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Os Obstaculos Epistemolégicos, segundo Gaston Bachelard walter Cardoso 1—Introdugao Embora no menospreze as ciéncias humanas, ¢ ‘menos ainda as ciéncias biolégicas, Gaston Bache- lard admite que as caracteristicas filoséficas do ‘espirito cientifico s4o mais evidentes naquelas cién- cias que contam com maior passado de objetividade ¢ que possuem um elevado grau de racionalidade. ‘Assim, para ele, as matematicas — constantemente rejuvenescidas e confiantes de sua autonomia — e as ‘ciéncias fisicas sfo as que mais se enquadram em sua historia e filosofia das ciéncias. Fundamentado no passado de tais ciéncias, Ba- chelard propde-se a descrever a formacao do espirito cientifico. Partindo da percepcdo ingénua do fend- ‘meno, um espirito pré-cientifico — que perdurou ‘ainda até o século XVIII — necessitou superar uma strie de obstdculos epistemolégicos para atingir um estégio cientifico. O progresso do pensamento cientifico se fez gracas a transposic&o de tais obsta- ‘culos ¢ a pratica de atos epistemoldgicos. Tais obstéculos ndo so uma decorréncia da ‘complexidade ou fugacidade dos fenémenos, nem das limitagdes de nossos sentidos, mas eles se encon- tram no prdprio ato do conhecer fundamentado na idéia pré-concebida. Esta, ao interpretar fatos segun- do necessidades, acaba por bloquear o conhecimen- to. Antes, pois, de ter opinido, um espirito cientifico deve saber levantar problemas, criar hipoteses fecun- das, as quais no devem confirmar seu saber, mas contradizé-lo. Por outro lado, toda idéia cientifica demasiado familiar possui um concreto psicoldgico excessivamente pesado, responsdvel por um emara- nhado de analogias, imagens e metaforas. "| O exame dos obstaculos epistemoldgicos — cuja Superacdo se fez necessdria para que se atingisse um hivel de espirito cientifico — constituem 0 propdsito deste texto, I~ A experiéncia primeira __ Um conhecimento que se apoia em um sensua lismo facilmente perceptivel, na experiencia primei fa, depara-se com seu primeiro obstaculo epistemo~ ico. Um espirito pré-cientifico, ao ver na natureza uma unidade hostil, antes de buscar explicagdes ra- 19 cionais para os fendmenos, teme-os. Assim, em vez de explicar a causa do trovao, um autor pré- cientifico prefere esclarecer acerca da improcedéncia do medo que sentimos, apds sua eclosio. “Ao escrever sobre o trovdo, minha inten- 40 principal tem sido sempre moderar, se isso fosse possivel, as impresses incOmodas que esse meteoro costuma fazer sobre uma infinidade de pessoas de todas as idades, de todos os sexos, de todas as condicées. Quantos eu ja nfo vi passar 8 dias em agitacdes violentas, ¢ as noites em in- quietudes mortais?”” (17) Como 0 livro pré-cientifico trata do cotidiano, & comum ocorrerem trocas de pontos de vista entre 0 autor — que se considera sibio — ¢ seus leitores, por certo meros curiosos. Dai as referéncias aos pitores- cos depoimentos de viajantes que presenciaram nos tropicos curas maravilhosas, gracas a medicamentos exéticos, tais como lagartos. Por outro lado, en- quanto a ciéncia moderna afasta-se de toda referén- cia a erudig&o, o espirito pré-cientifico necessita apoio em uma extensa massa de predecessores céle- bres. Cita-se mais Plinio, do que se cita hoje qual- quer sabio de qualquer época. E sintomatico também que certos espiritos alie- nados tenham conseguido, ha cerca de dois séculos, publicar livros nos quais se descreve um Universo ro- deado por chamas infernais. O Sol, cujo diametro & apenas de cinco Iéguas, encontra-se no centro. E as- sim que um advogado do Parlamento e engenheiro- 6ptico do Rei consegue “‘ver”” 0 Cosmos, gracas a ex- periéncias realizadas com espelhos céncavos. “A Lua nfo é um corpo, mas um simples re- flexo do fogo solar na abdbada area (...) As es- trelas nada mais sto do que a quebra esganigada de nossos raios visuais, sobre diferentes bolhas agreas,.."" (20) Como a experiéncia primeira fascina, da-se pre- feréncia as imagens e nao as idéias. Buscam-se entdo experiéncias curiosas ¢ divertidas, que em nada bene- ficiam a cultura cientifica. Tal ¢ o caso da primeira eletricidade, cujo empirismo colorido é sedutor. Nao basta apenas vé-la € busca a variacao, prieda- & necessirio compreendé-la, maravilhar-se. Desde que nao se mas a variedade, atribui-se a eletricidade prot de excepcional, em conexdio com as mais diversas substancias, Naturalmente, ordenam-se as propr! dades elétricas das substancias, segundo seu primeira aspecto: em primeiro lugar, as pedras preciosas, de- pois o enxofre, os residuos de calcinagao ¢ de destila- 40, conchas de certos moluscos, etc. A admiragao pelos fendmenos elétricos, tudo o “engarrafamento”” da eletricidade, at todas as pessoas, até mesmo 0 Rei. sobre- ge a Em memoravel experiéncia, 0 Abade Nollet “em presenga do Rei, deu a comocilo a conto € ltenta de seus guardas; ¢ no convento de Ch treaux, de Paris, toda a comunidade formou em tha de 900 toesas, ao meio de um fio de ferro, entre cada pessoa... ¢ toda a companhia, logo que descarregou a garrafa, houve uma como¢do sibita no mesmo instante ¢ todos sentiram 0 gol- pe igualmente” (19) Enguanto um Imperador poderia se wfanar das fabulosas somas de Schellings gastos para fazer a ex- periéncia de Leyde, os demonstradores de raios X ou laser por certo jamais pretenderdo fazer fortunas im- periais... As vezes, uma imagem pitoresca dispensa a veri- ficacto de uma hipétese. Assim, basta fazer uma mistura de limalha de ferro e flor de enxofre © recobri-la de terra — sobre a qual