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ceantrutom -METAMORFOSE DO CINEMATOGRAFO EM CINEMA io € apenas ainvestzapSo sobre o movimento dos bipedes, dos quadripedes ¢ das aves que est na origem do cinemat6- {rafo, mas também o encanto da imagem, da sombra ¢ do e- flexo. E esse encanto & a mola principal dum aparelho essen- cialmente destinado uo espectéculo, A corente de invengDes ‘que andou a tctear, durante todo o séeulo XIX, encontrou, fi nalmente, onde assenta. O aparelhoe 0 sistema de projecs30 ‘stabilizaram.O cinemat6grafo dispunha, aparentemente des cénica Surge, pos, a0 mesmo tempo que 0 cinematograf, E verdade que, a0 inventar'a mise en scene de cinema, Mé- |its embrenhou o filme mais profundamente numa evi teatral espectacular» E, no enantio, no na teatralidade, mas através ela, que devemos procurar a fone ea essncia da grande ma. ‘agi. 7 Edgar Morin ‘As das faces da revolugio operada por Mélits sio a truca- gem ¢ 0 fantstico. Revolugso no seio do especticul, mas e- volugio que o transforma. Sabem-no, de rest, os historiadores, ue ficam maravithades com o «grande Méliés, cujas «formu Tazinhas mdgieas», como observa Sadoul, «foram, na ealidade, cs germes da sntae, da linguagem, dos meios de expresso do cinema»? Mas, por mais maravihados que fiquem, os bistoria- ores no se espantam nunca que 0 inemat6grafo, em vez de aumnentar a fidelidade realisa da sua imagem, alargando-a (eer Bigante ou circular), dotando-a de som e de cot, como ja se ‘anunciava a exposigso de 1900, tena optado, desde 1896, po- 4a fantasmagoria. De facto, da mais realist das miquinas, ime liatamente surge 0 fantistico: a irralidade de Mélits torna-se ‘lo Magrante como arealidade dos irmios Lumiere o fo ‘Ao absoluto realismo (Lumitre) responde 0 absolutoirealis- smo (Mélits). Admirvelsftese que teria agradado a Hegel, sin tese donde ria nascere desenvolver-se 0 cinema, fusto do cine ‘matégrafo Lumibre e da féerie Melts. A Metamorfose Mélits com La caverne maudite, Reve artiste, Les quatre tes embarassantes ¢ Dédoublement cabaistique, G. A. Smith ‘com Corsican brothers e Photographying a ghost, intoduzem, ‘no mesmo ano de 1898, em Parise em Brighton fantsma e 0 Sentifcadas. Hi um s6 tempo para opassado ¢o presente. tc tempo, que presenta o passado, passes, conjunta~ mente, o preset: nas, © pasado e presente se confundem no ‘incma, € também porque, como vimos, a presenga da imagem tem jf implicitoocardcter emativo do passado.O tempo do fil tne nl tanto o presente, mas um passado-presete "A ate da montagem vem culmitat, presisamente, com as a¢- ‘ges paalelas, 03 flash back eos cutback, ou sj, 0 coctal de passaos e presents dentro da mesma temporalidade. De resto, partir de «© Poder a Gléras", numerosos si os filmes cons- {ruldos a partido fim, tomando pretexto num momento de medi tag em que todo o passado ressrge filmes que exploram a ap- tidlo do ‘incma para tocar a¢ mips teclas da duragio («Foi ‘Uma Mulher Que Perdeus”, Le Diable au Corps", 6)! ‘No hi vida que actaliaro passado — recupers-lo, como ia ESouriau — € nerente & prea imagem cinematogritica. O nema f-lo melhor que qualquer outa arte o fez. A ideia de ‘que o passido se no dissolve, masse refugi algutes,jé existe, ae ss ri et ‘Etoctens en gee rence Sate eee {Spoon ecova ter mmtrdn cxactonente come o presse flow 3 esd Pe Rralinday ie man mm heeds cee ENS oma ements iene ee ean ee me Ie easel alass Stearn Seppe temceteers Fe Sis rae wt a (Cinema ovo Homem Imaginiio 81 em germe, como vias, em toda e qualquer recordagio. A magia ‘rhe corpo. Esse pass que desaparece que, no entanto es dura € 6 mundo dos dupos: dos mortos. Entre a qualidade sub- Jestiva da imagem-recodagio © qualidade alienada da sbrevi ‘véncia dos