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EURIDICE FIGUEIREDO Representacées de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura e cultura Qenra Becveas] ©2010 ridice Figueiredo ste loro segue as normas do Acorde Ortogrifica da Lingua Portuguesa de 1990, ‘adotado no Brasil em 2009. Produst edivorial a Travassos Valeska de Aguirre FORKS DE LIVROS, RJ ntcramerianas de lieratura Figueiredo. ~ Rio de Janeiro: 7Letas, 2010. 286p. 3. Eticismo, 4, Amética = 10-2464, cop: 809.897 cou: 82.091 2010 Viveiros de Castro Ediora Leda. R. Goethe, 54 Borafogo jo de Janeiro RJ cer 2281-020 editora@letras.com.br | www letras com.br Sumério: 9 Intwodusio ‘QUESTOES TEGRICAS SOBRE A LITERATURA 15. Literatura Comparada e Estudos C por um comparativismo interamer no. 26 Literacura mestiga, liveratura transnacional, literatura da migrincia ETNICIDADES EM RECORTES GEOCULTURAIS 43. O conceito de América Latina 52 O Hh histéria, lireracura, cultura BINICIDADES COMO ALTERIDADE 71 Mestigagem, transculturagio, crioulizacao, hibridismo 97 Representagdes do mestigo € do mularo na América Latina 105 Representagoes do indigena na literatura br 134 A figura do mestico na literatura do Canadé 151 Diferenga ea alteridade ETNICIDADES NEGRAS: MEMORIAS, ESTETICA DA ORALIDADE, HUMOR 161 As (re)esericas da meméria da escravidao: questoes tedricas 171 Resiliéncia, banzo ¢ as artes de fazer em 182. A reescrita da escravido como perlaboragéo em Patrick Chamoiseau 192 © humor rabelaisiano de Pactick Chamoiseau e Mério de Andrade 205. Patrick Chamoiseau ¢ Jorge Amado: por uma estética popular 214 humor na obra de Dany Lafertiére Maria Gongalves 225 O racismo & brasileira: a escrita da meméria em Leite derramado, de Chico Buarque 235 Os “brasileitos” do Benin: a questio do retorno & Africa LITERATURA MESTICA, LITERATURA TRANSNACIONAL, LITERATURA DA MIGRANCIA. PrERRE OUELLET Introdugio Emprega-se hoje, sobretudo nos meios francéfonos, ara designar a literatura que incorpora elementos da orali- dade a fim de destert ‘uma produgio de escritores de paises pés-coloniais que, tendo recebido uma educagéo ocidental, falam mais de uma lingua e tém uma cosmovisio mar- cada pela mescla, Para tentar dar conta deste mundo “mestico”, szem palavras de linguas étnicas e/ou crioulas, mas sobretudo t axe da lingua ocidental conferindo-Ihe um ritmo ¢ uma economia que nao the sao préprios. Observa-se, com efeito, que 0 conceito de mestigagem, no duplo sen- sintagma “lite- as décadas do século xx. Nos paises rnogées de hibridagio, de terceiro espago (Bhabha) ou de diéspora (Hal {que exprimem o equivalente da mesticagem ~ termo que, como se sabe, néo existe em inglés (salvo miscigenation, no sentido raci Frangois Laplantine considera que a mestigagem constituiria “uma via mediana entte a fusio toralizante do homogéneo ¢ a fragmentagio rencialista do heterogéneo” (Laplantine apud Lévy, 2002, p. 152), ou seja, ‘no multiculeuralismo ¢ no diferencialismo da América do Norte estamos aquém da mestigagem, enquanto na fusio totalizante da Franga, que aspira a0 homogéneo, estamos além da mestigagem. Ele coloca a légica da mesti- agem no que Deleuze chama de “conjun¢io disjunti que estamos no dominio do paradoxo. ‘A mestigagem em Laplantine é um filosofema bastante fluido que se opie a todo pensamento categorial ¢ classificatdrio e que tenta dar cor processos de contaminagio ¢ de mescla em vérios momentos da huma dade e em virios dominios. Para ele o processo de mestigagem nao se cons- titui de “empréstimos” mas de “transmutagées” do que se recebe. Neste sen- tido, ele ¢ irredutivel & soma dos “componentes” primeiros ~ considerados primeiros seja em termos cronolégicos seja em termos ontolégicos. A Iégica seria a de uma “mi ide em devi” e, por consegui trata de uma “acumulagio” que levaria & formagao de uma “totalidade” mas de uma “tensio” (Laplantine, 2005, p. 9). Os sintagmas * ingua mestiga” e “literatura mestiga” no slo (ain ‘Mas, meu argumento é que, se toda a cultura br tautologia comecar hoje a falar de antropofagia de Oswald de Andrade, que representa uma metéfora provoca- dora e wransgressora do processo de deglutigao ¢ de metabolizagio dos ele- mentos estrangeiros absorvidos pela cultura brasileira, demonstra que ela & ‘0 emblema da visio que os brasileiros se fazem de si préprios Sujeito e territério ‘Ao examinar como a literatura tematiza a questo das migragdes no mundo de hoje, verificam-se fendmenos ligados 4 eclosio de novos proces- 405 de identificasao suscitados pelo txnsito de pessoas ¢ ideias, com o sur- gimento de identidades culturais hibridizadas ¢ novas formas de mestica- gem, Para tanto, pode-se explorar a relagio dos personagens com 0 espago em processos de desterritorializagao e reterrito Os escritores provenientes da imigracio nas literaturas de Iingua fran- esa ¢ inglesa, sejam eles exilados ou expatriados, sio “obcecados pelo sen- timento de perda, pela necessidade de reconquistar passado, de voltar a cle, mesmo com o risco de se tornar estatua de sal", afirma Salman Rushdie, que reconhece, entretanto, que eles seriam incapazes de reconquistar o pal perdido. $6 Ihes resta, portanto, criar ficcées, nfo cidades reais mas pai imagindrias, invistveis (1993, p. 20). E por isto que muitos destes escri- tores fazem romances da meméria e sobre a mem6: de forma fragmentéria, nao oferecendo seni cacos de memsria, “espelhos quebrados” (1993, p. 21), na expresso de Rushdie. Paradoxalmente, estes pedagos esparsos de meméria adquirem maior ressonancia porque se trata parentemente insignificantes, mas que simbolizam um pas- sado enterrado. Rushdie considera que o escritor, tal como 0 arquedlogo, vai desenterrar os vestigios do passado para fazer seus romances, ideia jé pre sente nas teflexdes de Walter Benjamin, que afirma que “quem pretende se aproximar do préprio passado soterrado deve agit como um homem que escava’ (Benjamin, 2000, p. 239). Rushdie destaca que a descontinuidade fisica, 0 fato de que 0 presente se situa em um lugar diferente de seu passado, torna a perda mais sensivel (Rushdie, 1993, p. 22). narrador/protagonista de Sergio Kokis (autor do Quebec de origem brasileira) ambém afirma, no romance Le pavillon des miroirs, que tem medo de tomar-se uma “estétua de sal”, caso olhe para trés. Na diltima pagina do livro, 0 narrador se interroga sobre a veracidade da hi vex se trate de “uma pura invengao de suas quimeras’: “E jd nao sei se essas coisas existitam ou se séo pura invengo de minhas quimeras. Que importa? Como Narciso se olhando num pavilhao de espelhos de um parque de diver- ses miseravel, reconheco-me nas deformagSes. Cicatrizes da meméria, que ‘do cantam nem as armas nem os homens” (Kokis, 2000, p. 302). um lado, a relacdo com 0 territério perdido, o pais natal ou o pais dos ances- trais que ficou para tris; de outro lado, a relagao com o pais de adosio, no qual o personagem/escritor nao est excluido ou segregado, devido a sua etnicidade ou ainda por razées econd- existenciais. No primeiro movimento, hé uma busca geneal igada & ancestralidade, ancorada numa tempor indria e, ao mesmo tempo, revela um espago perdido, um territério que se abandonow. No segundo movimento, o migrante sente que o pafs de adogio nao Ihe pertence de todo, ele nao faz. parte do grupo majoritéri Landowski chama de “grupo de referencia” (2002). © trauma da imigragéo pode-se manifestar também por uma relagio con- flituosa com os pais e as imposigdes culturais da comunidade & qual pertence. Como assinala Dominique Viare, em muitas narrativas de lingua francesa desde ‘0s anos 1980 percebe-se uma preocupacao de reconstrucao de uma ge Jogia, 0 que revela a fratura que significou a emigragao ~ do proprio es tor