.), Paris, Editions Autrement, 1994, LHisove ele méier historen en France 1945-1995, Francois Bédarida (ed.),com acolabo- sio de Maurice Aymard, Wes Marie Bereé e Jean-Francois Sirineli, Pars, Editions dela Maison dessciences le Fhomme, 1995. CF, também, Gérad Noiriel, Surla “nse” de histoire, Paris, Belin, 1996. Em lingua inglesa, ver Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margaret Jacob, ‘Telling the Truth about History, New York e Londres, W.W. Norton and Company, 1994. 3. A histéria entre narrativa e conhecimento Tempo de incerteza”, “crise epistemol6gica”, “reviravolia c ca”: esses sao 0s diagnésticos, geralmente inquictos, feitos nos tiltimos anos sobre a hist6ria, Basta lembrar duas constatagdes que abriram 0 caminho a uma ampla reflexio coletiva. De um lado, aquela propos- ‘a pelo editorial de marco-abril de 1988 dos Annales, que afirmava: Hoje em dia, parece chegado o tempo das incertezas. A redistribuigao das disciplinas transforma a paisagem cientifica, questiona primados es- tabelecidos, atinge as vias tradicionais pelas quais circulava a inovacio. s paradigmas dominantes, que se iam buscar nos marxismos ou nos estruturalismos, bem como nos usos confiantes da quantificacio, perdem suas capacidades estruturantes ...] A hist6ria, que estabelecera tima boa parte de seu dinamismo sobre uma ambicdo federalista, nio € poupada Por essa crise geral das ciéncias sociais.! Segunda constatacdo, muito diferente em suas razdes, mas semelhante em suas conclusées: aquela feita em 1989 por David Harlan em um artigo da American Historical Review, que suscitou uma discussio que perdura até hoje: The return of literature has plunged historical studies into ' Histoire et sciences sociales. Un tournant criique?", Annales ES.C, 1988, p.291-293 (citacdo p.291-292) st an extended epistemological crisis. It has questioned our belief in a fixed and determinable past, compromised the possibility of historical representation, and undermined our ability to locate oursetves in time [O retorno a literatura mergulhou a hist6ria em uma grave crise epistemolégica. Ele questio- nou nossa crenca em um passado fixado ¢ determinavel, comprome- teu a possibilidade da propria representacio hist6rica, ¢ minou nos- sa capacidade de nos sitttarmos no tempo] © que indicam tais diagnésticos, que parecem ter algo de pa radoxal em uma época em que a edicdo de histéria demonstra uma bela vitalidade e uma inventividade mantida, traduzidas na continu- acdo das grandes obras coletivas, no lancamento de colecées curo- péias, no aumento do ntimero das traducées, no eco intelectual encontrado por alguns livros maiores? Eles designam, creio, esta mutago maior que € o apagamento dos modelos de compreensio, dos principios de inteligibilidade que tinham sido aceitos de comum acordo pelos historiadores (ou, pelo menos, pela maioria deles) a partir dos anos 60, Ahistéria conquistadora repousava entio sobre dois projetos. Em primeiro lugar, a aplicagao aos estudos das sociedades antigas ‘ou contemporaneas do paradigma estruturalista, abertamente rei- vindicado ou implicitamente praticado. Tratava-se, antes de mais nada, de identificar as estruturas e as relacdes que, independente- mente das percepcdes € das intengdes dos individuos, comandam 0s mecanismos econdmicos, organizam as relagées sociais, engen- dram as formas do discurso. Conseqiientemente, aafirmacao de uma radical separago entre o objeto do conhecimento hist6rico ea cons- ciéncia subjetiva dos atores. Segunda exigéncia: submeter a hist6ria aos procedimentos do mimero e da série ou, melhor dizendo, inscrevé-la em um paradig- ma do saber que Carlo Ginzburg, em um artigo célebre,* designou David Harlan, “Intellectual History and the Return of Literature”, American Historical Review, 94, juno 1989, p.879-907 (citacdo p.881). "Carlo Ginzburg, "Spie. Radiei disun paradigma indiziario",in Mitiemblemi,spie. Morfo- logia e storia, Tarim, Einaudi, 1986, p-15%-209 (traducio francesa “Traces. Racines d'un paradigme indiciaive”, in Mythesemblies, traces, Morphologeet hore, Paris, Flammarion, 1989, p.139-180) 82 como “galileano”, Tratava-se entao, gracas a quantificacao dos fend- menos, a construcao de séries ¢ aos tratamentos estatisticos, de for mular rigorosamente as relagdes estruturais que eram o objeto mes- mo da hist6ria. Deslocando a formula de Galileu em Il Saggiatore, 0 historiador supunha que o mundo social “é escrito em linguagem matemitica” e dedicava-se a estabelecer suas leis. Os efeitos dessa dupla revolucao da historia, estruturalista e “ga- lileana”, no foram poucos. Gracas a ela, a disciplina péde assim rea- tar coma ambicao que fundara no inicio deste século a ciéncia social, em particular em sua versio sociol6gica e durkheimiana: ou seja, iden- tificar estruturas e regularidades, portanto, formular relacdes gerais. Ao mesmo tempo, a histéria liberavase da “bem magra idéia do real” — expressio de Michel Foucault — que a habitara por muito tempo, ja que considerava que os sistemas de relacdes que organizam o mundo social sio tio “reais” quanto os dados materiais,fisicos, corporais, apre- endidos no imediato da experiéncia sensivel. Essa “nova histéria” es tava entio fortemente apoiada, além da diversidade dos objetos, dos territ6rios e das maneiras, sobre os prineipios mesmos que sustenta- vam as ambicdes e as conquistas das outras ciéncias sociais. AS CERTEZAS ABALADAS Nos dez primeiros anos, foram essas certezas, por muito tem- po amplamente compartilhadas, que vacilaram. Inicialmente sens veis a novas abordagens antropoldgicas ou sociolégicas, os historia dores quiseram restaurar 0 papel dos individuos na construcao dos lacos sociais. De onde varios deslocamentos fundamenttais: das es- truturas as redes, dos sistemas de posigdes as situacdes vividas, das normas coletivas as estratégias