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Paul Ricoeur Etica, Identidade e Reconhecimento ORGANIZACAO E TRADUCAO Fernando Nascimento Walter Salles Eprrora\ PUC RIO Edic6es Loyola Paul Ricoeur: ética, identidade e reconhecimento / Fernando Nasci- mento, Walter Salles, organizacio e traducia. — Rio de Janeiro : Ed. PUC-Rio ; Sao Paulo : Loyola, 2013. 176 p.; 21cm Indlui bibliografia 1, Ricoeur, Paul, 1913- 2. Filésofos franceses. 3. Etica, 4. Herme- néutica I. Nascimento, Fernando. II. Salles, Walter. CDD: 194.9 Conselho Editorial PUC-Rio: Augusto Sampaio Cesar Romero Jacob Fernando Sa Hilton Augusto Koch José Ricardo Bergmann Luiz Alencar Reis da Silva Mello Luiz Roberto Cunha Miguel Pereira Paulo Fernando Carneiro de Andrade Projeto grafico de capa e miolo: Regina Ferraz Revisao de originais: Débora de Castro Barros Reviséo de provas: Nina Lua Editora PUC-Rio Rua Marqués de S. Vicente, 255 Projeto Comunicar, casa Editora — Gavea 22453-900 Rio de Janeiro; R} T/F 55 21 3527 1760 / 55 21 3527 1838 edpucrio@puc-rio.br www.puc-rio,br/editorapucrio Edigdes Loyola Jesuitas Rua 1822, 341 — Ipiranga 04216-000 Sao Paulo, SP T 55 11 3385 8500 F 55 11 2063 4275 editorial@loyola.com.br vendas@loyola.com.br www.loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrénico ou mecanico, incluindo fotocépia e gravagao) out arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissao escrita das Editoras. ISBN (PUC-Rio): 978-85-8006-095-9 ISBN (Loyola): 978-85-15-04039-1 © EDITORA PUC-RIO, Rio de Janeiro, Brasil, 2013, © EDIGOES LOYOLA, Sao Paulo, Brasil, 2013. Sumario Apresentagao A questao do sujeito em Ricoeur e Deleuze Johann Michel Da dignidade ontolégica da literatura Jeanne-Marie Gagnebin Agoes narradas como fundamento da identidade narrativa David Pellauer Depois da “pequena ética” de Paul Ricceur (1990), o sentido da sua revisdo (2001) Michel Renaud O lugar hermenéutico e a fungao ética das pardbolas Gilbert Vincent Identidade prospectiva George Taylor Hermenéutica diacritica — a partir de Ricoeur Richard Kearney Palavras finais Sobre os autores 37 81 103 127 149 169 171 Identidade prospectiva George Taylor Ao proporem o tema Ftica, identidade e reconhecimento, os or- ganizadores deste livro solicitaram que ele fosse examinado por meio de um didlogo com as seguintes obras de Ricoeur: Tempo e narrativa, O si-mesmo como um outro e O percurso do reconhe- * cimento. Por um lado, meu texto restringe o tema a questao da identidade e, por outro, expande o escopo de atengio sobre a obra de Ricceur, a fim de incluir os seguintes trabalhos que pre- cedem os trés volumes de Tempo e narrativa: A metdfora viva, Ideologia e utopia e seu texto nao publicado sobre a imaginacao. Meu objetivo, pois, ¢ avaliar a contribuicao — talvez particular- mente importante — desse material para o conceito de identi- dade prospectiva. A primeira parte do texto é dedicada as possibilidades da identidade prospectiva que podem ser encontradas nos traba- Thos citados de Ricoeur. Na segunda parte, é efetuado o contras- te dessas possibilidades com a tematica dos textos posteriores de Ricceur, especialmente Tempo e narrativa, Minha hesitante tese é de que, na transicao entre o texto sobre a imagina¢io e Tempo e narrativa, a énfase que Ricceur conferiu ao tema da identidade prospectiva foi atenuada em parte por conta da trajetéria bio- grafica do autor, em parte em funcdo de uma mudanga na te- miatica predominante de sua pesquisa e em parte por uma alte- racgao metodolégica. Esta ultima razdo é de especial interesse para mim, pois esté mais relacionada com a filosofia de Ricoeur do que com sua biografia. Assim, proponho que os aspectos da nogao de identidade prospectiva perderam sua forca quando 127 George Taylor Ricceur mudou a énfase dos trabalhos anteriores sobre a refe- réncia produtiva para o modelo de mimese tripartida de Tempo € narrativa: prefiguracao, configuracao e refiguracao. Postulo, portanto, que é necessdrio manter a atencdo sobre os trabalhos anteriores do autor para compreender de maneira integral as possibilidades da identidade prospectiva na filosofia de Ricceur. Parte de meu interesse neste projeto é avaliar quais sao as con- tribuic6es especificas para 0 corpus ricceuriano conferidas pelo livro sobre a ideologia e pelos semindrios sobre a imaginacao. Ideologia e utopia e os semindrios sobre a imaginacao — atu- almente sendo editados por mim — sao produtos de semindrios que Ricceur lecionou na Universidade de Chicago em 1975, aproximadamente oito anos antes da publicagao do primeiro volume de Tempo e narrativa. Esse foi também 0 ano em que A metdfora viva teve a primeira edicao em francés. Parte da fas- cinagao em torno dos seminérios sobre a imaginacao se da por- que, ao final deles, Ricoeur mencionou que, no ano seguinte, Passaria a oferecer semindrios sobre a narrativa, o que significa que jé estava antecipando a transi¢ao para o novo assunto. Tan- to os seminarios sobre a ideologia quanto os semindrios sobre a imaginacao tratam do topico mais abrangente da imaginacao. Ideologia e utopia sao formas de imaginagao social e cultural e, nos seminarios sobre a imaginacao, Ricoeur desenvolveu os con- ceitos de imaginacao epistemolégica e imaginacao poética. Tomo como meu texto primdrio uma citagdo das paginas finais do seminério sobre a ideologia: Chegamos ao nosso ultimo ponto de interesse... no nivel da imagina¢ao