se planta grama — para que se esteja, inquestionavelmente, fazendo tm vuleao. Para um espirito pré-cientifico, nfo se trata de uma reac&o exotérmica, mas de uma forma de se “‘compreender”’ o Vesiivio em erup¢a0. Da mesma maneira, casinhas ¢ outros edificios construidos de cartolina, submetidos a choques elétricos, explicarao 0s tremores de terra. Dal, as provas de cficacia dos “‘para-vuledes”” ¢ “‘para-tremores-de-terra”, no se 44 um passo longo. Portanto, a historia do conhecimento objetivo tera que mostrar uma superacdo a adesdo imediata. © conhecimento vulgar estd impregnado de surdas paixdes, de desejos inconscientes ¢ de certas quime- ras. Uma hipétese pré-cientifica apbia-se, antecipa- damente, sobre uma convicc&o profunda, Assim, 0 primeiro conhecimento constitui um primeiro erro. 111 — O conhecimento geral A generaliza¢o prematura constitui um jogo in- telectual perigoso, Ao embargar a experiencia, a ciéncia do geral propée grandes verdades primeiras, que pretendem esclarecer completamente uma dou. tina. Aristoteles ensinara que os corpos leves, esfu- magados ¢ vapores, fogo € chama nao caem, mas buscam seu lugar natural, enquanto que os pesados Procuram a terra, Ensinar que todos o8 corpos eaem sem excego, poderia sugerir uma sadia doutrina da eravitac&o, quando na verdade se trata de generalia so. Para um espirito pré-cientifico, o verbo cair da a esséncia do fendmeno queda; a lei geral da qued dos pesados define a palavra pesado, Ao fares Perincia da queda dos corpos utilizando.se um wi, de Newton, chega-se a uma lei mais buriladse nee cuo, todos os corpos caem com igual velochiadt, 20 ssirio que a nogdo de velocidade no oy sé nece Me ‘de aceleraco, pois esta & a realidade qu te a nocao minante. ABE conceitos mais ricos so aqueles que, atray 1e provas experimentais, produzem maior defo, Gantinuo de conceitos, uma totaliza¢do e atualizacs® Ga historia do conceito. Em um espirito pe ico, nao se verifica uma dindmica dos eonee, sados, E 0 que ocorreu em 1669, quando a Académi, Royale des Sciences propOs QUE Se estudasse 9 fas feral da coagulacao. Englobaram-se ent4o sob a ry, frien de coagulacao os mais variados fendmenos, ve Rfieados com os mais variados produtos de origen animal: estuda-se a coagula¢ao do leite, do sangue do fel e das gorduras. Estas t@m no esfriamento um Causa Sbvia, dai se colocar 0 congelamento da agi, no rol das coagulacdes. Ao se desviar da coagulacag para o congelamento, fazem-se vagas referéncias q fim certo sal que tem a virtude de congelar a Agua, o, bleos, o vinho, a cerveja, etc. Trata-se de um sal que teria sido mencionado por Glauber e, que portanto poderia ser aceito independentemente da experitn. cia. cient ‘As abordagens que se fazem em torno da coagu. lagdo carecem do ‘‘sentido do problema”. A questo adquire amplas dimensdes, chegando-se mesmo a propor explica¢des cosmogénicas. “*As Aguas s40 levadas a se coagularem com outras matérias ¢ a se reunirem em um corpo s6- lido... Essa disposicao da agua para o s6lido, nos observamos ainda na espuma excitada pelo mo- vimento apenas. A espuma é muito mais fluida do que a Agua, pois nés podemos pegé-la com a mao... O movimento apenas, muda portanto, a gua em corpo s6lido."* (27) Outro conceito que se presta ao estudo do obsta- culo representado pelo conhecimento geral é 0 de fermentacao. Para um espirito pré-cientifico, a fer- ‘mentagdo consiste em um arranjo, uma nova combi- nagao das partes de um corpo, apos uma excitacio interna. Assim ocorre nos reinos animal ¢ vegetal. As experiéncias que se fazem para obter a fer- mentagdo acabam por associé-la a digestdo, pois © movimento no estOmago acredita-se ser decorrente do calor, dos restos do tltimo repasto e da virtude ‘fermentativa”” da saliva e do suco gastrico. Como ocorre a fermentacao acida do leite no estémago, pode-se acelerar a digestao. Sendo esta essencialmer- teum movimento, aconselham-se exercicios as crit gas durante as mamas. . Se a fermentacdo & uma decorréncia do move mento, a ““coesao"” é um fendmeno inverso. Entio,? ado quimica do anidrido carbdnico (ar fixo) sobre* = bea faz esta retornar a seu ‘principio cime te”, ““E muito agradavel de se verem as particu las de cal, que dois ou trés minutos aparentavam star invisiveis, e dissolvidas na Agua, correrem Juntas, se precipitarem ao fundo, e voltarem 20 Seu primeiro estado de insolubilidade, no ™°- rome. due elas estavam saturadas'de ar Os fendmenos oscil is polos 40 3 f scilam entre dois polos: 4°. vimento e liberdade, ao repouso e coesdo- 0 davel”” é a confirmacao facil de uma hipdtese. Como a fermentagao é um fendmeno primeiro, a explicacao dos demais sera dele derivado. A um’ espitito pre. cientifico, classificar os demais fendmenos em rela. ¢fio a fermentaco corresponde pois a conhect los, “Como hi muitos graus de movimento, po- de j& haver miltiplos graus de fermentacto, designam-se-lhes comumente por seu registro ‘com 0 sentido do gosto e do olfato. Assim, pode se dizer: uma fermentacdo acerba, austera, ack, da, alcalina, vinhosa, acetosa, aromatica, fétida, adstringente, etc."” (18) Portanto, quando se examinam as generalidades pré- cientificas em torno da fermentacai, verifica-se que estas nenhuma contribuigdo trouxeram ao nascimen. to da técnica pasteuriana. O pensamento cientifico moderno procura o fermento especifico, objetivo, ¢ nao a fermentacdo universal. Um conhecimento ge- ral corre o risco de se converter em um conhecimento extremamente vago. IV — A esponja, como obstaculo verbal Para um espirito pré-cientifico, as