Professional Documents
Culture Documents
Tecné, Episteme y Didaxis: TED 2665-3184: Issn
Tecné, Episteme y Didaxis: TED 2665-3184: Issn
ISSN: 2665-3184
revistated.fct@gmail.com
Universidad Pedagógica Nacional
Colombia
Sérgio Camargo*
Roberto Nardi**
Iracema B. Torcuato **
RESUMO
ABSTRACT
We report here a research, undertaken among future High School Physics teachers, which
aimed to evaluate the effect of a structured Teaching Practice course in a sample of 22
students exposed to a teaching practice experience. Data collected from the reading of
1
Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
* scamargo@fc.unesp.br
** Grupo de Pesquisa em Ensino de Ciências - Professor Adjunto - Depto. de Educação – Programa de Pós-graduação em Educação
para a Ciência - UNESP - Faculdade de Ciências - Câmpus de Bauru, São Paulo, Brasil. Apoio: CNPq – Conselho Nacional de
Pesquisa. nardi@fc.unesp.br
*** ira_torquato@uol.com.br
42
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência
their academic reports made after finishinf the teaching experience show, among other
aspects, that the ideology implicity in the discourse of these future teachers reinforce the
techinical rationality paradigm, even though the analyzed discourses’ enunciators have
intended to present the contents according to theroretical referentials previously studied.
In various excerts analyzed persist the dissociation between practice and theory. These
data collected, as well as other obtained during the research can subside discussions to
rethink teacher professional development.
Key words: Physics Teachers Eduation; Physics Teaching Practice, Discourse Analysis
43
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005
44
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência
45
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005
46
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência
47
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005
O curso foi denominado “O outro lado A descrição das etapas da pesquisa mostra
da Física” e tinha por meta proporcionar que o processo todo gerou uma significativa
aos alunos do Ensino Médio, bem como quantidade de dados. Na presente comuni-
aos licenciandos, uma visão alternativa cação, serão apresentados apenas aqueles
de aprendizagem, centrada numa abor- relativos ao discurso presente no relatório
dagem dialógica, na problematização de um dos licenciandos, no qual estão des-
dos conteúdos e respeitando estudos critas as aulas ministradas por seu grupo
derivados da pesquisa em Ensino de durante o estágio realizado, numa escola
Física, tais como: a preocupação com a de nível médio, sobre eletricidade.
inserção da História e Filosofia da Ciên- Este relatório foi escolhido devido sua
cia no ensino, o respeito às concepções riqueza de informações. Procurou-se inter-
prévias (espontâneas ou alternativas) pretar as marcas de apropriação dos refe-
dos alunos no planejamento e desenvol- renciais teóricos , no discurso (contido no
vimento das atividades de ensino, a in- relatório) do professor de Prática de Ensino
serção de tópicos de Física Moderna e de Física pelos licenciandos. Em outras pa-
o favorecimento de discussões sobre as lavras, analisar o impacto dos referenciais
relações entre Ciência, Tecnologia, So- estudados na disciplina de Prática de En-
ciedade e o cotidiano dos alunos. sino, previamente à experiência dos licen-
No final do curso, denominado pelos ciandos na sala de aula no Ensino Médio.
licenciandos de “O outro lado da Físi-
Procurando tornar mais clara a identifi-
ca”, foi solicitado aos licenciandos que
cação das possíveis marcas existentes nos
preenchessem o relatório de regência,
relatos dos licenciandos, optamos por ana-
individualmente, relatando em forma de
lisar o relatório deste licenciando, segundo
diário a seqüência de aulas ministradas
os seguintes grandes temas: Concepções
pelo seu grupo no Ensino Médio. Todas
Espontâneas e/ou Alternativas em Física
as aulas deste curso foram registradas
(CE), História e Filosofia da Ciência (HFC),
em vídeos, coletando-se material para
Ciência Tecnologia e Sociedade (CTS),
análise/reflexão em encontros com todos
Abordagem Dialógica (AD) x Abordagem
os licenciandos. Esses encontros foram
Tradicional (AT).
realizados quinzenalmente durante todo
o processo, após a conclusão de cada Numeramos todas as linhas do relato,
48
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência
Licenciando LHA
1 “Começamos nos apresentado e fazendo um breve comentário a respeito das propostas do curso
2 que estaríamos apresentando e posteriormente os outros grupos. Tentamos dar uma nova visão
3 de ciência e de física, tentando desmistificar a visão que, em geral, os alunos tem de que ciência
4 se faz em grandes laboratório com pessoas extremamente “inteligentes” que não fazem mais
5 nada além de pesquisar.
