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Diego Henrique Schuster

Fábio dos Passos


Maria Fernanda Wirth

Reforma previdenciária:
análise técnica e apolítica
Diego Henrique Schuster
Fábio dos Passos
Maria Fernanda Wirth
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Título: Reforma previdenciária: análise técnica e apolítica


Autor: Diego Henrique Schuster, Fábio dos Passos e Maria Fernanda Wirth
Projeto gráfico e Diagramação: Carla Lemos

Ficha Catalográfica
Reforma Previdenciária: análise técnica e apolítica / Organizadores Diego
Henrique Schuster, Fábio dos Passos, Maria Fernanda Wirth. – Curitiba: Instituto
Brasileiro de Direito Previdenciário – IBDP, 2020.
376 f.

ISBN 978-65-87789-01-9
e-book
Bibliografia

1. Direito Previdenciário 2. Reforma da Previdência I. Schuster, Diego


Henrique, org. II. Passos, Fábio dos, org. III. Wirth, Maria Fernanda, org.
CDD-341.67
CDU -346.7

Bibliotecária Responsável Elisabete de Barros B. Silva / CRB9/918


APRESENTAÇÃO

Praticamente quatro anos de estudos, reflexões e debates induzidos por


duas propostas sucessivas de reforma da previdência social brasileira levaram
ao repensar deste ramo do direito.
Certezas foram questionadas; fundamentos foram reavivados e recon-
siderados; o que era tido como óbvio passou a ser contrastado com novas
possibilidades de interpretação.
Os valores (sociais e jurídicos) que alicerçam o direito previdenciá-
rio e, mais que isto, a previdência social, foram contrastados com valores
econômicos apontados cotidianamente nos debates e exposições sobre a
necessidade, supostamente imprescindível, de mudanças tendencialmente
radicais e limitadoras de direitos, muitas vezes apresentados com as vestes
de privilégios.
Porém, ao jurista é sempre necessário ter em mente que ao tratar da
Seguridade Social, e especificamente da Previdência Social, se está diante de
um ramo do direito que deve ser interpretado em consonância com as suas
finalidades sociais, com as promessas da modernidade, dentre as quais estão
a igualdade e justiça social. A Constituição desenhou a seguridade social
como um direito fundamental-social. Atribuiu aos direitos previdenciários
contornos de solidariedade social.
A Constituição Federal dispõe que a Ordem Social1 tem como base
o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça social. De
tal modo, as políticas públicas que derivam do constitucionalismo social
– as de previdência social, inclusive e particularmente – devem ser formu-
ladas pela perspectiva que reafirma a importância do trabalho e também

1 A Ordem Social pode ser tomada como parcela da ordem jurídica destinada a disciplinar
o conjunto das relações sociais, compondo o que se considera o constitucionalismo social
dirigente. SAVARIS, José Antonio e ROCHA, Daniel Machado da. Direito Previdenciário:
fundamentos de interpretação e aplicação. Curitiba: Alteridade, 2019, p. 92.

5
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

a promoção do bem-estar e justiça sociais. Não pode assim, o desenho da


política estar em desconexão com a realidade do mercado de trabalho, nem
com o objetivo fundamental da nossa organização social – a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária, comprometida com a erradicação da
pobreza e da marginalização e com a redução das desigualdades sociais e
regionais (CF/88, art. 3º).
Decerto que não se defende que o texto constitucional tenha sido promul-
gado para petrificar um modelo de organização social. De fato, não poderíamos
tomar as regras previdenciária como imutáveis. Ao contrário, é admissível,
e até mesmo desejável, que as alterações sociais conduzam à uma alteração
do texto original. O Direito Previdenciário está intrinsecamente relacionado
à dinâmica social, razão pela qual suas normas devem estar, na medida do
possível, alinhadas às variações demográficas e econômicas enfrentadas na
sociedade.
Contudo, tais alterações não podem ser feitas aleatoriamente, nem
mesmo podem ser tomadas apenas sob um viés econômico. Isto porque o
princípio do equilíbrio financeiro-atuarial é apenas um dos princípios que
norteiam a Seguridade Social, razão pela qual não deve vigorar isoladamente
ou com primazia na elaboração de uma política previdenciária, não podendo
sobrepujar a finalidade precípua de Seguridade Social que é levar proteção
social aos indivíduos em momentos de contingência social, finalidade esta
umbilicalmente relacionada aos princípios fundamentais da República.
Ao Estado é muito mais valioso combater a pobreza e reduzir as desi-
gualdades sociais, pois, oferecer condições materiais de vida digna e inclusiva
significa, ao mesmo tempo, diminuir a violência, a injustiça, a exploração,
a fome, as doenças, a ignorância etc. É possível, na outra ponta, se diminuir
as prestações assistenciais ou o chamado “assistencialismo”, com a promo-
ção de serviços de saúde, educação, emprego com remuneração adequada,
redução dos riscos no meio ambiente do trabalho, políticas de inclusão da
pessoa idosa, etc.
No entanto, essa “função social” dos benefícios previdenciários se mos-
trou insuficiente diante da EC 103/2019. Eles têm sido tratados como direitos
individuais, de índole privatista, sem qualquer finalidade do ponto de vista
social – em benefício do bem-estar social. Isso reclama um resgate de sua
finalidade, da sua dimensão coletiva, de modo a se criar uma limitação inter-
pretativa contra uma mera subsunção de alguns dispositivos. Os princípios
constitucionais, a jurisprudência, enfim, a história institucional do Direito,

6
A força dos precedentes judiciais em tempos pós-reforma da previdência

trazem limitações interpretativas, visando a preservação das exigências ma-


teriais de nossa sociedade.
A Carta Constitucional carrega consigo uma força normativa comprome-
tida com o aprimoramento do bem-estar e da justiça social e com a redução
das desigualdades sociais, e essas são as balizas que devem conduzir qualquer
remodelagem da organização social intentada por uma Emenda Constitucional
que almeja instituir um novo regramento para a seguridade social.
Nessa perspectiva, uma política pública que altere os requisitos para-
métricos de concessão de benefícios previdenciários não pode se dar em
desconexão com a realidade social, nem com os princípios constitucionais
que norteiam o tema.
A compreensão dos reflexos de uma política pública previdenciária de-
manda duas medidas indispensáveis: (a) a análise da relação da política pú-
blica com o mercado de trabalho, vez que o sistema previdenciário pressupõe
a condição de trabalhador do segurado; e (b) a verificação do alinhamento
da política pública traçada com os princípios constitucionais norteadores do
sistema de Seguridade Social.
Vinte e quatro estudiosos do direito previdenciário aceitaram o chamado
do IBDP para produzir esta obra que busca distanciar-se do debate político e
apresentar uma análise jurídica do novo regramento previdenciário, trazendo
consistentes e refletidos argumentos para a compreensão e para a interpretação
do novo ordenamento previdenciário.
Tendo consciência que o resultado da interpretação tende a evoluir com
o distanciamento, no tempo, deste momento de embate político, é que essa
necessária reflexão é brilhantemente conduzida pelos autores que compõem
esta obra, buscando analisar o novo modelo previdenciário que se firma na
sociedade a partir de da Emenda Constitucional 103/2019. Os autores trazem
o necessário confronto entre a realidade social, os princípios constitucionais
e o novo regramento previdenciário, evidenciando os desafios e as incompa-
tibilidades decorrentes deste novo cenário.
Assim, a partir de uma análise holística e integrada do conjunto do
Direito, os autores refletem sobre as mudanças trazidas pela EC 103/2019,
buscando integrá-las a um sistema coerente e preocupado não apenas com
a realidade capturada pelos sinais de tempos atuais, mas com aquela a ser
instituída pelo Direito.
A obra busca despertar nos operadores do Direito Previdenciário a de-
safiante missão de operar, em sua prática diária, a devida adequação do novo
7
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

regramento aos princípios norteadores do Direito Previdenciário, incentivan-


do-os a militar em prol da fixação de novas teses que podem trazer melhor
adequação do novo modelo à realidade vivenciada pelos trabalhadores em
nossa sociedade.
Tempo de reforma exigem igual reforma de pensamentos e posturas, do
mesmo modo que exigem estudo assíduo e compromisso inarredável com a
proteção dos Direitos Fundamentais.
Embora seja certo que as leis têm efeito silenciador, que levam muitos a
desistir da luta, a calar os posicionamentos em sentido contrário, a conformar-
-se com o que afirmam as regras positivas, esta obra objetiva o contrário: espera
aumentar as vozes, ampliar os debates, fundamentar as discussões, mantendo
viva a chama da mudança e da busca pela efetividade da Justiça Social.
Neste espírito convidamos para ler esta obra também com o espírito
renovado, buscando extrair desses textos as melhores fundamentações que
permitam um debate justo e ponderado sobre o novo cenário da Previdência
Social no Brasil.
Diego Henrique Schuster
Fábio Luiz dos Passos
Maria Fernanda Wirth
(Organizadores)

8
SUMÁRIO

A FORÇA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS EM TEMPOS PÓS-


-REFORMA DA PREVIDÊNCIA
Alberto Rodrigo Patino Vargas.................................................................. 19
Introdução....................................................................................... 19
A Proteção da segurança jurídica nas decisões judiciais proferidas
pelos tribunais no novo código de processo civil.............................. 21
Natureza jurídica dos precedentes no ordenamento jurídico brasilei-
ro .................................................................................................. 23
Aplicação da razão de decidir dos precedentes em matéria previden-
ciária.............................................................................................. 26
Conclusão....................................................................................... 32
Referências Bibliográficas................................................................ 33

TEMPO FICTÍCIO E AS REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS NO BRASIL


Alexandre S. Triches................................................................................ 35
Introdução....................................................................................... 35
Tempo fictício na Previdência Social................................................ 37
Conclusão....................................................................................... 45
Referências bibliográficas ................................................................ 46

PENSÃO POR MORTE DE MILITARES NO BRASIL: PRIVILÉGIO DE


TRATAMENTO DOS DEMAIS BENEFICIÁRIOS POR QUÊ?
Anderson Avelino de Oliveira Santos.......................................................... 47
I – Introdução .................................................................................. 47
II – Incongruência de um sistema de proteção social dos militares..... 49
9
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

III – Do tratamento diferenciado da pensão por morte dos militares ... 54


IV – Considerações finais ................................................................. 61
V – Referências ................................................................................ 62

SEGURANÇA JURÍDICA, PREVISIBILIDADE E PROTEÇÃO SOCIAL:


UMA ANÁLISE DO ARTIGO 29 DA EC 103/2019
Antonio Bazilio Floriani Neto e Mayara Rolim Pereira................................. 65
1. Introdução.................................................................................. 65
2. Considerações acerca do que o estado pode fazer para o que deve
respeitar..................................................................................... 66
3. Constituição, liberdade e interpretação....................................... 71
4. Segurança jurídica e a aplicação de postulados econômicos........ 75
5. Considerações finais................................................................... 80
6. Referências bibliográficas........................................................... 81

APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO: O INÍCIO,


O FIM E O MEIO
Arthur José Nascimento Barreto e Emerson Costa Lemes.............................. 83
Introdução....................................................................................... 83
1. O início...................................................................................... 86
2. O fim.......................................................................................... 93
3. O meio....................................................................................... 97
4. Conclusão.................................................................................. 101
Referências...................................................................................... 101

A EVOLUÇÃO DAS PRIORIDADES NA PROTEÇÃO SOCIAL BRA-


SILEIRA AOS BENEFÍCIOS POR INCAPACIDADE DIANTE DAS
ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA EC 103/2019
Cristiane Miziara Mussi e Carlos Vinicius Ribeiro Ferreira........................... 103
1. Introdução.................................................................................. 105
10
Sumário

2. Da “invalidez” à “incapacidade laborativa”: um extrato da história


da proteção social ao risco incapacidade no regime previdenciário
brasileiro.................................................................................... 106
3. As diversas formas de incapacidade............................................ 109
3.1 Incapacidade laborativa total......................................................... 109
3.2 Incapacidade laborativa temporária............................................... 110
3.3 Incapacidade social...................................................................... 111
3.4 Redução da capacidade laborativa................................................ 113
4. A aposentadoria por incapacidade laborativa na legislação previ-
denciária.................................................................................... 113
4.1 Legislação aplicável...................................................................... 113
4.2 Requisitos para a obtenção do benefício........................................ 115
4.3 Valor do benefício......................................................................... 116
5. A aposentadoria por incapacidade total laborativa e o auxílio
incapacidade temporária à luz da EC 103/2019........................... 117
5.1 Alterações..................................................................................... 117
5.2 Impacto financeiro na vida do segurado......................................... 118
5.3 Facilitação ou aceleração das conversões via administrativa do
auxílio-doença em aposentadoria por invalidez pós EC 103/2019?. 122
5.4 Possibilidade de opção pelo benefício mais vantajoso?.................. 124
6. Conclusão ................................................................................. 125
7. Referências................................................................................. 126

A IMPORTÂNCIA DOS CONCEITOS JURÍDICOS EM MATÉRIA


PREVIDENCIÁRIA: (DES)CONTINUIDADES PRESENTES NA “NOVA
PREVIDÊNCIA”
Diego Henrique Schuster.......................................................................... 129
1. De onde a ideia.......................................................................... 130
2. O que deve nos acompanhar... ................................................... 132
3. Uma mudança no texto constitucional: “são tantas perguntas”
(Show da Luna)........................................................................... 134
11
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

3.1 A exigência de carência (180 contribuições mensais) na “nova pre-


vidência”...................................................................................... 134
3.2 A tabela do art. 142 da Lei de Benefícios: é possível a idade fixar a
carência exigida para depois da EC 103/2019? .............................. 138
3.3 O tempo de contribuição na EC 103/2019? ................................... 140
3.4 A conversão de tempo de contribuição para fins de aumento da RMI
da aposentadoria por idade (na regra transitória e geral)................. 145
3.5 O direito adquirido....................................................................... 146
3.6 O mínimo divisor.......................................................................... 148
3.7 Exclusão de contribuições: cuidado! ............................................. 150
4. Por fim, mas nem tanto................................................................ 151
Referências...................................................................................... 151

REGRA DE TRANSIÇÃO PARA APOSENTADORIA ESPECIAL


Adrielli Cunha Caixeta e Diego Wellington Leonel....................................... 153
Referências...................................................................................... 164

O AUXÍLIO-DOENÇA E A NOVA PREVIDÊNCIA: A CONTAGEM DE


TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO PELO SEGURADO VS. A CONCEPÇÃO
DE TEMPO FICTO
Fernando Rubin...................................................................................... 167
I. Conceituação geral da matéria.................................................... 168
II. A contagem de tempo de contribuição e o conceito de tempo ficto
estabelecido pela Nova Previdência............................................ 179
III. Síntese conclusiva...................................................................... 183
IV. Referências bibliográficas........................................................... 184

A NOVA APOSENTADORIA ESPECIAL E O RISCO DE ADOECIMEN-


TO PRECOCE DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE DECORRENTE DA
LIMITAÇÃO ETÁRIA CRIADA PELA E.C. 103/2019
Jesus Nagib Beschizza Feres..................................................................... 185
1. Introdução.................................................................................. 186
12
Sumário

2. Aposentadoria especial............................................................... 187


3. Aposentadoria especial dos profissionais da saúde...................... 190
3.1 Conceito de agentes biológicos..................................................... 190
3.2 Conceito de estabelecimento de saúde ......................................... 191
3.3 Modalidades de enquadramento do tempo de labor exposto a agentes
biológicos .................................................................................... 191
3.3.1 Enquadramento por categoria profissional ...................... 192
3.3.2 Enquadramento por exposição a agentes nocivos biológi-
cos................................................................................. 193
4. Ineficácia dos epis ante a exposição a agentes biológicos............ 194
5. Da imposição de idade mínina na aposentadoria especial e o risco
de adoecimento precoce dos profissionais da saúde.................... 195
6. Da proteção constitucional da saúde do trabalhador................... 197
7. Considerações finais................................................................... 201
Referências bibliográficas................................................................. 202

UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA E O EFEITO PELTZMAN:


CUIDADOS NECESSÁRIOS NA APLICAÇÃO DAS REGRAS INSTI-
TUÍDAS PELA LEI N. 13.105/2015
Lara Bonemer Rocha Floriani................................................................... 205
Introdução....................................................................................... 205
1. Algumas linhas sobre a teoria dos precedentes judiciais............... 207
2. Aplicação das regras de uniformização....................................... 212
3. O efeito Peltzman....................................................................... 216
Conclusão....................................................................................... 218
Referências bibliográficas................................................................. 219

ABONO DE PERMANÊNCIA
Majoly Aline dos Anjos Hardy................................................................... 221
Referências bibliográficas................................................................. 232
13
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

REFORMA DA PREVIDÊNCIA: É HORA DE IGUALAR O TRATA-


MENTO DE GÊNERO?
Marcelo Leonardo Tavares........................................................................ 235
1. Introdução.................................................................................. 235
2. A proposta de igualdade de idade mínima para aposentadoria de
homens e mulheres..................................................................... 236
3. Extinção da aposentadoria por tempo de contribuição – não era
sem tempo!................................................................................ 243
4. Conclusão.................................................................................. 246
Referências...................................................................................... 247

O AUXÍLIO-DOENÇA PARENTAL E A LICENÇA PARENTAL: REFLE-


XÕES NECESSÁRIAS EM CENÁRIO DE ENVELHECIMENTO POPU-
LACIONAL
Maria Fernanda Wirth............................................................................ 251
Introdução....................................................................................... 252
1. Benefício de auxílio-doença: proteção social face a incapacidade
clínica do trabalhador................................................................. 253
2. Licença para tratamento de saúde de familiar no RPPS: compreen-
são do sistema de proteção social................................................ 259
3. Auxílio-doença parental no rgps: compreensão do conceito de
incapacidade.............................................................................. 261
4. Auxílio-doença parental: ativismo judicial ou interpretação cons-
titucional?.................................................................................. 269
5. Auxílio-doença parental: envelhecimento populacional e novos
riscos sociais.............................................................................. 276
Considerações finais........................................................................ 279
Referências bibliográficas................................................................. 282

PLANEJAMENTO PREVIDENCIÁRIO COMO FORMA DE PROTE-


ÇÃO SOCIAL
Maura Feliciano de Araújo....................................................................... 285
1. Introdução.................................................................................. 285

14
Sumário

2. A proteção social previdenciária no brasil e o direito adquirido...... 287


3. Patrimônio previdenciário........................................................... 290
3.1 Filiação......................................................................................... 291
3.2 Segurado, qualidade de segurado e período de graça..................... 292
3.3 Carência....................................................................................... 293
3.4 Tempo de contribuição................................................................. 295
3.5 Salário de contribuição e período básico de cálculo....................... 296
4. Das espécies de planejamento previdenciário............................. 297
4.1 Planejamento previdenciário documental..................................... 297
4.2 Planejamento previdenciário ambiental........................................ 298
4.3 Planejamento previdenciário judicial............................................ 299
4.4 Planejamento previdenciário financeiro........................................ 301
Conclusão....................................................................................... 302
Referências bibliográficas................................................................. 303

ANÁLISE DO ART. 24 DA LEI N. 13.846/2019 ACERCA DA NOVA


FORMA DE COMPROVAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL PARA ACESSO
À PENSÃO POR MORTE
Miguel Horvath Júnior e Rômulo Pedrosa Saraiva Filho............................... 305
Introdução....................................................................................... 307
1. Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 871/2019............ 307
2. Crescimento da união estável no Brasil........................................ 309
3. Interdisciplinaridade dos ramos do direito................................... 310
3.1 Meio de prova admissível no direito processual e constitucional .... 310
3.2 União estável no direito de família................................................. 312
4. Durabilidade e tempo mínimo de convivência............................ 313
5. Controle difuso de constitucionalidade ...................................... 319
Conclusão....................................................................................... 320
Referências bibliográficas................................................................. 321

15
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

“EU, DANIEL BLAKE”: O VIÉS DA REABILITAÇÃO PROFISSIONAL


SOB A LUZ DA CRÍTICA DO DIREITO E CINEMA
Miriam Olivia Knopik Ferraz................................................................... 323
1. Introdução.................................................................................. 323
2. Direito e cinema: “eu, Daniel Blake” como paradigma ficcional
para compreensão do direito previdenciário............................... 324
3. O viés da reabilitação profissional sob a luz da crítica do direito e
cinema....................................................................................... 326
4. Conclusão.................................................................................. 332
5. Referências................................................................................. 332

RESPONSABILIDADE CIVIL DO PATROCINADOR POR DANO


PREVIDENCIÁRIO A PARTIR DA TESE FIXADA NO TEMA 955
DO STJ
Noa Piatã Bassfeld Gnata......................................................................... 335
1. Introdução.................................................................................. 335
2. Competência e legitimidade....................................................... 338
3. Interesse processual e prescrição................................................. 342
4. Configuração e extensão do dano............................................... 347
4.1 Configuração do dano................................................................... 348
4.2 Extensão do dano.......................................................................... 352
5. Conclusão.................................................................................. 354
6. Referências bibliográficas........................................................... 355

AÇÕES REGRESSIVAS PREVIDENCIÁRIAS E A VIOLÊNCIA CONTRA


A MULHER
Vicente de Paula Ataide Junior.................................................................. 357
1. Introdução.................................................................................. 357
2. Seguridade social em reforma: a ampliação das ações regressivas
previdenciárias (ações de ressarcimento sui generis).................... 358

16
Sumário

3. Previdência social, violência doméstica e ações regressivas......... 364


4. Considerações finais................................................................... 373
Referências...................................................................................... 373

17
A FORÇA DOS PRECEDENTES
JUDICIAIS EM TEMPOS PÓS-REFORMA
DA PREVIDÊNCIA

Alberto Rodrigo Patino Vargas2

S umário : Introdução − A Proteção da Segurança Jurídica nas


Decisões Judiciais Proferidas pelos Tribunais no Novo Código
de Processo Civil − Natureza Jurídica dos Precedentes no Orde-
namento Jurídico Brasileiro − Aplicação da Razão de Decidir dos
Precedentes em Matéria Previdenciária − Conclusão − Referências
Bibliográficas.

INTRODUÇÃO
Uma sociedade que se repute igualitária deve ter o ideal de justiça como
parâmetro de sua atuação.
Nosso ordenamento jurídico constitucional eleva a isonomia e a justiça
como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.3

2 Mestre em Direito Processual Civil e Cidadania. Professor de Direito e Processo Previdenciá-


rio em diversos Programas de Pós-Graduação de Instituições de Ensino Superior. Professor
de Direito e Processo Previdenciário da Escola Superior de Advocacia na OAB/PR. Procura-
dor Federal.
3 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I − construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II − garantir o desenvolvimento nacional;

19
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

A previdência social, com base no art. 6º da Constituição Federal,4 tem


natureza jurídica de direito fundamental social e, por estar regulada a partir
do art. 193 contido no título VIII que trata da ordem social na Constituição
Federal, tem como objetivo de atuação promover a justiça social.5
Já se verifica, portanto, que isonomia, justiça e sociedade devem cami-
nhar juntos em nosso ordenamento jurídico, especialmente quando envolve
a temática da previdência social. Afinal, a razão de ser do Estado e do Direito
reside justamente em propiciar e regular a vida em sociedade, conferindo
justiça em suas relações.
A vida em sociedade pode ensejar riscos à subsistência e a dignidade
da pessoa humana, e, por essa constatação, a nossa Constituição Federal em
seu art. 201,6 elegeu situações, denominadas de riscos sociais, onde o Estado
atuará concedendo prestações na forma de benefícios ou serviços na forma
da lei infraconstitucional.7
A recente aprovação da chamada “reforma” da previdência desafiará de
todos os protagonistas da relação jurídica previdenciária maiores esforços
interpretativos, máxime em relação a temas da seara previdenciária já exaus-
tivamente debatidos pelo poder judiciário muitos deles representados por
precedentes vinculantes.

III − erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;


IV − promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais-
quer outras formas de discriminação.
4 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância,
a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
5 Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar
e a justiça sociais.
6 Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência
Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem
o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a:
I − cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade
avançada;
II − proteção à maternidade, especialmente à gestante;
III − proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;
IV − salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda;
V − pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e depen-
dentes, observado o disposto no § 2º.
7 Atualmente regulada na Lei 8.213 de 24 de junho de 1991 para o Regime Geral de Previdên-
cia Social.

20
A força dos precedentes judiciais em tempos pós-reforma da previdência

Estariam esses precedentes cancelados, superados ou revogados pela


nova ordem constitucional previdenciária instituída pela reforma da pre-
vidência?
Esse é o objetivo do presente artigo que terá como pano de fundo a
discussão da relação de isonomia, justiça, reforma da previdência e pre-
cedentes.

A PROTEÇÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA NAS DECISÕES


JUDICIAIS PROFERIDAS PELOS TRIBUNAIS NO NOVO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Para que se compreenda o exato papel os precedentes no contexto pro-


cessual atual, é fundamental estudar a questão da segurança jurídica.
A Constituição Federal dispõe do princípio da segurança jurídica em seu
art. 5º, XXXVI,8 e sobre o assunto preleciona José Roberto Sotero de Mello
Porto:

Intrinsicamente ligada à isonomia no aspecto exoprocessual está a segu-


rança jurídica, como resultado mediato apto a permitir a autodeterminação
dos cidadãos. De fato, sabendo, qual é a interpretação definitiva do tribunal
acerca do direito, pode-se garantir tratamento igual a todos, obedecendo a
esse entendimento fixado. Por outro lado, a aplicação coerente da norma
permite que os sujeitos se considerem seguros.9

Para fins do presente trabalho, é primordial estudar a segurança jurídica


não apenas no contexto constitucional, mas especialmente no contexto do
novo código de processo civil.10
Nesse contexto, merece atenção a preocupação do novo código de pro-
cesso civil em conferir segurança jurídica à prestação jurisdicional, como se vê
no art. 10, conhecido como princípio do efetivo contraditório ou da proibição

8 Art. 5, XXXVI − a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
9 Porto, José Roberto Sotero de Mello. Teoria Geral dos casos repetitivos. 1ª ed. Rio de Janei-
ro: LMJ Mundo Jurídico, 2018, p. 27.
10 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I − construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...)

21
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

da decisão surpresa.11 Esse princípio demonstra que a solução judicial deve


ser realizada num ambiente onde as partes possam influir eficazmente para
a solução a ser adotada pelo juiz.
A mesma preocupação de segurança jurídica se verifica também em ma-
téria probatória como se vê no art. 371 do código de processo civil,12 quando
o legislador retirou a expressão “livre”, deixando claro que não há livre con-
vencimento motivado do juiz, mas sim convencimento motivado vinculado
as provas produzidas nos autos.
Contudo, vamos destacar a preocupação da segurança jurídica confe-
rida pelo caput do art. 926 do código de processo civil que dispõe que “os
tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra
e coerente”.13
Ora, não é incomum nos diversos meios jurídicos de comunicação se
ouvir, especialmente dos advogados, que a jurisprudência previdenciária dos
tribunais é instável, sendo a justiça uma verdadeira loteria, na qual a parte
deve ter “sorte” em cair em juízo ou tribunal que seja receptiva a sua tese.
A instabilidade da jurisprudência que diuturnamente altera entendimen-
tos consolidados causa, em última análise, violação frontal ao princípio da
isonomia entre os jurisdicionados previsto no caput do art. 5º, da Constituição
Federal.14 Por consequência, redunda em injustiça!
O tripé isonomia, justiça e sociedade fica totalmente comprometido
quando se aplica o direito de forma diferente para situações semelhantes que
reclamam o mesmo tratamento.

11 Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a
respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se
trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
12 Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a
tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
13 Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e
coerente.
§ 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tri-
bunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos
precedentes que motivaram sua criação.
14 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberda-
de, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

22
A força dos precedentes judiciais em tempos pós-reforma da previdência

O dever de estabilidade não significa definitividade, tanto que o próprio


código de processo civil em várias passagens, em especial nos parágrafos 2º,
3º e 4º do art. 927, prevê meios de alteração de sua jurisprudência.15
Os deveres de integridade e coerência, que possuem afinidade direta
com o princípio da boa-fé,16 exige dos julgadores integrantes de tribunais que
formulem suas decisões baseadas nas mesmas premissas de direito utilizadas
anteriormente em casos similares já julgados.
Estará a justiça lotérica baseada na sorte com os dias contados?
Sem dúvida nenhuma, o fim completo da insegurança jurídica é uma
utopia, tendo em vista a falibilidade do julgamento humano.
Contudo, se respeitadas as premissas legais de estabilidade, integridade
e coerência para a formação e manutenção da jurisprudência, certamente
poderá haver drástica redução de julgamento injustos em casos semelhantes,
tornando a segurança jurídica não apenas norma constitucional programática
ou simples desejo da sociedade, mas sim um resultado plenamente alcançável.

NATUREZA JURÍDICA DOS PRECEDENTES NO


ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Em que ponto os precedentes podem colaborar para o ideal de segurança
jurídica?
Para responder a essa questão, é fundamental estudar não apenas a na-
tureza jurídica dos precedentes, mas também a sua exata noção.
Com efeito, dispõe o art. 5º, II, da Constituição federal que “ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei”, de forma

15 Art. 927. (...) § 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em jul-
gamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação
de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e
dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver
modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada
em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e
específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da
isonomia.
16 Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo
com a boa-fé.

23
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

que fica evidente que nosso ordenamento jurídico se alinha com o sistema
jurídico conhecido como civil law (românico-germânico), onde a lei é a
principal fonte do direito. Advirta-se, falamos a “principal” e não a “única”
fonte do direito.
Sem pretensão de estudar profundamente o tema, temos, ao lado da lei,
a jurisprudência, a doutrina e os costumes como fontes do direito.
A existência de mais de uma fonte do direito é salutar na medida em
que a lei como norma geral, abstrata e impessoal, não consegue acompanhar
as mudanças constantes da sociedade e da economia, muito isso creditado
ao formal e dificultoso processo legislativo de alteração das leis previsto na
lei magna.
Nesse contexto, verifica-se que a fonte do direito que mais consegue
acompanhar as mudanças da sociedade é a jurisprudência, face o princípio
constitucional de acesso à justiça exigir do juiz e dos tribunais a resolução
dos litígios colocados ao seu crivo.
E falando em jurisprudência, existe jurisprudência que pode realmente
obrigar o juiz ou tribunal a seguir o entendimento firmado nessa fonte do direito?
A pergunta é importante considerando o art. 5º, II, da Constituição Fe-
deral que erige apenas a lei como fonte principal do direito.
De acordo com o art. 927 do código de processo civil, a resposta é po-
sitiva.17
Assim sendo, é primordial estudar a diferenciação das expressões juris-
prudência, súmula e precedente dentro do contexto processual civil em vigor,
pois, embora muito próximas, não possuem o mesmo significado e efeito
vinculante de sua razão de decidir.
De forma singela, podemos dizer que jurisprudência consiste no con-
junto reiterado de decisões judiciais no mesmo sentido para casos concretos
semelhantes proferidos por órgãos colegiados.

17 Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:


I − as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II − os enunciados de súmula vinculante;
III − os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas
repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV − os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e
do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V − a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. (...)

24
A força dos precedentes judiciais em tempos pós-reforma da previdência

De outro lado, nos termos do § 1º, do art. 926, a súmula corresponde a


jurisprudência dominante nos tribunais.18
Até aqui podemos dizer que a súmula tem maior relevância por represen-
tar o entendimento da maioria, e não da unânimidade, de um órgão colegiado.
A jurisprudência isoladamente falando pode representar uma minoria dentro
desse órgão colegiado. Dessa constatação, podemos dizer que a súmula vincula
o tribunal em que ela foi editada?
Acerca do assunto, a matéria é regulada pelo art. 927 do código de pro-
cesso civil, na qual transcrevemos pela sua importância:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:


I − as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado
de constitucionalidade;
II − os enunciados de súmula vinculante;
III − os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de reso-
lução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário
e especial repetitivos;
IV − os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em
matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infra-
constitucional;
V − a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem
vinculados. (...)

Analisando o texto legal acima transcrito, verificamos que existem deci-


sões judiciais que vinculam juízes e até mesmo tribunais. De outro lado, essas
decisões qualificadas não abrangem decisões singulares, mas sim decisões de
colegiados, logo acórdãos. Assim, não é qualquer súmula ou acórdão que terá
o condão de vincular o entendimento dos órgãos jurisdicionais.
Diante desse cenário, surge a expressão “precedente” para representar
justamente essas decisões colegiadas paradigmáticas que vincularão o enten-
dimento de juízes e tribunais.
Falamos em paradigmáticas pois elas servirão de base para adoção para
solução em casos semelhantes.

18 Art. 926. (...) § 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento


interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência
dominante.

25
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Essa vinculação aos precedentes permite dizer que o direito brasileiro


adotou sistema do common law? Com certeza a resposta é não, eis que se
mantém hígida a norma constitucional prevista no art. 5º, II.19
O sistema de precedentes trazido pelo novo código de processo ci-
vil se dirige a juízes e tribunais, vale dizer, apenas aos órgãos do poder
judiciário, não havendo conflito desse sistema com o civil law que con-
tinuamos a seguir.
Após essa abordagem conceitual, podemos dizer que nem todo precedente
deriva de jurisprudência e súmula.
Veja, a título de exemplo, que o art. 927 do código de processo civil,
considera o incidente de assunção de competência e a decisão de plenário
como precedente vinculante, sendo certo que tais decisões não derivaram de
um conjunto reiterado de decisões no mesmo sentido.20
Por tudo isso, é possível afirmar que os precedentes, especialmente aque-
les erigidos pelo ordenamento processual civil em vigor como vinculantes,
causarão maior impacto uma vez proferidas suas decisões, especialmente nas
relações previdenciárias que atingem toda a sociedade.

APLICAÇÃO DA RAZÃO DE DECIDIR DOS PRECEDENTES EM


MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA
É lição da milenar hermenêutica românica que Ubi eadem ratio ibi idem
jus (onde houver o mesmo fundamento, haverá o mesmo direito) e Ubi eadem
legis ratio ibi eadem dispositio (onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer
a mesma razão de decidir).
Sabemos que a decisão judicial por envolver um ato de raciocínio hu-
mano sempre terá por premissa uma fundamentação, uma razão de decidir,
uma ratio decidendi.

19 Art. 5º. (...) II − ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei;
20 Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de re-
messa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de
direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos.
Art. 948. Arguida, em controle difuso, a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do
poder público, o relator, após ouvir o Ministério Público e as partes, submeterá a questão à
turma ou à câmara à qual competir o conhecimento do processo.

26
A força dos precedentes judiciais em tempos pós-reforma da previdência

Nesse sentido, interessante citar a lição do professor Fredie Didier Jr.:

Em sentido lato, o precedente é a decisão judicial tomada à luz de um


caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o
julgamento posterior de casos análogos.21

De outro lado, é natural do processo racional decisório a necessidade


de se utilizar fundamentos ou comentários de passagem que, isolada-
mente considerados, não serviriam para justificar o sentido adotado pela
decisão. Essa fundamentação periférica não determinante é chamada de
obiter dictum.
Nesse sentido, oportuna trazer à colação a lição de Ravi Peixoto:

A ratio decidendi não pode ser confundida nem com o texto do


precedente e nem com a fundamentação. Trata-se de um terceiro elemento
que será extraído da decisão, não devendo a ela ser reduzido.22

Portanto, a grande contribuição do precedente será revelada mediante


a investigação pelo intérprete do direito em descobrir qual teria sido a razão
de decidir que levou o tribunal a seguir uma determinada solução jurídica.
E é justamente essa razão de decidir, e não o dispositivo em si da decisão, é
que vinculará doravante juízes e tribunais para a análise de casos semelhantes.
Exemplificando no processo judicial previdenciário, trazemos à baila
o tema 534 firmado em recurso repetitivo pelo Superior Tribunal de Justiça
cuja tese fixada dispõe:

As normas regulamentadoras que estabelecem os casos de agentes e


atividades nocivos à saúde do trabalhador são exemplificativas, podendo
ser tido como distinto o labor que a técnica médica e a legislação correla-
ta considerarem como prejudiciais ao obreiro, desde que o trabalho seja
permanente, não ocasional, nem intermitente, em condições especiais (art.
57, § 3º, da Lei 8.213/1991).

21 Didier Jr., Fredie; Braga, Paula Sarno; Oliveira, Rafael Alexandria de. Curso de direito pro-
cessual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tu-
tela provisória. 13ª ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2018, pág. 513.
22 Peixoto, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 4ª ed. Salvador: Editora Jus
Podivm, 2019, pág. 195.

27
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Num primeiro esforço de interpretação, poderíamos dizer que a razão


de decidir desse tema está no fato de que o rol de agentes e atividades no-
civas à saúde é meramente exemplificativo, de forma que outros agentes ou
atividades poderiam ser também consideradas como passíveis de atividade
especial.
É claro que a fixação de uma tese jurídica não surge de situações mera-
mente empíricas, mas sim através do debate de fatos concretamente ocorri-
dos no mundo real que aliada a uma fundamentação determinante (razão de
decidir) leva a fixação de um direcionamento jurídico.
Não é demais lembrar que a função do Superior Tribunal de Justiça como
guardião da legislação infraconstitucional é conferir a correta interpretação
do direito federal sem adentrar na investigação de questões fáticas.
No caso em questão, a premissa fática, ser ou não ser nocivo o agente
nocivo eletricidade, não é o objeto do recurso especial que gerou o precedente,
tendo em vista a famigerada súmula 7 desse tribunal superior.23
A importância dos fatos que deram origem aos precedentes ganha
destaque no art. 926, § 2º, do código de processo civil que enuncia que “as
circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação” deve ser-
vir de limites para a aplicação de suas súmulas.24 Cumpre registrar que essa
vinculação aos fatos que deram origem ao direcionamento jurídico firmado,
em pese o regramento processual falar apenas no caso de “súmulas”, aplica-se,
igualmente, por questão de lógica e coerência, aos precedentes.
Assim, voltando ao tema 534 do recurso repetitivo do STJ, constata-se
que o acórdão selecionado como paradigma para o julgamento da tese tinha
como circunstância fática a configuração do trabalho exposto ao agente pe-
rigoso eletricidade, exercido após a vigência do Decreto 2.172/1997, como
atividade especial, para fins do artigo 57 da Lei 8.213/1991.
Logo, diante de uma interpretação literal do art. 926, § 2º, poderia se
dizer que o precedente firmado no tema 534 do Superior Tribunal de Justiça
só teria cabimento para situações fáticas que envolvam o agente nocivo “ele-
tricidade”? A resposta seria positiva se desprezássemos a interpretação siste-
mática e teleológica necessária para encontrar a solução jurídica mais justa.

23 Súmula 7 − A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.


24 Art. 926. (...) § 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstân-
cias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

28
A força dos precedentes judiciais em tempos pós-reforma da previdência

O Direito não é uma ciência exata. É ciência humana que demanda de


seu intérprete investigar o real sentido adotado numa decisão proferida por
homens nos órgãos colegiados do poder judiciário.
E, por isso, poderia esse mesmo tema 534 ser aplicado para o caso que
envolva o trabalho de vigilante ou qualquer outra situação que envolvesse
atividade perigosa?
Cumpre aduzir que o tema 534 do recurso repetitivo do superior tribunal
de justiça foi debatido e julgado na época em que o fundamento constitucional
da aposentadoria especial tinha redação diversa daquela trazida pela recente
reforma da previdência consubstanciada pela Emenda Constitucional 103
publicada no dia 13 de novembro de 2019.
Colacionamos o texto antigo e novo que dão fundamento para a existência
da aposentadoria especial:

REDAÇÃO ANTIGA: Art. 201. (...) § 1º É vedada a adoção de requisitos


e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários
do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades
exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integri-
dade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos
termos definidos em lei complementar.
REDAÇÃO NOVA: Art. 201. (...) § 1º É vedada a adoção de requisitos
ou critérios diferenciados para concessão de benefícios, ressalvada, nos
termos de lei complementar, a possibilidade de previsão de idade e tempo
de contribuição distintos da regra geral para concessão de aposentadoria
exclusivamente em favor dos segurados: (...)
II − cujas atividades sejam exercidas com efetiva exposição a agentes
químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação desses
agentes, vedada a caracterização por categoria profissional ou ocupação.

No precedente em discussão, o superior tribunal de justiça levou em


conta o fato da lei magna dar supedâneo jurídico para que seja reputado como
agente nocivo não apenas agente insalubres que prejudicassem a saúde, mas
também agentes perigosos que prejudicassem a integridade física como ocorre
para quem leva choque de 10.000 volts ou um tiro no coração em assalto no
exercício do trabalho de vigilante.
Assim, a razão de decidir que se extrai desse precedente é de que a
Constituição Federal não restringiu os agentes nocivos apenas para o caso de
insalubridade, mas também poderia envolver casos de periculosidade.
29
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Igualmente, não é lícito aos regulamentos administrativos irem além do


que dispõe a lei, máxime quando essa lei deriva do próprio texto constitu-
cional, caso contrário estar-se-ia admitindo a modalidade conhecida como
regulamentos autônomos que não possuem autorização constitucional no
art. 84, IV, para sua criação.25
A interpretação sistemática exige que o intérprete do direito estude a
questão jurídica não apenas de forma isolada, mas sim dentro de um contexto
de normas ao seu redor.
Destarte, estudar a matéria de agentes nocivos para fins de concessão
da aposentadoria especial prevista expressamente no texto constitucional
apenas com base nos regulamentos administrativos é reduzir a interpretação
a um papel insignificante dentro de um contexto complexo de normas a que
estamos submetidos.
De outra banda, importante trazer à colação o teor do enunciado 59 da
I Jornada de Direito Processual Civil promovido pelo Conselho da Justiça
Federal:

Enunciado 59 − Não é exigível identidade absoluta entre casos para


a aplicação de um precedente, seja ele vinculante ou não, bastando que
ambos possam compartilhar os mesmos fundamentos determinantes.
(grifo nosso)

Esse enunciado que traduz investigação hermenêutica da vinculação fática


que deram origem ao precedente é de suma importância prática, na medida
em que poderia se extrair a razão de decidir de um tema para ser aplicado a
outro tema que envolvesse semelhante fundamentação determinante.
Traduzindo em miúdos, o que existe de semelhança fática e jurídica entre
a atividade do eletricitário e a do vigilante? Ora, em ambas as atividades, há
a prática de uma atividade considerada perigosa pela legislação.
Assim, seria possível aplicar ao vigilante a mesma razão de decidir utili-
zada para o caso de agente perigoso eletricidade através do compartilhamento
da fundamentação determinante utilizada no recurso repetitivo do superior
tribunal de justiça – tema 534, qual seja, de que o rol de agentes e atividades
nocivas não se restringem tão somente àqueles contidos nos regulamentos

25 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) IV − sancionar, promulgar


e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;

30
A força dos precedentes judiciais em tempos pós-reforma da previdência

administrativos da autarquia previdenciária, abrangendo, portanto, para os


agentes e atividades consideradas perigosas, onde se inclui a atividade de
vigilante.
Resumindo: não basta ao advogado ou juiz conhecer a “tese” fixada no
precedente, deve sim o intérprete do precedente descobrir as circunstâncias
fáticas que deram origem ao precedente, de forma que possa extrair a razão
de decidir desse julgado para outros casos semelhantes, ainda que não abso-
lutamente idênticos.
Por fim, resta uma última pergunta, como fica a possibilidade de concessão
de aposentadoria especial para os casos que envolvam atividades consideradas
perigosas se a emenda constitucional 103-2019 trazendo nova redação para
o § 1º do art. 201 da Constituição Federal retirou a expressão “integridade
física”? Como ficará o precedente estudado neste artigo após o advento da
reforma da previdência?
Até o dia 13 de novembro de 2019, com certeza, a resposta é que perma-
nece hígida a aplicação do precedente, tendo em vista o princípio do direito
adquirido e do tempus regit actum.
O precedente em análise foi firmado na época em que havia a previsão
expressa na Constituição Federal de proteção à integridade física como gera-
dora da aposentadoria especial.
Como ficou colocado em tópico anterior, o código de processo civil em
seu art. 926, caput, prega a estabilidade e não a imutabilidade dos precedentes,
o que pode tranquilamente ensejar revisão, cancelamento ou, até mesmo, a
manutenção do seu enunciado atual.
Para tanto, será necessária investigar qual foi a finalidade da mudança
no texto constitucional e, se de fato, o intuito foi acabar com o direito fun-
damental ao benefício de aposentadoria para atividades perigosas.
A atividade deixa de ser perigosa pelo advento do novo regramento cons-
titucional? Há relevância jurídica na modificação da redação final da emenda
constitucional da reforma da previdência que retirou a proibição expressa de
enquadramento por periculosidade? O prejuízo a integridade física pode ser
abrangido pela expressão prejuízo à saúde?
Por tudo isso, entendemos que, por questão de segurança jurídica, até
que seja realizada a revisão do precedente em discussão que responda a essas
questões e muitas outras que podem ser levantadas, estará plenamente em
vigor a razão de decidir desse julgado, nos termos do que preceitua o § 3º
31
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

do art. 927 do código de processo civil26 e o art. 23 da lei de introdução às


normas do direito brasileiro.27

CONCLUSÃO
É inegável que a técnica de utilização dos precedentes judiciais pode pro-
piciar maior segurança jurídica, na medida em que o jurisdicionado ao litigar
em juízo, já poderia fazer um juízo de probabilidade do resultado do seu pleito,
considerando o entendimento jurídico firmado em decisões paradigmáticas dos
tribunais que o código de processo civil considera como vinculante.
Como a legislação processual civil em vigor admite a participação do
amigo da corte28 na formação de seus precedentes, em princípio, podemos
dizer que o tribunal emitirá a decisão mais democrática e justa, tendo em vista
que adotará uma razão de decidir após debate de pontos de vista antagônicos
de vários setores da sociedade. Tanto é assim, que esses precedentes estão
sujeitos a revisão sempre que houver alteração substancial de caráter jurídico,
social, econômico ou político, como ocorre toda vez que houve uma reforma
tão profunda na previdência social.
O que se espera de tudo isso é que na formulação da razão de decidir dos
precedentes, seja na forma inédita ou através de sua revisão, é que não se deixe
de levar em conta todas as consequências de ordem não apenas econômica,
mas também de proteção social, que advém dessas decisões, sobretudo em
matéria de direito fundamental social como é a previdência social.29

26 Art. 927. (...) § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tri-


bunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repeti-
tivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança
jurídica.
27 Decreto-Lei 4.657 de 4 de setembro de 1942: Lei Art. 23. A decisão administrativa, controla-
dora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo
indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever
regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de
direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos inte-
resses gerais. (...)
28 Art. 927. (...) § 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em jul-
gamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação
de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
29 Acerca da importância das consequências da decisão, importante explorar sempre o contido
no art. 20 da LINDB que dispõe que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não

32
A força dos precedentes judiciais em tempos pós-reforma da previdência

O alcance da proteção previdenciária não exige do seu profissional ape-


nas conhecer as regras do direito material previdenciário que, por si só, não
redundarão no gozo desse direito fundamental social. Exige conhecimento
profundo da temática processual, como ocorre com a técnica de utilização dos
precedentes, através do domínio dos entendimentos firmados pelos tribunais,
especialmente daqueles ditos como vinculantes.
O domínio da utilização da técnica dos precedentes, especialmente
quando ensejar a ampliação de sua utilização para situações sem identidade
absoluta, pode contribuir certamente para a busca do objetivo final do pro-
cesso, qual seja, a obtenção de uma decisão de mérito justa e efetiva como
previsto no art. 6º do código de processo civil.30

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIDIER JR., Fredie; Braga, Paula Sarno; Oliveira, Rafael Alexandria de. Curso de direito
processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa
julgada e tutela provisória. 13ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2018.
PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 4ª ed. Salvador: Editora
JusPodivm, 2019.
PORTO, José Roberto Sotero de Mello. Teoria Geral dos casos repetitivos. 1ª ed. Rio de
Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2018.

se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as conse-
quências práticas da decisão”.
30 Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo
razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

33
TEMPO FICTÍCIO E AS REFORMAS
PREVIDENCIÁRIAS NO BRASIL

Alexandre S. Triches1

Sumário: Introdução – Tempo fictício na Previdência Social –


Conclusão – Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO
Uma das alterações mais impactantes na reforma da Previdência Social,
inaugurada com a promulgação da Emenda Constitucional nº 103, de 13 de
novembro de 2020 diz respeito ao que se denomina de princípio da contra-
partida.
Segundo este princípio não pode haver benefício sem a contrapartida de
uma contribuição, e o inverso também é válido: não deve haver contribuição
sem o direito ao benefício.
A leitura da emenda constitucional nº 103/19 faz ver que uma das mais
relevantes preocupações do legislador reformista foi implementar de forma
bastante expressiva este ideal contributivo. Inúmeras são as situações do novo
texto que condicionam, sem exceção, que a prestação do benefício dependerá
da prévia contribuição. É o caso do artigo do artigo 1º da EC nº 103/20, que
inseriu o parágrafo 14 no artigo 201 do texto constitucional.

1 Advogado e Professor. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário –


IBDP. Coordenador e professor dos cursos do G4 Atualização Previdenciária. Membro in-
tegrante do Conselho Deliberativo da OABPREV-RS. Autor de obras na área da Previdência
Social.

35
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Para a compreensão do tema deve-se voltar no tempo até 16 de dezem-


bro de 1998 quando a Emenda Constitucional n. 20/1998 extinguiu a apo-
sentadoria por tempo de serviço nos regimes próprios e a transformou em
aposentadoria por tempo de contribuição, convertendo, de forma instantânea,
por norma transitória, todo o tempo de serviço considerado na legislação
precedente como tempo de contribuição para o novo regime.
No regime geral de Previdência Social a regra do Art. 4º da mesma emenda
dispôs que o tempo de serviço considerado pela legislação vigente para efeito
de aposentadoria, cumprido até que a lei discipline a matéria, será contado
como tempo de contribuição.
Havia uma norma transitória que se transformou, pelo tempo transcor-
rido desde sua edição até os dias de hoje, numa norma permanente. Mais do
que uma nova regra permanente, no âmbito do Regime Geral de Previdência
criou-se uma verdadeira cultura com relação ao reconhecimento de tempos
fictícios como tempo de contribuição, tudo por força da inoperância do le-
gislador que não regulamentou o artigo 4º da EC nº 20/98.
Boa parte da jurisprudência dos tribunais regionais federais, bem como do
Superior Tribunal de Justiça discute, até os dias de hoje, questões envolvendo o
reconhecimento de tempos fictícios. Exemplo são as conversões de tempo especial
em comum, serviço militar obrigatório, dentre outras hipóteses. Claro que em
razão do direito adquirido, os debates, mesmo diante da nova regra de vedação
dos tempos fictícios continuará ocorrendo nos tribunais por um longo tempo.
Assim, nestes anos todos, diversas pessoas implementaram os requisitos
à aposentadoria considerando a conversão do tempo de serviço anterior em
tempo de contribuição, nos termos autorizados pela EC 20/1998, independen-
temente de terem oportunamente contribuído e de terem exercido o direito de
aposentar. É justamente neste terreno que ganha importância a compreensão
do tempo fictício.
O tempo fictício, no que tange ao regime geral de Previdência Social, já
faz parte do texto constitucional. Está previsto expressamente no parágrafo
14, do artigo 201: é vedada a contagem de tempo de contribuição fictício para
efeito de concessão dos benefícios previdenciários e de contagem recíproca.
Aqui é importante diferenciar o tempo fictício, tal qual trazido no texto
constitucional, com a situação pela qual uma determinada pessoa faz a inserção
de tempo nos sistemas da Previdência, através da prática de um crime, para
criar condições para o deferimento do benefício.
36
Tempo fictício e as reformas previdenciárias no Brasil

Claro que em ambos os casos haverá uma ficção. Todavia, a condição


primeiramente referida é que será tratada no presente artigo. Qual seja, o
tempo fictício decorrente da não observância do princípio da contrapartida.
A denominada regra da contrapartida encontra seu fundamento legal no
artigo 195, parágrafo 5.º da Carta Constitucional de 1988, que estabelece que
nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado
ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.
Mesmo diante destas novas normas existem muitas dúvidas com relação
ao conceito do que seja tempo fictício. E muito desta dificuldade vem de
uma cultura arraigada no regime geral de Previdência Social de consideração
como tempo de contribuição de hipóteses em que não ocorreu o trabalho e
tampouco a contribuição previdenciária.
O objetivo do presente artigo é analisar o tempo fictício na Previdência
Social, neste início de previsão legal e regulamentação sobre a matéria, atra-
vés da Emenda Constitucional nº 103/20, bem como o Decreto 10.410/20 e
dos atos administrativos do INSS, como a Portaria INSS 450/20. Pretende-se
investigar o regime jurídico do tempo fictício, na sua relação com o regime
geral de previdência social para, após apresentar algumas questões relevantes
com relação a sua aplicabilidade.

TEMPO FICTÍCIO NA PREVIDÊNCIA SOCIAL


Segundo o dicionário online de português ficção é o ato ou efeito de fingir,
de simular uma intenção ou sentimento. É falsidade, criação da imaginação,
invenção fabulosa, opõe-se ao que é real, uma fantasia.2
A palavra é bastante conhecida em face do gênero literário e das artes
como um todo. Segundo Juan José Saer possui um duplo caráter que mescla,
de um modo inevitável, o empírico e o imaginário3.
Na previdência social esse imaginário diz respeito com o computo do
tempo de contribuição em dobro, com conversões de tempo especial em co-
mum, com o acréscimo de adicionais, licenças não trabalhadas e incremento

2 Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/ficcao/. Acesso


em: 07.07.2020.
3 SAER, Juan José. O conceito de ficção. Revista Sopro. Agosto de 2019. Disponível em: http://
www.culturaebarbarie.org/sopro/n15.pdf. Acesso em 07.07.2020.

37
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

de tempo de contribuição com base na idade ou no pedido de aposentadoria.