constitutiva... Quanto mais escavamos sob as apa- réncias, mais perto chegamos de um tipo de complementari- dade de fungoes constitutivas [como entre ideologia e utopia]. Os simbolos que governam nossa identidade derivam nao ape- nas do nosso presente e de nosso passado, mas também de nossas expectativas para o futuro. E parte de nossa identidade 128 Identidade prospectiva , _ estar aberta a surpresas, a novos encontros. O que eu chamo de identidade da comunidade ou do individuo é também uma identidade prospectiva. A identidade esta em espera. Portanto, o elemento utépico é, em Ultima andlise, um componente da identidade. Q que chamamos de nés mesmos é também aquilo que esperamos e que ainda nao somos. Este é 0 caso ainda se falamos... da estrutura de identidade como uma estrutura sim- bélica... (Ricoeur, 1981a: 311; grifo nosso) Vale explorar mais detidamente essa cita¢ao, pois ela esclare- ce 0 contexto mais amplo no qual se insere o presente texto, assim como as questées especificas que ele procura investigar. Em primeiro lugar, 0 titulo e a preocupagao geral do texto nas- cem da mencao de Ricceur 4 identidade prospectiva, uma iden- tidade que est4 no futuro. Em segundo lugar, essa identidade pode ser de um individuo ou de uma comunidade. Ao contrario do que acontece em O si-mesmo como um outro, cujo foco prin- cipal esta na identidade individual, o semindrio sobre a ideolo- gia se concentra nas identidades comunitarias, sociais e politicas — elas sio também meu objeto de trabalho neste escrito. Em terceiro lugar, a identidade prospectiva esta vinculada a imagi- nacdo em sua capacidade constitutiva; a imaginacao nao é ne- cessariamente fonte de distorcao ou um escapismo. Em quarto lugar, a capacidade constitutiva da imaginacao aproxima as ca- pacidades produtivas da ideologia e da utopia através do pas- sado, do presente e do futuro da identidade. Em quinto lugar, a capacidade de imaginacao esta relacionada com a identidade tomada como uma estrutura simbélica. Como Ricceur enfatiza, nao ha um estagio pré-simbélico da vida, a aio humana é sem- pre mediada simbolicamente (Ricceur, 1978: 51). Esse é um tema nao apenas mantido, mas ampliado na nogao de prefigu- racao que Ricoeur desenvolve em Tempo e narrativa (Ricceur, 1984a: 54). Portanto, se, por um lado, procuro mostrar as dife- rencas entre Tempo e narrativa e os seminarios sobre ideologia 129 George Taylor e imagina¢ao, por outro, vejo uma base comum entre as obras a partir do reconhecimento de uma estrutura de vida simbdlica subjacenite, incluindo-se a vida politica e comunitaria. Em sexto e ultimo lugar, meu argumento sobre a identidade prospectiva se concentra em um aspecto particular da identidade futura que Ricceur articula nessa citacao. Embora seja importante reconhe- cer que a identidade inclua 0 futuro, bem como 0 presente e 0 passado, meu interesse nao esta na identidade prospectiva como uma trajetoria suave que simplesmente estende os alicerces do passado. Quando, na passagem destacada, Ricoeur descreve a identidade ptospectiva como “expectativas para o futuro” ou como “o que nao*somos’, as expectativas que desejo abordar nao sao aquelas de um desdobramento do que aconteceu an- teriormente. Ao contrario, pretendo tratar da identidade pros- pectiva que esté “em espera’, que é “aberta a surpresas, a novos encontros” e que pode se tornar desorientada para poder ser reorientada. O elemento utdpico da identidade é representativo dessa qualidade. Ha um aspecto de aspiracao na identidade prospectiva, um sentido daquilo que nao somos ainda e que estamos lutando para nos tornarmos, transcendendo nossos li- mites atuais. Em um momento no qual varios paises, particularmente do hemisfério Norte, se encontram acuados nao apenas por crises econdmicas, mas também por crises de confianga em seus go- vernantes, creio que as reflexdes de Ricceur sobre a identidade Pprospectiva nos ajudam a pensarmos sobre possiveis maneiras Para que esses paises recuperem sua estruturacdo e retomem seu desenvolvimento. Por muito tempo, talvez, tais paises supe- restimaram a confian¢a em seus modelos de governo; todavia, estao agora encurralados pela inabilidade desses modelos para encontrar novas diregdes. Outro exemplo de semelhante con- juntura é o dos paises da Primavera Arabe, nos quais a crise dos modelos de governo levou ao fim de varios sistemas politi- 130 \dentidade prospectiva cos e, também, a incertezas sobre futuros modelos que seriam adequados para cada nagao. Ha, por conseguinte, uma neces- sidade de imaginac4o produtiva para transformar as identida- des existentes. A imaginacao produtiva pode envolver a criacao de novos modelos, seja por meio de “novos encontros” com uma tradicao j4 existente, que revigora e aprimora o sistema antigo, ou de “novos encontros” com outro modelo de governo existente ou proposto, que permite a superacao do modelo an- tigo. Nao estamos inevitavelmente presos a rede de identidade politica, social, cultural ou individual que nos estruturou até o momento. Parte do prazer de visitar outros paises, como o Bra- sil durante este congresso, esta relacionada com a oportunidade de ser surpreendido, de ter novos encontros com os partici- pantes, seja em suas capacidades individuais ou em sua investi- gacdo de novos e dinamicos modelos de identidade prospectiva, os quais se refletem nos novos direcionamentos e desafios da América Latina. Nesta