6 Questionamos os alunos se eles sabiam a quantidade de pesquisa feita para se ter um aparelho
7 simples como uma lâmpada. A partir disto começamos a contar um pouco da história da
8 eletricidade e magnetismo. Trazendo, também, fatos curiosos da história e mostrando que às
9 vezes não se da a devida importância a novas descobertas que acabam sendo, de certa forma,
10 ridicularizadas. E mais tarde, com o avanço das pesquisa, se descobre a verdadeira importância
11 e utilidade desse achado. Creio que esta parte, a História da Ciência, poderíamos ter trazido ou
12 montados alguns texto para os alunos, assim, entendo que despertaríamos uma maior
13 curiosidade dos alunos.
14 Por se tratar de uma turma muito heterogênea no nível de conhecimento, pois tínhamos alunos
15 de dois anos diferentes, resolvemos começar pela eletricidade básica, mostrando alguns
16 experimentos bem simples, um circuito com uma fonte e uma lâmpada, desenvolvendo o conceito
17 de corrente, tensão e resistência. A grande dificuldade foi fazer com que esta parte, que era
18 muito básica para os alunos do terceiro ano, não desestimulasse estes alunos que já sabiam e
19 encabulasse os que não sabiam o assunto abordado. Mas tínhamos que começar de forma mais
20 básica e simples, porque se não os alunos do segundo ano não acompanhariam o resto do curso
21 e os alunos que já conheciam os conceitos que estavam sendo apresentados não teriam
22 problemas e poderiam ajudar os alunos que ainda não tinham visto estes conceitos.
23 A forma de apresentação desta parte foi muito acertada, já que com experimentos simples
24 conseguimos fazer relações destes com circuitos maiores. Relacionamos estes experimentos com
25 circuitos mais complexos como o de uma casa”.
26 Abordamos os conceitos de magnetismo trouxemos experimentos para mostrar as linhas de
27 campo. Esta parte foi abordada de forma um pouco mais tradicional, porém tentamos fugir ao
28 máximo dessa forma de ensino, com experimentos onde os alunos pudessem observar o que
29 estava sendo explicado na lousa, isso despertava a curiosidade dos alunos.
30 Fizemos a relação entre eletricidade e magnetismo. Utilizamos um experimento simples para ver
31 que corrente gerava campo magnético. Utilizamos uma bobina e uma bússola. Vimos também
32 que a intensidade do campo era proporcional à intensidade da corrente.
49
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005
33 Demonstrado que havia uma relação entre eletricidade e magnetismo, sendo uma corrente
34 elétrica geradora de campo magnético, perguntamos se o inverso seria possível, ou seja, campo
35 magnético poderia gerar corrente elétrica. Mostramos outro experimento bem simples
36 movimentar um imã na frente de uma bobina e verificar o que acontecia com o marcador de um
37 amperímetro (aparelho que mede corrente elétrica). Os alunos observaram que o marcador
38 oscilava quando o imã se movia e parava quando o imã parava. Assim, os alunos puderam ver
39 que essa relação entre eletricidade e magnetismo era uma relação importante, pois quase toda
40 energia que consumimos e gerada dessa forma e que em uma usina hidrelétrica o que acontece é
41 exatamente o que acabamos de ver, um imã se movimentando dentro de uma bobina, e que faz
42 esse o papel do braço, para que haja esse movimento é a água, no caso da hidrelétrica, o vent
43 no caso das usinas eólicas, o gás nas termelétricas e assim por diante.