singulares. A “microhistéria’, italia- na e depois espanhola,* ofereceu a tradugio mais viva da transfor ‘Giovanni Levi, Leredita immaterial, Carrera di un esorcista nel Piemonte del seicent, Tati, Einaudi, 1985 (tradugao francesa Le Powanir au village, Histoire dum exociste dans le Pié ‘mont dx XVIP sil, Pars, Gallimard, 1989); Jaime Contreras, Sots contra Rigquelmes. Regi- ddores, inquisidoesy crptojudias, Madi, Anaya/Mario Muchnik, 1992 (traducao francesa Ponvoiret Inquisition en Espagne au XVlesitcle, Patis, Aubier, 1997) 88 macio desse procedimento histérico inspirado pelo recurso a mo- delos interacionistas ou etnometodolégicos. Radicalmente diferen- ciada da monografia tradicional, cada microstoria pretende recons- truir, a partir de uma situacao particular, normal porque excepcio- nal, a mancira como os individuos produzem 0 mundo social, por meio de suas aliangas € confrontos, através das dependéncias que 0s ligam ou dos conflitos que os opéem. O objeto da histéria nao sio, portanto, ou nao so mais, as estruturas € os mecanismos que regulam, independentemente de qualquer influéncia objetiva, as relac6es sociais, mas as racionalidades ¢ as estratégias executadas pelas comunidades, parentelas, familias, individuos. ‘Uma forma inédita de hist6ria social e cultural afirmou-se, as sim, centrada nas variacdes e discordancias existentes, de um lado, entre os diferentes sistemas de normas de uma sociedade e, de ou- ro, no interior de cada um deles. O olhar deslocouse das regras impostas a seus usos inventivos, das condutas obrigatorias as deci- soes permitidas pelos recursos préprios de cada um: seu poder so- cial, scu poder econémico, seu acesso a informacio. Habituada a es- tabelecer hierarquias ¢ a construir coletivos (categorias socioprofis- sionais, classes, grupos), a hist6ria das sociedades estabeleceu novos objetos para si, estudacios em pequena escala. Como, por exemplo, a biografia comum, j4 que, como escreveu Giovanni Levi: Nenhum sistema normativo é, de fato, suficientemente estruturado para climinar toda possibilidade de escolha consciente, de manipulacio ou de interpretacao das regras, de negociagao. Parece-me que a biografia constitui, por essa razao, o lugar ideal para verificar o carater intersticial = contudo importante — da liberdade de que dispoem os agentes, assim como para observara maneira como funcionam concretamente sistemas normativos que no sio jamais isentos de contradigées.” Assim, a reconstituicao dos processos dindmicos (negociacées, tran- sacdes, intercambios, conflitos, etc.) que desenham de maneira movel, instavel, as relacdes sociais ao mesmo tempo que coincidem Giovanni Levi, “Les usages de la biographie™ 836 (citar ‘lo p-1393-1334) Annales B.C, 1989, p.1 a com 0s espacos abertos as estratégias individuais. Jaime Contreras diz isso muito bem em seu livro recente Sotos contra Riquelmes: Los grupos no anulaban a los individuos y la objetividad de las fuerzas de aqué- Uos no impedia ejercer une trayectoria personal. Las familias [...] desplegaron sus estrategias para. ampliar sus esferas de solidaridad y de influencia, pero sus hondines, individualmente, también jugaron su papel. Si a Uamada de la san- grey el peso de los linajes eran intensos, también lo evan el deseo las posibilida desde crear expacios personales. En aguel drama que cede fantasma de a he rjia— una “creacin personal de wn inquisidor ambicioso~ se jugaron, en duro envite, intereses colectivos y aun concepciones diferentes del propio mundo, pero también cada individuo fudo reaccionar personalmente desde su propia trama- z6n original® [Os grupos nao anulavam os individuos, ¢ a objetividade das forcas de que dispunham nao impedia as trajetirias pessoais. As familias [..] em- pregaram suas estratégiasa fim de aumentar suas esferas de solidarieda- dee de influéncia, mas os homens que as compunham desempenharam, cles também, seu papel. Se oapelo do sangue €o peso das linhagens eram poderosos, também 0 eram o desejo e as possibilidades de criar espacos pessoais. Nesse drama que o fantasma da heresia criou ~ uma “eriagio” pessoal de um inquisidor ambicioso ~ estavam em jogo, em um duro con- fronto, interesses coletivos € mesmo concepcdes diferentes do mundo, mas cada individuo podia também reagir pessoalmente a partir da tra- ‘ma de sua prépria hist6ria] Uma segunda razio, mais profunda, abalou as antigas certezas: ‘a tomada de consciéncia dos historiadores de que seu discurso, seja qual for sua forma, é sempre uma narrativa. As reflexdes pioneiras de Michel de Certeau,’ depois o grande livro de Paul Ricoeur’ e, mais recentemente, a aplicagao a histéria de uma “poética do saber”, que tem por objeto, conforme a definicgao de Jacques Ranciére, “o con- junto dos procedimentos literrios pelos quais um discurso subtrai-se literatura, estabelece para si um estatuto de ciéncia ¢ o significa”,’ obrigaram-nos, quer quisessem ou no, a reconhecer a pertenga da ime Contreras, Sots contra Riguelmes op. cit, p80. ‘Eeriture de Uhisoie, Pati, Gallimard, 1975, “Paul Ricoeur, Temps et rct, Pars, Editions du Seuil, 1983-198" "Jacques Rancigre, Les Mos de histor. Esai de poctique du saonir, Paris, Editions du Seuil, 1992, p21 hist6ria ao género da narrativa—entendido no sentido aristotélico da “mise en intrigue de acdes representadas”, A constatacao ndo era evi- dente para aqueles que, rejeitando a histéria factual em proveito de uma historia estrutural ¢ quantificada, pensavam ter acabado com os mulacros da narracao e com a demasiado longa ¢ muito duvidosa proximidade entre a historia ea fabula, Entre uma e outra, a ruptura parecera sem apelo: no lugar ocupado pelos personagens ¢ pelos he- réis das antigas narrativas, a “nova historia” instalava entidades and- nimas ¢ abstratas; ao tempo espontaneo da consciéncia, ela substitufa uma temporalidade