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Tecné, Episteme y Didaxis: TED

ISSN: 2665-3184
revistated.fct@gmail.com
Universidad Pedagógica Nacional
Colombia

Camargo, Sérgio; Nardi, Roberto; Torcuato, Iracema B.


PRÁTICA DE ENSINO DE FÍSICA: A ANÁLISE DO DISCURSO COMO BASE PARA
INTERPRETAÇÃO DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIO DE REGÊNCIA
Tecné, Episteme y Didaxis: TED, núm. 17, enero-junio, 2005, pp. 42-59
Universidad Pedagógica Nacional
Bogotá, Colombia

Disponible en: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=614265316004

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Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005

PRÁTICA DE ENSINO DE FÍSICA: A ANÁLISE DO DISCURSO COMO BASE


PARA INTERPRETAÇÃO DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIO DE REGÊNCIA1

PHYSICS TEACHING PRACTICE: DISCOURSE ANALYSIS AS BASIS TO


INTERPRET FUTURE TEACHERS’ REPORTS

Sérgio Camargo*
Roberto Nardi**
Iracema B. Torcuato **

RESUMO

A pesquisa aqui relatada foi desenvolvida no âmbito da formação inicial de professores


e teve como meta avaliar o impacto de um curso estruturado de Prática de Ensino numa
amostra de alunos do Curso de Licenciatura em Física, quando submetidos à situação de
estágio de regência. A interpretação dos discursos presentes nos relatórios de regência
elaborados ao final do estágio, mostra, dentre outros aspectos, que a ideologia implícita no
discurso do futuro professor reforça o paradigma da racionalidade técnica, muito embora
os enunciadores dos discursos analisados tenham tentado apresentar os conteúdos de
acordo com referenciais teóricos previamente estudados. Em vários excertos analisados
persiste explicitamente uma dissociação entre teoria e prática. Esses dados, bem como
outros obtidos na pesquisa, podem subsidiar discussões para repensar a formação inicial
e continuada de professores de Física.

Palavras Chaves: Formação Inicial de Professores de Física, Prática de Ensino de Física,


Análise do Discurso

ABSTRACT
We report here a research, undertaken among future High School Physics teachers, which
aimed to evaluate the effect of a structured Teaching Practice course in a sample of 22
students exposed to a teaching practice experience. Data collected from the reading of

1
Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
* scamargo@fc.unesp.br
** Grupo de Pesquisa em Ensino de Ciências - Professor Adjunto - Depto. de Educação – Programa de Pós-graduação em Educação
para a Ciência - UNESP - Faculdade de Ciências - Câmpus de Bauru, São Paulo, Brasil. Apoio: CNPq – Conselho Nacional de
Pesquisa. nardi@fc.unesp.br
*** ira_torquato@uol.com.br

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Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência

their academic reports made after finishinf the teaching experience show, among other
aspects, that the ideology implicity in the discourse of these future teachers reinforce the
techinical rationality paradigm, even though the analyzed discourses’ enunciators have
intended to present the contents according to theroretical referentials previously studied.
In various excerts analyzed persist the dissociation between practice and theory. These
data collected, as well as other obtained during the research can subside discussions to
rethink teacher professional development.

Key words: Physics Teachers Eduation; Physics Teaching Practice, Discourse Analysis

INTRODUÇÃO Ao criticar o modelo hegemonicamen-


te dominante, Schön (1992) ressalta o
Discutir a formação do professor impli-
ressurgimento, nas universidades, do pro-
ca a valorização de sua prática, recon-
fissional formado sob o ponto de vista da
hecendo que essa reflexão é fonte de
racionalidade técnica, em que o ensino é
conhecimento sobre o desenvolvimento
considerado como uma ciência aplicada, e
profissional do docente. É através da
o professor exerce o papel de um técnico
consciência crítica sobre sua experiên-
(Schön, 1992, 2000; Pérez Gómez, 1992;
cia que o professor emancipa-se de suas
Carvalho, 2001) que domina as normas
práticas rotineiras. A experiência é con-
de aplicação do conhecimento científico,
cebida, desse modo, como um processo
cabendo a ele somente aplicar os conhe-
contínuo de formação e (re)construção
cimentos produzidos por outros.
pessoal e profissional. A literatura sobre
formação de professores tem ressaltado, Contrariamente a este modelo, propõe
nas últimas décadas, a necessidade do –como alternativa– uma epistemologia da
professor assumir o papel de investiga- prática, fundamentada na reflexão sobre a
dor de sua própria prática, adotando uma ação. Dessa forma, argumenta que os sa-
postura ativa, ressignificando sua ação. beres baseados na racionalidade técnica
não são suficientes para enfrentar a diver-
Dentre esses estudos torna-se im-
sidade das situações de ensino e apren-
prescindível tomar como referência os
dizagem necessitando, de modo seminal,
trabalhos desenvolvidos por Schön (1992;
refletir sobre novas formas de ensinar.
2000) a respeito do profissional “como
prático autônomo, que pensa, que toma Segundo a perspectiva educacional
decisões e que cria, durante a sua própria da racionalidade técnica, os professores
ação”, em contraste àquele considerado podem agir sem levar em conta o “fazer”
“como técnico especialista que aplica com e o “como fazer”. Atuam conforme as de-
austeridade as regras que derivam do terminações das instâncias superiores
conhecimento científico”. e sobre aquilo que os especialistas de-