vezes uma nica palavra pode se converter em uma explicacao suficiente. Tal € 0 caso da esponja, cuja func&o é por demais obvia. Assim, valendo-se da palavra “espon- ie”, acredita-se explicar a compressibilidade do ar. Este € muito mais “‘esponjoso”” do que o algodao, a Ie mesmo a propria esponja, uma vez que pode ser altamente comprimida, ou consideravelmente rare- feita. Como o ar apresenta a mesma estrutura dos ‘corpos esponjosos, cle pode assimilar agua, deixan- do assim de se tornar compressivel, 0 que alias tam- bém acontece com a esponja. Tudo ocorre porque o ‘ar é formado por grdos, nos quais a Agua pode pene- rar. Quando se pretendeu explicar a eletricidade, também se utilizou a imagem da esponja. Esta absor- vveré a Agua lentamente, caso nao houver atraeao mi- ‘ta, mas se as duas partes se atrairem, nao haveré forca que consiga separa-las. finalmente, a absorc&o seria muito répida, se ‘em lugar de atrago houvesse entre as partes da ‘4gua uma repulsdo mitua que concordasse com atraclo da esponja. E esse precisamente 0 caso ‘ém que se encontram a matéria elétrica e a matt- tiacomum.’" (8) A passagem da luz através dos vidros sera com- Preendida se soubermos que estes so feitos de ‘‘es- Ponjas de luz’’, Da mesma maneira, explica-se 0 es- mento de um corpo quente, submerso no ar ou na ua: 0 ar ¢ a Agua so como esponjas que absorvem O fluido igneo que escapa do corpo quente. “O gelo, sendo uma esponja de agua espessa € ida pela retirada do fogo, tem a virtude de re- facilmente tudo aquilo que se Ihe apresen- as) Metéforas seduzem a razio. Um espirito cles: vale-se da analogia depois do estabelecimen teoria, ao passo que o espirito pré-cientifico o faz 4ntes. Para substitui-lo, é necessario ser iconoclasta. 21 V — Conhecimento unitario e pragmatico Se as generalidades podem conduzir a caminhos Perigosos, a unidade constitui, para um espirito pre cientifico, um principio aleancado sem maiores es. forgos. Como a Natureza € Gnica, tudo o que expli- car 0 grande deve explicar 0 pequeno e vice-versa. Por outro lado, a predisposic&o as analogias leva a uma espécie de tridngulo universal, cujos vértices Céu, Terra e Homem apresentam estreitas corres- Pondéncias. Assim, as afinidades que se acreditam existirem entre astros, metais ¢ partes do corpo hu mano induzem ao tratamento de enfermidades se- gundo relacdes existentes entre 0 orgdo afetado, 0 metal eo planeta que thes € correspondente. O gato Bosta muito da erva valeriana, Na conjungao de Sa- turno e Lua, — astros que ao gato correspondem, — Teunem-se todos os gatos no lugar dessa erva. Parece claro ent&o que o gato possui as mesmas virtudes da valeriana, podendo mesmo substitui-la. “Ha pessoas que afirmam ser este animal venenoso, ¢ que seu veneno esta no pelo e na ca- beea, porque esses espiritos animais que crescem em Lua cheia e diminuem em Lua nova atacam unicamente em Lua cheia, saindo de seus olhos ara comunicar 0 veneno,”" (9) A tendéncia em se encontrar utilidade na Natu- reza harménica ¢ tutelar conduz a pragmatismo exa- gerado, a extrapolacdes despropositadas. Assim, a comunicaco das crisalidas com o exterior, feita através da transpiracdo, permite que seu processo vi- tal nfo se interrompa. Se uma crisalida for imper- meabilizada, seu desenvolvimento ser retardado ou detido. Ora, os homens também poderiam se conser- var por mais tempo, aplicando-se-Ihes algum verniz, como antigamente faziam os atletas. Um racionalismo pragmitico ndo concebe a idéia de um fendmeno inatil. Um ima tera que ter uma grande utilidade, por exemplo, a virtude de cu- rar enfermidades. “Eu pergunto ainda a todo fisico sincero, se ele esta inteiramente convencido de que essa forca ‘magnética, to universal, tao variada, tio espan- tosa ¢ t4o admirAvel, foi produzida pelo Criador apenas para dirigir as agulhas imantadas, que to- davia permaneceram muito tempo desconhecidas 0 género humano.” (26) Os trovées sao itteis porque fertilizam as terras mais dridas; € gracas aos cometas que se renova a umidade do globo terrestre. Admitir algo realmente indtil na natureza seria cometer 0 equivoco imper- dodvel de admitir uma formagio ocorrendo ao aca- so. Para um espirito pré-cientifico, verdade e utilida- de esto sempre associadas. Impossivel conceber ex- periéncias que possam colocé-las em conflito. VI — 0 obstaculo substancialista Um espirito pré-cientifico conhece um objeto se- gundo o papel por este desempenhado. As substan- cias no possuem propriedades, mas apenas qualidades, muitas vezes ocultas ¢ intimas. Parado- xalmente, um exame do mito do interior ¢ da profun- didade nos mostra que este nao vai além de uma im- presso superficial. ea ‘A casca das frvores & menos preciosa 20,200 7 madeira que ela protege; as pedras sto mals Cr) ge Seu centro; a frialdade que envolve @ SuPer eg. im corpo serve para impedir a dissipacdo °° 2°72" Tor. Mais do que possuir um interior, um interior. Para o alquimista Que abre uma substancia no co ra. A troca entre inter Ocorrer. Tal ¢ 0 caso do a2 dissolver 0 enxofre e de trocar sew int rior. Ou ainda: “0 duplo corrosivo retornou total: oe titatre, comvertendo 0 steror em exetot, TBrmandove adequado, nfo apenas para debsat Sorta, mas tambern..