espectrs,isinus-se um mito, mito que se ir desen- Yolver no romance de antecipago moderno: 0 da procura do {empo perdido, O eseitorpsicblogo procura o tempo perdido nos frcanos da alma, na fonle mental da recordagio. O esritor de fventuras ess, procuro algures, no ter, com wna edmara Tndieras narratives de fcgiocientiic tm por tema a exca~ Jada cinematogrfiea do tempo, até se captar um fragmento in- corrupivel do passado. Visio andloga desenvolve Elie Faute 20 ‘imaginaros habitantes uma estea longingua, contemporinos de eruifixto de Jesus, expedindo-nos, através dum projet 0 filme que dela nos tomariatestemunhas actuais, Essa captagao do passado que se evola & da mesma essEncia que a imortalid de conseguida pela invengio de Morel!®. Levado aos seus dit ‘mos limites, o tempo do cinema, por conseguite, desemboca ‘na magia do duplo e das metamorfoses Logo desde as primeira sestdes Lumirefez-e ouvir ¢ da ma nera ais extranha esse apelo volta tris no tempo. Mal aca- brava a proecgio, espontinea e inconscintemente se apoderava do brago dos operadores este espantoso deseo: passa 0 filme 20 ‘contro, No Museu Grévin, jé Emile Reynaud se divertira a in- ‘erer 0 movimento do praxinosopio.E, em 1895, Lous Lamit- re ert primeio filme retoacivo, a Charcuterie mécanique, em {que 0 porco sai da quia que, por sua vez, absorve as salsichas. ‘Relta-nos Mesguisch como, no decorrer duma fournée triun- fal pelos Estados Unidos, he surgi, pean uma mulidio ma- ravilhada, a suprema inspiragi, 0 wides ver 0 que ides vers", © 18 Vert Shad Ee age, The Aswan Scie Fi Ath TENGE pie sb cinellenn Fonction dina pA Vero meso {er ss forma yi Loser du sl: Voyege earnares ‘arr fsa sane per BoM. de Ns ‘pape oer cece pnt pe cp dissin ‘ebro o qu ee gr sign str sas ar = treed ath Sour, 10. ‘eter ce qe vou ae Yon NT) e gsr Morin paroxismo da exaltaglo cinematogrfics:projectar o filme as avessas. A partir da, 0 rogue passou a ser incessantemente imitado, Tal como o mito da procua cinematogréfica do tempo perdido, essa inversdo exaliae exagera © que Taz parte da pr- Dri essencia do cinema: acirculago, em todos 0s sentidos e a diferentes velocidades, dentro dum tempo «redizido 20 nivel ‘duma dimensio andloge 8 do espagon!? (Epstein), e onde pre- sent e passado se identifica. ‘Tempo equivoco: umas quantas variagSes de velocidade ou ‘de movimento, e ilo que transforma 0 universo segundo a sia das metamorfoses, e-o que vai mesmo ao ponto de inverter ‘© curso do mundo, voltando a conferr is salsichas 0 seu estado ‘original de porco. Porém, noutra acepeo, & um tempo picol {ico st 6 tempo subjectivo,afetvo, tempo evjas menses = passado, futuro, presente — se encontram indiferencadss, {em osmos, tal como no espirito hurmano, onde simultaneamen. te eso presente ese confundem 0 passado-recordagio,o futu- ro imaginirio e © momento vivido.. Esta duragio bergsoniana, cesta vivénca indefinfvel, 60 cinema que as define. ‘Metamorfose do Espago ‘Ao pra clmara em movimento e ao doté-la 6 ubiquidade, 0 cinema operou, ao mesmo tempo que a do tempo, a metamorfo- se do esparo. O aparelho de filmagem sai da sua imobiidade com a panorimicae 0 travelling. O travelling, inventado, 20 ‘mesmo tempo, por Promio em Veneca, por Mélis em ‘homme la téte de caoutchouc ¢ pelos cineastas de Brighton, 6, em 1913, enovada por Pastrone em Cabiria. A cimara desenorpe- ce-se, tomas, & pouene pouco, lexivel até extensa seid {de scrobitica de «© Ultimo das Homens», de Murnau (1925). ‘A par deste movimentos continos, hi os saltos descontinuos 4a cimara, ou mudangas de plano, quer sobre o mesino objecto, ‘quer de objecto para objecto (plano geal, plano médio, plano americano, grande plano, campo, contracampo, et.) 19, EPSTEIN: elie dime machine (Cinema 