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Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005

finem. Obstaculiza-se, assim, o caminho visibilidade e pelo controle, alertando para


para a autonomia, tanto das instituições, o fato de o conhecimento ser tratado como
quanto dos professores, fechando novas se existisse numa única via, engendrando
formas de agir e atribuir significados às uma exclusiva resposta, exata e inquestio-
experiências inovadoras. nável. Esse pensamento não corresponde
à verdade, pois o conhecimento pode se
Schon (1992) salienta que geralmen-
manifestar de várias formas. Assim, a re-
te existem parâmetros estipulados pelo
flexão “na” e “pela” ação é implícita e surge
governo, por meio de regulamentações
junto com a própria ação; ou seja, esta re-
previamente elaboradas, de forma que
flexão decorre simultaneamente à própria
as instituições periféricas são induzidas
situação, não implicando necessariamente
a moldar seus relatórios de acordo com
uma expressão verbal, de mão única. Esse
tais especificações. A conseqüência des-
autor refere-se também à importância da
se tipo de orientação à formação dos
confusão e da incerteza, sendo impossível
professores não poderia ser outra senão
aprender sem se ficar confuso. Esta atitu-
a de se estabelecer estagnação ao des-
de de reconhecer o valor da confusão e da
envolvimento da prática docente, uma
incerteza, conduz a uma negação de que
vez que a racionalidade técnica ignora as
o saber é constituído por proposições fir-
competências requeridas em situações madas na seqüência de pesquisas, e que
divergentes, assim como a natureza, os ele é definido com o aval de “autoridades
conteúdos e a estrutura dos programas científicas”.
de formação. Cria-se uma resistência à
mudança, uma vez que o professor ha- Segundo Schön (1992), portanto, “o
bitua-se a lecionar sempre do mesmo grande inimigo da confusão é a respos-
jeito, seguindo pressupostos estabeleci- ta que se assume como verdade única”.
Assim, se só houver uma única resposta
dos sem refletir; está, na verdade, sendo
certa, na suposição do professor, como
um mero repetidor de tais orientações.
forma de se saber aquilo que o aluno
Portanto, é necessário ocorrer uma mu-
deve, ou não, aprender, então se estará
dança, tornando possível que ações en-
negando a legitimidade para a “confusão”
gendradas em objetivações preestabe-
ser engendrada.
lecidas possam adquirir subjetivações
profícuas, implicando, dessa forma, uma Portanto, é necessário respeitar os
visão construtiva do conhecimento. professores como profissionais, e mos-
trar que fazem parte de um sistema com-
É justamente neste sentido que Schön
plexo, mas que não precisam (nem de-
(1992, 2000) refere-se ao profissional prá-
vem) se deixar moldar por ele.
tico reflexivo, que ostenta um papel ativo
na construção de seu saber. A importância Existe a possibilidade de transfor-
do conhecimento adquirido na ação é enfa- mar o sistema vigente e, nessa trans-
tizada por Schön (1992), ao criticar o con- formação, novas oportunidades surgirão
hecimento escolar, caracterizado pela pre- para se entender o contexto em que es-

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Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência

tão inseridos os alunos e os professores; A pesquisa procurou avaliar, ao final


desse modo, há aberturas para ressigni- do processo, que marcas lingüísticas (em
ficar e inovar as práticas pedagógicas. relação aos referenciais teóricos, trabal-
Incentiva-se, assim, o surgimento de hados pelo docente), foram deixadas nos
uma competência pedagógica, pautada enunciados dos relatórios, apresentados
na/pela reflexão sobre a prática, carac- pelos professores, comprobatórias que
terizada por um movimento de ação-re- essas teorias foram incorporados à práti-
flexão-ação, que caminha para um me- ca de ensino desses futuros professores,
nor distanciamento entre a teoria e a durante as atividades desenvolvidas ao
prática. Entende-se, nesse sentido, que longo do processo de regência.
–entre uma determinada teoria assumida
Para tanto, a pesquisa centrou-se em:
(ou que se pretende assumir) - e a práti-
1) analisar o discurso dos licenciandos,
ca (que se supõe ressignificada)– existe
através da interpretação de marcas lin-
a teoria do sujeito, a qual se constrói a
güísticas que foram expressas (implícita
partir das indagações daquilo que ele,
e explicitamente) em seus relatórios. Por
como “sujeito reflexivo”, faz.
meio desses relatos, foram descritas suas
Considerando esses questionamentos, práticas pedagógicas, desenvolvidas du-
o sujeito poderá despertar sua consciência rante os estágios de regência; 2) verificar,
crítica, questionando o conhecimento e a através desses discursos, o grau de apro-
si próprio. priação de alguns pontos que identificam
os referenciais teóricos sugeridos pelo
A pesquisa, que será agora descrita,
professor de Prática de Ensino na prepa-
ocorreu no âmbito da formação inicial de
ração para esse estágio supervisionado;
professores de Física de uma Universi-
3) gerar subsídios que possam contribuir
dade Pública e procurou acompanhar o
para a discussão sobre a formação inicial
desempenho de licenciandos (quando
de professores de Física.
esses cursaram uma das disciplinas, con-
siderada essencial na formação inicial de Para a análise dos dados obtidos, ou
professores), a Prática de Ensino. seja, para interpretar os discursos dos li-
cenciandos exibidos em seus relatórios,
Essa disciplina foi planejada pelo do-
utilizou-se como referência os estudos
cente responsável, segundo um proces-
de Orlandi (1996, 2001, 2002) que em-
so educativo sistematizado, balizado a
pregam conceitos como “formação ideo-
partir do diálogo, em que se privilegiou
lógica” e “formação discursiva” e derivam
a reflexão sobre a ação. Durante as ati-
dos estudos de análise de discurso na lin-
vidades de estágio de regência e as ati-
ha francesa, principalmente aqueles des-
vidades de ensino, foram organizadas
envolvidos por Pêcheux (1990; 1994).
ações a partir de referenciais teóricos de-
rivados da pesquisa em Educação; mais Apresenta-se, a seguir, como exem-
especificamente, da pesquisa em Ensino plo desta análise, a interpretação de par-
de Física. te dos dados recolhidos: apenas aqueles