primeira parte do presente texto, passo a expor o re- trato que Ricoeur fez da referéncia produtiva e da imaginacao produtiva no semindrio sobre a imaginagao por meio de duas etapas intermediérias. Inicialmente, apresento a nocao de refe- réncia metaférica desenvolvida em A metdfora viva e, entao, a exemplifico com 0 conceito de utopia descrito no semindrio sobre a ideologia. Como é bem sabido, em seu trabalho sobre a metdfora, Ricoeur toma 0 termo referéncia da distincdo entre sentido e referéncia desenvolvida pelo légico Gottlob Frege. O sentido é aquilo que uma proposicao afirma, e a referéncia é aquilo sobre o qual o sentido se refere. O planeta Vénus é a “es- trela” vista tanto pela manha quanto a noite no céu. A “estrela da manha” e a “estrela da noite” tém diferentes sentidos, mas Venus é a mesma referéncia para ambos (Ricceur, 1978 [1975 217). Na literatura, a estrutura do texto é seu sentido, enquanto o mundo ficcional que ele descreve € sua referéncia (Ricceur, 131 George Taylor 1978 [1975]: 220). O sentido metaférico nasce a partir da ex- pansao do sentido literal. O enunciado “o homem é um lobo” tem significado do ponto de vista metaférico, mas nao do ponto de vista literal. De forma similar, a referéncia metaférica nasce da suspensao do sentido literal: a ficg4o literaria cria um mundo que nao é literalmente verdadeiro. A referéncia metaf6rica é uma referéncia de “segundo nivel” (Ricoeur, 1978 [1975]: 221). Destaca-se aqui, em particular para o tema identidade pros- pectiva, que a referéncia metaférica apresenta “uma ‘mais-valia’ semantica, a capacidade de estar aberta a novos aspectos, novas dimensdes ¢ novos horizontes de significado” (Ricoeur, 1978 [1975]: 250; grifo nosso). A referéncia metaférica opera “para estabelecer outro mundo — outro mundo que corresponde a outras possibilidades de existéncia, a possibilidades que pode- tiam ser mais profundamente nossas proprias possibilidades” (Ricoeur, 1978 [1975]: 229). Esses novos horizontes, dimens6es e possibilidades de sentido nao saéo simplesmente hipotéticos, mas oferecem certos tipos de verdade que Ricoeur nomeia ver- dades metaféricas, as quais mantém a tensao metaférica de ser uma verdade que “é”, bem como uma verdade que “nao é”. A verdade nao ¢ literal, completamente realizada, mas esta além de nds mesmos, apenas parcialmente em nosso entendimento, demandando esforgo para ser atingida (Ricceur, 1978 [1975]: 255). A “mais-valia” é a qualidade de algo real, algo verdadeiro, que é dado, porém nao cessa de estar a nossa frente e nao é simplesmente parte de uma jornada cujo término esté adiante. Considerando-se 0 presente objetivo de andlise da identida- de prospectiva, particularmente no contexto social e politico, a nogao de utopia ¢ especialmente pertinente. Em seu livro Ideo- logia e utopia, Ricceur reconhece que utopias sao ficcdes que muitas vezes representam afastamento da realidade, fugas da realidade politica tempestuosa que existe a nosso redor (Ri- ceeur, 1981a: 310). Ainda assim, ele argumenta que, em seu as- 132 Identidade prospectiva pecto mais positivo, as utopias sao ficcdes que buscam ser rea- lizadas. Nesse sentido, visam a reduzir a lacuna entre ideia e realidade (Ricoeur, 1981a: 276). Ricoeur enfatiza que as utopias, em seu aspecto mais positivo, servem para abalar uma ordem existente (1981a: 273), atuam para “quebrar a espessura da rea- lidade” (1981: 309), “mudam a realidade” (1981a: 289). Assim como a referéncia metaf6rica, as utopias portam uma “mais- -valia”. Oferecem algo a mais do que a realidade existente: novas verdades que precisam tanto de adaptacdes quanto de aplicacao para ser implementadas e permanecem, de alguma forma, sem- pre a nossa frente. Nos Semindrios sobre a imaginacdo, Ricoeur avanga além da nogao de referéncia metaf6rica e das nogées de ideologia e uto- pia como formas de imaginagdo social e cultural, construindo um argumento que propGe os conceitos mais amplos de ima- ginagdo produtiva e referéncia produtiva. Ambos os conceitos sao fundamentais para minha tese. Nesses seminarios, Ricoeur explica que a maioria do pensamento ocidental oferece um mo- delo de reprodugao, em vez de uma imaginacao produtiva. Par- tindo de tal anélise, a imagem é cépia de uma impressao fisio- légica de uma realidade externa e a imaginacao é similar a uma cépia da realidade. Como uma cépia, a imaginacao é reprodu- tiva, e nao introduz novidade alguma. A teoria da imaginacado produtiva de Ricoeur est4 fundada no pensamento de Kant. Ele utilizou dois semindrios para desenvolver a diferenciacdo entre os dois sentidos de imaginagao produtiva para Kant, 0 primeiro deles apresentado na obra Critica da razio pura e o segundo, em Critica da faculdade do juizo. Na primeira Critica, os limites continuam aqueles da objetividade do conhecimento empirico, ea imaginagao produtiva é a funcdo sintética dentro da percep- ¢ao. A imaginagao produtiva cria as conexdes entre a capaci- dade de receber uma intuicdo e a habilidade de ordend-la em conceito (Ricceur, no prelo, ref. 5.3). Como é bem conhecido, 133 & George Taylor essa teoria da imaginagao produtiva se distancia de uma dimen- sao ficcional. Na Terceira critica, por sua vez, é apresentada a sintese criativa do julgamento reflexivo, como o papel da ima- gina¢ao livre. Nesse contexto, a imaginacao experimenta algo além daquilo que ela luta para adequar a si mesma, mas