construfda, hierarquizada, articulada; ao carater auto-explicativo da narracio, ela opunha a capacidade explicativa de um conhecimento controkivel e verificavel. Em Temps et récit, Paul Ricoeur mostrou o quanto era ilus6ria essa cesura proclamada. Com efeito, toda historia, mesmo a me- nos narrativa, mesmo a mais estrutural, € sempre construida a par+ tir das formulas que governam a producao das narrativas. As enti- dades que os historiadores manipulam (sociedade, classes, menta- lidades, etc.) sdio “quase-personagens”, dotados implicitamente das propriedades que sao aquelas dos herdis singulares ¢ dos individuos comuns que compéem as coletividades designadas por essas cate- gorias abstratas. De um lado, as temporalidades historicas mantém uma forte dependéncia em relacao ao tempo subjetivo: em pagi- nas soberbas, Ricoeur mostra como La Méditerranée au temps de Phi- Lippe ITde Braudel repousa, no fundo, sobre uma analogia entre 0 tempo do mar ¢ 0 do rei e como a longa duracio é ai uma modali- dade particular, derivada, da mise en intrigue do acontecimento. Enfim, os procedimentos explicativos da histéria permanecem so- lidamente apoiados na légica da imputagao causal singular, isto é, ao modelo de compreensao que, no cotidiano ou na ficcdo, per- mite dar conta das decisdes e das ages dos individuos. Tal andlise, que inscreve a hist6ria na classe das narrativas e que identifica os parentescos fundamentais que unem todasas narrativas, quer sejam de histéria ou de ficcio, tem varias conseqiiéncias. A pr meira permite considerar como uma questio mal colocada o debate criado em torno do suposto “retorno da narrativa” que, para alguns, 86 teria caracterizado a hist6ria nestes tiltimos anos. Como, de fato, po- deria haver “retorno” ou reencontro se nao houve nem partida nem abandono? A mutacio existe, mas é de outra ordem. Devese a prefe- réncia recentemente dada a certas formas de narrativa em detrimen- to de outras, mais classicas. Por exemplo, as narrativas biograficas en- trecruzadas da microhist6ria no colocam em acéo nem as mesmas figuras nem as mesmas construgdes das grandes “narrativas” estrut- rais da hist6ria global ou das “narrativas” estatisticas da hist6ria serial. A partir dai, uma segunda proposta: a necessidade de determi- nar as propriedades especificas da narrativa de hist6ria em relacio a todas as outras. Elas dizem respeito, primeiramente, a organizagio “clivada” ou “folheada” (como escrevia Michel de Certeau) de um discurso que compreende em si mesmo, sob forma de citagdes que sio igualmente efeitos de realidade, 05 materiais que o fundam e cuja compreensio ele pretende produzir. Concernem, também, aos pro- cedimentos especificos de abonacio gracas aos quais a histéria mos- tra e garante seu estatuto de conhecimento verdadeiro. Todo um con- junto de trabalhos consagrou-se assim a determinar as formas através, das quais se da o discurso de histéria. O empreendimento encerrou diferentes projetos, alguns estabelecendo taxinomias e tipologias universais, outros reconhecendo diferencas localizadas ¢ individuais, Dentre os primeiros, encontrase a tentativa de Hayden White que visa a identificar as figuras retéricas que comandam e restrin- gem todos os modos possiveis de narrago — ou seja, os quatro tro- pos clissicos: metafora, metonimia, sinédoque ¢, com um estatuto particular, “metatropoldgico”, ironia."” E uma mesma busca de cons- tantes —constantes antropol6gicas (aquelas que constituem as estru- turas temporais da experiéncia) e constantes formais (aquelas que governam os modos de representacio e de narracao das experién- Cias hist6ricas) ~ que conduz Reinhart Koselleck a distinguir trés ti- Hayclen White, Metakistory. The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe, Bale timore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1973; Tropics of Discourse. Essays in Cultural Criticism, Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1978, e The Content ofthe Form. Narrative Discourse and Historical Imagination, Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1987, 37 pos de histéria: a hist6ria-notacao (Aufschreiben), a historia cumul: tiva (Fortschreiben), a historia-teescrita (Umschreiben)." Dentre os segundos, de uma poética do saber sensivel as variacées € as diferencas, estéo os trabalhos que ~ como o livro recente de Philippe Carrard Poetics of he New History? —determinam como diferen- tes historiadores, membros de uma mesma “escola” ou de um mesmo grupo, mobilizam muito diversamente as figuras da enunciacdo, a pro- jeco ou o apagamento do eu no discurso de saber, 0s sistema de tem- ‘pos verbais, a personificacao das entidades abstratas, as modalidades da prova: citagées, quadros, graficos, séries quantitativas, etc. DESAFIOS INVERTIDOS Assim abalada em suas certezas mais profundas, a histria en- controuse igualmente confrontada com varios desafios. O primei- ro, langado em modalidades diferentes, até mesmo contraditérias, de ambos os lados do Atlintico, pretende romper toda ligacao en- tre a historia e as cid iais. Nos Estados Unidos, 0 assalto to- mou a forma do linguistic tum que, em estrita ortodoxia saussurea- na, considera a linguagem como um sistema fechado de signos, cujas relagdes produzem por si mesmas a significacao. A constru do sentido é assim separada de qualquer intengao e de qualquer con- trole subjetivos, ja que se encontra atribuida a um funcionamento lingiaistico automatico € impessoal. A realidade nao deve mais ser pensada como uma referéncia objetiva, externa ao discurso, mas como constituida pela e na linguagem. John Toews designou clara- mente (sem aceité-la) essa posigao radical para a qual the language is conceived of a self-contained system of “signs” whose meanings are " Reinhart Koselleck, “Erfahrungswandel und Methodenwechsel. Eine historischaanthvo pologische