44 Mostramos alguns dispositivos eletrônicos, explicamos os sistemas de cores para dar os valores
45 nominais dos resistores, mostramos o funcionamento de um diodo e de transistores. Bem como
46 suas aplicações.
47 Trouxemos algumas respostas para perguntas que os alunos fizeram a respeito das linhas de
48 transmissão. Os alunos leram em alguma revista que as perdas de energia nas linhas de
49 transmissão poderiam se minimizadas se esses cabos fossem substituídos por outros, onde
50 resistência fosse menor. Chegamos a conclusão, após discutirmos os aspectos favoráveis e
51 desfavoráveis dessa possível troca, que não seria viável, pois os custos com torres seria bem
52 maior do que a economia de energia.
53 Levantamos algumas questões de caráter social a respeito da falta de energia elétrica e
54 possíveis soluções desse problema. Questões como as perdas nas linhas de transmissão por falta
55 de manutenção, os “gatos” feitos nas favelas porque o pessoal não tem como pagar, a falta e
56 investimento que ocorreu nos últimos anos porque o governo estava privatizando o sistema de
57 produção de energia, as medidas tomadas pelo governo são ou não a solução para o problema.
58 Com esta discussão queríamos chamar a atenção dos alunos para uma questão mais ampla de
59 que nós temos que ser mais responsáveis e críticos questionando porque a situação está dessa
60 forma, será que podemos fazer algo para mudar e melhorar, não só na questão da energia, mas
61 em todos os aspectos, educação, saúde, etc”.
62 “Entramos em motores e geradores, essa parte não teve como fugir de uma explicação mais
63 formal, mas também levamos experimentos para demonstração e fazer com que os alunos
64 observasse e verificassem se o que foi explicado se confirma, passamos um pequeno gerador
65 conectado a um led onde os alunos podiam girar uma das extremidades e ver que o led acendia
66 verificando que o movimento gerava corrente elétrica, que é o mesmo princípio da hidrelétrica.
67 Um colega aluno da Pós-Graduação que estava assistindo nossa aula sugeriu a idéia de abrir o
68 gerador para que os alunos observassem como estava montado o circuito, assim os alunos
69 compreenderam melhor o funcionamento do equipamento.
70 Explicamos que o funcionamento de motor é o contrario de um gerador, ou seja, o gerador usa o
71 movimento e gera energia e o motor faz o contrario usa energia e gera movimento. Também
72 ilustramos esta explicação com um experimento, um motorzinho e uma bateria, ligando-se a
73 bateria ao motor ele girava a outra extremidade.
74 Com os dois experimentos circulando entre os alunos observamos que eles faziam outras
50
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência
75 verificações, como o aumento da intensidade da corrente com o aumento da velocidade com que
76 se girava a extremidade do gerador. Eles fizeram com que a extremidade do gerador fosse
77 movimentada pelo motor. Verificaram que se ligando a bateria nas extremidades do led no
78 gerador deveria se transformar em um motor, o que realmente aconteceu, verificando que o
79 funcionamento de um motor é o contrario de um gerador.
80 Encerramos fazendo uma discussão de como eles viram o desenvolvimento desta parte do curso,
81 se eles gostaram, se foi o que eles esperavam, perguntamos das falhas e sugestões para os
82 outros grupos. Segundo eles o curso foi muito bom, bem ilustrativo e pratico que o principal
83 problema foi o tempo muito curto
Linhas
Marcas* Segmentos escolhidos/Discurso
(Nº)
CE - -
“...começamos a contar um pouco da história da eletricidade e mag-
7-8
netismo [...]...fatos curiosos da história”.
HFC “Creio que esta parte, a História da Ciência, poderíamos ter trazido ou
montados alguns texto para os alunos, assim, entendo que desperta- 11-13
mistificar a visão que, em geral, os alunos tem de que ciência se faz 2-4
em grandes laboratório”.
“Questionamos os alunos se eles sabiam a quantidade de pesquisa
6-7
feita para se ter um aparelho simples como uma lâmpada”.
“...tínhamos que começar de forma mais básica e simples, porque se
experimento simples para ver que corrente gerava campo magnético. 30-31
51
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005
...Continuación
um amperímetro”.