0 © Homem Inaginirio ss ‘A camara passa, doravante, a estar em toda a parte, empoleir «ds ou anichada onde nunca o olhar humanoestvera ainda, Salta 4a eabina do cami para a roda que se move, da oda para aro- cha que margina a estrada, levanta voo, tora a eair por tera, deixa que uma locomotiva the passe por cima. Pode postr se {em qualquer ngulo dum mesmo sto, em qualquer ponto do es- go. Chega mesmo, como nas primeiase inolvidvels imagens ‘do «Super-Homem, a fender o oceano infinito da noite interes. telar. Toda a disposigdo dos estios de rodagem se destina & esmitir uma ubiquidade: a casas, al como as gue o diabo-coxe vistava (ou pior anda) sio desventrada,privadas de tecto, Essa ubiquidade espacial, complemented ubiquidade tempo. ‘al (cirevlaga0 no Sei dum tempo reversivl) 6 pata Agel, 0 gue sede mas fascinane hi no einemas?,aquilo que, em todo 0 ca- 0, nele ide mais constant e evident. Iso permitiu dizer que © papel da cimara 6 o de transgredi a unidade de lugar. Tanto & «scala do plano como a escala de conjuno da montagem, o filme um sistema de ubiquidade integral, que permite trangportar 0 ‘espectador a quaiquer pont do tempo-e do espago. "Note-se que nem o espectador assim transportado, nem o ex, se move: o que efetivamente se vé sobre a tea & 08 ob jetos a moverem-se conforme a cimara avanga, reeua ou sal ta", Objectos que aparecem, se diatam e eneohem, que passam ‘da microscopia & macroseopia: 6 efeito éptico da ubiquidade transformase, assim, em metamorfse dos abjectos. O eet 6 li- teralmente um leago de presidigitador, um cadinno onde tudo se transforma, onde tudo surge para logo se desvanecer. Com- preende-se agora estrnho, mas nfo menos indubitével, paren tesco que se pode estabelecer entre estes efeitos elementares do cinema, desconhecidos do cinematégrafo Lumibre,e us troca ets, apareciments, desaparecimentos, substtuigdes ¢ amplia- ‘es de G. A. Smith e sobretudo de Mélits, O que dstingve 0 21) AGEL: Le cain ee Pde gue Mr ee te ago condo qe singe € Teele esse roe see nes oe pe ‘eran alae OT) “ Edgar Morin filme fantstico do filme realist & 0 faeto de, no primi caso, nos apercebermos da metamorfose , no segundo, a vivermos fem que disso nos apercebamos. Mas, basta, por vezes, um olharingénuo para, plo contrrio, nos sltar'a. vista © movi- ‘mento aparente (o que equivale a dizer, real, no ecta) das co Sis. «Moste-se — diz M, Sellers — uma panordmiea horizon- tal doma casa a um homem incult e ele dir que vu oedicio 4 fugit Moste-s-the uma panorimica vertical e ee dirt que 0 ‘edifci se mete pelo cho abaixo!.» ‘O parentesco que existe entre a metamorfose manifesta (fl- ime fantstca) e & metamorfose latente (filme realist) torna-se filiagio se pensarmos no encadeado, O encadeado comprime 0 espago, tal como a fasio comprime o tempo. de certo modo, {anivirgula da inguagem fica (a virgula, na linguagem es- ‘rita, marea uma crtaruptra na continuidade que a fase man- fever a fungio do encadeado é, pelo contro, de estabclecer lima urgente continuidade no seie duma inevitivel eupera). ‘eUm eneadeado ene dois planos &-nos sempre, e inevita mente, a sensagdo de aver uma ligagdo essencial entre eles» (Bela Balazs), Essa continuidade, assegura-a o encadeado, ‘com a metamorfose, que 808 nessosolhos se opera, dos objec tos, dos seres vivos, das palsagens, O encadeado ¢, als, um trugue de metamorfose de Mélis, 0 qual se transformou emt es- ‘ueleto por fusio-encadeado em L'Oeuf magique prolifique. Conserva anda, por vezes, um certo peefume da sua antiga ma- gia: «um lento encadeado de uma paisagem (..) produz um ito de sono, de magia?» ‘A trnsformagio do expago operada pelo cinema ver tam ‘bém desembocar, como a do tempo, no universo migico das rmetamorfoses. 