Skizze”, in Historische Methods, sob a diregao de C. Meier e J. Risen, Muni {Gue, 1988, p. 1361 (traducio francesa "Mutation de lexpérience et changement de mé: thode. Esquisse historico-anthropologique”, in Reinhart Koselleck, L'Expérience de Uhistoire Paris, Gallimard-Le Seuil, 1997, p.201:247, " Philippe Carrard, Poetics of the New History. French Historical Disenure om Braudel to Char tier, Baltimore e Londtes, The Johns Hopkins University Press, 1992. determined by their relations to each other, rather than by their relation to some “transcendental” or extralinguistic object or subject [a linguagem € con- cebida como um sistema de “signos” auto-suficiente cujas significa- des sio mais determinadas por suas relagdes reciprocas do que por sua relac&o com um objeto ou sujeito “transcendental” ou extralin- giistico] - uma posicdo que considera que the creation of meaning is impersonal, operating “behind the backs” of language users whose linguistic actions can merely exemplify the rules and procedures of langwages they inhabit but do not controt [a criacdo do sentido é impessoal, operando “nas costas” dos usuarios da linguagem, cujos atos lingiisticos podem somente exemplificar as regras ¢ os procedimentos de linguagens que eles habitam mas nao controlam]. As operag6es histéricas mais. habituais encontram-e, conseqiientemente, sem objeto, a comegar pelas distincdes fundadoras entre texto e contexto, entre realidades sociais ¢ expresses simbélicas, entre discursos e praticas nao discur sivas. De onde, por exemplo, o duplo postulado de Keith Baker, que aplica o linguistic turn aos problemas das origens da Revolucio Fran- cesa: de um lado, os interesses soci: dade em relacdo aos discursos, pois constituem a symbolic and political construction € nao a preexisting reality; de outro, todas as prati- cas devem ser compreendidas na ordem do discurso, pois claims to delimit the field of discourse in relation to nondiscursive social realities that lie beyond it invariably point to a domain of action that is itself discursively constituted, they distinguish, in effect, between different discursive practices = different languages games ~ rather than between discursive and non dis- cursive phenomena"* [as pretensdes a delimitar o campo discursivo em, relacao a realidades sociais nao discursivas que existiriam além dele designam indiscutivelmente um dominio de acio que ¢ ele proprio discursivamente constituido; com efeito, elas distinguem mais en- jis n3o tém nenhuma exteriori- John E, Toews, “Intellectual Historyafter the Linguistic Turn: The Autonomy of Mea- ningand the Irreductibilty of Experience”, American Historical Review, 92, outubro 1987, p. 879.907 (citacio p.882), Keith Michael Baker, Inventing the Bench Revolution: Essayson French Political Culture in the Eighteenth Century, Cambridge, Cambricge University Press, 1990, p.e 5 (traducio francesa parcial Au tribunal de opinion. Essais sur Cimaginaire politique au XVII sic, Pa ris, Payot, 1993). 89 tre diferentes praticas discursivas — diferentes jogos de linguagem ~ do que entre fendmenos discursivos € nao discursivos] Do lado francés, 0 desafio, tal como se cristalizou nos debates ¢m torno da interpretacio da Revolugao Francesa, assumiu uma fi- guira inversa. Longe de postular a automaticidade da producao do sentido, além ou aquém das vontades individuais, ele enfatiza, bem a0 contrario, a liberdade do sujeito, a parte refletida da acdo, as cons- trugées conceituais. Por conseguinte, véem-se recusados os proce- dimentos classicos da histéria social que visavam a identificar as de- terminagGes inconscientes que comandam os pensamentos as con- dutas. Conseqitentemente, encontra-se afirmado 0 primado do po- litico, compreendido como o nivel mais globalizante e mais revela- dor de toda sociedade. E esse vinculo que Marcel Gauchet coloca ho centro da recente mudanca de paradigma que cré discernir nas ciéncias sociais: © que parece delinearse ao final da problematizacio da originalidade ocidental moderna é uma recomposicao do desenho de uma historia total, De acordo com dois eixos: por acessio, através do politico, a uma nova chave para a arquitetura da totalidade, e por absor¢io, em fungao dessa abertura, ca parte refletida da acio humana, das filosofias mais ela- boradas aos sistemas de representacGes mais difusos.”” Os historiadores (dentre 0s quais me encontro) para quem permanece essencial a pertenca da historia as ciéncias sociais tenta- ram responder a essa dupla e, as vezes, rude interpelagio. Contra as, formulacées do linguistic turn ou do semiotic challenge, conforme a expresso de Gabrielle Spiegel," eles consideram ilegitima a redu- cdo das praticas constitutivas do mundo social aos principios que comandam os discursos. Reconhecer que a realidade passada nao € acessivel (na maioria das vezes) senao através dos textos que preten- Le Dé, 50, 1988, Marcel Gaucher, “Changement de paradigme en sciences sociale .165-170 (citacio p.169) Gabrielle M. Spiegel, “History, Mistoricism, and the Social Logic of the Text in the Middle Ages", Speculum, A Journal of Medieval Stuics, 65, janeiro 1990, p. 59-86 (citagiio p.60), 0 [eee diam organizé-a, submetéa ou representéla nao é postular, con- tudo, a identidade entre duas légicas: de um lado, a légica logocén- wica ¢ hermenéutica que governa a producio dos discursos; de ou- tro, a logica pratica que regula as condutas e as ages. Dessa irredu- tibilidade da experiéncia ao discurso toda hist6ria deve dar conta, precavendo-se de um uso descontrolado da categoria de “texto”, demasiadas vezes indevidamente aplicada a praticas (ordinarias ou ritualizadas), cujas taticas e procedimentos nao sio em nada seme- Thantes as estratégias discursivas. Manter a distingao entre ambas € 0 tinico meio de evitar de “dar para o princfpio da pratica