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Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005

relacionados à análise do discurso de um procuram dominar o seu referente, indi-


dos licenciandos, que denominamos pela cando particularidades pelas quais se o
sigla LHA. olha e se o diz - trata-se de uma polisse-
mia controlada; e o discurso autoritário,
A análise do discurso como no qual o referente está ausente, oculto
referencial para leitura de dados
pelo dizer, não há interlocutores, mas um
Para Orlandi (2001), nos discursos dos agente exclusivo; trata-se de uma polis-
sujeitos, a materialidade ideológica se semia contida (o exagero é a ordem no
concretiza, sendo uma das instâncias em sentido) em que se diz: isso é uma or-
que se funda o aspecto da “existência ma- dem, é assim que se faz e não de outro
terial” da ideologia expressa no discurso. jeito. Nesse discurso, o sujeito passa a
Nesse sentido, não há discursos cientí- ser um instrumento de comando. Esse
ficos que sejam neutros, todos portam discurso recusa outra forma de ser, que
uma determinada visão impregnada de não a linguagem autoritária de especia-
ideários. Analisando-se a articulação da listas, baseia-se, portanto, no “já dito” e
ideologia com o discurso, dois conceitos tido como o único certo e possível.
em Análise do Discurso (AD) devem ser O discurso pedagógico que se apre-
mencionados: o de “formação ideológica” senta com fins de se ensinar e/ou expor
(FI) e o de “formação discursiva” (FD). idéia ou convicção insere-se entre os dis-
Os critérios para a caracterização de cursos do tipo autoritário, e é caracteriza-
um determinado discurso são baseados do por Orlandi enquanto tal. A estratégia
no referente e nos participantes do dis- básica deste deveria ser a pergunta pelo
curso, ou seja, o objeto do discurso e referente (R), isto é, o objeto do discurso,
seus interlocutores. Considera-se que há que, no discurso pedagógico, aparece
dois processos: o parafrástico e o polis- como algo que se “deve” saber.
sêmico, que são constitutivos da tensão No entanto, percebe-se que a estra-
que produz o texto (Orlandi, 2001). A tégia adquire, no discurso pedagógico, a
polissemia representa a tensão estabe- forma imperativa de se dizer o previsível.
lecida pela relação homem/mundo, pela Entende-se que, para interpretar um de-
intromissão da prática e do referente na terminado discurso, dentre os diversos
linguagem. Nesse sentido, caracterizam- existentes na sociedade, é preciso con-
se os três tipos de discurso: o discurso siderar as diferentes formações discursi-
lúdico - como aquele em que o seu ob- vas, assim como, as formações ideoló-
jeto se mantém presente, enquanto tal gicas que lhes dão origem. Do mesmo
e os interlocutores se expõem a essa modo, é necessário compreender que
presença, resultando o que chama de este discurso pode ser interpretado de
polissemia aberta; o discurso polêmico: diversas maneiras.
que mantém a presença do seu objeto,
os participantes não se expõem, mas

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Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência

A pesquisa Concepção Bancária x Concepção pro-


blematizadora: a concepção bancária da
A pesquisa - que aqui relatamos - foi des-
educação como instrumento da opressão
envolvida junto a uma amostra de 22 alu-
– seus pressupostos, sua crítica (Freire,
nos de um curso de licenciatura em Físi-
1987); Reflexões sobre o ensino de Físi-
ca de uma universidade pública paulista
ca no Brasil: práticas, conteúdos e pres-
e procurou acompanhar o desempenho
supostos (Villani, 1984).
desses licenciandos, quando cursaram a
disciplina de Prática de Ensino de Física, Paralelamente aos estudos de reflexão
ministrada em dois semestres consecuti- sobre os textos acima, os licenciandos
vos, durante o ano de 2001, num total de foram divididos em cinco grupos, com a
cerca de 150 horas de atividades. finalidade de estudar conteúdos de Física
(Mecânica, Termologia, Óptica, Eletrici-
No primeiro semestre, o docente
dade e Magnetismo e Física Moderna e
responsável pela disciplina, privilegiou
Contemporânea) que poderiam ser abor-
o levantamento de temas de interesse
dados em situações de sala de aula, du-
dos graduandos, que se transformaram
rante as atividades do estágio de regên-
em objetos de estudo, visando embasá-
cia no Ensino Médio. Das atividades da
los para o planejamento das atividades
disciplina Prática de Ensino, ainda neste
de ensino, ministradas a uma turma de
primeiro semestre, constava o estágio de
alunos do Ensino Médio, durante o es-
observação, realizado junto a escolas da
tágio de regência, realizado no segundo
região, no qual foram observados aspec-
semestre. Foram levantados os seguin-
tos ligados à estrutura organizacional das
tes temas: 1) Por que ensinar Física em
escolas selecionadas, tais como: seus
países subdesenvolvidos? 2) O que deve
aspectos físicos; suas propostas pedagó-
saber e saber fazer o professor de Física
gicas; a organização escolar; os mecanis-
do Ensino Médio? 3) Existem conteúdos
mos de ação coletiva interna; as horas de
a serem privilegiados? Quais? 4) Como
trabalho pedagógico do corpo docente; o
construir o conhecimento numa conce-
papel do ensino da Física, enquanto com-
pção dialógico-problematizadora? Para a
ponente curricular, e a constituição do nú-
problematização desses temas, o docen-
cleo de direção da escola.
te sugeriu o estudo dos seguintes artigos:
Por que ensinar Física em países sub- Todas as atividades realizadas na
desenvolvidos? (Gonzalez, 1976); ¿Que disciplina nesse primeiro semestre fo-
hemos de saber y saber hacer los profe- ram registradas em um diário pelo pes-
sores de ciencias? (Gil Perez, 1991); A quisador; algumas delas foram filmadas,
Proposta Curricular para o ensino de Fí- com o consentimento do docente e dos
sica para o 2º grau da Coordenadoria de licenciandos.
Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) No segundo semestre, baseados nas
da Secretaria de Estado da Educação do atividades realizadas anteriormente, os li-
Estado de São Paulo (São Paulo, 1992); cenciandos planejaram e ofereceram aos

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Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005

alunos do Ensino Médio de um colégio um dos módulos lecionados, visando à


público da região um curso de 68 horas reflexão sobre suas práticas, segundo
de atividades, constituído de módulos so- os referenciais teóricos propostos pelo
bre as diversas partes da Física, essas docente da referida disciplina, os quais,
normalmente presentes no currículo do conforme anteriormente relatado, já ha-
Ensino Médio: Mecânica, Termologia, Óp- viam sido discutidos no semestre anterior.
tica, Eletricidade e Magnetismo e Noções
de Física Moderna e Contemporânea. Os dados recolhidos