nao consegue (Ricoeur, no prelo, refs. 6.11-2). Ao concordar com Gadamer acerca da ideia de que cogni¢io e estética nao devem permanecer separadas, Ricoeur considera que, depois das considerac6es de Kant, a tarefa é construir um concgito unificador de imaginacdo que combine as dimensoes estéticas e cognitivas (Ricoeur, no prelo, ref. 5.4). Ele acredita que sua principal contribui¢aéo nos seminarios sobre a imagina- ¢40 é a teoria da ficcao e o principal tépico dessa colaboragao é a referéncia produtiva (no prelo, ref. 19.1). E importante consi- derar, tanto para a discussdo de Ricoeur quanto para uma tema- tica mais abrangente, que ele nao vincula sua andlise ao termo; ao contrario, afirma: “|trata-se de] um problema para o qual oferego um nome” (no prelo, ref. 15.3). A sugestao de Ricceur é que, em vez de encontrar seu referente na realidade existente — uma forma de imaginacao reprodutiva —, “a ficgao da seu pré- prio referente e, portanto, abre novas possibilidades ontolégicas que estavam bloqueadas pelo ja existente” (no prelo, ref. 15.3). A ficgao nao é o falso; ao contrario, ela tem a capacidade “de abrir novas possibilidades para a realidade” (no prelo, ref. 15.3). Assim, 0 tema é repetido varias vezes ao longo do seminario. “E funcao da imaginacao produtiva — da ficcional — abrir e mu- dar a realidade” (Ricoeur, no prelo, ref. 15.5), porque a ficcao “se libertou da regra do original, ela pode, portanto, dar um novo aspecto, uma nova dimensao 4 realidade. O paradoxo é que uma teoria da imaginagao deve estar ligada a uma ontolo- gia” (no prelo, ref. 19.13). Enfatizo, pois, dois aspectos da tese de Ricoeur sobre a refe- réncia produtiva, os quais derivam de partes anteriores da dis- 134 Identidade prospective cussao aqui desenvolvida. Primeiramente, a referéncia produti- va rompe com a realidade atual, apresenta algo novo, uma nova maneira de ver e de entender a realidade. Nao estamos presos pelas dimensées da realidade atual, incluindo as realidades so- ciais e politicas vigentes. Em segundo lugar, porque a referéncia produtiva nao existe em lugar algum, é ficcional em relagdo a realidade atual. Ela é igualmente uma referéncia que esta sem- pre a nossa frente, nao é totalmente realizada, sempre nos con- vida a busca-la, é sempre prospectiva. Esse aspecto da referéncia prospectiva aparece em sua continua disponibilidade de realizar novas intrus6es na realidade e, também, nos semindrios sobre idedlogia, na discussao das utopias como “lugar nenhum” (Ri- coeur, 1981a: 310) e nas discussdes anteriores sobre a referén- cia metaférica como uma tensao entre 0 “é” e 0 “nao é” (1978 [1975]: 255). Os dois aspectos da referéncia produtiva séo sua continua “mais-valia’, sua habilidade de oferecer algo além da realidade atual. Nos semindrios sobre a ideologia, varias linhas antes da afirmacao a respeito da identidade prospectiva — apre- sentada na citagdo de abertura do presente texto —, Ricoeur es- creve: “para estar aqui, da-sein, devo também ser capaz de estar em lugar nenhum. Ha uma dialética entre 0 Dasein e o ‘lugar (1981a: 310). A referéncia produtiva da sentido a identidade prospectiva, como um recurso para romper os limi- nenhum’ tes atuais e como um desafio em relagao a suficiéncia das reali- zacoes atuais. Ha mais possibilidades disponiveis. Podemos e devemos sempre fazer mais. Ao avancar nesta andlise para considerar Tempo e narrativa e alguns dos trabalhos subsequentes de Ricceur, meu propé- sito é investigar se as duas dimensdes da referéncia produtiva sio mantidas de forma suficiente nos trabalhos posteriores. Abordando a questao de forma sucinta, se nao até mesmo mui- to direta, é interessante 0 fato de que, nos seminarios sobre a imaginacao, Ricoeur defende que a referéncia produtiva tem 0 135 George Taylor poder de transfigurar: uma “capacidade para a transfiguracdo da experiéncia e, por meio da experiéncia, para a transfigura- g4o da realidade” (no prelo, refs. 17.1, 17.7). Sera que esse mes- mo sentido de transfiguracdo da experiéncia e da realidade é preservado nas categorias de prefiguracao, configuragao e refi- guracao que Ricoeur desenvolve em Tempo e narrativa? Seré que 0s conceitos aparecem apenas como produtivos no sentido de sintéticos, mas o papel da imagina¢ao livre e da referéncia pro- dutiva se torna somente um tema subliminar? Se hd um ponto de transicao ou mudanga entre a énfase de Ricceur na criatividade e a referéncia produtiva em seus tra- balhos sobre a metéfora ea imaginac¢ao e em seus escritos pos- teriores, como Tempo e narrativa, as razdes para tal transicio podem variar. Podem estar vinculadas a uma questao de bio- grafia intelectual, ou seja, a discusséo dos topicos anteriores estava concluida e era tempo de prosseguir com uma tematica distinta. Outra possibilidade € que a transigao esteja relacionada com uma questao de biografia pessoal, em outras palavras, um movimento ao longo do tempo que passa de um olhar pros- pectivo para um olhar retrospectivo. Ao escrever Meméria, his- toria e esquecimento, por exemplo, a orientacao de Ricoeur é mais claramente voltada para o passado e ele a reconhece como uma “preocupagao privada” do livro, um “olhar prolongado do passado sobre uma vida que é ja longa” (2004 [2000]: 15). En- tretanto, no presente texto, a questdo central é o método de Ricceur em Tempo e narrativa e os problemas filos6ficos levan- tados por esse método. Sao