ou de seus pais — ¢ 0 sentimento de deserdamento (déshérence). T en déshérence se diz. de um bem que nao tem herdeiro, que coloca a ques- tio da impossivel transmissio por falta de continuidade, Por nao conservar sua pertinéncia hi co se desfaz, Assim, a nogio de déshé- rence d& conta da caducidade das priticas, saberes, modos de ser e de fazer de que ninguém é ou quer ser 0 herdeiro, ou ainda cuja heranga tornou-se impossivel de ser recebida por transmitir priticas e obsole- tos (Viart, 2005, p. 213). imigrante também pode se sentir totalmente livre a0 se ver privado de pais, como lembra Julia Kristeva. “Quem nfo viveu a audécia quase alucina- téria de se imaginar sem pais — livre de dividas e deveres ~ no compreende loucura do estrangeiro, o que ela Ihe proporciona como prazer ( que ela contém de homicidio raivoso” (1988, p. 35). Eneretanto, em algum momento sobrevém o sentimento de orfandade, uma ternura pelos pais pet- didos no passado/no pais natal, como contraponto & indiferenga de todos que no os conheceram. ‘A questio do sujeito é fuleral, pois é sua subj © fora, estabelecendo 0s vinculos com o espaco. E af, na intercessio do eu ‘0, do cu com 0 territério, que se situam os conflitos do sujeito. Jean-Luc Nancy concebe o mundo ¢ a subjetividade como inseparéveis, pois para compreender um mundo é preciso habitd-lo, ou seja, um mundo é um espago em que ressoa tuma certa tonalidade. Mas esta nao € outra coisa senio © conjunto de ressondncias que os lugares do mundo modulam ¢ se reen~ viam, inclusive as ressondncias artisticas e literdrias. Assim, habitar 0 mundo deve ser compreendido também em segundo grau, ou seja, pode-se entender ica, um c interage com com o 29 Manifeste pour une “Littérature-Monde” en francais No dia 16 de marco de 2007 0 jornal francés Le Monde publicou 0 Manifeste pour une “litévature-monde" en francais, assinado por 44 esctitores, ‘em lingua francesa conscientemente afirmada, aberta para o mundo, trans- , assina 0 atestado de ébito da francofonia". Dentre os argumen- imbrar aspectos linguisticos, literdrios, politi- lturais. Alguns meses mais tarde foi publicado escritores que nao o haviam assinado. Curiosamente, 0 Manifeste nfo apa- receu no livro. Talvez isto se explique pelo fato de o texto de Michel Le Bris tciros do Manifee, 0 que indica que cle € 0 inspirador vitias stagbes ocorridas nos meses que precederam o langamento do ‘Manifeste e reconhece também que ele havia langado 0 vermo “littérature romances eseritos pelos escritores de = que nio tinham, segundo o Manifesto, nada a invejar a seus confrades de lingua inglesa justamente porque eles praticavam a crioulizagio: “O con- ceito de ‘crioulizagio’ que entio os reunia, através do qual afirmavam sua ngularidade, era preciso decididamente ser surdo e cego (...) para nao com- preender que jé se tratava de uma autonomizacio da lingua” (Maniféste). No Ambiro deste manifesto, literatura mestiga, crioulizada e transnacional so, sendo homélogas, a0 menos situam-se no mesmo campo semintico e ser- vem para designar a obra de escritores que, nao sendo de origem francesa, possuem vatias linguas/culturas. 30 A causa da marginaligio dos autores ditos “franoéfonos” foi meio literétio francés, excessivamente centralista e voltado para si ‘uma contradigao na argumentagio do Manifesto, pois, se isto fosse ver como explicar que os principais prémios liverdrios franceses em 2 Goncourt, o Grand Prix du roman da Académie francaise, o Renaudot Femina, o Goncourt des lyoéens ~ tenham sido atribuidos a escritores dos de fora? Segundo 0 Manifesto, a premiagao serviria para confirmar 0 valor inconteste dos escritores vindos de fora ¢ a anemia da produgio local Entretanto, percebe-se na atribuigéo de prémios 0 reconhecimento que 0 ficial da Franga d& aos bons escritores, sejam eles franceses de dentro ou de fora, sobretudo