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TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA JORGEN HABERMAS Reportando-me aos trabalhos de Frank Michelman, professor de teoria do Estado da Universidade de Harvard (do qual sio todas as citagBes no texto) vou comparar duas concepydes de politica. Trata-se da ‘concepeo liberal e da concepelo republicana, na terminologia simplifi- ccadora consagrada no debate norte-americano. E, partindo de uma critica 20 tipo de renovagdo do "republicanismo" que Michelman representa, de senvolverei uma concepeio procedimental de politica deliberativa, REPUBLICANISMO E LIBERALISMO- A diferenga decisiva entre essas duas concepedes consiste no papel do processo democrético. Segundo a conceppdo liberal 0 proceso emocritico cumpre a tarefa de programar 0 Estado no interesse da socie- dade, entendendo-se 0 Estado como o aparato de administragdo pablica ea sociedade como o sistema, estruturado em termos de uma economia de ‘mercado, de relag6es entre pessoas privadas © do seu trabalho social. A politica (no sentido da formagio politica da vontade dos cidadaos) tem a fungdo de agregar e impor os interesses sociais privados perante um apara- to estatal especializado no emprego administrative do poder politico para ‘garantr fins coleivos. Segundo a concepedo republicana a politica nfo se fesgota nessa fungio de mediagio. Ela é um elemento constitutivo do ‘+ "Tits malo de demoesca Sobre concept de na potion deliberative det H- racan lll, 1993 Texto da apresentagio de Habeas no seid "Teri de derocr. ‘Sra Universidade de Vatéoca, 1S/101901. Tadoges de Gavel Cohn Alvaro de Vist 0 Ma Nova 16—95 processo de formagio da sociedade como um todo. A politica ¢ entendida ‘como uma forma de reflexao de um complexo de vida ético (no sentido de Hegel). Ela constitui o meio em que os membros de comunidades so- lidarias, de eardter mais ou menos natural, se dio conta de sua dependén- cia reefproca, ¢, com vontade e consciéncia, leva adiante essas relagées de reconhecimento recifroco em que se encontram, transformando-as em uma associaglo de portadores de direitos livres e iguais. Com isso, a arqu tet6nica liberal do Estado e da sociedade sofre uma mudanca importante: junto a instdncia de regulaglo hierdrquica representada pela jurisdigao do Estado, ¢ junto & instincia de regulagio descentralizada representada pelo mercado (junto, portanto, ao poder administrative e a0 interesse proprio individual) surge a solidariedade e a orientagao pelo bem comum como uma terceira fonte de integrago social. Essa formagao horizontal da von- {ade politica, orientada para o entendimento ou para um consenso al- ceangado argumentativamente, deve mesmo gozar de primazi, seja gene- ticamente, seja de um ponto de vista normativo. Para a pritica da autodeterminagio cidada supde-se uma base de sociedade civil autonome, independente tanto da administragio publica como do interc&mbio priva- 4o, que protegeris a comunicagao politica da absorgo pelo aparato estatal cou da assimilagdo & estrutura do mercado, Na concepeo republicana 0 ‘espago publico¢ politic e a sociedade civil como sua infraestrutura assu- ificado estratégico. Eles tm a fungko de garantir a forga in- tegradora e a autonomia da prética de entendimento entre os cidadios. A ‘corresponde um reacoplamento entre 0 poder administrativo e o poder co- ‘municative que emana da formago da opinio e da vontade politica. Assinalarei, tendo em vista a avaliagdo do processo politico, a ‘gumas das conseqtigncias desses enfoques rivais. 4) Conceito de cidadao Em primeiro lugar, distinguem-se os respectivos conceitos de ci- dado. De acordo com a concepeio liberal, o status dos cidadaos define se pelos direitos subjetivos que eles tm diante do Estado e dos demas ci {dados. Na condigSo de portadores de direitos subjetivos 0s cidadios gozam dda protegao do Estado na medida em que se empenham em prol de seus ine esses privados dentro dos limites estabelecidos pelas leis. Os direitos subje- tivos sio direitos negativos que garantem um ambito de escolha) dentro do ‘qual 0s cidadios esto lives de coagbes externas. Os direitos politicos tm a ‘mesmacstrutura. Eles dio aos cidadios apossibilidade de fazer valer seus in- teresses privados, ao permitir que esses interesses possam agregar-se (por “TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA a meio decleigdes eda composigio do parlamento edo governo) com outros inteesses privados at que se forme uma vontade politica capaz de exercer uma efeiva infutacia sobre aadminisragdo. Dess forma os cidados, em seu papel de ntegrantes da via politica, podem controlar em que medida 0 poder do Estado se exerce no interessedelespréprio como pessoas prvadas Conforme a concepgao repblicana, o status de cidadao nio € defnido por esse eritro de liberdads negatvas da quas $6 se pode fa zr uso como pessoa pivada, Os direitos de cidadania, entre os quis se Sobressaem os direitos de paricipagto e de comunicagZo polities, 580 melhor entendidos como liberdades postva. Els ndo garantem a liber dade de coagies externas, mas sim a partiipagio em uma prtica comum, cujo exereico ¢o que permite os cidadios se converteem no que querem Ser: autores polticos responséveis de uma comunidade de pessoas livres ¢ iguais, Ness medida processo politico nfo serve somente para 0 con- ttle da ativdade do Estado por cidados que, no execiio de seus die tos prvados ede suas liberdadespré polities, aleangaram uma prévi a ‘onomia. Tambéim no cumpre uma Fungo deantculagao entre o Estado ea sociedad, j& que o poder administrativo nfo representa poder origindro al tm, nfo é um poder autétone ou um dado. Esse poder na realdade pro- ‘ém do poder comunicativamente gerado na pica da autodeterminagao dos cidados es legitima na medida em que protege ess prétca por meio dha insttucionalizagdo da iberdade lia. A justificag da existncia do Estado nfo se enconra primariamente na protegio de direitos subjetivos rrivados igus, mas sim na garantia de um processoincusivo de formagso da opinio e da vontade polticas em que cidados livre e igus se enten- dem acerca de que fin enormas comespondem ao ineresse comum de to- dos. Dessa forma espera-se dos cidaos republicanos muito mais do que ‘meramenterientare-e pr seus interesesprivados ) Concelto de direito ‘A polémice que tem por objeto o conceitocléssico de personali- dade jurdica como portadors de direitos subjetivosencerra, no fundo, uma controvérsia sobre o préprio conceito de direito. Ao passo que para a con- cepeio liberal 0 sentido de uma ordem jurfdica est em que essa ordem permite decidir em cada caso particular que dieitos eabem aos individuos, cesses direitos subjetivos, de acordo com a concepgao republicana, devem- se a uma ordem jurdica objetiva que ao mesmo tempo possbilita€ ga- rante a integrdade de uma convivéncia com igualdade de direitos e ato- nomia,fundada no respeito miu. No primeiro caso, a ordem jurdica se constr a panir dos direitos subjerivos; no segundo, concede-se primado a uA NovAN* 6 —95 0 conteido objetivo que essa ordem jusidica tem. F verdade que esses conceitos dicotomizados no dio conta do conteido intersubjetivo de di- Teitos que exigem.o respeito recfproco de direitos e deveres mediante relagdes de reconhecimento de carter simétrico, Mas & a concepeio repu- blicana que revela afinidade com um conceito de direito que outorga a in- tegridade do individuo e as suas iberdades subjetivas o mesmo peso atr- bbuido a integridade da comunidade cujos membros singulares t&m como reconhecer-se reciprocamente, tanto coma individuos quanto como inte- ‘grantes dessa comunidade. Pois a concepgio republicana vincula a legit imidade da lei ao procedimento democratico da génese dessa lei, estabele- ‘cendo assim uma conexdo interna entre a prética da autodeterminagao do Povo € o império impessoal da lel. "Para 0s republicanos os direitos no ‘passam em dltima instincia de determinagOes da vontade politica prevale- cente, enquanto que para os liberais certos dieitos esto sempre fundados ‘numa ‘ei superior’ de uma razdo ou revelagdo transpolitica.. De um ponto de vista republicano, o objetivo de uma comunidade, o bem comum, subs- tancialmente consiste no sucesso de seu empenho politico por definir,es- tabelecer,efetivare sustentar 0 conjunto de direitos (ou, menos tendencio- samente, leis) melhor ajustados as condigtes e costumes daquela ccomunidade, ao passo que num ponto de vista contrastantemente liberal os direitos baseados na lei superior ministram as estruturas transcendentais € (0s limites ao poder indispenséveis para a operacdo mais satisfaria possivel da busca pluralista de interesses diferentes e conflitantes ‘Natradig80 republicana, o drcito de voto interpretado como liber dade positiva converte-se em paradigma dos direitos em geral, nio somente porque esse direito & condigio indispensdvel da autodeterminacio politica ‘mas também porque nele tora-se explicito como a inclusao em uma comuni- dade de portadores de ditetos iguaisvincula-se a capacidade dos individuos de realizar contribuigdes autOnomase de assumir posigbes propria. ©) Processo poltico Essas conceituagdes distntas do papel do cidadao e do direito cexprimem um desacordo muito mais profundo sobre a natureza do proces- 0 politica. De acordo com © ponto de vista liberal a politica € essencial- ‘mente uma luta por posigBes que assegurem a capacidade de dispor de poder administrativo. O processo de formago da opinifo © da vontade poltticas na esfera publica ¢ no parlamento € determinado pela concorrén- cia entre