21 MADDISON, <0 corm inca metal des pore tos Ree inert Ftp rome p10 ‘Bia WALAzS, Ty fim ie. 138 Pinca BALAZS Thy hi 9 10 (0 Cinema ovo Homem Imainsrio as Universo Fl Com excepsio do género fantistico, esta transformasio no vei certamentedestrui (como havemes de ver) 0 reaismo ¢ a objectividade do universo ‘Maso univers ralista do cinema jé no & o antigo universo do cinematdgrafo. , com diz Epstein, uma nova natureza, um ‘outro mundo» O tempo adguira a circulbilidade do espago, ‘© oespago os poderestransormadores do tempo. A dupla trans mustag0 do tempo e Jo espago cinematograficos produziu uma cespécie de dimensio simbiotica Gnica, em que o tempo se incor ‘Pra no espago, em que oexpago se incorpora no tempo, em que «0 espago se move, se moifica, gira, se dissolve e se recrisali- za (Panofsky), em que o «tempo se torna uma dimensio do cespago» (Elie Faure); dupla transmutagio que, como disse com justeza Fancast, vem desembocar num sespago-tempoo. spago-tempo eis a dimensao totale ica dum univers fui. do que Jean Epstein definiu numa passagem em que apenas se pede ao Ietor que, em vez de cinematégrafo, lei cinema: «Pela sua propria constucio, 0 cinematégrafo representa, dum mk ‘nei inata ¢ineltivel,o univeso como uma continuidade, em Petpéta eftal mobilidade, contnuidade essa bem mais uida ¢ {gil que a contnuidade diectamente sensivel (..). Através da substincia, a vida va e vem, desaparec, reaparece vegetal onde se julga mineral, animal onde se julga vegetal e humana: nada Separa a matéria’e o esprit.) uma identidade profunda ci- ‘ula entre worigem eo fim, entre x eausa e o eft, o inemard- _rafo possu o poder de operar universal ransmutagies™.» a primeira metamorfose na Praga da Opera & montagem do Couragado Potemtine, nio houve alicerce do cinematografo ‘que, por mais slid e estivel que entio parecesse,nBo tivesse ‘id arastado pela derrocadae dado lugara um oeeano liuido, 201 EPSTEIN, Cana no pe 34. ZS PANOFSKY edn pr BOUMAN,n Pcl Sac Cinna no 2a Bie FAURE Deir Citar pi [PILEPSTEIN: Leng dn mln, ge 12.16, 6 Edgar Moris Objects inanimados, tendes afinal uma alma ‘Oceano liquido, no seio do qual, como jf dissemos, sur- ‘gem, sltam, ese eclipsam, expandem, contraem e formar mi rndsculos 0 objectos.. Se bem que visives, todos estes fenéme- fos passam desperecbis (no sentido exacto do terme), e, se bem que desperesbidos, faze sentir o seus efeitos. Que efeitos? Sabemnos e sentimas que, no teatro, objectose cenéros, por vezes simbolicamente figurados, s40 acestios,e soessrios {que vio 20 ponto de desaparecer. No cinema, pelo contro, © ‘enirio de modo nenhum tem apartncia de cendrio; mesmo (So- ‘retuds) quando foi reconstitute num estdio, é sempre coisa, ‘object, natura. ‘Ess coisas, esses objects, essa natureza ganhamn nfo 36 um corpo que, no esto, Tes falta, mas una «alma, uma evida> fou Sea. a presenga subjectva.E certo que ji na vida real as es- Tatuetas de vido, 0s bibelots, os lengos, os méveis caregados ide recordagdes so pequenaspresencas em estado latent, e 25, Daisagens que contemplatnos esto, por assim dizer, polvithadas {e alma. O cinema vai mais longe ainda: apodera-se dis coisas (quotidianamente desprezadas, manejadas como utenslios, gs- {hs pelo habito, e desperta-as para uma nova vida: «se as coisas ‘ram reais, agora tornam-s presentes» (Cohen-Séu?