São muitas as situações que transformam o tempo de contribuição, seja no
regime privado ou no público, em uma ficção, levando em considerando o
tempo efetivamente laborado.
A história da aposentadoria no Brasil remete ao século XIX, quando
surgiram os primeiros benefícios para incentivar funcionários de setores
importantes ao império, como funcionários dos correios, da alfandega das
estradas de ferro. Posteriormente, em 1923 surge o início da previdência no
Brasil, com a Lei Eloy Chaves.
No que se refere a Constituição Brasileira de 1988, prevê o novíssimo
artigo 201:

Artigo 201.
§ 14. É vedada a contagem de tempo de contribuição fictício para efeito
de concessão dos benefícios previdenciários e de contagem recíproca.

Por sua vez prevê o Decreto nº 10.410/20:

Art. 51. A aposentadoria programada, uma vez cumprido o período de


carência exigido, será devida ao segurado que cumprir, cumulativamente,
os seguintes requisitos:
(...)
§ 1º Para fins de apuração do tempo de contribuição a que se refere o
inciso II do caput, é vedada a inclusão de tempo fictício.

Quanto ao conceito de tempo fictício prevê a Instrução Normativa INSS


PRES nº 77/2015, no seu artigo 447 como sendo todo tempo considerado em
lei anterior como tempo de serviço, público ou privado, computado para fins de
concessão de aposentadoria sem que haja, por parte do servidor ou segurado,
cumulativamente, a prestação de serviço e a correspondente contribuição social.
Uma análise histórica dos tipos de contagem de tempos fictícios permite
uma singela reflexão. Tempo de licença prêmio não gozada contada em dobro,
tempo em que o candidato, inclusive servidor público, esteve participando
de curso de formação relativo à segunda etapa de concurso público, sem que
tenha havido contribuição para qualquer regime de previdência, conversão
de tempo especial em comum, licenças não gozadas e convertidas em tempo
de contribuição, dentre outras situações.
38
Tempo fictício e as reformas previdenciárias no Brasil

Com a vedação do tempo fictício, agora revigorada e efetivada pela EC


103/19 o Brasil se nivela com a normativa internacional. Nesse sentido im-
portante trazer a baile disposição do Código Ibero Americano de Segurança
Social, aprovado na V Cimeira Ibero-americana de chefes de estado e de
governos, ocorrido em Madrid, em setembro de 1995:
Artigo 29º Em conformidade com as orientações contidas no artigo 13º
do presente Código, no financiamento das diversas prestações procurar-se-á:
a) Que o mesmo se mantenha enquadrado nas políticas económicas
correspondentes, tendo em conta a sua incidência na geração do emprego;
b) Que as contribuições sociais se destinem essencialmente ao financia-
mento das prestações contributivas, e que as prestações não contributivas
sejam financiadas através de impostos;
c) Que se estabeleça o equilíbrio necessário entre a contribuição e prestação.

Verifica-se que o instrumento internacional acima mencionado uma


preocupação dos países ibero americanos em uniformizar a previdência no
sentido de que haja um equilíbrio entre a contribuição e a prestação, e que as
contribuições sociais se destinem essencialmente às prestações contributivas.
O Projeto de Código Ibero-Americano de Segurança Social constitui o
resultado de um amplo e participado processo de trabalho, iniciado e pros-
seguido em conformidade com o estabelecido nas sucessivas Cimeiras Ibero-
-Americanas de Chefes de Estado e de Governo, cujos comunicados finais se
caracterizaram, sempre, por um alto conteúdo social.
Esta preocupação não tem sido pouca nas reformas previdenciárias dos
últimos anos e ela tem como objetivo evitar o descontrole fiscal. A própria
formação do equilíbrio financeiro e também atuarial demanda haja a contra-
partida entre as contribuições e os benefícios.
A vedação ao computo do tempo fictício altera uma cultura histórica no sis-
tema Brasileira e passa a vincular a prestação ao recolhimento previdenciário e ao
exercício da atividade laboral. A Constituição de 1988 utilizou o termo tempo de
serviço ao invés de tempo de contribuição quanto a aposentadoria dos servidores.
A utilização deste termo fazia com que a aposentadoria tivesse um caráter premial
e não contributivo, pois não estava vinculada ao pagamento de contribuições.4

4 RANGEL, L, et al. Conquistas, Desafios e Perspectivas da Previdência Social no Brasil vinte


anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Políticas Sociais: acompanha-
mento e análise − Vinte Anos da Constituição Federal, volume 1, 2009.

39
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Ressalta-se que até 1993, não havia caráter contributivo no regime dos
servidores. Rangel5 refere que a aposentadoria no setor público surge como
uma garantia, e até mesmo um prêmio, atribuído em razão da natureza de
sua vinculação com a atividade estatal.
É importante destacar que no texto original do artigo 201 e mesmo após
as emendas constitucionais, a Constituição de 1988 diz que nenhum benefí-
cio que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do
segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo. Esta é uma questão
fiscal importante e central no debate da reforma.6
Além disto, segundo Rangel7 em 1993, com a Emenda Constitucional nº 3
o plano previdenciário dos servidores públicos passa a ter caráter contributivo.
Foi em 1993 também que segundo Rangel8 no Relatório Antônio Britto
foi feito o seguinte diagnóstico: a Previdência Social vivia a soma de três crises,
que envolviam questões que abrangiam horizontes de curto, médio e longo
prazos: circunstancial associada aos efeitos da recessão econômica, gerencial
e estrutural, caracterizada, especialmente, pela inexistência de conceitos e
limites claros das diferenças entre Previdência Social e Seguridade Social.
Nota-se ainda que foram feitas sugestões − algumas presentes no debate
sobre a reforma da previdência até hoje − tais como: a vinculação das fontes
de financiamento, com as receitas sobre folha de salários custeando somente
a Previdência Social; a Assistência Social e a saúde ficando por conta de ou-
tras fontes, com a possibilidade de criação da contribuição sobre transações
financeiras; e possíveis alterações no plano de benefícios dos vários sistemas.9

5 RANGEL, L, et al. Conquistas, Desafios e Perspectivas da Previdência Social no Brasil vinte


anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Políticas Sociais: acompanha-
mento e análise − Vinte Anos da Constituição Federal, volume 1, 2009.
6 CAMPOS, Daniel Guido Torreão. Considerações e reflexões sobre a previdência Social no
Brasil. Monografia. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/4684/3/DGT-
Campos.pdf
7 RANGEL, L, et al. Conquistas, Desafios e Perspectivas da Previdência Social no Brasil vinte
anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Políticas Sociais: acompanha-
mento e análise − Vinte Anos da Constituição Federal, volume 1, 2009.
8 RANGEL, L, et al. Conquistas, Desafios e Perspectivas da Previdência Social no Brasil vinte
anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Políticas Sociais: acompanha-
mento e análise − Vinte Anos da Constituição Federal, volume 1, 2009.
9 CAMPOS, Daniel Guido Torreão. Considerações e reflexões sobre a previdência Social no
Brasil. Monografia. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/4684/3/DGT-
Campos.pdf

40
Tempo fictício e as reformas previdenciárias no Brasil

Por isso aqui, o que está em jogo não é o volume de gastos, mas sim o
caráter contributivo da Previdência Social.
Algumas questões pontuais envolvendo tempo fictício na Previdência Social.
Estabelecidas algumas premissas fundamentais com relação ao tempo
fictício na Previdência Social, assim como da regra da contrapartida e das
questões históricas e de direito adquirido envolvidas cabe avançar no tema
analisando algumas questões que podem gerar dúvidas relacionadas ao tempo
fictício nos casos concretos.
Uma importante análise que precisa ser realizada no contexto atual é
com relação ao tempo em que o segurado do regime geral de Previdência
Social permanece afastado do trabalho em razão da percepção do benefício
por incapacidade. É o caso do auxílio-doença e da aposentadoria por inva-
lidez que, com as alterações da Emenda Constitucional nº 103/20 passam a
ser denominados, respectivamente, de auxilio por incapacidade temporária
e por incapacidade permanente
A concessão dos benefícios por incapacidade irá depender do preen-
chimento dos requisitos das prestações. É necessário comprovar o período
de carência exigido, assim como a qualidade de segurado e a incapacitação.
Prevê o novíssimo artigo 201 da Constituição Federal de 1988:

Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime


Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigató-
ria, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e
atenderá, na forma da lei, a:
I - cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente
para o trabalho e idade avançada;

Por sua vez prevê o Decreto nº 10.410/2020:

Art. 19-C. Considera-se tempo de contribuição o tempo correspondente


aos períodos para os quais tenha havido contribuição obrigatória ou facul-
tativa ao RGPS, dentre outros, o período:
(...)
§ 1º Será computado o tempo intercalado de recebimento de benefício
por incapacidade, na forma do disposto no inciso II do caput do art. 55
da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, exceto para efeito de carência.
(...)

41
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

A norma contida no artigo 19-C, em especial em seu parágrafo primeiro


diz ser possível o reconhecimento do tempo de contribuição do período de
percepção de benefício por incapacidade, na forma do disposto no inciso
II do caput do art. 55 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, exceto para
efeito de carência.
Trata-se daquelas situações em que o segurado percebe benefício por
incapacidade, seja permanente ou temporário, e vem a ter o pagamento
cessado. Desde que intercalo com contribuições seguirá sendo possível o
reconhecimento deste período como tempo de contribuição.
Trata-se da manutenção de uma regra existente anteriormente a reforma
da EC nº 103/20, bem como do novo regulamento da Previdência Social. To-
davia, trata-se de uma situação em que não há recolhimento previdenciário
e tampouco exercício de atividade laboral. Todavia, por outro lado, não há a
possibilidade do exercício do trabalho.
O mesmo acontece com o salário maternidade:

Art. 19-C. Considera-se tempo de contribuição o tempo correspondente


aos períodos para os quais tenha havido contribuição obrigatória ou facul-
tativa ao RGPS, dentre outros, o período:
(...)
II − em que a segurada tenha recebido salário-maternidade;
(...)

O parágrafo segundo do artigo em comento traz importante novidade


com relação as competências em que o salário de contribuição mensal tenha
sido inferior ao limite mínimo, que no caso é o salário mínimo nacional.
Somente serão computadas como tempo de contribuição se o pagamento for
no mínimo ou superior a ele. Somente nestas hipóteses será computado inte-
gralmente como tempo de contribuição, independentemente da quantidade
de dias trabalhados.
Ainda é possível referir que a contribuição efetuada por segurado que
tenha deixado de exercer atividade remunerada que o enquadrasse como
segurado obrigatório da previdência social, na condição de facultativo ou
em algum regime próprio será computado como tempo de contribuição.
Assim como na situação em que o segurado tenha sido colocado em dis-
ponibilidade remunerada pela empresa, desde que tenha havido desconto
de contribuições.
42
Tempo fictício e as reformas previdenciárias no Brasil

Com relação ao exercício de mandato eletivo federal, estadual, distrital


ou municipal, desde que tenha havido contribuição na época apropriada e
este não tenha sido contado para fins de aposentadoria por outro regime de
previdência social. O mesmo acontece com o período de licença, afastamento
ou inatividade sem remuneração do segurado empregado, inclusive o domés-
tico e o intermitente, desde que tenha havido contribuição.
Também será computado o período em que o segurado contribuinte
individual e o segurado facultativo tenham contribuído na forma prevista
no regulamento. E na hipótese de o débito ser objeto de parcelamento, o
período correspondente ao parcelamento somente será computado para fins
de concessão de benefício no regime geral de Previdência Social e de emissão
de certidão de tempo de contribuição para fins de contagem recíproca após
a comprovação da quitação dos valores devidos.
Uma das disposições mais expressivas com relação ao tempo fictício é
aquela que prevê que será nula a aposentadoria que tenha sido concedida
ou que venha a ser concedida por regime próprio de previdência social com
contagem recíproca do regime geral de Previdência Social mediante o cômputo
de tempo de serviço sem o recolhimento da respectiva contribuição ou da
correspondente indenização pelo segurado obrigatório responsável, à época
do exercício da atividade, pelo recolhimento de suas próprias contribuições
previdenciárias.
Trata-se de uma decorrência natural do que prevê o artigo 25:

Art. 25. Será assegurada a contagem de tempo de contribuição fictício


no Regime Geral de Previdência Social decorrente de hipóteses descritas
na legislação vigente até a data de entrada em vigor desta Emenda Consti-
tucional para fins de concessão de aposentadoria, observando-se, a partir
da sua entrada em vigor, o disposto no § 14 do art. 201 da Constituição
Federal.

O mesmo artigo 1º da EC nº 103/20 prevê que será reconhecida a con-


versão de tempo especial em comum, na forma prevista na Lei nº 8.213, de
24 de julho de 1991, ao segurado do Regime Geral de Previdência Social que
comprovar tempo de efetivo exercício de atividade sujeita a condições espe-
ciais que efetivamente prejudiquem a saúde, cumprido até a data de entrada
em vigor desta Emenda Constitucional, vedada a conversão para o tempo
cumprido após esta data.
43
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

A portaria INSS 450/2020 veda o reconhecimento da competência cuja


contribuição tenha se dado sobre fato gerador inferior ao salário mínimo. O
ato administrativo veda também o reconhecimento do recolhimento menor
que o salário mínimo como carência e manutenção da qualidade de segurado.
Portanto, nem mesmo para manutenção da qualidade de segurado e
carência será possível contar com o tempo lastreado em contribuição abaixo
do mínimo legal, no caso o salário mínimo. Prevê a Portaria INSS nº 450/20:

Art. 2º Para fins do disposto no art. 1º, será considerada remuneração


abaixo do mínimo aquela em que, consolidados os salários de contribuição
apurados por categoria, não alcance o limite mínimo do salário de contri-
buição estabelecido para a competência.

Tal fato ganha bastante relevância dentro do novo contexto histórico


vivido pela Previdência Brasileira. Aliás, uma análise do novo regulamento da
Previdência Socia, o Decreto nº 3.048/99 demonstra que a antiga aposentadoria
por tempo de contribuição e por idade passa a ser denominada, a partir de
agora, como aposentadoria programada, o que demonstra a relevância dada
com o novo texto constitucional e sua regulamentação a questão contributiva.
Por fim, no que se refere ao serviço militar prevê o artigo 32 da Portaria
INSS nº 450/2020:

Art. 32. Será computado como tempo de contribuição o tempo de serviço


militar obrigatório, voluntário e o alternativo exercido até 13 de novembro de
2019, salvo se já contado para inatividade remunerada nas Forças Armadas
ou auxiliares, ou para aposentadoria no serviço público federal, estadual,
do Distrito Federal ou municipal, ainda que anterior à filiação ao RGPS.
Parágrafo único. Ficam mantidas as formas de comprovação dos períodos
exercidos em serviço militar até 13 de novembro de 2019.
Art. 33. Para fins de comprovação do tempo de serviço militar, poste-
rior a 14 de novembro de 2019, será exigida, exclusivamente, Certidão de
Tempo de Contribuição, e será submetido aos procedimentos incidentes
sobre a contagem recíproca.

Da leitura do artigo constata-se que ficam mantidas as formas de com-


provação dos períodos exercidos em serviço militar até 13 de novembro de
2019, mediante a comprovação do exercício de atividade com documento
próprio fornecida pelas Forças armadas.

44
Tempo fictício e as reformas previdenciárias no Brasil

Atenção especial com a comprovação do serviço militar obrigatório


após o advento da EC 103/19, pois a certidão deverá ser a de tempo de
contribuição, nos termos de ato administrativo específico do INSS, com a
compensação entre os regimes. Para tanto deverá o Poder Público alterar
a legislação para regulamentar o recolhimento previdenciário atinente a
atividade militar obrigatória.

CONCLUSÃO
A primeira redação da Constituição Federal de 1988 estabelecia, dentre
as aposentadorias devidas aos trabalhadores brasileiros a aposentadoria por
tempo de serviço.
Da lá para cá o contexto histórico mudou completamente, em especial
em face da crise fiscal dos países no mundo todo, os riscos globais e o indivi-
dualismo que passou a predominar nas políticas em matéria de previdência
em todo o mundo.
Em face disso as reformas previdenciárias das últimas décadas têm pre-
conizado o respeito ao equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência Social,
conforme restou demonstrado no presente artigo. Para isso foi dado especial
destaque ao principio da contrapartida, no sentido de que nenhum benefício
ou serviço deva ser concedido sem a prévia fonte de custeio.
No âmbito individual esta nova forma de se regular a Previdência está
consubstanciado no fenômeno da vedação do tempo fictício, que nada mais
é do que aquele período de tempo que, mesmo não havendo exercício de
trabalho ou recolhimento previdenciário era computado como tempo para
fins de aposentadoria.
A nova normativa constitucional trazida pela Emenda Constitucional
nº 103/20, inclusive, passa a denominar a aposentadoria como algo progra-
mado, permitindo que o segurado promova migração de contribuições entre
uma competência para outra e recolha o valor suplementar necessário para
a aposentadoria, algo muito parecido com os sistemas privados, sob regime
de capitalização.
Vive-se uma nova era na Previdência do Brasil, sem dúvida. Ironicamente
ela passa a ser regulamenta justamente no momento em que o mundo inteiro
vive uma grave crise: a pandemia da covid-19. Não se sabe ao certo o que
acontecerá nos próximos anos do ponto de vista social. O que se discute no
45
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

momento atual são as consequências sanitárias da crise. A gravidade, em seus


aspectos sociais, somente será conhecida mais adiante.
Isso ganha relevância sobre dois aspectos. No primeiro deles, ante o fato
de que um sistema devidamente contributivo pode garantir o tão propalado
equilíbrio fiscal. Mas, por outro, pode afastar a proteção do estado em muitas
situações de necessidade humana.
Mas as crises servem justamente para trazer lições aos povos e cabe ao
Brasil avaliar, nos próximos anos, como se dará a implementação deste novo
sistema previdenciário. É importante repetir: trata-se de fato de um novo
sistema, com mudanças paradigmáticas em suas regras e tendo como vetor
principal a questão da contrapartida contributiva.
O conceito de tempo fictício para a previdência Social é algo a ser de-
vidamente acompanhado, para verificar de que forma o sistema normativo
interno da autarquia vai interpretá-lo. Da mesma forma se torna fundamental
acompanhar o comportamento dos tribunais com relação ao tema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, Daniel Guido Torreão. Considerações e reflexões sobre a previdência Social no
Brasil. Monografia. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/4684/3/
DGTCampos.pdf. Acesso em: 07/07/2020.
Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/ficcao/.
Acesso em: 07.07.2020.
SAER, Juan José. O conceito de ficção. Revista Sopro. Agosto de 2019. Disponível em:
http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n15.pdf. Acesso em 07.07.2020.
MODESTO, Paulo. A norma mais chocante da nova reforma da previdência. Portal
Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-nov-14/
interesse-publico-norma-chocante-reforma-previdencia. Acesso em 07/07/2020.
RANGEL, L, et al. Conquistas, Desafios e Perspectivas da Previdência Social no Brasil
vinte anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Políticas Sociais:
acompanhamento e análise − Vinte Anos da Constituição Federal, volume 1, 2009.

46
PENSÃO POR MORTE DE MILITARES
NO BRASIL: PRIVILÉGIO DE TRATAMENTO
DOS DEMAIS BENEFICIÁRIOS POR QUÊ?

Anderson Avelino de Oliveira Santos1

Sumário: I – introdução – II – Incongruência de um sistema de


proteção social dos militares – III – Do tratamento diferenciado
da pensão por morte dos militares – IV – Considerações finais –
V – Referências.

I – INTRODUÇÃO
O ano de 2019 foi marcado por profundas alterações nos sistemas de
previdência dos servidores públicos civis, dos trabalhadores da iniciativa pri-
vada e também dos militares. Nesse sentido, este estudo tem como objetivo
analisar as alterações trazidas pela Lei Federal nº 13.954/19, especificamente
em relação à pensão por morte paga aos beneficiários dos militares, fazendo
uma correlação com as alterações no benefício de pensão por morte paga aos
dependentes do Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos e do
Regime Geral de Previdência Social.
Antes de iniciar o estudo da pensão por morte dos militares, é importante
destacar quem são os servidores militares. Nos termos do artigo 142, §3º da

1 Advogado, sócio do escritório Avelino Advogados. Mestre em Direito Público pela PUC-
-Minas. Professor do curso de pós graduação em Direito Previdenciário da PUC Minas e da
Escola Superior de Advocacia da OAB/MG. Conselheiro da OAB/MG. Presidente da Comis-
são de Direito Previdenciário da OAB/MG (Previdência dos Militares). Diretor Adjunto da
Diretoria de Direito Previdenciário Militar do IBDP.

47
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Constituição da República, os “membros da Forças Armadas são denominados


militares”. Por sua vez, o caput do referido artigo, diz que as Forças Armadas
são constituídas pela Marinha, Exército e Aeronáutica, organizadas com base
na hierarquia e na disciplina. Já o artigo 42 da Constituição da República trata
da situação dos militares dos Estados e do Distrito Federal, notadamente os
membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, também
organizados com base na hierarquia e disciplina.
Com a alterações trazidas pela Emenda Constitucional nº 18/1998,
segundo Castro; Lazzari (2013, p.111) “os militares não são mais conside-
rados, pelo texto constitucional, servidores públicos”, tendo sido criado um
tratamento especial aos membros das Forças Armadas, “acabando com o
tratamento isonômico exigido pelo texto original entre os servidores civis e
militares.” Assim, outras categorias de agentes das Forças de Segurança
Pública, tais como Polícia Federal, Polícia Civil, Guardas Municipais, entres
outras, não são considerados servidores militares, justamente por que não
estão organizados com base na hierarquia e na disciplina, nos termos dos
artigos 42 e 142 da CR/88.
Portanto, para fins do presente estudo, pode-se dividir os militares em
duas categorias: os integrantes das Forças Armadas e os integrantes das Polícias
e Bombeiros Militares, uma vez que por força do artigo 42, § 2º da CR/88,
“aos pensionistas dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios
aplica-se o que for fixado em lei específica do respectivo ente estatal.”. Ou seja, o
tratamento jurídico ao pensionista de militar das Forças Armadas é diferente
do tratamento jurídico do militar das Polícias e Bombeiros Militares, e por
conta disso, será analisado de maneira diferente neste artigo.
Porém, devido ao fato de que o tratamento jurídico das pensões de mili-
tares das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros Militares dos Estado e do
Distrito Federal se dá através das respectivas Constituições e Leis Estaduais,
farei o recorte metodológico de analisar apenas a questão dos pensionistas das
Forças Armadas. Todavia, relevante dizer que os pensionistas de militares das
Polícias e Corpo de Bombeiros Militares também recebem pensão por morte
com integralidade.
A justificativa deste estudo se dá devido ao fato de que apenas os be-
neficiários de militares recebem atualmente, pensão por morte com integra-
lidade e paridade de vencimentos dos respectivos militares, enquanto que
os dependentes de servidores públicos civis e de trabalhadores da iniciativa
privada, com a aprovação da Reforma da Previdência, trazida pela Emenda

48
Pensão por morte de militares no Brasil

Constitucional nº 103/2019, receberão o benefício de pensão por morte no


índice de 50%, mais 10% por dependente, limitado a 100%.
Portanto, os objetivos específicos deste artigo são enumerar as diferenças
legais de tratamento entre pensionistas de militares e pensionistas de não mi-
litares, mostrando que não existe justificativa racional para tal diferenciação.
A abordagem metodológica escolhida foi a pesquisa qualitativa. Logo,
como o objetivo do presente trabalho é fazer um estudo crítico do instituto
da pensão por morte dos dependentes de militares em contraposição ao be-
nefício da pensão por morte pago aos dependentes de servidores públicos
civis e de trabalhadores da iniciativa privada após a Reforma da Previdên-
cia, acredita-se ser a abordagem qualitativa a mais completa. Como técnica
de pesquisa, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, por ser a que melhor se
adequa à pretensão de aprofundamento dos conhecimentos teóricos já
postuladas, até o momento, sobre dada área ou dado problema específico
de um contexto único.
Admite-se, contudo, que as reflexões sobre a pensão dos beneficiários de
militares, estejam diluídas ao longo do texto, são processuais e, por isso, não
se encontram apenas na seção destinada às considerações finais.

II – INCONGRUÊNCIA DE UM SISTEMA DE PROTEÇÃO


SOCIAL DOS MILITARES
Conforme já destacado, do ponto de vista técnico, pelo fato dos militares
não serem considerados servidores públicos e estarem destacados em outra
categoria, a categoria dos militares, é que muitos estudiosos afirmam que os
militares não possuem um regime de previdência. Por conta disso, os militares
não se aposentam e sim, vão para a reserva remunerada ou são reformados,
sendo estes últimos desobrigados em caráter definitivo do serviço militar.
O artigo 142, §3º, inc. X da Constituição da República trata do tema,
ao dizer que:

X- a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade,


a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inativida-
de, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações
especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades,
inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de
guerra.

49
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Segundo o texto da Lei 13.954/19, que altera dentre outras legislações,


a Lei nº 6.8880/80 − Estatuto dos Militares das Forças Armadas − e a Lei nº
3.765/60, que dispõe sobre a pensão dos militares, para os militares aplica-se
um Sistema de Proteção Social dos Militares das Forças Armadas. Veja:

Art. 50-A. O Sistema de Proteção Social dos Militares das Forças Ar-
madas é o conjunto integrado de direitos, serviços e ações, permanentes e
interativas, de remuneração, pensão, saúde e assistência, nos termos desta
Lei e das regulamentações específicas.

Ora, permita-me recorrer aos ensinamentos da Castro e Lazzari (livro


vermelho) para definir o que é regime previdenciário:

Entende-se por regime previdenciário aquele que abarca, mediante nor-


mas disciplinadoras da relação jurídica previdenciária, uma coletividade de
indivíduos que têm vinculação entre si em virtude da relação de trabalho ou
categoria profissional a que está submetida, garantindo a esta coletividade,
no mínimo, os benefícios essencialmente observados em todo sistema de
seguro social – aposentadoria e pensão por falecimento do segurado.

Neste sentido, não posso concordar com a ideia de que não existe um
regime de previdência para os militares, nos moldes do Regime Geral de Pre-
vidência Social, do Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos
e do Regime de Previdência Complementar. Ora, se o militar implementa os
requisitos legais para receber em pecúnia, mês a mês, até o seu falecimento,
sem efetivamente trabalhar, um benefício mensal que lhe garanta a subsistên-
cia, a isso eu não consigo enxergar como sendo o benefício da aposentadoria,
como é em qualquer regime de previdência existente no país.
Tenho consciência de que os militares, tecnicamente, não se aposentam,
pois, ao fazerem parte do quadro da reserva remunerada, podem ser convoca-
dos compulsoriamente à ativa, a qualquer momento, nos termos do art. 3º, §
1º, “b”, I, da Lei n. 6.880/80. No entanto, estudos técnicos mostram que um
número muito reduzido de militares são convocados compulsoriamente à
ativa, seja por que o Brasil não tem um histórico de participação em guerras
ou atividades militares em outros países, seja por que, de fato, não existiu a
necessidade dos militares serem convocados à ativa.
Segundo Teixeira (2019), entre os anos de 2012 e 2016, apenas 1.221 mili-
tares da reserva foram convocados, de um total de 160 mil reservistas, o que dá
50
Pensão por morte de militares no Brasil

um percentual baixo de apenas 0,76% de militares convocados à ativa. Portanto,


não se justifica a manutenção de um discurso para o tratamento diferenciado
do militar, de modo que possua privilégios de um “Sistema de Proteção Social”
e não de um regime de previdência militar, com regras e princípios semelhantes
ao RGPS e ao RPPS, inclusive de equilíbrio financeiro e atuarial. Além do mais,
se os militares não tiverem um regime específico de previdência, de onde serão
resgatados princípios do direito previdenciário, como seletividade e distribu-
tividade na prestação dos benefícios e serviços, universalidade de cobertura
do atendimento, diversidade da base de financiamento, equidade na forma de
participação no custeio, equilíbrio econômico e atuarial, entre outros.
Obviamente, não é justo exigir que os militares tenham tratamento
exatamente igual ao servidor público civil ou ao trabalhador da iniciativa
privada, uma vez que possuem regras rígidas e específicas provenientes da
hierarquia2 e disciplina. Além disso, relevante frisar que as Forças Armadas
têm que atuar em um país que possui o quinto maior território do mundo,
com 8,5 milhões de quilômetros quadrados, que possui 16.865 quilômetros de
fronteira com dez países e que possui um extenso litoral de 7.491 quilômetros.
Além disso, é relevante destacar o risco de morte dos militares por conta do
trabalho exercido, o não recebimento de horas-extras, a proibição de greve,
a disponibilidade permanente e dedicação exclusiva ao trabalho e as transfe-
rências ex ofício no território nacional para os militares das Forças Armadas.
No entanto, também é importante destacar que muitas outras profissões
também possuem riscos de morte e incapacidade permanente para o trabalho,
tais como os eletricitários, os seguranças particulares, profissionais da área
da saúde, trabalhadores da indústria química, etc.
No mesmo sentido, Santos (2018, p.600) ensina que

Da análise da disciplina constitucional se conclui que pouco foi alterado


o regime previdenciário dos militares, que ficaram fora das disposições do
regime próprio dos servidores civis.

2 De acordo com o artigo 14 da Lei 6.880/80, que dispõe sobre o Estatuto dos Militares, a
“hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das
Forças Armadas e das Forças Auxiliares por postos e graduações.”. Por sua vez, o §1º do artigo
14 da mesma Lei, diz que são manifestações essenciais da disciplina “a correção de atitude;
a obediência pronta às ordens dos superiores hierárquicos; a dedicação integral ao serviço; a
colaboração espontânea à disciplina coletiva e à eficiência da instituição; a consciência das res-
ponsabilidades; a rigorosa observância das prescrições regulamentares.”.

51
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Há críticas na doutrina sobre essa postura do constituinte reformador.


Rechaçamos argumentos no sentido de que as características da carreira
militar justificam regime diferenciado dos demais servidores públicos.
Há servidores públicos civis, sob as normas do RPPS, que desempe-
nham atividades extremamente perigosas à sua saúde e integridade física,
e de extrema importância para o País, e nem por isso estão garantidos pela
integralidade e paridade quando se aposentarem, nem seus dependentes,
futuros pensionistas, terão essas garantias.

Finalmente, relevante destacar que boa parte dos países adotam sistemas
de proteção social dos militares, tais como a Inglaterra, os Estados Unidos,
China, França, México, Rússia, Alemanha e Argentina (LEAL, 2016). No en-
tanto, mesmo adotando um sistema de proteção social separado dos Regimes
de Previdências, esses países não têm regras tão benéficas aos militares em
termos de aposentadorias e pensões.
A título de exemplo, após a Reforma da Previdência, no setor privado, os
trabalhadores se aposentam com no máximo R$ 6.101,06 e têm que contribuir
por 49 anos para o Regime Geral de Previdência Social e ter idade mínima
de 65 anos. Já um militar que vai para a reserva remunerada, mesmo com as
alterações trazidas pela Lei 13.954/19, não tem exigência de idade mínima,
tem que contribuir por 35 anos como militar e não limitação de teto para
o benefício, à exceção do teto constitucional do subsídio dos Ministros do
STF. Além disso, os militares, assim como os servidores públicos, possuem
estabilidade funcional, garantido a classe enorme segurança de seus empregos
e renda, principalmente em um país que passa por constantes crises econô-
micas como o Brasil, provocando, dentre outros problemas, o desemprego
dos trabalhadores da iniciativa privada.
Segundo Mori (2018), nos Estados Unidos, país que possui constante
atuação dos militares em guerras, a aposentadoria dos militares é propor-
cional, onde cada ano de serviços prestados corresponde a 2% do salário
para aposentadoria. Assim, segundo a Letícia Mori, com 30 anos prestados
ao serviço militar, a aposentadoria representa 60% do salário. A autora
continua descrevendo que no Reno Unido, passados 30 anos de serviço
militar, a aposentadoria corresponderá a 43% do salário, de acordo com o
Departamento de Defesa e Forças Armadas local. Só em caso de invalidez
proveniente de acidente no trabalho é que a aposentadoria seria integral, o
que é perfeitamente justo.
52
Pensão por morte de militares no Brasil

O que se verifica é que o Sistema de Proteção Social dos Militares serve


como atrativo para as Forças Armadas, buscando compensar algumas exi-
gências da vida militar. Porém, segundo Boucinhas (2018) “a necessidade de
levar em consideração as especificidades do serviço militar não podem ser usada
para justificar privilégios.”.
Se todo discurso do Governo Federal para justificar a necessidade de uma
Reforma da Previdência dos servidores públicos civis e dos trabalhadores da
inciativa privada era a de combater privilégios e diminuir o déficit das contas
públicas, isso não aconteceu necessariamente com a Reforma da Previdência
dos militares com a promulgação da Lei 13.954/19.
Alguns pontos de grande diferença entre a Reforma da Previdência dos
militares e a dos servidores públicos e dos trabalhadores da iniciativa privada
devem ser trazidos a título de comparação.
Os militares continuam a se ‘aposentar’ sem idade mínima e com o valor
integral de salários (soldo). Já os servidores públicos que ingressaram no
serviço público após a vigência da Emenda Constitucional 41/2003 e até a
vigência das normas que instituíram a Previdência Complementar do Servidor
Público, se aposentam com uma média aritmética dos salários e não mais com
o salário integral. Já para os servidores públicos que ingressaram no serviço
público após a instituição da Previdência Complementar do Servidor Público
e para os trabalhadores da iniciativa privada, o teto máximo de aposentadoria
é atualmente de R$ 6.101,06 com idade mínima de 65 anos para homens e
62 anos para mulheres.
Outra grande diferença se deu em relação às regras de transição dos mi-
litares e dos outros servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada.
Enquanto que na Reforma da Previdência dos Militares o percentual de pedágio
a ser cumprido é de 17% do tempo que faltava para se aposentar na data da apro-
vação da Lei 13.954/19, para os servidores públicos e trabalhadores da iniciativa
privada, esse pedágio foi de 100% do tempo que faltava para se aposentar até a
data de aprovação da Emenda Constitucional nº 103/2019. Logo, se faltasse a
um militar dez anos para se aposentar, basta cumprir o pedágio de 1,7 anos. Por
outro lado, se se faltasse o mesmo período de dez anos para o servidor público
se aposentar, o pedágio que tem que cumprir será de dez anos, ou seja, se antes
lhe faltavam dez anos para aposentar, com a Reforma da Previdência, terá que
cumprir mais vinte anos de serviço na administração pública.
A Lei 13.954/19 trouxe para os militares o aumento gradual de 7,5%
para 10,5% em relação a alíquota de contribuição para respectivo Sistema de
53
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Proteção Social. As pensionistas dos militares das Forças Armadas que até
então não contribuíam, passaram a contribuir com alíquotas que podem chegar
a 13,5%, para alguns casos de filhas pensionistas vitalícias não inválidas, já
incluindo o sistema de saúde. No entanto, a contribuição previdenciária dos
servidores públicos civis foi majorada, podendo chegar a 22%, através de um
sistema progressivo por faixas salariais.
Por fim, cabe destacar um ponto crucial na Reforma da Previdência dos
Militares que foi a reestruturação das carreiras militares, com aumentos sig-
nificativos de vencimentos dos oficiais e praças, incorporáveis para fins de
inatividade e pensão. Ora, se a intenção da Reforma da Previdência do RPPS
e do RGPS era diminuir gastos, com a Reforma da Previdência dos Militares,
muito embora o Governo Federal tenha defendido que em 10 anos haverá
uma economia de cerca de 10 bilhões de reais, o que é pouso significativo em
vista do déficit do sistema de Proteção Social do Militar.
Portanto, não existem a meu ver, justificativas razoáveis para a manu-
tenção de um sistema destacado de previdência social dos militares, chamado
de Sistema de Proteção Social, uma vez que a Reforma da Previdência buscou
convergir as regras de custeio e de pagamento de benefícios previdenciários
do Regime Geral de Previdência Social e do Regime Próprio de Previdência
Social dos Servidores Públicos, não sendo crível a existência de um Sistema
de Proteção Social dos Militares com regras específicas que privilegiam os
militares e seus beneficiários e dependentes, impedindo um debate jurídico,
econômico e atuarial com os próprios militares, que alegam não ser possível
essa discussão no âmbito previdenciário, pelo fato de não se tratar de um
regime de previdência.

III – DO TRATAMENTO DIFERENCIADO DA PENSÃO POR


MORTE DOS MILITARES
A Lei Federal nº 13.954/19, trouxe importantes alterações em relação a
reestruturação da carreira militar e do Sistema de Proteção Social dos Militares
das Forças Armadas, dentre outras, a Lei Federal nº 6.880/80 (Estatuto dos
Militares) e a Lei Federal 3.765/60 (Pensão Militar).
No sistema de Proteção Social dos Militares, existe uma peculiaridade
pouco conhecida, que é a diferença entre beneficiário do militar e dependente
do militar. Na Lei Federal 6.880/80, no artigo 50, § 2º, está elencado o rol
de dependentes dos militares para fins de tratamento médico-hospitalar. Por

54
Pensão por morte de militares no Brasil

sua vez, o rol de beneficiário para fins de pensão está definido no artigo 7º
da Lei Federal 3.765/60 (alterada pela MP 2.215-01). Portanto, utiliza-se a
expressão ‘beneficiário’ para fins de pensão e ‘dependente’ para fins de trata-
mento médico-hospitalar.
Na mesma linha de raciocínio,

Outra legislação que confunde os dependentes refere-se aos “benefi-


ciários” da Pensão Militar descritos no Art. 7° da Lei n° 3.765/60.
BENEFICIÁRIO é um termo que só deve ser utilizado para fins de PEN-
SÃO MILITAR (estabelecido na Lei n° 3.765/60) e não se confunde com
o DEPENDENTE para fins de assistência médico-hospitalar definido no
Decreto n° 92.512/1986.
O conceito de dependente, para fins de assistência médico-hospitalar
nas Forças Armadas, está descrito no Art. 3°, XI do Decreto n° 92.512/1986
e remete ao Estatuto dos Militares a responsabilidade de definir quem se
enquadrará nessa situação.

Assim, importante trazer ao conhecimento do leitor a norma em vigor


do artigo 50, §2º da Lei 6.880/803 até 16/12/2019, data que passou a viger a
Lei 13.954/19, que tinha a seguinte redação:

Art. 50. [...]


§ 2° São considerados dependentes do militar:
I − a esposa;
II − o filho menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou interdito;
III − a filha solteira, desde que não receba remuneração;
IV − o filho estudante, menor de 24 (vinte e quatro) anos, desde que
não receba remuneração;
V − a mãe viúva, desde que não receba remuneração;
VI − o enteado, o filho adotivo e o tutelado, nas mesmas condições
dos itens II, III e IV;
VII − a viúva do militar, enquanto permanecer neste estado, e os demais
dependentes mencionados nos itens II, III, IV, V e VI deste parágrafo, desde
que vivam sob a responsabilidade da viúva;

3 As normas que disciplinavam sobre a assistência a saúde dos dependentes das Forças Arma-
das era regulamentada pelo Decreto n° 92.512, de 2 de abril de 1986.

55
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

VIII − a ex-esposa com direito à pensão alimentícia estabelecida por


sentença transitada em julgado, enquanto não contrair novo matrimônio.
§ 3º São, ainda, considerados dependentes do militar, desde que vivam
sob sua dependência econômica, sob o mesmo teto, e quando expressamente
declarados na organização militar competente:
a) a filha, a enteada e a tutelada, nas condições de viúvas, separadas
judicialmente ou divorciadas, desde que não recebam remuneração;
b) a mãe solteira, a madrasta viúva, a sogra viúva ou solteira, bem como
separadas judicialmente ou divorciadas, desde que, em qualquer dessas
situações, não recebam remuneração;
c) os avós e os pais, quando inválidos ou interditos, e respectivos côn-
juges, estes desde que não recebam remuneração;
d) o pai maior de 60 (sessenta) anos e seu respectivo cônjuge, desde
que ambos não recebam remuneração;
e) o irmão, o cunhado e o sobrinho, quando menores ou inválidos ou
interditos, sem outro arrimo;
f) a irmã, a cunhada e a sobrinha, solteiras, viúvas, separadas judicial-
mente ou divorciadas, desde que não recebam remuneração;
g) o neto, órfão, menor inválido ou interdito;
h) a pessoa que viva, no mínimo há 5 (cinco) anos, sob a sua exclusiva
dependência econômica, comprovada mediante justificação judicial;
i) a companheira, desde que viva em sua companhia há mais de 5
(cinco) anos, comprovada por justificação judicial; e
j) o menor que esteja sob sua guarda, sustento e responsabilidade,
mediante autorização judicial.

Veja que era um rol bastante extenso de dependentes dos militares das
Forças Armadas, onde poderiam ser incluídos, dentre outros, a sogra e a
madrasta viúvas, a irmã, a cunhada e a sobrinha solteiras ou viúvas que não
recebessem remuneração, o que onerava substancialmente os cofres públicos
dada sua amplitude e baixa arrecadação de contribuição para o sistema de
proteção social.
Para adequar a uma nova realidade social, a Lei 13.954/19, veio reduzir
consubstancialmente o número de dependentes dos militares, sendo que
atualmente o citado artigo 50, §2º da Lei 6.880/60, tem a seguinte redação:

Art. 50. [...]

56
Pensão por morte de militares no Brasil

§ 2º São considerados dependentes do militar, desde que assim decla-


rados por ele na organização militar competente:
I − o cônjuge ou o companheiro com quem viva em união estável, na
constância do vínculo;
II − o filho ou o enteado:
a) menor de 21 (vinte e um) anos de idade;
b) inválido;
§3º Podem, ainda, ser considerados dependentes do militar, desde
que não recebam rendimentos e sejam declarados por ele na organização
militar competente:
I − o filho ou o enteado estudante menor de 24 (vinte e quatro) anos
de idade;
II − o pai e a mãe;
III − o tutelado ou o curatelado inválido ou menor de 18 (dezoito) anos
de idade que viva sob a sua guarda por decisão judicial.

Importante lembrar que o § 5º da Lei 6.880/60, trazido pela Lei 13.954/19,


mantém vinculados os dependentes do segurado no sistema de assistência
médico-hospitalar, mesmo após o falecimento do militar.
Por outro lado, o rol de beneficiários para fins de pensão por morte dado
pelo artigo 7º da Lei 3.765/60, também sofreu alterações da Lei 13.954/19, que
reduziu sua amplitude e ficando próximo do rol de dependentes do Regime
Geral de Previdência Social (artigo 13 da Lei 8.213/91) e do Regime Próprio
dos Servidores Públicos (artigo 217 da Lei 8.112/90). Veja:

Art. 7º A pensão militar é deferida em processo de habilitação, com


base na declaração de beneficiários preenchida em vida pelo contribuinte,
na ordem de prioridade e nas condições a seguir:
I − primeira ordem de prioridade:
a) cônjuge ou companheiro designado ou que comprove união estável
como entidade familiar;
c) pessoa separada de fato, separada judicialmente ou divorciada do
instituidor, ou ex-convivente, desde que perceba pensão alimentícia na
forma prevista no § 2º-A deste artigo;
d) filhos ou enteados até vinte e um anos de idade ou até vinte e quatro
anos de idade, se estudantes universitários ou, se inválidos, enquanto durar
a invalidez; e

57
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

e) menor sob guarda ou tutela até vinte e um anos de idade ou, se


estudante universitário, até vinte e quatro anos de idade ou, se inválido,
enquanto durar a invalidez.
II − segunda ordem de prioridade, a mãe e o pai que comprovem de-
pendência econômica do militar;
III − terceira ordem de prioridade:
a) o irmão órfão, até vinte e um anos de idade ou, se estudante uni-
versitário, até vinte e quatro anos de idade, e o inválido, enquanto durar a
invalidez, comprovada a dependência econômica do militar;
§ 1º A concessão da pensão aos beneficiários de que tratam as alíneas
“a” e “d” do inciso I do caput exclui desse direito os beneficiários referidos
nos incisos II e III do caput deste artigo.

Dois pontos relevantes a serem destacados em relação ao rol de bene-


ficiários dos militares das Forças Armadas. O primeiro é que foi mantida a
obrigatoriedade do militar de indicar, em vida, quais são seus beneficiários,
através de declaração. Outro ponto a ser destacado é a extensão da condição de
beneficiário até os 24 anos de idade ao filho de militar que estiver estudando,
o que não se encontra mais nas legislações de Regimes Próprios e nem no
Regime Geral de Previdência Social.
Porém, o ponto mais importante para análise deste artigo é o que se re-
fere o artigo 9º, §1º da Lei 3.765/60, que determina que a pensão por morte
do beneficiário do militar será paga em sua integralidade, ou seja, no mesmo
valor que recebia o militar da ativa ou inativo, caso estivesse na reserva.
Por outro lado, a Emenda Constitucional nº 103/2019, especificamente
em relação à pensão por morte dos dependentes de servidores públicos civis e
dos trabalhadores da iniciativa provadas, trouxe no artigo 23, alterações signi-
ficativas no benefício, reduzindo seu valor em quase todas as situações. Veja:

Art. 23. A pensão por morte concedida a dependente de segurado do


Regime Geral de Previdência Social ou de servidor público federal será
equivalente a uma cota familiar de 50% (cinquenta por cento) do valor da
aposentadoria recebida pelo segurado ou servidor ou daquela a que teria
direito se fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito,
acrescida de cotas de 10 (dez) pontos percentuais por dependente, até o
máximo de 100% (cem por cento).

O Constituinte Derivado, fez importante ressalva no §6º do artigo 10 da


Emenda Constitucional nº 103/2019, para que o pagamento vitalício e inte-
58
Pensão por morte de militares no Brasil

gral aos dependentes da pensão por morte de policiais não militares e agentes
socioeducativos que falecerem em decorrência do trabalho.

§ 6º A pensão por morte devida aos dependentes do policial civil do


órgão a que se refere o inciso XIV do caput do art. 21 da Constituição
Federal, do policial dos órgãos a que se referem o inciso IV do caput do
art. 51, o inciso XIII do caput do art. 52 e os incisos I a III do caput do art.
144 da Constituição Federal e dos ocupantes dos cargos de agente federal
penitenciário ou socioeducativo decorrente de agressão sofrida no exercí-
cio ou em razão da função será vitalícia para o cônjuge ou companheiro e
equivalente à remuneração do cargo.

Ou seja, para os dependentes do INSS e dos servidores públicos civis, a


pensão por morte equivale a 50% (cinquenta por cento) do valor da aposenta-
doria que recebia o falecido ou teria direito a receber na data do falecimento,
mais 10% (dez por cento) para cada dependente até o limite de 100% (cem
por cento), sendo que as cotas partes dos dependentes cessam com o fim da
condição de dependente do beneficiário, não revertendo mais essa cota parte
para outros eventuais beneficiários.
Além disso, desde a vigência da Lei Federal 13.135/15 que o pagamento
da pensão por morte no RGPS e no RPPS não é vitalício, devendo ser cumpri-
dos alguns requisitos. A Lei n.° 13.135/15 acrescentou o inciso V ao § 2º do
art. 77 da Lei 8.213/91, alterando também a Lei Federal 8.112/90 (Estatuto
do Servidor Público Federal) prevendo uma tabela com o tempo máximo
de duração da pensão por morte devida ao cônjuge ou companheiro(a) do
segurado falecido. Veja:

Art. 77 [...] O cônjuge ou companheiro perderá sua cota individual da


pensão por morte nos seguintes prazos:
I– Se o segurado tiver vertido (pago) menos que 18 contribuições mensais
para o regime previdenciário: a pensão irá durar 4 meses.
II– Se o segurado era casado ou vivia em união estável há menos de 2
anos quando morreu: a pensão irá durar 4 meses;
III– Se o segurado tiver vertido mais que 18 contribuições mensais para
o regime previdenciário E, quando ele morreu, já era casado ou vivia em
união estável há mais de 2 anos. Neste caso, a pensão irá durar:
a) 3 anos, se o beneficiário tiver menos que 21 anos de idade;
b) 6 anos, se o beneficiário tiver entre 21 e 26 anos de idade;

59
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

c) 10 anos, se o beneficiário tiver entre 27 e 29 anos de idade;


d) 15 anos, se o beneficiário tiver entre 30 e 40 anos de idade;
e) 20 anos, se o beneficiário tiver entre 41 e 43 anos de idade;
f) será vitalícia, se o beneficiário tiver mais que 44 anos de idade.
IV– Se o segurado tiver morrido em decorrência de acidente de qualquer
natureza ou de doença profissional ou do trabalho não importará o número
de contribuições que ele tenha pago nem o tempo de casamento ou união
estável. A pensão irá durar:
a) 3 anos, se o beneficiário tiver menos que 21 anos de idade;
b) 6 anos, se o beneficiário tiver entre 21 e 26 anos de idade;
c) 10 anos, se o beneficiário tiver entre 27 e 29 anos de idade;
d) 15 anos, se o beneficiário tiver entre 30 e 40 anos de idade;
e) 20 anos, se o beneficiário tiver entre 41 e 43 anos de idade;
f) será vitalícia se o beneficiário tiver mais que 44 anos de idade.

Nesse sentido, os cônjuges e companheiros e companheiras dos servidores


públicos civis e dos segurados do INSS só receberão pensão por morte se o
instituidor da pensão tivesse pago ao menos 18 contribuições ao respectivo
sistema de previdência, além de ter ao menos 2 anos de casamento ou união
estável. Do contrário, a pensão seria paga por apenas quatro meses.
Ultrapassados estes requisitos, entendo que a alteração trazida pela Lei
13.135/15 de acabar com o pagamento vitalício da pensão por morte a cônjuges
e companheiros com menos de 44 anos de idade foi razoável, pois traz equilí-
brio financeiro e atuarial aos Sistemas de Previdência dos Servidores Públicos
e do Regime Geral, não incentivando eventual ociosidade do beneficiário.
Por outro lado, percebe-se que mesmo com as mudanças trazidas pela
Lei 13.954/19 em relação ao benefício da pensão por morte dos militares, tal
benefício continua sendo pago de forma vitalícia aos cônjuges e companheiros
e companheiras, sem nenhuma exigência de tempo de casamento ou união
estável e nem mesmo de idade mínima. Além disso, a pensão por morte dos
beneficiários de militares continua a ser paga de forma integral, sem qualquer
percentual que reduza o benefício, tal como ocorre do RGPS e no RPPS.
Assim, verifica-se que não existe justificativa jurídica, econômica e atua-
rial para tratamento tão diferente a dependentes de militares e dependentes de
servidores públicos civis e da iniciativa privada no que se refere ao pagamento
da pensão por morte. Se por um lado deve ser reconhecida a especificidade e
60
Pensão por morte de militares no Brasil

as peculiaridades do trabalho exercido pelos militares, que de certa maneira


justifica algumas benesses do ponto de vista previdenciário, o mesmo não
ocorre em relação ao pensionista, uma vez que não exerce atividade militar.

IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante deste breve estudo, é possível afirmar que mesmo com as alte-
rações trazidas pela Lei Federal 13.954/19, intitulada como a Reforma da
Previdência dos Militares, que reduziu o número de dependentes de militares
para fins de assistência médico-hospitalar descritos no artigo 50, § 2º da Lei
6.880/80 e também reduziu a quantidade de beneficiários para fins de pensão
por morte, descritos no artigo 7º da Lei 3.765/60, existe clara vantagem dos
pensionistas de militares em relação aos pensionistas de servidores públicos
civis e de segurados do INSS. Essa vantagem se manifesta no sentido de que
os beneficiários à pensão por morte de militares não tem nenhuma redução
no benefício, recebendo-o de forma integral, enquanto que os pensionistas
do Regime Geral de Previdência Social e dos Regime Próprio de Previdência
Social, após a vigência da Emenda Constitucional n 103/2019, têm o benefício
da pensão pagos no índice de 50%, mas 10% por beneficiário, limitado a no
máximo 100% do benefício do instituidor da pensão.
Todavia, ressalvo que entendo ser justo o pagamento da pensão por morte
aos pensionistas de militares que falecerem em operações militares, dada a
circunstância da morte em decorrência do trabalho.
Outro aspecto a ser destacado como vantajoso os pensionistas de milita-
res é que, caso algum pensionista perca a condição de beneficiário, sua cota
parte de pensão reverte-se para o todo, caso existam outros beneficiários, o
que não acontece mais com os pensionistas do INSS e de servidores públicos
civis falecidos.
Além disso, os beneficiários cônjuges ou companheiros(as) de pensão
dos militares, recebem o benefício vitalício, não importando a idade do pen-
sionista. Já os cônjuges e companheiros(as) do RGPS ou do RPPS, só recebem
a pensão vitalícia se tiverem 44 anos ou mais de idade.
Neste sentido, se a justificativa de existir um Sistema de Proteção Social
específico para o militar é reconhecer as peculiaridades do exercício do seu
trabalho, tal fundamento não deve ser estendido aos pensionistas, uma vez
que o pensionista não exerce a atividade militar com riscos a integridade
física. Não é razoável dar tratamento diferenciado e claramente vantajoso do
61
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

ponto de vista econômico aos pensionistas de militares da Forças Armadas e


das Polícias e Corpo de Bombeiros Militares em detrimento dos pensionistas
de servidores públicos civis e de trabalhadores da iniciativa privada, sob pena
de manutenção um privilégio injustificado do ponto de vista previdenciário
a esta classe de pensionistas militares.

