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IMPRESSAO E ACABAMENTO Donnelley - Cochrane Grafica Editora do Brasil Dados Internacionais de Cataloga¢ao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Aranha, Maria Liicia de Arruda Filosofando : introdugao a filosofia / Maria Lucia de Arruda Aranha, Maria Helena Pires Martins. -- 2. ed. rev. tual, -- Séo Paulo : Moderna, 1993. Bibliografia. 1. Filosofia 2. Filosofia — Introdugées I. Martins, Maria Helena Pires. II. Titulo. IIL Titulo : Introdugao 4 filosofia. 93-1477 CDD-101 indices para catalogo sistematico: 1. Filosofia : Introdugéo 101 Carirur0 38 ARTE COMO DEW DD PENSAMENTO Entender a idéia de uma obra de arte é mais como ter uma nova experiéncia do que como admitir uma nova proposigdo. (Suzanne Langer) 1. Arte é conhecimento intuitivo do mundo Assim como 0 mito e a ciéncia so mo- dos de organizagao da experiéncia humana — 0 primeiro baseado na emogao e o segundo na razio —, também a arte vai aparecer no mun- do humano como forma de organizagao, como modo de transformar a experiéncia vivida em objeto de conhecimento, desta vez através do sentimento (ver Capitulos 6 e 11). O entendimento do mundo, como ja vi- mos no caso do mito, nao se da somente por meio de conceitos logicamente organizados que, pelo fato de serem abstragées genéricas, estéo longe do dado sensorial, do momento vivido, Ele também pode se dar através da intuigéo', do conhecimento imediato da for- ma concreta e individual, que nio fala a ra- 240, mas ao sentimento e a imaginagao. E a arte 6 um caso privilegiado de en- tendimento intuitivo do mundo, tanto para 0. artista que cria obras concretas ¢ singulares quanto para o apreciador que se entrega a elas Para penetrar-Ihes o sentido. O verdadeiro artista intui a forma organizadora dos objetos ou eventos sobre os quais focaliza sua atengao. Ele vé, ou ouve, 0 “ntu O grito, de Edvard Munch, 1896, serigrafia. Obra expressionista, revela, no uso do branco e preto, na simplicidade dos tracos do desenho, nas vé- rias diregdes das linhas que compéem o fundo, na expressao do rosto e na posigao das mos, uma maneira de ver 0 mundo que pode ser com- preendida intuitiva e imediatamente. enquanto conhecimento imediato, pode ser empirica, quando diz respeito a um objeto do mundo; e racional, uando diz respeito 4 relagao imediata entre duas idéias, Toda intuigdo tem carter de descoberta, seja de um objeto, de urna Nova ia ou de um sentimento. (Ver Capitulo 3 — O que é conhecimento.) que esté por tras da aparéncia exterior do mundo. Por exemplo, no filme Amadeus, de Milos Forman (prémio Oscar de 1985), hi uma cena que mostra didaticamente esse pro- ccesso. A sogra de Mozart, emocionada e mui- to irvitada, conta ao compositor por que a fi- Iha dela o abandonou. Mozart, que a principio realmente procurava uma resposta para essa questa, lentamente deixa de prestar atengio Aas palavras para sintonizar com a melodia e rit- ‘mo do discurso. Ele ouve a musicalidade por trds do discurso inflamado e compe uma dria para A flauta magica. Assim, como todo ar ta, Mozart percebe, pelo poder seletivo e inter pretativo dos seus sentidos, formas que nao podem ser nomeadas, que nao podem ser redu- idas a um discurso verbal explicativo, pois, elas precisam ser sentidas, e no explicadas. A partir dessa intuigao, o artista nao cria mais c6: pias da natureza, mas, sim, sfmbolos dessa mesma natureza e da vida humana. Esses simbolos, portanto, nao slo enti- dades abstratas, no sio entes da razio. Ao contririo, sao obras de arte, objetos sensiveis, coneretos, individuais, que representam ana~ Jogicamente, ou seja, por semelhanca de for- ma, a experiéncia vital intuida pelo artista. Assim, a tela de Mondrian intitulada New York nao reproduz. figurativamente, iconica- mente, a cidade, mas representa analogica- mente a vivéncia do artista em relagdo a ela. E essa apreensio do conereto, do imediato, do vivido, € transportada para uma outra obra que, ela também, é um objeto concreto para o