dos agen- tesa teoria que se deve construir para justificé-a”, segundo a formula de Pierre Bourdieu." Por outro lado, deve-se constatar que a construcio dos interes- ses pelos discursos ¢ ela propria socialmente determinada, limitada pelos recursos desiguais (lingiifsticos, conceituais, materiais, etc.) de que dispdem aqueles que a produzem. Essa construgao discursiva remete, pois, necessariamente as posicdes e as propriedades sociais objetivas, exteriores ao discurso, que caracterizam os diferentes gru- pos, comunidades ou classes que constituem 0 mundo social Em conseqiiéncia, 0 objeto fundamental de uma histéria que visa a reconhecera maneira como os atores sociais dao sentido a suas praticas e a seus discursos parece residir na tensio entre as capaci- dades invent as restrigées, as normas, as convences que limitam — mais ou me- nos fortemente de acordo com sua posi¢ao nas relagdes de domina- ao — 0 que Ihes é possivel pensar, enunciar ¢ fazer. A constatacao vale para uma historia das obras letradas e das producées estéticas, sempre inscritas no campo das possibilidades que as tornam imagi- naveis, comunicaveis e compreensiveis¢ sé se pode concordar com Stephen Greenblatt quando afirma que “dhe work of art is the product of a negotiation between a creator or a class of creators, and the institutions and practices of society'* [a obra de arte é 0 produto de uma negocia- ‘as dos individuos ou das comunidades €, de outro lado, Pierre Bourdieu, Choses dite, Pati, Editions de Minuit, 1987, p.76. Stephen Greenblatt, “Towards a Poetics of Culture", in The New Historicism, sob a dire: ‘clo de H. A. Veeser, New York ¢ Londres, Routledge, 1989, p.1-14 (citagao p.12). o do entre um criador ou uma classe de criadores ¢ as instituicdes e priticas da sociedade]. Masa constatacao vale igualmente para uma historia das praticas, que também sdo invengdes de sentido limita das pelas determinacdes miiltiplas que definem, para cada comuni- dade, os comportamentos legitimos ¢ as normas incorporadas. Contra 0 “retorno ao politico”, pensado em uma radical auto- nomia, € preciso, parece-me, colocar no centro do trabalho hist6ri- co as relagdes, complexas € variveis, estabelecidas entre os modos da organizacio e do exercicio do poder em uma dada sociedade e, de outro lado, as configuragées sociais que tornam possiveis essas formas politicas e so por elas engendradas. Assim, a construcio do. Estado absolutista supde uma forte e prévia diferenciacdo das fun- des sociais ao mesmo tempo que exige a perpetuacao (gracas a di- versos dispositivos, dentre os quais 0 mais importante é a sociedade de corte) do equilibrio das tensdes cxistentes entre os grupos sociais dominantes € rivais. Contra o retorno 3 filosofia do sujeito que acompanha ou fun- dla 0 retorno ao politico, a histéria compreendida como uma cién- cia social lembra que os individuos esto sempre ligados por depen- déncias reciprocas, percebidas ou invisiveis, que modelam ¢ estru- turam sua personalidade e que definem, em suas modalidades su- cessivas, as formas da afetividade e da racionalidade. Compreende- se, entéo, a importancia concedida por muitos historiadores a uma obra longamente desconhecida, cujo projeto fundamental é justa- mente associar, na longa duragao, construcao do Estado moderno, modalidades de interdependéncia social e figuras da economia psi- quica: a de Norbert Elias.” "Sobre a obra de Norbert Elia, ver Materialen su Norbert Elias Zivilisationstheori, sob a direcio de P. Gleichmann, J Goudsblom e H. Korte, Francfortsule-Main, Subrkamp, 2vol., 1977 ¢ 1984; Hermann Korte, Uber Norbert Blas, Das Werden eines Menschenwissens ‘hajtler, Francfortsurle-Main, Subrkamp, 1988; Stephen Mennell, Norbert Elias: Civil ion and the Human Sel-Image, Oxford, Basil Blackwell, 1989, e Roger Chartier, "For mation sociale et économie psychique: lasociété de cour dans le proces de civilisation", Preficioa Norbert Elias, La Socité de cour, Paris, Flammarion, 1985, p4-xxvii,e *Consci- tence de soi et lien social”, Avantspropos A Norbert Elias, La Saciété dex individus, Paris, Fayard, 1991, p.7 ” O trabalho de Elias permite, em particular, articular as duas sig- ‘agées que sempre se confundem no uso do termo cultura tal como manipulado pelos historiadores. A primeira designa as obras © 08 gestos que, em uma sociedade, tangem ao julgamento estético ow intelectual. A segunda visa as préticas ordindrias, “sem qualida- des”, que tecem a trama das relagées cotidianas ¢ exprimem a ma- neira como uma comunidade vive ¢ reflete sua relago com 0 mun- do ¢ com o pasado, Pensar historicamente as formas e as priticas culturais é, portanto, elucidar necessariamente as relagdes mantidas por essas duas definicées. As obras nio tém sentido estavel, universal, imével. Sao investi- das de significagdes plurais « méveis, construidas na negociacio entre uma proposicao e uma recepcio, no encontro entre as formas € 08 motivos que Ihes dao sua estrutura ¢ as competéncias ou as ex- pectativas dos puiblicos que delas se apropriam. E certo que os cria- dores, ou as autoridades, ou os “clérigos” (quer pertencam ou nao a Igreja), sempre aspiram a fixar o sentido e a enunciar a correta interpretacdo que deve restringir a leitura (ou 0 olhar). Mas sem- pre, também, a recepcio inventa, desloca, distorce. Produzidas em uma esfera especifica, em um campo que tem suas regras, suas con- vengGes, suas hierarquias, as obras escapam delas ¢ assumem densi- dade, peregrinando, as vezes na longuissima duracao, através do mundo social. Decifradas a partir dos esquemas mentais ¢ afetivos que constituem a cultura prépria (no sentido antropol6gico) das comunidades que as recebem, elas tornam-se em retorno um recur so para pensar 0 essencial: a construcao do laco social, a conscién- cia de si, a relacao com o sagrado. Inversamente, todo gesto