O curso foi denominado “O outro lado A descrição das etapas da pesquisa mostra
da Física” e tinha por meta proporcionar que o processo todo gerou uma significativa
aos alunos do Ensino Médio, bem como quantidade de dados. Na presente comuni-
aos licenciandos, uma visão alternativa cação, serão apresentados apenas aqueles
de aprendizagem, centrada numa abor- relativos ao discurso presente no relatório
dagem dialógica, na problematização de um dos licenciandos, no qual estão des-
dos conteúdos e respeitando estudos critas as aulas ministradas por seu grupo
derivados da pesquisa em Ensino de durante o estágio realizado, numa escola
Física, tais como: a preocupação com a de nível médio, sobre eletricidade.
inserção da História e Filosofia da Ciên- Este relatório foi escolhido devido sua
cia no ensino, o respeito às concepções riqueza de informações. Procurou-se inter-
prévias (espontâneas ou alternativas) pretar as marcas de apropriação dos refe-
dos alunos no planejamento e desenvol- renciais teóricos , no discurso (contido no
vimento das atividades de ensino, a in- relatório) do professor de Prática de Ensino
serção de tópicos de Física Moderna e de Física pelos licenciandos. Em outras pa-
o favorecimento de discussões sobre as lavras, analisar o impacto dos referenciais
relações entre Ciência, Tecnologia, So- estudados na disciplina de Prática de En-
ciedade e o cotidiano dos alunos. sino, previamente à experiência dos licen-
No final do curso, denominado pelos ciandos na sala de aula no Ensino Médio.
licenciandos de “O outro lado da Físi-
Procurando tornar mais clara a identifi-
ca”, foi solicitado aos licenciandos que
cação das possíveis marcas existentes nos
preenchessem o relatório de regência,
relatos dos licenciandos, optamos por ana-
individualmente, relatando em forma de
lisar o relatório deste licenciando, segundo
diário a seqüência de aulas ministradas
os seguintes grandes temas: Concepções
pelo seu grupo no Ensino Médio. Todas
Espontâneas e/ou Alternativas em Física
as aulas deste curso foram registradas
(CE), História e Filosofia da Ciência (HFC),
em vídeos, coletando-se material para
Ciência Tecnologia e Sociedade (CTS),
análise/reflexão em encontros com todos
Abordagem Dialógica (AD) x Abordagem
os licenciandos. Esses encontros foram
Tradicional (AT).
realizados quinzenalmente durante todo
o processo, após a conclusão de cada Numeramos todas as linhas do relato,

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Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência

para facilitar a localização dos excertos Na seqüência, mostrarmos a interpre-


selecionados para análise. O relato é ori- tação do relatório do licenciando deno-
ginal; portanto, a linguagem do licencian- minado, na pesquisa, de LHA. Trata-se,
do, os possíveis erros de ortografia, de portanto, do relatório específico sobre as
gramática, bem como de digitação foram aulas do módulo de Eletricidade e Magne-
mantidos, preservando, dessa maneira, a tismo, desenvolvidas durante o Curso “O
autenticidade do mesmo. outro lado da Física”.

Licenciando LHA

1 “Começamos nos apresentado e fazendo um breve comentário a respeito das propostas do curso
2 que estaríamos apresentando e posteriormente os outros grupos. Tentamos dar uma nova visão
3 de ciência e de física, tentando desmistificar a visão que, em geral, os alunos tem de que ciência
4 se faz em grandes laboratório com pessoas extremamente “inteligentes” que não fazem mais
5 nada além de pesquisar.
6 Questionamos os alunos se eles sabiam a quantidade de pesquisa feita para se ter um aparelho
7 simples como uma lâmpada. A partir disto começamos a contar um pouco da história da
8 eletricidade e magnetismo. Trazendo, também, fatos curiosos da história e mostrando que às
9 vezes não se da a devida importância a novas descobertas que acabam sendo, de certa forma,
10 ridicularizadas. E mais tarde, com o avanço das pesquisa, se descobre a verdadeira importância
11 e utilidade desse achado. Creio que esta parte, a História da Ciência, poderíamos ter trazido ou
12 montados alguns texto para os alunos, assim, entendo que despertaríamos uma maior
13 curiosidade dos alunos.
14 Por se tratar de uma turma muito heterogênea no nível de conhecimento, pois tínhamos alunos
15 de dois anos diferentes, resolvemos começar pela eletricidade básica, mostrando alguns
16 experimentos bem simples, um circuito com uma fonte e uma lâmpada, desenvolvendo o conceito
17 de corrente, tensão e resistência. A grande dificuldade foi fazer com que esta parte, que era
18 muito básica para os alunos do terceiro ano, não desestimulasse estes alunos que já sabiam e
19 encabulasse os que não sabiam o assunto abordado. Mas tínhamos que começar de forma mais
20 básica e simples, porque se não os alunos do segundo ano não acompanhariam o resto do curso
21 e os alunos que já conheciam os conceitos que estavam sendo apresentados não teriam
22 problemas e poderiam ajudar os alunos que ainda não tinham visto estes conceitos.
23 A forma de apresentação desta parte foi muito acertada, já que com experimentos simples
24 conseguimos fazer relações destes com circuitos maiores. Relacionamos estes experimentos com
25 circuitos mais complexos como o de uma casa”.
26 Abordamos os conceitos de magnetismo trouxemos experimentos para mostrar as linhas de
27 campo. Esta parte foi abordada de forma um pouco mais tradicional, porém tentamos fugir ao
28 máximo dessa forma de ensino, com experimentos onde os alunos pudessem observar o que
29 estava sendo explicado na lousa, isso despertava a curiosidade dos alunos.
30 Fizemos a relação entre eletricidade e magnetismo. Utilizamos um experimento simples para ver
31 que corrente gerava campo magnético. Utilizamos uma bobina e uma bússola. Vimos também
32 que a intensidade do campo era proporcional à intensidade da corrente.