espectador. Assim, quando apreciamos uma obra de arte, fazemo-lo através dos nossos sen- tidos: visio, audigao, tato, cinestesia e, se a obra for ambiental, até o olfato. E a partir dessa percepedo sensivel que podemos intuir a vivéncia que o artista expressou em sua obra, uma visio nova, uma interpretagao nova da na- tureza e da vida. O artista atribui significados a0 mundo por meio da sua obra. O espectador esses significados nela depositados. Essa “it terpretacdo s6 é possivel em termos de intuiga0 ‘e niio de conceitos, em termos de forma sen: vel e nao de signos abstratos”, Podemos dizer, entio, que na obra de arte o importante n tema em si, mas o tratamento que se dé a0 2B. Cassier, Symbol, myth and culture, p. 175. tema, que o transforma em simbolo de valores de uma determinada época, A luz, acor, o volume, o peso, 0 espago, cenquanto dados sensiveis, ndo sd0 experimen tados da mesma maneira na vida do dia-a-dia e na arte. No cotidiano, usamos esses dados para construir, através do pensamento lgico, o nos- so conceito de mundo fisico. Em arte, esses ‘mesmos dados so usados para alargar o hori- zonte de nossa experiencia sensfvel. Por exem- plo, pelo uso incomum de cores ou sons, pela organizacao inusitada de um espago, pela tex- tura ou forma dada a um material, a nossa pr6- pria perspectiva da realidade alterada, O ar- tista ndo copia o que é; antes cria o que poderia ser e, com isso, abre as portas da imaginag? papel da imaginagao na arte B exatamente a imaginaglo que vai ser- vir de mediadora entre 0 vivido e o pensado, entre a presenga bruta do objeto e a represen- tacdo, entre a acolhida dada pelo corpo (os ‘tgs dos sentidos) a ordenagio do espirito (pensamento analégico). ‘A imaginacao, ao tornar o mundo pre- sente em imagens, nos faz pensar. Saltamos dessas imagens para outras semelhantes, fa- zendo uma sfntese criativa. O mundo imagi- nério assim criado no é irreal. F, antes, pré- real, isto é, antecede o real porque aponta suas possibilidades em vez de fix4-lo numa forma cristalizada. Assim, a imaginago alarga 0 campo do real percebido, preenchendo-o de ‘outros sentidos" estética, a imaginagao manifesta, ainda, 0 acordo entre a natureza € Co sujeito, numa espécie de comunhao cuja via de acesso € 0 sentimento. O sentimento aco- Ihe o objeto, reunindo as potencialidades do ‘eu numa imagem singular. E toda nossa perso- nalidade que est em jogo, ¢ o sentimento des- pertado nao € 0 sentimento de uma obra, mas de um mundo que se descortina em toda sta profundidade, no momento em que extraimos © objeto do seu contexto natural e 0 ligamos a ® Nao podemios esquecer da origem da palavra sentido, como partcfpio passado do verbo sentir O problema do sign ficado, portato, pasa pelo sentido, tanto do ponto de vista sensorial quanto do ponto de vista emo um horizonte interior. Este sentimento, por- tanto, “ndo é emogao, é conhecimento™. Estabelegamos as diferengas entre senti- mento e emogao. O termo emogao, etimologi- camente, refere-se a agitacao fisica ou psicolé- gica e é reservado para os niveis profundos de agitacdo. Ela rompe a estabilidade afetiva. As- sim, emogdo designa um estado psicolégico que envolve profunda agitagao afetiva. O sentimento, por outro lado, é uma rea- do cognitiva, de reconhecimento de certas es- truturas do mundo, cujos critérios nio so explicitados. E percepeio das tenses dirigidas, comunicadas e expressas pelos aspectos estati- cose dindmicos da forma, tamanho, tonalidade ou altura. Essas tensdes so tdo perceptiveis quanto 0 espago ou a quantidade. Podemos, entao, dizer que o sentimento esclarece 0 que motiva a emogio, na medida em que so essas tensGes percebidas que cau- sam a agitacdo psicolégica. A emogao é uma resposta, € uma ma- neira de lidarmos com o sentimento. A ale- gria expressa pelo riso, por exemplo, o modo pelo qual lidamos com o sentimento do cémi- co; o medo é uma resposta ao sentimento de ameaga. Assim, 0 sentimento € conhecimento porque esclarece 0 que motiva a emogao; esse conhecimento é