criador inscreve em suas formas ¢ seus temas uma relacdo com as estruturas fundamentais que, em um. momento € um lugar dados, modelam a distribuicdo do poder, a organizagao da sociedade, a economia da personalidade. Pensado (ese pensando como um demiurgo), artista, o filésofo ou o cien- lista inventa, no entanto, na imposicao. Imposi¢ao em relacao as regras (do patronato, do mecenato, do mercado, etc.) que definem sua condicao. Imposicao mais fundamental ainda em relagao as de- 93 terminacdes ignoradas que habitam cada obra e que fazem com que cla seja concebivel, transmissive, compreensivel. O que toda histé- ria deve pensar €, pois, indissociavelmente, a diferencaatravés da qual todas as sociedades separaram, do cotidiano, em figuras variveis, um dominio particular da atividade humana, ¢ as dependéncias que ins- crevem de miltiplas maneiras, a invencao estética € intelectual em suas condi¢des de possibilidade. LUTAS DE REPRESENTAGOES E VIOLENCIAS SIMBOLICAS, Assim firmemente apoiada nas ciéncias sociais, a histéria ndo pode, no entanto, evitar um outro desafio: superar 0 confronto, a termo estéril, entre o estudo das posigdes ¢ das relagdes de um lado © aanilise das acées ¢ das interacdes de outro. Superar essa oposi- cao entre “fisica social” e “fenomenologia social” exige a construcio de novos espacos de pesquisa em que a definicdo mesma das ques- tdes obrigue a inscrever os pensamentos claros, as intengGes indivi- duais, as vontades particulares nos sistemas de restrigdes coletivas que as tornam possiveis €, ao mesmo tempo, as freiam. Tal abordagem, cujo primeiro traco é atingir as fronteiras ca- ndnicas, lembra que as producécs intelectuais ¢ estéticas, as repre- sentagdes mentais, as praticas sociais sio sempre governadas por mecanismos e dependéncias desconhecidos pelos préprios sujeitos. Ea partir dessa perspectiva que se deve compreender a releitura his- t6rica dos classicos das ciéncias sociais (Elias, mas também Weber, Durkheim, Mauss, Halbwachs) ¢ a importancia reconquistada, em detrimento das nocées habituais 4 historia das mentalidades, deum conceito como 0 de representagao. ‘Numerosos foram os trabalhos de histéria que manipularam recentemente a nocao de representacao. Ha duas razées para isso. De um lado, o recuo da violéncia, que caracteriza as sociedades oci- dentais entre a Idade Média e 0 século XVIII € que decorre da con- fiscacdo (ao menos tendencial) do monopélio sobre o emprego le- gitimo da forca pelo Estado, faz. com que os confrontos sociais fun- dados sobre os afrontamentos diretos, brutais, sangrentos, cedam 9 cada vez mais o lugar a lutas que tém por armas ¢ por fundamentos as representacdes. De outro lado, é do crédito concedido (ou recu- sado) as representacdes que propoem de si mesmos que depende a autoridade de um poder ou 0 poderio de um grupo. No terreno das representacdes do poder com Louis Marin," no da construcao das identidades sociais ou culturais com Bronislaw Geremek” ¢ Carlo Ginzburg.” definiu-se assim uma hist6ria das modalidades do fazer crer e das formas da crenca, que é antes de tudo uma hist6ria das relacdes simbélicas de forca, uma historia da aceitagio ou da rejei cao pelos dominados dos prinefpios inculcados, das identidades impostas que visam a assegurar € perpetuar seu assujeitamento, Essa questdo encontra-se, por exemplo, no centro de uma his- t6ria das mulheres que d amplo espaco aos dispositivos da violén- cia simbélica que, como escreve Pierre Bourdieu, “sé tem éxito na medida em que aquele que a sofre contribui para sua eficicia; que elas6 o forca na medida em que ele esta predisposto por uma apren- dizagem prévia a reconhecé-la.” Duradouramente, a construcao da identidade feminina enraizase na interiorizacao, pelas mulheres, de normas enunciadas pelos discursos masculinos. Um objeto maior da histéria das mulheres é, pois, 0 estudo dos dispositivos, desenvolvi- dos sob miiltiplos registros, que garantem (ou devem garantir) que as mulheres consintam nas representacdes dominantes da diferer a entre 08 sexos: a inferioridade juridica, a inculcagio escolar dos papéis sexuais, a divisio das tarefas € dos espacos, a exclusdo da es- fera piiblica, etc. Longe de afastar do real ¢ de indicar apenas as fi- guras do imagindrio masculino, as representacdes da inferioridade feminina, incansavelmente repetidas € mostradas, inscrevem-se nos ‘Louis Marin, Le Portrait du oi, Paris, Editions de Minuit, 1981, ¢ Des pouvoir de image loses, Pats, Editions du Seuil, 1993 "Bronislaw Geremek, Inutiles au monde. Truands et misérables dans Europe moderne (1350- 1600), Paris, Gallimard /Juliard, 1980, ¢ La Potence ow la Pitié. CEuropeet les paucves due Moyen Age d nas jours, Paris, Gallimard, 198; 2 Carlo Ginzburg, / Benandanti Strgoneria ¢ culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Tarim, Einauel, 1966 (tradueio frances Les Batallesnacturnes. Selene erituls agraines x XVP et XVIP sces, Pats, Flammarion, 1984). Pierre Bourdieu, La Noblesse d Etat, Grandes éoles et esprit de corps, Paris, Editions de Mi- nuit, 1989, p. 10. pensamentos € nos corpos de ambos, delas ¢ deles. Mas uma tal in- corporagio da dominacio nao exclui, longe disso, posstveis variagbes ¢ manipulacées que, pela apropriacio feminina de modelos e de normas masculinos, transformam em instrumento de resisténcia € em afirmacio de identidade as representagdes forjadas para garan- tira dependéncia € a submissio. Reconhecer assim os mecanismos, 0s limites ¢, sobretudo, 08 usos do consentimento é uma boa estratégia para corrigir o privilégio lon- gamente concedido pela historia as “vitimas ou rebeldes”, “ativas ou atrizes de seu destino”, em detrimento “das mulheres passivas, consi- deradas com demasiada facilidade como aquiescentes. sua condi¢io, embora justamente a questio do consentimento seja totalmente cen- tral