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Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005

33 Demonstrado que havia uma relação entre eletricidade e magnetismo, sendo uma corrente
34 elétrica geradora de campo magnético, perguntamos se o inverso seria possível, ou seja, campo
35 magnético poderia gerar corrente elétrica. Mostramos outro experimento bem simples
36 movimentar um imã na frente de uma bobina e verificar o que acontecia com o marcador de um
37 amperímetro (aparelho que mede corrente elétrica). Os alunos observaram que o marcador
38 oscilava quando o imã se movia e parava quando o imã parava. Assim, os alunos puderam ver
39 que essa relação entre eletricidade e magnetismo era uma relação importante, pois quase toda
40 energia que consumimos e gerada dessa forma e que em uma usina hidrelétrica o que acontece é
41 exatamente o que acabamos de ver, um imã se movimentando dentro de uma bobina, e que faz
42 esse o papel do braço, para que haja esse movimento é a água, no caso da hidrelétrica, o vent
43 no caso das usinas eólicas, o gás nas termelétricas e assim por diante.
44 Mostramos alguns dispositivos eletrônicos, explicamos os sistemas de cores para dar os valores
45 nominais dos resistores, mostramos o funcionamento de um diodo e de transistores. Bem como
46 suas aplicações.
47 Trouxemos algumas respostas para perguntas que os alunos fizeram a respeito das linhas de
48 transmissão. Os alunos leram em alguma revista que as perdas de energia nas linhas de
49 transmissão poderiam se minimizadas se esses cabos fossem substituídos por outros, onde
50 resistência fosse menor. Chegamos a conclusão, após discutirmos os aspectos favoráveis e
51 desfavoráveis dessa possível troca, que não seria viável, pois os custos com torres seria bem
52 maior do que a economia de energia.
53 Levantamos algumas questões de caráter social a respeito da falta de energia elétrica e
54 possíveis soluções desse problema. Questões como as perdas nas linhas de transmissão por falta
55 de manutenção, os “gatos” feitos nas favelas porque o pessoal não tem como pagar, a falta e
56 investimento que ocorreu nos últimos anos porque o governo estava privatizando o sistema de
57 produção de energia, as medidas tomadas pelo governo são ou não a solução para o problema.
58 Com esta discussão queríamos chamar a atenção dos alunos para uma questão mais ampla de
59 que nós temos que ser mais responsáveis e críticos questionando porque a situação está dessa
60 forma, será que podemos fazer algo para mudar e melhorar, não só na questão da energia, mas
61 em todos os aspectos, educação, saúde, etc”.
62 “Entramos em motores e geradores, essa parte não teve como fugir de uma explicação mais
63 formal, mas também levamos experimentos para demonstração e fazer com que os alunos
64 observasse e verificassem se o que foi explicado se confirma, passamos um pequeno gerador
65 conectado a um led onde os alunos podiam girar uma das extremidades e ver que o led acendia
66 verificando que o movimento gerava corrente elétrica, que é o mesmo princípio da hidrelétrica.
67 Um colega aluno da Pós-Graduação que estava assistindo nossa aula sugeriu a idéia de abrir o
68 gerador para que os alunos observassem como estava montado o circuito, assim os alunos
69 compreenderam melhor o funcionamento do equipamento.
70 Explicamos que o funcionamento de motor é o contrario de um gerador, ou seja, o gerador usa o
71 movimento e gera energia e o motor faz o contrario usa energia e gera movimento. Também
72 ilustramos esta explicação com um experimento, um motorzinho e uma bateria, ligando-se a
73 bateria ao motor ele girava a outra extremidade.
74 Com os dois experimentos circulando entre os alunos observamos que eles faziam outras

50
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência

75 verificações, como o aumento da intensidade da corrente com o aumento da velocidade com que
76 se girava a extremidade do gerador. Eles fizeram com que a extremidade do gerador fosse
77 movimentada pelo motor. Verificaram que se ligando a bateria nas extremidades do led no
78 gerador deveria se transformar em um motor, o que realmente aconteceu, verificando que o
79 funcionamento de um motor é o contrario de um gerador.
80 Encerramos fazendo uma discussão de como eles viram o desenvolvimento desta parte do curso,
81 se eles gostaram, se foi o que eles esperavam, perguntamos das falhas e sugestões para os
82 outros grupos. Segundo eles o curso foi muito bom, bem ilustrativo e pratico que o principal
83 problema foi o tempo muito curto

Quadro I – licenciando LHA

Linhas
Marcas* Segmentos escolhidos/Discurso
(Nº)
CE - -
“...começamos a contar um pouco da história da eletricidade e mag-
7-8
netismo [...]...fatos curiosos da história”.
HFC “Creio que esta parte, a História da Ciência, poderíamos ter trazido ou

montados alguns texto para os alunos, assim, entendo que desperta- 11-13

ríamos uma maior curiosidade dos alunos”.


CTS - -
“Começamos o curso fazendo um breve comentário a respeito das
1-2
propostas do curso que estaríamos apresentando”.
“Tentamos dar uma nova visão de ciência e de física, tentando des-

mistificar a visão que, em geral, os alunos tem de que ciência se faz 2-4

em grandes laboratório”.
“Questionamos os alunos se eles sabiam a quantidade de pesquisa
6-7
feita para se ter um aparelho simples como uma lâmpada”.
“...tínhamos que começar de forma mais básica e simples, porque se

não os alunos do segundo ano não acompanhariam o resto do curso

[...]...os alunos que já conheciam os conceitos[...]...poderiam ajudar os


AD/AT 19-24
alunos que ainda não tinham visto. [...]A forma de apresentação desta

parte foi muito acertada, já que com experimentos simples consegui-

mos fazer relações destes com circuitos maiores”


“...os conceitos de magnetismo... [...]... foi abordada de forma um

pouco mais tradicional, porém tentamos fugir ao máximo dessa forma


26-29
de ensino, com experimentos onde os alunos pudessem observar o

que estava sendo explicado na lousa...”.


“Fizemos a relação entre eletricidade e magnetismo... [...] Utilizamos

experimento simples para ver que corrente gerava campo magnético. 30-31

[...] uma bobina e uma bússola”.


Continúa...

51
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005

...Continuación

“Mostramos outro experimento bem simples, movimentar um imã na

frente de uma bobina e verificar o que acontecia com o marcador de 35-37

um amperímetro”.
“... os alunos puderam ver que essa relação entre eletricidade e mag-
38-39
netismo era uma relação importante”.
“Os alunos leram em alguma revista que as perdas de energia nas

linhas de transmissão poderiam se minimizadas se esses cabos fos-

sem substituídos por outros, onde a resistência fosse menor. [...] a


48-52
conclusão, após discutirmos os aspectos favoráveis e desfavoráveis

[...]...pois os custos com torres seria bem maior do que a economia

de energia”.
AD/AT “Levantamos algumas questões de caráter social a respeito da falta de

energia elétrica e possíveis soluções desse problema. [...] os “gatos” 53-55

feitos nas favelas porque o pessoal não tem como pagar”.