diversos os desafios de um argumento que trata de uma mudang¢a sobre uma abordagem filoséfica. Os comentarios ini- ciais de Tempo e narrativa anunciam que 0 livro foi concebido juntamente com A metdfora viva. Os dois textos “formam um par”. Ambos versam sobre o fendmeno da “inovagao semantica” e da “imaginagao produtiva” (Ricceur, 1984a: 30). A revivifica- 136 Identidade prospectiva gao tematica da mimese como criativa e nao meramente repro= dutiva — puramente imitativa —, exposta em Tempo e narrativa, foi antecipada nos semindrios sobre a imaginagao. Ricoeur afir- ma gue foi tentado a utilizar o termo mimese no contexto dos semindrios sobre a imagina¢ao porque, se Aristoteles é lido com precisao, observa-se que a “poesia é mimética na medida em que é criativa” (no prelo, refs. 15.5, 19.6). Nesse semindrio, o autor continua a caracterizar a mimese como uma forma de referéncia produtiva (no prelo, ref. 15.6). A mimese é também breyemente discutida em A metdfora viva como uma forma de referéncia metaférica (1978 [1975]: 244-245). Em Tempo e narrativa, Ricceur também deixa claro que seu uso da nogao de figuracdo na obra pretende alterar 0 método empregado em trabalhos anteriores, nos quais fora adotada a nocio de referéncia. Sao varias suas objegdes a nogao de referén- cia e derivam das limitagdes da légica proposicional de Frege, que é restrita ao mundo da ciéncia positivista (Ricoeur, 1988: 38-39). Em primeiro lugar, o exemplo de Frege sobre ser Vénus tan- to a estrela da noite como a estrela da manha ilustra que sentido e referéncia sio enunciados sobre objetos empiricos. Diferente- mente, um dos objetivos de Tempo e narrativa — assim como de Meméria, historia e esquecimento— é mostrar que ficc4o e hist6- ria estao entrelagadas. Nao ha percepcao pura; a percepgao esté sempre relacionada com a interpretacao e a imaginacdo produ- tiva (Ricoeur fez tal afirmacao também em A metdfora viva e nos seminarios sobre a imaginagao acerca das ciéncias naturais [1978 (1975)], mas nao tratarei desse argumento aqui). Em Tempo e narrativa, ele quer subordinar a questao de Frege da teoria do conhecimento (empirico), representada pelo termo referéncia, 4 questao hermenéutica sobre a figuracao (Ricceur, 1988: 5). Sou muito simpatico a esse objetivo. A questao da fi- guracao, incluindo-se a prefiguracdo, tem uma relagdo préxima com 0 vocabulario de Ricoeur — citado anteriormente — sobre a 2a7 George Taylor inexorabilidade da mediagao simbolica da agao. Entendo que ‘isso significa que a inevitabilidade da figuracao, ou estruturagao simbélica da acdo humana, é uma das intuicdes fundamentais da hermenéutica. Como antecipei, simpatizo com uma implicacdo correlativa da figuracao. Assim como ela entrelaca o histérico e o ficcional, entrelaga o “real” e o “irreal”. O “real” nao é uma categoria es- tatica, e a ficc4o pode oferecer intuigdes importantes sobre o “real”. Esse entrelagamento do real e do irreal é também in- consistente com a abordagem 4 referéncia da filosofia analitica (Ricoeur, 1988: 6). Em segundo lugar, agrada-me a ideia de que a figuracao captura — diferentemente da referéncia — os elementos de tem- “po e acao que sao essenciais para Tempo e narrativa (Sweeney, 1988: 78). Ha uma terceira raz4o principal citada por Ricoeur para a substituigao conceitual da referéncia pela figuracao. Ele havia pensado na época de A metdfora viva (e nos seminarios sobre a imaginaca4o) que era adequado descrever o poder transforma- dor da literatura como um produto da propria obra — sua refe- réncia. Em Tempo e narrativa, como € sabido, Ricoeur correta- mente observa a necessidade do papel desempenhado pelo leitor na realizado dessa transformacdo (Ricceur, 1988: 159). A refi- guracao do leitor do texto substitui 0 vocabuldrio inadequado da referéncia textual. Embora concorde com a necessidade de adscrever um papel ao leitor, acredito que Ricceur pode ter ce- dido muito nesse movimento, como explicarei posteriormente. E ainda importante considerar que, como apontou David Pellauer (1988: 89), apesar das afirmagGes de Ricoeur de que, em Tempo e narrativa, ele descartou 0 conceito de referéncia em prol do de figurac4o, o autor continuou a utilizar o termo refe- réncia ao longo dos trés volumes da obra (Ricoeur, 1984a: 77- 82; 1984b: 160; 1988: 185). Assim, é necessdrio cuidado ao deli- 138 Identidade prospectiva near 0 que mudou e o que foi mantido em relacio ao trabalho anterior de Ricoeur. Se, de maneira geral, considero interessante o desenvolvimen- to de Ricoeur sobre a figuracao em Tempo e narrativa, creio que é necessério explicitar de quais formas, por outro lado, hesito a afirmar que ele conseguiu preservar a capacidade da referéncia produtiva de trazer algo novo para a realidade e, ao mesmo tem- po, de sempre conduzir em direcdo a identidade prospectiva. Divido meus comentarios em duas partes basicas: sobre a con- figuracdo, apresentada em mimese II, e sobre a refiguracao, apresentada em mimese III. Configuracao é a reformulacao de Ricceur sobre 0 conceito de sentido de Frege, ao passo que refi- guracao é a reformulagao da referéncia (Ricoeur, 1984b: 159). Os primeiros desafios da retencao da nocao de inovacao produtiva nascem como uma consequéncia da estratégia de Ricoeur na elaboracao dos trés volumes de Tempo e narrativa e na propria natureza da narrativa. Apdés os capitulos introduté- rios do primeiro volume da trilogia, a