quando sio publicados por editora Francesa. sto alegava que a ideia de francofonia é “o iltimo avatar do mo”. Tahar Ben em um artigo publicado em Le Monde Diplomarique dois meses mais tarde, as reunides de francofonia afirmando que a nogio de francofonia é uma heranga colonial que serve para reunir os chefes de Estado e a dar & Franga controla suas anti filar ger mei ro em Les litératures de langue francaise 4 Uheure de la mondialisation (2010), organizado por Lise Gauvin,? que contém uma série de textos apresentados em coléquio realizado em Montreal em 2008. Este livro assinala muito bem a posigio quebequense a favor da francofoni in fala de “malentendido francé- fono”, criticando sobretudo as instituigdes literdrias fi apontado por ela é que a Franga é 0 centro da francofor parte dela (Gauvin, 2010, p. 18). ‘ratura transnacional Literatura nacion: eficio de a maioria deles ”, ou seja, sio percebe-se a superagio do “naci ional” da literatura, na medida em q\ snce ao mesmo tempo a varias “comunidades imagina {do texto da prop destacase 0 exto de JMG. Le Clézio, 4 ‘9 Nobel quando pronunciou saa conferéncia em Montreal, ha scabado de 31 escritores que vivem uma realidade de hibridismo ¢ mestigagem. J4 Tahar Ben Jelloun defende uma ideia um pouco diferente. Ele entende que todos ‘0s que escrevem em francés devam pertencer 3 literatura francesa: cruida por todos os aurores que se exp fe quer que absurdo, mas também ofensivo, Nao lembra as enquanto a postulagio do Manifesto é transnacional, a reivindi- cago de Ben Jelloun remete & literatura nacional. Se tracarmos um paralclo colocada no Brasil (e na América em geral) no satura nacional era entio uma necessidade de legitimago para -independente, a0 passo que no caso da francofonia de hoje 0s aspectos que esto em jogo séo diferentes ¢ muito s embaralhados porquanto numerosos escritores vivem na Franga ¢ tém ‘qo de movéncia daqueles que escrevem numa lingua que no é a materna. ‘A Franga tem uma longa tradigio assimilacionisca que, historicamente, transformou os esctitores ¢ artistas estrangeiros que If viveram em “france- srctanto, pode-se constatar que hé autores mais ou menos “assimi- 0 da estrangeiridade e cons- idade, que se manifesta pela raga, cor ou rel 0 imagindtio c a temética deslocados ou “exéticos” em relagio 20 imagindrio francés; 3. a lingua ¢ a linguagem ‘as vezes claramente “mesticas”. A confluéncia destes trés elementos acarreta © que faz-com que os escritores negros (caribenhos nos) e érabe-mugulmanos conservem sua identidade “estrangeira” enquanto 10s escritores de origem europeia sejam mais facilmente assimilados. A es tora Anna Moi (nascida em Saigon em 1955), alids, assinala que os bran- cos tornam-se franceses mais facilmente do que os negros ¢ asidticos (apud Le Bris, 2007, p. 24). Matie Ndiaye, que ganhou o Goncourt de 2009 com fo romance Trois ferames puisantes, declarou em virias entrevistas (ind numa para 0 Prosa e verso, O Globo, de 51412010), que é absurdo at Ihea identidade franco-senegalesa, ja q pai senegalés abandonou sua mie e voltou para o Senegal, o que fez.com que dos escritores; ica u cla nasceu cresceu na Fran 32 ela nao tenha tido contato com ele nem com o Senegal. Se; chamé-la de franco-senegalesa é 0 mesmo que rotular o pres de franco-hiingaro (0 que ninguém faz, alids). Littérature-monde, Weltliteratur, World Literature ‘A ideia de lirténature-monde pode evocar a de Weldireratur, ctiada por Goethe em 1827. Se ele falava entio de Weltlitenarur por associ Wellmarkt, hoje 0 mercado mundial chega a seu paroxismo, nele incluin- 9 Antoine Berman (2002, p. 99-103), trata-se de derno das relagdes entre lo, seria melhor falar cratura mundial porque a interagio ~ que sempre existiu no io — encontra-se intensificada. A nogio de Welllireratur de mbém a mediacio da traducéo a fim de tornar possi- iva