“...queríamos chamar a atenção dos alunos para uma questão mais
58-59
ampla de que nós temos que ser mais responsáveis e críticos”.
“Entramos em motores e geradores, essa parte não teve como fugir

de uma explicação mais formal [...]... levamos experimentos para de-


62-64
monstração e fazer com que os alunos observasse e verificassem se

o que foi explicado se confirma”.


“Encerramos fazendo uma discussão [...]... se eles gostaram, se foi o

que eles esperavam [...]... Segundo eles o curso foi muito bom [...]... o 80-83

principal problema foi o tempo muito curto”.

* CE= Concepção Espontânea; HFC = História e Filosofia da Ciência; CTS = Ciência Tecnologia e Sociedade;
AD = Abordagem Dialógica; AT= Abordagem Tradicional.

alunos, assim, entendo que despertaría-


Análise dos segmentos escolhidos
no relato do licenciando LHA mos uma maior curiosidade dos alunos”.

Percebe-se pelas marcas da enun-


HFC
ciação no enunciado: “... poderíamos ter
Quando LHA afirma no trecho (8) que: “... trazido ou montad o alguns textos para os
começamos a contar um pouco da história alunos...”, que, o grupo não conseguiu, a
da eletricidade e magnetismo [...]... fatos princípio, motivar os alunos pela forma
curiosos da história” ele está tentando que expuseram o conteúdo que esta-
mostrar para os alunos a importância da vam tratando. A locução verbal utilizada
História da Ciência (Carvalho E Castro, pelo enunciador expõe a sua intenção
1992; Solbes E Traver, 1996), mais adian- de transmitir a importância da História da
te no trecho (12-13) “Creio que esta par- Ciência (Carvalho E Castro, 1992; Solbes
te, a História da Ciência, poderíamos ter E Traver, 1996), bem como a escolha do
trazido ou montado alguns textos para os adjetivo “curiosos” reforça esta intenção.

52
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência

Revela, entretanto uma abordagem ou O uso do adjetivo “breve” (comentário)


opção para o uso de HC no Ensino: abor- implicitamente sugere e reforça aos enun-
dar pontos curiosos, ou seja, usar a HC ciatários (alunos) que estas propostas já
como condicional ou uma estratégia de estavam elaboradas e até sintetizadas.
motivar os alunos. Por outro lado, o LHA Pela forma como LHA começa seu dis-
percebe que deveriam ter preparado ma- curso “fazendo um breve comentário” e
terial sobre a História da Ciência. Esta in- não deixando espaço para que os alunos
tenção está clara pelo emprego do verbo colocassem suas propostas, fica implícita
poder no futuro do pretérito: “poderíamos a intenção do grupo: não considerar inter-
ter trazido”. venções dos enunciatários. Deste modo,
Um fato significante é que LHA parece não foi privilegiada uma abordagem dialó-
ter compreendido a importância da Histó- gica. Pelo contrário, as marcas da enun-
ria da Ciência no ensino: “despertaríamos ciação deixadas no enunciado, como se
uma maior curiosidade”. Fica explícito que pode ver a seguir, mostram que o modelo
o enunciador crê que despertou curiosida- de ensino proposto pelo enunciador do re-
de (motivou os alunos), mas que esta po- latório mais se aproxima do paradigma da
deria ser mais intensa: “uma maior”. Este racionalidade técnica (Schön, 1992; Gar-
fato neutraliza a posição inicial do enun- cia, 1992; Gomez, 1992; Abib, 1996).
ciador quando, no início de seu discurso, Em (3-4) o licenciando assegura o se-
relata apenas que estava tentando. guinte: “Tentamos dar uma nova visão de
ciência e de física, tentando desmistificar
AD/AT
a visão que, em geral, os alunos tem de
Podemos verificar através do discurso que ciência se faz em grandes labora-
do licenciando no trecho selecionado tórios”. Nessa afirmação, o enunciador
(1-2): “Começamos nos apresentando e está utilizando-se, em parte, do discurso
fazendo um breve comentário a respeito defendido nos referenciais estudados na
das propostas do curso que estaríamos disciplina de Prática de Ensino de Física
apresentando” que o licenciando/grupo (VI/VII), quanto à organização do con-
não se preocupou em verificar a opinião teúdo programático, não consideraram
dos alunos do Ensino Médio sobre as os alunos (enunciatários do discurso
propostas de ensino que foram plane- relatado): “Tentamos dar”. Comprova-se
jadas, isto fica evidente pelas marcas que a intenção implícita do enunciador é
da enunciação deixadas no enunciado: transmitir algo já pronto: nós vamos dar
“Começamos nos apresentado e fazen- e vocês vão receber. Fica evidente a uti-
do um breve comentário a respeito das lização de uma concepção bancária da
propostas do curso”. Fica explícita que a educação (Freire, 1987). Desprezaram
intenção do enunciador (es) não é saber também as concepções espontâneas dos
sobre quais propostas os alunos gosta- alunos. Não houve uma verificação se os
riam de discutir. alunos aos quais estavam ministrando a