no funcionamento de um sistema de poder, quer seja social ou/e sexual. Nem todas as fissuras que fendem a dominacao masculina assumem a forma de rupturas espetaculares nem se expressam sem pre pela irrupcao de um discurso de recusa ¢ de rebelido. Elas nas cem freqiientemente dentro do proprio consentimento, reutilizando a linguagem da dominacio para fortalecer a insubmissio. Definir a dominagao imposta 4s mulheres como uma violéncia simbélica ajuda a compreender como a relagao de dominagio, que uma relacio hist6rica ¢ culturalmente construfda, € afirmada como uma diferenca de natureza, irredutivel, universal. O essencial nao €, portanto, opor termoa termo uma definicao bioldgica e uma de- finicdo hist6rica da oposi¢o masculino/feminino, mas, antes, iden- tificar os discursos que enunciam e representam como “natural” (portanto, biolégica) a divisio social (portanto, hist6rica) dos pa- péis € das funcées. A leitura da variacao entre o masculino ¢ 0 femi- nino é, alids, ela mesma historicamente datada, ligada ao apagamen- to das representacdes médicas da similitude entre os sexos € A sua substituico pelo indefinido inventario de suas difereneas biolégi cas. Como constata Thomas Laqueur, a partir do final do século XVIII, ao “discurso dominante [que] via nos corpos masculinos © femininos verses hierarquicamente, verticalmente, ordenadas de Arlette Farge e Michelle Perrot, “Au-deli du reyard des hommes", Le Monde des Dé bats, n.2, novembro 1992, p.2021 96 um tinico € mesmo sexo” sucedem “uma anatomia ¢ uma fisiologia da incomensurabilidade”.** Inscrita nas praticas € nos fatos, organi- zando a realidade e 0 cotidiano, a diferenca sexual € sempre cons- truida pelos discursos que a fundam e a legitimam. Mas estes se en- raizam em posicdes € interesses sociais que, no caso, devem garan- tir o assujeitamento de umas ¢ a dominacio dos outros. A historia das mulheres, formulada nos termos de uma histéria das relagées entre os sexos, ilustra bem o desafio maior langado hoje em dia aos historiadores: relacionar construgao discursiva do social ¢ constru- cdo social dos discursos. FICGAO E FALSIFICAGOES Existe, enfim, um tiltimo desafio, que nao é o menos temivel. Da constatacao, totalmente fundada, segundo a qual toda histéria, seja qual for, é sempre uma narrativa organizada a partir de figuras € de f6rmulas que mobilizam também as narragdes imaginarias, al- guns concluiram pela anulacdo de qualquer distingio entre ficcao € historia, j4 que esta 6, e apenas é uma fiction-making operation, se- gundo a expresso de Hayden White. A historia nao proporciona um conhecimento do real mais verdadeiro (ou menos) do que o faz um romance, ¢ é totalmente ilus6rio querer classificar e hierarquizar as, obras dos historiadores em fungao de critérios epistemolégicos in- dicando sua maior ou menor pertinéncia a dar conta da realidade passada que é seu objeto: There has been a reluctance to consider histori- cal narratives as what they most manifestly are: verbal fictions, the contents of which are as much invented as found and the forms of which have more in common with their counterparts in literature than they have with those in the sciences (Houve uma reticéncia a considerar as narragdes hist6- ricas como o que sio manifestamente: ficgdes verbais cujos contet- > inventados quanto descobertos € cujas formas tém mais dos sio t Thomas Laqueur, Making Sex Body and Gender from the Greeks to Freud, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1990, p.5-6 (traducio francesa La Fabrique du sexe. Essai sur le conpsetlegenre en Occident, Paris, Gallimard, 1992, p.38) * Hayden White, Tropics of Discourse, op. cit, p82. 7 em comum com seus equivalentes literarios do que cientificos]. Os tinicos critérios que permitem uma diferenciacao dos discursos his- t6ricos thes vém de suas propriedades formais: A semiological ‘approach to the study of texts permit us [..] to shift hermeneutic interest from the content of the texts being investigated to their formal properties (Uma abordagem semiolégica do estudo dos textos permite-nos [...] des- locar o interesse hermenéutico do contetido dos textos que sto ob- jeto de andlise para suas propriedades formais]. Contra uma tal abordagem, ou um tal shift, deve-se lembrar que a meta de conhecimento € constitutiva da propria intencionalida- de histérica. Ela funda as operacées especificas da disciplin: trucio ¢ tratamento dos dados, produgio de hipéteses, critica e ve- rificaco dos resultados, validacao da adequacao entre o discurso de saber e seu objeto. Mesmo que escreva em uma forma “literaria”, 0 historiador nao faz literatura, e isso, devido a sua dupla dependén- cia. Dependéncia em relacao ao arquivo, portanto em relacio a0 passado de que este € 0 traco. Como escreve Pierre VidalNaquet: O historiador eserun,e essa escrita no é nem neutra nem transparente Ela se modela sobre as formas literarias, até mesmo sobre as figuras de ret6rica. [..] Que o historiador tenha perdido sua inocéncia, que se deixe tomar como objeto, que se tome ele mesmo como objeto, quem o la- mentari? Resta que se o discurso historico nio se ligasse, por meio de tantosintermediarios quanto possivel, ao que se chamara, na falta de algo melhor, de real, estariamos sempre no discurso, mas esse discurso dei- xaria de ser histarico."* Dependéncia, a seguir, em relacdo aos critérios de cientificidade e 4s operagées técnicas proprio seu “oficio”. Reconhecer suas varia- Ges (a histéria de Braudel nao €a de Michelet) nao implica, entre- tanto, concluir que essas restrigdes e critérios no existem € que as ‘inicas exigéncias que freiam a escritura de hist6ria sio as que go- vernam também a escritura de ficcao. ‘Comprometidos em definir o regime de cientificidade proprio Hayden White, The Content ofthe Form, op. cit, p192-193. Pierre VidalNaquet, Les Assassins de la mémoie, Un Eichmann de papier et autres des sur le révisionniome, Pats, Editions La Découverte, 1987, p.148-149. 