- pela virtude deste €OF fosivo alma doce do cabre cgnvereu-seem Pr tame, como seo fizesse através de um meio viv fleantéeresvusctador." (16) ‘A afirmagio de uma qualidade oculta ou intima trava tanto © progresso do pensamento cientificoy quanto a substancializacdo de uma qualidade ime- diata, captada através de uma intuicao directa. sim, a “‘substancia” eletricidade, ao atravessar Cor pos que possuem as mais variadas propriedades, fi- cara naturalmente impregnada das substancias Por ela atravessadas: 0 leite, 0 vinho, o vinagre ou a cer- veja, quando examinados por espiritos pré- cientificos, produzem centelhas diferentes, quanto & cor ea acidez. Falta po , aquela orientacdo abstrata e mate- mética que ser mais tarde introduzida por Ohm, com 0 conceito de resistencia. Ainda que se veja nele certa metéfora, chega-se a lei que vai ao “nd” do conceito. Ohm representa a supremacia de um co- nhecimento abstrato e cientifico, sobre um conheci- mento basico e intuitivo. Para um espirito pré-cientifico, o fogo elétrico, por ser substancial, participa da substncia de onde ele procede. “A luz que sai dos corpos friccionados € mais ou ‘menos viva, segundo a natureza desses corpos; a do diamante, das pedras preciosas, do vidro, etc., € mais branca e mais viva, tem muito mais brilho, do que aquela que sai do Ambar, do enxo- fre, do lacre, das matérias resinosas ou da seda.”” Cy As idéias menos precisas sdo aquelas que neces- sitam de maior namero de palavras para expressa- las, Dai a educac&o substancialista propor inimeros adietivos para um dnico substantivo, Para que um medicament seja eficiente, & necessario que se Ihe atribuam numerosas virtudes. A raiz do cardo-santo ossu 17 propriedades farmactutcas. Assim sendo, nao surpreende qui te botitrio seteentista devesse conhecer anne riadas plantas virtuosas, a fim de utilizé-las em exc, emplastros ¢ unguentos, Para a cura de aninmric we nenosos deve-se usar um medicamento que reine maior ndmero possivel de substancias vittnore 4c gumas teringas chegam a ter cerca de 150 ineradi , adicionados sem se levarem em conta arene ges, uma vez que o importante € a preaves roPoT tancias eficazes, Sbresenca de subs. “Segundo os e: stat brieagao es eos SSRIUIOS de La Rochelle, ata. } assim como aquela das gran. 22 Jes nas que se combinam uma infinj. *g0es Maevia ser feita por todos os mes. ‘Sbtido, repartido entre eles.» des confect jade de droga: sete e produto @s) o realismo do olfato & mais convincenteg, orealtsmo da vista. Ao evocar, de imediatg o reallpstancial, © aroma constitui um p tude to, pois € a realidade que mais sens muaiquer manipulagfo. Cada planta ou g aussul sua propria espécie de vapor, to Pottifesta apenas por set odOr, Ou Por se mir alguns efeitos que Ihe sAo préprios. Enquayys Pot anor for puro, ele terd excessiva mobilidage SE pando, misturando-se 80 ar e retornands aq't® Capmum de todos 0s corpos volateis, 0, lo este Oder int ‘biliza = ada ani Sutil que *U sabor, s«gntretanto, ele conserva sua propria natu. Tnela da voltas até tornar a cair com a ne. TE245 granizo, a chuva ou 0 orvalho; entio ele re. Bisse a0 seio da terra, fecunda-a com sua se. areste prolifica, mescla-se com o8 seus fluidos Bara se converter em sumo de algum animal oy de alguma planta..."" (1) rea, ‘A exemplo do que ocorreu com 0 odor, 0 sabe, também permitiu que se levantassem falsos probi, mas. E como as sensag6es do gosto ligam-se aos at butos mais profundos das substancias, passa a con, tituir sério enigma um sal ‘‘andmalo”’, pois tem og. bor doce, embora seus componentes sejam excessivs mente salgados ou azedos. A soluc&o conciliatory para a questdo no tarda: trata-se de um sal formats por cristais doces de um sal comum, preparado con vinagre de mel. Como as substancias de maior valor se encon. tram em lugares de acesso mais dificil, compreende. se a importancia das destilagdes repetidas, a fim dt pacientemente se eliminar 0 indesejavel. E através ds evaporacio do supérfluo que se obém o sal, matéria essencial, ‘‘o intimo do intimo’ “Assim como no grande Mundo a terra ¢ 0 Ima, a atragdo de todas as influéncias celestes.,. da 1esma forma o sal que & esta terra virgem, 0 centro de todas as coisas, ¢ o {ma de tudo o que pode conservar a vida do microcosmo.”? (12) As mais extravagantes fantasias individuals 2 contram guarida em experiéncias concretas, reali das sem esforco de abstrac&o. As virtudes mals mi teriosas da substncia exercem fascinio ¢ estimule® as mais estranhas analogias ¢ metaforas. VII — 0 realismo, como obstaculo epistemolégico Ao tomar um objeto como um bem pessoll Tealista ingénuo satisfaz um prazer avaro. O di de possuir pedras preciosas conduz a domi, alheios a sua valorizagao inicial, sobretud? ™ macia. Com efeito, os tratados de medicina 4° © lo XVIII atribuem as ‘“‘matérias preciosas’’ * jus excelsas virtudes. Assim, acredita-se que gar detém a hemorragia, as disenterias ¢ 0 fU%0 ge Toidal. Caso se objetasse que os fragmentos © ralda ndo podiam ser dissolvidos pela levedU ait tOmago € que uma vez expelidos eles n40 #70 js? vam modificacdes, argumentava-se Ue la se acender como 0 enxofre, exalando en- ‘tho sua cor verde e ficando descolorida, como um cristal. Assim sendo, os mesmos resultados obtide, pelo fogo poderiam ser alcancados pela lina cstome: cal. “8 ainda que a substncia cristina destas edras nfo se dissolva, sua porgdo sulfurosa ¢ dima vez desprendida, pode aiuar sobre os Hqui, os do.corpo humano.”” (9) Ao receitar um medicamento que contém esme- ralda, 0 médico concorda com o espirito do enfermo. Para este, o brilho suave e verde da esmeralda tem uma virtude que se confunde com seu valor comer, cial. Como se acredita que 0 topizio diminui a me- lancolia ¢ que fortifica 0 coracao eo Animo, além de deter as hemorragias, passa-se a adicionar essa pedra preciosa ao jacinto. Trata-se pois de um medicamen. to bivalente, pois tem