53
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005

aula realmente tinham uma visão própria guimos fazer relações destes com circui-
da ciência. tos maiores”. ”. As marcas da enunciação
deixadas nesse enunciado (20-25) po-
No excerto (6-7) “Questionamos os
dem ser interpretadas de várias manei-
alunos se eles sabiam a quantidade de
ras; por um lado, o grupo poderia ter a
pesquisa feita para se ter um aparelho
intenção de estar realmente preocupado
simples como uma lâmpada”. Pelo uso
com os alunos do segundo ano: “... tínha-
do verbo questionar, usado na expres-
mos que começar de forma mais básica e
são: “questionamos os alunos...” perce-
simples”. ”. O uso dos adjetivos “básica”
be-se a intenção do grupo: tentar discutir
e “simples”, comprovam esta intenciona-
com os alunos a propósito da produção de
lidade. Essa intencionalidade é reforça-
um aparelho tecnológico, isso reflete de
da, quando os enunciadores/professores
maneira implícita a questão da problema-
optaram por iniciar com a eletricidade bá-
tização do conteúdo discutido na discipli-
sica e com experimentos simples: “com
na de Prática de Ensino de Física (VI/VII)
experimentos simples conseguimos fazer
quando do estudo do texto de Paulo Freire.
relações destes com circuitos maiores”.
Mas esta intenção fica apenas no plano su-
Por outro lado, quando empregam o ver-
perficial discursivo, já que não se sabe se
bo “poder” –no futuro do pretérito indica-
os professores (enunciadores do relatório)
tivo– afirmando que os alunos do terceiro
também deram voz aos alunos para que
ano poderiam ajudá-los com os alunos do
estes também pudessem questionar.
segundo ano, uma vez que, estes já tin-
No trecho (20-25), o enunciador argu- ham estudado os conceitos que o grupo
menta que, pelo fato dos alunos origina- trabalharia, não pode ser descartada a
rem-se de séries diferentes, eles teriam hipótese de que também eles estivessem
problemas para acompanhar o conteúdo inseguros, em decorrência dos alunos do
e optam por começar do principio. “... tín- terceiro ano dominarem (ou não) o con-
hamos que começar de forma mais bá- teúdo. O que poderia estar incomodando
sica e simples, porque se não os alunos o grupo, pois possibilitaria aos alunos do
do segundo ano não acompanhariam o terceiro ano questioná-los, caso houves-
resto do curso” na seqüência, afirmam se uma interpretação errônea dos con-
que os enunciatários (alunos do terceiro ceitos. No entanto, o convite para que os
ano) poderiam auxiliá-los com os alunos
auxiliassem com os alunos do segundo
do segundo ano, porque esses ainda não
ano, pode ter sido uma estratégia, já que,
tinham visto os conceitos de eletricidade.
desta maneira, o grupo também estaria
“... os alunos que já conheciam os con-
colocando estes alunos no papel de pro-
ceitos [...]... poderiam ajudar os alunos
fessores. O receio de que os alunos ti-
que ainda não tinham visto”.
vessem mais conhecimento (do que eles
Em seguida afirmam: “A forma de apre- próprios) pode ter preocupado, uma vez
sentação desta parte foi muito acertada, que, habituaram-se a sempre ver o pro-
já que com experimentos simples conse- fessor como o “dono do saber” (Charlot,

54
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência

1986; Bejarano, 2001; Villani, 1981; Frei- simples, movimentar um imã na frente
re, 1987). de uma bobina e verificar o que aconte-
cia com o marcador de um amperímetro”.
No excerto (27-30), “... os conceitos
; (42-44) “... os alunos puderam ver que
de magnetismo... [...]... foi abordada de
essa relação entre eletricidade e magne-
forma um pouco mais tradicional, porém
tismo era uma relação importante”; (68-70)
tentamos fugir ao máximo dessa forma
“Entramos em motores e geradores, essa
de ensino, com experimentos onde os
parte não teve como fugir de uma expli-
alunos pudessem observar o que estava
cação mais formal [...]... levamos experi-
sendo explicado na lousa...”; é possível
mentos para demonstração e fazer com
notar, por meio das marcas da enun-
que os alunos observasse e verificassem
ciação “de forma um pouco mais tradi-
se o que foi explicado se confirma”.
cional”, que os enunciadores/professo-
res apesar de terem exposto a aula de É notável que os enunciadores/professo-
maneira tradicional, preocupavam-se em res estivessem buscando ministrar a aula
ministrá-las de forma não-tradicional; per- de acordo com os referenciais teóricos
cebendo o equívoco, procuram se justifi- trabalhados anteriormente, uma vez que,
car: “... tentamos fugir ao máximo dessa esses versavam sobre a relação entre
forma de ensino...”. Provavelmente essa a teoria e a prática, defendendo a idéia
“tentativa de fuga” do modelo tradicional, de que não deveria haver uma dicotomia
enfatizada neste segmento seja resulta- entre ambas (Freire, 1987; Schön, 1992;
do das discussões dos textos realizados Abib, 1996; Carvalho, 2001), sendo fun-
na disciplina de Prática de Ensino de Fí- damental a existência de uma ligação
sica (VI/VII), os quais, em sua maioria, entre os conhecimentos veiculados pelos
defendiam uma concepção construtivista pesquisadores, os problemas práticos
do conhecimento. Por outro lado, estes presentes no cotidiano dos alunos e vi-
poderiam estar lutando para não serem venciados pelo professor em sala de aula.
“tradicionais”. Pode-se verificar, no entanto, através das
marcas da enunciação: “essa parte não
Nos trechos a seguir, é possível inferir
teve como fugir de uma explicação mais
que os enunciadores estão procurando
formal” que os professores/enunciadores
fazer a relação entre a eletricidade e o
tinham a intencionalidade de fazer a re-
magnetismo, utilizando-se sistematica-
lação entre a eletricidade e o magnetismo
mente não somente das equações, mas
(procurando mostrar aos alunos sua im-
de experimentos para demonstrar suas
portância), mas trabalharam essa relação
afirmações: (32-34) “Fizemos a relação
de maneira tradicional e se justificam:
entre eletricidade e magnetismo... [...]
“não teve como fugir”.
Utilizamos experimento simples para ver
que corrente gerava campo magnético. Ou seja, na verdade explicaram o
[...]... uma bobina e uma bússola”. ; (38- fenômeno para os alunos do Ensino Mé-
40) “Mostramos outro experimento bem dio e depois fizeram uma demonstração