8 de sua disciplina, a tinica que pode manter sua ambigdo a enunciar © que aconteceu, 0s historiadores escolheram diversos caminhos. Alguns consagraram-se ao estudo do que tornou ¢ ainda torna pos siveis a producio e a aceitagio das falsificacdes em historia, Como mostraram Anthony Grafton® ¢ Julio Caro Baroja,” as relagdes si0 estreitas e reciprocas entre as falsificacdes € a filologia, entre as re- gras as quais devem se submeter os falsarios e os progressos da eriti- ca documental. Por essa razio, 0 trabalho dos historiadores sobre a falsificacao, que cruza o dos historiadores das ciéncias, ocupados com a mandibula de Moulin-Quignon ou com 0 crinio de Piltdown, € uma maneira paradoxal, irénica, de reafirmar a capacidade da his- t6ria para estabelecer um saber verdadeiro. Gracas as suas técnicas proprias, a disciplina é apta a fazer com que se reconhecam as falsi- ficagées como tais, portanto, a denunciar os falsérios. E retornando a scus desvios e suas pervers6es que a histéria demonstra que 0 co- nhecimento que produ inscreve-se na ordem de um saber contro- Iavel e verificavel, logo, que est armada para resistir ao que Carlo Ginzburg designou como a “maquina de guerra cética” que recusa a historia toda possibilidade de dizer a realidade que foi ¢ de sepa- rar o verdadeiro do falso."" Todavia, nao €, ou nao € mais possivel pensar o saber histérico, instalado na ordem do verdadeiro, nas categorias do “paradigma galileano”, matemitico ¢ dedutivo. O caminho é entio forgosamente estreito para quem pretende recusar, a0 mesmo tempo, a reducio da histéria a uma atividade literdria de simples curiosidade, livre € aleatoria, e a definigdo de sua cientificidade a partir apenas do mo- delo do conhecimento do mundo fisico. Em um texto ao qual se deve sempre retornar, Michel de Certeau formulara essa tensio funda- mental da hist6ria. Ela é uma pratica “cientifica”, produtora de co- Anthony Grafton, Forgers and Critics: Creativity and Dupliity in Western Scholarship, Prin ceton, Princeton University Press, 1900 (traducio francesa Faussares et critiques. Créati= vite et dupicté chez les éruditsoccdentaus, Paris, Les Belles Lettres, 1993). "Julio Carlo Baroja, Las falsifcaciones dela historia (en relacién com la de Esparta), Barcelo na, Seix Barral, 1992. "\Carlo Ginzburg, “Préface” & Lorenzo Valla, La Donation de Constantin, texto taduzido ecomentado por }J-B. Giard, Paris, Les Belles Lettres, 1998, p.ix-xxi (citagio p.xi). 9 nhecimentos, mas uma pratica cujas modalidades dependem das variagdes de seus procedimentos técnicos, das restrigdes que Ihe impem o lugar social e a institui¢ao de saber onde € exercida, ou ainda, das regras que necessariamente comandam sua escritura. O que pode igualmente ser enunciado ao inverso: a histéria é um dis- curso que coloca em acio construges, composigées, figuras que sao aquelas de toda escritura narrativa, logo, também da fibula, mas que, ao mesmo tempo, produz um corpo de enunciados “cientificos”, se entendermos por isso “a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitem ‘controlar’ operacées proporcionais & produ- fio de objetos determinados”.** ‘© que Michel de Certeau convida-nos aqui a pensar é 0 pré- prio da compreensio hist6rica. Em que condicgées pode-se conside- rar coerentes, plausiveis, explicativas, as relacdes instituidas entre, de um lado, 08 indicios, as séries ou os enunciados construidos pela operacio historiografica e, de outro, a realidade referencial que pretendem “representar” adequadamente? A resposta nao € facil, mas € certo que o historiador tema tarefa especifica de fornecer um conhecimento apropriado, controlado, dessa “populacao de mortos ~ personagem, mentalidades, precos” que sio seu objeto. Abando- nar essa intencao de verdade, talvez desmesurada mas certamente fandadora, seria deixar 0 campo livre a todas as falsificagdes, a to- dos os falsarios que, por trafrem o conhecimento, ferem a memé- ria. Cabe aos historiadores, fazendo seu oficio, ser vigilantes. Michel de Certea ‘opération historiographique", em LEriture de histoire op. pe raraphig 4. Figuras retéricas € representagoes histéricas 1973: Hayden White publica Metahistory.' Na Franca, o livro passa despercebido. Ignorado, nao encontra seu lugar na discus- so sobre a hist6ria que iniciara, dois anos antes, com a obra pro- vocante de Paul Veyne Comment on écrit Uhistoiré e que sera marca- da pela publicacio, em 1974, do ensaio de Michel de Certeau, “L’opération historique"? Um encontro fracassado, portanto. E um desconhecimento muito danoso se lembrarmos das propostas avancadas por Paul Vey- ne. Ele recusava termo a termo as certezas que fundavam a cientifi- cidade da hist6ria quantitativa e serial, tida entao por uma verdadeira “revolucao da consciéncia historiografica’.* Para Veyne, a historia nao pode ser separada das formas literdrias tradicionais; as explica- "As obras de Hayden White, citadas no corpo deste artigo, so Metahstoy. The Historical ma ination in Ninetenth-Century Eup, Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1973, Tropics of Discourse. Essays in Cultural Criticism, Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1978, e The Content ofthe Form. Narrative Diseurseand Historical Re- _prsentation, Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1987. *Paul Veyne, Comment on ért histoire. Essai d’pistmologe, Paris, Editions du Seuil, 1971 "Michel de Certeau, “L'opération historique", in Faire de Uhistoin, sob a diregiio de Jac ques Le Goffe Pierre Nora, Paris, Gallimard, 1974, t.1, p 3-41 ‘Francois Furet, “Lihistoire quantitative et la construction du fait historique”, Annales C,, 1971: 63-75. ol

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