“... os alunos puderam ver que essa relação entre eletricidade e mag-
38-39
netismo era uma relação importante”.
“Os alunos leram em alguma revista que as perdas de energia nas
de energia”.
AD/AT “Levantamos algumas questões de caráter social a respeito da falta de
que eles esperavam [...]... Segundo eles o curso foi muito bom [...]... o 80-83
* CE= Concepção Espontânea; HFC = História e Filosofia da Ciência; CTS = Ciência Tecnologia e Sociedade;
AD = Abordagem Dialógica; AT= Abordagem Tradicional.
52
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência
53
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005
aula realmente tinham uma visão própria guimos fazer relações destes com circui-
da ciência. tos maiores”. ”. As marcas da enunciação
deixadas nesse enunciado (20-25) po-
No excerto (6-7) “Questionamos os
dem ser interpretadas de várias manei-
alunos se eles sabiam a quantidade de
ras; por um lado, o grupo poderia ter a
pesquisa feita para se ter um aparelho
intenção de estar realmente preocupado
simples como uma lâmpada”. Pelo uso
com os alunos do segundo ano: “... tínha-
do verbo questionar, usado na expres-
mos que começar de forma mais básica e
são: “questionamos os alunos...” perce-
simples”. ”. O uso dos adjetivos “básica”
be-se a intenção do grupo: tentar discutir
e “simples”, comprovam esta intenciona-
com os alunos a propósito da produção de
lidade. Essa intencionalidade é reforça-
um aparelho tecnológico, isso reflete de
da, quando os enunciadores/professores
maneira implícita a questão da problema-
optaram por iniciar com a eletricidade bá-
tização do conteúdo discutido na discipli-
sica e com experimentos simples: “com
na de Prática de Ensino de Física (VI/VII)
experimentos simples conseguimos fazer
quando do estudo do texto de Paulo Freire.
relações destes com circuitos maiores”.
Mas esta intenção fica apenas no plano su-
Por outro lado, quando empregam o ver-
perficial discursivo, já que não se sabe se
bo “poder” –no futuro do pretérito indica-
os professores (enunciadores do relatório)
tivo– afirmando que os alunos do terceiro
também deram voz aos alunos para que
ano poderiam ajudá-los com os alunos do
estes também pudessem questionar.
segundo ano, uma vez que, estes já tin-
No trecho (20-25), o enunciador argu- ham estudado os conceitos que o grupo
menta que, pelo fato dos alunos origina- trabalharia, não pode ser descartada a
rem-se de séries diferentes, eles teriam hipótese de que também eles estivessem
problemas para acompanhar o conteúdo inseguros, em decorrência dos alunos do
e optam por começar do principio. “... tín- terceiro ano dominarem (ou não) o con-
hamos que começar de forma mais bá- teúdo. O que poderia estar incomodando
sica e simples, porque se não os alunos o grupo, pois possibilitaria aos alunos do
do segundo ano não acompanhariam o terceiro ano questioná-los, caso houves-
resto do curso” na seqüência, afirmam se uma interpretação errônea dos con-
que os enunciatários (alunos do terceiro ceitos. No entanto, o convite para que os
ano) poderiam auxiliá-los com os alunos
auxiliassem com os alunos do segundo
do segundo ano, porque esses ainda não
ano, pode ter sido uma estratégia, já que,
tinham visto os conceitos de eletricidade.
desta maneira, o grupo também estaria
“... os alunos que já conheciam os con-
colocando estes alunos no papel de pro-
ceitos [...]... poderiam ajudar os alunos
fessores. O receio de que os alunos ti-
que ainda não tinham visto”.
vessem mais conhecimento (do que eles
Em seguida afirmam: “A forma de apre- próprios) pode ter preocupado, uma vez
sentação desta parte foi muito acertada, que, habituaram-se a sempre ver o pro-
já que com experimentos simples conse- fessor como o “dono do saber” (Charlot,
54
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência
1986; Bejarano, 2001; Villani, 1981; Frei- simples, movimentar um imã na frente
re, 1987). de uma bobina e verificar o que aconte-
cia com o marcador de um amperímetro”.