sentimento porque é irrefleti- do e supde uma certa disponibilidade para acolher 0 afetivo, disponibilidade para a empatia, ou seja, sentir como se estivéssemos no lugar do outro. E preciso lembrar que sem- pre podemos nos negar a essa disponibilida- de, pois ela pressupde um certo engajamento no mundo: o objetivo nao é pensé-lo, nem agir sobre ele; é, t80-somente, senti-lo na sua pro- fundidade. O sentimento, na sua fungdo de conhe- meios materiais de produgao. Sao condigdes do pensar artistico, momentos do processo de criagdo e parte integrante e constituinte da sua expressiio. O projeto do artista condiciona o meio e 0 material, que, por sua vez, condicio- nam as técnicas e 0 estilo. Tudo isso reunido forma a linguagem da obra, sua marca incon- fundivel, seu significado sensivel. Em virtude dessa ligacdo indissoltivel entre significante e significado na obra de arte € que podemos di- zer que “o objeto estético é, em primeiro lu- gar, a apoteose do sensivel, e todo seu sentido é dado no sensivel”*. Assim, a obra de arte nao pode ser traduzida para outra linguagem. Quando contamos um filme a alguém (existe coisa mais chata?), ele perde a maior parte de seu significado, pois sua forma sensivel de imagem desapareceu. A obra de arte pode, quando muito, inspirar uma outra, e entao te- remos um filme a partir de um livro, uma mi- sica a partir de um quadro etc. Sao obras dife- rentes, no entanto. 2. A educagao em arte A educagdo em arte sé pode propor um caminho: o da convivéncia com as obras de arte. Aquelas que esto assim rotuladas em museus ¢ galerias, as que esto em pracas pi- blicas, as que estado em bancos, em reparticdes do governo, nas casas de amigos e conheci- dos. Também aquelas, anénimas. que encon- tramos as vezes numa vitrina, numa feira, nas mos de um artesiio. As que esto em alguns cinemas, teatros, na televisdo e no ridio. As que esto nas muas: certos edificios, casas. jar~ dins, timulos, Passamos por muitas delas, to- dos os dias, sem vé-las. Por isso, € preciso cimento, alcanga, para além da aparéncia do | | uma determinada intengo de procuri-las, de objeto, a expressdio. A expressio € 0 poderde | percebé-las. : : emitir signos e de exteriorizar uma interiori- Quanto mais ampla for essa convivén- dade, isto é, de manifestar 0 que 0 objeto € | cia com os tipos de arte, os estilos, as €pocas e para si. Mas essa expressio, em arte, ocorre os artistas, melhor. E sé através desse contato sempre através de um meio especifico. O ar- ———aberto e eclético que podemos afinar a nossa lista no escolhe o seu meio (video, pintura, sensibilidade para as nuances e sutilezas de danga ete.) como um meio material externoe | cada obra, sem querer impor-lhe o nosso gos- indiferente, Para ele, as palavras, as cores, as_|—_—=—‘t0. € OS nossos padrdes subjetivos, que sio linhas, as formas e desenhos marcados historicamente pela época e pelo dos diversos instrumentos nao sio somente lugar em que vivemos, bem como pela classe *M. Dufrenne, Phénoménologie de Vexpérience esthétique, p. 471. °M. Dufrenne. Phénoménologie de lexpérience esthétique, p. 42: social a que pertencemos. “Lembraremos, ain- da, que é na freqiientagio da obra que a inter- subjetividade pode se dar. E através dela que podemos ‘encontrar’ com o autor, sua época e também com nossos semelhantes. E pelas ve- redas nao-racionais da arte que a freqiientagio permite descobrir e percorrer, que nos ‘sintoni- zamos’ com 0 outro, numa relacdo particular que a vida cotidiana desconhece. Terreno da intersubjetividade, a arte nos une, servindo de lugar de encontro, de comunhao intuitiva; ela nao nos coloca de acordo: ela nos irmana.”