aplicacdes em males psicologi- cos fisicos. Alias, o espirito pré-cientifico acredita que as pedras preciosas atuam simultaneamente so- breo corac&o ¢ 0 espirito. O mesmo se pode dizer do ‘ouro que também fortifica 0 coracdo e alegra a alma, pois possui um enxofre que por ser incorruptivel ao se misturar com 0 sangue passa a preserva-lo, reani- mando assim a natureza humana. A atracfio exercida pelo ouro acaba por se con- verter em uma atracéo material. Da mesma forma que um im&, 0 ouro atrai os coracées, pelo seu brilho e resplandecéncia. Por outro lado, 0 Sol e 0 ouro possuem afinidades e forca de atraco mitua, pois 0 ouro procede de um ima celeste, “‘Chega-se mesmo a afirmar que 0 ouro é “como um Globo cheio de todas as virtudes ce- Iestes, que influi sobre todos os metais, como 0 coragdo da vida a todas partes do corpo. Ele é es- timado pela Medicina Universal pela simpatia ue tem com o homem € 0 Sol e pelo miituo amor € virtude atrativa que se encontram entre eles, fanto que 0 Ouro um poderoso mediador que liga a virtude do Sol ao homem..."” (13) Como se acredita que 0 fogo ¢ 0 brilho das pe- dras preciosas procedem da tintura dos metais, spera-se poder extrair desses mesmos metais os Principios juminosos, sobretudo aqueles encontrados No ouro e na prata. Entflo, sendo o ouro incom- bustivel e capaz de ignicdo, espera-se extrair dele um Tiquido que nao se consumiria, ao produzir luz ¢ ca- lot. Associando-se, pois, a luz perpétua das pedras reciosas & inalterabilidade do ouro, chegar-se-ia a limpada eterna... Reconhecer que 0 ouro nao é uma riqueza que se Presta ao coraco ¢ ao Animo exige uma atividade in- al alheia a toda valorizagao inconsciente. Re- Conhecer que 0 medicamento caro ndo € mais eficaz © avaro burgués do que ao principe prodigo, INE saerificar sua jdia nado constitui oferecer em ho- Scausto sua prépria substancia, constitui um estdgio ainda nao alcancado por um realista ingénuo. Neste, C.valor atua como a mais pérfida das qualidades Scultas, Vin — Oanimismo A fim de que as, jas fisic jissem se desem) ciéncias fisicas consegui: baracar do animismo, houve necessidade de se 23 superar um verdadeiro fetichismo da vida, ainda per sistente no século XVIII. De imediato, o pensamento animista busca determinar a importncia de cada um dos trés reinos da natureza, através de analogias compativeis com um plano que se imagina natural Para alguns, 0s minerais possuem um tecido mais apertado © mais tenaz do que os vegatais e os ani. mais, portanto mais dificil determinar-Ihes os principios; para outros, a grande preocupacao é a forma.como se processa a passagem de um reino a outro. A crenga de uma conexdo entre os trés reinos leva a se admitir que se pode provar a aproximagao da natureza viva a natureza inanimada, através do ima, pois a unido da pedra (ima) com o metal (principio de vida) demonstra a presenca de energia. Da mesma maneira, 0 polipo de agua doce serve de conexdo entre vegetais e animais. “Como o pélipo, o ima € suscetivel de ser cortado paralelamente ou transversalmente se- undo seu cixo e cada nova parte vem a ser um ima... E a natureza ativa que trabalha em silén- clo ¢ de maneira invisivel.”” (2) Para um espirito pré-cientifico, o corpo humano ossui os trés reinos da natureza. Sendo a vegetac&o um objeto venerado pelo inconsciente — pois evoca um devir inexorével — e como 0 que brota sugere ve- getal, propde-se que a este reino pertencam as unhas, 0s cabelos ¢ os pélos. Como se acredita no carater universal da vida, chega-se a admitir que o feto no é 9 produto de seus pais, mas de todas as forcas da na- tureza, que participam em sua formacao. A palavra vida encerra em si a maxima valoriza- 40, pois é a matéria viva que anima todo o Univer- SO, 08 astros, as plantas, os coragdes, os germens etc. Conceder vida aos minerais, através de uma intuicfo animista, constitui um comportamento compativel com um espirito pré-cientifico. Assim, os metais pa- decem de enfermidades decorrentes de suas formas, dos astros e da imperfei¢ao da Matriz. Uma vez ex- traido da terra, 0 metal deixa de receber alimento, podendo entao ser comparado a um homem decrépi- to. Pode ocorrer também 0 caso dos metais perece- rem, em virtude de ares nefastos. Como a ferrugem sugere uma imperfeigao e co- mo se admitem doencas dos metais, parece claro que um imé enferrujado estara doente. “A ferrugem & uma doenca a qual 0 ferro esta sujeito... O ima perde sua virtude magnética quando ele se deixa corroer pela ferrugem. Encontram-se imas que recuperaram uma parte de suas forgas, quando se Ihes retiraram a su- perficie atacada por essa doenca.”” (3) Parece dbvio ent&o que os metais também nas- em. E por essa raz&o que existem minas inesgotd- veis, assim como também ja se encontraram em cer- tas profundidades, matérias metAlicas ainda em for- macfio ou ndo terminadas, sobretudo em virtude da entrada de ar, pois este ataca a semente metilica, in- terrompendo assim a acdo da natureza. Inicialmente aplicado ao exame de vegetais ¢ animais, 0 microscpio associou-se a idéia da desco- berta da estrutura intima dos seres vivos. Uma vez aplicado no exame de uma estrutura mineral, o mi- croscépio teve, para um espirito pré-cientifico, que fornecer detalhes de uma forma de vida um tanto lui-se que os minerais possu' 's faculdades indispensaveis e loco- Pleo poe ey Jimentos, mas isso 2 mais. O alimento é que ¥ ao mineral, o que 0 ide tifica como um ser privilegiado. ‘ge thes faltar alimento, eles sofrem ¢ s¢ tornam languidos ¢ nfo se pode duvidar que eles experimentam