No excerto (27-30), “... os conceitos
; (42-44) “... os alunos puderam ver que
de magnetismo... [...]... foi abordada de
essa relação entre eletricidade e magne-
forma um pouco mais tradicional, porém
tismo era uma relação importante”; (68-70)
tentamos fugir ao máximo dessa forma
“Entramos em motores e geradores, essa
de ensino, com experimentos onde os
parte não teve como fugir de uma expli-
alunos pudessem observar o que estava
cação mais formal [...]... levamos experi-
sendo explicado na lousa...”; é possível
mentos para demonstração e fazer com
notar, por meio das marcas da enun-
que os alunos observasse e verificassem
ciação “de forma um pouco mais tradi-
se o que foi explicado se confirma”.
cional”, que os enunciadores/professo-
res apesar de terem exposto a aula de É notável que os enunciadores/professo-
maneira tradicional, preocupavam-se em res estivessem buscando ministrar a aula
ministrá-las de forma não-tradicional; per- de acordo com os referenciais teóricos
cebendo o equívoco, procuram se justifi- trabalhados anteriormente, uma vez que,
car: “... tentamos fugir ao máximo dessa esses versavam sobre a relação entre
forma de ensino...”. Provavelmente essa a teoria e a prática, defendendo a idéia
“tentativa de fuga” do modelo tradicional, de que não deveria haver uma dicotomia
enfatizada neste segmento seja resulta- entre ambas (Freire, 1987; Schön, 1992;
do das discussões dos textos realizados Abib, 1996; Carvalho, 2001), sendo fun-
na disciplina de Prática de Ensino de Fí- damental a existência de uma ligação
sica (VI/VII), os quais, em sua maioria, entre os conhecimentos veiculados pelos
defendiam uma concepção construtivista pesquisadores, os problemas práticos
do conhecimento. Por outro lado, estes presentes no cotidiano dos alunos e vi-
poderiam estar lutando para não serem venciados pelo professor em sala de aula.
“tradicionais”. Pode-se verificar, no entanto, através das
marcas da enunciação: “essa parte não
Nos trechos a seguir, é possível inferir
teve como fugir de uma explicação mais
que os enunciadores estão procurando
formal” que os professores/enunciadores
fazer a relação entre a eletricidade e o
tinham a intencionalidade de fazer a re-
magnetismo, utilizando-se sistematica-
lação entre a eletricidade e o magnetismo
mente não somente das equações, mas
(procurando mostrar aos alunos sua im-
de experimentos para demonstrar suas
portância), mas trabalharam essa relação
afirmações: (32-34) “Fizemos a relação
de maneira tradicional e se justificam:
entre eletricidade e magnetismo... [...]
“não teve como fugir”.
Utilizamos experimento simples para ver
que corrente gerava campo magnético. Ou seja, na verdade explicaram o
[...]... uma bobina e uma bússola”. ; (38- fenômeno para os alunos do Ensino Mé-
40) “Mostramos outro experimento bem dio e depois fizeram uma demonstração
55
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005
experimental para comprovar o que tin- Médio de forma que a discussão envolves-
ham exposto na teoria, como pode ser se os participantes, ou seja, estavam pro-
percebido pelas marcas da enunciação curando problematizar o tema (Gil Perez,
neste enunciado: “levamos experimentos 1991; Freire, 1987), conforme segue: “Os
para demonstração para fazer com que alunos leram em alguma revista que as per-
os alunos observassem e verificassem se das de energia nas linhas de transmissão
o que foi explicado se confirma”. ”. O uso poderiam ser minimizadas se esses cabos
do verbo “fazer com” mostra realmente fossem substituídos por outros, onde a re-
um empenho sincero do enunciador des- sistência fosse menor. [...]... a conclusão,
se relato em tornar o conteúdo mais signi- após discutirmos os aspectos favoráveis e
ficativo, mas também fica explícita a falta desfavoráveis... [...]... pois os custos com
de compreensão que esse tem sobre o torres seriam bem maior do que a econo-
que é observar, uma vez que podemos mia de energia”. É possível perceber que
enfatizar/motivar alunos para desperta- os enunciadores propiciaram uma certa
lhe o interesse pela observação, mas abertura para os alunos do Ensino Médio,
não podemos “fazer com” que esta ação isso fica claro, quando aceitaram discutir o
seja garantida. De maneira geral, é essa tema abordado pela revista que os alunos
metodologia que os enunciadores pre- leram: “as perdas de energia nas linhas
senciaram (obtiveram) durante grande de transmissão”. Nota-se que debateram
parte de sua formação, tanto no Ensino o tema com os alunos: isso é mais uma
Médio quanto nas disciplinas específicas marca das discussões perpetradas entre
de Física na Universidade. Estão, na rea- os enunciadores e o professor de Prática
lidade, reproduzindo o modelo utilizado de Ensino de Física.