V – REFERÊNCIAS
ALMEIDA, João Carlos da Silva. Assistência médico-hospitalar nas Forças Armadas.
Disponível em <https://jus.com.br/artigos/56001/assistencia-medico-hospitalar-
-nas-forcas-armadas>. Acesso em 04 Jul. 2020.
BOUCINHAS, Jorge. As aposentadorias de militares no Brasil são mais generosas do
que as de outros países? Disponível em <https://economia.uol.com.br/noticias/
bbc/2018/12/06/as-aposentadorias-de-militares-no-brasil-sao-mais-generosas-do-
-que-as-de-outros-paises.htm>. Acesso em 03 Jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 13.954, de 16 de dezembro de 2019. Altera a Lei nº 6.880, de 9 de de-
zembro de 1980 (Estatuto dos Militares), a Lei nº 3.765, de 4 de maio de 1960, a
Lei nº 4.375, de 17 de agosto de 1964 (Lei do Serviço Militar), a Lei nº 5.821, de
10 de novembro de 1972, a Lei nº 12.705, de 8 de agosto de 2012, e o Decreto-Lei
nº 667, de 2 de julho de 1969, para reestruturar a carreira militar e dispor sobre o
Sistema de Proteção Social dos Militares; revoga dispositivos e anexos da Medida
Provisória nº 2.215-10, de 31 de agosto de 2001, e da Lei nº 11.784, de 22 de se-
tembro de 2008; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br>. Acesso em: 05 Jul. 2020.
BRASIL. Emenda Constitucional n 103, de 12 de novembro de 2019. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 05 Jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 13.135, de 17 de junho de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br>. Acesso em: 05 Jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o estatuto dos Servi-
dores Públicos Federais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em:
05 Jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 05 Jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 3.765, de 4 de maio de 1960. Dispõe sobre Pensões Militares. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br> Acesso em: 05 Jul. 2020.
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previ-
denciário. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

62
Pensão por morte de militares no Brasil

LEAL, Carlos Ivan Simonsen, et al. As Forças Armadas e a PEC da Previdência. Fundação
Getúlio Vargas. Brasília-DF, 2016.
MORI, Letícia. Disponível em As aposentadorias de militares no Brasil são mais generosas
do que em outros países? <https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2018/12/06/
as-aposentadorias-de-militares-no-brasil-sao-mais-generosas-do-que-as-de-outros-
-paises>. Acesso em 05 Jul. 2020.
TEIXEIRA, Lucas Borges. Militares dizem não se aposentar, mas só 1% dos reservistas são
convocados. Disponível <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/03/21/
reforma-da-previdencia-militares-reserva-convocacao-atividades.htm>. Aceso em
02 Jul. 2020.
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 8ª ed. São Paulo.
Saraiva, 2018.

63
SEGURANÇA JURÍDICA, PREVISIBILIDADE
E PROTEÇÃO SOCIAL: UMA ANÁLISE
DO ARTIGO 29 DA EC 103/2019

Antonio Bazilio Floriani Neto1


Mayara Rolim Pereira2

Sumário: 1. Introdução – 2. Considerações acerca do que o estado


pode fazer para o que deve respeitar – 3. Constituição, liberdade
e interpretação – 4. Segurança jurídica e a aplicação de postu-
lados econômicos – 5. Considerações finais – 6. Referências
bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO
Tradicionalmente, quando a doutrina estuda o direito público, atenta-
-se para que o Estado pode fazer e não o que deve respeitar.3 Neste contexto,
revela-se extremamente relevante a análise das limitações a que o Poder
Público deve ater-se, especialmente se considerarmos os efeitos práticos de
determinada política pública ou dispositivo legal.

1 Doutor em direito pela PUCPR, mestre e especialista em direito previdenciário. Advogado e


professor universitário. Email: antonio@rochaefloriani.com.br
2 Pós-graduanda em direito previdenciário pela PUCPR, advogada. Email: may_rolim@
hotmail.com
3 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019,
p. 8.

65
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Em âmbito econômico, este insight foi rapidamente incorporado no âma-


go da ciência, haja vista o empirismo ser uma das bases. Porém, em âmbito
jurídico, ainda se revelam incipientes os estudos. Talvez pelo fato de o Direito
buscar ser justo, enquanto a pretensão econômica é ser científica4.
Não por acaso, vem ganhando espaço a Análise Econômica do Direito
(AED) ou Direito e Economia, corrente que propõe a aplicação do ferramental
econômico ao arcabouço jurídico. Busca-se, com isto, melhor compreender
o fenômeno jurídico, bem como atribuir a ele eficiência.
Este modo de proceder, importante assentar, não reduz a importância da
ciência jurídica e pode trazer importantes avanços a qualquer matéria, como
por exemplo a previdenciária.
Neste artigo, será examinado o artigo 29 da Emenda Constitucional
103/2019, sob ótica da AED, bem como será conferido enfoque ao que deve
ser respeitado pela administração pública. Rompe-se, assim, com a ideia do
que pode ser feito, para o que deve ser respeitado pelo Estado.

2. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO QUE O ESTADO PODE


FAZER PARA O QUE DEVE RESPEITAR

A Constituição Federal traz em seu artigo 1º que um dos fundamentos


da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa humana. De início,
portanto, já se percebe que a acentuação preocupação do constituinte com o
indivíduo, eis que fora estabelecida verdadeira norma-princípio, conduzindo
as atividades estatais para promoção da dignidade da pessoa humana, que, por
sua vez, é alcançada conforme o nível de satisfação de direitos fundamentais
atendidos pelo Estado5.
Ainda ao examinarmos o texto de 1988, constata-se, mais adiante, que
são traçados os objetivos da República Federativa do Brasil: I) a construção

4 SALAMA, Bruno Meyerhof. Análise econômica do direito. Enciclopédia jurídica da PUC-SP.


Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.).
Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo
Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Ca-
tólica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/41/
edicao-1/analise-economica-do-direito
5 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional – 3ª ed. ver. E atual. – São Pau-
lo: Saraiva, 2008, p. 236 e 237.

66
Segurança jurídica, previsibilidade e proteção social

de uma sociedade livre, justa e solidária; II) a garantia do desenvolvimento


nacional; III) a erradicação da pobreza e a marginalização, bem como a re-
dução das desigualdades sociais e regionais e, finalmente, IV) a promoção do
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
Desta feita, extrai-se que a Magna Carta revelou uma inconformidade com
a realidade encontrada, podendo-se afirmar que o Estado contemplado em 1988
não é neutro6: eis que enumera uma série de valores sobre o Poder Público
deveria se firmar, além de prever as ferramentas hábeis a concretizar a ordem
desejada. Deste raciocínio, inclusive, decorre a possibilidade de a tributação
possuir efeitos além da mera arrecadação: pode induzir o comportamento do
sujeito passivo com vistas a obter algum dos objetivos supra mencionados.
Nota-se, assim, o que o Estado pode fazer e, a partir deste momento, as
atenções serão dirigidas ao que o Estado deve respeitar.
Tal premissa decorre do fato de que por mais nobre que seja a intenção,
deve ser respeitada a estrutura normativa, os significados e dispositivos cons-
titucionais que limitam os poderes do Estado, bem como preveem direitos e
garantias individuais.7
Aqui, faz-se um recorte metodológico para examinar os princípios jurídi-
cos, os quais podem ser definidos como normas que estabelecem um fim que
deve ser promovido ou reforçado. Diferenciam-se, pois, das regras pelo fato
de não indicarem, de forma direta, quais as condutas que devem ser adotadas
pelo poder público8.
Os princípios, portanto, estabelecem uma finalidade que deve ser alcançada
mediante a adoção de condutas que sirvam para promover ou reforçar aquele
estado de coisas por eles buscado. Em regra, não se pode tolerar condutas que
visem a enfraquecer o fim colimado pelo princípio. Como se vê, a análise dos
princípios jurídicos exige que se analise uma relação de causa e efeito, de modo
a verificar qual o efeito da conduta praticada no fim por ele colimado9.

6 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de


Janeiro: Forense, 2005, p. 1.
7 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 8.
8 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciá-
rio. 23º edição. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 69.
9 ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 5ª ed., ver. Atual., e ampl. São Paulo: Ma-
lheiros, 2019, p.132.

67
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

A Constituição Federal, como visto, em seu artigo 3º traz o que se pode


denominar de princípio do estado de bem estar social, apontando pela im-
portância de que os objetivos nela elencados sejam alcançados10.
Quando se analisa o inciso I, do artigo 3º, já se verifica que se objetiva
a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Deste dispositivo se
observa a indicação de um subprincípio, que visa a dar densidade ao Estado
de Bem Estar Social, que se traduz no princípio da solidariedade11.
Tal princípio vem reforçado no artigo 195, da Constituição Federal que, ao
tratar de forma mais específica da Seguridade Social, estabelece que será finan-
ciada por toda a sociedade. Significa dizer, portanto, que a Constituição Federal
de 1988 entendeu que todos são responsáveis pelas contingências sociais que
podem acometer os membros de uma dada sociedade. Com efeito, havendo um
membro dessa sociedade que se encontre em uma situação de vulnerabilidade e,
em razão de fazer parte do todo, é como se toda a sociedade fosse afetada com
a falta de recursos que pode vir a lhe privar de ter um mínimo de dignidade.
Por essa razão, a solidariedade traz a ideia de pacto intergeracional, exi-
gindo que aqueles que tenham condições de contribuir assim o façam para
garantir que aqueles que estão passando por situação de privação de sua força
laboral ou de condições de garantir seu sustento sejam amparados e possuam
um mínimo de dignidade, afastando-se, com isso, de uma situação de pobreza
e marginalização que se busca reduzir, conforme se observa do artigo 3, III,
da Constituição Federal12.
Dentre essas contingências sociais que podem acarretar situação de au-
sência de possibilidade de prover o próprio sustento mediante o emprego de
sua força laboral, encontra-se a idade avançada, conforme se observa do artigo
201, I, da Constituição Federal. Sabe-se que tal contingência é amparada no
seio da Previdência, uma das facetas da Seguridade Social.
A razão, para tanto, é simples: a idade avançada acarreta dificuldades de
inserção no mercado de trabalho, acarretando impossibilidade de exercício
da atividade laboral por questões impostas pela própria sociedade.

10 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciá-
rio. 23º edição. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 9.
11 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciá-
rio. 23º edição. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 69.
12 SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade Social e direitos fundamentais. 4ª edição.
Curitiba: Juruá, 2020, p.183 e 184.

68
Segurança jurídica, previsibilidade e proteção social

Estas ponderações parecem ter sido esquecidas pela Emenda Constitucio-


nal (EC) nº 103/2019, responsável por alterar substancialmente a Previdência
Social brasileira.
Sob a justificativa de evitar um colapso do sistema, de modo que não se pu-
desse mais fazer frente aos benefícios devidos aos segurados, o Governo Federal,
em conjunto com o Congresso Nacional, deu início ao processo reformador13.
Todavia, o ponto que se busca enfatizar neste trabalho é que tal reforma
não respeitou as limitações ao que o Estado deve se ater, tampouco está em
sintonia com as pretensões do constituinte.
Dentre os vários pontos que poderiam ser objeto de reflexão, por uma
questão metodológica, neste trabalho será abordado o artigo 29, da Emenda
Constitucional nº 103/2019, cuja redação vigente é a seguinte:

Art. 29. Até que entre em vigor lei que disponha sobre o § 14 do art.
195 da Constituição Federal, o segurado que, no somatório de remu-
nerações auferidas no período de 1 (um) mês, receber remuneração inferior
ao limite mínimo mensal do salário de contribuição poderá:
I − complementar a sua contribuição, de forma a alcançar o limite
mínimo exigido;
II − utilizar o valor da contribuição que exceder o limite mínimo de
contribuição de uma competência em outra; ou
III − agrupar contribuições inferiores ao limite mínimo de diferentes
competências, para aproveitamento em contribuições mínimas mensais.
Parágrafo único. Os ajustes de complementação ou agrupamento de
contribuições previstos nos incisos I, II e III do caput somente poderão ser
feitos ao longo do mesmo ano civil.

O artigo em comento, como se vê, regulamenta o §14, do artigo 195, da


Constituição Federal que dispõe que “o segurado somente terá reconhecida como
tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social a competência cuja
contribuição seja igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida para
a sua categoria, assegurado o agrupamento de contribuições”.
De plano, já se pode constatar que tal regra afeta de forma direta a figura
do empregado intermitente, prevista nos artigos 443, § 3º e 452-A, da CLT:

13 LAZZARI, João Batista. Comentários à reforma da previdência. Rio de Janeiro: Forense,


2020, p. 8 a 16.

69
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Art. 443, § 3o Considera-se como intermitente o contrato de trabalho


no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocor-
rendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inativi-
dade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo
de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas,
regidos por legislação própria.
Art. 452-A. O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por
escrito e deve conter especificamente o valor da hora de trabalho, que não
pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele devido aos
demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em
contrato intermitente ou não.
(...)
Conforme se extrai dos artigos supracitados, o contrato de trabalho
intermitente possibilita que o empregado receba abaixo do salário mínimo
nacional, visto que presta serviço de forma descontinuada, alternando períodos
ativos e inativos, e recebe pela hora trabalhada.
De acordo com Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari,
em sua obra Manual de Direito Previdenciário:
(...) o trabalhador em tal condição não terá remuneração, necessaria-
mente, em todos os meses do referido contrato, ou terá rendimento inferior
ao salário mínimo mensal. Ou seja, nos meses em que não prestar trabalho
não terá salário de contribuição, e, nos meses em que a retribuição pelos dias
trabalhados for inferior ao salário mínimo, também terá problemas quanto
à proteção previdenciária, em face do contido no § 14 do art. 195 da CF,
pela redação da EC n. 103/2019, pois pela previsão ali contida, de duvidosa
constitucionalidade, por violação do princípio da equidade da participação
no custeio os segurados nessa condição não poderá aproveitar o tempo de
contribuição sem o recolhimento da contribuição mínima mensal exigida
para cada categoria de segurado, assegurado o agrupamento de contribuições.
Então, em que pese ter um vínculo de emprego em pleno curso – e, por conse-
guinte, ser segurado obrigatório −, pode ficar até meses inteiros sem contribuir
e, em outros meses, ter rendimentos inferiores ao salário mínimo mensal14.

Como se vê, o dispositivo trazido pelo artigo § 14, do artigo 195, da


Constituição impede que o segurado que perceba abaixo do salário mínimo

14 LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira. Manual de Direito Previdenciário.
23ª ed. 2019, p. 124.

70
Segurança jurídica, previsibilidade e proteção social

em um determinado período, em razão de circunstâncias que fogem à sua


vontade, tenha computado aquele mês como tempo de contribuição.
Impede, portanto, que se tenha acesso à aposentadoria programada que,
como é cediço, exige idade mínima e tempo de contribuição. Todavia, o artigo
29, da Emenda Constitucional 103 permite que se reagrupe ou complemente
as contribuições que ficaram abaixo do mínimo previsto.
Despreza-se, portanto, a realidade fática e social de nosso país, especial-
mente em um momento econômico extremamente delicado em virtude da
propagação do coronavírus.
Os índices de desemprego estão crescendo substancialmente, além de o
Brasil apresentar um aumento dos trabalhos informais15. Questiona-se, assim,
se haverá incentivos ao trabalhador para que continue recolhendo a Previ-
dência Social ou, então, ao menos, complemente a quantia necessária para
que determinada competência seja contabilizada para fins previdenciários.
Neste contexto, intuitivamente, acredita-se que o agrupamento será a
medida mais buscada e não a complementação, eis que não representará um
dispêndio financeiro ao segurado e, sobretudo, pela limitação temporal trazida
pelo parágrafo único do artigo 29.
Na prática, esta conduta implicará em ainda mais tempo de trabalho
necessário para que o segurado submetido a essa espécie de contrato possa
obter o tempo exigido para fins de aposentadoria. Trata-se de regra que pode
ser questionada pelas limitações as quais o Estado está sujeito e pela segu-
rança jurídica.

3. CONSTITUIÇÃO, LIBERDADE E INTERPRETAÇÃO

A exorbitação de determinada norma constitucional, pode ser procedi-


da em nome de promoção de uma nobre finalidade: proteger o trabalhador
ou, então, evitar a corrosão do sistema previdenciário. Contudo, seja uma
violação a direito perpetrada por modo oculto, seja drástica ou sutil, ainda
assim haverá a ofensa.

15 Como pode ser observar em GLOBO. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noti-


cia/2019/08/30/trabalho-informal-avanca-para-413percent-da-populacao-ocupada-e-atinge-
-nivel-recorde-diz-ibge.ghtml> e UOL. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noti-
cias/estadao-conteudo/2020/02/15/informalidade-cresce-e-e-recorde-em-20-estados.htm>.

71
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Logo, por mais que não seja notada por quem lhe experimenta ou por
mais atraente que seja a proposta, há reflexos direitos ao indivíduo, que deve
ser considerado um sujeito de direito e não um simples objeto ou um meio
a serviço de outros fins.
Ser tratado como sujeito “[...] é ter a capacidade de ser autor da própria
identidade e da própria vida, agindo consciente e livremente para definir os
próprios desígnios e as próprias responsabilidades, com estas arcando intei-
ramente depois de agir”.16
A autonomia individual precisa ser efetiva e não uma mera pretensão
normativa. Assim, cumpre ao Estado respeitá-la e “[...] atuar para protegê-la,
adotando medidas adequadas e necessárias à sua promoção”.17 Isso porque
inexiste liberdade quando o indivíduo não tem a mínima condição de prever
as consequências que seus atos irão produzir.18
E a legalidade está atrelada a este ponto: por atingir o patrimônio indivi-
dual pelo Estado, a instituição de um tributo não pode decorrer do alvedrio
do sujeito ativo.19 Exige-se um controle pela sociedade, exercido pela legali-
dade, que configura, portanto, muito mais do que “mera exigência de lei em
sentido formal, é a consagração da prévia concordância dos representantes
da população às novas exigências fiscais”.20
A legalidade, neste sentido, possui um significado de aprovação: “visa
atender essencialmente a uma necessidade de controle para que os cidadãos
não sejam atingidos sem que, através do princípio representativo, tenham
‘concordado’ com a exigência pecuniária que lhes é feita”.21
Ao não conseguir controlar o poder público ou as suas ações, eis que
inexistindo lei, o indivíduo poderá exercer fato que, posteriormente, pode ser

16 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.


p. 11.
17 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 11.
18 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 13.
19 GRECO, Marco Aurélio. Contribuições: uma figura “sui generis”. São Paulo: Dialética, 2000.
p. 53.
20 GRECO, Marco Aurélio. Contribuições: uma figura “sui generis”. São Paulo: Dialética, 2000.
p. 53.
21 GRECO, Marco Aurélio. Contribuições: uma figura “sui generis”. São Paulo: Dialética, 2000.
p. 54.

72
Segurança jurídica, previsibilidade e proteção social

considerado como gerador de obrigação tributária ao gosto do Estado, deixa


a vida de decorrer de sua própria vontade e passa a depender de objetivos
externa e arbitrariamente impostos.22 É como Ávila bem exprime: “o plano
de desenhar com autonomia a própria vida e determinar livremente seu curso
começa, entretanto, a naufragar no exato momento em que se perde a capa-
cidade de tomar decisões bem-informadas e efetivas”.23
Para que haja liberdade e que o indivíduo seja tratado como sujeito
de direito e não um mero objeto ou um meio a serviço de outros fins, é
necessário o Estado de Direito. Vale dizer, “a liberdade deve ser exercida
com base no direito e dentro de seus limites”.24 Assim, não basta apenas
conhecer o direito: é necessário compreendê-lo. Ele deve ser claro e mi-
nimamente determinado.25 Nesta esteira, os dispositivos, especialmente
aqueles que restringem direitos fundamentais, devem possuir linguagem
compreensível para as pessoas, a fim de que estas entendam as palavras e
expressões empregadas pelo legislador.26
Em direito penal e tributário (ramo com o qual o direito previdenciário
se vincula quase que umbilicalmente), a premissa se acentua, “dada a restrição
aos direitos fundamentais de liberdade e de propriedade que sua incidência
provoca”.27
Mas não basta clareza e mínima determinação ao Direito, é indispensá-
vel estabilidade, recaindo importância à hierarquia das fontes.28 Isso porque
quanto maior for a importância da hierarquia das fontes, mais difícil será a
modificação do direito. Não que não possa ser modificado, mas quando isto
ocorrer, necessário se torna o cumprimento de um procedimento determinado.

22 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.


p. 13.
23 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 13
24 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 14.
25 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 14.
26 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019. p.
14-15.
27 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 15.
28 Como explica Ávila: “Ora. Um direito que é constantemente alterado, em suas previsões ou
em suas consequências, ao sabor das circunstancias do momento e dos interesses em jogo,
resulta incessível e incompreensível a seus destinatários” (Ibid., p. 15).

73
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Por fim, não deve o direito ser contraditório: para que alguém possa ter
condições de programar seu futuro e, de forma livre, determinar seu curso,
precisa compreender as regras e as consequências que suas medidas trarão.29
Se o direito dimensiona consequências ou qualifica fatos de forma contradi-
tória, o sujeito não tem condições de razoavelmente traçar seu futuro. Logo,
para que seja tratado como sujeito de direito, é essencial que as regras o
reconheçam como tal.30
Não há condições de preservação e promoção de uma vida livre e digna
sem que exista um Estado de Direito31: “o direito deve ser conhecido, com-
preendido, estável, não contraditório, igualitário, prospectivo e efetivo; deve
permitir ao indivíduo ter plena capacidade de viver o presente e conceber o
futuro com liberdade”.32 Somente assim será tratado como sujeito e não como
um fim, ou um objeto ou, ainda, como um meio a serviço de outros fins, por
melhores que estes possam ser.
A legalidade relaciona-se, também, com os ideais democráticos, pois
é a democracia que permite ao cidadão participar, diretamente ou por
representantes por ele escolhidos, da conformação do direito, o qual irá
limitar futuramente a sua liberdade.33 Assim, a legalidade reflete a ideia de
que haverá um dispositivo legal prévio que estabeleça proibições, que seja
devidamente editado, de modo a submeter o indivíduo ao império da lei e
não dos homens.34 Desta forma, quando a Constituição fala em legalidade,
não está “apenas” tratando de edição de uma lei, mas que a própria lei, “edi-
tada anteriormente à restrição, defina seu conteúdo”.35 Em outros termos,
o governo das leis e não dos homens, exige que o conteúdo da restrição de

29 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.


p. 16.
30 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 16.
31 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 19.
32 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 19
33 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 21.
34 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 21.
35 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
p. 21.

74
Segurança jurídica, previsibilidade e proteção social

direitos fundamentais seja expresso, prévio, claro. É uma garantia a partir


da participação democrática.36
Assim, ao prever que somente será criado ou majorado tributo por lei,
a Constituição não deixou espaço para analogias ou delegações: afastou a
possibilidade de autorizar a cobrança de exações tributárias por meio da soli-
dariedade, da capacidade contributiva ou da igualdade37. Possui a legalidade
duas funções38: garantista e instrumental. A primeira, inerente a uma ideia
de proteção do indivíduo, de assegurá-lo que não está sujeito à cobrança
de tributos de forma arbitrária. Já a função instrumental da legalidade im-
põe a realização de outros princípios a ela vinculados, tais como Estado de
Direito, segurança jurídica, princípio democrático, liberdade e igualdade.39
No próximo item, abordar-se-á a correlação com a segurança jurídica.

4. SEGURANÇA JURÍDICA E A APLICAÇÃO DE POSTULADOS


ECONÔMICOS

Ao se analisar a situação delimitada neste artigo, ou seja, o artigo 29, da


EC 103/2019 e como ele afeta as contribuições dos segurados, especialmente
do trabalhador intermitente, passa-se a se ponderar acerca dos possíveis efeitos
do dispositivo e como ele eventualmente atingirá os filiados do Regime Geral
de Previdência Social (RGPS).
Neste momento, se percebe a imprescindibilidade do ferramental da
ciência econômica. A economia deve ser encarada de forma complexa a fim
de que possa alcançar relevância prática e política. Por afetar diretamente as
decisões individuais e coletivas, seja em âmbito micro ou macroeconômico40,

36 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade,


liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 299.
37 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade,
liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 299.
38 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade,
liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 299.
39 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade,
liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 299.
40 A parte da economia cujas atenções são voltadas ao “funcionamento do mercado de pro-
dutos e do mercado de fatores produtivos” é denominada de macroeconomia. Em resumo,
atenta-se para o modo com que se formam os preços e como estes determinam a produção,

75
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

pode-se afirmar que o conhecimento econômico é essencial para compreensão


do “cimento da coesão social”.41
Vejamos como a matéria se relaciona no caso em apreço.
O Congresso Nacional, por meio da Emenda Constitucional nº 103/2019
pode comprometer significativamente uma parcela da população submetida
a uma realidade laboral distinta: a do trabalhador intermitente.
Em um momento como o atual, de recessão econômica mundial decor-
rente da pandemia do coronavírus, é bastante improvável que trabalhadores
que aufiram remuneração abaixo do mínimo venham a ter condições de
complementar suas contribuições, de modo a possibilitar que venham a ser
computadas e lhe garantam acesso à aposentadoria programada.
Tal premissa decorre do fato de que muitas famílias estão encontrando
dificuldades até mesmo para prover a própria subsistência, haja vista os cres-
centes números de desempregados.
Assim, com um orçamento mais enxuto, é de se refletir se estes indivíduos
irão dispender valores para complementar a contribuição previdenciária. Outro
cenário que deve ser considerado é o do contribuinte individual, que apesar
de dever recolher a previdência pelo simples fato de desenvolver atividade
remunerada (art. 11, da Lei 8.213/91), igualmente está enfrentando um maior
ônus com a queda de seus rendimentos e com a limitação que o COVID19
tem feito na atividade empresarial.
Caso estas hipóteses se confirmem, dois problemas imediatos se apre-
sentam.
O primeiro refere-se a queda do número de segurados e de contribuições
arrecadadas pelo RGPS. Aqui, o cenário é explicado pelos postulados da es-
cassez e da racionalidade.

repartição e consumo de bens. Ao transcender o horizonte de escolha dos indivíduos, a


macroeconomia analisa níveis de desemprego, inflação, produto interno bruto, recessões
a partir de suas manifestações, já consumidas, diferentemente da microeconomia, que
toma os fenômenos econômicos na base. Por conta disso, fala-se que a macroeconomia
“lida com valores agregados: o do conjunto total de bens e serviços que uma economia
nacional produz, ou seja, a oferta agregada, o total da despesa envolvida na aquisição e uso
desses bens e serviços, ou seja, a procura agregada” (ARAÚJO, Fernando. Introdução a
economia. Coimbra: Almedina, 2005. p. 59-60). Na microeconomia, o enfoque é dirigido
a escolha do agente.
41 ARAÚJO, Fernando. Introdução a economia. Coimbra: Almedina, 2005. p. 16.

76
Segurança jurídica, previsibilidade e proteção social

Sem escassez, não há porque economizar.42 É interessante observar que as


escolhas nada mais decorrem da insuficiência de bens e recursos disponíveis
para se atender a todas as necessidades.43 Portanto, é preciso fazer escolhas
boas e eficientes.44
Ademais, a racionalidade vincula-se à busca pela maximização da utilida-
de: dentre as alternativas que são colocadas ao agente, este optará por aquela
que lhe trouxer mais satisfação, bem-estar.45
Neste compasso o papel da economia não é de formular objetivos sociais,
mas sim de apontar e explicitar os custos e benefícios que as escolhas, em um
horizonte de opções, para que os indivíduos atinjam seus objetivos.46
No caso suscitado, em um ambiente de restrição financeira, a racionali-
dade indica que os indivíduos optarão por comprar suprimentos ou guardar
dinheiro ao invés de complementar a contribuição previdenciária.
O segundo efeito é o enfraquecimento do direito fundamental à previ-
dência, trazido no artigo 6º, da Constituição Federal. Não só isso. Acaba por
vulnerar o princípio do Estado de Bem estar Social trazido no artigo 3º da
Constituição Federal. Sem dúvida que alijar parcela da população do direi-
to à previdência acarreta aumento das desigualdades sociais, promoção da
marginalização e da pobreza, além de vulnerar a solidariedade imposta pela
Constituição Federal. De certo modo, o que fez a Emenda Constitucional, por
meio das regras em comento, foi impedir que justamente a população mais
necessitada seja amparada por um sistema que ela também ajudou a financiar
sem que tenha direito a qualquer contraprestação quando dela necessitar em
razão de sua idade avançada.
Observa-se, ainda, que os efeitos da reforma implementada pela EC nº
103/2019 são mais nefastos quando se leva em consideração a segurança jurídica.
A segurança jurídica pode ser traduzida como uma imposição de que o
Direito seja cognoscível, confiável e calculável. 47

42 ARAÚJO, Fernando. Introdução a economia. Coimbra: Almedina, 2005. p. 2-3.


43 ARAÚJO, Fernando. Introdução a economia. Coimbra: Almedina, 2005. p. 19.
44 ARAÚJO, Fernando. Introdução a economia. Coimbra: Almedina, 2005. p. 19.
45 GONÇALVES, Oksandro Osdival; BONAT, Alan Luiz. Análise econômica do direito, incen-
tivos fiscais e a redução das desigualdades regionais. Revista Jurídica da Presidência, v. 20,
p. 389, 2018.
46 ARAÚJO, Fernando. Introdução a economia. Coimbra: Almedina, 2005. p. 47.
47 ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 5ª ed., ver., atual. e ampl. – São Paulo:
Malheiros, 2019, p. 268.

77
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

A cognoscibilidade é a exigência de que o cidadão tenha conhecimento


formal e material acerca de uma determinada norma. Significa dizer que se
exige que ele conheça a regra que vai reger sua conduta por meio da publica-
ção daquela regra e que ela seja inteligível, permitindo que tenha acesso ao
seu conteúdo normativo.
Por sua vez, a confiabilidade exigida pelo princípio da segurança jurídica
impõe que o Direito seja minimamente estável, impedindo-se que cidadãos
sejam pegos de surpresa por mudanças normativas posteriores. É aqui, mais
precisamente, que entra a vedação da retroatividade.
E, por fim, a calculabilidade é uma exigência de que o cidadão tenha
a capacidade de prever os sentidos normativos possíveis a serem atribuídos
pelas autoridades competentes a um determinado texto, para que, assim,
possa exercer seu direito de liberdade de forma juridicamente orientada e
responsável.
No caso aqui analisado, o grande problema reside tanto nos elementos
de cognoscibilidade quanto na confiabilidade do sistema. Observe-se que,
antes do advento da Emenda Constitucional nº 103/2019, ainda que o em-
pregado auferisse abaixo do mínimo e, portanto, contribuísse abaixo, ainda
assim teria computado o tempo de contribuição. Portanto, no momento em
que exerceu seu labor conhecia tal regra e, por tais razões, deixou de com-
plementar sua contribuição pelo simples fato de que não haveria qualquer
razão prática para tanto.
Contudo, com o advento da nova regra, o tempo passado passa por ela
a ser regido, de modo que aquelas contribuições simplesmente de nada va-
lerão. Ou seja, o segurado é surpreendido pelo advento de uma nova norma
que passa a reger sua conduta no passado. Viola-se, de forma sorrateira o
seu direito de liberdade, pois não se tem mais como voltar no tempo e reali-
zar contribuições complementares. Até porque a própria regra do artigo 29
limita ao ano civil em que prestado o labor. Já no que tange ao elemento da
confiabilidade, veja-se que não houve qualquer possibilidade de adequação
das contribuições anteriores. O segurado confiava na adoção de determinada
norma e é surpreendido pelo advento de uma reforma que lhe excluiu da
previdência e que não lhe deu chance de adotar comportamento diverso para
que alterasse sua situação.
Ademais, a EC 103/2019 prevê expressamente a proteção do direito
adquirido apenas aos segurados que preencheram os requisitos para a obten-
ção de benefícios até data da sua promulgação, mesmo que o benefício seja
78
Segurança jurídica, previsibilidade e proteção social

solicitado em momento posterior à mudança. Entretanto, para aqueles que


não preencheram os requisitos em sua totalidade até o momento da alteração
legislativa, trata-se de mera expectativa de direito.
O Supremo Tribunal Federal48 inclusive já decidiu que inexiste direito
adquirido a regime jurídico previdenciário, visto que nas relações previden-
ciárias aplica-se o princípio do tempus regit actum. Sendo assim, a aplicação
retroativa da norma constitucional, viola legítimas expectativas criadas pelos
segurados, de modo que deve ser aplicada apenas de forma prospectiva.
Antes da EC 103, cabe ressaltar que houve a edição da Medida Provisó-
ria 808/2017, a qual esteve vigente do dia 14/11/2017 até 23/04/2018. Nesse
período, só era garantida a manutenção da qualidade de segurado do RGPS
e o cumprimento de carência para concessão de benefícios no contrato in-
termitente, ao trabalhador que complementasse (no mês) o recolhimento da

48 STF – ADI: 3104/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, 26.9.2007. EC 41/2003: Critérios de Apo-
sentadoria e Direito Adquirido O Tribunal, por maioria, julgou improcedente pedido for-
mulado em ação direta ajuizada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Pú-
blico − CONAMP contra o art. 2º e a expressão “8º”, contida no art. 10, ambos da Emenda
Constitucional 41/2003, que tratam dos critérios para a aposentadoria e revogam o art. 8º da
Emenda Constitucional 20/98. Salientando a consolidada jurisprudência da Corte no sen-
tido da inexistência de direito adquirido a regime jurídico previdenciário e da aplicação
do princípio tempus regit actum nas relações previdenciárias, entendeu-se não haver, no
caso, direito que pudesse se mostrar como adquirido antes de se cumprirem os requisitos
imprescindíveis à aposentadoria, cujo regime constitucional poderia vir a ser modificado.
Asseverou-se que apenas os servidores públicos que haviam preenchido os requisitos previs-
tos na EC 20/98, antes do advento da EC 41/2003, adquiriram o direito de aposentar-se de
acordo com as normas naquela previstas, conforme assegurado pelo art. 3º da EC 41/2003
(“Art. 3º É assegurada a concessão, a qualquer tempo, de aposentadoria aos servidores pú-
blicos, bem como pensão aos seus dependentes, que, até a data de publicação desta Emenda,
tenham cumprido todos os requisitos para obtenção desses benefícios, com base nos crité-
rios da legislação então vigente.”). Esclareceu-se que só se adquire o direito quando o seu
titular preenche todas as exigências previstas no ordenamento jurídico vigente, de modo
a habilitá-lo ao seu exercício, e que as normas previstas na EC 20/98 configurariam uma
possibilidade de virem os servidores a ter direito, se ainda não preenchidos os requisitos
nela exigidos antes do advento da EC 41/2003. Assim, considerou-se não haver óbice ao
constituinte reformador para alterar os critérios que ensejam o direito à aposentadoria por
meio de nova elaboração constitucional ou de fazê-las aplicar aos que ainda não atenderam
aos requisitos fixados pela norma constitucional. Vencidos os Ministros Carlos Britto, Marco
Aurélio e Celso de Mello, que julgavam o pleito procedente. Precedentes citados: ADI 3105/
DF e ADI 3128/DF (DJU de 18.2.2005); RE 269407 AgR/RS (DJU de 2.8.2002); RE 258570/
RS (DJU de19.4.2002); RE 382631 AgR/RS (DJU de 11.11.2005). ADI 3104/DF, rel. Min.
Cármen Lúcia, 26.9.2007. (ADI-3104)

79
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

diferença entre a remuneração recebida e o valor do salário mínimo mensal


ao INSS, caso o valor recebido fosse menor que o salário mínimo. A citada
medida provisória sequer foi submetida ao Congresso para aprovação, per-
dendo sua validade após decorrido o prazo legalmente previsto.
Logo, antes da edição da MP 808 e após a perda de sua validade, indepen-
dentemente do valor recebido no mês, ainda que abaixo do valor do salário
mínimo, era garantido ao empregado sob contrato intermitente a manutenção
da qualidade de segurado do RGPS e o cumprimento de carência para con-
cessão de benefícios, sem a necessidade de agrupamento ou complementação
das contribuições.
Desta forma, verifica-se que em nenhuma dessas modificações legislativas,
MP 808 ou EC 103, houve a previsão de uma regra de transição, gerando uma
grave violação a segurança jurídica desse empregado.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho buscou demonstrar que o Poder Constituinte Reformador,
ao editar a regra prevista no artigo 29, da Emenda Constitucional 103/2019,
olvidou-se de observar limites impostos pelo artigo 60, §4º, IV, da Consti-
tuição Federal.
Dentre esses limites, podemos citar o princípio da dignidade humana, o
qual é alcançado de acordo com o nível de satisfação de direitos fundamentais,
e o princípio da solidariedade, que traz a ideia de pacto intergeracional, em
que todos são responsáveis pelas contingências sociais que podem acometer
os membros de uma dada sociedade.
Como visto, o artigo 29 supracitado impede que o segurado que contri-
bua abaixo do salário mínimo tenha computado aquele mês como tempo de
contribuição, salvo na hipótese de agrupamento ou complementação. Logo,
tal dispositivo pode alijar uma parcela da população brasileira do acesso à pre-
vidência, especificamente aquela que recebe remuneração abaixo do mínimo,
o que se verifica, sem prejuízo de outras hipóteses, no caso do empregado
intermitente.
Por sua vez, verifica-se também violação à segurança jurídica, na me-
dida que acarreta desconsideração de todo um histórico de contribuições
que poderiam ter sido utilizadas pelo segurado, visto que contribuições,
que tenham sido recolhidas em valores inferiores, não poderão mais ser
aproveitadas para efeitos de tempo de contribuição, porquanto a regra do
80
Segurança jurídica, previsibilidade e proteção social

artigo 29 limita a oportunidade de complementação ao ano civil em que foi


prestado o labor, retirando assim a possibilidade desse segurado adequar-se
a nova regra para ter seu tempo contado. Logo, sequer foi oportunizado ao
segurado complementá-las, o que, mesmo que tivesse sido feito, do ponto de
vista fático seria inviável, pois, provavelmente, poucos teriam condições para
tanto. Não houve, portanto, em momento algum a previsão de uma regra de
transição, exigência do princípio da segurança jurídica, para esses segurados
que vinham contribuindo abaixo do mínimo.
Ademais, no que diz respeito ao direito à Previdência, como demons-
trado, os trabalhadores intermitentes, possivelmente, não terão tempo de
contribuição atingido, já que dificilmente terão condições de complementar
as contribuições vertidas, restando apenas a hipótese de agrupamento das
contribuições, o que implica mais tempo de contribuição para que esse se-
gurado complete o tempo exigido para se aposentar. Na prática, a depender
do tempo acrescido, em razão da ausência de possíveis condições econômicas
para a complementação, poderá haver, em última análise, a sua exclusão da
proteção previdenciária.
Vê-se, inclusive, que a Previdência que deveria servir, ademais, como fator
de distribuição de renda, ao menos nos moldes trazidos pelo Constituinte
de 1988, perde essa função, na medida em que aqueles que teriam maiores
condições de contribuir, no caso o empregador, são dispensados de efetuar a
complementação da contribuição. Transfere-se, contudo, ao hipossuficiente,
que raras vezes terá condições de completar as contribuições.
Por tais razões, considera-se que a norma contida na regra do artigo
29, da Emenda Constitucional 103/2019 padece de vícios que a inquinam
de inconstitucionalidade, tendo em vista a violação de garantias individuais
previstas na Constituição Federal de 1988.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Fernando. Introdução a economia. Coimbra: Almedina, 2005.


ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019
ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 5. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo:
Malheiros, 2019.
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previ-
denciário. 23ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020.

81
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

DANIEL MACHADO DA ROCHA. Comentários à lei de benefícios da previdência


social – 18 ed. São Paulo: Atlas, 2020.
GONÇALVES, Oksandro Osdival; BONAT, Alan Luiz. Análise econômica do direito,
incentivos fiscais e a redução das desigualdades regionais. Revista Jurídica da
Presidência, v. 20, p. 389, 2018.
GRECO, Marco Aurélio. Contribuições: uma figura “sui generis”. São Paulo: Dialética,
2000.
JOÃO BATISTA LAZZARI. Comentários à reforma da previdência. Rio de Janeiro: Fo-
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LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade,
liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018.
MAIA FILHO, Napoleão Nunes. Primazia dos direitos humanos na jurisdição previden-
ciária: teoria da decisão judicial no garantismo previdenciarista. 1. Ed. Curitiba:
Alteridade Editora, 2019.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional – 3ª ed. ver. E atual. – São
Paulo: Saraiva, 2008, p. 236 e 237.
SALAMA, Bruno Meyerhof. Análise econômica do direito. Enciclopédia jurídica da
PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz
Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campi-
longo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São
Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://
enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/41/edicao-1/analise-economica-do-direito
SAVARIS, José Antônio. Direitos fundamentais da pessoa humana: um diálogo latino-
-americano. Curitiba: Alteridade Editora, 2012.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio
de Janeiro: Forense, 2005.
SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade Social e direitos fundamentais. 4ª edição.
Curitiba: Juruá, 2020.

82
APOSENTADORIA
POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO:
O INÍCIO, O FIM E O MEIO

Arthur José Nascimento Barreto1


Emerson Costa Lemes2

“A letra “A” tem meu nome”


(Souza, Paulo Coelho e Seixas, Raul Santos in Gita)

Sumário: Introdução − 1. O início − 2. O fim − 3. O meio −4.


Conclusão − Referências.

INTRODUÇÃO

“Às vezes você me pergunta...”

A idade média durou do ano 476 D.C. ao ano 1473 D.C e, por conta do
seu fraco desenvolvimento científico-cultural que se abateu no continente

1 Pós-graduando em Direito Previdenciário. Pós-graduado em Direito Processual Civil. Pro-


fessor de graduação e em diversos programas de pós-graduação. Diretor de Marketing do
IBDP − Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário. Advogado.
2 Mestrando em Economia. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário. Perito con-
tábil. Professor em diversos programas de pós-graduação. Tesoureiro do IBDP − Institu-
to Brasileiro de Direito Previdenciário. 2º Tesoureiro da APEPAR − Associação de Peritos,
Avaliadores, Mediadores, Conciliadores, Árbitros, Intérpretes e Interventores do Paraná.
Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Prática Previdenciária. Autor de livros.
Contador.

83
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

europeu, tal período também é chamada de “idade das trevas”. Trata-se de


alcunha com caráter pejorativo. É que tal período é entremeado por épocas em
que houve vasto desenvolvimento cultural e científico: de um lado o período
romano; do outro tem como marco a renascença.
A construção da nomenclatura, como se pode perceber tem como foco o
ponto de vista de uma elite intelectual, pois, se o foco da análise da história
estivesse em cima dos trabalhadores, de certa a modificação da alcunha se
daria em outro momento.
Se o início da liberdade de pensamento, começa a se suceder no início do
século XV; a autonomia dos trabalhadores somente começa a se mostrar ainda
que minimamente noutro momento, podendo-se considerar que permanece-
ram em trevas até meados entre o fim do século XIX e o início do século XX.
É certo que muitos continuam nas trevas até hoje, estando a margem da
proteção trabalhista ou previdenciária. Porém, o que se busca neste momento
é delimitar qual seria o início. Durante o século XIX a proteção ao trabalho
começa tomar forma, e no início do século XX surge a proteção previdenciária.
A partir das medidas implantadas por Bismarck na Alemanha3, outros países
começam criar seus sistemas de proteção social, copiando a ideia germânica.
Luzes começam surgir para aqueles trabalhadores que, até então, tinham sua
velhice envolta em absolutas trevas: teriam subtraído de suas remunerações
um valor destinado a compor um caixa que, posteriormente, seria utilizado
para pagar seus benefícios protetivos.
É importante destacar que as revoltas dos trabalhadores começam ocorrer
exatamente neste período: o Luddismo (1811-1812), o Cartismo (décadas
de 1830 e 1840), e a disseminação das ideias de Karl Marx e seus seguidores
durante todo o século XIX.
De fato, o cenário construído por conta da revolução industrial eviden-
ciava um completo descaso com os trabalhadores. Contudo, a conjuntura
era ainda mais cruel para aqueles que, por conta própria não tinham mais
capacidade de assegurar o seu sustento por via da única forma o que o mundo

3 PASSOS, Fabio Luiz dos. Previdência Social e Sociedade pós-Industrial. Em 1883, coincidin-
do com um dos períodos de crise econômica referidos por Trindade, o Chanceler alemão Bismarck
promulgou leis claramente antissocialistas, ao mesmo tempo em que regulamentou os primeiros
seguros sociais profissionais para certos ramos de indústria, com o claro objetivo de conter a
evolução dos sindicatos e do movimento socialista, garantido a paz burguesa e a tranquilidade do
capital. p. 59.

84
Aposentadoria por tempo de contribuição

lhes proporcionava: por meio do trabalho. Para estes, não havia políticas de
proteção social.
Contudo, tanto aqueles que trabalhavam quando os que não poderiam
mais fazê-lo tinham algo em comum: a insegurança social, que os empurravam
à busca de direitos sociais. De acordo com Savaris e Rocha4,

A insegurança social consiste em o indivíduo estar à mercê de eventos


que comprometem sua capacidade de assegurar, por si próprio, sua inde-
pendência social. Com efeito, os chamados riscos sociais − como doença,
o acidente, o desemprego, a cessação de atividade em razão da idade, a
miséria daquele que não pode mais trabalhar – a colocam em questão o
pertencimento social do indivíduo que somente pode tirar odo seu salário
os meios de subsistência.

A insegurança era tamanha que gerava um cenário para mudanças mais


radicais. Ao perceber o crescimento destes movimentos laborais ameaçando
a tomada do poder então hegemônico, o qual repousava nas mãos da elite
burguesa detentora do capital, Estado e elite envidaram esforços para com-
bater tais movimentações. Quando se notou que a primeira medida adotada
(que se concentrava num combate ideológico-repressivo, com perseguição
e criminalização dos trabalhadores) se mostrou ineficiente, os governos
passaram a tomar as rédeas concedendo direitos mínimos aos trabalhadores,
desestimulando assim sua organização.
Nas palavras de Bismark “Por mais caro que pareça o seguro social, resulta
menos gravoso que os riscos de uma revolução”5.
Tal cenário se repetirá no Brasil décadas mais tarde, quando, para frear
o avanço de movimentos que demandam por direitos sociais, o Estado os ga-
rantirá por lei com o mesmo intuito: minar o desenvolvimento de revoltas e
revoluções oriundas dos trabalhadores. Porém, em terras tupiniquins, surgirá
um tipo específico de benefício, o qual não se alinha aos benefícios garantidos
pelo seguro social alemão, uma aposentadoria cujos requisitos desgarravam-se
da idade ou incapacidade.

4 ROCHA, Daniel Machado; SAVARIS, José Antônio. Curso de Direito Previdenciário. Curi-
tiba: Alteridade, 2014, p 22.
5 MORENO, Ruiz. Nuevo derecho de la seguridad social. Apud CASTRO, Carlos Alberto Pe-
reira de.; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. ed. 21. Rio de Janeiro,
2018, p. 42.

85
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

1. O INÍCIO

“Eu sou a luz das estrelas”

No Brasil, não foi diferente: foi-se atendendo minimamente aos anseios


dos trabalhadores que se buscou amenizar a risco de revoluções internas.
Dentre tais anseios, um meio de cobrir os riscos socais inerentes ao exercício
do trabalho: institui-se a previdência social pública no Brasil.
No campo do direito previdenciário, essa proteção social começa a acon-
tecer com certa efetividade em 1919, com a publicação da primeira lei de
acidentes do trabalho. Porém, considera-se que o marco inicial do desenvol-
vimento do direito previdenciário se deu em 1923 com o advento do Decreto
Legislativo nº 4.682. A chamada Lei Eloy Chaves – nome dado pois a iniciativa
da sua edição se deu pelo deputado federal paulista homônimo – aprovou a
criação do primeiro sistema previdenciário, com benefícios de aposentadoria
e pensão, destinada a trabalhadores das estradas de ferro.
O que motivou a proteção inicial justamente a estes trabalhadores? Há que
se considerar pelo menos dois fatores. O primeiro é o fato de que a atividade
mais importante em um país é o transporte de produtos; paralisando-se o
trânsito de mercadorias de um lugar a outro, paralisa-se todas as demais ativi-
dades; afinal, sem receber insumos básicos, não há atividade industrial; ainda
que haja fabricação, se os produtos fabricados não forem transportados, não
existe sua comercialização. O segundo é mencionado por Fábio dos Passos6:

Porém, é importante não esquecer também a existência de interesses


pessoais de Eloy Chaves na defesa dos direitos dos ferroviários, posto que o
deputado paulista era residente e empresário na cidade paulista de Jundiaí.
Conforme afirma VIEIRA, Hermes Pio, Eloy Chaves, Precursor da Previdência
Social no Brasil, p. 232, “Residindo a maioria dos funcionários da Cia Pau-
lista de Estrada de Ferro em Jundiaí e Itatiba, estas cidades se constituíam,
por isso mesmo, em seu reduto eleitoral por excelência”.

Assim, preocupou-se o deputado em manter seu reduto eleitoral, e ao


mesmo tempo evitar qualquer mobilização dos trabalhadores das estradas de

6 PASSOS, Fabio Luiz dos. Previdência Social e Sociedade pós-Industrial. Curitiba: Juruá,
2013, p. 68, nota de rodapé nº 115.

86
Aposentadoria por tempo de contribuição

ferro que pudesse prejudicar a economia nacional. Daí a escolha por se iniciar
a proteção social no Brasil por esta categoria.
Quanto à aposentadoria, tal lei previa:

Decreto nº 4.682/23, Art. 12. A aposentadoria ordinaria de que trata o


artigo antecedente compete:
a) completa, ao empregado ou operario que tenha prestado, pelo menos,
30 annos de serviço e tenha 50 annos de idade;
b) com 25 % de reducção, ao empregado ou operario que, tendo pres-
tado 30 annos de serviço, tenha menos de 50 annos de idade;
c) com tantos trinta avos quantos forem os annos de serviço até o maximo
de 30, ao empregado ou operario que, tendo 60 ou mais annos de idade,
tenha prestado 25 ou mais, até 30 annos de serviço.

Pode-se sintetizar a regra como sendo uma aposentadoria proporcional,


equivalente a 75% da média salarial, para trabalhadores que completassem 30
anos de serviço, mas não tivessem 50 anos de idade; aposentadoria integral
(100% da média salarial) para aqueles que atingissem os dois requisitos: 30
anos de serviço, e 50 anos de idade; ou ainda aposentadoria por idade para
aqueles que tivessem 60 anos de idade (ou mais), e tivessem trabalhado pelo
menos 25 anos. O nome dado ao benefício, como se vê no Decreto acima, foi
“aposentadoria ordinária”.
Embora a nomenclatura utilizada divirja daquela atribuída a aposenta-
doria que é objeto deste artigo, é inegável que, ao se afastar o requisito etário
para a concessão do benefício, mantendo-se um tempo mínimo de serviço,
se trataria de uma aposentadoria por tempo de contribuição.
Nos anos seguintes, outras categorias profissionais se organizaram,
criando suas caixas de pensões e aposentadorias com regras próprias de
contribuição e benefícios. Entre as décadas de 1930 e 1960 viu-se intenso
movimento de surgimento de novas caixas, bem como fusões de entidades
de atividades distintas para fortalecimento do sistema. Ainda no decorrer
da década de 1950 é apresentado pela Subcomissão de Seguro Social da Co-
missão Nacional de Bem-Estar Social do Ministério do Trabalho, Indústria
e Comércio, o Anteprojeto da Lei Orgânica da Previdência Social7. Apenas

7 É importante ressaltar que, para a elaboração dos cálculos atuariais que embasaram a pro-
posta, participaram os técnicos atuários das diversas caixas de aposentadorias e pensões até

87
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

oito anos depois, em 26.08.1960, é aprovada a Lei Orgânica da Previdência


Social (LOPS), sob nº 3.807, unificando sob uma única Lei todas as regras
de contribuições e benefícios de todas as Caixas de Aposentadorias e Pen-
sões até então criadas.
Diga-se que a redação original da LOPS não trata do benefício objeto
deste artigo, haja vista que impunha requisito etário para a concessão da
aposentadoria por tempo de serviço:

Art. 32. A aposentadoria por tempo de serviço será concedida ao


segurado que completar 30 (trinta) e 35 (trinta e cinco) anos de serviço,
respectivamente, com 80% (oitenta por cento) do “salário de benefício” no
primeiro caso, e, integralmente, no segundo.
§ 1º Em qualquer caso, exigir-se-á que o segurado tenha completado
55 (cinqüenta e cinco) anos de idade.
§ 2º O segurado que continuar em atividade após 30 (trinta) anos de
serviço terá assegurado a percepção da aposentadoria acrescida de mais 4%
(quatro por cento) do “salário de benefício” para cada grupo de 12 (doze)
contribuições mensais até o máximo de 20% (vinte por cento).

Contudo, pouco tempo depois, João Goulart atendeu aos anseios dos
sindicatos, afastando o requisito etário por meio de Lei nº 4.130, em 28 de
agosto de 1962.8 O cenário mais uma vez se repete: a fim de frear os ânimos
e impedir uma alteração brusca na hegemonia, um Estadista concedia direi-
tos sociais mínimos. A diferença é que, ao contrário do Chanceler de Ferro,
Goulart não tinha boa relação com a elite.
Ressalte que não era sem motivo que os trabalhadores buscavam afastar
tal requisito para a concessão da aposentadoria. É possível se dizer que o
benefício em questão era bastante elitista, pois, à época a expectativa de vida
do homem, era de 49,7 anos e da mulher 55,5 anos.9

então existentes, objetivando criar uma regra única, que atendesse a cada uma das institui-
ções representadas.
8 Tal supressão se dá pelos artigos 1º e 2º da referida Lei, os quais tinha a seguinte redação:
Art 1º Suprima-se o § 1º do artigo 32 da Lei nº 3.807, de 26 de agôsto de 1960. Art 2º No §
4º do mesmo artigo suprima-se a expressão “com a idade de 55 anos e”.
9 Conforme tabela de expectativa de vida do IBGE, visualizada no site: https://agenciadeno-
ticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/9490-em-
-2015-esperanca-de-vida-ao-nascer-era-de-75-5-anos

88
Aposentadoria por tempo de contribuição

Ao se exigir que o cumprimento dos requisitos idade e tempo de serviço,


na realidade, buscava-se resguardar o direito daqueles que não estavam ex-
postos a trabalhos pesado e tinha acesso meios de cuidar bem da sua saúde.
A partir de tal ambientação, é que se demonstra que a aposentadoria por
tempo de serviço veio a cobrir um risco social evidente, pois, ainda que hou-
vesse benefício que visasse atingir o risco social idade avançada, a cobertura
prevista no sistema se releva incoerente com a realidade dos trabalhadores.
Em outras palavras, a aposentadoria por tempo de serviço embora não tivesse
a cobertura de um risco em no nomen iuris, havia cobertura de risco social −
ao menos, naquele momento.
Trata-se de baila esse adendo, pois a aposentadoria por tempo de con-
tribuição sempre foi um benefício bastante atacado, havendo desde sempre
quem defendesse a sua extinção. Segundo Zambitte, tal postura “decorre de
conclusão de não ser este benefício tipicamente previdenciário, pois não há
qualquer risco social sendo protegido – o tempo de contribuição não traz
presunção de incapacidade para o trabalho”.10
Por outro, lado há quem entenda que a aposentadoria por tempo de
contribuição tenha a “velhice” por risco presumido e que tal “risco se con-
substanciaria no decurso do tempo, uma vez que a projeta efeitos diretos nos
organismos do trabalhador, causando-lhe paulatinamente a diminuição da
capacidade laboral”.11
Pois bem, a partir da comparação de entre as nomenclaturas apresentadas
pela Lei Eloy Chaves e pela LOPS, consegue-se ver que esta alterou nome do
benefício para “aposentadoria por tempo de serviço”. Fica claro que o objetivo
era valorizar o trabalho do segurado, o serviço prestado. Evidentemente tal
prestação resulta em contribuições ao sistema. Entretanto, o principal valor
foi dado à atividade laboral do trabalhador.
Em resumo, far-se-ia a média salarial prevista na Lei, e sobre esta seria
aplicado o coeficiente, que seria de 80% se o trabalhador contasse com 30
anos de serviço; 84% caso contasse com 31 anos de serviço; 88% aos 32 anos
de serviço. 92% no caso de contar 33 anos de serviço; 96% aos 34 anos de

10 IBRAHIM, Fábio Zambite. Curso de direito previdenciário. 20. ed. Rio de Janeiro: Impetus,
2015, 609.
11 HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito previdenciário. 11. ed. São Paulo: Quartier Latin,
2018, p. 276-277.