segunda parte do primei- ro volume e o segundo volume na integra discutem a configu- racao, mimese II. Somente no terceiro volume Ricoeur retorna a refiguragao e as potenciais “verdades” da ficgao. A énfase na narrativa ao longo do trabalho também gera uma tendéncia de olhar para tras em vez de voltar-se para a frente. Narrativas sao sempre escritas no tempo passado (a histéria, por exemplo), como se ja tivessem acontecido (Ricceur, 1984a: 82). Narrati- vas recontam (1984b: 156), lembram (1984b: 148), recordam (1984b: 101), voltam 4 memoria (1984b: 74). O problema esta relacionado com o tom da narrativa — posteriormente, retoma- rei a resposta de Ricoeur a essa questao. Gostaria de mencionar mais duas questdes importantes quanto a discussao de Ricceur sobre a configuragao. Primeira- mente, o ato da configura¢do narrativa media, integra (1984a: 65) e compreende a multitude de eventos e os organiza em uma 139 George Taylor histdria, uma narrativa, um todo (1984a: 66). A descrigio de Ricceur sobre a narrativa como uma concordancia discordante da destaque a concordancia (1984a: 66). Narrativa é a “sintese do heterogéneo” (1984a: 74). Ricceur defende que a sintese do heterogéneo na narrativa a “aproxima” da metdfora, uma vez que a metafora também é muito adequada para perceber os tragos sutis de semelhanga e similitude (1984a: 10). Assim, en- tendo que 0 vocabulario de mediacao, integracéo, concordan- cia, sintese e similitude da prioridade a resolucao das diferengas, e nao a profundidade da inovacao — novas e discutiveis possibi- lidades —, nem a uma identidade abalada que pode resultar des- sa operaéao ou as produtivas possibilidades fugidias que podem ter escapado, mas que ainda se mantém como “outro lugar” possivel. Estamos nos suficientemente conscios de quao trans- formadora pode ser essa “nova pertinéncia” que pode se apre- sentar no conflito entre 0 novo e 0 antigo (1984a: 80)? Recorda- mos que a media¢ao ou a sintese nao é completa ou totalmente harmoniosa com o que resta de tensdo? Prefiro 0 vocabulario de Ricceur quando ele escreve, em ao menos uma ocasiao, sobre a estrutura da narrativa como uma dialética entre concordancia e discordancia, em vez de uma concordancia discordante (1984a: 158). Elejo também 0 voca- buldrio da dialética entre sedimentacao e inovagao (1984a: 79) em detrimento do vocabulario de interagdo (1984a: 68). Tam- bém prefiro o vocabulario de reconfiguracao ao de configuracao, que Ricceur utiliza, no minimo, uma vez no inicio de Tempo e narrativa (1984a: 11). Reconfiguracao, para mim, indica melhor a mudanga e 0 ajuste vinculados a narrativa. Gosto do vocabu- lario de A metdfora viva, no qual a operacdo metaférica dispo- nivel na narrativa é descrita como um parecer que encontra semelhanga “apesar da diferenga, apesar da contradi¢do” (Ri- ceeur, 1978 [1975]: 196). A aproximacao é incompleta, a dife- renga é mantida. Também me agrada 0 vocabuldrio de Ricceur 140 Identidade prospectiva em uma entrevista concedida a Richard Kearney (1992: 65), na qual ele defende que “existe 0 imagindrio da ruptura, um discurso da ‘utopia’ que se mantém critico dos poderes que nas- cem da fidelidade a um ‘outro lugar’, a uma sociedade que ‘ain- da nao é”. Diferentemente, nao me agrada a afirmacao de Ri- cceur, em um de seus ensaios, de que a assimilacao predicativa pode ser descrita como um nivel de “paz e descanso conceitual ap6s a ‘guerra’ entre distancia e proximidade” (Ricoeur, 1981b: 146). O desenvolvimento de Ricoeur sobre a configura¢ao, mi- mese II, parece apto a acomodar os pontos que mencionei, mas confere diferentes prioridades e énfases. Continuo a considerar que a discussao de Ricceur sobre a referéncia produtiva é atraente em fungao da possibilidade de rupturas da realidade corrente, da introdugao de algo novo e da absorgao sempre li- mitada do “novo”, de um sentido escorregadio que é mais expli- cito e proeminente na referéncia produtiva. Uma segunda questio relevante sobre o desenvolvimento que Ricceur faz da configuracao aparece no nivel da narrativa como um todo. Nesse nivel, move-se do sentido do texto para o mundo do texto, para o mundo que é aberto por ele. Em tra- balhos anteriores, como jd observei, o mundo do texto € a refe- réncia de Ricceur (1978 [1975]: 220). Em Tempo e narrativa (1984b: 158-159), 0 autor distingue tal mundo como “uma transcendéncia imanente no texto’, um problema de configu- racao, e o mundo do texto assumido pelo leitor é caracteri- zado como um ato de refiguracao. Por enquanto, mantém-se o mundo do texto imanente ao texto. Parte do poder positivo da narrativa é que ela cria mundos ficcionais que podem ofe- recer um distanciamento da realidade corrente, e a distancia permite novas perspectivas e novas criticas (1984b: 155). A fic- gao é também inventiva; pode introduzir “o ainda nao dito” (Ricceur, 1983: 183) e pode projetar novas possibilidades para a redescrigao do mundo (Ricceur, 1981b: 152). Nesse estdgio, nao 141 George Taylor importa se a narrativa trata da lembranga ou do recontar, por- que o mundo que ela projeta nao existe no passado, mas é ex- tratemporal, uma perspectiva de distanciamento disponivel em relagdo a qualquer tempo (1984b: 147). Entretanto, uma consequéncia desapontadora do mundo do texto tomado aqui como uma transcendéncia imanente do texto é que o mundo oferecido por ele, nesse nivel da configu- racao, nado apresenta