® Em seguida, precisamos aprender a sen- tir. Em nossa sociedade, dada a importancia atribufda & racionalidade e a palavra, nao é raro tentarmos, sempre, enquadrar a arte den- tro desse tipo de perspectiva. Assumimos, en- tao, tal distincia da obra que nao é possivel recebé-la através do sentimento. Por outro lado, 0 sentimento, como jd dissemos, nao é a emogio descabelada. Chorar ao stir a um. drama ou ao ouvir uma mtisica nao é sinal de que estejamos acolhendo a obra através do sentimento. Podemos estar fazendo uma catarse das nossas emog@es. No sentimento, ao contrario, a emogio é despida de seu con- tetido material e elevada a um outro estado: retirado o peso da paixdo, permanecem 0 mo- vimento e as oscilagdes do sentir em comu- nhao com 0 objeto. Finalmente, ja fora da experiéncia esté- tica, podemos chegar ao nivel da recepeao cri- tica, da andlise intelectual da obra, do julga- mento do seu valor, que € 0 trabalho do criti- co e do historiador da arte. Para essa tarefa, s6 a convivéncia com a obra nao basta. E neces- sdrio o conhecimento hist6rico dos estilos, da linguagem de cada arte, além de um profundo conhecimento da cultura que gerou cada obra. Concluindo, a arte nao pode jamais ser a conceitualizagao abstrata do mundo. Ela é percepgao da realidade na medida em que cria formas sensiveis que interpretam o mundo, proporcionando o conhecimento por fami ridade com a experiéncia afetiva. Esse modo de apreensao do real alcanga seus aspectos mais profundos, que pela sua prépria imedia- ticidade nao podem ser apresentados de outra forma. A partir dessas idéias, podemos com- preender a epigrafe do capitul “Entender a idéia de uma obra de arte é mais como ter uma nova experiéncia do que como admitir uma nova proposigao.”” Texto complementar Arte e sociedade . Um artista s6 pode exprimir a experiéncia daquilo que seu tempo e suas condigées sociais tem para oferecer. Por essa razio, a subjetividade de um artista nfo consiste em que a sua experién- cia seja fundamentalmente diversa da dos outros homens de seu tempo e de sua classe, mas consiste em que ela seja mais forte, mais consciente e mais concentrada. A experiéncia do, artista precisa aprender as novas relages sociais de maneira a fazer que outros também venham a tomar conscién- cia delas; ela precisa dizer hic tua res agitur. Mesmo 0 mais subjetivo dos artistas trabalha em favor da sociedade. Pelo simples fato de descrever sentimentos, relagGes e condigdes que nao haviam sido descritos anteriormente, ele canaliza-os do seu “Eu” aparentemente isolado para um “N6s”; ¢ este “"N6s” pode ser reconhecido até na subjetividade transbordante da personalidade de um artista. Esse processo, todavia, nunca é um retomo a primitiva coletividade do passado; a0 contrério, representa um impulso na dirego de uma nova comunidade cheia de diferencas e tens6es, na qual a Voz indivi- dual ndo se perde numa vasta unissondncia. Em todo autGntico trabalho de arte, a divisio da realida- de humana em individual e coletiva, em singular e universal, é interrompida; porém é mantida como fator a ser incorporado em uma unidade recriada. S6.a arte pode fazer todas essas coisas, A arte pode elevar o homem de um estado de fragmen- tagdo a um estado de ser integro, total. A arte capacita o homem para compreender a realidade e © ajuda no s6 a suporté-la como a transformé-la, aumentando-Ihe a determinacdo de torné-la mais ‘humana e mais hospitaleira para a humanidade. A arte, ela prdpria, é uma realidade social. A socie- dade precisa do artista, este supremo feiticeiro, ¢ em o direito de pedir-Ihe que ele seja consciente de sua fungdo social. Tal direito nunca foi discutido numa sociedade em ascensiio, ao contrério do que ‘corre nas sociedades em decadéncia. A ambigdo do artista que se apoderou das idéias e experiéncias do seu tempo tem sido sempre nao s6 de representar a realidade como a de plasmé-la. O Moisés de Michelangelo nao era s6 a imagem artistica do homem do Renascimento, a corporificagao em pedra de uma nova personalidade consciente de si mesma. Fra também, um mandamento em pedra dirigido ‘ws contempordneos de Miguel Angelo e a seus dirigentes: “E assim que vocés precisam ser. A ‘poca em que vivemos o exige. O mundo a cujo nascimento presenciamos 0 requer”. (E Fischer, A necessidade da ate, p. 56-57.)

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