89
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

labor e, por fim, 100% se acumulasse 35 anos laborados. Havia, entretanto,


uma idade mínima para qualquer destas possibilidades de aposentadoria, que
era de 55 anos.
Como fora feita a unificação das regras entre os diversos institutos, o
governo militar não teve dificuldade de, em 1966, unificar todas as institui-
ções e caixas de previdência então existentes em uma autarquia federal de
nome Instituto Nacional de Previdência Social – INPS. Os trabalhadores dos
diversos institutos se tornam, automaticamente, servidores federais, vincu-
lados ao novo Instituto.
Este modelo de previdência foi passando por ajustes pontuais, sem perder
a essência, até 1988. Em 05.10.1988 foi promulgada a atual carta Magna que,
entre outros, traz uma nova forma de proteção social, sob o nome de Sistema
de Seguridade Social. Este reúne, sob um único guarda-chuva, a proteção
previdenciária, a assistência social e a saúde. Tais ações são financiadas por
uma gama de tributos, incidentes sobre a renda do trabalho, o faturamen-
to e a receita das empresas, o lucro, os concursos de prognósticos e, mais
recentemente, as importações. A mesma carta prometeu aos trabalhadores
que, em 30 meses, estaria implantado um novo sistema de previdência social
(ADCT, art. 59). Já dizia o Barão de Itararé12: “de onde menos se espera, daí
é que não sai nada”. Evidentemente, em 05.04.1991 não havia sequer sido
publicada a Lei que trataria do Plano de Benefícios e Custeio previstos na
Constituição. Apenas três meses depois tais leis (nºs 8.212 e 8.213, ambas de
24.07.1991) são publicadas, mas suas regulamentações e implantações ainda
levariam alguns meses.
Tal regramento previu uma aposentação (ainda por tempo de serviço)
proporcional pra mulheres que contassem com o mínimo de 25 anos de servi-
ço, e homens com o mínimo de 30 anos de labor; neste patamar mínimo tais
aposentadorias seriam de 70% da média salarial. Caso tais segurados perma-
necessem por mais tempo em atividade, antes de requerer aposentadoria, a
cada novo ano o percentual era acrescido de 6%, de forma a totalizar 100¨aos
30 anos para mulheres, e aos 35 anos para homens.
É de fundamental importância ressaltar que não há como se falar em pre-
vidência sem tratar, conjuntamente, da ciência atuarial. As equipes atuariais
do então INPS debruçaram-se sobre o texto constitucional recém aprovado,

12 Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, jornalista e escritor, pioneiro do humorismo


político brasileiro, se autoentitulou Barão de Itararé.

90
Aposentadoria por tempo de contribuição

para estudar normas, regras e possibilidades de concessão de benefícios em


conjunto com a necessidade de financiamento para o pagamento das pres-
tações. Entretanto, no início de 1990, assume a presidência da república
Fernando Affonso Collor de Mello que, em sua campanha, prometia “cassar
os marajás”. Uma de suas primeiras iniciativas foi extinguir o departamento
atuarial do INPS, por entender que este era composto por “marajás”. Não é
difícil perceber que as Leis nºs 8.212/91 e 8.213/91, aprovadas um ano depois,
careceram de cientificidade em suas formulações. Prova disto é que o sistema
continuou passando por reformulações e ajustes contínuos desde então, nos
mais diversos benefícios e serviços concedidos.
Em 29.11.1992 assume a presidência o então vice-presidente Itamar
Franco (Collor renunciara ante a possibilidade de impeachment, cujo processo
estava em andamento), encontrando o país mergulhado em uma de suas
piores crises econômico-financeiras. Consegue pacificar a maior parte das
correntes políticas, criando um grande esforço geral para resolver os proble-
mas da nação. Assim, em 1994, implanta o chamado “Plano Real”, que tinha
diversos objetivos, dentre os quais estabilizar a economia, criar uma moeda
forte, e reduzir o tamanho do Estado. Inicia-se, assim, um forte programa de
desestatização e, ao mesmo tempo, entre outras medidas, é apresentada ao
Congresso Nacional a PEC 33/95, tratando de reforma da previdência. Tal
PEC previa o retorno de uma idade mínima às aposentadorias por tempo de
serviço; previa também que, em lugar do tempo de serviço, dever-se-ia apurar
o efetivo tempo de contribuição dos segurados para obtenção de benefícios.
Esta PEC tramitou por três longos anos até que, em 15.12.1998, resultou na
aprovação da Emenda Constitucional nº 20/98.
Em que pese ter imposto o requisito de idade mínima para a aposen-
tadoria do servidor público13, tal Emenda não conseguiu estabelecer idade

13 A redação empregada ao artigo 40 pela EC 20/98 assim dispunha ““Art. 40 − Aos servidores
titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, in-
cluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contribu-
tivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste
artigo. § 1º − Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo
serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma do §
3º: [...] III − voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de efetivo
exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria,
observadas as seguintes condições: [...] a) sessenta anos de idade e trinta e cinco de contri-
buição, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher; b)

91
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

mínima para as aposentadorias do RGPS, restando possível que os segurados


não se utilizassem do requisito etário desde que completasse o tempo total de
contribuição14 (30 anos para mulheres, 35 anos para homens).
Caso o segurado desejasse se aposentar sem estes tempos mínimos, fica-
va sujeito a duas regras excludentes: idade mínima e o cumprimento de um
tempo adicional de contribuição (apelidado de pedágio).15 Destaque-se que
tal norma foi desenhada de maneira a perder a aplicabilidade com o passar
do tempo: o pedágio vai se tornando cada vez maior, sendo suplantado pela
concessão da aposentadoria apurada com o tempo total de contribuição.
Se o cenário político que se seguiu a aprovação da referida emendar não
dava abertura para alteração do texto constitucional, tinha-se a possibilida-
de de modificar os critérios de cálculo do benefício por meio de legislação
infraconstitucional.
Assim, em 26.11.1999 foi aprovada a Lei nº 9.876/99, fazendo uma mu-
dança sensível nos cálculos de benefícios. Em regra, tal norma não alterou
a forma de concessão das prestações previdenciárias; entretanto, mudou a
forma de se apurar o salário-de-benefício, base para o cálculo da renda devi-
da aos segurados. Esta base de cálculo passou a ser representada pela média
aritmética simples dos maiores salários de contribuição, correspondentes a
80% de todo o período contributivo decorrido a partir da competência julho
de 1994. Nas aposentadorias por tempo de contribuição, objeto de estudo
do presente artigo, esta média seria multiplicada pelo fator previdenciário

sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, com proven-
tos proporcionais ao tempo de contribuição.”
14 A partir de então, o benefício tem seu nome alterado de aposentadoria por tempo de serviço
para aposentadoria por tempo de contribuição. Desde então, passa-se a valorizar o tempo
efetivo de contribuição, e não mais apenas o tempo de serviço.
15 O pedágio encontrava-se previsto no art. 9º da EC 103/2019. Art. 9º − Observado o disposto
no art. 4º desta Emenda e ressalvado o direito de opção a aposentadoria pelas normas por ela
estabelecidas para o regime geral de previdência social, é assegurado o direito à aposentadoria
ao segurado que se tenha filiado ao regime geral de previdência social, até a data de publicação
desta Emenda, quando, cumulativamente, atender aos seguintes requisitos: (Revogado pela
Emenda Constitucional nº 103, de 2019) I − contar com cinqüenta e três anos de idade, se ho-
mem, e quarenta e oito anos de idade, se mulher; e I − contar com cinqüenta e três anos de idade,
se homem, e quarenta e oito anos de idade, se mulher; e II − contar tempo de contribuição igual,
no mínimo, à soma de: a) trinta e cinco anos, se homem, e trinta anos, se mulher; e b) um perío-
do adicional de contribuição equivalente a vinte por cento do tempo que, na data da publicação
desta Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea anterior.

92
Aposentadoria por tempo de contribuição

– fórmula pretensamente atuarial16, que coteja o tempo de contribuição, a


idade do segurado ao se aposentar, o valor médio das contribuições vertidas
e a expectativa de sobrevida do segurado após a concessão do benefício.
Ainda que aprovado por Lei, tal fator foi execrado pelos contribuintes, e
consequentemente por políticos. A despeito disso, continuou reinando pleno
até o ano de 2015 quando, através da Lei nº 13.183/15, aprovou-se uma regra
de substituição do fator por pontos, quando estes fossem mais vantajosos do
que aquele. Previu tal regra o afastamento do fator previdenciário quando o
segurado, somando sua idade ao tempo de contribuição, atingisse 95 pontos;
e a segurada, em idênticas condições, somasse 85. Estes pontos sofriam au-
mento bienal de um ponto; a partir de 31.12.2018, 31.12.2020, até que em
31.12.2026 atingissem 100 pontos para homens, e 90 pontos para mulheres.
Considerando um segurado que no ano de 2016 completasse 35 anos de
contribuição, e 58 anos de idade, ele teria naquela data 93 pontos (35 + 58).
Nestas condições, poderia se aposentar; entretanto, o fator previdenciário,
apurado em 0,7796, lhe reduziria o valor do benefício em aproximadamente
22%. Entretanto, caso contribuísse por mais um ano, em 2017 completaria
36 anos de contribuição, 59 anos de idade; estes dois valores somariam os 95
pontos (36 + 59) previstos na Lei, e assim ele poderia se aposentar sem sofrer
a redução trazida pelo fator previdenciário.
Esta regra foi aplicável até 12.11.2019, véspera da entrada em vigor da
Emenda Constitucional nº 103/19, pois com essa reforma da previdência tal
modalidade de aposentadoria voluntária que acompanhou a vida dos segurados
deixou de ter embasamento jurídico, atendendo então aos ensejos críticos
daqueles que afirmavam ser ela um benefício a desequilibrar as contas da
previdência social.

2. O FIM
“Eu sou o seu sacrifício”

Todas as mudanças implementadas no sistema de aposentadorias desde


1998 apontaram no sentido da postergação do momento da aposentadoria:

16 Apesar do viés atuarial, a fórmula foi desenvolvida pela economista Solange Paiva Vieira.
Ainda que competente em sua ciência, ela não é atuária, não podendo assim desenvolver
uma fórmula atuarial.

93
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

primeiro, tentou-se estabelecer uma idade mínima para as aposentadorias;


a seguir, estabeleceu-se uma regra de eliminação gradual da aposentadoria
proporcional; mais recentemente, com a promessa de aposentadoria sem
redutor (fator previdenciário), fez-se com que o segurado contribuísse por
mais tempo do que o mínimo exigido por lei.
Ainda assim não parecia ser suficientemente bom para o Estado – ou para
o mercado, às vezes estes dois gigantes se confundem. Então, vem a reforma
da previdência, apresentada sob forma da PEC nº 3/19, resultando na aprova-
ção da Emenda Constitucional nº 103/19. As justificativas que convenceram
os congressistas a aprovar tal reforma foram, predominantemente, baseadas
em estudos que trataram da longevidade do trabalhador brasileiro, usando a
suposta redução da taxa de natalidade17 como elemento propulsor de uma
futura bomba previdenciária: a existência de cada vez menos contribuintes e
mais aposentados levaria ao colapso financeiro do sistema de previdência. Um
falacioso déficit18 do sistema completou a argumentação necessária a con-
vencer os congressistas de que o sistema previdenciário precisava de reforma.
As mudanças introduzidas foram diversas, desde alterações nas contri-
buições dos trabalhadores até a cotização de pensão e redução de benefícios
recebidos simultaneamente, representando enorme retrocesso social, passando
pelas regras de cálculo da renda dos benefícios, tanto do Regime Geral de Pre-
vidência Social quanto do regime próprio de previdência social dos servidores
da União. Destaca-se a extinção da aposentadoria por tempo de contribuição
(que já fora aposentadoria por tempo de serviço). A partir de tal reforma, a
Constituição Federal passa a prever uma única aposentadoria aos 65 anos
de idade para homens, 62 anos de idade para mulheres e, transitoriamente,
a Emenda estabeleceu um tempo mínimo de contribuição de 20 anos para
homens e 15 anos para mulheres19. Assim, deixam de existir os benefícios

17 Ainda estranha tal ‘constatação’, à medida que, todo ano, continuam faltando vagas em cre-
ches e em escolas de ensino fundamental por todo o país, ainda que os governos municipais
e estaduais se esforcem na construção de novas salas de aula constantemente. Estivesse de
fato diminuindo a natalidade, haveria sobra de vagas em tais estabelecimentos.
18 Devidamente desmascarado e desmentido pela CPI da Previdência. Relatório final dispo-
nível em <http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/464c1458-f524-4d-
51-8bbd-eb8bb29d10cc>, acessado em 21.04.2020.
19 Emenda Constitucional nº 103, art. 19. Até que lei disponha sobre o tempo de contribuição
a que se refere o inciso I do § 7º do art. 201 da Constituição Federal, o segurado filiado ao
Regime Geral de Previdência Social após a data de entrada em vigor desta Emenda Constitu-

94
Aposentadoria por tempo de contribuição

aposentadoria por tempo de contribuição e aposentadoria por idade, para


existir uma única aposentadoria, denominada pelo Instituto Nacional do
Seguro Social como “aposentadoria programada”20.
Seria o benefício extinto um privilégio para os trabalhadores? A consi-
derar o cidadão que, aos 14 anos de idade ingressa no mercado de trabalho
na condição de aprendiz21, e trabalha continuamente os 35 anos previstos na
legislação anterior, este conseguiria sua jubilação antes dos 50 anos de idade;
sendo uma trabalhadora em idênticas condições, estaria aposentada antes de
completar 45 anos de idade. Mas, pergunta-se: quantos cidadãos conseguem
a proeza de não ficar desempregados nenhum dia de sua vida, durante toda
sua carreira profissional?
O Boletim Estatístico da Previdência Social do mês de outubro de 201922
(último mês de concessão de benefícios antes da reforma) mostra que, naquele
mês, foram concedidas 25.709 aposentadorias por tempo de contribuição para
homens, e 20.784 aposentadorias da mesma espécie para mulheres. Destas,
3.070 foram concedidas para homens com até 50 anos de idade; e apenas
645 para mulheres com até 45 anos de idade. Estes números mostram que
apenas 11,94% das aposentadorias concedidas a homens foram direito de
cidadãos que nunca ficaram desempregados; no caso das mulheres, o número
corresponde a míseros 3,1%. Estes números mostram o número ínfimo de
trabalhadores e trabalhadoras que, iniciando suas vidas laborais aos 14 anos
de idade, conseguiram se aposentar, respectivamente, 35 ou 30 anos após

cional será aposentado aos 62 (sessenta e dois) anos de idade, se mulher, 65 (sessenta e cin-
co) anos de idade, se homem, com 15 (quinze) anos de tempo de contribuição, se mulher, e
20(vinte) anos de tempo de contribuição, se homem.
20 Portaria ME/INSS nº 450, de 03.04.2020, Art. 2º Com a vigência da EC nº 103, de 2019,
as aposentadorias por idade e por tempo de contribuição foram substituídas por uma única
espécie, a aposentadoria programada, da qual derivam a aposentadoria especial e a aposen-
tadoria programada do professor.
21 Constituição Federal, art. 7º, XXXIII − proibição de trabalho noturno, perigoso ou insa-
lubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na
condição de aprendiz, a partir de quatorze anos;
22 O documento reúne em uma única categoria as aposentadorias por tempo de contribui-
ção, aposentadorias especiais e aposentadorias aos segurados com deficiência, demonstran-
do que os números aqui analisados podem ter resultados ainda menores. Disponível em
<http://sa.previdencia.gov.br/site/2019/12/Beps102019_trab_Final__PORTAL_atualizado.
pdf>, acesso em 22.04.2020.

95
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

o início do trabalho, sem interrupções. Do referido Boletim se extraem os


seguintes números:

Tabela – Quantidade de aposentadorias


por tempo de contribuição concedidas pelo INSS em out/19
Faixa Etária Homens % Mulheres % Soma %
até 45 526 2,05% 642 3,09% 1.168 2,51%
46 a 50 2.544 9,90% 5.440 26,17% 7.984 17,17%
51 a 55 8.763 34,09% 9.325 44,87% 18.088 38,90%
56 a 60 9.839 38,27% 5.013 24,12% 14.852 31,94%
61 a 65 3.895 15,15% 303 1,46% 4.198 9,03%
66 a 70 121 0,47% 52 0,25% 173 0,37%
acima de 70 21 0,08% 9 0,04% 30 0,06%
Total 25.709 100,00% 20.784 100,00% 46.493 100,00%

Fonte: Boletim Estatístico da Previdência Social, out/19, v. 33, n. 10, p. 14.


Elaboração: os autores.

Vê-se, nos números acima, que a faixa etária com maior quantidade
de aposentadorias por tempo concedidas para homens é a que compreende
idades entre 56 e 60 anos; para mulheres, de 51 a 55 anos (38,27% e 44,87%,
respectivamente). Poderiam estas aposentadorias ser consideradas precoces?
Se for considerado ainda que, de acordo com o mesmo Boletim, no mês de
outubro de 2019 foram concedidos 438.882 benefícios, e destes apenas 46.493
foram aposentadorias por tempo, conclui-se que apenas 10,59% de todas as
concessões foram nesta espécie. Em análise ainda mais restrita, considere-se
apenas as aposentadorias concedidas a homens que contassem com até 55
anos de idade, e mulheres até 50 anos de idade (de forma a contar apenas os
benefícios considerados precoces), concluímos que apenas 4,08% de todos
os benefícios concedidos pela Previdência Social naquele mês poderiam ser
considerados precoces23.

23 Fez-se uma flexibilização do conceito de benefícios precoces; neste ponto, aceita-se que a
pessoa tenha ingressado no mercado de trabalho até seis anos mais tarde do que a idade
mínima para tanto, ou que tenha tido até seis anos de desemprego em sua vida laboral pré-
-aposentadoria.

96
Aposentadoria por tempo de contribuição

De acordo com a PNAD contínua24, o IBGE afirma que no quarto trimestre


de 2019 o Brasil contava com 10,6% de desempregados, considerando pessoas
a partir de 14 anos de idade, totalizando 11,6 milhões de pessoas. Estas se
distribuem pelas seguintes faixas etárias: 912 mil, de 14 a 17 anos de idade;
3,6 milhões, de 18 a 24 anos de idade; 4 milhões, de 25 a 39 anos de idade;
2,6 milhões, de 40 a 59 anos de idade; e 338 mil com 60 anos ou mais. Estes
números mostram que muitos trabalhadores não conseguem permanecer
continuamente empregados; o desemprego assola a população, impedindo
que a maioria dos trabalhadores consiga aposentadorias por tempo de con-
tribuição, tanto que apenas 10,59% de todos os benefícios concedidos pela
previdência social em outubro de 2019 foram nesta espécie, e apenas 4,08%
foram considerados precoces, contando com curtos períodos de desemprego.
Os números mostram, portanto, que a aposentação por tempo de con-
tribuição, ainda que sem exigir uma idade mínima, não representa nenhum
privilégio, já que a maioria dos benefícios concedidos nesta espécie são para
trabalhadores com idades razoavelmente elevadas.

3. O MEIO
“Eu sou o amargo da vida”

As reformas constitucionais nas aposentadorias por tempo, quais sejam


as introduzidas pelas Emendas Constitucionais nºs 20/98 e 103/19, trouxeram
regras de transição, permitindo que o segurado filiado antes das referidas
Emendas tivesse acesso a sua jubilação com a aplicação de regras menos severas
do que as então implantadas. Nas palavras de Strazzi25, regra de transição “é
algo intermediário entre a regra antiga e a regra nova”.
A Emenda Constitucional nº 103/19 trouxe, para os segurados que já
estavam previamente inscritos no Regime Geral de Previdência Social, e que
pretendiam se aposentar por tempo de contribuição, mas ainda não com-

24 Disponível em <https://sidra.ibge.gov.br/tabela/4094>, acesso em 22.04.2020. Variáveis se-


lecionadas: Pessoas de 14 anos ou mais de idade, desocupadas na semana de referência (mil
pessoas); Brasil; 4º Trimestre de 2019; Grupo de idade.
25 STRAZZI, Alessandra Prata. Expectativa de Direito e as Regras de Transição da Reforma
da Previdência de 2019 no RGPS. In: ALENCAR, Hermes Arrais (Coord.). Reforma da
Previdência. Indaiatuba: Editora Foco, 2020, p. 146.

97
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

pletavam os requisitos necessários a tal benefício antes da reforma, quatro


amargas regras de transição – ou seja, quatro possibilidades de aposentadoria
com regras “em tese” menos rígidas do que as previstas no novo modelo cons-
titucional de aposentadorias. Relembre-se que a chamada Nova Previdência
prevê aposentadorias com idade mínima de 65 anos para homens, 62 anos
para mulheres, e tempo de contribuição mínimo respectivamente de 20 e 15
anos. A intenção das regras de transição é permitir ao segurado que se apo-
sente antes da idade mínima prevista no texto constitucional.
A primeira regra de transição apresentada no art. 15 da EC nº 103/19
prevê que o segurado tenha tempo mínimo de contribuição de 35 anos, se
homem, ou 30 anos, se mulher, e que na soma do tempo de contribuição
com a idade, totalizem o mínimo de 96 pontos, se homem, ou 86 pontos, se
mulher. Esta pontuação foi válida para o ano de publicação da Emenda; a
partir de 2020 estes números de pontos são acrescidos, anualmente, de um
ponto, de maneira a atingir, no ano de 2028, 105 pontos para homem, e no
ano de 2033 100 pontos para a mulher. Considere-se um segurado que, no
ano de 2020, completa 35 anos de contribuição, tendo 60 anos de idade; por
esta regra de transição terá apenas 95 pontos, porém em 2020 precisa ter 97.
No ano de 2021 ele somará 97 pontos; entretanto o texto exige 98 pontos
para homens naquele ano.
A segunda regra de transição está prevista no art. 16 da referida Emenda,
e à semelhança da primeira, exige o mesmo tempo mínimo de contribuição
de 35 anos para homens, e 30 anos para mulheres. Porém, diferentemente
daquela, em lugar de pontos exige uma idade mínima de 61 anos para homens
e 56 anos para mulheres no ano de 2019. A partir de 2020 estas idades vão
aumentando à razão de seis meses ao ano, de maneira a atingir, em 2027, 65
anos para homens; e em 2031, 62 anos para mulheres. Considerando nova-
mente o mesmo segurado que completa 35 anos de contribuição em 2020,
contando com 60 anos de idade, deveria por esta regra ter 61,5 anos; em 2021
ele completará 61 anos de idade, porém a regra lhe pedirá 62 anos.
A terceira regra, constante no artigo 17 da mesma EC nº 103/19, é restrita
àqueles segurados que, antes da promulgação da referida Emenda, contassem
com tempo mínimo de contribuição de 33 anos, se homem, ou 28 anos, se
mulher (ou seja, pelas regras anteriores à reforma, estavam a menos de dois
anos de completar o requisito mínimo para sua aposentadoria por tempo de
contribuição). Para estes estabeleceu-se uma exigência de tempo adicional
de contribuição (denominado popularmente de pedágio) equivalente a 50%
98
Aposentadoria por tempo de contribuição

do tempo que, em 13.11.2019, faltava para completar o tempo mínimo de 35


anos (homem), ou 30 anos (mulher). A ressalva, nesta regra, é que obriga-
toriamente será aplicado o fator previdenciário no cálculo do benefício a ser
concedido. Ressalte-se que esta é a única regra de transição que ainda exige a
apuração de referido fator. A considerar que tais segurados estavam a menos
de dois anos de sua aposentadoria, a previsão mais otimista é que tal regra
fosse extinta em até três anos após a aprovação da referida reforma; entretanto,
considerando o desemprego e as oscilações do mercado de trabalho, é possível
que muitos segurados necessitem mais tempo para completar tais requisitos,
vindo a se aposentar muitos anos depois do tempo aqui previsto. Considere-
-se uma segurada que contava, em 13.11.2019, com exatos 28 anos e dois
meses de contribuição – faltavam para se aposentar exatamente 22 meses. Por
esta regra de transição, deverá trabalhar, além dos 30 anos mínimos, mais 11
meses (22 meses x 50%). Seu tempo total de contribuição, ao se aposentar,
será de 30 anos e 11 meses de contribuição. Considere-se entretanto que,
em decorrência da pandemia da COVID-19, que assolou o mundo no ano de
2020, ela venha a ficar desempregada quando contava com exatos 28 anos
e seis meses de contribuição, permanecendo nesta condição por dois anos;
ao se reempregar, no anos de 2022, deverá contribuir por mais dois anos e
cinco meses até completar os 30 anos e 11 meses necessários para cumprir a
regra de transição. Desta forma, aposentar-se-á apenas no ano de 2025, seis
anos após a reforma.
O artigo 20 da EC nº 103/19 apresenta a quarta regra de transição. Esta
prevê, além dos tempos mínimos de contribuição iguais aos das transições
anteriormente citadas, um tempo adicional de contribuição igual ao tempo
que, em 13.11.2019, faltava para o segurado atingir o tempo mínimo até en-
tão exigido (pedágio de 100%). Prevê ainda que, na data da aposentadoria,
o segurado deverá contar com 60 anos de idade, se homem, ou 57 anos de
idade, se mulher. Estas idades são invariáveis; a variável da equação, aqui, é
o pedágio; quanto mais tempo faltava para o segurado se aposentar antes da
reforma, maior será o tempo adicional de contribuição. Considere-se uma
segurada que, em 13.11.2019, contava com 27 anos de contribuição, e 48
anos de idade; pela presente regra deverá contribuir, além dos 30 anos míni-
mos, por mais três anos (pedágio), perfazendo 33 anos de contribuição; ao
completar este tempo, terá 54 anos de idade – faltarão ainda três anos para
atingir a idade mínima de 57 anos aqui prevista.
Embora as normas constitucionais que garantiriam a aposentadoria por
tempo de contribuição tenham sido revogadas, não significa que não haverá
99
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

concessão de tal tipo de aposentadoria. Isso porque, havendo cumprido os


requisitos para a concessão de tal benefício aténs da entrada em vigor da EC
103/19, o segurando terá a aposentadoria por tempo de contribuição.
Trata-se do direito adquirido que, além de resguardado previsto no art.
5º, XXXVI da Constituição Federal26, tem norma específica no texto da EC
103/2019, uma vez que o art. 3º desta garante o respeito ao direito adquirido
na vigência das normas anteriores.

Art. 3º A concessão de aposentadoria ao servidor público federal vincu-


lado a regime próprio de previdência social e ao segurado do Regime Geral
de Previdência Social e de pensão por morte aos respectivos dependentes
será assegurada, a qualquer tempo, desde que tenham sido cumpridos os
requisitos para obtenção desses benefícios até a data de entrada em vigor
desta Emenda Constitucional, observados os critérios da legislação vigente
na data em que foram atendidos os requisitos para a concessão da aposen-
tadoria ou da pensão por morte.

Sobre direito adquirido, convém trazer a seguinte lição

Direito adquirido, em síntese, pode ser compreendido como o direito


subjetivo incorporado pelo titular em face do implemento dos requisitos
previstos em conformidade com a lei velha e cujo exercício permanece
garantido em face da lei nova (incluindo uma emenda constitucional).27

Quer dizer que, uma vez cumpridos os requisitos antes da reforma o


segurado terá como garantido o direito às regras previstas naquele tempo,
independentemente do que venha a acontecer. Trata-se de tema sumulado
pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se pode observar pelo enunciado
da súmula 359 que dispõe “ressalvada a revisão prevista em lei, os proventos
da inatividade regulam-se pela lei vigente ao tempo em que o militar, ou o
servidor civil, reuniu os requisitos necessários”. 28

26 “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art. 5º,
XXXXVI, CF).
27 CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista; KRAVCHYCHYN, Gisele Lemos;
ROCHA, Daniel Machado. Comentários à Reforma da Previdência. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2019, 60.
28 Cumpridos os requisitos, o segurando poderá gozar desse direito e suas benesses que lhes
são inerentes (fórmulas de cálculo) a qualquer tempo. Aqui, parafraseando Raul Seixas, ha-

100
Aposentadoria por tempo de contribuição

4. CONCLUSÃO
“Eu sou o início, o fim e o meio”

A aposentadoria por tempo de contribuição, que nasceu como aposen-


tadoria ordinária, em 1923, sendo posteriormente transformada em aposen-
tadoria por tempo de serviço, não mais existe. O benefício, juntamente com
a aposentadoria por idade, foi substituído pela aposentadoria programada,
que conta com regras extremamente severas de concessão. Estabeleceram-se
regras de transição como meio para que o segurado inscrito anteriormente
à referida reforma pudesse se aposentar com regras menos rígidas, mas não
menos amargas.
O Estado terá, no médio prazo, menor custo com a concessão e paga-
mento de benefícios previdenciários; este que é um dos maiores programas de
distribuição de renda do mundo, será tolhido em sua capilaridade, gerando
menor movimentação de recursos na economia.

REFERÊNCIAS
ALENCAR, Hermes Arrais (Coord.). Reforma da Previdência. Indaiatuba: Editora Foco,
2020.
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previ-
denciário. 21. ed. Rio de Janeiro, 2018.
CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista; KRAVCHYCHYN, Gisele Lemos;
ROCHA, Daniel Machado. Comentários à Reforma da Previdência. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 2019
HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito previdenciário. 11. ed. São Paulo: Quartier Latin,
2018.
IBRAHIM, Fábio Zambite. Curso de direito previdenciário. 20. ed. Rio de Janeiro: Im-
petus, 2015.
PASSOS, Fabio Luiz dos. Previdência Social e Sociedade pós-Industrial. Curitiba: Juruá,
2013.
ROCHA, Daniel Machado; SAVARIS, José Antônio. Curso de Direito Previdenciário.
Curitiba: Alteridade, 2014.

vendo carimbo dizendo que sim, “pode partir sem problema algum” (O Carimbador Maluco,
Raul Seixas).

101
A EVOLUÇÃO DAS PRIORIDADES NA
PROTEÇÃO SOCIAL BRASILEIRA AOS
BENEFÍCIOS POR INCAPACIDADE
DIANTE DAS ALTERAÇÕES TRAZIDAS
PELA EC 103/2019

Cristiane Miziara Mussi1


Carlos Vinicius Ribeiro Ferreira2

Resumo: O presente estudo visa a análise das prioridades na proteção


social brasileira aos benefícios por incapacidade diante das alterações
trazidas pela EC 103/2019. O tema se reveste de grande importância, por
trazer dados recentes da legislação previdenciária, com probabilidade
de impactos significativos nos benefícios por incapacidade temporária
e definitiva em virtude da EC 103/2019. Para tanto, o estudo foi de-
senvolvido por meio do método hipotético-dedutivo, com utilização
privilegiada da legislação, sem se abster do aproveitamento da doutrina.
Como principais resultados, verifica-se que ainda não houve impacto

1 Possui doutorado em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de São


Paulo (2007) e mestrado em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica de São Paulo (2004). É especialista em Direito do Consumidor pelo Centro Universi-
tário de Rio Preto − UNIRP (2002). É professora Associada na Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro − UFRRJ, em Nova Iguaçu. Líder do Grupo de Pesquisa DIALOGOS certi-
ficado pela UFRRJ. Chefe do DCJUR − Departamento de Ciências Jurídicas da UFRRJ − IM
− Nova Iguaçu. Integrante como membro fundadora da Academia Brasileira de Direito da
Seguridade Social − ABDSS, como coordenadora científica, ocupando a cadeira de número
8. Parecerista. Autora de obras jurídicas.
2 Advogado. Formado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Campus
Nova Iguaçu. É Mestrando em Direito do Trabalho e Previdenciário na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. É integrante do Grupo de Pesquisa DIALOGOS, certificado pela
UFRRJ, na linha Direito da Seguridade Social Brasileiro.

103
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

significativo no aumento da concessão de aposentadoria por incapaci-


dade permanente em detrimento do auxílio incapacidade temporária,
vez que no período apurado de janeiro de 2019 a fevereiro de 2020,
houve grande diminuição na concessão de benefício por incapacidade.
No entanto, vislumbra-se o direito do segurado ao melhor benefício e
ainda o direito de descarte de período contributivo prejudicial ao mesmo
no cálculo do benefício previdenciário.

Palavras-chave: reforma previdenciária; aposentadoria por incapaci-


dade permanente; auxílio por incapacidade temporária.

Abstract: The present study aims to analyze the priorities in the Brazi-
lian social protection to disability benefits in the face of the changes
brought about by EC 103/2019. The topic is of great importance,
as it brings recent data from the social security legislation, with the
probability of significant impacts on the benefits due to temporary
and permanent disability due to EC 103/2019. For that, the study was
developed through the hypothetical-deductive method, with privile-
ged use of the legislation, without refraining from using the doctrine.
As main results, it appears that there has not yet been a significant
impact on the increase in the granting of retirement due to permanent
disability to the detriment of the temporary disability aid, since in the
period determined from January 2019 to February 2020, there was a
great decrease in the granting of benefit for disability. However, there
is a glimpse of the insured person’s right to the best benefit and also
the right to dispose of a contributory period detrimental to the same
in the calculation of the social security benefit.
Keywords: pension reform; permanent disability retirement; tem-
porary disability aid.

Sumário: Introdução; 2 – Da “invalidez” à “incapacidade laborativa”:


um extrato da história da proteção social ao risco incapacidade no
regime previdenciário brasileiro; 3 – As diversas formas de incapaci-
dade; 3.1 Incapacidade laborativa total; 3.2 Incapacidade laborativa
temporária; 3.3 Incapacidade social; 3.4 Redução da capacidade
laborativa; 4 – A aposentadoria por incapacidade laborativa na legis-
lação previdenciária; 4.1 Legislação aplicável; 4.2 Requisitos para
a obtenção do benefício; 4.3 Valor do benefício; 5 A Aposentadoria
por incapacidade total laborativa e o auxílio por incapacidade tem-
porária à luz da EC 103/2019; 5.1 Alterações; 5.2 Impacto financeiro
na vida do segurado; 5.3 Facilitação ou aceleração das conversões
via administrativa do auxílio-doença em aposentadoria por invalidez
pós EC 103/2019?; 5.4 Possibilidade de opção pelo benefício mais
vantajoso?6 Conclusão; 7Referências.

104
A evolução das prioridades na proteção social brasileira aos benefícios por incapacidade

1. INTRODUÇÃO
O Estado, por meio da previdência social que compõe a tríade protetiva
do sistema de seguridade social (art. 194, CF/88), protege e ampara as situa-
ções de necessidade ocasionadas ao trabalhador, em virtude dos chamados
riscos sociais.
Dentre os riscos sociais protegidos pela previdência social, o presente
estudo tem por objetivo geral a análise da evolução das prioridades na pro-
teção social brasileira aos benefícios por incapacidade diante das alterações
trazidas pela EC 103/2019, conhecida como a nova previdência, publicada
no dia 13 de novembro de 2019.
Ao risco social denominado incapacidade laborativa, a previdência
direciona − após análise da perícia médica no Instituto Nacional do Seguro
Social – INSS, que constata a incapacidade laborativa ou a redução da capa-
cidade − um dos três benefícios destinados à esta proteção: a aposentadoria
por incapacidade permanente, o auxílio-doença ou o auxílio-acidente.
O aumento das relações precárias de trabalho, acrescidas do alto índice
no Brasil de acidente do trabalho e doenças ocupacionais, além de todo con-
texto de problemas sociais enfrentados pelo trabalhador brasileiro, fazem da
proteção ao risco social incapacidade laborativa de extrema importância na
seara brasileira.
Outrossim, o estado de calamidade pública em decorrência do coronaví-
rus evidenciou a importância de se ter um sistema previdenciário forte e com
ampla cobertura. Nesse sentido, fazemos referência às palavras de Armando de
Oliveira Assis, em referência ao cidadão: “O organismo social deve defendê-
-lo assim como o organismo humano mobiliza seus recursos para fazer face
à infecção que, embora localizada, o põe em perigo”3.
Adiante, Assis cita as palavras de Beveridge: “devemos considerar a
necessidade, a doença, a ignorância e a miséria como inimigos comuns de
todos, e não como inimigos com os quais cada um deva tentar concluir uma
paz em separado”4. Em complemento, ressaltamos: há muito tempo a socie-
dade não percebia com tanta veemência a importância do sistema protetivo
previdenciário para a existência da sociedade como um todo.

3 ASSIS, Armando de Oliveira. Em busca de uma concepção moderna de risco social (Revista
dos Industriários 18, de dezembro de 1950 – páginas 24 a 37). Revista de Direito Social 14.
Porto Alegre: Notadez Informação, v. 4, n. 14, mar./jun. 2004. pp. 158.
4 Ibidem, p. 158.

105
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Feito este introito, importa destacar que com a EC 103/2019 foram reali-
zadas de forma direta ou indireta algumas alterações afetas aos benefícios por
incapacidade, o que altera, em consequência, a sistemática de requerimento,
concessão e mensuração dos benefícios previdenciários.
Assim, é de extrema relevância a análise do tema proposto, vez que os
benefícios por incapacidade possuem uma importância que vai muito além do
valor recebido a título de benefício previdenciário para resguardar as pessoas
em situação de necessidade por incapacidade laborativa. Isso porque, a situação
de incapacidade laboral deixa o trabalhador em situação de vulnerabilidade
social, sendo de suma importância fazer com que o mesmo se sinta inserido
no contexto social.
Como metodologia, o estudo foi desenvolvido por meio do método
hipotético-dedutivo, com utilização privilegiada da legislação, sem se abster do
aproveitamento da doutrina. Não se pode deixar de lado a análise de hipóteses
levantadas de alteração na forma de concessão pela previdência social no que
tange aos benefícios por incapacidade, levantadas em virtude das alterações
trazidas pela EC 103/2019.
Daí questionar-se: haverá um aumento na concessão de benefícios por
incapacidade permanente, em virtude da alteração das regras de cálculo do
benefício, que o tornam menos oneroso à Previdência Social do que o benefício
por incapacidade temporária (auxílio-doença)? Os segurados que esperavam
pela conversão do auxílio-doença e aposentadoria por incapacidade permanente,
conseguirão a partir das alterações trazidas pela Emenda Constitucional 103
de 2019 com maior facilidade? Ou não haverá qualquer impacto significativo
na forma de concessão dos benefícios por incapacidade pelos peritos do INSS?

2. DA “INVALIDEZ” À “INCAPACIDADE LABORATIVA”:


UM EXTRATO DA HISTÓRIA DA PROTEÇÃO SOCIAL AO
RISCO INCAPACIDADE NO REGIME PREVIDENCIÁRIO
BRASILEIRO
Conceituar “risco social” não é tarefa fácil, por conter essa expressão
uma carga de envolvimento da sociedade e da economia, considerados em
múltiplos aspectos.
Risco advém da ideia de futuridade e incerteza do evento envolvido. É
um risco, que pode ou não acontecer, e carrega o engendramento social diante
das consequências que pode trazer aos indivíduos como atores sociais.
106
A evolução das prioridades na proteção social brasileira aos benefícios por incapacidade

No contexto laborativo, riscos como idade avançada, incapacidade la-


borativa, morte, reclusão, maternidade, preconizam situações de necessidade
que vão além do indivíduo isoladamente considerado.
A proteção insuficiente ou ineficaz dos chamados riscos sociais, leva a
situações tipificadas como problemas sociais, suportados por todos enquanto
sociedade. Daí a grande relevância do sistema de seguridade social, conjec-
turado no art. 194 da Constituição Federal de 1988, que prevê como tríade
protetiva dos riscos sociais a saúde, a assistência social e a previdência social.
Um indivíduo que perde sua capacidade laborativa no auge do seu de-
sempenho laboral produtivo e não tem sequer proteção previdenciária, soma
problemas sociais alarmantes. Restaria apenas à Assistência Social o resguardo
desse indivíduo, quando o mesmo não dispõe de condições de prover sua
manutenção digna e nem de ser provido por sua família. Daí a importância da
previdência social tutelar os riscos sociais, dentro os quais podemos citar o risco
social incapacidade laborativa, de relevante importância no contexto social.
Coube à previdência social à proteção aos riscos sociais que acometem
ou podem acometer os trabalhadores, segurados obrigatórios subscritos des-
ta maneira pela legislação previdência (Lei 8.212 e 8.213/91). Daí a grande
distinção no que diz respeito à Assistência Social, concedida ao necessitado
nos termos da Lei 8.742/1993, independentemente de contribuição direta
vertida à mesma (art. 203, CF/88).
Historicamente, observa-se que a Constituição de 1891 trouxe a expressão
“aposentadoria”. Estabeleceu em seu artigo 75 que “a aposentadoria só poderia
ser concedida aos funcionários públicos em caso de invalidez no serviço da
nação.” De forma ainda acanhada, referida Constituição trazia a previsão de
concessão desde benefício apenas para os funcionários públicos enquanto a
serviço da nação (acidente de trabalho).
A Lei Acidentária n. 3.724, de 15.1.1919 garantiu o pagamento de in-
denização com caráter obrigatório pelos empregadores em decorrência dos
acidentes do trabalho sofridos por seus empregados. A proteção ao risco
denominado “invalidez” era considerada, nesse cenário, como indenizatória.
Na sequência, a Lei Eloy Chaves (Decreto-lei nº 4.682, de 24.1.1923)
instituiu as Caixas de Aposentadorias e Pensões para os ferroviários.
De acordo com o artigo 13 deste Decreto-lei, com 10 (dez) anos de
ferrovia, o segurado teria direito a aposentadoria por invalidez, caso fosse
declarado física ou intelectualmente impossibilitado de continuar no exercício
107
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

de emprego ou de outro compatível com a sua atividade habitual ou preparo


intelectual. Para tanto, os trabalhadores recolhiam 3% sobre os salários e 1,5%
era recolhido pelos usuários de transporte. Não havia previsão de participação
do Estado no custeio.
A respeito da proteção ao risco social incapacidade laborativa, a Cons-
tituição de 1934 garantiu proteção ao trabalhador, mediante a instituição de
previdência para cobrir os eventos de invalidez e forma tríplice de custeio
(participação da União, empregador e empregado) (alínea “h”, do § 1º, do
artigo 121, CF/34).
Na mesma linha, a Constituição de 1937 assegurou a instituição de segu-
ros de velhice, de invalidez, de vida e para os casos de acidentes do trabalho
(artigo 137, alínea “m”).
A Constituição Federal de 1937, por sua vez, empregou a expressão
“seguro social”, em vez de previdência social. Ademais, estabeleceu “a insti-
tuição de seguros de velhice, de invalidez, de vida e para os casos de acidente
do trabalho” (art. 137, m).
A Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS) – Lei nº 3.807, de 26.8.1960
– marco histórico de grande relevância no contexto previdenciário, garantiu,
no artigo 27, a aposentadoria por invalidez ao segurado que, após 12 (doze)
contribuições mensais, estando ou não em gozo de auxílio-doença, fosse con-
siderado incapaz ou insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade
que lhe garantisse subsistência.
A Constituição de 1967 resguardou o direito à previdência social, me-
diante contribuição da União, do empregador e do empregado, para a proteção
da invalidez (artigo 158, inciso XVI).
A Constituição Federal de 1988, em sua redação original previu, no arti-
go 201, inciso I, que os planos de previdência social, mediante contribuição,
atenderão, nos termos da lei, a cobertura dos eventos de doença, invalidez,
morte, incluídos os resultantes de acidentes do trabalho, velhice e reclusão.
Em continuidade, a proteção ao risco social incapacidade laborativa
manteve-se com a publicação da Lei 8.213/91, que previu o benefício no art.
42 e seguintes.
A Emenda Constitucional 103 de 2019, deixou de utilizar a terminologia
“invalidez”, para fazer uso da expressão “incapacidade permanente” ao se
referir à antiga aposentadoria por invalidez.
108
A evolução das prioridades na proteção social brasileira aos benefícios por incapacidade

Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime


Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigató-
ria, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial,
e atenderá, na forma da lei, a: (Redação dada pela Emenda Constitucional
nº 103, de 2019)
I − cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente
para o trabalho e idade avançada; (Redação dada pela Emenda Constitu-
cional nº 103, de 2019)

A terminologia “incapacidade permanente” trazida pela EC 103 de 2019


parece mais adequada à proteção previdenciária às situações de incapacidade
laborativa sem prognóstico de cura.

3. AS DIVERSAS FORMAS DE INCAPACIDADE


A incapacidade laborativa pode se dar de diversas formas, seja em virtude
de um acidente de trabalho ou doença profissional, seja em decorrência de
doença comum.
O fato é que a incapacidade laborativa caracteriza-se ou de maneira total
e permanente ou total ou parcial e temporária e revela momento no qual o
trabalhador não tem condições de exercer sua atividade laboral. A extensão
da incapacidade e o tempo de duração, irão direcionar o perito do Instituto
Nacional do Seguro Social a conceder ao segurado da previdência o benefício
previdenciário devido.

3.1 Incapacidade laborativa total


O art. 42 da Lei 8.213/91 estabelece que a aposentadoria por invalidez
é concedida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença,
for considerado incapaz para o trabalho e insuscetível de reabilitação para o
exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto
permanecer nessa condição.
Na acepção de Mozart Victor Russomano aposentadoria por invalidez
é o benefício decorrente da incapacidade do segurado para o trabalho, sem
perspectiva de reabilitação para o exercício de atividade capaz de lhe assegurar
subsistência5.

5 RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis da Previdência Social.


2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p.135.

109
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Assim, ao se considerar uma incapacidade laborativa como sendo total,


quer significar que o segurado da previdência social não tem condições de
continuar desenvolvendo sua atividade e nem de ser reabilitado a outra função.
A princípio, não há perspectiva de cura, o que significa que o segurado
está inapto ao exercício de atividade laboral que lhe permita o ganho de sua
subsistência e mais: que não há prognóstico de cura.
Nesta circunstância, preenchidos os requisitos legais, deve ser concedida
a aposentadoria por invalidez.
Note-se que incapacidade laborativa não é sinônimo de deficiência. Nes-
ta, há condições laborativas, mas o exercício da atividade será desenvolvido
com maior dificuldade em virtude da deficiência em si e também em virtude
da dificuldade de se encontrar emprego compatível às limitações da pessoa
com deficiência. Em se tratando de pessoa com deficiência, a legislação prevê
proteção previdenciária por meio de aposentadoria com redução de tempo
de contribuição ou de idade, nos termos da Lei Complementar 142 de 2013.

3.2 Incapacidade laborativa temporária

A legislação previdenciária brasileira protege a incapacidade laborativa


temporária por meio do benefício auxílio-doença. Assim, o art. 59, caput,
da Lei 8.213/91 dispõe que “o auxílio-doença será devido ao segurado que,
havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta
Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual
por mais de 15 (quinze) dias consecutivos”.
Trata-se de benefício previdenciário concedido em virtude de incapacidade
laborativa total (ou parcial) e temporária, já que o prognóstico é de que haja
recuperação para a atividade habitual ou reabilitação para outra atividade. Não
sendo possível recuperação ou reabilitação, será devida aposentadoria por invali-
dez (incapacidade permanente) e não auxílio-doença (incapacidade temporária).
Cabe ao perito médico federal a verificação da incapacidade e se a mesma
possui ou não perspectiva de cura. A princípio, em regra, os benefícios por
incapacidade são concedidos como auxílio-doença, podendo ou não serem
convertidos à aposentadoria por incapacidade definitiva, conforme entendi-
mento do perito do INSS.
Desde o advento da Lei 8.213/91 − que deixou de trazer a previsão que
existia na LOPS (Lei Orgânica da Previdência Social) de 1960, de que após
110
A evolução das prioridades na proteção social brasileira aos benefícios por incapacidade

vinte e quatro meses recebendo auxílio-doença o mesmo deveria ser convertido


em aposentadoria por invalidez caso persistisse a incapacidade laborativa6
− usualmente o segurado somente obtém o reconhecimento da incapacidade
total no Judiciário.

3.3 Incapacidade social

A incapacidade dita social abranda o conceito tradicional de incapacidade


laborativa protegida pela previdência social. Seu conceito adveio diante da
imperiosa necessidade constatada especialmente ao longo das duas últimas
décadas, quando se notou a evolução da doutrina e jurisprudência brasileiras
no sentido de que ter alguma capacidade laborativa não quer significar neces-
sariamente que a pessoa tem condições de retornar ao mercado de trabalho.
A ideia para se analisar a existência ou não de incapacidade laborativa
social é combinar os seguintes elementos: ter alguma incapacidade labora-
tiva, ainda que não seja total, que somada à questões biológicas, psíquicas
e sociais do trabalhador, levam à conclusão da incapacidade de ganho por
parte do mesmo.
Tal fato se dá especialmente porque o contexto brasileiro nos revela pre-
conceitos em virtude da doença, idade, grau de escolaridade, dentre outros
fatores. Não houvessem estendido a possibilidade de ampliação do benefício
aposentadoria em virtude de incapacidade laborativa, quando diante de in-
capacidade social, ter-se-ia, por certo, o aumento da procura por benefícios
assistenciais, custeados por toda a sociedade, quando, na verdade, a proteção
deve ser realizada pela previdência social, quando diante de seus segurados.
A OMS (2001) ao criar a Classificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde (CIF), trouxe uma abordagem biopsicossocial para
integrar as dimensões da saúde.
Nesse diapasão, a incapacidade traz a confluência de fatores ligados à
deficiência, limitação no desenvolvimento de atividade, bem como as restri-
ções de participação do indivíduo junto à sociedade.

6 Art. 27, LOPS- Lei 3807 de 1960. A aposentadoria por invalidez será concedida ao segurado
que, após haver percebido auxílio-doença pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses, conti-
nuar, incapaz para o seu trabalho e não estiver habilitado para o exercício de outro, compa-
tível com as suas aptidões.

111
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Há, nesse modelo, a junção dos modelos médico e social, com a utilização
de uma abordagem biopsicossocial para se obter uma integração das várias
dimensões da saúde (biológica, individual e social)7.
Para Sanches-Ferreira; Lopes-dos-Santos e Augusto Santos8 a OMS, ao
incluir os fatores físicos, sociais e do meio a interagirem com as condições de
saúde, acaba admitindo a importância potencial da manipulação do ambiente
ao nível das atitudes, das condições físicas, das políticas legislativas e sociais.
O ambiente onde se vive é de grande importância nesse contexto.
A utilização de critério biopsicossocial decorreu de uma série de decisões
judiciais que ampliaram o conceito de incapacidade, o trazendo mais para o
contexto econômico-social. A precarização as relações de trabalho, somadas às
questões de dificuldade ao acesso à saúde e a discriminação social identificada
de diversas formas a trabalhadores acometidos de incapacidade laborativa,
ainda que parcial, levou o Judiciário a ampliar o conceito de proteção à in-
capacidade laborativa, para além de critérios estritamente ligados à saúde do
trabalhador, mas se considerando outros fatores que acabam por aniquilar
as chances de nova colocação do trabalhador com certa incapacidade laboral
no mercado de trabalho.
Por conseguinte, a jurisprudência tornou-se tranquila no sentido de
conceder benefício por incapacidade permanente ao segurado que, conforme
os aspectos socioeconômicos, culturais e profissionais, não apresente chances
reais de reingresso no mercado de trabalho. Para tanto, devem ser considera-
das não só a incapacidade laborativa existente, como também as condições
pessoais do indivíduo.
Fortalecendo esse entendimento, a Súmula 47, TNU estabelece que uma
vez reconhecida a incapacidade parcial para o trabalho, o juiz deve analisar as
condições pessoais e sociais do segurado para a concessão de aposentadoria
por invalidez.

7 SAMPAIO, Rosana Ferreira; LUZ, Madel Terezinha. Funcionalidade e incapacidade huma-


na: explorando o escopo da classificação internacional da Organização Mundial da Saúde.
Cad. Saúde Pública, vol. 25, n. 3, Rio de Janeiro, Mar. 2009. Disponível em: http://dx.doi.
org/10.1590/S0102-311X2009000300002. Acesso em: 02/05/2020.
8 SANCHES-FERREIRA; Manuela; LOPES-DOS-SANTOS, Pedro; SANTOS, Miguel Augusto.
A desconstrução do conceito de Deficiência Mental e a construção do conceito de Incapaci-
dade Intelectual: de uma perspectiva estática a uma perspectiva dinâmica da funcionalidade.
Revista Brasileira de Educação Especial, vol.18 n. 4 Marília Oct./Dec. 2012. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S1413-65382012000400002. Acesso em: 02/05/2020.