demanda de “verdade”, porém de “como se” (Ricoeur, 1984a: 64-65), de “variacdes imaginativas” (1984b: 101). Na primeira linha da discussao de Ricoeur sobre mime- se II, lé-se que ela abre “o reino do e se”. Ricceur apresenta os trés romances discutidos no segundo volume de Tempo e narra- tiva como “variagoes imaginativas”. A demanda de verdade des- sas ficcdes é mantida; suas verdades sio hipotéticas (1984b: 160). Nao se esta diante da veeméncia da demanda de verdade da referéncia produtiva e de sua possibilidade de inserir novas realidades. A determinac4o das verdades da ficcao deve aguar- dar sua refiguracao por meio de seus leitores (em breve, retor- narei as limitagdes que, de meu ponto de vista, esto presentes nesse argumento). Passando finalmente para a refigurag4o, mimese III, seu po- tencial reside em sua adscrigao a narrativa de uma “radical re- formulacgao do problema da verdade” (Ricceur, 1984b: 160). A inventividade da narrativa pode trazer consigo novas verda- des. Assim, a narrativa cria uma ponte entre descoberta e inven- ¢a0. Eis 0 ponto no qual Ricceur insiste: “para significar algo como uma referéncia produtiva no sentido em que, seguindo Kant, nds falamos de imaginacao produtiva, a problematica da refiguracao deve se libertar, uma vez por todas, do vocabulario da referéncia” (1988: 158). A categoria da referéncia nao é mais apropriada porque est4 vinculada a concepcao positivista de que a realidade significa realidade empirica. Como antecipado na analogia de Ricceur 4 referéncia produtiva, sou também 142 Identidade prospectiva muito simpatico a essa demanda que Ricceur apresenta aqui novamente com relacdo ao problema da referéncia. Também destaco a elaboragdo de Ricceur da refiguracao como dependente do papel do leitor, ainda que nao concorde completamente com ela. O leitor é aquele que traz a obra a vida ao ler e agir a partir daquilo que foi lido (1988: 158-159). A incorporagao do papel do leitor é um avango decisivo em Tempo e narrativa, como Ricceur reconhece que nao havia feito anteriormente (1988: 158-159). Entretanto, a apresentagao de Ricoeur é muito polarizada. Para ele, o leitor é aquele que refi- gura 6 texto, enquanto eu também daria peso ao texto “refigu- rando” o léitor. E correto afirmar que o leitor deve estar aberto a transposicao metaférica que ocorre em um texto e deve ser ativo ao realizar tais transposi¢Ges, mas 0 deslocamento meta- férico € uma operacao propria do texto. E estranho que, em um trabalho que trata da refiguracao, como € 0 caso de Tempo e narrativa, Ricoeur dedique apenas algumas linhas do terceiro volume da obra ao potencial que tem o texto de criar uma ex- periéncia estética — retirada do texto -, ao efeito de catarse do texto — seu abalo das normas e costumes correntes — ou a sua forca de convic¢ao persuasiva — sua fora ilocutéria (1988: 176- 177). Mesmo que a realizacao de tais forgas dependa de um leitor ativo, seu poder criativo esta na configuragao do texto. Mais ainda, indica que os limites entre configuragao e refigura- Cao so mais fluidos do que Ricoeur sugere. O leitor é afetado pelo texto. O texto nao é simplesmente uma variagdo imagina- tiva; ele pode se impor sobre o leitor com sua construgdo da imagem de uma nova verdade. Esse é, em particular, um ponto em que parece muito limitante o vocabuldrio de Ricceur sobre refiguracao. Deve-se compreender que o leitor pode ser transfi- gurado pelo texto. A realidade atual pode ser rompida por ele. Nao minimizo a necessidade do leitor de estar aberto ao texto. Nesse sentido, um dos elementos mais convincentes do 143 George Taylor desenvolvimento de Ricceur sobre a refiguracao esta em sua apropriagao da nogao de “horizonte de expectativa” de Reinhart Koselleck. Como Ricoeur indica, em principio, é estranho incor- porar expectativas as narrativas, uma vez que narrar é recontar (1988: 260). Esse é um dos problemas gerais levantados pela narrativa, como mencionado. A narrativa parece mais uma sin- tese do passado do que uma visao do futuro. Mas recontar pode também antecipar o futuro, pode trazer o futuro ao presente, pode estar voltado ao que ainda nao é (1988: 208). Em oposicao a nogao usual de narrativa como composicao, o horizonte de expectativa € orientado para “uma ruptura de perspectivas” (1988: 208209). Vale notar que, em tal contexto, a expectativa nao est limitada a uma expectativa do contexto, mas aberta a possibilidade do que € novo e diferente. Essa é uma funcio vital da identidade prospectiva. Do mesmo modo que Koselleck, Ricceur defende que nosso tempo é caracterizado pela “remogao do horizonte da expecta- tiva” — seja pela reducao ou pela fixacdo em teorias de escapis- mo — e também pelo “estreitamento do espaco da experiéncia” — nosso sentido do passado. Devem ser liberadas as “potenciali- dades nao realizadas” (1988: 235) do passado, e para nosso ho- rizonte futuro nds devemos aprender que o futuro esta, em ver- dade, aberto e requer nossa ago (1988: 325, n. 9). Minha sensacao bivalente a respeito da discussao de Ricceur sobre a refiguragao se torna, talvez, mais evidente por minha concordancia em relacao a sua afirmacao de que a utopia ensina que o futuro esta aberto. Entretanto, meu desapontamento nas- ce do fato de que tal afirmagao aparece apenas como uma nota de rodapé (1988: 325, n. 9) na obra Tempo e narrativa. O pre- sente pode ser um tempo para iniciativas. O passado