atores coletivos, que agem estrategicamente com 0 objetivo de conservar ou adquirir posigdes de poder. O éxito é medido pelo assenti- ‘mento dos cidados a pessoas e programas, quantificado pelo ntimeso de ‘TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA 8 ‘tos obtidos em eleigdes. Por meio de seus votos os eleitores expressam suas preferéncias. Suas decisées de voto tém a mesma estrutura que as es- colhas orientadas para o éxito dos participantes de um mercado. Esses vo- tos permitem a busca de posig6es de poder, que os partidos politicos dis- putam entze si adotando uma atitude semelhante de orientagio para 0 @xito. O input de votos e 0 output de poder respondem ao mesmo modelo de aco estratégica: "Diversamente da deliberagio, a interagio estratégica tem por fim a coordenaco mais do que a cooperasdo. Em Ultima andlise, ‘que se exige das pessoas & que ndo levem em conta nada que no seja 0 interesse pr6prio. Seu meio é a barganha, nfo 0 argumento. Seus instru- _mentos de persuasio ndo sfo reivindicagées ou razBes mas ofertas con cionais de servigos e abstengio. Seja formalmente incorporado num volo ‘ou num contrato ov simplesmente efetivado de modo informal em condu- tas sociais, um resultado estratégico ndo representa um jufzo coletivo da azo mas uma soma vetorial num campo de forgas” Conforme a concepedo republicana a formagio da opiniso e da vontade politicas no espaco publico e no parlamento no obedece as estru- turas dos processos de mercado mas tem suas estruturas especificas. So clas as estrus de uma comunicasdo piiblica orientada para o entendi- ‘mento, O paradigma da politica no sentido de uma autodeterminacdo ci- dada no € 0 do mercado e sim o do didlogo: "Uma concepsio dialbgica ‘vé—ou talver fosse 0 caso de dizer que idealiza —a politica como uma atividade normativa, Ela concebe a politica como uma contestaglo sobre uestdes de valores e ndo meramente questdes de preferéncias. Ela en- tende a politica como um processo de argumentagio racional e ndo exclu sivamente de vontade, de persuasto e nfo exclusivamente de poder, orien- tado para a consecugdo de um acordo acerca de uma forma boa ¢justa, ou ppelo menos aceitével, de ordenar aqueles aspectos da vida que se referem as relagdes socials e & natureza social das pessoas". Desse ponto de vista estabelece-se uma diferenga estrutural entre 0 poder comunicativo, que surge da comunicagdo politica na forma de opiniges majoritérias discursi vamente formadas, ¢ 0 poder administrtivo, préprio do aparato estatal. ‘Também os partidos, que lutam por conquistas as posigSes estatais de po- der, se véem obrigados a submeter-se a0 estilo deliberativo © a0 sentido especifico dos discursos politicos. Precisamente por isso 0 embate de opi- niges sustentado no terreno da politica tem uma forga legitimadora, nio somente no sentido de uma autorizaglo para perseguir posig6es de poder ‘mas também no sentido de que 0 exercicio continuado do discurso politico tem forga vinculatéra sobre a forma de exercer o poder politico, O poder administrtivo somente pode ser empregado com base nas politcas e nos limites das leis que surgem do processo democratico. “4 WaNovAre36—95 UMA ALTERNATIVA Até aqui a comparagdo restringiu-se aos dois modelos de demo- cracia que hoje, sobretudo nos Estados Unidos, dominam o debate entre os chamados “comunitarstas"e os "Uiberais. 0 modelo republicano tem van- {agens e desvantagens. A vantagem, vejo-a em que se atém ao sentido de- mocrata radical de uma auto-organizagio da sociedade por cidados uni ddos comunicativamente, ¢ em nio fazer com que os fins coletivos sejam, derivados somente de um arranjo entre interesses privados conflitantes. ‘Vejo sua desvantagem no idealismo excessivo que hé em tornar o proces- s0 democrético dependente das virtudes de cidadios orientados para o bem comum. Mas a politica no se constitui somente, ¢ nem mesmo pri ‘mariamente, de questdes relaivas & autocompreensio ética dos grupos So- ciais. © erro consiste em um estreitamento ético dos discursos politicos. Certamente os discursos de autocompreensdo , aqueles em que seus partcipantes tentam esclarecer-se acerca de como devem entender a simesmos como membros de uma determinada nago, como membros de ‘um municipio ou de um Estado ou como habitantes de uma determinada regido, acerca de que tradigGes devem ter continuidade, acerca de como ddever tratar-se mutuamente, de como tratar as minorias e os grupos mar- ginais, acerca do tipo de sociedade em que querem vives, rambém consti- ‘tem uma parte importante da politica. Mas, em situagdes de pluralism cultural e socal, por trés das metas politicamente relevantes muitas vezes escondem-se interesses ¢ orientagdes valorativas que de modo algum po-

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