e consciente de todos os escritores. ificava para Goethe a era da inter tra- guas aprendem a ser linguas de tradu- fo ea viver a experiencia da tradugio, Esta consciéncia de um mundo que ssar pela tradugio a fim de permitir 0 acesso da maioria & literacura a situagio de telativa fragilidade e de posigio um pouco a alema, que dava entio s uito consciente da importane trilha de fildsofos como Walter Benjamin, que “taduzi w: ¢ naturalmente nem conjugar temas de transparéncia” Glissant, 1997, p. 29). a situagdo da lizeérature-monde em frances tem implicagées pos- coloniais que ultrapassam 0 Ambiro curopeu no qual se situava a questo no tempo de Goethe. Quando ce na presenga de todas as linguas do mundo, na nostalgia lancinante de seu fururo amea- 1997, p. 26), ele se refere a uma real ameaga de desapareci- guas ¢ culeuras orais. O francés ~ sobretudo para os escritores ‘oriundos da Africa — cde um mundo desconhecido pela maioria da comunidade internaci AA literatura universal, em inglés World Literature, teve o sentido d junto de “obras-primas que formam o patriménio da humanidade, os ducio generaliza de glétia do planeta, tudo o que, sem deixar de pertencer & nagio, pertence ao conjunto das nagées e estabelece um equilibrio mediador entre o nacional co supra nacional” (Brunel et alii, 1995, p. 62). Lise Gauvi a nogio de lsténature-monde scja um avatar disfarcado da sal imposto pelas culturas dominantes para garantir sua hegemonia (Gau- vin, 2010, p. 29). Glissant critica a nogio de World Literature afirmando que sua pretensao & uniyersalidade nao levaria em conta o Diverso. No entanto, nos tiltimos tempos, nos Estados Unidos, houve uma ressemantizagio da expressio, que passou a designar a produgio das margens em oposi¢ao 4 ideia de canone. A litévarure-monde para Glissant deve estar enraizada nos lugares particulates para poder atingir o universal. iver Literatura do Commonwealth O Manifesto afirma que em inglés nao haveria rétulo andlogo & fran- cofonia, o que é verdade, jé que nao se fala de anglofonia. Hé um aspecto, — utilizada entao para agrupar os escritores oriundos dos paises que outrora fizeram parte do Império Britinico ~ era inapropriada porque inclufa escri- a Africa do Sul e o Paquistio). Mas o argumento principal tinha a ver com as mesmas questdes colocadas pelos signatarios do Manifeste pour une “lttératu- re-monde” quase 25 anos depois, ou s¢j paternalista ¢ colonialista. Haveria, de um lado, mente dita—a superior, a sagrada — ¢, de outro lado, a literavura da periferia ‘que regruparia um bando de rudes recém-chegados ao mundo das letras. Ele considerava particularmente desagradvel a expressio “literatura do Com- ‘monwealth” por ela se constituir em “gueto de exclusio”. E importante des- tacar que ele concebe a literatura inglesa como toda a literatura escrita em lingua inglesa, como Ben Jelloun considera que todos os que escrevem em. francés fizem literatura francesa (endo francéfona). Assim, separar a litera- tura inglesa seria conferit-lhe um cariter “segregacionista nos planos topo- grifico, nacionalista ¢ talvez até mesmo racista” (Rushdie,1993, p. 79). contesta. Assim, a recepgio nos paises centrais varia: se os livros recriam ttadig6es orais e populares, com elementos das culturas ancestrais, eles so apreciados, mas aqueles que mesclam as tradigGes ou rompem com clas 8. O esctitor pés-colonial é entio acusado de falta de 3 ide, Ora, por que se exige autenticidade de um escritor afticano, asi .o-americano, nfo se exige autenticidade de um escr inglés? Porque, como afirma Rushdie, a autenticidade é a herdeira do velho exotismo. “Ela exige que as Fontes, as formas, o estilo, a lingua e os simbo- los derivem todos de uma tradigao pretensamente homogénea ¢ continua” (Rushdie, 1993, p. 83). A busca de autenticidade ¢ falaciosa porque as tradi- suradas, nio existe