o sentimento doloroso da fome ¢ © prazer de satisfazé-la... Se (0 alimento) estiver misturado, eles sabem extrair aquilo que thes & conveniente e rejeitar as partes viciadas... Enfim, les possuem, como os outros animais, Oreos i ternos necessarios para filtrar, destilar, preparar e conduzit 0 alimento a todos os pontos de sua substncia.” (22) Por ser mais natural, a imagem animista ¢ mais convincente. Mas, por exprimir apenas um desejo, ela traz uma falsa clareza. IX — O mito da digestao Para um espirito pré-cientifico, a digestdo cor- responde a uma forma de posse. A fome procede de um estémago vigoroso, que deve possuir o apetite, antes de receber o alimento. Tal valorizacao concede a0 est6mago um papel primordial, ja tendo sido mes- mo apontado como o rei das visceras. Em sua miss4o de triturar os alimentos, ele o faz maravilhosamente, pois tritura sem ruido, funde sem ser fogo ¢ dissolve sem ser corrosivo. As dimensdes do estémago, sua colocaeao, 2 espessura de suas paredes, 0s 6rgiios au- xiliares adjacentes, enfim, tudo esta organizado de forma a melhor permitir a conservacao de seu calor vital. Alids, a valorizacdo do calor estomacal leva & idéia de que 0 estOmago produz extratos de plantas como 0 fogo; que extrai do vinho um espirito que so- bea cabeca; que produz substancia que a quimica so- mente poderia obter com um fogo intenso. Recomendava-se, portanto, que a quimica se ins- truisse, através do estudo dos fendmenos da diges- tao. Assim, compreende-se porque a marmita de Pa- pin foi chamada de “‘digestor’’, pois estabeleceu-se entre ela e 0 estOmago estreita analogia, quando se verificou que ambos dissolvem alimentos. Em poucos minutos de fogo lento, a carne “reduz-se a uma polpa ou melhor, a um licor perfeito... Atribui-se esse efeito A exatidao com Gue essa maquina esté fechada; como ela ndo Petmite nem a entrada e nem a saida de ar, as sa cudidas ocasionadas pela diletacdo e oscilagdes do ar encerrado na carne, so uniformes e muito vigorosas”. (7) Como o8 alquimistas chegam a nutrir suas sub: tncias com pao c leite, € razodvel que as melhores li. ‘gas de aco sejam aquelas que, durante o processo de fundigéo, adicionaram-se ao ferro todas as graxas que possuem grande quantidade de principio infla. mavel, o qual serd transmitido ao ferro, Se os metais Recessitam um “‘alimento nutritive", eles também st&O sujeitos ao ataque de substancias i ts que os devoram, eee ‘ara alguns espiritos pré-cientificos, ‘ a Te vista como um vasto aparelho digestivo, Ela ae a os vegetais e talvez também parg ay carominimais. E a terra que prepara a matéria mia siy'da qual as plantas © os frutos S40 produree Chegarse mesmo a admitir que todo 0 universa trip neGigere. A Lua ¢ 05 astros, a0 pressionarem o .” agitam-no, tornando-o assim mais fine © ar pressiona a Agua, que por sua has da terra, facilitando assim « estomago par: pisam-no € mais mole. pressiona as entranl ‘digestOes minerai “+A ago de triturag&o parece talvez a mais dificil de se conceber nas digestOes que se fazem hnos minerais, mas essas digestOes so vegetacdes, cacabamos de ver que as vegetacdes se fazem por meio da trituragao. Por que, entdo, procurar di ferengas nas maneiras que a natureza emprega em produgdes semelhantes?”"(24) A idéia de uma terra nutritiva sugere uma terry maternal, refigio do homem em busca do mistérig da vida. E tanto na terra como em nosso corpo, tudo o que é profundo é vital. X — Libido © problema do nascimento constitui para 4 crianga um mistério que deve ser por ela soluciona. do, um despertar do espirito aquela direco que seus pais desejam ocultar. A libido & misteriosa e, recipro. camente, 0 misterioso desperta a libido. ‘Ante um novo adepto, — como se fora um pai ante um filho, — 0 alguimista guarda mistérios. Os simbolos alquimicos, ao conduzirem a uma conver- géncia de mistérios, associa ouro e vida, posse e de+ vir, tudo em uma mesma retorta. As demoradas ope- rages para a obtencao da pedra filosofal constituem uma paciéncia valorizada, um ‘‘tecido de Penélope”. A solidao renitente de quem vigia os fornos alquimi- cos faz dessa arte um vicio secreto: das tentacdes se- xuais a0 onanismo o passo é curto. Assim, a pedra é tida como superior & uniao do ouro macho e do mer- curio fémea, porque ela gravida-se por si propria, nasce de si mesma. Para o alquimista, o conviver com os mistérios da ciéncia é melhor do que ser mal casado. © mercitrio dos alquimistas sofre do complexo de Edipo. Ele & mais velho do que sua mae que ¢ a gua, porque ele esta mais avancado na idade da perfeicdo (...) E ele quem reconhece seu pai e sua mie, banindo sua antiga amizade, € ele quem sorta a cabera do Rei. para conquistar seu rei Os resultados observados nas operagdes indi- cam, via de regra, que uma substncia, ao ser fecu" dada por outra, dard origem a uma terceira; que ° Ouro macho deposita seu esperma no ouro branco fe- minino, que desempenha o papel de semente. E ne gessario casar o Sol com a Lua, a mae com 0 filho, ° itmao com a irma. Mas as substancias terdo que 5 casadas segundo suas afinidades sexuais, pois 5° ‘mente assim a natureza cumprird seu dever. Dai, o°talmente, o alquimista é um homem velho: ai, © rejuvenescimento constituir um dos temas ©? muns da alquimia, Mais importante do que vende? clixir da juventude & a esperanga de obté-la. A fim # Conservarem suas virtudes rejuvenescedoras, 2 SU? 24 tancias alquimicas devem ter suas bodas em tempo certo: primavera (getminac&o) ou outono (frutifica- gfio). Associar as duas estacdes no mesmo elixir € 0 que se consegue através da “‘esmeralda dos fildso- fos”. Por outro lado, toda observacao sugere o tema rejuvenescimento. Se as viboras trocam de pele todo © ano, € porque possuem virtudes renovadoras. Que las fossem entdo usadas como rejuvenescedoras. Nos textos setecentistas que tratam de eletricida- de, também encontramos certas referéncias ao sexo. Supde-se que o choque cletrizante nfo pode passar através de um eunuco; recomendam-se as mulheres estéreis que se submetam a um processo de eletriza- fo, a fim de que possam conceber; homens volup- tuosos, a fim de melhor poderem realizar seus propo. sitos, deixavam-se eletrizar; enfim, associam-se os fendmenos elétricos as diferencas entre pessoas cas- tase aquelas que desmedidamente se entregam aos prazeres. 