pelos docentes do ensino superior, quan-
do do período de formação. Outros enunciados que nos dão indí-
cios das marcas da enunciação no dis-
Nos enunciados (68-70), assim como curso do professor de Prática de Ensino
anteriormente, em (27-30), os enuncia- no relato do LHA é quando afirma (58-59)
dores também buscam justificar-se, ao
que: “Levantamos algumas questões de
perceber que o trabalho que estão exe-
caráter social a respeito da falta de ener-
cutando situa-se dentro de uma conce-
gia elétrica e possíveis soluções desse
pção de ensino, baseada na racionalida-
problema. [...] os “gatos” feitos nas favelas
de técnica (Garcia, 1992; Gomez, 1992,
porque o pessoal não tem como pagar”.
Schön, 1992, 2000; Abib, 1996).
(64-65) “... queríamos chamar a atenção
Pode-se notar neste trecho (53-55) por dos alunos para uma questão mais am-
meio das marcas da enunciação (após pla de que nós temos que ser mais res-
discutirmos os aspectos favoráveis e des- ponsáveis e críticos”. Segundo o relato
favoráveis) que os enunciadores tinham do LHA, o grupo tentou problematizar
explicitamente a intenção de debater as (Gil Perez, 1991; Freire, 1987) a questão
perguntas feitas pelos alunos do Ensino com os alunos do Ensino Médio, chaman-
56
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência
do atenção para a reflexão em torno das No trecho (89-92) LHA faz referência
questões socioeconômicas da demanda ao término das aulas do grupo de eletrici-
e produção de energia elétrica em nos- dade. “Encerramos fazendo uma discus-
so país. A utilização da problematização são [...]... se eles gostaram, se foi o que
fica evidente quando o enunciador utiliza eles esperavam [...]... Segundo eles o cur-
o verbo “levantar” no presente do indi- so foi muito bom [...]... o principal proble-
cativo afirmando: “Levantamos algumas ma foi o tempo muito curto”. As perguntas
questões de caráter social a respeito da feitas pelo grupo para os alunos, sobre os
falta de energia elétrica e as possíveis so- temas abordados, refletem suas dúvidas
luções desse problema”. Na seqüência, o e preocupações, pelo uso da conjunção
enunciador explica algumas das questões subordinativa adverbial (condicional) se.
sociais geradas com a problematização Estavam preocupados em ministrar suas
em torno da falta de energia. Uma delas aulas de maneira que os alunos “gostas-
foi à discussão sobre: “os gatos feitos nas sem” para obter a aprovação desses, e a
favelas” esta forma de instalação elétrica do professor da Prática de Ensino, que os
é construída pela população carente que avaliaria no final do semestre. Uma prova
não possui uma renda suficiente para disso é que argumentaram enfaticamente
pagar pela energia que consome, sendo que o curso foi muito bom, utilizando-se
esta a única maneira que encontram para do apoio dos alunos. A preocupação do
terem acesso à rede de energia elétrica. grupo ratifica os resultados de várias pes-
No enunciado seguinte, o uso do ver- quisas (Fuller, 1969; Kagan, 1992; Bea-
bo “querer”, no futuro do pretérito, marca ch & Person, 1998; Bejarano, 2001) que
as intenções dos enunciadores quan- afirmam a existência de um conjunto de
do da utilização das problematizações; preocupações com as quais os professo-
mas, ao mesmo tempo, não garante que res se deparam no inicio de sua carreira
o objetivo foi alcançado; apenas realça docente.