pode ser interrompido, e o momento da acao, de seguir adiante em di- regao a identidade prospectiva, pode acontecer (1988: 208). O horizonte de expectativa sempre sera mantido, oferecendo ao 144 Identidade prospectiva mesmo tempo possibilidades futuras e um senso de incomple- tude, de “ainda nao’, de aspirac4o. O horizonte de expectativa é 0 que mais se aproxima em Tempo e narrativa das implicacées da referéncia produtiva. E interessante citar, contudo, que 0 horizonte esta mais para histérico do que ontoldégico. Nao parece possivel ver em Tempo e narrativa as afirmacées fortes de que a referéncia produtiva é capaz de mudar e abalar a realidade. Lembrem-se de que, nos semindrios sobre a imaginagao, Ricceur fala da “transfiguragao da realidade” (Ricceur, no prelo, refs. 17.1, 17.7). A maior mo- déstia do autor no trabalho posterior pode ter como razio 0 fato de que as linhas mestras do livro sao prefiguracao, confi- guracdo e refiguracao, e nao transfiguragao. A transfiguracaéo leva em conta a mudanga e suas possibilidades mais profundas de alterar a realidade; a configuracao e a refiguragao, por sua vez, parecem projetar uma mudanga de menores proporcoes. A transfiguragao também atende 4 demanda de que somos transfigurados — a narrativa age sobre nés —, em vez de sermos apenas agentes da refiguracao. Em uma das raras vezes em que Ricceur emprega o termo transfiguracao em Tempo e narrativa, tal uso é mais restrito. Ricoeur escreve, por exemplo, sobre a habilidade da estética de “transfigurar” 0 cotidiano (1988: 176). Em seu artigo “Tempo narrado”, que descreve de forma su- cinta as conclusées do volume final de Tempo e narrativa (1985: 338), o vocabuldrio de Ricoeur sobre “revelacao e transforma- ¢4o” parece, a primeira vista, mais proximo da transfiguracao (1985: 339). Entretanto, quando os termos sao esclarecidos, ao serem aplicados a refiguragdo, também sao utilizados sem a mesma pretensao da transfiguracdo. A refiguracao é “revelato- ria, no sentido de que traz 4 tona os tracos dissimulados, mas ja esbocados no centro de nossa experiéncia pratica e empatica; transformadora, no sentido de uma vida assim examinada é, de fato, uma vida mudada, uma vida diferente” (1985: 350-351). 145 George Taylor Aprecio o reconhecimento de Ricoeur de que tal operagao de revelacdo e transformacao reforga a inadequagao da referéncia descritiva (1985: 351). Mas, nesse contexto, revelacao e transfor- macdo nao tém a profundidade da transfiguragaéo que ele des- creve em Outros textos. Alguns podem se perguntar por que, em um texto sobre a identidade prospectiva, nao examinei mais diretamente O si- -mesmo como um outro, embora nesse livro, na discussao sobre a identidade narrativa, Ricoeur afirme que a tematica da conti- nuidade as andlises de Tempo e narrativa. Sio novamente trata- dos osconceitos de configuracao, concordancia discordante, sintese do heterogéneo (Ricoeur, 1992 [1990]: 141) e variagdes imaginativas (1992 [1990]: 148). Valorizo as muitas contribui- gdes dessa discussao, mas, como sugeri, gostaria de expandir o desenvolvimento de “identidade dinamica” (1992 [1990]: 147). Assim como creio que podem ser encontrados em Tempo e narrativa inimeros elementos que apoiam o projeto de identi- dade prospectiva, acredito que o trabalho anterior de Ricceur sobre referéncia prospectiva nos leve mais adiante e deva ser preservado. Como Ricceur, no defendo o termo especifico, po- rém o fenédmeno que ele representa. A referéncia produtiva des- creve uma “mais-valia’, uma abertura para dimensées de senti- do que podem “romper a espessura da realidade” e muda-la. Ao mesmo tempo, essa mais-valia requer uma capacidade que sem- pre estaré a nossa frente e 4 qual buscamos. Os desafios e as oportunidades da identidade prospectiva se mantém. Pergunto-me, assim, se a teoria narrativa de Ricceur é susce- tivel a alguns dos desafios perenes enfrentados pela hermenéu- tica; ou seja, em relacao a tensdo entre concordancia e discor- dancia, de conferir muito peso 4 concordancia — a pertenga e a comunidade — e dedicar insuficiente valor a potencial influéncia e as possibilidades da disrupcao. Valorizo, pois, a hermenéutica, contra a desconstrucdo, ao reconhecer a narrativa e a concor- 146 Identidade prospectiva dancia, mas desloco a balanga para 0 lado da disrupgao, mais do que a teoria de Ricoeur permitiria. Compreendo que a criacdo da narrativa — particularmente a narrativa polftica e social — é um desafio sem fim e sempre cindido e incompleto, sempre aspiracional e prospectivo. Referéncias bibliograficas KEARNEY, Richard. Creativity of Language. In: rative and Interpretation. Londres: Routledge, 1992. PELLAUER, David. Response to Professors Sweeney and Ingbretsen. Pro- .ceedings of the American Catholic Philosophical Association, 62, 1988. RICCEUR, Paul. Can There Be a Scientific Concept of Ideology?. In: Phe- nomenplogy and the Social Sciences: a Sialogue. Edicao Joseph Bien. Haia: Martinus Nijhoff, 1978. . Lectures on Ideology and Utopia. Edicao George H. Taylor. Nova York: Cambridge University Press, 198 1a. .. Lectures on Imagination. Edicao George H. Taylor. No prelo. . Memory, History, Forgetting. Traducao Kathleen Blamey e David Pellauer. Chicago: University of Chicago Press, 2004 [2000]. . Metaphorical Process as Cognition, Imagination and Feeling. In: JOHNSON, Mark (Ed.). 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