112
A evolução das prioridades na proteção social brasileira aos benefícios por incapacidade

Caminhando no mesmo sentido, a Súmula 78 da TNU determina que


“comprovado que o requerente de benefício é portador do vírus HIV, cabe
ao julgador verificar as condições pessoais, sociais, econômicas e culturais,
de forma a analisar a incapacidade em sentido amplo, em face da elevada
estigmatização social da doença”.
A ideia, seguramente, é a proteção do segurado que, acometido de cer-
ta incapacidade laborativa, vê-se privado de chances reais de reingresso no
mercado de trabalho, por dispor do que se denominou “incapacidade social”.

3.4 Redução da capacidade laborativa


Ainda na tentativa de estabelecer os critérios que diferenciam as formas
de incapacidade perante o regime geral previdência social brasileiro, cabe
mencionar a possibilidade de o segurado, em virtude de acidente de qual-
quer natureza ou causa, adquirir sequelas que impliquem em redução da
capacidade para o trabalho que habitualmente exercia, nos termos do art. 86
da Lei 8.213/91.
Nessa hipótese e preenchidos os requisitos legais, será concedido um
benefício (auxílio-acidente), como indenização, pago pela previdência social
ao segurado, que poderá continuar exercendo sua atividade laborativa.
Assim, diversamente do que ocorre com o auxílio-doença e a aposentado-
ria por invalidez que exigem a retirada do segurado do mercado de trabalho,
a redução da capacidade laborativa em virtude de acidente para a atividade
que o mesmo desenvolvia à época, permite a continuidade da atividade ou
de qualquer outra por parte do segurado da previdência social.

4. A APOSENTADORIA POR INCAPACIDADE LABORATIVA


NA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA
4.1 Legislação aplicável
A aposentadoria por incapacidade laborativa permanente, anteriormente
designada aposentadoria por invalidez, e o auxílio por incapacidade temporá-
ria, anteriormente designado auxílio-doença, têm sua previsão e regulamenta-
ção na Lei de Benefícios, Lei nº 8.213/1991, e no Regulamento da Previdência
Social, Decreto nº 3.048/1999. Preliminarmente, porém, à análise da legislação
que versa sobre sua concessão, importa conceituar os referidos benefícios.
113
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Nesse sentido, o auxílio por incapacidade temporária é previsto nos ter-


mos dos arts. 59 a 63 da Lei de Benefícios, dos arts. 71 a 80 do Regulamento,
bem como dos arts. 300 a 317 da Instrução Normativa 77/2015 do INSS, de
modo que sua forma de cálculo está prevista no art. 61 do RBPS.
Anteriormente à Reforma da Previdência realizada por meio da EC
103/2019, uma das alterações sofridas pelo auxílio na Lei nº 8.213/1991 foi
a sua suspensão e cessação para os beneficiários que fossem recolhidos à
prisão em regime fechado. A inclusão dos §§ 2º a 8º foi promovida pela Lei
nº 13.846/2019, derivada da Medida Provisória nº 871, prevendo que em
caso de prisão em regime fechado, o benefício seria suspenso por 60 dias e,
ultrapassado este prazo, haveria sua cessação
O art. 59, § 8º, dispõe que tem direito ao benefício auxílio-doença o
segurado que estiver em cumprimento de pena em regime aberto ou semia-
berto. Tal previsão traz à baila um questionamento sobre se a alteração de
regime antes de findo o prazo de 60 dias permitiria o restabelecimento do
benefício, a despeito de o art. 59, § 5º, prever expressamente sua reativação
em caso de soltura.
A aposentadoria por incapacidade permanente, por sua vez, é prevista
nos arts. 42 a 47 da Lei de Benefícios, nos arts. 43 a 49 do Regulamento de
Benefícios e nos arts. 213 a 224 da Instrução Normativa 77/2015 do INSS.
Alteração de destaque neste benefício sofrida antes da EC 103/2019 foi quanto
à isenção de nova convocação para aferição das condições que ensejaram a
concessão do benefício, nos termos do art.101 da Lei 8.213/91.
Ressalte-se que aos segurados que necessitarem de assistência permanente
de outra pessoa é garantido um adicional de 25% no valor da aposentadoria
por incapacidade permanente (art. 45 da Lei 8.213/91). O Superior Tribunal
de Justiça, em julgamento feito sob o rito dos Recursos Repetitivos, garantiu
a extensão desse adicional para as aposentadorias espontâneas, assunto que
foi discutido e defendido em estudo anterior9. O Tema, por ora, aguarda
julgamento no Supremo Tribunal Federal.

9 FERREIRA, Carlos Vinicius Ribeiro; MUSSI, Cristiane Miziara. A Possibilidade do Adicio-


nal de 25% por Grande Invalidez (Art. 45 da Lei no 8.213/91) Ser Conferido às Aposen-
tadorias Espontâneas: Aportes Principiológicos e Impactos na Seção Judiciária do Rio de
Janeiro. Revista Brasileira de Direito Previdenciário. Curitiba, v. 53, p. 26-58, out./nov.
2019.

114
A evolução das prioridades na proteção social brasileira aos benefícios por incapacidade

4.2 Requisitos para a obtenção do benefício


Os requisitos para a percepção dos benefícios por incapacidade perma-
nente ou temporária estão dispostos na Lei de Benefícios e no Regulamento:
a carência, a qualidade de segurado e a incapacidade, sendo este último requi-
sito o definidor de qual benefício deverá ser concedido ao segurado. Impede,
portanto, perpassar brevemente pelos requisitos elencados.
A qualidade de segurado, segundo Daniel Machado da Rocha10, é equi-
valente à filiação. O segurado filia-se à Previdência e adquire a qualidade de
segurado, consequentemente tendo de recolher contribuições. Enquanto
recolher as contribuições, além das regras concernentes ao período de graça,
o segurado manterá tal qualidade. A Lei de Benefícios dispõe que, em caso
de perda da qualidade de segurado, para recuperá-la, este deverá verter, a
partir da nova filiação, a metade do período de carência previsto do benefício
postulado, equivalente a 6 meses nos benefícios em questão, nos termos do
art. 27-A da Lei 8.213/91.
A carência, por sua vez, é o número mínimo de contribuições mensais
que deve verter o segurado para que tenha direito ao benefício, consideradas
a partir do primeiro dia dos meses de suas competências, conforme redação
expressa no art. 24 da lei 8.213/91
Nesse ínterim, para que o segurado tenha direito aos benefícios de auxílio
por incapacidade temporária ou aposentadoria por incapacidade permanente,
exige-se o cumprimento da carência de 12 contribuições mensais, à exceção
de tratar-se de acidente de qualquer natureza ou causa e de doença profissio-
nal ou do trabalho, bem como nos casos de segurado que, após filiar-se ao
RGPS, for acometido de alguma das doenças e afecções especificadas em lista
elaborada pelos Ministérios da Saúde e da Previdência Social11, nos termos
dos arts. 25, I; e 26, II, da Lei de Benefícios.
O terceiro e último critério é o da incapacidade laborativa que, já tendo
sido explorado em capítulo anterior, serão feitas breves considerações no
tocante às recentes mudanças que a estrutura pericial sofreu. Nesse sentido,

10 ROCHA, Daniel Machado da. Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. 16.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018. p. 106.
11 Tal lista, atualmente, encontra-se regulamentada no art. 151, da Lei nº 8.213/1991. Des-
taque-se, também, que o Ministério da Previdência Social deixou de existir em janeiro de
2019, passando a ser uma Secretaria inserta no Ministério da Economia.

115
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

a Lei nº 13.846/2020, derivada da MP 871, de 18 de janeiro de 2019, extin-


guiu o cargo de Perito Médico Previdenciário e instituiu o cargo de Perito
Médico Federal, deslocando sua estrutura para a competência do Ministério
da Economia, por meio da Subsecretaria de Perícia Médica Federal, à luz dos
Decretos 9.745 e 9.746/2020.
No tocante à incapacidade em si, com base numa interpretação grama-
tical dos arts. 42 e 59 da Lei de Benefícios, a diferença estaria na suscetibili-
dade de recuperação da capacidade pelo segurado, de forma que em sendo
possível, seria concedido o auxílio por incapacidade temporária; de outra
mão, a concessão, não havendo prognóstico de cura, é da aposentadoria por
incapacidade permanente.
Impende mencionar que, por conta do estado de calamidade pública
em decorrência da pandemia de COVID-19, a Lei nº 13.982/2020 permitiu
a antecipação de 1 salário mínimo mensal para os requerentes de auxílio-
-doença, mediante o cumprimento de carência e a apresentação de atestado
médico, regulamentada pela Portaria Conjunta nº 9.381/2020 do Ministério
da Economia e INSS.

4.3 Valor do benefício


A despeito de as regras de cálculo dos benefícios em comento terem sido
alteradas com o advento da EC 103/2020, considera-se de suma importância
apresentar as regras anteriores de cálculo, tendo em vista que será alvo do
próximo item uma análise do impacto financeiro na vida do segurado no
tocante à percepção dos benefícios.
O art. 61 da Lei nº 8.213/1991 dispõe que o auxílio por incapacidade
temporária consistirá numa renda mensal correspondente a 91% (noventa
e um por cento) do salário-de-benefício. Em se tratando da aposentadoria
por incapacidade permanente, o cálculo se fazia pela verificação do salário
de benefício, sendo anteriormente à EC 103/2019 a renda mensal inicial
correspondente a 100% deste salário. Após esse cálculo, se for o caso, será
acrescentado um adicional de 25% sobre a RMI, em caso de necessidade de
assistência permanente de outra pessoa.
O salário de benefício, por sua vez, até a EC 103/2019, era calculado a
partir de uma média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição
correspondentes a 80% (oitenta por cento) de todo o período contributivo em
se tratando dos benefícios discutidos, nos termos do art. 29, II, da referida Lei.
116
A evolução das prioridades na proteção social brasileira aos benefícios por incapacidade

Ressalte-se que ambos os benefícios (auxílio por incapacidade temporária e


aposentadoria por incapacidade permanente) têm o piso limitado ao salário
mínimo, nos termos do art. 33, da Lei de Benefícios.
Pontue-se que o auxílio por incapacidade temporária, em particular, tem
seu teto limitado à média aritmética simples dos últimos 12 (doze) salários-
-de-contribuição, inclusive em caso de remuneração variável, ou, se não
alcançado o número de 12 (doze), a média aritmética simples dos salários-
-de-contribuição existentes, conforme art. 29, § 10º, da Lei 8.213/1991.
Tal questão, porém, denominada limitador externo da renda mensal ini-
cial, suscitou dúvidas quanto à continuidade de sua aplicabilidade, tendo em
vista que, conforme será demonstrado neste estudo, o art. 26, caput, da EC
103/2019 estabeleceu que o período básico de cálculo compreenderia 100%
dos salários de contribuição. A interpretação do INSS, porém, é a de que o
art. 29, § 10º, da Lei de Benefícios, foi perfeitamente recepcionado pela EC
103/2019, tendo em vista a parte final do item 3.5.1.1 do Ofício SEI Circular
nº 064/2019/DIRBEN/INSS, que afirma não ter havido, in verbis: “alteração na
regra de cálculo da RMI exceto, como visto, quanto à composição do PBC”.
Restará ao Judiciário conferir a interpretação adequada ao dispositivo.

5. A APOSENTADORIA POR INCAPACIDADE TOTAL


LABORATIVA E O AUXÍLIO INCAPACIDADE TEMPORÁRIA
À LUZ DA EC 103/2019
5.1 Alterações
Das alterações trazidas pela EC 103/2019, a que primeiro chamou atenção
e é questionada, foi a promovida no art. 201, I, da Constituição. O inciso,
que anteriormente previa a cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte
e idade avançada, passou a prever a cobertura dos eventos de incapacidade
temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada.
Conforme leciona Ivan Kertzman12, o antigo texto era alvo de algumas
críticas devido à previsão da cobertura do evento doença, vez que esta, por si
só, não gera necessariamente incapacidade, justificando-se assim a troca do
vocábulo “doença” pela expressão “incapacidade temporária ou permanente”.

12 KERTZMAN, Ivan. Curso Prático de Direito Previdenciário. 18 ed. rev., ampl. e atual. Sal-
vador: Ed. Juspodivm, 2020, p. 516-517.

117
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Há, porém, uma crítica nesta alteração, tendo em vista o legislador cons-
titucional ter incluído o termo “para o trabalho” no inciso I. Kertzman afirma
que a crítica de autores se dá devido ao precedente aberto por esta alteração,
de modo que, em uma grande alteração da lei previdenciária com o fito de
deixá-la conforme a EC 103/2019, este termo poderia justificar a exclusão do
direito do segurado facultativo à percepção dos benefícios.
No tocante às regras de concessão dos benefícios, não foram promovi-
das alterações por parte da EC 103/2019, passando-se à análise do impacto
financeiro na vida do segurado doravante.

5.2 Impacto financeiro na vida do segurado

A EC 103/2020 alterou significativamente as regras de cálculo de todos


os benefícios, seja diretamente, seja indiretamente. Isto porque, quando não
houve alteração na forma de cálculo do benefício em si, a nova forma de
cálculo do salário de benefício trouxe tal mudança, nos termos do art. 26 da
referida Emenda.
Nesse sentido, dispõe o art. 26:

Art. 26. Até que lei discipline o cálculo dos benefícios do regime próprio
de previdência social da União e do Regime Geral de Previdência Social,
será utilizada a média aritmética simples dos salários de contribuição e das
remunerações adotados como base para contribuições a regime próprio
de previdência social e ao Regime Geral de Previdência Social, ou como
base para contribuições decorrentes das atividades militares de que tratam
os arts. 42 e 142 da Constituição Federal, atualizados monetariamente,
correspondentes a 100% (cem por cento) do período contributivo desde a
competência julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se posterior
àquela competência.

Assim, o descarte das 20% menores contribuições, disposto pela Lei nº


9.876/1999, não se manteve pelas regras da Reforma da Previdência promovi-
da pela EC 103/2019, passando a ser utilizado 100% do período contributivo
para fins de cálculo do salário-de-benefício, limitando-se ao valor máximo do
salário de contribuição do RGPS. Importa tratar, porém, do art. 26, § 6º, da
EC 103/2019, que dispõe que poderão ser excluídas da média as contribuições
que resultem em redução do valor do benefício, desde que mantido o tempo
118
A evolução das prioridades na proteção social brasileira aos benefícios por incapacidade

mínimo de contribuição exigido, vedada a utilização do tempo excluído para


qualquer finalidade.
Esses dois dispositivos, a priori, podem parecer de certa forma contradi-
tórios, devido ao fim do descarte por um e a previsão de exclusão por outro.
Uma análise mais atenta permite observar que se prestam a fins distintos.
No caso do descarte que era previsto, tais salários de contribuição não eram
retirados definitivamente do segurado, sendo apenas desconsiderados para
fins de cálculo.
Há de se fazer um parêntese no tocante à exclusão de contribuições que
resultem em redução do valor do benefício. Nos termos da Portaria nº 450,
de 3 de abril de 2020, do INSS, especificamente no art. 37, caput, tal exclusão
somente seria aplicada em se tratando das aposentadorias programáveis. O
art. 5º, caput, por sua vez, afirma categoricamente ser a aposentadoria por
incapacidade permanente uma espécie não-programável.
Frederico Amado13 entende que tal exclusão seria aplicada, também, à
aposentadoria por incapacidade permanente, desde que a data de início da
incapacidade (DII) seja posterior à publicação da EC 103/2019. Entende da
mesma forma João Batista Lazzari14, que destaca, inclusive, que tal regra po-
derá gerar situações inusitadas, tendo em vista o prazo de carência ser de 12
meses, defendendo prevalecer a referida regra em relação à redação do art.
29, § 10º, da Lei de Benefícios.
No caso da exclusão prevista no art. 26, § 6º, entendemos, acompanhando
os referidos autores, que é perfeitamente aplicável aos benefícios por incapa-
cidade. Destaca-se, porém, que tal possibilidade de exclusão somente poderia
ser facultada ao segurado se este, sendo homem, já contasse com no mínimo
20 anos de contribuição, ou, sendo mulher, contasse com no mínimo 15 anos
de contribuição, termos em que a exclusão seria procedida nas contribuições
realizadas além deste mínimo, evitando-se eventual prejuízo futuro no ato
de requerimento de uma aposentadoria por idade. Pontue-se que o limite
defendido não se aplica às hipóteses de isenção previstas no art. 101, § 1º,
da Lei de Benefícios.

13 AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 12ª edição rev. atual. e
ampl. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 575.
14 LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; ROCHA, Daniel Machado da;
KRAVCHYCHYN, Gisele. Comentários à reforma da previdência. Rio de Janeiro: Forense,
2020, p. 98.

119
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Assim, se um segurado possuir 23 anos de contribuição, sendo 19


anos de contribuição sobre o salário de R$ 4.000,00 (quatro mil reais) e
4 anos de contribuição sobre o salário de R$ 1.000,00 (mil reais), e vir a
receber aposentadoria por incapacidade temporária, poderá ver excluído
do cálculo o período de 3 anos em que contribuiu sobre o salário de R$
1.000,00 (mil reais). Desta maneira, estes 3 anos em que operou a exclusão
não terão o condão de impedir uma possível aposentadoria por idade no
futuro.
Desta forma, a aposentadoria por incapacidade permanente no exemplo
supramencionado teria o valor de R$ 2.310,00 (dois mil trezentos e dez
reais) se fosse operada a exclusão de 3 anos de contribuição sobre o salário
de R$ 1.000,00 (mil reais); do contrário, considerando-se os 23 anos de
contribuição e aplicando-se a alíquota de 66% sobre o salário de benefício,
o valor do benefício seria de aproximadamente R$ 2.087,00 (dois mil e
oitenta e sete reais).
Claro que, em se tratando de um segurado ou segurada já em idade mais
avançada que antes de completar os requisitos aposentadoria por idade vier a
ficar incapacitado ou incapacitada para o trabalho, será importante se consi-
derar, inclusive, a possibilidade de descarte de contribuições que superem o
tempo de carência do benefício, vez que após os 60 (sessenta) anos de idade,
o aposentado por invalidez está isento de se submeter à perícia e dificilmente
esse segurado irá precisar do período contributivo para uma aposentadoria
por idade.
Quanto a especificamente o valor dos benefícios por incapacidade, tem-
-se que a regra de cálculo do auxílio por incapacidade temporária não foi
alterada, de modo que seu valor final somente veio a sofrer alteração devido
às mudanças nas regras de cálculo do salário de benefício. Assim, analisa-
remos doravante as alterações no tocante ao cálculo da aposentadoria por
incapacidade permanente.
Nos termos do art. 26, § 2º, III, da EC 103/2019, o valor do benefício da
aposentadoria corresponderá a 60% (sessenta por cento) da média aritmética
já tratada acima, com acréscimo de 2% para cada ano de contribuição que
exceder o tempo de 20 anos de contribuição, sendo homem, e 15 anos de
contribuição, se mulher.
De maneira mais otimista, pode-se afirmar que tal dispositivo traz a
possibilidade de que o segurado incapacitado de modo permanente e que
120
A evolução das prioridades na proteção social brasileira aos benefícios por incapacidade

possua mais de 40 anos de tempo de contribuição poderá fazer jus a uma


aposentadoria por incapacidade permanente que ultrapasse 100% da média
de salários desde o plano real, em julho de 1994. Assim, um segurado com
45 anos de contribuição teria direito a 110% da média, respeitado o teto do
Regime Geral de Previdência Social.
Considera-se a constatação otimista porque, com base nos dados expostos
no relatório “Análise da Seguridade Social em 2017”, da Associação Nacional
dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), tem-se que do total
de trabalhadores segurados, 42% apresentam nove ou menos contribuições
por ano, apresentando em média 4,9 contribuições anuais. Nesse ínterim,
com base nesses dados, para que os segurados que integram essa faixa de 42%
ultrapassassem os 40 anos de contribuição e, consequentemente, a alíquota
de 100%, teriam de contribuir por mais de 80 anos.
A incoerência desta mudança de cálculo se revela quando analisado
um caso concreto. Considere-se um segurado homem que, tendo contri-
buído por 12 anos no valor de R$2.000,00 (dois mil reais), é acometido
de incapacidade sem prognóstico de cura, com necessidade de assistência
permanente de outra pessoa, requerendo o referido benefício e seu adi-
cional ao INSS. Sendo o salário-de-benefício o valor de R$2.000,00 (dois
mil reais), aplicando-lhe a alíquota de 60% e, logo em seguida, a alíquota
adicional de 25%, o segurado teria direito a um benefício de R$1.500,00
(mil e quinhentos reais).
Se fosse verificada pela perícia administrativa ou judicial, porém, a exis-
tência de incapacidade temporária, o segurado teria direito ao benefício de
auxílio por incapacidade temporária, de modo que, aplicando-se a alíquota de
91% sobre o salário de benefício, o segurado receberia o valor de R$1.820,00
(mil oitocentos e vinte reais).
Para que um segurado pudesse receber a mesma alíquota do benefício
de auxílio por incapacidade temporária, precisaria contribuir por 23 anos,
contando com o adicional de 25%. Caso contrário, o segurado homem so-
mente ultrapassaria a alíquota do referido auxílio se contribuísse por 36 anos,
enquanto as seguradas mulheres deveriam contribuir por 31 anos;
A incoerência demonstra-se em verificar que um segurado com inca-
pacidade laborativa sem perspectiva de cura receberia uma proteção social
menor do que quem, em tese, precisaria menos, por ter sido diagnosticado
com uma incapacidade temporária.
121
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

5.3 Facilitação ou aceleração das conversões via


administrativa do auxílio-doença em aposentadoria por
invalidez pós EC 103/2019?
Ao se deparar com tal latente diferença nos valores percebidos a depen-
der do benefício concedido, pairou a preocupação quanto à possibilidade
de, a partir da reforma previdenciária promovida pela EC 103/2019, haver
uma tendência maior da perícia da Previdência Social à concessão de apo-
sentadorias por incapacidade permanente, sendo o auxílio por incapacidade
temporária menos prestigiado devido à sua alíquota para cálculo do valor
do benefício.
A partir de tal questionamento, foi solicitado ao INSS, por meio da
Lei de Acesso à informação, protocolos de nº 03006.002818/2020-57 e
03006.007741/2020-10, dados relativos às concessões de aposentadoria por
invalidez (ora incapacidade permanente) e auxílio-doença (ora incapacidade
temporária), discriminando-se o tipo de benefício, data de entrada do reque-
rimento (DER), data de despacho do benefício (DDB), despacho, data de
nascimento, sexo, forma de filiação e unidade da federação.
Foram utilizados para o gráfico 1 os despachos de concessão normal, em
fase recursal, decorrente de revisão administrativa e com base no art. 27, II,
do RBPS. Os benefícios concedidos decorrentes de ação judicial foram objeto
de análise. Entretanto, não foram aproveitados para a elaboração do gráfico.
Tendo sido concedidos os dados, a análise permitiu observar que não
houve qualquer alteração no tocante à possível diminuição expressiva de
concessões de auxílio por incapacidade temporária e aumento significativo
de aposentadoria por incapacidade permanente, embora se esteja diante de
uma alteração recente na seara previdenciária.
Nesse contexto, importa trazer à baila que a já mencionada MP 871,
convertida na Lei 13.846/2019, para além das alterações já relatadas neste
estudo, implementou o Programa Especial para Análise de Benefícios com
Indícios de Irregularidade, o Programa de Revisão de Benefícios por Inca-
pacidade, o Bônus de Desempenho Institucional por Análise de Benefícios
com Indícios de Irregularidade do Monitoramento Operacional de Benefícios
e o Bônus de Desempenho Institucional por Perícia Médica em Benefícios
por Incapacidade.
Coincidentemente ou não, justamente a partir de junho de 2019, e da
implementação de parte dos programas de revisão, houve uma queda expres-
122
A evolução das prioridades na proteção social brasileira aos benefícios por incapacidade

siva de concessões de aposentadorias por incapacidade permanente, conforme


se pode observar no gráfico 1:

Fonte: Dados concedidos pelo INSS por meio da Lei de Acesso à Informação.
Elaboração: os autores.

A partir da análise do gráfico, pode-se perceber uma expressiva dimi-


nuição de concessões de aposentadoria por invalidez, ora aposentadoria por
incapacidade permanente, a partir do mês de maio/2019. Admite-se o argu-
mento de que fevereiro, março e abril de 2019 representaram uma grande
onda de concessões atípicas e que, posteriormente, o número de concessões
tornou à realidade. Tal linha de raciocínio, porém, não permite explicar a
redução de 15.000 concessões em janeiro de 2019 para pouco mais de 1000
concessões em abril de 2020.
Ainda que se desconsiderem os contratempos trazidos pela pandemia
do coronavírus, em que os serviços do INSS foram afetados a partir de mar-
ço de 2020, tem-se que o mês de fevereiro ainda representou uma grande
disparidade, com pouco mais de 1.700 concessões de aposentadoria por
invalidez. Não há como fornecer os motivos para a expressiva diminui-
ção de concessões ao longo do tempo, mas certamente não se deve a uma

123
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

melhora de saúde da população, já que não há dados que demonstrem tal


informação.

5.4 Possibilidade de opção pelo benefício mais vantajoso?


Ao deparar-nos com a situação descrita no capítulo concernente ao
impacto financeiro na vida do segurado, outra preocupação surgiu: há um
benefício com menor incidência periódica de perícias e, em tese, mais estável,
porém com provável menor prestação pecuniária (aposentadoria por incapa-
cidade permanente); em contrapartida há um benefício com maior incidência
periódica de perícias e, em tese, menos estável, porém com provável maior
prestação pecuniária (auxílio por incapacidade temporária). Nesse sentido,
questiona-se: qual seria o melhor benefício nesse caso?
A Instrução Normativa 77/2015, ao tratar da fase decisória, estabelece,
in verbis:

Art. 687. O INSS deve conceder o melhor benefício a que o segurado


fizer jus, cabendo ao servidor orientar nesse sentido.

Art. 688. Quando, por ocasião da decisão, for identificado que estão
satisfeitos os requisitos para mais de um tipo de benefício, cabe ao INSS
oferecer ao segurado o direito de opção, mediante a apresentação dos
demonstrativos financeiros de cada um deles.

À luz dos artigos supra mencionados, é possível depreender que o bene-


fício que deve ser concedido é aquele em que a prestação pecuniária é maior.
Entretanto, tal entendimento, no que se refere aos benefícios por incapacidade,
não deveria prevalecer, segundo entendimento da AGU:

Será concedido auxílio-doença ao segurado considerado temporaria-


mente incapaz para o trabalho ou sua atividade habitual, de forma total ou
parcial, atendidos os demais requisitos legais, entendendo-se por incapa-
cidade parcial aquela que permita sua reabilitação para outras atividades
laborais.

Assim, entendemos que um segurado que tem como resultado da perícia


incapacidade total e definitiva, poderia optar por um benefício mais precário,
em razão da incidência maior de perícias, mas com valor maior, ante ao direito
124
A evolução das prioridades na proteção social brasileira aos benefícios por incapacidade

de obtenção do benefício mais vantajoso. Nesse impasse, entende-se que o


segurado deveria receber o benefício de auxílio por incapacidade temporária,
tendo em vista que o escopo da prestação previdenciária é a proteção, de modo
que, com uma renda mensal mais elevada, o segurado poderia garantir a sua
subsistência de uma forma mais digna, sendo-lhe facultada a revisão judicial
em caso de concessão de benefício menos vantajoso pecuniariamente.

6. CONCLUSÃO
A proteção à incapacidade laborativa é de grande importância econômica
e social. A Previdência Social, ao amparar o risco incapacidade laborativa,
cuida do segurado que não tem mais condições de exercer sua atividade que
lhe garante a subsistência, seja de forma temporária ou definitiva.
A Reforma da Previdência ocasionada pela Emenda Constitucional 103
de 12 de novembro de 2019 trouxe alterações substanciais na forma de cál-
culo dos benefícios previdenciários. Tratando especificamente do benefício
aposentadoria por invalidez, o mesmo teve um prejuízo significativo na forma
de cálculo em detrimento da legislação previdenciária existente até então.
Com a EC 103/2019, será utilizada a média aritmética simples, cor-
respondentes a 100% (cem por cento) do período contributivo desde a
competência julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se posterior
àquela competência. O valor do benefício de aposentadoria por incapacidade
permanente corresponderá a 60% (sessenta por cento) do valor obtido com
a média aritmética simples, com acréscimo de 2 (dois) pontos percentuais
para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 (vinte) anos de
contribuição para o homem e 15(quinze) anos para a mulher, ressalvado o
caso de aposentadoria por incapacidade permanente, quando decorrer de
acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho, quando
o valor do benefício de aposentadoria corresponderá a 100% (cem por cento)
da média aritmética simples.
Surpreendentemente, não foi alterada a alíquota do benefício auxílio-
-doença, mantendo-se em 91% do salário-de-benefício, que agora se tornou,
em regra, mais vantajoso do que o benefício aposentadoria por incapacidade
permanente.
Por meio de dados que nos foram oferecidos pelo INSS com base na
Lei de Acesso à Informação, ainda não houve um aumento na concessão de
benefícios por incapacidade permanente, em virtude da alteração das regras
125
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

de cálculo do benefício, que o tornam menos oneroso à Previdência Social do


que o benefício por incapacidade temporária (auxílio-doença). No entanto,
notou-se uma queda significativa no número de benefícios por incapacidade
concedidos entre janeiro de 2019 e fevereiro de 2020 e imagina-se que tal
fato se deu em virtude da MP 871/2019, convertida posteriormente na Lei
13.846/2019.
Também não foi possível se observar alteração significativa no número
de conversões do benefício por incapacidade temporária em aposentadoria
por incapacidade permanente, após a EC 103/2019, mas acredita-se que isso
irá ocorrer, mesmo os peritos do INSS ficando restritos à análise objetiva no
momento da concessão do benefício.
Acredita-se que o segurado que ficava anos recebendo auxílio-doença à
espera da conversão administrativa pelo INSS do benefício em aposentadoria
por invalidez, a terá mais facilmente. Em que pesem essas considerações,
deverá ser analisado o direito do segurado ao melhor benefício. E qual será
a definição de melhor benefício a partir da EC 103/2019: aquele com valor
maior (auxílio por incapacidade temporária) ou aquele com a periodicidade
menor de perícias (auxílio por incapacidade definitiva)?
Provavelmente o segurado fará a opção pelo de valor maior, conside-
rando, ainda que pela EC 103/2019, há a possibilidade de descarte da média
as contribuições que resultem em redução do valor do benefício, desde que
mantido o tempo mínimo de contribuição exigido para a sua obtenção, vedada
a utilização do tempo excluído para qualquer finalidade. Haverá, por certo, a
necessidade de o segurado ou segurada da previdência fazer um planejamento
previdenciário para que não sofra qualquer prejuízo nas suas decisões perante
a Previdência Social.

7. REFERÊNCIAS
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e ampl. Salvador: Editora Juspodivm, 2020.
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com Indícios de Irregularidade do Monitoramento Operacional de Benefícios e o
Bônus de Desempenho Institucional por Perícia Médica em Benefícios por Inca-
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8.213, de 24 de julho de 1991, 8.742, de 7 de dezembro de 1993, 9.620, de 2 de
abril de 1998, 9.717, de 27 de novembro de 1998, 9.796, de 5 de maio de 1999,
10.855, de 1º de abril de 2004, 10.876, de 2 de junho de 2004, 10.887, de 18 de
junho de 2004, 11.481, de 31 de maio de 2007, e 11.907, de 2 de fevereiro de 2009;
e revoga dispositivo da Lei nº 10.666, de 8 de maio de 2003, e a Lei nº 11.720, de
20 de junho de 2008.. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível
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REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

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128
A IMPORTÂNCIA DOS CONCEITOS
JURÍDICOS EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA:
(DES)CONTINUIDADES PRESENTES
NA “NOVA PREVIDÊNCIA”

Diego Henrique Schuster1

Resumo: Aprovada a reforma previdenciária, as novas regras já


estão em vigor desde 13/11/2019. A previdência sofreu profun-
das alterações, colocando em dúvida a aplicação, na prática, de
alguns conceitos jurídicos (e.g.: carência, mínimo divisor etc.).
A proposta deste artigo é discutir a (des)continuidade desses
conceitos, tal como conhecemos, olhando-se para a tradição.

Palavras-chave: Reforma Previdenciária. Conceitos Jurídicos.


Carência. Tempo de Contribuição. Mínimo Divisor.

Sumário: 1. De onde a ideia... − 2. O que deve nos acompanhar...


− 3. Uma mudança no texto constitucional: “são tantas perguntas”
(Show da Luna): 3.1 A exigência de carência (180 contribuições
mensais) na “nova previdência”; 3.2 A tabela do art. 142 da Lei
de Benefícios: é possível a idade fixar a carência exigida para

1 Mestre em Direito Público e Especialista em Direito Ambiental pela Universidade do Vale do


Rio dos Sinos – UNISINOS; Diretor-Adjunto da Diretoria Científica do Instituto Brasileiro de
Direito Previdenciário – IBDP; Vencedor do I Concurso Nacional de Teses Previdenciárias –
CNTP; Advogado e pesquisador da Lourenço e Souza Advogados Associados; Palestrante e
autor de vários artigos jurídicos. Autor de vários livros, entre eles: “Aposentadoria especial:
entre o princípio da precaução e a proteção social”, publicado pela editora Juruá. Email:
vidareal33@bol.com.br.

129
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

depois da EC 103/2019?; 3.3 O tempo de contribuição na EC


103/2019?; 3.4 A conversão de tempo de contribuição para fins
de aumento da RMI da aposentadoria por idade (na regra transi-
tória e geral); 3.5 O direito adquirido...; 3.6 O mínimo divisor...;
3.7 Exclusão de contribuições: cuidado! − 4. Por fim, mas nem
tanto... − Referências.

1. DE ONDE A IDEIA...
A reflexão posta em debate emergiu, basicamente, do estranhamento
causado pelo texto da EC 103/2019 (é óbvio) e pela leitura do artigo “Os
conceitos jurídicos”, do professor José Rodrigo Rodriguez. As mudanças
levantaram interrogações sobre a permanência de alguns conceitos jurídicos,
tal como trabalhados de maneira teórica como prática. A propósito, estou
escrevendo um livro sobre a nova previdência (mas tá difícil com tantas
mudanças!).
A Emenda não trouxe uma nova paleta conceitual. Uma leitura (des)
comprometida com a tradição possibilita ao seu intérprete pôr em xeque a
manutenção de (alg)uns velhos conceitos jurídicos como, por exemplo, ca-
rência, tempo de contribuição etc., mas não apostar numa nova ordem cons-
titucional ou numa ruptura de paradigmas, pelo menos, numa relação entre
o dito e o não dito (textualmente). A propósito, quando se fala em tradição:

O que é consagrado pela tradição e pela herança histórica possui


uma autoridade que se tornou anônima, e nosso ser histórico e finito
está determinado pelo fato de que também a autoridade do que foi trans-
mitido, e não somente o que possui fundamentos evidentes, tem poder
sobre nossa ação e nosso comportamento. [...]. É isso, precisamente, que
denominamos, nos limites desse estudo, o termo é utilizado sem precisar
de fundamentação.2

Em Dworkin, a reconstrução linguística é filtrada pelo texto, mormente


constitucional. Nesta perspectiva ganha destaque o conceito de integridade:
“A integridade a que se refere Dworkin significa sobretudo uma atitude inter-

2 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universi-


tária São Francisco, 1997. p. 372

130
A importância dos conceitos jurídicos em matéria previdenciária

pretativa do Direito que busca integrar cada decisão em um sistema coerente


que atente para a legislação e para os precedentes jurisprudenciais sobre o
tema, procurando discernir um princípio que os haja norteado.”3
Assim, o juiz deve conhecer a história institucional do Direito, uma vez
que “[...] o Direito não é apenas uma questão de fato, mas é principalmente
uma questão interpretativa”.4 Entretanto:

O direito como integridade, portanto, começa no presente e só volta


ao passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o de-
termine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou
objetivos práticos dos políticos que o primeiro o criaram. Pretende, sim,
justificar o que eles fizeram (às vezes incluindo, como veremos, o que
disseram) em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história
que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode
ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para
oferecer um futuro honrado. O direito como integridade deplora o meca-
nismo do antigo ponto de vista de que ‘lei é lei’, bem como o cinismo do
novo ‘realismo’. Considera esses dois pontos de vista como enraizados na
mesma falsa dicotomia entre encontrar e inventar a lei. [...] o princípio se
ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece
uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de
princípio que a integridade requer.5

A tradição traz limites intersubjetivos e, por isso, há um controle ou


“constrangimento epistemológico”, como fala Lenio Streck. Ela aponta para
uma resposta adequada, conforme o direito vigente. É importante pensar na
questão dos conceitos jurídicos num plano hermenêutico, como no caso de
“bem imóvel”. Por que o navio é considerado um bem imóvel (se ele é mó-
vel)? Assim, devemos pensar a EC 103/2019, os conceitos previdenciários.

3 OMMATI, José Emílio Medauar. O positivismo jurídico na prática jurisprudencial brasilei-


ra: Um estudo de caso a partir de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça. In: DIMOU-
LIS, Dimitri; DUARTE, Écio Oto (Coord.). Teoria do direito neoconstitucional: superação ou
reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008. p. 259.
4 OMMATI, José Emílio Medauar. O positivismo jurídico na prática jurisprudencial brasilei-
ra: Um estudo de caso a partir de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça. In: DIMOU-
LIS, Dimitri; DUARTE, Écio Oto (Coord.). Teoria do direito neoconstitucional: superação ou
reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008. p. 258.
5 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 274.

131
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Afinal, qual a função dos conceitos jurídicos?6 O que antes justificava uma
coisa e, talvez, agora não mais?
A partir da certeza de que a EC 103/2019 acabou com a aposentadoria
por tempo de contribuição – vale dizer: independentemente de idade –, a pro-
posta deste artigo é discutir os limites e possibilidades da “nova previdência”,
o que vai desde os seus critérios de acesso, passando pela possibilidade de
conversão do tempo de serviço especial em comum, até o cálculo do valor
do benefício previdenciário (aposentadoria).

2. O QUE DEVE NOS ACOMPANHAR...


É importante uma reconstrução da história institucional do direito, como
fala Lenio Streck, numa leitura fundada na teoria de filósofos como Gadamer,
Dworkin, para citar apenas estes. Não pretendo avançar muito por esse ca-
minho. Aqui a metáfora do hermeneuta pode ser útil para se compreender e
aproximar o leitor da proposta

Nela um hermeneuta chega a uma ilha e lá constata que as pessoas


cortam (desprezam) a cabeça e o rabo dos peixes, mesmo diante da escas-
sez de alimentos. Intrigado, o hermeneuta foi buscar as raízes desse mito.
Descobriu, finalmente, que, no início do povoamento da ilhota, os peixes
eram grandes e abundantes, não cabendo nas frigideiras. Consequentemente,
cortavam a cabeça e o rabo. Hoje, mesmo que os peixes sejam menores
que as penas, ainda assim continuam a cortar a cabeça e o rabo.
Compreendeu assim o fenômeno que se encobria aos moradores mais
jovens da ilha, os quais, ao serem questionados o porquê de agirem dessa
maneira, respondiam: “Não sei... Mas as coisas sempre forma assim por
aqui”! Eis o senso comum. Eis a naturalização de uma prática.7

6 Ao brincar com o conceito de queijo Parmesão, nos termos da Port. 353/1997, o autor
conclui: “O conceito jurídico citado acima foi elaborado com uma certa finalidade: armar o
Estado para exercer o poder de fiscalizar a produção e a comercialização de produtos alimen-
tícios. Além disso, ele serve de referência para o comportamento da sociedade (produtores,
negociantes, consumidores etc). Sua função é evitar que se fabrique e/ou que se venda gato
por lebre. [...] Além disso, o conceito permite que os particulares tenham uma referência
para o comportamento de produzir, importar, comprar e vender queijo parmesão.” RODRI-
GUEZ, José Rodrigo. Os conceitos jurídicos. Academia. p. 6. Disponível em: <http://www.
academia.edu/11586813/ Os_conceitos_jur%C3%ADdicos>. Acesso em: 18 maio 2020.
7 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do
Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 136.

132
A importância dos conceitos jurídicos em matéria previdenciária

O fenômeno, reconstruído, aponta para uma direção. Assim, por exem-


plo, José Rodrigo Rodriguez explica que os conceitos de bem móvel e bem
imóvel nasceram com as sociedades agrárias em que a terra era o bem mais
valioso. Por esta razão

a compra e venda de bens imóveis foi submetida a formalidades específicas.


Comprar uma fazenda não é comprar um chiclete: envolve mais riscos, mais
dinheiro, mais poder econômico. Em sociedades de economia agrária, sem
indústrias, sem sociedades anônimas, sem mercados de ações, sem navios
e sem chuveiros aquecidos; mas com carroças, cavalos e banhos de bacia,
as coisas móveis tendiam a ter uma importância econômica menor do que
as coisas imóveis.8

Com efeito, não podemos ficar com a primeira impressão. Algumas


expressões, fora do contexto jurídico (previdenciário), têm funções diver-
sas. Lá fora, as palavras se afastam do sentido jurídico e, por isso, devemos
tomar cuidado. Temos que tomar cuidado com o senso comum, fora e
dentro do Direito. É como adverte José Rodrigo Rodriguez: “Mudar um
conceito jurídico pode significar ampliar, diminuir ou mudar o foco de sua
ação, além de desorientar a ação dos indivíduos que compõem a sociedade
sujeita ao seu poder”. E conclui: “[...] um navio tratado juridicamente como
imóvel não é, necessariamente, um navio encalhado.”9 Isto, obviamente,
não poderia ser...
A gente se comunica, no direito previdenciário, por meio de um mes-
mo conjunto de palavras. Os iniciados aprendem a linguagem, a lógica e os
cálculos dos benefícios.
Com tais reflexões instauradas, não pretendemos demonstrar apenas as
(des)continuidades presentes na “nova previdência”, mas também refletir
em torno das condições textuais que permitem que o velho seja visto pelo
novo e vice-versa. A abordagem hermenêutica não traduz apenas uma forma
sofisticada de tratar o assunto, mas uma tentativa de deixar o texto mais
“saboroso” (assim espero).

8 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Os conceitos jurídicos. Academia. p. 6. Disponível em: <http://


www.academia.edu/11586813/Os_conceitos_jur%C3%ADdicos>. Acesso em: 18 mar. 2020.
9 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Os conceitos jurídicos. Academia. p. 6. Disponível em: <http://
www.academia.edu/11586813/Os_conceitos_jur%C3%ADdicos>. Acesso em: 18 mar. 2020.

133
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

3. UMA MUDANÇA NO TEXTO CONSTITUCIONAL: “SÃO


TANTAS PERGUNTAS” (SHOW DA LUNA)
A EC 103/2019 não fala em carência. A regra transitória (e geral) prevista
no art. 19 estabelece uma idade mínima de 65 anos de idade, se homem, e 62,
se mulher, além de exigir 15 anos de tempo de contribuição – assim como a
Lei de benefícios fala em 30 anos de contribuição, se mulher, e 35 anos, se
homem, na parte da extinta aposentadoria por tempo de contribuição. Aos
homens inscritos após a publicação da Emenda serão exigidos 20 anos. A RMI
corresponderá a 60% média + 2% a cada ano além dos 20 anos para homens
ou além dos 15 anos para mulheres, de todo o período contributivo desde a
competência de 07/94.
Com a nova previdência, o tempo resultante da conversão, no mínimo,
até 13/11/2019, poderá ser considerado para aumentar alíquota de cálculo?
A conversão do tempo de serviço especial em comum só tem espaço (até
13/11/2019) nas regras de transição da aposentadoria por tempo de contribui-
ção? A dúvida abre espaço para uma outra pergunta: ao segurado é possível
completar os 15 ou 20 anos de contribuição – exigidos a título de critério de
acesso ao benefício previdenciário – mediante a inclusão do tempo resultante
da conversão do tempo de serviço especial em comum ou deve ser observada
a exigência de 180 contribuições, como estabelece o inc. II, do art. 25 da Lei
8.213/199110?

3.1 A exigência de carência (180 contribuições mensais) na


“nova previdência”
Segundo o art. 24, da Lei 8.213/91, “período de carência é o número mí-
nimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao
benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas
competências.”11 Ainda, de acordo com o art. 145, da Instrução Normativa nº

10 “A concessão das prestações pecuniárias do Regime Geral de Previdência Social depende


dos seguintes períodos de carência, ressalvado o disposto no art. 26: [...] II - aposentadoria
por idade, aposentadoria por tempo de serviço e aposentadoria especial: 180 contribuições
mensais.”
11 O art. 26 do Dec. 10.410/2020 reproduz a mesma regra: “Período de carência é o tempo
correspondente ao número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o

134
A importância dos conceitos jurídicos em matéria previdenciária

77/2015, do INSS, por sua vez, “um dia de trabalho, no mês, vale como con-
tribuição para aquele mês, para qualquer categoria de segurado, observadas as
especificações relativas aos trabalhadores rurais”.
Imagine-se o seguinte caso: um segurado que contribuiu de 01/12/2004 a
13/11/2019, ele possui 180 meses de carência, mas somente 14 anos, 11 meses
e 12 dias de tempo de contribuição. Nesse caso, o segurado está protegido
pelo direito adquirido! A propósito, estou sugerindo um segurado homem
com a idade de 65 anos, idade está implementada antes da EC 103/2019. Ele
completou as 180 contribuições mensais e, por isso, tem direito às regras
anteriores. No caso de quem não conseguiu cumprir com os requisitos ense-
jadores do benefício antes de 13/11/2019, o critério de cálculo a ser observado
é 60% + 2% a cada ano além dos 20 anos.
O conceito de carência parece ser mais vantajoso para o segurado. E
como será a partir da EC 103/2019, já que a nova ordem não fala em carência?
Serão exigidos 15 anos de tempo de contribuição? A Portaria INSS 450, de 3
de abril de 2020, deixa clara a manutenção da exigência de carência:

Art. 5º Fica mantida a carência disciplinada pela Lei nº 8.213, de 24 de


julho de 1991, mantendo-se, assim, a exigência de 180 (cento e oitenta)
contribuições mensais para as aposentadorias programáveis e de 12 (doze)
contribuições para a aposentadoria por incapacidade permanente previ-
denciária, antiga aposentadoria por invalidez previdenciária, classificada
como não-programável.
Parágrafo único. Para definição da carência, deve ser verificado o
direito à aplicação da tabela progressiva prevista no art. 142 da Lei nº
8.213, de 1991.

Art. 7º São requisitos para concessão da aposentadoria programada,


cumulativamente:
I − 62 (sessenta e dois) anos de idade, se mulher, e 65 (sessenta e cinco)
anos, se homem;
II − 15 (quinze) anos de tempo de contribuição, se mulher, e 20 (vinte)
anos, se homem; e
III − 180 (cento e oitenta) meses de carência.

beneficiário faça jus ao benefício, consideradas as competências cujo salário de contribuição


seja igual ou superior ao seu limite mínimo mensal.”

135
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Art. 8º Para a concessão da aposentadoria por idade, conforme regra


de transição fixada pela EC nº 103, de 2019, exige-se, cumulativamente:
I − 60 (sessenta) anos de idade da mulher e 65 (sessenta e cinco) do
homem;
II − 15 (quinze) anos de tempo de contribuição; e
III − 180 (cento e oitenta) meses de carência.
Parágrafo único. Para definição da carência, deve ser verificado o direito à
aplicação da tabela progressiva prevista no art. 142 da Lei nº 8.213, de 1991.

Os requisitos devem ser reunidos de forma cumulativa. É verdade que o


Direito tem o poder de manipular os conceitos, ampliando ou estreitando seu
sentido, mas não podemos simplesmente escolher o sentido.12 Não se trata de
descobrir, mas de respeitar as regras referentes ao uso do conceito de “tempo
de contribuição”. É incorreto tratar “tempo de contribuição” como qualquer
tempo no contexto de um sistema contributivo. Destarte, deve ser observado
o tempo mínimo exigido para a concessão do benefício previdenciário.
Não podemos começar simulando que estamos fora de nossa própria
experiência. Não estou ignorando as inúmeras variáveis para favorecer o que
de fato aconteceu (na Portaria INSS 450, 2020). Existe uma moderação das
expectativas normativas aqui. Segundo Lenio Streck: “Não há grau zero de
sentido. Assim, pode-se dizer que nem o texto é tudo e nem o texto é um nada.
Por exemplo: nem a lei escrita é tudo; mas não se pode dizer que este texto
(lei escrita) não tem valor ou importância para o intérprete. E, importante,
textos, aqui, devem ser entendidos como eventos.”13
Na aposentadoria por tempo de contribuição extinta pela EC 103/2019,
o segurado precisava comprovar 180 contribuições mensais para atingir o
requisito carência. Mas quanto ao restante do período era possível o côm-
puto de atividade rural (até 11/1991 sem necessidade de indenização) para
completar o tempo de 30 e 35 anos, mulher e homem, respectivamente. Na
prática, carência e o tempo de contribuição acabam (quase) coincidindo como
critérios de acesso ao benefício previdenciário.

12 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Os conceitos jurídicos. Academia. p. 6. Disponível em: <http://


www.academia.edu/11586813/Os_conceitos_jur%C3%ADdicos>. Acesso em: 18 mar. 2020.
13 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria
do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017.
p. 21.

136
A importância dos conceitos jurídicos em matéria previdenciária

Eis que o Decreto 10.410/2020, no seu art. 19-E, estabelece que a partir
de 13 de novembro de 2019, para fins de aquisição e manutenção da qualidade
de segurado, de carência, de tempo de contribuição e de cálculo do salário de
benefício exigidos para o reconhecimento do direito aos benefícios do RGPS e
para fins de contagem recíproca, somente serão consideradas as competências
cujo salário de contribuição seja igual ou superior ao limite mínimo mensal
do salário de contribuição.
Isso significa que serão computados os meses, independentemente da
quantidade de dias que trabalhou o segurado, desde que a remuneração seja
igual ou superior ao salário mínimo. Agora, definitivamente, tempo de con-
tribuição e carência devem coincidir na aposentadoria programada, conforme
art. 51 do Dec. 10.410/2020:

A aposentadoria programada, uma vez cumprido o período de carên-


cia exigido, será devida ao segurado que cumprir, cumulativamente, os
seguintes requisitos:
I − sessenta e dois anos de idade, se mulher, e sessenta e cinco anos
de idade, se homem; e
II − quinze anos de tempo de contribuição, se mulher, e vinte anos de
tempo de contribuição, se homem.

No caso de receber remuneração inferior ao limite mínimo mensal do


salário de contribuição exigido, ao segurado será possível:

I − complementar a contribuição das competências, de forma a alcançar


o limite mínimo do salário de contribuição exigido;
II − utilizar o excedente do salário de contribuição superior ao limite
mínimo de uma competência para completar o salário de contribuição de
outra competência até atingir o limite mínimo; ou
III − agrupar os salários de contribuição inferiores ao limite mínimo de
diferentes competências para aproveitamento em uma ou mais competências
até que estas atinjam o limite mínimo.

Essa era uma das grandes preocupações pós reforma da previdência.


Explico. O parágrafo primeiro do art. 29 da EC 103/2019 assim prevê: “Os
ajustes de complementação ou agrupamento de contribuições previstos nos
incisos I, II e III do caput somente poderão ser feitos ao longo do mesmo ano

137
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

civil.” A nova redação do Dec. 3.048/99, no § 2º do dispositivo em foco, es-


clarece “Os ajustes de complementação, utilização e agrupamento previstos
no § 1º poderão ser efetivados, a qualquer tempo, por iniciativa do segurado,
hipótese em que se tornarão irreversíveis e irrenunciáveis após processados.”
Ainda, na hipótese de falecimento do segurado, “os ajustes previstos
no § 1º poderão ser solicitados por seus dependentes para fins de reconhe-
cimento de direito para benefício a eles devidos até o dia quinze do mês de
janeiro subsequente ao do ano civil correspondente, observado o disposto
no § 4º.” (§ 7º). E quanto ao recolhimento de contribuições previdenciárias
post mortem? Nada mudou. A orientação jurisprudencial vigente é a de que
se o contribuinte individual não tiver recolhido em dia as contribuições
relativas ao período imediatamente anterior ao óbito, seus dependentes não
teriam direito ao benefício da pensão por morte, exceto, é claro: a) quando
o óbito houver ocorrido durante o chamado período de graça, previsto no
art. 15 da Lei n.º 8.213/91; b) se preenchidos os requisitos para a obtenção
de qualquer aposentadoria, segundo a legislação em vigor à época em que
foram atendidos, nos termos dos parágrafos 1º e 2º do art. 102 desta última
Lei e da Súmula 416 do STJ.
O entendimento hoje pacificado é de que:
A manutenção da qualidade de segurado, no caso do contribuinte in-
dividual, não decorre simplesmente do exercício de atividade remunerada,
como no caso do segurado empregado, mas deste associado ao efetivo
recolhimento das contribuições previdenciárias. A Corte tem adotado enten-
dimento no sentido da necessidade de recolhimento de tais contribuições
pelo próprio contribuinte, em vida, para que seus dependentes possam re-
ceber o benefício de pensão por morte, não se admitindo sua regularização
post mortem, pelos beneficiários. (TRF4, AC 5019579-84.2016.4.04.7000,
TURMA REGIONAL SUPLEMENTAR DO PR, Relator MÁRCIO ANTÔNIO
ROCHA, juntado aos autos em 03/06/2019)

É importante, portanto, deixar claro que os ajustes se referem a meses


com algum recolhimento.