*, “Yk cinemat6grafo Lumiere impregnara duma cert alma tu- doo que se encontrava no limite da matrialidade, da visibilida- ‘dee da palpabilidade, ou Soa, na frontera da natreza uid, ‘espumosa, nebula, gasosa ov aquosa. Observa Sadoul que 05 xpectadores dos anos 1895-96 se deixavam infatigavelmente Inaravilhar por sfamos, espumas de cervejas,folhas memendo ‘a0 vento», bem como pelo «quebrar das vagasn. ‘Limigrereconheceu © explorou essa misterosaatracgdo peas substincias fluids, especialmente pelos fumos (L’Entrée di tain, Le Forgeron, LTncendi, a baforada de charto de La Par tie d'écaté, Les Breursd’herbes, até mesmo a nuver de peira COMER SEAT, cr cp 12. (0 Cineina ovo Homer Imagini 7 ‘duma parede que € demolda) Talvez possamos far essa atrae- ‘elo nas erengas mégieas latentes, igadas aos vents e205 fumes, ‘em que, na medida da sa desincartago no Tite vsiel da sua invisibildade, os espiitos aéreos eos duposfantasmatiens se in- carpam. E certo que 0 cinematdgrao Lumiere no ressuscitava a antiga magia, mas, sem a azar ap nivel da conscinci,reanima ‘uma sesibilidade animista ou vtlista em tudo 0 que se acha snimado pelos «poderes dinamogéncos» de que fala Bichelad, ‘00 sea, em do 0 que é, a0 mesmo tempo, ido e mével ‘O cinema estende, por se lado, a todos os objectos esta Ai dez particular. De iméveis que slo, pBe-os em movimento. Di- Tatios ou condensa-os. Insifli-hes os tals poderes dinamogé- reas que Segregam una impresso de vid, Se 0s no deforma, ‘maseara-os de somibras¢luzes, que despertam ou avivam a pre= senga. Finalmente, 0 clase up (grande plano), essa maneira de ‘inverogar» os objectos (Souriau), obtém, como resposta 20 seu fascinio macroseSpico, todo um desabrochar de subjctivi- dade: 6 nao de care pode do Couracado Potemkine eo cope delete de A Casa Encantada® langam-os de repent cara um sito. «Os grandes panos so lircos: € 0 eoragao, e ni a vist, ‘quem os apercebe» (Bela Balazs), ‘Assim a8 coisas, os objetos, a natwreza, por inluéncia conju dado ritmo, do tempo, da fuidee, do movimento da ca, dos grandes pianos e dos jogos de Sombra ¢ lz, ganham uma qualidade nova. A expresso «presenga subjecivay &, nest caso, insuficiente. Poder se-éempregarcatosfera E, sobretudo «lk ‘map. Diz wmbém Balazs que 0 clase up edesvenda a aim ds coisas». Epstein, Pwdovkine, todos quants falaram de filme, ex- ‘rimiram o mesno sentimento. No se tata apenas do grande pla- to: & 0 cinema, na sua totalade, que, como diz René Cit, «dé ‘uma alma ao eabaré ao quart, aa garafa, a uma pared» claro que hi que considera esta alma em sentido metari- o,f que € 8 alma do espectador que ela se refere. Evidente- * Splut eds (1945). (8.7) DE BALAZS horn 36 SO Rens CCAR, ec te 8.7. a gar Morin ‘mente que a vida dos objectos no 6 uma vida teal, as sim ‘uma vida sujectva, Uma forgaalenantetende,contudo a pro- longer e a exterioriar 0 fenémeno de alma como fendmeno animista. Os objectosigam-se entre duas vidas, entre dos graus «da mesma vida, a vida exterior animista ea vida interior subjec: tiva. A palavra alma tem, de fact, dois sentdos:o sentido mi ‘ico (aienado) em que a alma se transfer para o objecto con- ‘emplado,e 0 sentido subjectivo em que € captada como emo- , dizia Balas; «mosta-o entl0 no Fhomem qu trabatha: mostrai-theo resto, os olhos, cele ditto © que significa e vale essa civilizagion. © rosto 6 ainda, de ‘maneira diferente, 0 espelho, nlo jf do universo que 0 rd mas da acgdo que se desenrola of isto 6, fra de campo. Disse ‘Agel, © muito bem: «Se se trata Juma fisionomia, a cmara & si- mmultaneamente mierosedpio e espelho magico» O rosto tor now-se medium: exprime a tempestades, a tera, a cidade, a fie brica, a revolucio, a guerra. O roto ¢ paisagem, Na verdade, s8 mais tarde, quando considerarmos no apenas 6 filme, universo embebido de alma, mat igualnente o especta- dor, alma embebida de universes, poderemos encarar, em toda 8 sa amido, o cosmomortismo existent no cinema, ‘Mas, mesmo sem irmes ao ceme do problema, é posivel ver- ‘mos que o filme implica antropomorfismo ¢ casmamarfisino, ni como duasfungdes separadas, mas como dois momentos ot dois pélos dum mesmo compleso, O