0 fluido elétrico & para os vegetais, 0 que 0 amor é para as plantas; entretanto, com a diferenca de que para as plantas ele & apenas a causa de uma existéncia tranquila e placida.”” a Na biologia pré-cientifica, o germe, a semente e ‘0 gréo exprimem uma concentrag&o de pureza e cas- tidade. Eles constituem mais uma virtude do que uma estrutura. XI— O conhecimento quantitative Ao se admitirem falhas em um conhecimento qualitativo, deve-se também considerar que um co- nhecimento quantitativo imediato @ subjetivo, pois nele interferem as mais bizarras e fantasiosas deter- minagdes. As certezas prematuras sao inadequadas. Por outro lado, j4 se disse intimeras vezes que a tevoluedo copernicana colocou o homem ante uma nova escala do mundo, enquanto que a utilizacdo do microsc6pio, nos séculos XVII e XVIII, retomou 0 problema, porém no outro extremo dos fendmenos. Mas 0 problema filoséfico perdurou: levar 0 homem: @renunciar 4s magnitudes comuns ¢ considerar a re- latividade de suas medidas, ante as deficiéncias dos métodos empregados. Ao se pretender objetividade cientifica, — Olvidando-se porém a imprecisdo do método de me- idas, — chega-se a uma imprecisdo numérica que se assemelha a um ‘‘motim de cifras’’. Antes de pensar 20 objeto de sua medida, um espirito cientifico con- eebe seu método de medida. Ainda hoje, os espiritos desavisados acreditam ue medidas de diametros tomados com fita métrica omum podem nos levar as dimens6es precisas da circunferéncia, desde que se use 0 valor esteriotipado den = 3,1416. Nao surpreende ento que no século XVIII se propde ter a Terra se desprendido do Sol ha 74.832 anos e que dentro de 93.291 anos ficaria to fria, que a vida nela no seria possivel. _O empenho em se encontrar a preciso leva as ais absurdas proposigdes geométricas, Nao se tem Teceio, por exemplo, em admitir para um fendmeno Aue nao pode ser medido, o Angulo preciso de 22°,5, Uma vez que este é a metade de 45°. 25 Algumas moscas ‘‘levantam v6o dirigindo: se contra o vento mediante um mecanismo mais fou menos semelhante a0 dos ‘papagaios-de papel’, que se elevam formando um angulo com 44 diregao do vento, creio, de vinte e dois graus © meio.""(23) Quase que se pode determinar as diferentes ida- des de uma ciéncia, conhecendo-se o estagio de seus instrumentos de medida: escala de precisao, niimero de decimais ¢ instrumentos especificos. Um breve bosquejo pela historia dos termometros mostrar-nos- ia que estes eram, no principio, extremamente impre cisos e variaveis em suas escalas, dai a prodigiosa multiplicidade de instrumentos que se faziam para medir 0 calor Como o movimento produz fogo, parece razoa- vel que a agua fria agitada violentamente tera que se aquecer, mas supée-se que isso n&o aconteca; da mesma forma, os ventos violentos do Norte nao pro- duzem calor. A doutrina da sensibilidade experimen- tal, sabe-se, & uma concepcao que nao estava ao al- to pré-cientifico. Ao postular © superdeterminismo, 0 espirito ientifico admite interdependéncia entre todas as variaveis possiveis ¢ impossiveis em um fendmeno. Nao se faz uma investigacdo para cada caso, mas admite-se uma reciprocidade na variacdo de sensibili- dades. © corpo humano possui fluido.elétrico e ca- lor. Como nao se pode medir a quantidade de fluido elétrico, apela-se para o termémetro e chega-se facil- mente a relacao entre eletricidade e calor. “Sendo a matéria clétrica considerada como fogo, sua influéncia nos érgios dos corpos vivos deve causar calor; a maior ou menor elevagao do termémetro aplicado ao pé indicara entio a quantidade de fluido elétrico do corpo huma- no.""(21) Quando se investigam as causas que provocam revolucdes nos corpos celestes, conclui-se que os ve- getais de Merciirio sao de um verde mais escuro que 0s de Venus; vive-se mais em Vénus do que na Terra; a vida em Marte tem apenas um terco da nossa; em Saturno ha cidades que contam com dez a vinte mi- Ihdes de habitantes. Antes de ajudar a matematizacéo da experién- cia, as imagens familiares travam-na, a refracio da luz dispensa “‘exigéncias matematicas””, pois pode ser comparada a um prego que, ao ser cravado, enverga-se. A refragao dos raios em um prisma, pro- posta por Newton, é assim explicada por um espirito pré-cientifico: trata-se da mesma coisa que acontece- ria a um homem que, apos atravessar uma multidao de criangas, encontrasse obliquamente ao sair dela, uma multidao de homens vigorosos. Por certo, esse homem seria desviado de seu caminho. Um espirito pré-cientifico tinha que condenar a Fisica newtoniana, pois a Fisica sempre fora mais simples ¢ mais facil de se compreender do que a Geo- metria. Conhecia-se sua terminologia e seus objetos. Faziam-se experiéncias com a luz, 0 calor, 0 ar, a 4gua etc. Em troca, a Geometria sempre fora abstra- tae misteriosa em seu objeto e em seu proprio modo de ser. Eis que Newton propde um sistema tido como excessivamente matematico. as cores do prisma nada mais sto além de cores fanthsticas, speculate, Jdeais, excessivamente esmeradas para @.Me, para a vista... Nada medindo além de Anstey Newton pretendeu chegar ao conheciment® [ie sofico das cores (..)