55
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005

experimental para comprovar o que tin- Médio de forma que a discussão envolves-
ham exposto na teoria, como pode ser se os participantes, ou seja, estavam pro-
percebido pelas marcas da enunciação curando problematizar o tema (Gil Perez,
neste enunciado: “levamos experimentos 1991; Freire, 1987), conforme segue: “Os
para demonstração para fazer com que alunos leram em alguma revista que as per-
os alunos observassem e verificassem se das de energia nas linhas de transmissão
o que foi explicado se confirma”. ”. O uso poderiam ser minimizadas se esses cabos
do verbo “fazer com” mostra realmente fossem substituídos por outros, onde a re-
um empenho sincero do enunciador des- sistência fosse menor. [...]... a conclusão,
se relato em tornar o conteúdo mais signi- após discutirmos os aspectos favoráveis e
ficativo, mas também fica explícita a falta desfavoráveis... [...]... pois os custos com
de compreensão que esse tem sobre o torres seriam bem maior do que a econo-
que é observar, uma vez que podemos mia de energia”. É possível perceber que
enfatizar/motivar alunos para desperta- os enunciadores propiciaram uma certa
lhe o interesse pela observação, mas abertura para os alunos do Ensino Médio,
não podemos “fazer com” que esta ação isso fica claro, quando aceitaram discutir o
seja garantida. De maneira geral, é essa tema abordado pela revista que os alunos
metodologia que os enunciadores pre- leram: “as perdas de energia nas linhas
senciaram (obtiveram) durante grande de transmissão”. Nota-se que debateram
parte de sua formação, tanto no Ensino o tema com os alunos: isso é mais uma
Médio quanto nas disciplinas específicas marca das discussões perpetradas entre
de Física na Universidade. Estão, na rea- os enunciadores e o professor de Prática
lidade, reproduzindo o modelo utilizado de Ensino de Física.
pelos docentes do ensino superior, quan-
do do período de formação. Outros enunciados que nos dão indí-
cios das marcas da enunciação no dis-
Nos enunciados (68-70), assim como curso do professor de Prática de Ensino
anteriormente, em (27-30), os enuncia- no relato do LHA é quando afirma (58-59)
dores também buscam justificar-se, ao
que: “Levantamos algumas questões de
perceber que o trabalho que estão exe-
caráter social a respeito da falta de ener-
cutando situa-se dentro de uma conce-
gia elétrica e possíveis soluções desse
pção de ensino, baseada na racionalida-
problema. [...] os “gatos” feitos nas favelas
de técnica (Garcia, 1992; Gomez, 1992,
porque o pessoal não tem como pagar”.
Schön, 1992, 2000; Abib, 1996).
(64-65) “... queríamos chamar a atenção
Pode-se notar neste trecho (53-55) por dos alunos para uma questão mais am-
meio das marcas da enunciação (após pla de que nós temos que ser mais res-
discutirmos os aspectos favoráveis e des- ponsáveis e críticos”. Segundo o relato
favoráveis) que os enunciadores tinham do LHA, o grupo tentou problematizar
explicitamente a intenção de debater as (Gil Perez, 1991; Freire, 1987) a questão
perguntas feitas pelos alunos do Ensino com os alunos do Ensino Médio, chaman-

56
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência

do atenção para a reflexão em torno das No trecho (89-92) LHA faz referência
questões socioeconômicas da demanda ao término das aulas do grupo de eletrici-
e produção de energia elétrica em nos- dade. “Encerramos fazendo uma discus-
so país. A utilização da problematização são [...]... se eles gostaram, se foi o que
fica evidente quando o enunciador utiliza eles esperavam [...]... Segundo eles o cur-
o verbo “levantar” no presente do indi- so foi muito bom [...]... o principal proble-
cativo afirmando: “Levantamos algumas ma foi o tempo muito curto”. As perguntas
questões de caráter social a respeito da feitas pelo grupo para os alunos, sobre os
falta de energia elétrica e as possíveis so- temas abordados, refletem suas dúvidas
luções desse problema”. Na seqüência, o e preocupações, pelo uso da conjunção
enunciador explica algumas das questões subordinativa adverbial (condicional) se.
sociais geradas com a problematização Estavam preocupados em ministrar suas
em torno da falta de energia. Uma delas aulas de maneira que os alunos “gostas-
foi à discussão sobre: “os gatos feitos nas sem” para obter a aprovação desses, e a
favelas” esta forma de instalação elétrica do professor da Prática de Ensino, que os
é construída pela população carente que avaliaria no final do semestre. Uma prova
não possui uma renda suficiente para disso é que argumentaram enfaticamente
pagar pela energia que consome, sendo que o curso foi muito bom, utilizando-se
esta a única maneira que encontram para do apoio dos alunos. A preocupação do
terem acesso à rede de energia elétrica. grupo ratifica os resultados de várias pes-
No enunciado seguinte, o uso do ver- quisas (Fuller, 1969; Kagan, 1992; Bea-
bo “querer”, no futuro do pretérito, marca ch & Person, 1998; Bejarano, 2001) que
as intenções dos enunciadores quan- afirmam a existência de um conjunto de
do da utilização das problematizações; preocupações com as quais os professo-
mas, ao mesmo tempo, não garante que res se deparam no inicio de sua carreira
o objetivo foi alcançado; apenas realça docente.
intencionalidade: “queríamos chamar a
atenção dos alunos para uma questão CONCLUSÕES
mais ampla de que nós temos que ser
É possível perceber através da análise do
mais responsáveis e críticos”.
discurso presente no relatório elaborado
Provavelmente o grupo tenha colocado pelo licenciando LHA que, muito embora
em pauta este assunto devido à crise de os enunciadores dos discursos analisados
energia (chamada popularmente de “Apa- (grupo de eletricidade e magnetismo), ten-
gão”) ocorrida no ano de 2001, quando o ham buscado articular suas ações pedagó-
Brasil passou por uma escassez gravíssi- gicas dentro de uma concepção de ensino
ma, que determinou oito meses de racio- alternativa, o discurso do licenciando ana-
namento para a população, que ainda se lisado, bem como da maioria dos demais,
mantém em situação de alerta. aproxima-se do discurso pedagógico auto-
ritário que é característico da racionalidade

57
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005

técnica. No entanto percebe-se também, atuação desses futuros docentes também


que já aparecem no relatório indícios do é fortemente marcada pelas outras disci-
discurso polêmico. É importante salientar plinas ministradas pelos demais membros
que, embora o objetivo da pesquisa fosse do corpo docente do Curso de Licenciatura
analisar a apropriação do discurso do do- que embora tenham, em sua maioria, só-
cente de Prática de Ensino de Física pelos lida formação, nas diversas áreas da Fí-
licenciandos, através dos referenciais teó- sica, geralmente não possuem adequada
ricos discutidos anteriormente (refletidos formação em didática das ciências e em
nos relatórios de estágio de regência), a educação, de modo geral.

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