universo fluo do filme pressupée reciprocase incessantes transeréncias entre 0 ho- mem mizrocosmo e o macrocasmo, Subsiur alternadamente 0 ‘bjecto ea pessoa é um dos processos mals correntes do cine- {9 BALAZS baat, TARGA Eocene 6 2 Edgar Mora rma; 6, precisamente, de tis transferéncias que o filme tra os seus mais efilenes efeitos: «O cliché, em grande plano, duma porta a mover-se lentamente é mais emocionane que a projec- ‘Glo duma pessoa que a faga mover-se» (Léger), Reciproeae mente, um rosto desvairado pode ser mais emocionante que tama porta que se fecha. Para exprimirem um mesmo sentimpen- to, of realizadres podem sempre optar por uma pessoa ou por tums cols, e exprimi-lo pela passagem dum outre. Emocio- rante — 0 mais emocionante de tudo quanto me lembro — & & {gota de lite onde se acha suspenso, através do drama humane ‘ge deste une um kolkhoze, 0 prprio futuro da revolugio, ‘Altemam-se 0 grandes planos, da desnatadcira 40s rstos,an- siosos ou atentos, desconfiades ou manhosos, dos aldedes, © estes a0 da kolkhoziana que acciona o aparetho. Dé-se uma ‘wansferencia, uma circuagio entre os rosios © a méiquin, entre 1 miguinae os restos, até que finalmente se forma uma gota, ‘uma rémula gota, uma gota de alma, substincia duma esperan- «a naseente, portadora de todas as promessas dum mundo que ‘A grande corrente que arasta todo o filme suseita um inter- cmb entre homens € coisas, entre rostos e objectes.O rosto da tera &continuamente expresso pelo do laradore,reiproca- ‘mente, a alma do camponts énos dada pelo trigo que 0 vento Aagita, Do mesmo modo, © oseano exprime-se no rosto do mari neir eo rste do marinero no do oceano,Porgue, no cer, © rosto se toma pusagem e a pasagem rosto, ito & alma. As pai ‘sagons so eslados de alma, e os estados de alma, paisagens. Muiins vezes,o tempo que fz, 0 ambiente © cendri so ima .gom dos sentimentos que animam as prsonagens: vlemse en- tho os planos da natures altemarci com os panos humanos, ‘como se uma simbiose afectva ligne, necessuriamente, © an- tropo e o cosmo, Homens cosmoméricas e objetes antropo- mérficos slo funelo uns dos outros, tormando-se simbolos uns dos outros, segundo a reciprocidade do microcosmo e do ma- terocosmo, Lilian Gish é levada i desva sobre um pedago de ge- 45 Fomané LEGER: Cater uma mer to 107 © Cinetna ou 0 Homem nando 2 lo, abandonada no degelo do rio («As Duas Tormentass”, Geiffh, 1920), «misturando-se inimamente © drama humane com 0 drama dos elementos, cuja forga cega se torna persona- ‘gem de tragédia cinematogritica», Assim, a heroina se coma ‘uma coisa deviva. Assim 0 degelo se torna acter. Nesta eneruzithada, 0 drama pode concentar-se, dum mo- ‘mento para o outro, sobre um objecto sobre a gota de Iie, so- bre 0 revélver esombrio como as tentagdes da noite (ito 6,cos- ‘momorfizad..) tacturno como a paixao, brutal, macigo,pesa- do, fri, descontiado, ameagador» (sto €, antropomortizado). sta incessante conversio da alma das coisas nas coisas da al ‘ma, corresponde, por outro lad (com veremos no proximo Vo- lume), 2 atuteza profunda do filme de Fieglo, em que os pro- cessos subjectivos imaginarios se concretizam em coisas — acontecimentos,objctas — que os espectadores, por sua vez, reconvertam em subjectividae. ‘A metamorfose, num dia de Outono de 1896, dum éaibus em féreto, foi o ponto de partida de metamorfoses fundamen- fais. Os traques, de Mélits,sfo, segundo a expresso de Bou- ‘man, as chaves dum novo mundo». As caracterstieas deste no- vo universes, além da metamorfose (edo seu negativg, a ubi- ‘quidade),a flues dum espago-tempo circuldvel e reversvel, Incessane transferéncia entre o homem microcosm e o macro cosmo e,finalmente 0 antropomorfismo eo