nada puro e homogéneo, sendo agindtia. Nimrod, escritor nascido no Chade, afirma que 0 que os racistas europeus recusam é a mestigagem cultural: ‘em que eles se transformaram (Nimrod, 2007, p. 223). ingua e linguagem da etimologia de tradweir — sraducere, levar 0s escritores diaspéricos sio homens “traduzidos”, pois foram le De maneira semelhante, escritores afticanos como Nimrod afirmam que eles inventaram uma nova maneita de escrever em francés porque expri- ‘mem realidades que so parcialmente distantes da eda sensibilidade francesas. “O francés consegue falar nossas inguas sem deixar de ser fran- és’ (Nimrod, 2007, p. 230). Patrick Chamoiseau, Raphaél Confiant ¢ Jean Bemabé, no Eloge de la créolité, explicam como os antilhanos conquistaram a lingua francesa. [Nés estendemos o sentido de certas palaveas. Nés desviamos outros. E metamorfo- Lise Gav em situagio de pl lingua. Dotado de uma superconsciéncia linguistica (surconscience linguis- cle emprega estratégias par a certos patamares de dade, compor com a opacidade das culturas singulates no imagindrio gua” (Gauvin, 2010, p. 28). As estratégias de “desvio”, na expressio m processos que vio da simples tradugo de palavras ou expresses crioulas aos comentirios, notas de pé de pagina ou notas/léxico no fim do romance, explicagdes tradutérias dissimuladas. Exilio e violéncia ratura pe em cena é a violéncia presente na acolhida ou na recusa do migeante, muitas vezes mascaradas de auto protecio, de universalismo ede republicanismo, O proprio ato de escrita pode ser encarado como um campo de batalha, como no caso de Wajdi Mouawad, escritor de origem Iibanesa que vive entre a Franga ¢ 0 Quebec. Outro aspecto importante que decorrence das travessias de territéri Fazer saidas, Ateat na chuva. Latar no corpo a corpo. pergunea em forma de faca plantada na traquels: no que cu ceria me transformado ‘com uma arma na mo? (Mouawad, 2007, p-187) 36 Os imigrantes nas grandes cidades, privados de heranga, q) am em luta contra os métodos capitalistas que Ihes impoem injustas de trabalho, podem se ver diante de uma situagio de ai perda identitéria quando as fabricas fecham e se mudam (fendmeno cl de deslocalizacéo). Os jovens ¢ eriangas, desadaptados, com problemas de aprendizagem ou fuga da escola, caem facilmente na delinquéncia. O espa turbano que aparece descrito nas narrativas da imigragio é 0 espaco da mar- gem e da marginalidade, como se pode ver no romance Shérazade, 17 ans, rune, frisée, les yeux verts (1982), de Leila Sebbar. O titulo deste romance evoca o de Moi, Christiane E, 13 ans, droguée, prostitute... liveo de dois jor- nalistas alemaes sobre uma adolescente que se prostitufa para comprar dro- gas (traduzido em francés em 1981, mesmo ano em que saiu 0 filme homé- logo) e que se tornou muito famoso nos anos 80. Sebbar coloca num squatt da banlieue patisiense diversos jovens, filhos de imigrantes provenientes do Caribe, do Magreb ¢ da Africa subsaariana que, tendo deixado suas famni- em busca de maior liberdade, praticam pequenos delitos, fugindo 20 modelo burgués. De maneira profética, este romance termina com o sui- cidio de Pierrot, que explode o carro em que viaja com Shérazade, cena que evoca os incéndios de carros ocot ridos em 2005 na Franga. Nicolas Sarkozy, entdo Ministro do Interior, ao visitar a bantiene de Argentueil em 26 de outubro de 2005, disse que era preciso se livrar da bande de racaille (bando da ralé). Sem analisar as intenges do ministro ¢ 0 contexto em que a proferiu, a expressio tornou-se 0 catalisador de uma insatisfagio generali- zada no que diz respeito & maneira como os filhos dos imigrantes sao vistos pelas autoridades francesas. A partir da concepgio da biopolitica de Agam- ben, pode-se fazer uma associagzo do morador da banliewe — espago Fora da cidade reservado aos banidos ~ com 0 homo sacer, aquele