intencionalidade: “queríamos chamar a
atenção dos alunos para uma questão CONCLUSÕES
mais ampla de que nós temos que ser
É possível perceber através da análise do
mais responsáveis e críticos”.
discurso presente no relatório elaborado
Provavelmente o grupo tenha colocado pelo licenciando LHA que, muito embora
em pauta este assunto devido à crise de os enunciadores dos discursos analisados
energia (chamada popularmente de “Apa- (grupo de eletricidade e magnetismo), ten-
gão”) ocorrida no ano de 2001, quando o ham buscado articular suas ações pedagó-
Brasil passou por uma escassez gravíssi- gicas dentro de uma concepção de ensino
ma, que determinou oito meses de racio- alternativa, o discurso do licenciando ana-
namento para a população, que ainda se lisado, bem como da maioria dos demais,
mantém em situação de alerta. aproxima-se do discurso pedagógico auto-
ritário que é característico da racionalidade
57
Tecné, Episteme y Didaxis No. 17, 2005
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aragão, R. M. R. (2000). Uma Interação Camargo, S. (2003). Prática de Ensino de
Fundamental de Ensino e de Aprendiza- Física: marcas de referenciais teóricos no
gem: professor, aluno, conhecimento...In: discurso de licenciandos. 207f. Faculdade
Schnetzler, R. P., e Aragão, R.M.R (Orgs.). de Ciências, Dissertação (Mestrado em
En Ensino de Ciências: fundamentos e Educação para a Ciência). UNESP, Bauru.
abordagens. Campinas: R. Vieira Gráfica
e Editora, pp. 82-98. Charlot, B. (1986). A mistificação pedagógi-
ca: realidades sociais e processos ideoló-
Abib, M. L. V. S. (1996). Em busca de uma gicos na teoria da educação, 2 ed. Guana-
nova formação de professores. En Ciên-
bara: Rio de Janeiro.
cia & Educação, Bauru, V. 3, pp. 60-72.
Fracalanza, H. (1992). O que sabemos so-
Bejarano, N. R. R. (2001). Tornando-se pro-
bre os livros didáticos para o ensino de
fessores de física: conflitos e preocupações
ciências no Brasil. 293f. Universidade
na formação inicial. 300f, Universidade de
Estadual de Campinas, Faculdade de
São Paulo, Faculdade de Educação, Tese
Educação Campinas, São Paulo, Tese
(Doutorado em Educação), São Paulo.
(Doutorado em Educação).
Bogdan, R., y Biklen, S. (1994). Investigação
Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido,
qualitativa em Educação: uma introdução à
teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora. 22ª ed. Paz e Terra: Rio de Janeiro.
Brandão, H. H. N. (1997). Introdução à Aná- Gil Pérez, D. (1991). ¿Que hemos de saber
lise do Discurso. 6ª ed. Campinas: Editora y saber hacer los profesores de ciencias?
da Unicamp. Intento de Síntesis de las aportaciones de
la investigación didáctica. En Enseñanza
Carvalho, A. M. P, y Gil Pérez, D. (2001). O.
de las Ciencias, v.9, No.1, pp. 69-77.
saber e o saber fazer dos professores. In:
Castro, A.d. E Carvalho, A. M. P. (Orgs.). En Gonzales, C. (1976). Para que ensinar física
Ensinar a Ensinar: Didática para a Escola em paises subdesenvolvidos. En Revista
Fundamental e Média. São Paulo: Pioneira Brasileira de Ensino de Física, São Paulo,
Thomson Learning, pp. 107-124. v. especial (1): pp. 42-72, jul.
58
Prática de ensino de física: a análise do discurso como base para interpretação de relatórios de estágio de regência
59