€ verossimil que Newton °o tnha passado toda sua vida estudando cores, jamais ver a sala de trabalho de um pintor 08 £¢ iim tintureiro, nem examinar as proprias cores das flores, das conchas, da natureza"”(4) Por outro lado, as vezes, calcu: nifico, , ea ma de fugit ‘a uma for Para um espirito pré lar um fendmeno correspondia de sua explicacao. XII — Conclusio Através da exposi¢ao dos ob: logicos, verifica-se que 0 espirito se retificando erros. Dai.a proposivao do seguinte postulado: ""O objeto 180 p° nado de imediato como um ‘objetivo’ imedis utras palavras, uma marcha ao objeto nfo € stéculos epistemo- ‘cientifico formou- bachelardiana ode ser desis 0. Em inicial- -otiva'’. E necessario entio mente objet," fuptura. entre 0. conhs uns Se conneciments lentifica ensivel © 2 cg uma curiosidade indetermy, Nao bee a um estéio cientifico, ant aus fas dingo pode te fandamen ment ego sensiel estimulado por brag conhermed Syncrbidas. Aim como omg he ¢ ati coy segredos em plena 1s, mayo) seus te corre @ sua difragdo, ¢ yn8 Pog, Fa ocroseOpio mais um proloesSy 10 do que de nossa visag. "2m, oss0 eePConhecimento objetivo sempre scar am flsxo ¢ refluxe do empirsm gps core Usa alternativa € Uma Necestdade gg at nals gicologico. Aderit @ esse movimenty ee mismo, prvi renincia a intelectualidage peght ser indie erioso que se abandonem as imagen ritas, a fim de se manter em estado de objetiva, fay, rites do intelectual, €m que pese sua carga oo passade imfomado como passado. O penne aeifico deve, pois, nega-l0. eg x si hesine que se 26 Referéncias (01) — Boerhaave, Herman - 1752 — Eléments de Chymie, trad. Leide, t. 1, p. 87. Apud G ton BACHELARD, La Formation de L’Es- prit Scientifique, Huitieme éditon ~ Paris, Vein, 1972, p. 25. i BRUNO (DE) - 1785 — Recherches sur ta diretion du fluide magnétique, Amsterdam, p. 15. Apud BACHELARD, op. cit. p. 152. Ibid., p. 123. Apud BACHERLARD, op. cit., p. 156. CASTEL, R.P. - 1740 — L’Optique des coulers, Paris, p. 452. Apud BACHER- LARD, op. cit. p. 230. D*** - 1701 — Rares expériences sur esprit minéral pour la préparation et la transmuta- tion de corps meétalliques, Paris, 2e. partie, p. 61. Apud BACHELARD, op. cit., p. 187. Encyclopédie (art. Feu életrique). Apud BA- CHERLARD, op. cit., p. 106. Idem (art. Digesteur). Apud BACHER- LARD, op. cit., p. 173. FRANKLIN, Benjamin - 1752 - Expériences et observations sur I’électricité, communi- quées des plusieurs Lettres a P. Collinson de la Soc. Roy. de Londres, trad., Paris, p. 135. Apud BACHELARD, op. cit., p. 76. FAYOL, Jean Baptiste - 1672 - L’harmonie céleste, Paris, p. 292. Apud BACHELARD, op. cit., p. 89. (10) — GEOFROY - 1743 — Traité de la matiére médicale ou de Vhistorie des vertus, du choix et de I’usage des remédes, Paris, t. 1, p. 157. Apud BACHERLARD, op. cit., p. 134. LA CEPEDE, Comte DE, ~ 1971 — Essai sur Vélectricité naturele et artificielle, 2 vol., Paris, t. II, p. 160. Apud BACHELARD, op. cit., p. 202. LOCQUES, Nicolas DE - 1664 — Les Ve tus magnétiques du sang. De son usage in- terne et externe pour ta guérison des maladies, Paris, p. 20. Apud BACHELARD, op. cit. pp. 120¢ 121. (13) — Idem - Rudiments de la philo nat., op. cit., tI, p. 127. Apud BACHELARD, op. cit., p. 141, (02) — (03) — (04) — (05) — (06) — (07) — (08) — 409) — ay — 2) — (4) — MACBRI trad. Pari opcit., p. 68 (15) — MANGIN, Abbé DE - 1749 - Question nou- velle et intéressant sur Uélectricité, Paris, p. 38. Apud BACHELARD, op. cit., p. 76. (16) — POLEMAN, Joachim - 1721 — Nouvelle tu- minére de Médicine du mistére du souffre des philosophes, trad., Rouen, p. 62, Apud BACHELARD,, op. cit., pp. 99 ¢ 100. (17) — PONCELET, Abbé - 1769 — La Nature dans la formation du Tonnere et la repro- duction des Etres vivants, pp. 133 a 155. Apud BACHELARD, op. cit., p. 25. (18) — Ibid. p. 94, Apud BACHELARD, op. cit. pp. 69 ¢ 70. (9) — PRIESTLEY - 1771 — Pélectricité, tad., 3 vol., Paris, t. 1, p. 181. Apud BACHELARD, op. cit., p. 31. (20) — RABIQUEAU, Charles - 1781 — Le micros- cope moderne pour débrouiller la nature par le filtre d’un nouvel alambic chymique, oir Von voit un nouveu méchanisme physique universel, Paris, p. 228. Apud. BACHE- LARD, op. cit., p. 28. (Ql) — RETZ - 1785 — Fragments sur Vélectricité du corps humain, Amsterdam, p. 3. Apud BACHELARD, op. cit., p. 219. (22) — ROBINET, J.B. - 1766 - De la nature, 3c. éd., 4 vol. Amsterdam. t. IV, p. 184. Apud BACHELARD, op. cit., p. 160. (23) — SAINT-PIERRE, Bernardin - 1791 - Etudes de la Nature, 4e. ed., 4 vol., Paris, t. 1, p. 4. Apud BACHELARD, op. cit., p. 215. (24) — S.N.A. - 1710 — Traité des dispenses du Caréme, Paris, t. Il, p. 135. Apud BACHE- LARD, op. cit., p. 177. (25) — SOENEN, Maurice - 1910 — La Pharmacie @ La Rochelle avant 1803, La Rochelle, p. 65. Apud BACHELARD, op. cit., p. 113. (26) — SWINDEN, J.-H. VAN - 1785 — Analogie de lélectricité et du magnétisme, 3 vols., La Haye, t. Il, p. 194. Apud BACHELARD, op. cit. p.92. (27) — WALLERIUS - 1780 — De Uorigine du Mond et de la Terre en particulier, trad., Varsovie, pp. 83 a 85. Apud BACHE- LARD, op. cit., p. 64. - 1166 — Essais d’expérience, p. 304. Apud BACHELARD, Histoire de 27

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