cosmamorfismo. Fluidez, metamorfoses, mieromacrocosmo, antropocosmo= rmorfiso, sio esses os fundamentos da visio einematografica. Ora, sea isto acrescentarmos as qualidadesinerentes ao duplo, ‘qualidades j definidas e reveladas no precedente captulo,de- Dararemos, em toda a sua integridade e esséncia, com as ca ‘acteriticas fundamentais de toda e qualquer visto magica do ‘mundo, + Wey ony E1920) Davis W. Gest. (NT) Now 46 3 : 4 Bgar Morin A Visto Mégica Se, de facto, consideramos a magia no seu estado puro, a ‘magia da more, veremos que a sobrevivéncia do duplo € ape- ‘as uma das duas formas de imortalidade, sendo @ segunda & ‘que faz, imediatamente ou mais tarde, renascer © morto como ‘ovo ser vivo, como erianga ou animal, ‘A sobrevivéncia do duplo e a morte-renascimento aparecem Sempre, a todos os niveis das crengas,simbolicamente associa- das, segundo combinagSes variveis, onde ora uma ora outta ‘dessas imortalidades predomina. © duplo-antasma persist, na mnior parte das vezes, um certo tempo, em volta dos vivos, para {depois regressar & mansio dos antepassdos, donde retomam 08 recém-nascidor. ‘A morterenascimento, tal como a sobrevineia do duplo, & tum dado universal da conscinciaarcaia, & também, eomo jé se disse, um dado universal da conscineiaonirica, da conscien- cia pottcae da conscienca infant 'A morte-renaseimento enconra-se presente no proprio seio da visio da vida: & um perpétvo movimento em ue a morte fe ‘cunda a vida, em que o homem Fecunda a sua acglo sobre an tureza, através da more (sacrifcio), e sede as diversas etapas da sua exsténcia, mereé desta auténtia morte-renascimento, conhecida por iniciagbo. O préprio mecanismo das perpétuas ‘metamorfoses que regem o universo &, no fundo, o da marte-e- nascimento, Neste sentido, a morte-renscinento é um aspecto| Particular, ou atmo, da univers Fei das metamorfoses. [As metamorfoses implicam, e aqui aproximamo-nos de L. Lévy-Br, wm universe fuida em que as cosas se nfo acham rigidasna sua identidade, mas prticipam duma grande unidade ‘ésmica em movimento, Essa hide expicaetestemunha are ciprocidade exitente entre 6 homem microcosma e © macro- cosmo, A analogia entre © homem e 0 cosmo & pra giratrio ‘onde se artculam magicamente a fides do universa eo antro- ppocosmomorfismo 1 de hé muito se observou que anima, plantas € coisas pa- ecem, tanto as primitivos como as criangas, animados de sen- (© Cinema ovo Homem Insginsrio 9s timentos humanos. Chegamos mesmo a eros habitidos por ‘espiitos, a eos 0s propos espiios: ou, por outras pales, (0s duplos (os mortes)acham-seinstalados no prio centro do univers uido,O univers, num deteminado estidio de evolu: ‘lo, no passa duma inumezivel tbo de espiitos anlichados no ‘seio de todas as coisas. A isso se chamou animismo. A raiz pro ‘anda deste animismo € um processo fundamental, através do ‘qual 0 homem sent ereconhece a natreza, ao projectar-sene- Ia: ose, o-antropomonfsmo, Reciprocamente, 0 fhomem primitivo & habitado pela nature 2a, Nio & a presenga dum eeu» que ele sente no set fatimo, O seu eeu», 0 duplo encontease fora dele, B, no interior, € 0 mu- do que fervtha. Assim, © Canaco, como aponta Maurie Lee- nardt em Do Kamo, v8 a seiva corer. nts veins do brag, A linguagem primitiva, os comportamentos, af miscars, 0§ thr 45,05 fenémenos de possessio tudo isso nos mostra que 0s ho- ‘mens, a9 mesmo tempo que se sobem homens, se sentem habi- tados e possudos, quer por um animal, quer por uma plantas de ‘qualquer modo por forgas eésmieas, Também as eriangas, 80 Imimarem os animals, a tempestade, 0 vento, 0 avido, so, sem deixarem de se saber criangas, animal, avifo ou vento, O cos- momorfismo, pelo qual a humanidade se sente natureza, vem

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