3.2 A tabela do art. 142 da Lei de Benefícios: é possível a idade


fixar a carência exigida para depois da EC 103/2019?
Outra situação que merece atenção. Na aposentadoria por idade, o ano
em que o segurado implementa a idade fixa o marco da carência, conforma
138
A importância dos conceitos jurídicos em matéria previdenciária

tabela do art. 142 da Lei 8.213/1991. Dito em outras palavras, para a aposen-
tadoria por idade, não é necessário que os requisitos idade e carência sejam
preenchidos simultaneamente. É o que leciona a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça.14
Exemplo: se a segurada implementou o requisito etário (60 anos de idade)
em 2005, a carência a ser comprovada é de 144 meses, porquanto inscrita no
RGPS antes de 1991.
Isso configura uma exceção à regra. Como já se viu, em sentido contrário
ao axioma matemático de que a ordem dos fatores de uma soma ou multipli-
cação não altera o valor do respectivo produto, no direito previdenciário, a
lógica é inversa. A disposição organizada e ordenada, no espaço e tempo, dos
requisitos ensejadores do benefício, da inscrição e recolhimento das contri-
buições, e assim por diante, pode definir, ou não, o direito do segurado, ou,
na sua falta, dos seus dependentes, a um benefício previdenciário.15
Mas voltando ao nosso exemplo, caso a segurada não tenha fechado as
144 contribuições antes da EC 103/2019, é possível o cômputo do que falta
para 144? O implemento da idade em 2005 lhe garante o direito adquirido à
uma aposentadoria com base nas regras anteriores? O tempo que falta poderá
ser recolhido agora? A Portaria INSS 450/2020 determina – expressamente – a
aplicação do art. 142 da Lei 8.213/1991.
Onde está o problema aqui? Será exigido apenas o cumprimento da ca-
rência? Entendemos que sim, pois, do contrário, a exigência de 15 anos de
tempo contribuição irá esvaziar a tese. Do que adiantaria a idade fixar o marco
da carência para depois exigir 15 anos de contribuição. Dentro dos 15 anos de
contribuição é possível se destacar os 180 meses de carência, o contrário não.

14 Tal entendimento encontra fundamento no princípio da isonomia e foi consolidado na


Súmula 02 do TRF4: “Para a concessão da aposentadoria por idade, não é necessário que
os requisitos da idade e da carência sejam preenchidos simultaneamente. (DJ (Seção 2) de
09/04/2003, pág. 421)”.
15 Neste nível, é impossível o recolhimento de contribuições previdenciárias post mortem.
Isso significa que, se o contribuinte individual não tiver recolhido em dia as contribuições
relativas ao período imediatamente anterior ao óbito, seus dependentes não terão direito ao
benefício da pensão por morte, exceto, é claro: a) quando o óbito houver ocorrido durante
o chamado período de graça, previsto no art. 15 da Lei n.º 8.213/91; b) se preenchidos os
requisitos para a obtenção de qualquer aposentadoria, segundo a legislação em vigor à época
em que foram atendidos, nos termos dos parágrafos 1º e 2º do art. 102 desta última Lei e da
Súmula 416 do STJ.

139
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Isso significa que todos os segurados que implementaram a idade mínima


antes de 13/11/2019 só precisam comprovar a carência prevista na tabela do
art. 142 da Lei 8.213/1991? No caso do homem, manteve-se a mesma idade
mínima de 65 anos. Para as mulheres aumentarão 6 meses a cada ano até
2023 (até se alcançar os 62 anos de idade). Mesmo que a idade mínima tenha
mudado para as mulheres, dela só devemos exigir a carência fixada na data
em que implementada a idade mínima de 60 anos.
É importante lembrar que o art. 17 da EC 103/2019 não contempla a
aposentadoria por idade, isto é, a sorte de quem estava a menos de dois para
alcançar a carência exigida, porém, com idade para se aposentar.

3.3 O tempo de contribuição na EC 103/2019?


É preciso perguntar humildemente: o que muda com a EC 103/2019?
Note-se que a Emenda Constitucional 20, de 16/12/1998, extinguiu a aposen-
tadoria por tempo de serviço, substituindo-a pela aposentadoria por tempo
de contribuição. No entanto, a redação anterior da Constituição (art. 201)
já dizia que a previdência era contributiva ao trazer a expressão “mediante
contribuição”.
De lá para cá não foi possível se sentir os efeitos da mudança – não
como esperado ou anunciado –, em razão da lei excepcionar a possibilidade de
contagem de tempo de serviço, vale dizer: sem qualquer contribuição para o
sistema. A Lei 8.213/1991, no seu art. 55, II, prevê a possibilidade de cômputo
do tempo em gozo de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez como
tempo de contribuição e carência, desde que intercalados por contribuições.16

16 O mesmo vale para as parcelas de recuperação: “Com efeito, nada obstante aquele período
de até 18 meses da cessação gradual da aposentadoria por invalidez previsto no art. 47 da
Lei n. 8.213/91 tenha recebido, na doutrina e na jurisprudência, a denominação de ‘mensali-
dades de recuperação’, fato é que não se trata de nova espécie de benefício, distinto da aposen-
tadoria por invalidez que o segurado já titulava, mas apenas, como referido, de modalidade
de cessação diferenciada, assegurando uma reintegração mais facilitada ao segurado que
tenha recuperado a sua capacidade laboral. Portanto, a possibilidade de seu aproveitamento,
como tempo de carência e contribuição, segue a mesma disciplina dos benefícios por inca-
pacidade, não havendo como estabelecer, desde logo - por não haver indícios de pretensão
resistida, bem assim pelo fato de que um provimento desta natureza se revelaria condicio-
nal - qualquer determinação neste sentido à autarquia previdenciária, eis que indispensável
que se encontre intercalado entre períodos contributivos (art. 55, II, da Lei n. 8.213/91).”

140
A importância dos conceitos jurídicos em matéria previdenciária

Deve-se analisar com cuidado o art. 60 da Dec. 3.048/99, que dispõe, até
que lei específica discipline a matéria, o que pode ser contado como tempo
de contribuição. O cuidado redobra com o Dec. 10.410, 2020, que nos arts.
19-C e 188-G, delimita o cômputo, de data em data, dos períodos ali listados
até 13 de novembro de 2019.
Na contramão da jurisprudência17, o Dec. 10.410, de 30 de junho de
2020, estabelece no § 1º do art. 19-C:

Considera-se tempo de contribuição o tempo correspondente aos pe-


ríodos para os quais tenha havido contribuição obrigatória ou facultativa
ao RGPS, dentre outros, o período: [...]
§ 1º Será computado o tempo intercalado de recebimento de benefício
por incapacidade, na forma do disposto no inciso II do caput do art. 55

(5023069-13.2018.4.04.7108, PRIMEIRA TURMA RECURSAL DO RS, Relator FERNAN-


DO ZANDONÁ, julgado em 05/12/2019).
17 Nesse sentido: O tempo de gozo de auxílio-doença ou de aposentadoria por invalidez não
decorrentes de acidente de trabalho só pode ser computado como tempo de contribuição
ou para fins de carência quando intercalado entre períodos nos quais houve recolhimento
de contribuições para a previdência social. (Súmula 73/TNU) É possível o cômputo do in-
terregno em que o segurado esteve usufruindo benefício por incapacidade (auxílio-doença
ou aposentadoria por invalidez) para fins de carência, desde que intercalado com perío-
dos contributivos ou de efetivo trabalho. (Súmula 102 TRF4). Ainda: PREVIDENCIÁRIO.
RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973. APLICABILIDADE.
APOSENTADORIA. CÔMPUTO DO TEMPO DE RECEBIMENTO DE BENEFÍCIO POR
INCAPACIDADE PARA EFEITO DE CARÊNCIA. CONTRIBUIÇÃO EM PERÍODO INTER-
CALADO. POSSIBILIDADE. I - Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão
realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do
provimento jurisdicional impugnado. Assim sendo, in casu, aplica-se o Código de Processo
Civil de 1973. II - O tempo em que o segurado recebe benefício por incapacidade, se inter-
calado com período de atividade e, portanto, contributivo, deve ser contado como tempo
de contribuição e, consequentemente, computado para efeito de carência. Precedentes. III
- Recurso especial desprovido. (REsp 1602868/SC, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA,
PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/10/2016, DJe 18/11/2016); PREVIDENCIÁRIO. AGRA-
VO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CÔMPUTO DO
TEMPO DE BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE COMO PERÍODO DE CARÊNCIA. POS-
SIBILIDADE, DESDE QUE INTERCALADO COM PERÍODO DE EFETIVO TRABALHO.
PRECEDENTES. (...) 3. Se o período em que o segurado esteve no gozo de benefício por
incapacidade é excepcionalmente considerado como tempo ficto de contribuição, não se
justifica interpretar a norma de maneira distinta para fins de carência, desde que intercalado
com atividade laborativa. 4. Agravo regimental não provido (AgRg no Resp 1271928/RS, Rel.
Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª T., DJe 03.11.2014).

141
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, exceto para efeito de carência.


(grifo nosso)

E quanto à vedação da contagem de tempo de contribuição fictício para


efeito de concessão dos benefícios previdenciários e de contagem recíproca
(CF/88, art. 201, § 14)? Vejamos. O tempo de contribuição pressupõe não
apenas efetivo tempo de trabalho/serviço, mas também o recolhimento das
respectivas contribuições. “Tendo em foco o objetivo de propiciar correspon-
dência adequada entre a arrecadação e o pagamento dos benefícios nos regimes
previdenciários – ideia motriz do princípio do equilíbrio financeiro e atuarial
–, é perfeitamente aceitável a vedação da utilização de tempos fictícios, isto é,
aqueles períodos nos quais não há prestação de serviço ou a correspondente
contribuição.”18
Pois bem. Dentro dos períodos para os quais não há prestação de serviço
é importante separar aquilo sobre o qual incide contribuição previdenciária
como, por exemplo, férias (não com caráter indenizatório). O art. 65, parágra-
fo único, do Dec. 10.410/2020: “Aplica-se o disposto no caput aos períodos de
descanso determinados pela legislação trabalhista, inclusive ao período de férias,
e aos de percepção de salário-maternidade, desde que, à data do afastamento,
o segurado estivesse exposto aos fatores de risco de que trata o art. 68”. Ainda
sobre os benefícios por incapacidade, oportuna a jurisprudência consolidada
pelo STF:

CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. REGIME GERAL DA PREVI-


DÊNCIA SOCIAL. CARÁTER CONTRIBUTIVO. APOSENTADORIA POR
INVALIDEZ. AUXÍLIO-DOENÇA. COMPETÊNCIA REGULAMENTAR.
LIMITES. 1. O caráter contributivo do regime geral da previdência social
(caput do art. 201 da CF) a princípio impede a contagem de tempo ficto de
contribuição. 2. O § 5º do art. 29 da Lei nº 8.213/1991 (Lei de Benefícios da
Previdência Social – LBPS) é exceção razoável à regra proibitiva de tempo
de contribuição ficto com apoio no inciso II do art. 55 da mesma Lei. E é
aplicável somente às situações em que a aposentadoria por invalidez seja
precedida do recebimento de auxílio-doença durante período de afastamento
intercalado com atividade laborativa, em que há recolhimento da contribui-
ção previdenciária. Entendimento, esse, que não foi modificado pela Lei nº

18 ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antonio. Direito previdenciário: fundamentos
de interpretação e aplicação. 2.ed. – Curitiba: Alteridade Editora, 2019. p. 188.

142
A importância dos conceitos jurídicos em matéria previdenciária

9.876/99. 3. O § 7º do art. 36 do Decreto nº 3.048/1999 não ultrapassou os


limites da competência regulamentar porque apenas explicitou a adequada
interpretação do inciso II e do § 5º do art. 29 em combinação com o inciso
II do art. 55 e com os arts. 44 e 61, todos da Lei nº 8.213/1991. 4. A exten-
são de efeitos financeiros de lei nova a benefício previdenciário anterior
à respectiva vigência ofende tanto o inciso XXXVI do art. 5º quanto o § 5º
do art. 195 da Constituição Federal. Precedentes: REs 416.827 e 415.454,
ambos da relatoria do Ministro Gilmar Mendes. 5. Recurso extraordinário
com repercussão geral a que se dá provimento. (RE 583834, Relator(a): AYRES
BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO
REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-032 DIVULG 13-02-2012 PUBLIC
14-02-2012 RT v. 101, n. 919, 2012, p. 700-709).19

Abre-se um espaço aqui para lembrar que a Primeira Seção do STJ fixou a
tese de que o segurado que exerce atividades em condições especiais, quando
em gozo de auxílio-doença – seja acidentário ou previdenciário –, faz jus ao
cômputo desse período como especial. Ao julgar recurso repetitivo sobre o
assunto (Tema 998), o colegiado considerou ilegal a distinção entre as mo-
dalidades de afastamento feita pelo Decreto 3.048/1999, o qual prevê apenas
o cômputo do período de gozo de auxílio-doença acidentário como especial.
Apesar da decisão não ter transitado em julgado ainda, bem assim do
recurso extraordinário no STF, isso parece não significar nada, já que o Dec.
10.410/2020, no seu art. 65, parágrafo único, não apenas deixou de prever
a possibilidade de reconhecimento, como tempo de serviço especial, dos
períodos em gozo de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez pre-
videnciários, mas também os acidentários. Os acontecimentos cotidianos
atualizam as imagens e conferem ainda mais gravidade a tal medida. Aquele
profissional da saúde que tiver que se afastar em razão de ter se contaminado
com o COVID-19 (no trabalho) não poderá computar esse tempo como de
“efetiva exposição a agentes” biológicos, para fins de aposentadoria especial.
Na perspectiva de uma jurisprudência de observância obrigatória (da
“cultura dos precedentes”), contudo, acredita-se que a regra de direito (ratio

19 A questão da necessidade de intercalação com atividade laboral restou superada – e aqui


chamo a atenção de todos para a alínea “a” do inc. XVI do art. 163 da IN 77/2015. Nos casos
em que a empresa encerrar suas atividades durante o gozo do auxílio-doença, o segurado
não pode ser prejudicado, isto é, a ela será possível fazer o recolhimento em outra modali-
dade, inclusive como contribuinte facultativo.

143
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

decidendi) utilizada como fundamento das questões confrontadas pelo RPS


constitui condição necessária e suficiente para se superar sua redação, na re-
solução de casos análogos-similares. Na mesma linha a questão envolvendo o
menor sob guarda e o tempo em gozo do auxílio-doença para fins de carência.
Por outro lado, é importante anotar a diferença entre carência e tem-
po de contribuição. Não se trata de carência, mas de 15 anos de tempo de
contribuição, ou seja, não há que se cogitar a impossibilidade de computar
contribuições antigas ou se falar em recuperação de contribuições que o
segurado possuía antes de perder a qualidade de segurado. Vamos pensar na
diferença entre as 18 contribuições mensais – por parte do instituidor da pensão
por morte – e carência para fins de pensão por morte, nos termos do artigo
77, inciso V, alínea c, da Lei 8.213/1991. Quando comparado com outros
dispositivos referentes ao mesmo objeto, numa intepretação sistemática, o
que se deduz de tal exigência é que 18 (dezoito) contribuições mensais não
passam de 18 (dezoito) contribuições mensais, isto é, não há que se cogitar
eventual impossibilidade de computar contribuições antigas, em razão de,
após reingressar no RGPS, o segurado não ter conseguido contribuir com,
no mínimo, 1/2 (metade), para recuperá-las.
Em outras palavras, o que se exige é: 18 (dezoito) contribuições mensais,
vertidas ao longo e/ou em qualquer momento de sua vida, – sem falar nos
2 (dois) anos de casamento e/ou em união estável –, e qualidade de segu-
rado por ocasião do óbito, sendo que esta última se adquire com exercício
de atividade remunerada, pelo segurado obrigatório, e pela inscrição com o
recolhimento da primeira contribuição previdenciária, para o segurado fa-
cultativo (RPS, artigo 20, parágrafo único). Aqui, a expressão “contribuição
mensal” nos remete a “tempo de contribuição”, e não “período de carência”,
categorias jurídicas distintas, que não se confundem. Mesmo que o conceito
de carência remeta à ideia de “número mínimo de contribuições mensais”
(Lei de Benefícios, artigo 24), a lei previdenciária estabelece, expressamente,
o que deve ser considerado para efeitos de carência ou tempo de contribuição
(Lei 8.213/1991, artigos 39, I; 55, § 2º; e 57, § 5º).20

20 No caso da pensão por morte, o artigo 26, inciso I, da Lei 8.213/1991, é – continua sendo –
categórico: “Art. 26. Independe de carência a concessão das seguintes prestações: I - pensão
por morte, auxílio-reclusão, salário-família e auxílio-acidente; [...]”. Essa regra tem grande
significado por dispensar a necessidade de recuperação de contribuições que o segurado
possuía antes de perder a qualidade de segurado. A título ilustrativo, se, o segurado falecido

144
A importância dos conceitos jurídicos em matéria previdenciária

De qualquer maneira, quanto à recuperação da carência, cumpre observar


que o art. 3º da Lei nº 10.666/03 passou a dispensar a qualidade de segurado
para a concessão de aposentadoria por idade.

3.4 A conversão de tempo de contribuição para fins de


aumento da RMI da aposentadoria por idade (na regra
transitória e geral)
Antes o valor da aposentadoria por idade consistia em 70% do salário-
-de-benefício mais 1% para cada grupo de 12 contribuições, limitado a 100%
do salário-de-benefício. A jurisprudência possui entendimento consolidado
no sentido de não ser possível o aumento do coeficiente de cálculo mediante
a inclusão do tempo resultante da conversão de períodos especiais.
Procurando-se evitar referências redundantes, acredita-se na viabilidade
jurídica da soma do tempo de serviço especial, após a sua respectiva conversão
em comum, na aposentadora por idade prevista no art. 18 da EC 103/2019,
para fins de critério de cálculo do benefício, porquanto presente a referência
ao tempo de contribuição. Note-se que foi vedada a conversão do tempo de
serviço especial em comum (EC 103/2019, art. 25, § 2º), logo, ela deixa de ser
uma possibilidade de aumento do tempo de contribuição e, consequentemente,
da alíquota de cálculo, para os filiados ao Regime Geral de Previdência Social
após a data de entrada em vigor da Emenda Constitucional.

tinha 18 contribuições e, após perder sua qualidade de segurado, trabalhou apenas um dia,
deveriam ser levadas em conta as 18 contribuições mensais, para efeitos do artigo 77, inciso
V, alínea c, da Lei de Benefícios. No caso de auxílio-doença, por outro lado, admitindo-se
que a doença não isenta de carência, não se levam em conta as contribuições mensais que
o segurado possuía antes de perder a qualidade de segurado, caso ele não consiga contri-
buir por 6 meses (1/2 de 12) para poder computar contribuições mensais antigas. Com
isso, não se quer forçar o sentido dos vocábulos. A exegese filosófica leva a concluir que
as 18 (dezoito) contribuições mensais não configuram um “período de carência”, pois a
redação do artigo 77, inciso V, alínea c, da Lei 8.213/1991, não distingue, ali, a diferença.
Aqui se deve procurar conciliar as palavras antecedentes com as consequentes e, do exame
das regras em conjunto, deduzir o sentido da expressão “contribuições mensais”. Não seria
possível compreender os elementos trazidos pelo artigo 77, inciso V, alínea c, sem conhecer
os outros, sem os comparar, verificar a recíproca interdependência com o artigo 26, I, da Lei
8.213/1991. Enfim, não se pode ficar com a primeira impressão. SCHUSTER, Diego Henri-
que Schuster. Direito previdenciário para compreender: com a prática colada na teoria e sem
respostas prontas. Curitiba: Alteridade, 2018.

145
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

A conversão do tempo é critério meramente matemático invocado


em razão do princípio da isonomia (matemática), conforme repetitivo nº
1.251.363/MG. Destarte, resta claro que o tempo resultante da conversão do
tempo especial em comum não é ficto. Segundo Marcelo Barroso Lima Brito
de Campos: “Não se trata de tempo fico, mas de tempo real convertido para
outra modalidade de aposentadoria”.21
A maneira mais correta de se imaginar a utilização da conversão para fins
de cálculo do valor das novas aposentadorias (por idade) está no art. 188-Q
do Dec. 10.410/2020.

3.5 O direito adquirido...


Mas há mais a dizer sobre as situações criadas pela EC 103/2019, que
colocam em dúvida a possibilidade de cômputo de períodos em gozo de be-
nefício por incapacidade, recolhimento em atraso ou indenização de períodos
anterior e, logicamente, o direito adquirido. Um aviso importante. A falta
de um único dia coloca o segurado de “fora” do direito adquirido (das regas
anteriores na sua plenitude), restando apenas a expectativa de direito - cabe
analisar se a expectativa de direito está, ou não, protegida por alguma regra
de transição da EC 103/2019.
A ideia de direito adquirido ganha contornos dramáticos quando a
aposentadoria depende do cômputo de períodos em gozo auxílio-doença. A
única maneira de se pensar sobre isso é colocar a pergunta numa perspectiva
enigmática! Precisamos perguntar: É possível computar o tempo de serviço
anterior à reforma da previdência social mediante uma contribuição já na
vigência da EC 103/2019 e, assim, garantir o direito adquirido a uma apo-
sentadoria pelas regras anteriores? E no caso das parcelas de recuperação?
A resposta é positiva. O tempo em gozo de benefício intercalado por contri-
buições é validado e conta como sempre estivesse ali, inclusive para fins de
direito adquirido.
E quanto ao entendimento de que é incabível determinar ao INSS que
compute algum período e/ou conceda a aposentadoria antes do adimplemento
das contribuições (e.g.: contribuinte individual)? O direito adquirido está con-

21 CAMPOS, Marcelo Barroso Lima Brito de. Regime próprio de previdência social dos servidores
públicos. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2011.

146
A importância dos conceitos jurídicos em matéria previdenciária

dicionado ao momento do pagamento? Como tal situação é tratada na esfera


administrativa? Mesmo correndo o risco de exagerar na simplificação de uma
questão tão complexa – em respeito aos que defendem o contrário –, afirma-se
que é possível o pagamento de competências anteriores à 13/11/2019, para
fins de direito adquirido. Isso porque o próprio INSS, na via administrativa,
concorda com a viabilidade de tal entendimento. O contribuinte individual
é segurado obrigatório e tem, por isso, o direito-dever de contribuir.22

22 São muitas as discussões sobre o tema, havendo divergência de entendimento entre Poder
Judiciário e INSS e, até mesmo, entre as próprias agências. Assim, achei importante buscar
alguns esclarecimentos, o que compartilho com os colegas. Primeiro, segundo o artigo 11,
§ 3º, do Decreto 3.048/99: “A filiação na qualidade de segurado facultativo representa ato
volitivo, gerando efeito somente a partir da inscrição e do primeiro recolhimento, não po-
dendo retroagir e não permitindo o pagamento de contribuições relativas a competências
anteriores à data da inscrição, ressalvado o § 3º do art. 28”. Não é possível, portanto, que
o segurado facultativo se filie ao Regime Geral da Previdência Social efetuando contribui-
ções relativas a período antecedente da inscrição. Segundo, o contribuinte facultativo não
pode ter perdido a qualidade de segurado, que, como se sabe, é de seis (06) meses após a
cessação das contribuições (Lei 8.213/1991, artigo 15, inciso VI). A partir daqui se pode
pôr a pergunta: e no caso daquele segurado que contribuía uma e pulava cinco – é possível
o pagamento de competências em atraso, para além das seis últimas? A meu ver, desde que
o sujeito não tenha perdido a qualidade de segurado. Sendo assim, é possível o pagamento
de competências cobertas pelo arco de tempo em que mantida a qualidade de segurado.
Desconheço lei ou instrução normativa que proíba tal comportamento. No que tange ao
contribuinte individual, a filiação à Previdência Social decorre automaticamente do exercí-
cio de atividade remunerada para os segurados obrigatórios e da inscrição formalizada com
o pagamento da primeira contribuição sem atraso. É considerado, para efeitos de qualidade
de segurado, o tempo em categorias diferenciadas. Isso está no artigo 155 da IN 77/INSS, de
21 de janeiro de 2015. Em poucas palavras, a primeira contribuição em dia sequer precisa
ser na condição de contribuinte individual. Ainda, mesmo havendo a perda da qualidade de
segurado, para o INSS, as contribuições recolhidas em atraso, após a primeira em dia, valem
para fins de carência. Esta é mais uma vantagem da via administrativa. O Memorando Circu-
lar 25 DIRBEN/CGBENEF de 20/08/2008 determina que todas as contribuições recolhidas à
Previdência Social serão consideradas, independentemente de ter havido perda da qualidade
de segurado ao longo do tempo. Além disso, o normativo apresenta exemplos práticos no
anexo II, reconhecendo que poderão ser recolhidas contribuições em atraso e estas contarão
para a carência da aposentadoria por idade ou tempo de contribuição, desde que esses pa-
gamentos sejam de competências posteriores à primeira paga em dia. O artigo 27, II, da Lei
8.213/91, dispõe que, para o cômputo do período de carência, são consideradas as contribui-
ções realizadas a contar da data do efetivo pagamento da primeira contribuição sem atraso.
Com efeito, nada impede que as contribuições recolhidas com atraso, antes da primeira em
dia, sejam computadas para fins de tempo de serviço. A propósito, transcorrido o prazo
decadencial, será necessária autorização do INSS para o recolhimento das contribuições em
atraso, mediante a comprovação do exercício de atividade remunerada. Caso o segurado

147
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

3.6 O mínimo divisor...


Ainda, ou mais ainda, o INSS não está aplicando o mínimo divisor na
análise das novas aposentadorias. Mas o que é o mínimo divisor? Para o se-
gurado que possuir menos de 60% de contribuições entre julho/1994 e o mês
anterior à data de início do benefício, o divisor considerado no cálculo seria
de 60% de todo o período, atribuindo-se o valor ficto de zero até completar
essa fração. Exemplificando:

não tenha dado baixa da inscrição no INSS, é presumida a sua continuação. O pagamento
referente às contribuições relativas ao exercício dessa categoria de atividade, alcançadas pela
decadência, será efetuado mediante cálculo de indenização. É indevida a exigência de juros
moratórios e multa sobre o valor de indenização substitutiva de contribuições previdenciá-
rias, relativamente a período de tempo de serviço anterior à Medida Provisória nº 1.523, de
1996, conforme a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça (STJ). (TRF4
5000808-86.2016.404.7217, SEGUNDA TURMA, Relator RÔMULO PIZZOLATTI, juntado
aos autos em 13/07/2017). Ao julgar o Recurso Cível nº 5000726-13.2015.404.7210/SC, de
relatoria do Juiz Federal João Batista Lazzari, a 3ª TR de SC afastou os encargos legais (juros
e multa) da indenização do tempo de contribuição para todo e qualquer período, visto que a
base de cálculo é atual e por se tratar de período que já ocorreu a decadência para a exigência
por parte da Fazenda Nacional. De fato, não faz sentido a aplicação de juros moratórios e
multa, visto que a indenização não equivale ao valor das contribuições que seriam devidas à
época da prestação do serviço. Não menos importante, é incabível determinar ao INSS que
compute algum período e/ou conceda a aposentadoria antes do adimplemento das contri-
buições. Isso é muito importante para aqueles casos em que o segurado pretende parcelar o
débito junto à Receita Federal. Acabou de me ocorrer a seguinte situação: e se o INSS não
reconhecer o tempo de serviço rural posterior a 11/1991, por exemplo? A autarquia não
irá emitir a guia com o cálculo de indenização. Seria o caso de um depósito judicial, para
garantir os efeitos financeiros desde a DER, no caso de restar reconhecido o efetivo exercício
de atividade rural e, consequentemente, o direito à indenização? Caso o INSS reconheça o
tempo, mas se recuse a emitir uma guia sem a incidência de juros de mora e multa: “PRE-
VIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRIBUIÇÕES
PREVIDENCIÁRIAS. RECOLHIMENTO COM ATRASO. JUROS E MULTA. Conforme en-
tendimento consagrado neste Tribunal, é indevida a incidência de juros e multa sobre o
valor da indenização correspondente ao tempo de contribuição anterior à edição da Medida
Provisória n.º 1.523/1996 que inseriu o § 4.º no art. 45 da Lei de Custeio. (TRF4 5000267-
75.2019.4.04.7111, SEXTA TURMA, Relator JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, juntado aos
autos em 19/03/2020)” Importante alteração promovida pelo Dec. 10.410/2020, que obriga
o INSS a não cobrar multa e juros de mora antes de 14 de outubro de 1996, conforme art.
239, § 8º-A: “A incidência de juros moratórios e multa de que trata o § 8º será estabelecida
para fatos geradores ocorridos a partir de 14 de outubro de 1996”. O pagamento em atraso
poderá salvar muitos segurados da reforma previdenciária, quer seja para lhe garantir o
preenchimento dos requisitos ensejadores do benefício antes da sua promulgação (direito
adquirido), quer seja para colocá-lo dentro de alguma regra de transição.

148
A importância dos conceitos jurídicos em matéria previdenciária

DER 02/2020
Número de competências existentes no período básico de cálculo: 308
Número de contribuições recolhidas: 82
Divisor: 184 (308 x 60%)
O cálculo foi a soma dos 82 SC corrigidos monetariamente e divididos
por 184

No caso de aplicação do mínimo divisor, portanto, o INSS consideraria


um valor de R$0,00 para 102 competências, causando um significativo pre-
juízo na renda mensal do titular do benefício. No entanto, o INSS não está
aplicando o mínimo divisor! Confesso que voltei a ser criança quando vi a
primeira carta de concessão de benefício com base na EC 103/2019 ...reju-
venesci dez anos ou mais! A carta de concessão me fez sentir aquele frio na
barriga de novo. A certeza de que não perdi o encantamento pelo estudo do
direito previdenciário.
Uma reflexão ética deste cenário se faz necessária. Como fica a respon-
sabilidade da advocacia? Caso se entenda pela inaplicabilidade, seria pos-
sível contribuir com uma única contribuição, na modalidade de segurado
facultativo, para atender os requisitos de uma aposentadoria híbrida pode
configurar algum tipo de abuso: um enriquecimento ilícito ou sem causa?
Existe, portanto, uma preocupação com isso.
Por outro lado, o Decreto 10.410, de 30 de junho de 2020, reconhece
a aplicação do mínimo divisor para os benefícios concedidos com direito
adquirido até 13/11/2019.23

23 Segundo o art. 188-E: O salário de benefício a ser utilizado para apuração do valor da renda
mensal dos benefícios concedidos com base em direito adquirido até 13 de novembro de 2019
consistirá:
I − para as aposentadorias por idade e por tempo de contribuição, na média aritmética sim-
ples dos maiores salários de contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o
período contributivo, multiplicada pelo fator previdenciário; e
II − para as aposentadorias por invalidez e especial, auxílio-doença e auxílio-acidente, na
média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a oitenta por
cento de todo o período contributivo.
§ 1º No caso das aposentadorias por idade, por tempo de contribuição e especial, o divisor con-
siderado no cálculo da média a que se referem os incisos I e II do caput não poderá ser inferior
a sessenta por cento do período decorrido da competência julho de 1994 até a data de início do
benefício, limitado a cem por cento de todo o período contributivo.

149
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

3.7 Exclusão de contribuições: cuidado!


É certa, também, a possibilidade de exclusão de contribuições que resul-
tem em redução do valor do benefício, desde que mantido o tempo mínimo
de contribuição exigido, conforme § 6º do art. 26.24 Com efeito, o segurado
homem que possuir 20 anos de contribuição poderá excluir, inclusive de
forma fracionada25, 5 anos de contribuição. Se aprovada a mudança que cria
uma regra de transição para a aplicação de 100% da média das contribuições
desde 07/1994 ou da primeira contribuição (80% para quem se aposentar até
o fim de 2021 90% para que se aposentar entre 2022 e o final de 2024 100%
para quem se aposentar a partir de 2025...), para além da possibilidade de
exclusão de contribuições (tempo de contribuição), o sistema, automatica-
mente, excluirá salários-de-contribuições, ou seja, para além dos requisitos
ensejadores do benefício de aposentadoria.
Agora, muito cuidado, pois uma coisa é a lei definir a porcentagem
de contribuições que serão consideradas para fins de cálculo do benefício;
outra, bastante distinta, é a possibilidade de o segurado pedir a exclusão de
contribuições. No primeiro caso, a exclusão se dá de forma automática e será
sempre vantajosa. No segundo, depende da volição (vontade) do segurado e
implica exclusão de tempo de contribuição (é difícil pensar na exclusão para
fins de obtenção de um benefício de auxílio-doença, por exemplo), sendo
que nem sempre isso será vantajoso, já que todo tempo de contribuição que
superar 15 anos, se mulher, e 20, se homem, aumenta a alíquota de cálculo,
ou seja, cada caso é um caso (e isso vale para todos os casos), razão pela qual
a simulação da RMI continua sendo indispensável!
O descarte de contribuições vem previsto apenas para as aposentadorias
programadas no Dec. 10.410/2020, porquanto definitivos, o que gera discus-
sões sobre o benefício de pensão por morte, já que a exclusão, observados
os requisitos necessários, não geraria prejuízo, mas, com certeza, benefício
para os dependentes.

24 No art. 37 da Port. INSS 450/2015: “Na apuração do SB das aposentadorias programáveis


poderão ser excluídas quaisquer contribuições que resultem em redução do valor do bene-
fício, desde que mantida a quantidade de contribuições equivalentes ao período de carência e
observado o tempo mínimo de contribuição exigidos.”
25 As contribuições poderão corresponder à totalidade de algum vínculo empregatício ou ape-
nas parte dele.

150
A importância dos conceitos jurídicos em matéria previdenciária

4. POR FIM, MAS NEM TANTO...


Não se verifica mudanças conceituais de tamanho vulto. Não há qualquer
ruptura; há apenas continuidade. O fenômeno, reconstruído, já não era o da
“primeira vista” (para aqueles que apostavam numa revolução copernica-
na), mas também não podemos dizer que tudo está igual. Novas teses serão
“criadas” e chanceladas pela doutrina e jurisprudência, devendo haver, no
entanto, uma preocupação com a tradição. É a autoridade dessa tradição que
desafia/confronta as novas regras da aposentadoria especial (o que dela so-
brou), justificando/reforçando a inconstitucionalidade de uma idade mínima,
da adoção do mesmo critério de cálculo geral, da vedação da conversão do
tempo de serviço especial em comum, e assim por diante.

REFERÊNCIAS
CAMPOS, Marcelo Barroso Lima Brito de. Regime próprio de previdência social dos servi-
dores públicos. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2011.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Uni-
versitária São Francisco, 1997.
OMMATI, José Emílio Medauar. O positivismo jurídico na prática jurisprudencial brasi-
leira: Um estudo de caso a partir de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça. In:
DIMOULIS, Dimitri; DUARTE, Écio Oto (Coord.). Teoria do direito neoconstitucio-
nal: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008.
ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antonio. Direito previdenciário: fundamentos
de interpretação e aplicação. 2.ed. – Curitiba: Alteridade Editora, 2019.
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Os conceitos jurídicos. Academia. p. 6. Disponível em:
<http://www.academia.edu/11586813/ Os_conceitos_jur%C3%ADdicos>. Acesso
em: 18 maio 2020.
SCHUSTER, Diego Henrique Schuster. Direito previdenciário para compreender: com a
prática colada na teoria e sem respostas prontas. Curitiba: Alteridade, 2018.
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria
do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento,
2017.

151
REGRA DE TRANSIÇÃO PARA
APOSENTADORIA ESPECIAL

Adrielli Cunha Caixeta1


Diego Wellington Leonel2

EC 103/2019, Art. 21. O segurado ou o servidor público federal que


se tenha filiado ao Regime Geral de Previdência Social ou ingressado no
serviço público em cargo efetivo até a data de entrada em vigor desta
Emenda Constitucional cujas atividades tenham sido exercidas com
efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais
à saúde, ou associação desses agentes, vedada a caracterização por
categoria profissional ou ocupação, desde que cumpridos, no caso do
servidor, o tempo mínimo de 20 (vinte) anos de efetivo exercício no ser-
viço público e de 5 (cinco) anos no cargo efetivo em que for concedida
a aposentadoria, na forma dos arts. 57 e 58 da Lei nº 8.213, de 24 de
julho de 1991, poderão aposentar-se quando o total da soma resultante
da sua idade e do tempo de contribuição e o tempo de efetiva exposição
forem, respectivamente, de:
I − 66 (sessenta e seis) pontos e 15 (quinze) anos de efetiva exposição;

1 Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidad del Museo Social Argentino, Membro da
Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Minas Gerais,
Presidente da Comissão de Direito Previdenciário da 65ª Subseção da OABMG, Coordena-
dora Adjunta do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário no Estado de Minas Gerais.
2 Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino,
Membro da Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil Seção
Minas Gerais, Diretor Adjunto, Consultor Jurídico de Institutos de Previdência de Servido-
res Públicos, Diretor Adjunto de Atuação Parlamentar do Instituto Brasileiro de Direito Pre-
videnciário – IBDP, Diretor Adjunto de Previdência do Servidor Público o Instituto Brasileiro
de Direito Previdenciário – IBDP.

153
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

II − 76 (setenta e seis) pontos e 20 (vinte) anos de efetiva exposição; e


III − 86 (oitenta e seis) pontos e 25 (vinte e cinco) anos de efetiva
exposição.
§ 1º A idade e o tempo de contribuição serão apurados em dias para
o cálculo do somatório de pontos a que se refere o caput.
§ 2º O valor da aposentadoria de que trata este artigo será apurado
na forma da lei.
§ 3º Aplicam-se às aposentadorias dos servidores dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios cujas atividades sejam exercidas com
efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à
saúde, ou associação desses agentes, vedada a caracterização por categoria
profissional ou ocupação, na forma do § 4º-C do art. 40 da Constituição
Federal, as normas constitucionais e infraconstitucionais anteriores à data
de entrada em vigor desta Emenda Constitucional, enquanto não promo-
vidas alterações na legislação interna relacionada ao respectivo regime
próprio de previdência social.

A Emenda Constitucional 103/2019 criou regra de transição para os


servidores públicos federais que ingressaram no serviço público em cargo
efetivo até 12 de novembro de 2019, com a possibilidade da aposentadoria
especial, desde que seja atingida uma pontuação mínima (igual a soma da
idade com o tempo de contribuição).
Para isto, é necessário também que o servidor público tenha cumprido
o tempo mínimo de 20 (vinte) anos de efetivo exercício no serviço público
e de 05 (cinco) anos no cargo efetivo em que for concedida a aposentadoria.
Então, a depender da categoria funcional, a aposentadoria especial pode
ser concedida com 15, 20 ou 25 anos de efetiva exposição à agentes químicos,
físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação destes agentes, devendo
preencher 66, 76 ou 86 pontos respectivamente, respeitando o tempo mínimo
no serviço público e no cargo efetivo.
A título de exemplo, sobre a implementação desta pontuação, a depender
da idade de ingresso no serviço público, do tempo de efetiva exposição e do
tempo no serviço público, o servidor permanecerá, por diversas vezes, no
desempenho de atividade especial por períodos superiores aos 15, 20 ou 25
anos de efetiva exposição (previstos nos incisos I, II e III). Vejamos:
Para um servidor público que conta atualmente com 55 (cinquenta e
cinco) anos de idade, 20 anos de efetivo exercício no serviço público mais
154
Regra de transição para aposentadoria especial

05 anos no cargo efetivo, sendo estes mesmos 25 anos exercidos integral-


mente sob efetiva exposição à agentes nocivos à sua saúde, não conseguirá
se aposentar pela regra de transição hoje, mesmo possuindo 25 anos de
efetiva exposição aos agentes prejudiciais à sua saúde, posto que alcançou
somente 80 pontos, quando seriam necessários 86 (inciso I, art. 21, EC
103/2019).
Outro ponto deste artigo que merece destaque, é sobre a expressão “efe-
tiva” utilizada para qualificar a exposição aos agentes prejudiciais à saúde,
demonstrando uma maior rigidez para o reconhecimento das atividades es-
peciais, visto que traz a ideia de uma exposição concreta, verdadeira, factual
com força constitucional.
Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, em repercussão geral, fixou
a seguinte tese:

O direito à aposentadoria especial pressupõe a efetiva exposição do


trabalhador a agente nocivo a sua saúde, de modo que, se o Equipamento
de Proteção Individual (EPI) for realmente capaz de neutralizar a nocividade,
não haverá respaldo constitucional à aposentadoria especial (...)3.

Pois bem, a inclusão da expressão efetiva já nas regras de transição impõe


um cuidado ainda maior para a comprovação da nocividade aos servidores
públicos federais que queiram se aposentar pela regra de transição do artigo
21, devendo analisar minuciosamente a existência ou não de fatores que
isentem ou neutralizem a nocividade no ambiente laboral.
Observa-se também que a regra de transição trouxe a delimitação da
exposição aos “agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou
associação desses agentes”, determinando, com força constitucional, os tipos
de agentes nocivos que prejudicam a saúde do servidor e que possibilitam a
aposentadoria especial.
Sobre o assunto, é oportuno citar as ponderações feitas pela Dra. Adriane
Bramante de Castro Landenthin:

Era admissível, por exemplo, discutir a penosidade, os agentes psico-


lógicos, os ergonômicos, pois também poderiam (e ainda podem!) causar
prejuízo à saúde do trabalhador.

3 STF. Processo ARE 664.335, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 09.12.2014.

155
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Com a novel redação, somente os agentes indicados no Texto Consti-


tucional poderão garantir o direito ao tratamento diferencial. Houve uma
sensível limitação dos agentes nocivos ao fixarem apenas os físicos, quími-
cos e biológicos ou a associação de agentes. (LANDENTHIN, 2020, 196)

Além disso, o texto constitucional veda a caracterização por categoria


profissional ou ocupação, o que não traz nenhuma surpresa, já que o reconhe-
cimento de atividade especial por enquadramento (presunção) ficou vigente
somente até 28.04.1995 (data anterior à vigência da Lei nº. 9.032/95).
Veja que, até 28.04.1995, era possível o enquadramento da atividade
especial por presunção, conforme previsto no artigo 3º da mesma IN 01/10.
Ou seja, ainda que a regra de transição vede a caracterização do tempo
especial por categoria profissional ou ocupação, entendo que o dispositivo
não atinge o direito de reconhecer atividades especiais presumidamente, se as
leis vigentes à época do exercício das atribuições do servidor público assim o
permitiam. Deve-se respeitar o princípio do tempus regit actum.
Esta regra de transição prevê que os proventos de aposentadoria serão
apurados na forma da lei.

Nulidade de Aposentadoria
Art. 25. Será assegurada a contagem de tempo de contribuição fictício
no Regime Geral de Previdência Social decorrente de hipóteses descritas na
legislação vigente até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucio-
nal para fins de concessão de aposentadoria, observando-se, a partir da sua
entrada em vigor, o disposto no § 14 do art. 201 da Constituição Federal.
§ 3º Considera-se nula a aposentadoria que tenha sido concedida ou
que venha a ser concedida por regime próprio de previdência social com
contagem recíproca do Regime Geral de Previdência Social mediante o
cômputo de tempo de serviço sem o recolhimento da respectiva con-
tribuição ou da correspondente indenização pelo segurado obrigatório
responsável, à época do exercício da atividade, pelo recolhimento de suas
próprias contribuições previdenciárias.

Em que pese a EC 103/2019 expressamente resguardar as hipóteses


descritas na legislação vigente até a entrada em vigor desta Emenda para
contagem de tempo de contribuição fictício no Regime Geral de Previdência
Social, situação oposta se apresenta com relação ao Regime Próprio de Pre-
vidência Social.
156
Regra de transição para aposentadoria especial

Isso porque, o texto do §3º menciona considerar-se nula a aposentadoria


que tenha sido concedida ou que venha a ser concedida por Regime Próprio
de Previdência Social com contagem recíproca do Regime Geral de Previdên-
cia Social mediante o cômputo de tempo de serviço sem o recolhimento da
respectiva contribuição.
Ao se tratar de contagem recíproca mediante o cômputo de tempo de
serviço ficto, sem o recolhimento da respectiva contribuição ou da corres-
pondente indenização, destaco os ensinamentos do Dr. Marcelo Barroso Lima
Brito de Campos:

Com a exigência do tempo de contribuição concomitante ao tempo de


serviço, proibiu-se a previsão legal de qualquer contagem de tempo ficto
(CF, art. 40, §10, com a redação da EC 20/1998, mantida pela EC 41/2003),
como acontecia anteriormente. Ressalta-se que todo o tempo de serviço
considerado pela legislação anterior à Emenda Constitucional 20/98 para
efeito de aposentadoria, cumprido até que lei discipline a questão, será
contado como tempo de contribuição, o que foi assegurado também pela
Emenda Constitucional 41/03 (EC 20/1998, art. 4º, e EC 41/2003, art.2º).
(CAMPOS, 2017, p. 340)

Vale recordar que foi a EC 20/98 que transformou a aposentadoria por


tempo de serviço nos regimes próprios em aposentadoria por tempo de
contribuição, convertendo através de norma transitória, todo o tempo de
serviço desempenhado sob a égide da legislação que a precedia, em tempo
de contribuição.
Desta forma, a maior incongruência legislativa vislumbrada neste dispo-
sitivo é sobre a possibilidade trazida pela EC 103/2019, de considerar-se nula
a aposentadoria que já foi concedida por regime próprio de previdência social
com contagem recíproca do Regime Geral de Previdência Social mediante o
cômputo de tempo ficto.
O §3º do artigo 25 da EC 103/2019 é norma flagrantemente retroativa,
buscando regredir direitos previstos antes mesmo da EC 20/98.
Veja que, quando permitido por lei, vários entes federativos já permitiram
a contagem de tempo ficto para aposentadoria e atualmente não mais. Um
exemplo são as férias-prêmio não gozadas, em dobro.
Desta forma, possibilitar a partir de novas regras, a nulidade de uma
aposentadoria que foi amparada em situações consolidadas dentro das leis

157
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

vigentes à época de sua concessão, fere o princípio da segurança jurídica e


preceitos constitucionais fundamentais, eis que os direitos previdenciários
possuem caráter social. Em situação similar, veja o que diz CAMPOS:

A vedação do tempo ficto deve operar efeitos após a promulgação


da EC 20/98 para situações consolidadas após essa emenda. No caso do
servidor que teve direito às férias prêmio reconhecido antes da mudança
normativa, leva consigo todos os direitos expectados decorrentes do direito
principal, o que impõe a permissão da contagem em dobro nesse caso.
O Direito aplicável é o princípio do tempus regit actum. Se ao tempo em
que adquiriu as férias prêmio o servidor podia guardá-lo para contagem
dobrada no momento da aposentadoria, certamente fiando nessa situação,
o servidor não gozou e nem a alienou, esperando contar com ela na sua
jubilação. Por isso, de forma abrupta e sub-reptícia não pode ser ceifado
desse direito expectado. (CAMPOS, 2012, P. 234)

Veja que esta situação encontra defesa constitucional no artigo 5º, XXXVI:

XXXVI − a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico per-


feito e a coisa julgada;

É certo que as reformas previdenciárias são essenciais para adaptação


do direito às novas exigências sociais, contudo essas alterações não podem
romper com os sistemas que lhe antecedem, devendo ser resguardado o direito
adquirido e expectado, respeitando a devida segurança jurídica que permeia
a relação previdenciária.

Normas Revogadas
EC 103/2019, Art. 35. Revogam-se:
I − os seguintes dispositivos da Constituição Federal:
a) o § 21 do art. 40; (Vigência)
III − os arts. 2º, 6º e 6º-A da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de
dezembro de 2003; (Vigência)
IV − o art. 3º da Emenda Constitucional nº 47, de 5 de julho de 2005.
(Vigência)

O artigo 35, em análise, revoga várias normas aplicáveis aos servidores


públicos federais. A primeira delas é o §21 do art. 40 da CF/88, que havia
158
Regra de transição para aposentadoria especial

sido incluído pela Emenda Constitucional nº. 47/2005, onde previa que a
contribuição sobre os proventos de aposentadoria e pensões concedidas pelo
Regime Próprio de Previdência Social ao beneficiário portador de doença
incapacitante, incidirá apenas sobre as parcelas da aposentadoria e de pensão
que superem o dobro do limite máximo estabelecido para os benefícios do
regime geral de previdência social.
Contudo, a partir da revogação do dispositivo, permanece válida a in-
cidência de contribuição sobre os proventos de aposentadorias e pensões
concedidas pelo regime próprio de previdência social que superem o limite
máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social,
com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos
efetivos.
Já os incisos III e IV referem-se à revogação de regras de transição até
então vigentes e aplicáveis, contidas na EC 41/2003, arts. 2º, 6º e 6º-A, e EC
47/2005, art. 3º, que servem como opção ao servidor que ingressou regular-
mente no cargo efetivo antes da EC 20/98 ou da EC 41/2003.
É importante ter em mente que as Emendas Constitucionais anteriores
foram necessárias para adequar a previdência às necessidades sociais da
época, bem como que as regras de transição ali contidas são criadas justa-
mente para diminuir o impacto causado quando da alteração das regras de
aposentadoria.
Outrora, ao se revogar as citadas normas, as regras de transição aplicáveis
passam ser as previstas na própria EC 103/2019, sem distinção do servidor
que iniciou no serviço público sob a égide de regras mais brandas ou que já
esteja há muitos anos na atividade.
Dos ensinamentos compartilhados pelo doutrinador Marcelo Barroso
Lima Brito de Campos, destaco para este tópico:

O sistema previdenciário se estrutura por relações duradouras de longo


e sucessivo trato e, neste contexto, as alterações exigem a disciplina dos
direitos de transição entre a nova ordem e a ordem alterada. Com efeito, no
rol desta transição se encontram, além de meras expectativas de direitos,
também os direitos expectados, que apesar de ainda não serem adquiridos,
não deixam de ser direitos. (CAMPOS, 2017, p. 248)

Falar em direitos expectados é proteger as conquistas já obtidas pelos


servidores, ainda não consolidados em situações definidas, mas que “cons-
159
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

tituem direitos a definir direitos” (CAMPOS, 2012, p.272), sendo objeto de


segurança jurídica.
A supressão de regras de transições anteriores, que alcançariam servidores
ainda ativos, substituindo pela imposição de regras draconianas constantes das
novas disposições da EC 103/2019, fere gravemente os princípios da proteção
da confiança e da segurança jurídica.
Sem razoabilidade e proporcionalidade na revogação das regras de tran-
sição em comento, além da ofensa aos preceitos constitucionais citados, e
considerando que os direitos expectados pelas regras de transição constantes
das emendas revogadas necessitam ser protegidos, entendo pela inconstitu-
cionalidade dos incisos III e IV do art. 35 da EC 103/2019.

Vigência da Emenda Constitucional nº 103


Art. 36. Esta Emenda Constitucional entra em vigor: II − para os regi-
mes próprios de previdência social dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, quanto à alteração promovida pelo art. 1º desta Emenda
Constitucional no art. 149 da Constituição Federal e às revogações pre-
vistas na alínea “a” do inciso I e nos incisos III e IV do art. 35, na data
de publicação de lei de iniciativa privativa do respectivo Poder Executivo
que as referende integralmente.

A Emenda Constitucional nº 103 possibilita a União, os Estados, o Dis-


trito Federal e os Municípios a instituírem alíquotas progressivas de acordo
com a base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de pensão.
Esta permissão introduzida pela nova previdência está na alteração promovida
pelo art. 1º no artigo 149 da Constituição Federal.
A nova previdência também possibilita o aumento da responsabilidade
contributiva dos aposentados e pensionistas, com vistas a viabilizar o alcance
do equilíbrio atuarial no respectivo regime próprio de previdência social, ha-
vendo déficit a contribuição ordinária dos aposentados e pensionistas poderá
incidir sobre o valor dos proventos de aposentadoria e de pensões que supere
o salário mínimo.
Nos entes da federação que não fizeram suas respectivas reformas alteran-
do este dispositivo, os aposentados e pensionistas ainda possuem uma faixa
de isenção de contribuição limitada ao teto dos benefícios do Regime Geral
de Previdência Social, ou seja, contribuem apenas sobre o valor que superar
o teto dos benefícios do RGPS.
160
Regra de transição para aposentadoria especial

Visando oportunizar e viabilizar o equilíbrio financeiro e atuarial do Regime


Próprio de Previdência Social, a nova previdência introduz a possibilidade de
o ente instituir contribuição extraordinária, cujo prazo de duração não poderá
ultrapassar 20 (vinte) anos e deverá ser instituída mediante lei local que promova
simultaneamente outras medidas para equacionamento do déficit.
Contudo, para que estas alterações e as revogações previstas na alínea
“a” do inciso I e nos incisos III e IV do art. 35, passem a vigorar nos Estados,
Distrito Federal e Municípios, o ente da federação que desejar realizá-las de-
verá fazer tramitar lei de iniciativa privativa do respectivo Poder Executivo,
referendando estas alterações, motivo pelo qual enquanto não houver lei local
referendando, os dispositivos em comento não entrarão em vigor.
Diga-se de passagem, é plenamente possível a lei local, caso assim deseje
o respectivo ente federado, referendar apenas as alterações realizadas pelo
artigo 1º da Emenda Constitucional nº 103 no artigo 149 da Constituição
Federal e não referendar as revogações previstas na alínea “a” do inciso I e
nos incisos III e IV do art. 35 da nova previdência.
Nesse ínterim, dispôs a nota técnica SEI nº 12212/2019/ME:

Observe-se que nos parece válido o referendo da lei estadual, distrital


ou municipal incidir apenas sobre a alteração promovida pelo art. 1º da EC
nº 103, de 2019, no art. 149 da Constituição Federal, desde que integral,
mesmo que o inciso II do art. 36 da EC nº 103, de 2019, também aborde
o referendo para as revogações previstas na alínea “a” do inciso I e nos
incisos III e IV do art. 35 dessa Emenda. Isto porque a aplicação do novo
teor do art. 149 da Constituição é relativamente independente da aplica-
ção da imunidade de parcela dos proventos de aposentadoria e de pensão
em caso de doença incapacitante e das regras de transição das reformas
constitucionais anteriores das Emendas Constitucionais nº 41, de 2003, e
47, de 2005, de que tratam as aludidas revogações.

A lei local, por sua vez, não produzirá efeitos anteriores à data de sua
publicação.