cuja vida nua “é matavel ¢ insacrificdvel” (2002, p. 91). Repiiblica mundial das letras Como 0s escritores antilhanos e afticanos de lingua francesa, Rushdie postula que a Iingua inglesa deixou de ser propriedade dos ingleses hd muito mpo e que, neste sentido, nfo hé mais centro. Destruir o centro tem como corolitio destruir a nogio de periferia, & qual sao relegados os escritores pro- vvenientes da imigragio. Este ponto é importante como matéria de discus ‘No caso do inglés a colocagio parece ser bastante apropriada porque o pode- rio americano desestabilizou a posigéo da Inglaterra enquanto centro. J& os cesctitores canadenses de lingua inglesa, préximos demais dos Estados Unidos, preferem reforcar 0 polo de Londres que lhes fornece um capital cultural em contraposicéo 4 dominagio do seu vizinho do sul (Casanova, 1999, p. 176) Entretanto, no caso francés, Paris continua a exercer uma primazia tanto politica quanto cultural no espaco francéfono e, como aponta Pascale Casa- nova, se ela desempenhou © papel de centro de consagragio para intime- ros escritores norte-americanos (Faulkner, os negros a partir do movimento do Harlem Renaissance) ¢ cionar como uma espécie de “terceiro lugar especifico” (Casanova, 1999, p. 177). Como nao hé outro local que possa exercer a fungio de centro de con- a marginalizagao dos ecritores francéfonos redunda- cidade a wornar-se tura francesa, com grande niimero de editoras, prémios, saldes do livro, jor nai, Mas tanto no caso frances quanto no inglés, é preciso reconhecer que as périos ~ Paris, Londres, Nova lorque ~ ainda (0 por acaso que é nestas grandes Pascale Casanova destaca a questo da disputa que existe no campo lite- titio, Pode-se perceber este cariter competitive no Maniféste, pois trata-se tanto de uma disputa de mercado quanto de um combate politico. Vendo-se como petiféricos no campo literdtio francés, estes escritores s40 muito hicidos {quanto a sta potencialidade no jogo de Forgas do mercado internacional ‘Assistiu-se nas iltimas décadas, com efeito, & renovagio do romance pela incervencio de autores vindos do Sul, como observa Milan Kundera: “uma nova grande cultura romanesca caracterizada por um extraordinsrio sentido do real ligado a uma imaginagio desenfreada que ultrapassa todas ‘minorias deserdadas dos paises ricos e para o intercimbio € a intertextuali- dace existentes entre diferentes regides do planeta: por exemplo,o realismo migico latino-americano foi absorvido ¢ reciclado por escricores da India, como ele préprio (1993, p. 85). Haveria uma reptiblica mundial das letras — pata usar a expresso de Pascale Casanova — sem fronteiras politicas e lin- 38 guisticas. Mas, paradoxalmente, se os autores das periferias e a renovar do que os escritores dos centros literdrios, é af — nos grandes « tros — que os escritores “do sul” devem ser consagrados para terem oportunidade de sobreviver. Nio é por acaso que os escritores de lingua francesa que reivi 4 pertenca a uma literatura-mundo se comparam aos escritores de lin, inglesa que sio, h jovadores, os mais vendidos e os mais citados. icanos, tanto os velhos romancistas do boom juanto alguns res, como Roberto Bolafio, Rodrigo Fresin, Santiago Gamboa e as excegées, nacuralmente, pode-se afirmar que os maiores Com ), diz que ele se sente estrangeiro na Alemanha, na Israel ele nao teve a sensacao de “volta ao lar”, 0 que 1a sou um judeu diferente. Que tipo de judeu sou afi- diferente de mim” (Kertész, 2007, p. 155). Um importante aspecto nesta repiiblica mundial das letras, com 0 nterlocugao facilitada pela rapidez com que feitas traducées das obras literérias, € a “polinizacéo cruzada” (Rushdie, . cada escritor pode escolher seus predlecessores, seus loca-se como herdeiro de Gogol, Cervantes, , uma drvore genealdgica poliglota, dos 39

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