Normas de aplicabilidade imediata a Estados, Distrito Federal e Mu-


nicípios.

Desde a publicação da Emenda Constitucional nº 103 a União passou a ter


competência privativa para editar normas gerais sobre inatividades e pensões
161
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

das polícias militares e corpos de bombeiro militares. Nos termos do artigo


42 da Constituição Federal os Estados continuam a possuir competência para
tratar em lei específica sobre suas regras de aposentadorias e pensões, contudo,
deverão adaptar suas legislações regionais ao que vier a ser disposto em lei
de caráter geral da União sobre normas gerais de inatividades e pensões das
polícias militares e corpos de bombeiros militares.
No âmbito dos Estados, Distrito Federal e Municípios, possuem eficácia
plena e aplicabilidade imediata as normas constitucionais e infraconstitucio-
nais anteriores à data de entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 103,
de que dispõe sobre regras de elegibilidade e cálculo de aposentadorias e
pensões, bem como à regra de concessão de abono de permanência, enquanto
não promovidas alterações na legislação interna relacionada ao respectivo
regime próprio de previdência social.
A nova previdência incluiu o parágrafo 14 no artigo 37 da Constituição
Federal, introduzindo uma regra que dispõe sobre o rompimento do vínculo
de aposentadoria quando concedida com a utilização de tempo de contribuição
decorrente de cargo, emprego ou função pública, inclusive do Regime Geral
de Previdência Social.
O que a Emenda Constitucional traz é o rompimento do vínculo do
servidor com a administração pública em decorrência da aposentação, ou
seja, naqueles Municípios que não possuem Regime Próprio de Previdência
Social, o servidor que se aposentar deverá ser desligado da administração e
não poderá continuar em atividade no mesmo vínculo.
Outro ponto cuja alteração possui aplicabilidade imediata aos entes da
federação é a possibilidade de complementação de aposentadoria dos servi-
dores públicos. Essa complementação surge nas aposentadorias de servidores
públicos titulares de cargos em provimento efetivo, cujo ente federativo não
possui Regime Próprio de Previdência Social e, seus servidores públicos estão
vinculados ao Regime Geral de Previdência Social.
Como no Regime Geral de Previdência Social existe um teto máximo
previsto para recebimento de aposentadorias e pensões, na hipótese em que
o valor da aposentadoria do servidor público for superior ao teto máximo
previsto no RGPS, o ente faz a complementação da aposentadoria do valor
que ultrapassar o teto, garantindo ao servidor, proventos superiores ao teto
do RGPS.
Naquele ente federativo em que não existia previsão legal de comple-
mentação de aposentadoria, servidores públicos buscavam a via judicial
162
Regra de transição para aposentadoria especial

como solução. Contudo, a nova previdência incluiu na Constituição Federal


o parágrafo 15, no artigo 37, vedando expressamente esta complementação,
salvo a complementação decorrente de previdência complementar ou extinção
do regime próprio.
Atualmente existem aproximadamente 2.100 Regimes Próprios de Pre-
vidência Social no Brasil, contudo, a nova previdência veda a instituição de
novos regimes próprios, esta vedação também possui eficácia plena e aplica-
bilidade imediata.
Outra novidade introduzida pela nova previdência foram as vedações
de acúmulo do benefício de pensão por morte, agora a pensão por morte
quando cumulada com outro benefício sofrerá reduções no seu valor, bem
como fica expressamente vedado pela Constituição a acumulação de mais
de uma pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro, no âmbito
do mesmo regime de previdência social, ressalvadas as pensões do mesmo
instituidor decorrentes do exercício de cargos acumuláveis na forma do art.
37 da Constituição Federal.
As vedações e limitações previstas no artigo 24 da Emenda Constitucional
nº 103 são de observância obrigatória inclusive para Estados, Municípios e
Distrito Federal, razão pela qual os Institutos de Previdência devem adequar
suas legislações locais de acordo com o novo comando constitucional.
Muitos Estados e Municípios dispõem em suas legislações possibilida-
des de incorporação de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao
exercício de função de confiança ou de cargo em comissão à remuneração
do cargo efetivo. A nova previdência por sua vez, conforme disposto no § 9º
do artigo 39, da Constituição Federal veda a incorporação de vantagens de
caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de
cargo em comissão à remuneração do cargo efetivo.
Contudo, as incorporações efetivadas até a data de entrada em vigor da
Emenda Constitucional nº 103, não se aplica as vedações previstas no § 9º
do artigo 39, da Constituição Federal, conforme previsão contida no artigo
13 da referida Emenda Constitucional.
A nova previdência também traz a obrigatoriedade de Estados, Municípios
e Distrito Federal ajustarem a contribuição de seus servidores à patamares
não inferiores à 14% (quatorze por cento), salvo na hipótese de instituição de
alíquotas progressivas, ocasião em que as alíquotas não poderão ser inferiores
às aplicáveis ao Regime Geral de Previdência Social.
163
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

No que tange ao prazo para Estados, Municípios e Distrito Federal


adequarem suas alíquotas de contribuição, o Ministério da Economia editou
a portaria nº 1.348 de 2019 concedendo até 31 de Julho de 2020 para que
comprovem à Secretaria de Especial de Previdência e Trabalho a vigência de
lei que evidencie a adequação.
Vale ressaltar que este prazo se refere apenas à fiscalização do Ministério
da Economia para fins de regularidade previdenciária, razão pela qual esta
portaria não vincula fiscalização do respectivo Tribunal de Contas.
Ainda sobre o prazo de adequação, cumpre-nos advertir que estamos
em ano eleitoral e existem legislações que vedam a majoração de alíquota de
contribuição dos entes da federação em período posterior à 3 de julho de 2020.
Nos termos do artigo 18 da Lei Complementar nº 101, de 04 de maio
de 2000, as contribuições previdenciárias recolhidas pelos entes às entida-
des de previdência é caracterizada como despesa com pessoal, logo, torna-se
nulo o aumento de alíquota de contribuição expedido nos cento e oitenta
dias anteriores ao final do mandato do titular do respectivo Poder ou órgão
referido no art. 20, conforme previsão contida no parágrafo único do artigo
21 da referida Lei Complementar.
Diante desta realidade, embora a Portaria Ministerial conceda prazo até
31 de julho de 2020, por se tratar de ano eleitoral, este prazo está reduzido
até 3 de julho de 2020.

REFERÊNCIAS
CAMPOS, Marcelo Barroso Lima Brito de. Direitos Previdenciários Expectados. Curitiba:
Juruá, 2012.
CAMPOS, Marcelo Barroso Lima Brito de. Regime Próprio de Previdência Social dos Ser-
vidores Públicos. Curitiba: Juruá, 2017.
FOLMANN, Melissa; FERRARO, Suzani Andrade. Previdência: entre o direito social e a
repercussão econômica no século XXI, Curitiba: Juruá, 2009.
LANDENTHIN, Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria Especial. Curitiba: Juruá,
2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário com Agravo
664.335/SC. Direito constitucional previdenciário. Aposentadoria especial. Art. 201,
§ 1º, da constituição da república. Requisitos de caracterização. Tempo de serviço
prestado sob condições nocivas. Fornecimento de equipamento de proteção indi-

164
Regra de transição para aposentadoria especial

vidual − epi. Tema com repercussão geral reconhecida pelo plenário virtual. Efetiva
exposição a agentes nocivos à saúde. Neutralização da relação nociva entre o agente
insalubre e o trabalhador. Comprovação no perfil profissiográfico previdenciário PPP
ou similar. Não caracterização dos pressupostos hábeis à concessão de aposentadoria
especial. Caso concreto. Agente nocivo ruído. Utilização de epi. Eficácia. Redução da
nocividade. Cenário atual. Impossibilidade de neutralização. Não descaracterização
das condições prejudiciais. Recorrente: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SO-
CIAL – INSS. Recorrido: ANTONIO FAGUNDES. Relator: Ministro Luiz Fux, 04 de
dezembro de 2014. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=TP&docID=7734901. Acesso em: 03 de julho de 2020.
BRASIL. Ministério da Previdência Social. Instrução Normativa 01/2010. Brasília, DF:
Ministério da Previdência Social, 27 julho 2010. Assunto: Estabelece instruções
para o reconhecimento do tempo de serviço público exercido sob condições es-
peciais que prejudiquem a saúde ou a integridade física pelos regimes próprios de
previdência social para fins de concessão de aposentadoria especial aos servidores
públicos amparados por Mandado de Injunção.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

165
O AUXÍLIO-DOENÇA E A NOVA
PREVIDÊNCIA: A CONTAGEM DE TEMPO
DE CONTRIBUIÇÃO PELO SEGURADO VS.
A CONCEPÇÃO DE TEMPO FICTO

Fernando Rubin1

Resumo: O benefício previdenciário de maior vazão junto ao INSS,


o auxílio-doença, trata-se também de um benefício coringa, pela
sua polivalência. Historicamente usado para manter a qualidade de
segurado, também vinha sendo utilizado para contagem de tempo
de contribuição e mesmo para fins de carência. Quanto à contagem
de tempo, não tão distante o próprio benefício por incapacidade não
oriundo de acidente de trabalho, fora confirmado como benefício que
conta tempo de contribuição para a aposentadoria especial, reforçando
as características de sua polivalência. Com a entrada em vigor da Nova
Previdência e o conceito de vedação de tempo ficto, pairam dúvidas a
respeito da situação do auxílio-doença, se continuará contando tempo
de contribuição, compondo a aposentadoria programada do segurado
ou não. Atentos à eventual alteração na sistemática previdenciária,
coloca-se o tema a debate sugerindo a manutenção do status quo.

1 Advogado-sócio do Escritório de Direito Social, especializado em saúde do trabalhador. Bacha-


rel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com a distinção da
Láurea Acadêmica. Mestre em processo civil pela UFRGS. Doutorando pela PUCRS. Professor
da Graduação e Pós-graduação do Centro Universitário Ritter dos Reis – UNIRITTER, Laureate
International Universities. Professor colaborador da Escola Superior de Advocacia (ESA/RS).
Professor pesquisador do Centro de EstudosTrabalhistas do Rio Grande do Sul (CETRA-Imed).
Professor convidado de cursos de pós-graduação lato sensu. Parecerista. Colunista e articulista
de revistas jurídicas. Autor de diversas obras jurídicas em Processo e Previdência.

167
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Palavras-chave: Benefícios por incapacidade. Auxílio-doença. Conta-


gem de tempo de contribuição. Tempo ficto. Nova Previdência.

Sumário: I. Conceituação geral da matéria. II. A contagem de tempo


de contribuição e o conceito de tempo ficto estabelecido pela Nova
Previdência. III. Síntese conclusiva. IV. Referências bibliográficas.

I. CONCEITUAÇÃO GERAL DA MATÉRIA


O primeiro grande benefício por incapacidade do Regime Geral da
Previdência Social é o auxílio-doença2. Ocorrendo um acidente de qualquer
natureza ou um acidente no trabalho (acidente típico, acidente de trajeto ou
doença ocupacional) é possível que o segurado necessite de um maior período
de afastamento para recuperação adequada do quadro infortunístico3.
Em se tratando de infortúnio de natureza não laboral, tanto os segurados
obrigatórios quanto os segurados facultativos farão jus à prestação, já que
nenhum cidadão-contribuinte está livre de, por algum evento não previsto,
ficar temporariamente impedido de realizar as suas atividades hodiernas. No
caso específico dos segurados obrigatórios, em ocorrendo alguma moléstia,
o benefício auxílio-doença comum será sempre devido ao contribuinte indi-
vidual, já que este não possui, por lei de maneira clara, a opção de percepção
de benefício provisório de natureza acidentária.
Tomando por base o celetista, a previsão é de que deverá permanecer
afastado de suas atividades habituais por mais de quinze dias – pequeno pe-
ríodo esse em que cabe ao empregador o ônus de arcar com a remuneração
do obreiro, mesmo que não haja prestação de serviço. A partir do 16° dia de
afastamento, cabe ao órgão previdenciário conceder benefício ao empregado
lesionado, realizando perícias de rotina para avaliar o desenvolvimento do

2 A respeito, obra central: RUBIN, Fernando. Benefícios por incapacidade no Regime Geral
de Previdência Social.Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2014.
3 O acidente de trajeto foi excluído pela MP 905/2019, acompanhando as alterações legis-
lativas na CLT, de 2017. No entanto, a MP acabou sendo revogada, razão pela qual a toda
evidência permanece, por ora, a existência da possibilidade de caracterização do acidente de
trajeto. A respeito: Trabalhador que sofrer acidente em trajeto volta a ter direitos assegu-
rados – notícia Conjur de 27/04/2020 − https://www.conjur.com.br/2020-abr-27/acidente-tra-
jeto-volta-considerado-acidente-trabalho.

168
O auxílio-doença e a nova previdência

quadro clínico e as perspectivas de retorno do acidentado ao mercado de


trabalho, para a prática da mesma atividade profissional ou para outra com-
patível com as suas atuais limitações funcionais.
Permanecendo o obreiro por mais de quinze dias afastado do trabalho,
será determinado pelo INSS a concessão de um benefício provisório – o
auxílio-doença; sendo realmente improvável que se faça a opção imediata
pela concessão de um benefício de natureza definitiva – o auxílio-acidente ou
até mesmo a aposentadoria por invalidez, a serem mais a frente explicitados.
Em casos mais graves, é de praxe a concessão pelo INSS de certo período
para análise das peculiaridades do problema de saúde (quando mantido o
segurado em benefício provisório), para um posterior encaminhamento da
melhor solução definitiva (quando então cogitada a possibilidade de trans-
formação do benefício provisório em definitivo – auxílio-acidente ou apo-
sentadoria por invalidez).
O requerimento de benefício por incapacidade inicial, como aludido, a
partir do 16° dia de afastamento, deve ser feito junto à agência do INSS ou
INSS digital (meio eletrônico, mais em voga no último período no Brasil),
sendo comum que o empregador tenha estrutura interna capaz de intermediar
a relação segurado – órgão previdenciário, auxiliando nesse primeiro contato
com a autarquia federal para fins de afastamento do trabalhador por prazo
indeterminado do ambiente de trabalho.
Por certo, não é possível qualquer participação do Poder Judiciário em
estágio anterior à negativa de benefício na via administrativa, devendo ser
oportunizado que perícia, a cargo dos médicos do INSS, avalie primeiramente
a condição de saúde do trabalhador. A partir daí, existindo inconformida-
de do segurado com a decisão administrativa tomada, poder-se-ia admitir
o ingresso na via judicial para discussão de lesão a direito (art. 5°, XXXV
CF/88), mesmo sem o exaurimento das instâncias recursais administrativas
(Súmula 89 STJ4).
Em face dos recentes episódios de CoronaVírus no Brasil (COVID-19),
vem ganhando força as perícias indiretas, na via administrativa e judicial, em

4 STJ Súmula nº 89 − 21/10/1993 − DJ 26.10.1993. Ação Acidentária − Via Administrativa:


“A ação acidentária prescinde do exaurimento da via administrativa”. Ainda oportuna a
lembrança da Súmula TRF da 2ª Região n° 44: “Para a propositura de ações de natureza
previdenciária é desnecessário o exaurimento das vias administrativas”.

169
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

que o benefício provisório é deferido com exame dos documentos anexados


ao processo, sem a perícia física diante do perito do INSS ou do perito judicial.
Em momento posterior, ainda dentro do longo período da Pandemia Mundial,
o CNJ aventou para a possibilidade de TelePerícia, aqui com o complemento
de que o expert, embora não tenha o contato pessoal com o segurado, pode
ao menos vê-lo à distância, sendo autorizado acompanhamento pelo assis-
tente técnico5.
Desde já devemos apontar outro tópico relevante no estudo do benefício
por incapacidade e seu requerimento administrativo, qual seja, a da “perda
da qualidade de segurado”.
Isto porque, muitas vezes, o segurado tem indeferido benefício por
incapacidade na agência do INSS, especialmente o auxílio-doença, não por
razão propriamente médica/clínica, mas sim supostamente por razão de or-
dem formal/burocrática, embora esteja visivelmente incapacitado em razão
de determinado problema de saúde.
Pode ocorrer de o trabalhador sofrer um acidente e não pleitear junto ao
INSS, àquele tempo, o seu legítimo benefício auxílio-doença. Posteriormente,
desempregado e sem melhores perspectivas, decide investigar melhor os seus
direitos e então recorre ao sistema previdenciário, momento em que é infor-
mado que não pode receber qualquer benefício por incapacidade devido ao
fato de não manter mais vínculo com o sistema previdenciário.

5 O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, em 28/04/2020, a edição de ato normativo


para realização de perícias eletrônicas e virtuais enquanto durar a pandemia de Covid-19.
A medida segue orientação da Rede dos Centros Locais de Inteligência da Justiça Federal
que destacou a viabilização de teleperícia ou perícia virtual nas ações judiciais que tratem
de benefícios por incapacidade, baseada em nota técnica elaborada pelo Centro Local de
Inteligência da Justiça Federal de São Paulo (CLISP). Na visão do CLISP, a ferramenta tem
extrema relevância porque possibilita o trâmite de milhares de processos judiciais na seção
judiciária de São Paulo, com possibilidade de replicação nas demais seções judiciárias do
país. Além da nota, a Resolução leva em conta o ofício do Conselho Federal de Medicina
que reconhece a utilização da telemedicina, as recomendações da Organização Mundial de
Saúde referentes à adoção do isolamento social para conter a transmissão do novo corona-
vírus e a eficácia do procedimento para examinar o paciente sem contato físico. Dentre as
normas estipuladas pelo CNJ para a realização da perícia estão a obrigação de que o pro-
cedimento seja requerido ou consentido pelo periciando e a criação de uma sala de perícia
na Plataforma Emergencial de Videoconferência para Atos Processuais disponibilizada pelo
Conselho. Texto retirado do sítio AJUFE − https://www.ajufe.org.br/imprensa/noticias-covid-
-19/13721-apos-nota-tecnica-dos-centros-de-inteligencia-da-justica-federal-cnj-aprova-realiza-
cao-de-telepericia. Acesso em 05 de maio de 2020.

170
O auxílio-doença e a nova previdência

Mesmo que se admita que no momento do requerimento do benefício


previdenciário não há mais o vínculo entre o segurado e o INSS – em razão
da descontinuidade de contribuições previdenciárias pelo segurado e do tér-
mino do período de graça (período provisório em que o obreiro mantém a
qualidade de segurado mesmo sem contribuir mensalmente ao sistema) – o
que realmente interessa é se havia o aludido vínculo jurídico ao tempo da
ocorrência do evento infortunístico, ou seja, do FATO GERADOR (brocardo
tempus regit factum).
É nesse momento – qual seja, do “sinistro” – que deve ser feita a inves-
tigação a respeito da qualidade ou eventual perda da qualidade de segurado
do trabalhador; e não ao tempo do pedido administrativo. Adota-se esta
postura para privilegiar legitimamente o hipossuficiente, mesmo porque é
comum que, por ignorância, o cidadão acidentado demore a procurar o seu
direito, precisando ter uma espécie de tolerância e sensibilidade do sistema
previdenciário.
Ademais, vale o registro, há entendimento jurisprudencial de que
mantém a qualidade de segurado aquele que deixou de exercer atividade
laboral em razão da incapacidade que deu causa ao afastamento, mesmo
que momentaneamente não esteja efetivamente em gozo de benefício au-
xílio-doença ou aposentadoria por invalidez, conforme se trate de invalidez
temporária ou definitiva. Ou seja, se a cessação das contribuições ao sistema
decorre do acometimento de doença ocupacional que retira a capacidade
laborativa do trabalhador, pode-se cogitar até de manutenção da qualidade
do segurado, porquanto a perda da condição de labor enseja a proteção
previdenciária6.
Ultrapassada a questão formal da existência de qualidade de segurado (ao
tempo do infortúnio), tem-se que a regulamentação da concessão do auxílio-
-doença, na via administrativa, prevê a realização de uma primeira perícia,
na qual sendo reconhecida a incapacidade para o trabalho, será concedido ao
segurado o benefício provisório, já sendo determinada uma data futura em
que provavelmente o trabalhador terá condições de retorno ao labor (“alta
programada”).

6 Dentre os paradigmas jurisprudenciais analisados, cabe destaque: TRF4, AC


2007.71.99.006645-8/RS, Rel. Des. Luís Alberto D´Azevedo Aurvalle, Turma Suplementar, j.
em 24/10/2007; TRF1, AC 200138000154546, Rel. Juiz Itelmar Raydan Evangelista, Primei-
ra Turma, j. em 10/03/2008.

171
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Implantado pelo INSS em 2005, por meio da Orientação Interna 130,


o programa da “alta programada”, também conhecido como DCB − Data de
Cessação do Benefício, modificou o procedimento utilizado pelo INSS para a
concessão de auxílio-doença aos usuários comprovadamente incapazes para
o trabalho.
No que toca à determinação de altas médicas programadas, é de se dizer
que tal foi a forma encontrada pelo sistema previdenciário para gerencia-
mento da prorrogação de benefícios por incapacidade. Embora tenha havido
questionamento judicial quanto à legalidade do procedimento adotado pelo
órgão previdenciário7, certo é que o procedimento vem sendo nacionalmente
mantido, ancorado posteriormente na Instrução Normativa INSS/PRES nº 31,
de 10 de setembro de 20088.

7 Segue, parte de decisão judicial, que reconhece a ilegalidade do procedimento administrati-


vo de concessão de alta médica programada: “(...) DO MÉRITO. Nessa seara, não é razoá-
vel a fixação de prazo para a fruição do benefício auxílio-doença, sob pena de se pôr
em risco a sobrevivência dos beneficiários e a de suas famílias, tanto que os arts. 59 e 60
da Lei nº 8.213/91 assim determina: No mesmo passo, assim determina o art. 78 do Decreto
nº 3.048/99, que regulamenta as Leis nos 8.212/91 e 8.213/91: Assim, para que o auxílio-
-doença seja suspenso ou cesse, deve ser verificado se o beneficiário encontra-se capacita-
do para o trabalho, através da devida perícia, o que cumpre ao INSS de forma contundente
e não por mera presunção. Sob outro ângulo, não prospera o argumento de que o segurado
pode solicitar exame médico-pericial se não estiver apto para o trabalho ao término do pra-
zo de duração do auxílio-doença, tendo em vista que é dever da Autarquia Previdenciária
convocar o segurado para a submissão ao exame, e não o contrário. Posto isso, concedo a
tutela antecipada requerida para determinar ao réu que cesse a prática ilegal denominada
de “Data de Cessação de Benefício DCB – ou de “Alta Programada”, prevista no Decreto
nº5.844/06, não suspendendo os benefícios previdenciários do auxílio-doença antes da
constatação do efetivo fim da incapacidade laborativa do segurado beneficiário, através
do agendamento de nova perícia médica, nos casos existentes nas suas agências e postos
situados nos Estados integrantes do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, impondo a
multa diária de R$ 1.000,00 (hum mil reais reais) caso haja descumprimento ainda
que parcial desta decisão. Intime-se o réu para cumprir esta decisão, citando-o, em seguida,
para responder a ação, no prazo legal. Aracaju, 5 de fevereiro de 2009. Juiz Edmilson da
Silva Pimenta” (Seção Judiciária do Estado de Sergipe. Processo nº 2008.85.00.002633-8.
Ação Civil Pública: 2008.85.00.002633-8. Partes: Autor: Defensoria Pública da União. Réus:
Instituto Nacional do Seguro Social).
8 O INSS, confirmou por intermédio de Instrução Normativa, o COPES – Cobertura Previ-
denciária Estimada, conhecida como alta programada, pretendendo reduzir o número de
perícias médicas, as filas, e consequentemente, melhorar o atendimento. Inúmeras ações
foram ajuizadas contra o novo sistema, dentre as quais 16 ações civis públicas, onde foram
concedidas algumas medidas liminares. O Superior Tribunal de Justiça, pelo julgado CC
66732, D.J. 02.10.2006, entretanto, cassou todas e manteve o COPES.

172
O auxílio-doença e a nova previdência

Tal sistemática envolve a manutenção de benefício por incapacidade com


imediata previsão de data futura para cessação do benefício (fixação do DCB
– Data Cessação de Benefício). O segurado faz hoje perícia que reconhece a
incapacidade, e já sabe de pronto que teve prorrogado seu benefício por mais
um número exato de meses, sendo que se ainda estiver incapacitado naquela
data futura, deve ele (segurado) ter a iniciativa de procurar novamente o INSS
para uma nova tentativa de manutenção do benefício.
Essa situação pode colocar o segurado em uma situação de constante
pressão e angústia, já que mesmo absolutamente incapacitado não tem o di-
reito de permanecer por prazo indeterminado em benefício, até que recupere
adequadamente a sua capacidade laborativa. É determinada, então, pelo INSS
uma data futura e certa em que o obreiro terá supostamente recuperado sua
capacidade de trabalho, cabendo ao trabalhador provar a manutenção do
problema de saúde, em perícia que deva agendar previamente, sob pena de
suspensão imediata do benefício de caráter alimentar.
No caso de processo judicial ainda foi desenvolvimento em período ul-
terior a fixação de prazo de quatro meses para o DCB, caso não reste definido
prazo diverso pelo magistrado em sentença Lei 13.457/2017. Esse fato eviden-
temente gera a possibilidade de uma avalanche de processos entre as mesmas
partes, discutindo períodos diversos de incapacidades (mudança de causas
de pedir, portanto), já que, por regra, a alta de benefício é sempre iminente.
O segurado, chegando em período próximo a da alta futura, tendo pro-
vas que permanece incapacitado, deve requerer especificamente no período
de quinze dias antes do limite temporal fixado para a alta nova perícia para
prorrogação do benefício; sendo negado esse pedido, cabe ainda ao segurado
requerer recurso administrativo.
De fato, a sistemática interna do INSS, um tanto quanto complexa, prevê
que dentro de quinze dias da data prevista para cessação do benefício por
incapacidade o segurado entre em contato com a agência previdenciária para
fins de agendamento de nova perícia, em que será analisado seu Pedido de
Prorrogação (PP).
Todo esse procedimento melindroso, levado a cabo pelo INSS, não teria
maiores repercussões ao segurado (que efetivamente incapacitado, deve se
apresentar junto ao órgão previdenciário para fins de demonstrar a sua in-
capacidade laboral atual), caso a perícia agendada para análise de PP fosse
sempre completa e adequada, sendo apresentados dados objetivos e bem
fundamentados das decisões a serem tomadas, para bem ou para mal.
173
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Na prática, embora venham sendo feitos permanentes ajustes nesses pro-


cedimentos médicos para a reavaliação das altas médicas programadas, ainda
um número considerável de perícias de PP são sumárias (lógica das perícias
pente fino do INSS, incrementadas pela MP 871, de janeiro de 2019), sendo
negada a continuidade de benefício sem dados concretos e claros dos resultados
dos exames médicos encaminhados pelo segurado à perícia. Todo esse cenário
de desgaste na via administrativa acaba repercutindo fatalmente em número
maior de demandas judiciais com pedido de antecipação de tutela, cujo objeto
é o de restabelecimento liminar do benefício de caráter alimentar, com base na
urgência do pleito e nas provas indiciárias de sumariedade da avaliação médica
previdenciária, a qual não detectou um problema de saúde que, a toda evidência,
se apresentava bem demonstrado documentalmente pelo segurado.
Diga-se, por derradeiro, que em sendo consagrada, no Brasil, a desne-
cessidade de exaurimento da via administrativa (súmula 89 STJ), o segurado
tem a possibilidade de ingressar com medida judicial, com pedido liminar,
inclusive, logo após uma resposta negativa do Pedido de Prorrogação (PP),
não sendo crível se exigir do segurado, ao pleitear a urgente manutenção
de benefício de caráter alimentar, que aguardasse por prazo indefinido pela
resposta da autarquia federal de recursos à Junta administrativa.
Em cenários mais recentes, em meio ao CoronaVírus (COVID-19), em
que há dificuldade de agendamento da própria perícia administrativa ou di-
ficuldade do segurado de anexar documentos ao pleito administrativo para
realização de perícia indireta, viável se cogitar ainda do Mandado de Segurança,
medida radical para acionar o Judiciário a fim de determinar que as coisas
aconteçam, in casu, determinar máxima agilidade na realização da perícia
administrativa para concessão do benefício de caráter alimentar.
Por outro lado, não pode o segurado ir ao Judiciário se o seu benefício
está ativo ou se foi determinada data de cessação do benefício, mas ainda não
encaminhou o seu pedido de Pedido de Prorrogação (PP) ou não teve ainda
realizada a perícia por profissional do INSS que aponte para a manutenção
ou a suspensão do benefício de caráter alimentar, se o segurado não estiver
aguardando tal movimento por mais de 45 dias. Nessas hipóteses, ainda não
há uma negativa administrativa (mínima) ou caracterização de arbítrio (vi-
sível), que justifique uma irresignação que mereça a pronta intervenção do
Poder Judiciário – seja por ação ordinária seja por mandado de segurança9.

9 RUBIN, Fernando. Temas atuais de processo previdenciário. Porto Alegre: Paixão Editores,
2019, p. 49 e ss.

174
O auxílio-doença e a nova previdência

Pode o segurado, respeitando esses termos, fazer a opção de recorrer


administrativamente e, em havendo demora na solução do imbróglio, pro-
por paralelamente uma demanda judicial, com pedido de tutela antecipada.
Forçoso reconhecer, pela nossa experiência na prática previdenciária, que
muitas vezes a liminar é deferida em casos em que há demora excessiva na
resposta administrativa, mesmo que a causa litigiosa indique flagrantemente
para o direito do segurado – como naquelas hipóteses, em que é concedida
alta médica pelo INSS e o segurado encontra-se tão incapacitado que a própria
empresa, no exame médico de retorno, aponta expressamente, e com maio-
res detalhes, para a inaptidão do trabalhador, determinando o seu retorno a
benefício previdenciário.
O benefício provisório a ser requerido junto ao órgão previdenciário
vem previsto na Lei de Benefícios (Lei n° 8.213/91) no artigo 59, in verbis:
“o auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando
for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o
seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias
consecutivos”.
Trata-se de benefício concedido por prazo indeterminado, mantido até que
seja formada conclusão segura sobre a estabilização do quadro infortunístico.
A partir daí o expert autárquico deve determinar: a) o retorno do trabalhador
ao mercado de trabalho, quando estiver 100% apto; b) encaminhá-lo à rea-
bilitação profissional, quando houver dúvidas sobre a real extensão da sua
aptidão ou quando entender oportuno que passe por algum procedimento
conservador antes de retorno ao mercado de trabalho10; c) o retorno do tra-
balhador ao mercado de trabalho, com a contraprestação do auxílio-acidente,
quando estiver apto com restrições definitivas as suas tradicionais atividades
laborais; d) a transformação do benefício auxílio-doença na aposentadoria por

10 PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM


RECURSO ESPECIAL. AUXÍLIO-DOENÇA. REQUISITOS NECESSÁRIOS. SÚMULA 7/STJ.
AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. É devido o auxílio-doença ao
segurado considerado parcialmente incapaz para o trabalho, mas suscetível de reabilitação
profissional para o exercício de outras atividades laborais. Assentando o Tribunal a quo
estarem demonstrados os requisitos necessários à concessão do benefício previdenciário,
a alegação em sentido contrário, em sede de recurso especial, exige o exame do acervo
fático-probatório, procedimento vedado a teor da Súmula 7/STJ. 2. Agravo regimental a
que se nega provimento (STJ, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, AgRg-AREsp
220768/PB).

175
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

invalidez, quando a convicção é a de que o obreiro não terá mais condições


de retorno ao mercado de trabalho para desenvolvimento de atividade laboral
que lhe garanta a subsistência.
No entanto, na hipótese de o trabalhador, em gozo de benefício e no
aguardo de recuperação clínica, vir a óbito, será transformado o seu benefício
auxílio-doença em pensão por morte.
O auxílio-doença é benefício que substitui a renda do trabalhador, tendo
renda mensal inicial (RMI) de 91% do salário-benefício, razão pela qual se
percebe, nesse momento, proventos um pouco abaixo daquela auferida “na
ativa” sistemática mantida na Nova Previdência, confirmada no art. 39 da
Portaria n° 450/2020. Por isso, o segurado no período em que estiver em
gozo do benefício não pode se furtar a realização de qualquer perícia admi-
nistrativa, assim que formalmente notificado pelo INSS, sob pena de imediata
suspensão do benefício – indicando o art. 77 do Decreto n° 3.048/99 que o
segurado só não está obrigado a seguir recomendação de tratamento cirúrgico
e a transfusão de sangue, os quais seriam facultativos.
O benefício tem, por regra, carência de doze meses, sendo que tal
carência é excluída no caso de comprovação de acidente de trabalho ou
quando as incapacidades forem de natureza não acidentária, mas conside-
radas de alta gravidade, tais como Tuberculose ativa; Hanseníase; Alienação
mental; Neoplasia maligna; Cegueira; Paralisia irreversível e incapacitante;
Cardiopatia grave; Doença de Parkinson; Espondiloartrose anquilosante
(Doença inflamatória aguda); Hepatopatia grave: (insuficiência crônica
do fígado); Nefropatia grave (insuficiência crônica dos rins); Estado
avançado da doença de Paget (osteíte deformante); Síndrome da Imuno-
deficiência Adquirida (HIV); e Contaminação por radiação (com base em
conclusão da medicina especializada, a desencadear leucemia ou outros
tipo de câncer11).

11 AGRAVO DE INSTRUMENTO. PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-DOENÇA. CONCES-


SÃO. CARÊNCIA. NEOPLASIA MALIGNA. DESNECESSIDADE. ART. 151 DA LEI
DE BENEFÍCIOS. 1. Para a concessão da antecipação dos efeitos da tutela, é necessária
a presença dos requisitos previstos no art. 273 do CPC, quais sejam: a verossimilhança
das alegações e o periculum in mora. 2. A cardiopatia grave isenta da carência contribu-
tiva para fins de concessão de auxílio-doença, nos termos do art. 151 da Lei nº 8.213/91.
3. O beneficio alimentar, na proteção da subsistência e da vida, deve prevalecer sobre a gené-
rica alegação de dano ao erário público mesmo ante eventual risco de irreversibilidade − ain-
da maior ao particular, que precisa de verba para a sua sobrevivência. (TRF4, AGRAVO DE

176
O auxílio-doença e a nova previdência

Nos casos então em que não há necessidade de carência, para fins de


percepção do benefício previdenciário basta ao segurado comprovar a sua
qualidade de segurado ao tempo do início da lesão incapacitante – de-
monstrando, assim, que a sua incapacidade é proveniente de infortúnio
desencadeado em momento posterior a sua vinculação ao regime do INSS.
De fato, não será devido o auxílio-doença ao segurado que se filiar ao RGPS
já portador da lesão invocada como causa para a saída em benefício provi-
sório, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou
agravamento dessa lesão12.
E se o segurado perdeu o vínculo com o sistema, como fica a nova regra de
carência no reingresso? Disciplina finalmente o art. 27-A da Lei de Benefício,
depois de muita polêmica, que na hipótese de perda da qualidade de segurado,
para fins da concessão dos benefícios de auxílio-doença, de aposentadoria
por invalidez, de salário-maternidade e de auxílio-reclusão, o segurado deverá
contar, a partir da data da nova filiação à Previdência Social, com metade dos
períodos previstos nos incisos I, III e IV do caput do art. 25 desta Lei (Reda-
ção dada pela Lei nº 13.846, de 2019) – no caso de auxílio-doença então seis
meses no ato de reingresso ao sistema previdenciário.
Pois Bem. Em sendo acidentário, o auxílio-doença leva do sistema o
código 91, sendo usualmente conhecido como “B91”; diferenciando-se
assim do benefício de natureza não-acidentária (rectius: natureza previden-
ciária), o qual leva do sistema o código 31, sendo usualmente conhecido
como “B31”.

INSTRUMENTO Nº 0024458-83.2010.404.0000, 6ª Turma, Des. Federal LUÍS ALBERTO D


AZEVEDO AURVALLE, POR UNANIMIDADE).
12 PROCESSUAL CIVIL − PREVIDENCIÁRIO − AGRAVO PREVISTO NO ART. 557, § 1º
DO CPC − APOSENTADORIA POR INVALIDEZ − PREEXISTÊNCIA. DESCARACTE-
RIZAÇÃO. I − O laudo pericial aponta que a enfermidade que acomete o autor lhe acar-
reta limitação para atividades laborativas de natureza total e permanente. II − O afasta-
mento do trabalho deu-se em razão da progressão ou do agravamento de sua doença,
fato este que afasta a alegação de doença preexistente e autoriza a concessão do benefí-
cio, nos termos do parágrafo 2º, do art. 42, da Lei 8.213/91. III − Agravo previsto no art.
557, § 1º do CPC, interposto pelo INSS, improvido (TRF da 3ª Região, Proc. 0011381-
73.2011.4.03.9999-SP, 10ª T., Rel.: Des. Fed. Baptista Pereira).razão da progressão ou do agra-
vamento de sua doença, fato este que afasta a alegação de doença preexistente e autoriza a
concessão do benefício, nos termos do parágrafo 2º, do art. 42, da Lei 8.213/91. III − Agravo
previsto no art. 557, § 1º do CPC, interposto pelo INSS, improvido.” (TRF da 3ª Região,
Proc. 0011381-73.2011.4.03.9999-SP, 10ª T., Rel.: Des. Fed. BAPTISTA PEREIRA, j. em
14/01/2014, e-DJF3 22/01/2014)

177
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Dentre as grandes causas que motivam a concessão do B31 temos hoje no


Brasil os acidentes de trânsito e os acidentes domésticos; já dentre os infor-
túnios que motivam a saída em B91 devemos lembrar as lesões por esforços
repetitivos (LER) e as quedas ocorridas no ambiente de trabalho.
O empregado conhecedor dos seus direitos sabe, desde esse momento de
requerimento administrativo de benefício, quais são as importantes diferenças
entre um “B91” e um “B31”, e que motivam o pedido expresso para que haja
a concessão do primeiro, a partir do reconhecimento da natureza acidentá-
ria do benefício provisório pleiteado. Ocorre que somente o auxílio-doença
acidentário (“B91”) confere um ano de estabilidade ao obreiro após retorno
deste ao ambiente de trabalho, bem como somente o auxílio-doença aciden-
tário (“B91”) obriga o empregador a efetuar o depósito do FGTS na conta
do empregado pelo período que o mesmo se mantenha vinculado ao órgão
previdenciário – sendo, as aludidas vantagens, previstas, respectivamente, no
art. 118 da Lei n° 8.213/91 e no art. 15, § 5° Lei n° 8.036/9013.
Esses dois grandes resultados autorizam, aliás, que se recorra adminis-
trativamente ou se ingresse judicialmente, de imediato, tão somente para con-
versão do benefício provisório previdenciário em acidentário, já que mesmo
que a perícia administrativa acabe por reconhecer a extensão da incapacidade
(a “inaptidão”), se não reconhece a natureza acidentária da benesse (o “aci-
dente de trabalho”), passa a trazer prejuízo de alguma ordem significativa
ao empregado/segurado, o que pode possibilitar, por si só, o ingresso com
demanda judicial14.

13 ACIDENTE DE TRABALHO. AUXÍLIO-DOENÇA PREVIDENCIÁRIO. CONVERSÃO EM


BENEFÍCIO ACIDENTÁRIO. CABIMENTO. INTERESSE DE AGIR EVIDENCIADO. SEN-
TENÇA EXTINTIVA DO PROCESSO DESCONSTITUÍDA. O auxílio-doença acidentário
possibilita a estabilidade de emprego e o depósito do FGTS, evidenciando o interesse de
agir da demandante que postula a conversão da natureza do benefício previdenciário em
acidentário. Decreto de carência de ação afastado. Sentença desconstituída. (Apelação Cível
Nº 70020776845, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Antônio
Kretzmann).
14 APELAÇÃO REEXAME NECESSÁRIO. ACIDENTE DE TRABALHO. INSS. CONVERSÃO
DE AUXÍLIO-DOENÇA PREVIDENCIÁRIO EM AUXÍLIO DOENÇA ACIDENTÁRIO. POS-
SIBILIDADE. NEXO CAUSAL COMPROVADO. INTERESSE DE AGIR DO POSTULANTE.
1. Verificando-se que somente os benefícios de natureza acidentária conferem ao segurado a
garantia de emprego, conforme disposto no artigo 118, da Lei n. 8213/1991, não há falar em
ausência de interesse de agir ao ser pleiteada a conversão do benefício de natureza previden-
ciária em acidentária. 2. Comprovado o nexo causal entre a atividade funcional desenvolvida

178
O auxílio-doença e a nova previdência

Nessa hipótese, de discussão exclusiva da natureza acidentária do benefício


concedido, a interposição de recurso na via administrativa é uma mera faculdade
e não uma obrigação imposta ao segurado, que perfeitamente já poderia então
acessar o judiciário – justamente em face do teor da Súmula 89 STJ.
Mais. A partir da promulgação da Lei 13.846 – 18.06.19: não será devido
o auxílio-doença para o segurado recluso em regime fechado; o segurado em
gozo de auxílio-doença na data do recolhimento à prisão terá o benefício sus-
penso 60 dias, contados da data do recolhimento à prisão, cessado o benefício
após o referido prazo; e na hipótese de o segurado ser colocado em liberdade
antes dos 60 dias, o benefício será restabelecido a partir da data da soltura.
Vê-se, pelas informações prestadas a respeito deste importante benefício,
que o mesmo tem ampla saída nas agências do INSS, ainda mais o B31, ten-
do em conta envolver número bem superior de segurados habilitados a sua
percepção. Ademais, o benefício assistencial por deficiência (B87), com ele
não pode ser confundido, já que o LOAS é requerido por quem não é segura-
do (obrigatório ou facultativo) do sistema, sendo limitado o seu pagamento
a um salário mínimo, não autorizando a concessão de pensão por morte e
nem pagando a gratificação natalina (denominado de “abono anual” – nos
termos do art. 40 da Lei n° 8.213/91). Ademais, o B87 somente é pago quando
comprovado o quadro de miserabilidade do beneficiário e constatada a sua
incapacidade por período mínimo de dois anos, sendo que o B31 já é pago
a partir do 16° dia de incapacidade, frisemos – tudo a apontar que o sistema
privilegia sobremaneira o cidadão que pode contribuir para a previdência,
integrando as suas fileiras como segurado ativo do INSS.

II. A CONTAGEM DE TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO E O


CONCEITO DE TEMPO FICTO ESTABELECIDO PELA NOVA
PREVIDÊNCIA

A previsão para o auxílio-doença manter a qualidade de segurado vem


insculpida no art. 15, I da Lei n° 8.213/91: mantém a qualidade de segurado,

pelo autor e a moléstia que gerou o pagamento de benefício pelo INSS, mostra-se adequada
à conversão do auxílio doença previdenciário em auxílio doença acidentário (...). PRELIMI-
NAR REJEITADA. APELO PARCIALMENTE PROVIDO (Apelação e Reexame Necessário Nº
70035651082, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mário Crespo Brum).

179
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

independentemente de contribuições, sem limite de prazo, quem está em


gozo de benefício, exceto do auxílio-acidente.
De fato, a partir daqui, estabelece-se uma grande diferença entre o
benefício provisório que substitui renda (auxílio-doença) para o benefício
indenizatório e definitivo que complementa renda (auxílio-acidente)15.
Mais do que isso, o dispositivo infraconstitucional sugere que o período
em gozo do auxílio-doença não envolve contribuição. Trabalho evidentemente
não há, porque o segurado está afastado do seu labor, com seu contrato de
trabalho suspenso, no caso de empregado celetista. E contribuição, s.m.j.,
também não há, embora o sistema trabalhe com um coeficiente muito pecu-
liar, que é o de 91%, tanto para o auxílio-doença comum (B31) como para o
auxílio-doença acidentário (B91).
Assim, se durante o período em gozo de benefício provisório (sem um
prazo fixo geral de DCB), não há trabalho, nem efetiva contribuição (con-
trapartida) ao sistema previdenciário, surge o debate sobre a existência aqui
de tempo ficto, levantado pela Nova Previdência – com o consequente im-
pedimento de contagem de tempo de contribuição ao segurado, a partir da
entrada em vigor da EC 103, de 12 de novembro de 2019.
Eis a regulamentação da Nova Previdência: “Art. 25. Será assegurada a
contagem de tempo de contribuição fictício no Regime Geral de Previdência
Social decorrente de hipóteses descritas na legislação vigente até a data de
entrada em vigor desta Emenda Constitucional para fins de concessão de
aposentadoria (...)”.
O tema se aproxima da redação do art. 4° da Emenda Constitucional
20/1998, observado o disposto no art. 40, par. 10° da CF/88, ao prever que a
lei não pode estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição
fictício, o tempo de serviço considerado pela legislação vigente para efeito de
aposentadoria, cumprido até que a lei discipline a matéria, deve ser contado
como tempo de contribuição16.

15 A natureza indenizatória do auxílio-acidente afasta qualquer possibilidade de sua utilização,


sozinho, para fins de cômputo de tempo de contribuição. O que o sistema autoriza, de for-
ma diversa, é ser utilizado esse benefício complementar de renda, para fins específicos de
composição da RMI de uma aposentadoria programada, conforme dicção do art. 31 da Lei
n° 8.213/91, in verbis: “O valor mensal do auxílio-acidente integra o salário-de-contribuição,
para fins de cálculo do salário-de-benefício de qualquer aposentadoria (...)”.
16 BARBOSA GARCIA, Gustavo Filipe. Curso de direito da seguridade social. São Paulo: Gru-
po Gen, 2015, p. 409

180
O auxílio-doença e a nova previdência

A questão permanece em dúvidas também porque a Portaria 450 do INSS,


publicada em 2020, nada tratou a respeito17, mantendo aquela convicção de
que o tempo ficto flagrantemente existente até aqui é aquele de conversão do
tempo especial em comum, com acréscimo de 40% do período para homem
e 20% do período para mulher (para atividades especiais com previsão tra-
dicional de vinte e cinco anos de contribuição ao sistema previdenciário)18.
Se o período de auxílio-doença vier a ser realmente considerado ficto,
evidentemente que deverá vir regulamentação a respeito da situação, deter-
minando que durante o período o segurado recolha determinada contribui-
ção ou quem sabe contribua como facultativo para ter o período realmente
utilizado para fins de composição de aposentadoria programada, a partir de
novembro de 2019.
No entanto, até o período em que escrevemos esse ensaio, na primeira
metade do ano de 2020, não há regulamentação para consideração do pe-
ríodo de auxílio-doença como tempo ficto; assim sendo, temos convicção de
que sem uma regulamentação explícita (ou até o período então que não haja
regulamentação nesse sentido contra o segurado) não pode ser considerado
esse período como ficto. Portanto, caso venha uma regulamentação consideran-
do o período como ficto, tal norma não pode ter efeitos ex tunc (respeitando-se
o brocardo tempus regit actum), valendo tão somente para períodos futuros de
auxílios-doença gozados.
Aliás, a novidade normativa mais contemporânea que temos, ao tempo
de fechar esse ensaio, é a confirmação do auxílio-doença valer inclusive para
fins de carência, independentemente na natureza da prestação (B31 ou B91).
Conforme art. 1º da Portaria n° 12, de 19 de maio de 2020, o INSS veio à
comunidade interessada comunicar a orientação de cumprimento da decisão
judicial proferida na Ação Civil Pública-ACP nº 0216249-77.2017.4.02.5101/
RJ, em cujo processo coletivo foi determinado que se compute, para fins de
carência, o período em gozo de benefício por incapacidade não acidentário

17 A Portaria 450/2020 tão somente refere que o cálculo do benefício passa a ser exclusivamen-
te pelos 91% do salário-benefício, não mais podendo ser utilizado o sistema paralelo da média
dos últimos 12 salários de contribuição, conforme disciplina articulada dos arts. 39 e 35 da
Portaria.
18 A doutrina registra que a conversão de tempo comum em especial já era vedada desde a Lei
n° 9.032/95, possibilitando-se a partir daí (e até a EC 103/2019, complementamos nós), apenas
a conversão de tempo especial em comum (SANCHEZ, Adilson. Advocacia previdenciária. São
Paulo: Atlas, 2012, 4ª ed., p. 210).

181
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

intercalado e o período em gozo de benefício por incapacidade acidentário,


intercalado ou não.
Seja como for, o clima, no momento em que este ensaio está sendo es-
crito, é de alguma insegurança jurídica em relação à extensão da utilização
do conceito de “tempo ficto” pela Nova Previdência, sendo importante ser
consolidada a manutenção do status quo, o que seja, que o período de afas-
tamento seja utilizado para fins de manutenção da qualidade de segurado e
também para contagem de tempo de contribuição, inclusive para a aposen-
tadoria especial (B46)19.
A esse respeito, prelecionam Carlos Alberto Pereira de Castro e João
Batista Lazzari que essa limitação em relação ao auxílio-doença prejudica o
trabalhador e contraria a lógica do sistema de proteção previdenciária de que
o recebimento temporário de benefício substitutivo do rendimento do traba-
lho deve ocorrer sem prejuízo da contagem do tempo de atividade especial,
mesmo quando a incapacidade seja de origem comum (não acidentária)20.
Da mesma maneira, cabe lembrar que jurisprudência recente da TNU
sugere que o período de auxílio-doença não só mantém a qualidade de se-
gurado, mas também conta tempo de contribuição, inclusive quando o be-
nefício provisório tenha sido concedido por ordem liminar judicial, depois
revogada em cognição exauriente – sob o argumento de que o segurado, pela
legislação vigente, não está obrigado a recolher contribuições previdenciárias
para o INSS pelo período de afastamento forçado do trabalho, cf. paradigma n°
50029073520164047215/SC, j. em 22/02/201821.
Entendemos que temos aqui situação de inexigibilidade de conduta
diversa (afastamento forçado do ambiente de trabalho, com suspensão do
contrato), não podendo ser exigido do trabalhador que está afastado do tra-

19 Fixou o STJ, na mesma linha do precedente originário lançado pelo TRF4ª Região. O recur-
so interposto pelo INSS (REsp 1759098/RS) foi escolhido pelo STJ como representativo da
controvérsia repetitiva descrita no Tema Precedente-STJ, cuja tese fixada foi a seguinte: “O
Segurado que exerce atividades em condições especiais, quando em gozo de auxílio-doen-
ça, seja acidentário ou previdenciário, faz jus ao cômputo desse mesmo período como
tempo de serviço especial.” SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Tema 998 STJ. Acórdão
publicado em 1º/08/2019.
20 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciá-
rio. 19.ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2016. p. 738.
21 TNU − Decisão proferida pelo Juiz Fábio dos Santos Oliveira, https://www.cjf.jus.br/publico/
pdfs/50029073520164047215.pdf. Acesso em 17 de maio de 2020.

182
O auxílio-doença e a nova previdência

balho por motivo de acidente ou doença e que já não está recebendo a inte-
gralidade dos valores (embora tenhamos aqui claramente um benefício que
substitua renda, repisemos), venha a ser penalizado com contribuição efetiva
ao sistema ou mesmo obrigação de contribuir paralelamente ao sistema como
facultativo. Querendo ou não, há uma espécie de desconto embutido de 9%,
a se reconhecido em prol da tese do segurado – sendo o benefício comum
(B31) ou sendo o benefício acidentário (B91).
Por fim, registre-se que pela Nova Previdência não houve exatamente
alteração do coeficiente do benefício provisório, mas sim da aposentadoria por
invalidez – que se for acidentária é de 100% e se for comum, parte de 60% do
salário-benefício. Tal questão é paralela, mas importa ao segurado, ao passo que
dificilmente terá direto a concessão de uma aposentadoria por invalidez pelo
INSS na via administrativa, devendo antes passar pelo benefício provisório,
quando então já pode discutir o nexo causal, pensando em futuramente se
beneficiar legitimamente de uma RMI maior, em caso de efetiva comprovação
de invalidez permamente e total para atividade laboral remunerada lícita que
lhe garanta a subsistência22.

III. SÍNTESE CONCLUSIVA


O benefício de maior vazão no INSS tem suas peculiaridades e comple-
xidades próprias que exigem tratamento a parte. Nenhum outro benefício
possui formação de RMI com 91% do salário-benefício e nenhuma outra
prestação é tão plural como é o auxílio-doença, ao menos na sua modalidade
não acidentária (B31) – a ser usufruída em um âmbito de proteção previden-
ciária maior, inclusive pelo contribuinte individual e mesmo pelo facultativo,
desde que demonstre a qualidade de segurado e a carência, quando exigida.
Embora entendamos a lógica da formação da Nova Previdência, buscan-
do coibir excessos e vantagens indevidas a segurados sem a correspondente
contrapartida, entendemos que o segurado não deva ser obrigado a recolher
contribuições previdenciárias para o INSS pelo período de afastamento forçado
do trabalho em gozo do auxílio-doença, estando perfeitamente justificadas as

22 No cenário de Nova Previdência, temos três hipóteses de benefícios que se fala expressa-
mente de um coeficiente de 100%: (a) aposentadoria por invalidez acidentária; (b) pensão
por morte de filho inválido; (c) aposentadoria por tempo de contribuição de pessoa com
deficiência. Repare que as três hipóteses tem algo em comum: evento que gera alguma limitação
física e/ou psíquica ao beneficiário da prestação do INSS.

183
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

razões pelas quais o benefício mantém qualidade de segurado e pode também


ser contado como tempo de contribuição para as aposentadorias programa-
das, exatamente como se sucedia no sistema previdenciário vigente até 12
de novembro de 2019.

IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BARBOSA GARCIA, Gustavo Filipe. Curso de direito da seguridade social. São Paulo:
Grupo Gen, 2015.
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previ-
denciário. 19.ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2016.
RUBIN, Fernando. Benefícios por incapacidade no Regime Geral de Previdência Social.
Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2014.
RUBIN, Fernando. Temas atuais de processo previdenciário. Porto Alegre: Paixão
Editores, 2019.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70020776845,
Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Antônio Kretzmann.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação e Reexame Necessário
Nº 70035651082, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mário
Crespo Brum.
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO. TRF1, AC 200138000154546, Rel.
Juiz Itelmar Raydan Evangelista, Primeira Turma, j. em 10/03/2008.
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO. TRF da 3ª Região, Proc. 0011381-
73.2011.4.03.9999-SP, 10ª T., Rel.: Des. Fed. Baptista Pereira.
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. TRF4, AGRAVO DE INSTRUMEN-
TO Nº 0024458-83.2010.404.0000, 6ª Turma, Des. Federal LUÍS ALBERTO D
AZEVEDO AURVALLE, POR UNANIMIDADE.
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. TRF4, AC 2007.71.99.006645-8/
RS, Rel. Des. Luís Alberto D´Azevedo Aurvalle, Turma Suplementar.
TURMA NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO. PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE
INTERPRETAÇÃO DE LEI (TURMA) TNU Nº 5002907-35.2016.4.04.7215/SC,
Juiz Fábio dos Santos Oliveira.
SANCHEZ, Adilson. Advocacia previdenciária. São Paulo: Atlas, 2012, 4ª ed.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. STJ, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques,
AgRg-AREsp 220768/PB.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Tema 998 STJ. Acórdão publicado em 1º/08/2019.

184
A NOVA APOSENTADORIA ESPECIAL E O
RISCO DE ADOECIMENTO PRECOCE DOS
PROFISSIONAIS DA SAÚDE DECORRENTE
DA LIMITAÇÃO ETÁRIA CRIADA
PELA E.C. 103/2019

Jesus Nagib Beschizza Feres.1

Sumário: 1. Introdução – 2. Aposentadoria especial – 3. Apo-


sentadoria especial dos profissionais da saúde : 3.1 Conceito de
agentes biológicos; 3.2 Conceito de estabelecimento de saúde;
3.3 Modalidades de enquadramento do tempo de labor exposto
a agentes biológicos: 3.3.1 Enquadramento por categoria profis-
sional; 3.3.2 Enquadramento por exposição a agentes nocivos
biológicos – 4. Ineficácia dos EPIS ante a exposição a agentes
biológicos – 5. Da imposição de idade mínina na aposentadoria
especial e o risco de adoecimento precoce dos profissionais da
saúde – 6. Da proteção constitucional da saúde do trabalhador –
7. Considerações finais – Referências bibliográficas.

1 Advogado. Pós-graduado em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera. Pós-


-graduado em Direito Previdenciário dos Servidores Públicos pelo IEPREV. Mestrando
em Direito pelo UNIVEM. Professor de cursos de extensão e pós-graduação em Direito
Previdenciário. Palestrante do Departamento de Cultura e Eventos da OAB/SP. Coorde-
nador da Escola Superior da Advocacia da 41ª Subseção da OAB/SP. Coordenador do
IEPREV – Núcleo de Pesquisa e Defesa dos Direitos Sociais na Cidade de Catanduva-SP
e São José do Rio Preto-SP. Membro efetivo da Comissão Especial de Direito Previden-
ciário da OAB/SP.

185
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo demonstrar os riscos de adoecimento
precoce dos profissionais da saúde advindos das novas regras da aposentado-
ria especial contidas na Emenda Constitucional nº 103/2019, notadamente
no que diz respeito ao limite etário criado para fins de acesso a tal benesse
previdenciária.
Sabe-se que os profissionais da saúde, além do contato diuturno com
agentes biológicos, lidam com o sofrimento do próximo, presenciando as
situações mais tristes, degradantes, perigosas e delicadas da vida humana,
fato este que vem minando a sua saúde mental.
Diante de um cenário tão complexo no qual estão inseridos os profissio-
nais da saúde, o que lhes dava alguma esperança, alento para continuar no
seu trabalho era a tão sonhada aposentadoria especial, que até o advento da
Emenda Constitucional nº 103/2019 era concedida a estes profissionais, desde
que comprovasses a exposição a agentes nocivos biológicos por um período
contributivo de 25 anos, não sendo necessário, até então, o implemento de
qualquer idade mínimo para a sua fruição. Tal garantia tinha por objetivo
precípuo a prevenção da saúde dos seus destinatários.
Entretanto, com a reforma da previdência, tal cenário acabou sendo
totalmente alterado, a partir do momento em que praticamente foi ceifado
o direito a uma aposentadoria de forma antecipada, deixando de existir o
principal objetivo deste benefício, que era garantir o bem estar, a saúde e a
dignidade do trabalhador.
Inicialmente serão trazidos os requisitos indispensáveis à concessão da
aposentadoria a essa categoria de profissionais, sendo, bem como a concei-
tuação dos estabelecimentos de saúde.
Em um segundo momento será objeto de análise as formas de enqua-
dramento do tempo laborado por profissionais da saúde, bem como as par-
ticularidades inerentes ao trabalho exposto a agentes biológicos, passando
por sua conceituação e chegando à questão da ineficácia dos equipamentos
de proteção individual utilizados por tais profissionais.
Por fim, serão demonstrados os riscos de adoecimento precoce que pode-
rão advir com a criação de uma idade mínima para o acesso à aposentadoria
especial, bem como a proteção constitucional da saúde dos trabalhadores,
especialmente os profissionais da área da saúde.

186
A nova aposentadoria especial e o risco de adoecimento precoce dos profissionais da saúde

2. APOSENTADORIA ESPECIAL

A aposentadoria especial constitui um benefício previdenciário de cará-


ter preventivo, expressamente previsto em nossa Carta Magna, em seu artigo
201, §1º, criado a fim de proteger o segurado que laborou durante o período
previsto em lei em condições nocivas, retirando-lhe da atividade laborativa
de forma antecipada, evitando, assim, a ocorrência de sua incapacidade ou
até mesmo o seu óbito.
A natureza preventiva da aposentadoria especial restou demonstrada,
de forma magistral, pelo jurista Diego Henrique Schuster ao discorrer sobre
a teoria do risco em sua obra Aposentadoria Especial: entre o Princípio da
Precaução e da Proteção Social2:

É por meio do benefício da aposentadoria especial que se percebe os


desafios e possibilidades da gestão dos riscos (doenças e acidentes ocupa-
cionais) aos quais estão submetidos os trabalhadores/segurados, na medida
em que a redução do tempo de serviço pode evitar a efetiva incapacidade
do trabalhador, seja em razão daquelas doenças com longos períodos de
latência, que tem como causa a contínua absorção (inalação pelas vias
respiratórias) ou contato com agentes químicos, tornando grande o intervalo
de tempo entre a causa e manifestação de qualquer efeito prejudicial, seja
em razão dos acidentes de trabalho, que acontecem em tempo real, no
espaço de um instante (explosão de uma caldeira, queda de um andaime,
eletrocução em sistema de alta voltagem etc). E isso, porque prolongar o
tempo de trabalho pode causar danos e, com muito mais razão, agravá-los,
bem assim aumentar a probabilidade de o trabalhador sofrer acidentes.

No âmbito infraconstitucional o benefício previdenciário ora em tela


atualmente possui previsão na Lei nº 8.213/91 (artigo 57 e seguintes), no
Decreto nº 3.048/993 (artigo 64 e seguintes), e por fim, na Instrução Nor-
mativa INSS/PRES Nº 77/15 (artigo 246 e seguintes).
Nos termos do artigo 57, caput, da Lei nº 8.213/91, o citado benefício
previdenciário será devido, cumprida a carência de 180 (cento e oitenta) con-

2 SCHUSTER, Diego Henrique. Aposentadoria especial: entre o princípio da precaução e a


proteção social. Curitiba: Juruá, 2016. p. 157.
3 Regulamento da Previdência Social.

187
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

tribuições mensais, ao segurado que demonstrar o efetivo labor em condições


prejudiciais à saúde ou à integridade física, por um período equivalente a 15
(quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, a depender do agente nocivo
a que o mesmo estiver exposto durante a sua jornada laboral.
Com a reforma da Previdência, efetivada através da Emenda Consti-
tucional nº103/2019, o benefício de aposentadoria especial recebeu graves
mudanças em seus requisitos concessórios, perdendo, em grande monta, o
seu real e inicial objetivo, que era evitar o adoecimento do trabalhador.
De acordo com o novo texto conferido ao art. 201, § 1º, da Constituição
Federal de 1988, poderão ser beneficiários da aposentadoria especial somente
os segurados que tenham desempenhado suas atividades com efetiva expo-
sição a agentes químicos, físicos e biológicos nocivos à saúde, ou associação
de tais agentes, vedando, expressamente, o enquadramento por categoria
profissional. A novel redação do citado dispositivo constitucional além de
trazer a necessidade da efetividade da exposição a agentes agressivos para
fins de reconhecimento do tempo especial, delegar à lei complementar, como
regra permanente, a fixação de idade mínima, trouxe também a retirada do
termo “integridade física” (que dava ensejo à caracterização da especialidade
das atividades perigosas).
Como regra transitória, até que não seja publicada a respectiva lei com-
plementar, a Emenda Constitucional nº 103/2019 instituiu idade mínima
em seu art. 19, §1º, inciso I, como novo requisito de acesso à aposentadoria
especial aos segurados filiados ao RGPS a partir de sua entrada em vigor. A
idade mínima trazida com a reforma da Previdência irá variar em conformidade
com tempo de trabalho especial exigido, a depender da atividade desempe-
nhada: a) 55 anos de idade, quando se tratar de atividade especial de 15 anos
de contribuição; b) 58 anos de idade, em se tratando de atividade especial de
20 anos de contribuição; ou c) 60 anos, no caso de atividade especial de 25
anos de contribuição.
Além da regra transitória, que diz respeito aos novos segurados do regime
geral de previdência social, o art. 21 da Emenda Constitucional nº 103/2019
trouxe uma regra de transição, para fins de acesso à aposentadoria especial,
sem limite etário, àqueles que já estavam filiados ao RGPS quando da entra-
da em vigor da nova previdência. Para ter acesso a tal regra de transição, o
segurado terá somar a seguinte pontuação, a depender do grupo de agentes
nocivos ao qual estiver exposto: a) 66 pontos (15 anos de efetiva exposição);
188
A nova aposentadoria especial e o risco de adoecimento precoce dos profissionais da saúde

b) 76 pontos (20 anos de efetiva exposição) e; c) 86 pontos (25 anos de efe-


tiva exposição).
No que diz respeito aos agentes nocivos, bem como às categorias pro-
fissionais que até 28.04.1995 davam ensejo ao enquadramento do tempo
como especial por mera presunção, existem em nosso ordenamento jurídico
os Quadros anexos dos Decretos nº 53.831/1964, 83.080/1979, 2.172/1997
e 3.048/1999, os quais deverão ser utilizados como parâmetro para fins de
reconhecimento do tempo especial de acordo com a época em que foi exer-
cido o labor em condições especiais.4Contudo, mesmo que o agente nocivo
não esteja inscrito em nenhum dos decretos mencionados, ainda assim será
possível obter o reconhecimento de sua nocividade para fins previdenciários,
conforme entendimento materializado pela súmula nº 1985, do extinto Tri-
bunal Federal de Recursos.
De acordo com os ensinamentos de Adriane Bramante de Castro Laden-
thin, referida espécie de benefício previdenciário não deve ser considerada
como espécie do gênero aposentadoria por tempo de contribuição6:

Esta modalidade de aposentadoria difere das demais aposentadorias e


com elas não se confunde.
Há quem diga que aposentadoria especial seria espécie do gênero
aposentadoria por tempo de contribuição. Divirjo desse entendimento.
Aposentadoria especial é um benefício autônomo e seu conceito não se
encontra atrelado a nenhum outro benefício previdenciário. A aposentado-
ria especial possui suas próprias características, diferenciadas das demais
prestações da previdência Social.

Feitos os apontamentos gerais acerca do benefício de aposentadoria es-


pecial, serão discutidos nos tópicos subsequentes as especificidades inerentes

4 Em se tratando da comprovação do tempo de trabalho especial, já se encontra sedimentado


em nossos Tribunais o posicionamento de que deverá ser aplicada, em obediência ao prin-
cípio tempus regit actum e ao Direito Adquirido, a legislação em vigor no momento do efetivo
desempenho da atividade laborativa (STJ – AgRg-REsp 200700301749 – (924827 SP) – 5ª
T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJU 06.08.2007)
5 Súmula nº 198 do TFR: Atendidos os demais requisitos, é devida a aposentadoria especial,
se perícia judicial constata que a atividade exercida pelo segurado é perigosa, insalubre ou
penosa, mesmo não inscrita em Regulamento.
6 LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria Especial: teoria e prática. 4a ed.
Curitiba: Juruá, 2018. p. 29.

189
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

ao reconhecimento do tempo especial dos profissionais de estabelecimentos


de saúde expostos a agentes biológicos, bem como o risco de adoecimento
precoce que resultará da limitação etária imposta pela Emenda Constitucional
nº 103/2019 aos beneficiários da aposentadoria especial.

3. APOSENTADORIA ESPECIAL DOS PROFISSIONAIS DA


SAÚDE

3.1 Conceito de agentes biológicos


O Manual de Aposentadoria Especial do INSS adotou como fonte de
conceituação dos agentes biológicos as normas regulamentadoras do Minis-
tério do Trabalho e Emprego7. Tal utilização constitui grande avanço a ser
comemorado pela advocacia previdenciarista, haja vista ainda ser comum a
existência de teses defensivas utilizadas pelos procuradores do INSS, e, em
alguns casos, até em decisões judiciais, no sentido de não ser possível a utili-
zação das normas trabalhistas como fundamento para o reconhecimento do
tempo de trabalho especial.
Com efeito, o citado manual utilizou-se da seguinte argumentação para
definir agentes biológicos8:

Na legislação trabalhista, segundo a Portaria nº 3.214, de 1978, do


MTE, em sua N-09, consideram-se agentes biológicos bactérias, fungos,
bacilos, parasitas, protozoários, vírus, entre outros. E de acordo com a NR-
32 da Portaria acima referida, agentes biológicos são os microrganismos,
geneticamente modificados ou não, as culturas de células, os parasitas, as
toxinas e os príons.

E como o manual de aposentadoria especial foi elaborado pelo próprio


INSS como forma de uniformizar9 os critérios técnicos de análise da atividade
especial por parte dos médicos peritos, os fundamentos nele contidos pode-

7 Ministério extinto pela Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019.


8 INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Manual de Aposentadoria Especial. Bra-
sília: INSS, 2017.p. 106-107.
9 Restou expressamente consignado às fls. 04 do Manual de Aposentadoria Especial do INSS
que as orientações nele contidas acerca dos critérios de interpretação e enquadramento do
tempo especial deverão ser utilizadas pelos médicos peritos.

190
A nova aposentadoria especial e o risco de adoecimento precoce dos profissionais da saúde

rão ser utilizados pelo advogado previdenciarista, inclusive, como forma de


rebater as teses formuladas em desfavor do segurado, seja pela procuradoria
especializada, ou até mesmo nas decisões administrativas e judiciais.

3.2 Conceito de estabelecimento de saúde


De acordo com o Manual de Aposentadoria Especial editado pela Di-
retoria de Saúde do Trabalho – DIRSAT, em agosto de 2017, considera-se
estabelecimento de saúde “qualquer local destinado à realização de ações e/ou
serviços de saúde, coletiva ou individual, qualquer que seja o seu porte ou nível
de complexidade10”.
Nos termos da definição acima reproduzida, poderão ser considerados
como estabelecimentos de saúde não apenas hospitais, mas também os postos
de saúde, unidades básicas de saúde, unidades de pronto atendimento.
Portanto, não apenas os trabalhadores de hospitais expostos a agentes
biológicos poderão ser beneficiados pelas normas estudadas no presente
artigo, mas todos aqueles que exerçam suas atividades profissionais em esta-
belecimentos de saúde.
A seguir serão objeto de estudo as modalidades de enquadramento do
tempo laborado em condições adversas à saúde dessa categoria de profissionais.

3.3 Modalidades de enquadramento do tempo de labor


exposto a agentes biológicos
Conforme já mencionado, em se tratando da comprovação do tempo
de trabalho especial, a jurisprudência possui o posicionamento segundo o
qual deverá ser aplicada, em obediência ao princípio tempus regit actum e ao
Direito Adquirido, a legislação em vigor no momento do efetivo desempenho
da atividade laborativa. De modo que, serão demonstradas a seguir as formas
de enquadramento do tempo como especial, em conformidade com a época
em que o labor foi desempenhado.
Até o advento da Lei nº 9.032/95, existiam duas formas de enquadramento
do tempo especial: por categoria profissional e por exposição a agentes nocivos.

10 INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Manual de Aposentadoria Especial. Bra-


sília: INSS, 2017.p. 107-108.

191
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

3.3.1 Enquadramento por categoria profissional


No que diz respeito ao enquadramento por categoria profissional, os
Decretos nº 53.831/64 e 83.080/79 trouxeram em seus anexos uma lista de
profissões que foram selecionadas como presumidamente nocivas à saúde ou
à integridade física do trabalhador. E dentro de tal relação estão, dentre ou-
tros profissionais da saúde, as atividades dos médicos e enfermeiros, as quais
tiveram a sua nocividade (caráter insalubre) presumida tipificada, tanto no
Quadro Anexo ao Decreto nº 53.831/64, bem como no Anexo II do Decreto
nº 83.080/79, no código 2.1.3.
Ainda no que tange à possibilidade de enquadramento por presunção,
merece destaque uma orientação contida nas normas administrativas do
INSS que acaba por elastecer as hipóteses de incidência dessa modalidade de
reconhecimento do tempo especial.
De acordo com o disposto no artigo 274, da Instrução Normativa INSS/
PRES nº 77/2015, poderá ser enquadrado por categoria profissional, até
28.04.1995, o tempo em que o segurado laborou nas funções de auxiliar ou
ajudante de qualquer das atividades constantes dos quadros anexos aos De-
cretos 53.831/64 e 83.080/79, desde que o labor se dê no mesmo ambiente e
nas mesmas condições dos profissionais arrolados nos anexos.
Tal possibilidade de elastecimento encontra-se prevista, de igual modo,
no Manual de Aposentadoria Especial do INSS, in verbis11:

É considerado tempo de serviço em condições especiais o período em


que o segurado exerceu as atividades de servente, auxiliar ou ajudante, de
qualquer das atividades constantes nos quadros anexos ao Decreto nº53.831,
de 1964, e ao Decreto nº83.080, de 1979, até 28 de abril de 1995, desde
que o trabalho, nessas funções, seja exercido nas mesmas condições e no
mesmo ambiente em que trabalha o profissional abrangido pelos respec-
tivos Decretos”.

Trazendo essa possibilidade normativa para a área dos trabalhadores de


hospitais, poderão ser enquadrados por categoria profissional, v.g., os aten-
dentes, auxiliares e técnicos de enfermagem, desde que seja comprovado que

11 INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Manual de Aposentadoria Especial. Bra-


sília: INSS, 2017.p. 110.

192
A nova aposentadoria especial e o risco de adoecimento precoce dos profissionais da saúde

o desempenho das respectivas atividades se deu nas mesmas condições e no


mesmo ambiente de trabalho do enfermeiro12.
E nos termos do parágrafo único, do artigo 274, da IN nº 77/2015, para
que seja possível tal enquadramento, essa similitude deverá estar expressa-
mente consignada no Perfil Profissiográfico Previdenciário13 apresentado
como prova da atividade especial.
A possibilidade de enquadramento do tempo especial por categoria
profissional perdurou até 28.04.1995, data do advento da Lei nº 9.032/95,
que deu nova redação ao artigo 57 da Lei nº 8.213/91, passando a exigir a
prova do efetivo labor em condições especiais que prejudiquem a saúde ou
a integridade física.

3.3.2 Enquadramento por exposição a agentes nocivos


biológicos

Ao contrário do que foi definido em relação às categorias profissionais,


no que diz respeito à data limite para a possibilidade de enquadramento
por exposição presumida, continua sendo possível, até os dias atuais, o re-
conhecimento do tempo de trabalho especial, desde que seja efetivamente
comprovada a exposição do segurado a agentes nocivos à sua saúde ou à
integridade física.
De modo que, diferentemente da limitação existente na primeira modali-
dade de enquadramento do tempo especial, nesta segunda será possível pleitear
o reconhecimento da especialidade do período laborado sob a exposição de
agentes nocivos biológicos, independentemente do ofício desempenhado pelo
segurado. Um exemplo claro dessa possibilidade pode ser materializado na
figura do auxiliar/servente de limpeza14 de estabelecimentos de saúde, onde,
embora não esteja arrolado dentre as profissões presumidamente nocivas, po-

12 Categoria profissional elencada no rol de atividades presumidamente especiais.


13 A partir de 01.01.2004 o PPP passou a ser o formulário utilizado como prova da atividade
especial. Para os períodos de trabalho anteriores a tal marco, serão aceitos os antigos formu-
lários DIRBEN-8030, DSS-8030, DISES BE 5235, SB-40.
14 Nos termos da súmula nº 82 da TNU: O código 1.3.2 do quadro anexo ao Decreto n.º
53.831/64, além dos profissionais da área da saúde, contempla os trabalhadores que exercem
atividades de serviços gerais em limpeza e higienização de ambientes hospitalares.

193
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

derá ter o seu tempo enquadrado como especial se ficar constatado o contato
com agentes nocivos biológicos.

4. INEFICÁCIA DOS EPIS ANTE A EXPOSIÇÃO A AGENTES


BIOLÓGICOS
Quando a discussão envolve o reconhecimento do tempo de trabalho
em condições especiais existe um tema que tormentosamente entra em cena:
a eficácia do EPI15 declarado no Perfil Profissiográfico Previdenciário em
atenuar e/ou neutralizar a exposição aos agentes nocivos presentes no labor
desempenhado pelo segurado.
E como o presente artigo busca discutir o adoecimento precoce dos profis-
sionais da saúde e o risco de sua permanência no respectivo ambiente laboral
após os 25 anos de trabalho em condições nocivas à saúde, indispensável
se faz verificar a eficácia, ou não, dos equipamentos de proteção individual
utilizados por esta categoria de trabalhadores.
Sabe-se que o STF, no julgamento do ARE 664.335, fixou duas teses acerca
da citada eficácia: a) em se tratando de agente nocivo ruído, o EPI declarado
eficaz não afasta a especialidade no caso de exposição ao agente ruído acima
dos limites legais de tolerância; b) com relação aos demais agentes nocivos,
o direito ao reconhecimento da especialidade será afastado na hipótese de
restar comprovada a eficácia do EPI16.
Contudo, no caso específico dos agentes nocivos biológicos, essa ne-
cessidade de comprovação da ineficácia do equipamento protetivo constitui
medida plenamente dispensável, conforme será demonstrado a seguir.
De acordo com o disposto no Manual de Aposentadoria Especial do INSS,
a existência de EPI declarado como eficaz no Perfil Profissiográfico deverá ser
desconsiderada, haja vista não ter sido constatada até o presente momento
a real eficácia dos equipamentos de proteção utilizados pelos profissionais
expostos a tais fatores não risco17: “No entanto, como não há constatação de

15 Equipamento de proteção individual.


16 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notícias STF. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/
cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=281259. Acesso em 30/06/2020.
17 INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Manual de Aposentadoria Especial. Bra-
sília: INSS, 2017.p. 112.

194
A nova aposentadoria especial e o risco de adoecimento precoce dos profissionais da saúde

eficácia de EPI na atenuação desse agente, deve-se reconhecer o período como


especial mesmo que conste tal informação, se cumpridas as demais exigências”.
A ineficácia dos EPI´s utilizados pelos profissionais da saúde resta ainda
mais patente em tempos como este que vem sendo enfrentado pela população
mundial em decorrência pandemia causada pela COVID-19. Diariamente os
mais variados meios de comunicação trazem informações acerca do alto grau
de contaminação dos profissionais da saúde, bem como do crescente número
de óbitos ocorridos dentro da categoria, fato este que vem chancelar a tese
de ineficácia dos já mencionados equipamentos protetivos fornecidos aos
obreiros da saúde.
De modo que, constatada a inexistência de equipamento de proteção
individual apto a neutralizar, ou menos minimizar os efeitos deletérios dos
agentes nocivos biológicos, é fácil concluir pelo alto risco de adoecimento
precoce dos profissionais da saúde, e conforme será demonstrado a seguir,
tal categoria não é atingida apenas em sua saúde física, mas principalmente
em sua saúde psíquica.

5. DA IMPOSIÇÃO DE IDADE MÍNINA NA APOSENTADORIA


ESPECIAL E O RISCO DE ADOECIMENTO PRECOCE DOS
PROFISSIONAIS DA SAÚDE
Conforme mencionado na parte inicial do presente trabalho, a aposen-
tadoria especial possui nítido caráter protetivo, cujo principal objetivo é
retirar o trabalhador de forma antecipada de um ambiente laboral nocivo. Tal
natureza protetiva, contudo, foi posta em xeque com a aprovação da Refor-
ma da Previdência Social através da Emenda Constitucional nº 103/2019, na
medida em que estipulou, aos novos segurados, requisito etário como forma
de acesso ao benefício.
A imposição de uma idade mínima para a concessão do benefício cons-
titui, sem sombra de dúvidas, uma grande barreira à obtenção de um direito
cujo objetivo era preservar a saúde e a vida do trabalhador que exercia suas
atividades em condições adversas. Levando-se como exemplo o caso de uma
segurada que inicia a sua atividade como técnica de enfermagem em um hospi-
tal aos 20 anos de idade, a mesma teria direito à aposentadoria especial, pelas
regras anteriores à Reforma da Previdência, aos 45 anos de idade, caso tenha
trabalhado de forma ininterrupta na citada função. Pelas regras transitórias
contidas na Emenda Constitucional nº 103/2019, essa mesma segurada, caso
195
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

tivesse ingressado no RGPS após início da vigência da citada emenda, ainda


que iniciasse o seu trabalho como técnica de enfermagem aos 20 anos de ida-
de, teria que trabalhar até os 60 anos, ou seja, permaneceria em um ambiente
altamente nocivo por mais 15 anos, o que descaracteriza, por certo, o caráter
protetivo inicialmente estampado no benefício de aposentadoria especial.
É fato notório, portanto, que as condições de acesso à aposentadoria
especial impostas pela reforma da previdência contrariam frontalmente o seu
verdadeiro e inicial objetivo, que era a proteção da saúde e vida do trabalha-
dor. A falta de preocupação com a saúde refletida nas novas regras trazidas
pela Emenda Constitucional foi objeto de apontamento por parte de Adriane
Bramante de Castro Ladenthin18:

A Emenda Constitucional n. 103/19 fecha o ciclo de um período de


aposentadoria especial sem idade mínima e integral, focada na proteção
da saúde do trabalhador. A partir da publicação da mencionada EC, uma
nova aposentadoria especial surge, com critérios diferenciados e sem tanta
preocupação com os riscos do ambiente laboral pelos quais o segurado
esteve exposto.

Embora todas as atividades especiais mereçam a devida proteção do cons-


tituinte no que tange à proteção de sua saúde e vida, algumas categorias acabam
sendo mais prejudicas pela natureza específica do seu labor, notadamente aquelas
que tem contato direto com o sofrimento humano, podendo ser citadas como
exemplo os enfermeiros, médicos, e demais profissionais da saúde19.
Com efeito, em se tratando de profissionais da saúde, esse acréscimo
do tempo de permanência em um ambiente altamente nocivo constituirá,
não apenas para a saúde física, mas também psíquica, motivo determinante
para o seu adoecimento precoce, podendo ceifar, desta feita, a fruição de sua
aposentadoria especial. Segundo estudo realizado pelo Medscape Physician
Lifestyle Report 2015, foi constatado “que 46% dos médicos dos Estados Unidos
têm burnout”.20

18 LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria Especial – dissecando o PPP: de


acordo com a EC n. 103/19. 1a ed. São Paulo: Lujur, 2020. p. 22.
19 BARUKI, Luciana Veloso. Riscos psicossociais e saúde mental do trabalhador: por um
regime jurídico preventivo. 2 ed. São Paulo: LTr, 2018. p. 77.
20 NABUCO, apud BARUKI, Luciana Veloso. Riscos psicossociais e saúde mental do trabalha-
dor: por um regime jurídico preventivo. 2 ed. São Paulo: LTr, 2018. p. 77.

196
A nova aposentadoria especial e o risco de adoecimento precoce dos profissionais da saúde

O adoecimento precoce dos profissionais da saúde também foi objeto de


estudo por parte do Conselho Nacional das vítimas de Karoshi21, conforme
apontamentos emitidos por Luciana Veloso Baruki22:

Passadas duas décadas, o problema ainda persiste. Em 19 de novem-


bro de 2007, o Conselho Nacional de defesa das Vítimas de Karoshi, com
o intuito de evitar a morte de médicos por sobrecarga de trabalho, bem
como de melhorar as condições de trabalho destes, submeteu uma série de
solicitações ao ministro da Saúde, Trabalho e Bem-Estar no Japão.

Também foi objeto de estudo pela autora acima mencionada, onde


buscou demonstrar a necessidade da existência de um regime jurídico pre-
ventivo sobre a saúde do trabalhador, o número elevado de profissionais de
urgência em saúde acometidos por Transtorno de Estresse Pós-Traumático
(TEPT).23
Mostra-se factível, portanto, a alta taxa de adoecimento dos profissio-
nais da saúde, mesmo quando poderiam se aposentar de forma antecipada,
sem qualquer limitação de idade. E com a barreira etária advinda da Emenda
Constitucional nº 103/2019, a chance da eclosão precoce do adoecimento dos
profissionais da saúde aumentará ainda mais.

6. DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA SAÚDE DO


TRABALHADOR
É sabido que a saúde encontra proteção expressa em nossa Constituição
Federal de 1988, em seus artigos 6º, 7º, 194 e de forma mais específica no
artigo 196, onde restou asseverado ser dever do estado a promoção da saúde,
objetivando, através de políticas sociais e econômicas, a redução do risco de
doenças e de outros agravos.24

21 Termo japonês utilizado para denominar morte súbita por sobrecarga ou excesso de
trabalho.
22 BARUKI, Luciana Veloso. Riscos psicossociais e saúde mental do trabalhador: por um
regime jurídico preventivo. 2 ed. São Paulo: LTr, 2018. p. 81.
23 BARUKI, Luciana Veloso. Riscos psicossociais e saúde mental do trabalhador: por um
regime jurídico preventivo. 2 ed. São Paulo: LTr, 2018. p. 92.
24 BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada
em 05.10.1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988.

197
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Tal proteção decorre, precipuamente, do princípio da dignidade da pes-


soa humana, erigido um dos pilares de nossa carta política, pois de acordo
com o disposto no seu artigo 1º, a República Federativa do Brasil tem por
fundamento, dentre outros, a dignidade da pessoa humana.
Segundo Luciana Veloso Baruki25:

O direito fundamental à proteção da saúde mental do trabalhador é,


sem dúvida, uma vertente da dignidade da pessoa humana, mas também um
corolário dos direitos fundamentais à saúde e ao meio ambiente do trabalho
sadio, respectivamente. Os direitos fundamentais são direitos subjetivos
aplicáveis às relações públicas ou privadas, indispensáveis à realização
da natureza humana ou à vida em sociedade e, por isso, são assegurados
ou promovidos pelo próprio indivíduo, por sua família, pela sociedade
nacional solidária, pelo Estado nacional e, subsidiariamente, pela ordem
internacional. Desta forma, a proteção à saúde do trabalhador nos parece
estar aí enquadrada.

Segundo o pensamento kantiano, o status moral do ser humano passou


a ser utilizado como base para a atribuição da dignidade aos indivíduos. Ao
discorrer sobre o tema, CUNHA26 teceu os seguintes apontamentos:

O grande legado do pensamento kantiano para a filosofia dos direitos


humanos, contudo, é a igualdade na atribuição da dignidade. Na medida
em que a liberdade no exercício da razão prática é o único requisito para
que um ente se revista de dignidade, tem-se que a condição humana é o
suporte fático necessário e suficiente à dignidade, independentemente de
qualquer tipo de reconhecimento social.
(...)
Para Kant, a dignidade é o valor de que se reveste tudo aquilo que não
tem preço, ou seja, não é passível de ser substituído por um equivalente.
Dessa forma, a dignidade é uma qualidade inerente aos seres humanos
enquanto entes morais: na medida em que exercem de forma autônoma
a sua razão prática, os seres humanos constroem distintas personalidades

25 BARUKI, Luciana Veloso. Riscos psicossociais e saúde mental do trabalhador: por um


regime jurídico preventivo. 2 ed. São Paulo: LTr, 2018. p. 108.
26 CUNHA, Alexandre dos Santos. A normatividade da pessoa humana: o estudo jurídico da
personalidade e o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 85-88.

198
A nova aposentadoria especial e o risco de adoecimento precoce dos profissionais da saúde

humanas, cada uma delas absolutamente individual e insubstituível. Con-


sequentemente a dignidade é totalmente inseparável da autonomia para o
exercício da razão prática, e é por esse motivo que apenas os seres humanos
revestem-se de dignidade.

De acordo com a teoria kantiana, cuja utilização tem por objetivo tornar
efetivos os direitos fundamentais, deverá sempre haver uma reciprocidade de
respeito entre os indivíduos.
Dentre os avanços doutrinários advindos do pensamento concernentes à
dignidade humana voltada ao status moral do ser humano, foi a abominação
de diversas práticas que tendiam a “coisificar” o indivíduo. Vejamos, nesse
sentido, as lições de COMPARATO27:

A escravidão acabou sendo universalmente abolida, como instituto


jurídico, somente no século XX. Mas a concepção kantiana da dignidade
da pessoa como um fim em si leva à condenação de muitas outras práticas
de aviltamento da pessoa a condição de coisa, além da clássica escravidão,
tais como o engano de outem mediante falsas promessas, ou os atentados
cometidos contra os bens alheios. Ademais, disse o filósofo, se o fim natural
de todos os homens é a realização de sua própria felicidade, não basta agir
de modo a não prejudicar ninguém. Isto seria uma máxima meramente
negativa. Tratar a humanidade como um fim em si implica o dever de favo-
recer, tanto quanto possível, o fim de outrem. Pois, sendo o sujeito um fim
em si mesmo, é preciso que os fins de outrem sejam por mim considerados
também como meus.

A dignidade humana é considerada pela doutrina como a bússola con-


dutora de toda atuação, de Estado e Cidadania. Veja-se que na Declaração
Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, a dignidade da pessoa
humana teve tratamento expresso, em seu artigo 1º, onde restou asseverado
que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.
Em suma, todos os direitos fundamentais até hoje conquistados, são
oriundos de inúmeras e sofridas lutas de classes, as quais buscavam torna
efetiva a aplicação, o respeito, da dignidade humana.

27 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Pau-
lo: Saraiva, 2003. p. 21-22.

199
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Ao dificultar o acesso do segurado ao seu benefício previdenciário


de natureza preventiva e alimentar, através de um limite etário até então
inexistente em nosso ordenamento jurídico, acaba-se feriando frontalmente
o princípio da dignidade da pessoa, relegando o obreiro que desempenha as
suas atividades em condições nocivas ao inevitável adoecimento precoce, ou
até mesmo o seu óbito. E tal obstáculo trazido pela Emenda Constitucional
nº 103/2019 acaba resultando em uma situação de injustiça e causadora de
pobreza e iniquidade social, isso sem falar na perpetração de um indiscutível
retrocesso social.
Segundo Marco Aurélio Serau Junior28:

No Brasil ocorre um fenômeno singular em termos de Seguridade So-


cial e, em particular, de Previdência Social. Produz-se um retrocesso social
indireto ou que não é formal.
Promove-se a diminuição no alcance dos direitos sociais (previdenciários
em particular) não a partir de sua supressão direta e expressa, mas através
do gradual enrijecimento dos requisitos necessários para obtenção dos
benefícios previdenciários, em particular as regras de prova das situações
de vida que produzem reflexo previdenciário.
Exemplo dessa afirmação pode ser encontrado na Medida Provisória
871/2019, que passou a exigir comprovação e cadastramento formal dos
segurados especiais (trabalhadores rurais) para fins de obtenção dos bene-
fícios previdenciários (arts. 38-A e 38-B, da Lei 8.213/91).
No mesmo rumo a exigência, igualmente trazida pela Medida Provisória
871/2019, no sentido de prova formal da união estável, sendo vedada a
prova exclusivamente testemunhal, o que certamente dificulta, em inúmeros
casos, a obtenção do benefício da pensão por morte.

Com efeito, ainda que não tenha havido a retirada expressa do direito ao
benefício de aposentadoria especial com a nova previdência, o enrijecimento
de seus requisitos acaba por dificultar, ou até mesmo tornar impossível, a
entrega de tal bem jurídico aos seus destinatários, no caso em tela os profis-
sionais da saúde.
Ademais, no caso dos profissionais da saúde, cuja saúde mental é patente-
mente afetada no desempenho do seu labor em razão do ininterrupto contato

28 SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social e direitos fundamentais. 3 ed. Curitiba:
Juruá, 2019. p. 103-104.

200
A nova aposentadoria especial e o risco de adoecimento precoce dos profissionais da saúde

com a dor, o sofrimento e perda alheia, a imposição de um limite etário para o


gozo da aposentadoria especial acaba por chancelar o seu adoecimento antes
que possam usufruir a sua aposentação.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É fato notório que os profissionais da saúde estão expostos a inúmeros
agentes biológicos durante toda a sua jornada laborativa. Também é inconteste
que os equipamentos de proteção individual por eles utilizados não possuem
a eficácia necessária para neutralizar a nocividade dos respectivos agentes
agressivos, tanto é que no cenário atual em que a população mundial está
vivendo vê-se que inúmeros trabalhadores da saúde estão sendo contamina-
dos pela COVID-19, ou, o que é mais grave, estão perdendo a sua vida em
virtude de tal contaminação.
Restou demonstrado, de igual modo, não apenas a saúde física desses
profissionais é afetada em seu ambiente de trabalho, mas também a sua saúde
mental, tudo isso devido ao ambiente tão estressante, deprimente e degradante
ao qual estão diuturnamente inseridos.
E como forma de agravar ainda mais a situação de tais profissionais, veio
a reforma da previdência e praticamente retirou-lhes o direito à aposentadoria
especial de forma antecipada, tendo em vista ter sido criado um requisito de
idade mínima para que seja concedido o citado benefício.
Diante de tamanho retrocesso advindo da reforma da previdência, resta-
-se patente que o objetivo primordial da aposentadoria especial, que era de
retirar o obreiro do ambiente nocivo de forma antecipada, evitando assim o
seu adoecimento ou até mesmo a sua morte, acabou por desaparecer, colocan-
do em xeque a proteção constitucional até então dispensada a esta e outras
categorias de profissionais.
Mostra-as indispensável, portanto, uma maior e mais efetiva mobilização
por parte dos mais variados atores sociais, a fim de que seja possível a corri-
genda desse retrocesso perpetrado com a criação da idade mínima para fins
de concessão da aposentadoria especial. Tal mobilização deve ser levantada
não apenas pelos políticos, no intuito de alterar as normas atinentes à apo-
sentadoria especial, mas também por parte dos advogados previdenciaristas,
para que possam buscar, através do estudo técnico, meios hábeis a declarar
a inconstitucionalidade dos dispositivos da Emenda Constitucional que
resultaram nessa barreira quase que intransponível na busca do benefício
201
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

especial. Possuem importante papel no presente contexto, de igual modo, os


magistrados que irão se deparar com demandas buscando a tão necessária
solução para o problema criado com a reforma da previdência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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202
A nova aposentadoria especial e o risco de adoecimento precoce dos profissionais da saúde

SCHUSTER, Diego Henrique. Aposentadoria especial: entre o princípio da precaução e


a proteção social. Curitiba: Juruá, 2016.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notícias STF. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/
cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=281259. Acesso em 30/06/2020.

203
UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA
E O EFEITO PELTZMAN: CUIDADOS
NECESSÁRIOS NA APLICAÇÃO DAS REGRAS
INSTITUÍDAS PELA LEI N. 13.105/2015

Lara Bonemer Rocha Floriani1

Sumário: Introdução − 1. Algumas linhas sobre a teoria dos pre-


cedentes judiciais − 2. Aplicação das regras de uniformização
− 3. O efeito peltzman − Conclusão − Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO
O Código de Processo Civil, instituído pela Lei n. 13.105/2015, esta-
beleceu regras que buscam a uniformização da jurisprudência para garantir
segurança jurídica.
Neste mister, previu no art. 927, o dever de observação, pelos juízes e
tribunais, das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentra-
do de constitucionalidade, os enunciados de súmula vinculante, os acórdãos
proferidos em incidente de assunção de competência ou de resolução de
demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial

1 Mestre e Doutora em Direito Econômico pela PUCPR. Professora nos cursos de Graduação
em Direito da Faculdade Estácio de Sá e do Centro Universitário Autônomo do Brasil − Uni-
brasil. Professora convidada em Cursos de Pós-Graduação. Integrante da Diretoria de Atua-
ção Judicial do IBDP. Coordenadora da Pós-Graduação em Direito Econômico da PUCPR.
Advogada. E-mail: lara@rochaefloriani.com.br.

205
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

repetitivos, os enunciados das Súmulas do Supremo Tribunal Federal em


matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infra-
constitucional e, por fim, a orientação do plenário ou do órgão especial aos
quais estiverem vinculados.
Ampliou ainda os poderes do relator, garantindo a possibilidade de negar
provimento a recurso contrário às decisões que tenham a natureza das indica-
das alhures e dar provimento, após facultada a apresentação de contrarrazões,
ao recurso que desafie decisão contrária a tais decisões, nos termos do art.
932, inc. IV e V, do CPC.
Para tanto, adotou indiretamente regras de uniformização de jurispru-
dência da Teoria dos Precedentes, utilizada no sistema jurídico Common
Law.
Ocorre que, muito embora a louvável intenção do legislador, a análise
das decisões proferidas pelos órgãos do Poder Judiciário que resguardam
competência para a uniformização de jurisprudência tem repercutido, em
alguns casos, pois em se tratando de assunto de extrema importância seria
negligente o descuido relacionado a generalização, em efeito contrário ao
intencionado pelo legislador, que visava estabilidade, coerência e segurança
jurídica, configurando-se verdadeiro efeito Peltzman.
Este artigo teve como objetivo indicar o risco de consequências não in-
tencionais da aplicação das regras de uniformização da jurisprudência, pelos
órgãos do Poder Judiciário com competência uniformizadora.
Para tanto, o trabalho foi dividido em três partes. Na primeira, é abor-
dada a técnica de aplicação de precedentes, com a indicação dos cuidados
que o aplicador da Lei deve resguardar a fim de garantir a uniformização do
entendimento, garantindo a segurança jurídica. Após, é feita uma análise
crítica de duas decisões recentes de afetação de temas pela Turma Nacional
de Uniformização, para que, ao final, se possa tecer algumas considerações
sobre o risco de criação do efeito Peltzman.
Evidente que, considerando a extensão do presente trabalho, não se
pretendeu, como já adiantando, uma generalização e sequer um exaurimento
do tema. Trata-se de um estudo que visa levantar um alerta para que se possa
reforçar os cuidados na aplicação das regras de uniformização, visando garantir
os objetivos traçados pelo corpo de juristas que incorporaram, no processo
civil brasileiro, regras de precedentes advindas do sistema jurídico common
law, quando da elaboração do Código de Processo Civil em vigor.
206
Uniformização da jurisprudência e o efeito Peltzman

1. ALGUMAS LINHAS SOBRE A TEORIA DOS PRECEDENTES


JUDICIAIS
A Teoria dos Precedentes Judiciais é fundada na doutrina do stare decisis,
que tem sua expressão na premissa et non quieta movere (o que foi decidido
deve ser respeitado). Trata-se, portanto, de uma decisão tomada pelo órgão
com jurisdição competente para proferir a decisão que deve servir de orien-
tação para o julgamento de casos futuros, desde que guardem semelhança a
ponto de justificar o uso do precedente.
O precedente deve ser tido como um norte para o julgador, na medida
em que se traduzem em enunciados legislativos, textos dotados de autorida-
de, mas que carecem de interpretação. Podem ser limitados ou estendidos,
conforme as necessidades de cada caso concreto, comprovando-se a assertiva
de que o respeito aos precedentes não implica cerceamento do livre convenci-
mento do magistrado, que atua expressando sua convicção quando diante da
necessidade de limitar ou estender a ratio decidendi do precedente judicial.2
É por isso que a Suprema Corte dos Estados Unidos apenas aceita os casos
que lhe permitem guiar a evolução do Direito em domínios de importância
nacional. Considera, neste aspecto, problemas relacionados às liberdades pú-
blicas, à interpretação das leis de regulamentação econômica ou de proteção
aos consumidores e ao meio ambiente3.
O que se aproveita do precedente (stare decisis) é a ratio decidendi, ou
seja, os fundamentos da decisão. Quando o juiz decide um caso, expõe os
fatos que segundo seu entendimento, tenham sido devidamente provados.
Na sequência, aplica a lei àqueles fatos e chega a uma decisão. É a proposição
da lei aplicada àquele caso que tem a autoridade de precedente e que, sobre
este aspecto, vincula posteriormente os Tribunais4.
Neil MacCormick afirma que é a ratio decidendi de uma decisão o ele-
mento vinculante em um precedente. É a regra ou princípio da decisão que

2 ROCHA, Lara Bonemer Azevedo da. O desenvolvimento pelo acesso a justiça. São Paulo,
Boreal, 2015, p. 128.
3 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial. São Paulo: Noeses,
2012. p. 318.
4 LAMOND, Grant. Precedent and Analogy in Legal Reasoning. The Stanford Encyclopedia
of Philosophy, Edward N. Zalta (Ed.), spring 2014. Disponível em: <http://plato.stanford.
edu/archives/spr2014/entries/legal-reas-prec/>. Acesso em: 30 out. 014.

207
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

atribui ao precedente a fonte autorizada para que seja vinculante ou apenas


persuasivo em determinado grau, para julgamentos posteriores sobre questões
similares5.
A obiter dictum, de outro lado, são os fatos e especulações feitas pelo
julgador em sua decisão, que não são considerados quando da aplicação
de um precedente judicial. É identificada por exclusão: todas as normas e
afirmações que não puderem ser enquadradas no conceito de ratio decidendi,
constituem a obiter dictum, valendo apenas pela força de convencimento que
eventualmente possam vir a ter.6
Esta diferenciação entre a ratio decidendi e a obiter dictum é de fundamental
importância para o sistema de stare decisis, na medida em que permite revelar
o precedente jurídico que será utilizado para a solução de casos novos7.
Para garantir o tratamento equânime dos jurisdicionados faz-se mister
identificar o que efetivamente em uma ação faz com que se assemelhe a outra
ao ponto de justificar o uso ou abandono de um precedente. Sob esta ótica,
os precedentes judiciais mostram-se fundamentais, especialmente quando
o intérprete/aplicador do Direito tem consciência da autoridade e força que
devem ser dispensadas aos julgamentos pretéritos, “extraindo e avaliando
os principais aspectos de cada decisão, desde o exame do princípio jurídico
encartado na decisão e a potencialidade do decisium até a qualificação da corte
julgadora e dos argumentos nele exarados”8.
É de crucial importância saber aplicar o precedente, identificando-o como
algo que “ao mesmo tempo em que orienta as pessoas e obriga os juízes, não
imobiliza as relações sociais ou impede a jurisdição de produzir um direito
consentâneo com a realidade e com os novos tempos”9.

5 MACCORMICK, Neil. Rhetoric and The Rule of Law: A Theory of Legal Reasoning. Ox-
ford: Oxford University Press, 2005. p. 9.
6 ROCHA, Lara Bonemer Azevedo da. O desenvolvimento pelo acesso a justiça. São Paulo,
Boreal, 2015, p. 129.
7 STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas
vinculantes? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 48.
8 LIMA, Thiago Asfor Rocha. Precedentes Judiciais Civis no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013.
p. 151.
9 PEREIRA, Paula Pessoa. O Estado de Direito e a Necessidade de Respeito aos Precedentes
Judiciais. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). A Força dos Precedentes – Estudos
dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito Processual Civil da UFPR. 2. ed. Salvador:
Jus Podium, 2012. p. 153.

208
Uniformização da jurisprudência e o efeito Peltzman

Ainda que se admita a criação do Direito – e não a invenção do Direito –,


em casos difíceis, e, portanto, a mudança da jurisprudência, o juiz tem o dever
de fazê-lo de forma harmoniosa ao sistema de justiça como um todo, a fim
de se garantir a segurança jurídica. Conforme destaca Teresa Arruda Alvim
Wambier em seu estudo dos precedentes e da forma de julgar os hard cases
“quando se diz que o juiz, ao decidir hard cases, cria direito, não se quer com
isso significar que ele invente o direito [...] O juiz cria: mas tem o dever de
fazê-lo de forma harmônica ao sistema”10.
As decisões judiciais devem ser justificadas através de um processo de
argumentação, no sentido de que o juiz não deve apenas se preocupar com a
justiça, mas sim com a justiça de acordo com a lei, o que exige que as decisões
judiciais sejam justificadas de acordo com critérios relevantes e que impliquem
em um padrão mínimo de certeza do desempenho judicial11.
Em um caso em que não existe regra aplicável apta a orientar os rumos
da decisão, deve o juiz explicar de forma justificada como atingiu aquela
decisão judicial, principalmente diante da existência de um possível conflito
de normas. É o que MacCormick denomina de segunda ordem de justificação
(second-order justification). Este mecanismo implica que as normas possivel-
mente rivais sejam testadas a partir de sua compatibilidade no contexto com
os princípios e as regras gerais já existentes12.
Primeiro, a nova regra deve ser suportada por argumentos consequen-
cialistas, baseados na percepção da noção do senso comum, da justiça, da
conveniência e das políticas públicas, que demonstram a probabilidade de
que as regras sejam aceitas no sistema legal13.

10 PEREIRA, Paula Pessoa. O Estado de Direito e a Necessidade de Respeito aos Precedentes


Judiciais. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). A Força dos Precedentes – Estudos
dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito Processual Civil da UFPR. 2. ed. Salvador:
Jus Podium, 2012. p. 30.
11 KLOEPFER, Stephen. Book Review: Legal reasoning and legal theory, By Neil MacCormick.
Osgoode Hall Law Journal, n. 18, v. 4, p. 674-682, 1980. Disponível em: <http://digital-
commons.osgoode.yorku.ca/cgi/viewcontent.cgi?article=2036&context=ohlj>. Acesso em:
18 set. 2014. p. 676.
12 KLOEPFER, Stephen. Book Review: Legal reasoning and legal theory, By Neil MacCormick.
Osgoode Hall Law Journal, n. 18, v. 4, p. 674-682, 1980. Disponível em: <http://digital-
commons.osgoode.yorku.ca/cgi/viewcontent.cgi?article=2036&context=ohlj>. Acesso em:
18 set. 2014. p. 676.
13 KLOEPFER, Stephen. Book Review: Legal reasoning and legal theory, By Neil MacCormick.
Osgoode Hall Law Journal, n. 18, v. 4, p. 674-682, 1980. Disponível em: <http://digital-

209
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Mas em virtude da insuficiência deste mecanismo, a decisão deve pas-


sar por mais dois outros testes: o da consistência e da coerência. O primeiro
estabelece que ainda que satisfaça aos requisitos do primeiro teste, somente
poderá ser adotada se não estiver em contradição com alguma regra válida e
vinculante do sistema. E o segundo requer que mesmo que uma possível forma
de decidir satisfaça o teste da consistência, somente poderá ser adotado se
de acordo com os princípios e ordenamento jurídico existentes14. A decisão
deve ser tomada em relação a um contexto, considerando-se as demais regras
e princípios existentes15.
Esta coerência diz respeito à necessidade de que múltiplas regras de um
sistema jurídico tenham um sentido em seu conjunto16. É, neste contexto,
prejudicial à consistência do sistema de justiça e, por consectário, à segurança
jurídica, um sistema em que são proferidas decisões conflitantes entre si a
respeito de uma mesma questão.17
Existe, portanto, uma patente necessidade de coerência e adequação
aos pronunciamentos judiciais, a fim de garantir a necessária previsibilidade
(relativa, no entendimento de Humberto Ávila) ao sistema de justiça.18 Teresa
Arruda Alvim Wambier assevera que o fato do homem poder viver de acordo
com regras pré-estabelecidas foi uma das mais importantes conquistas da
civilização, e que o conhecimento a respeito dos padrões de avaliação de sua
conduta, independentemente do juízo de valor que a respeito destes padrões
possa fazer, satisfaz e tranquiliza. Trata-se exatamente da previsibilidade que
deve ser garantida pelo Direito19.

commons.osgoode.yorku.ca/cgi/viewcontent.cgi?article=2036&context=ohlj>. Acesso em:


18 set. 2014. p. 676.
14 KLOEPFER, Stephen. Book Review: Legal reasoning and legal theory, By Neil MacCormick.
Osgoode Hall Law Journal, n. 18, v. 4, p. 674-682, 1980. Disponível em: <http://digital-
commons.osgoode.yorku.ca/cgi/viewcontent.cgi?article=2036&context=ohlj>. Acesso em:
18 set. 2014. p. 676.
15 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e Evolução no Direito. In: ______ (Coord.).
Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 30.
16 MACCORMICK, Neil. Legal reasoning and legal theory. Oxford: Clarendon Press, 1978. p.
152.
17 ROCHA, Lara Bonemer Azevedo da. O desenvolvimento pelo acesso a justiça. São Paulo,
Boreal, 2015, p. 37.
18 ROCHA, Lara Bonemer Azevedo da. O desenvolvimento pelo acesso a justiça. São Paulo,
Boreal, 2015, p. 38.
19 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e Evolução no Direito. In: ______ (Coord.).
Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 14.

210
Uniformização da jurisprudência e o efeito Peltzman

É, portanto, fundamental que se estabeleça adequadamente o processo


de estabilização de uma tese jurídica, para que se possa adotar um sistema de
precedentes. É preciso compreender o modo como se forma no sistema jurídico
um entendimento sobre um dado tema, detectando-se em cada julgamento
o que efetivamente foi enfrentado e decidido pelas cortes (ratio decidendi) e
aquilo que foi examinado apenas de forma superficial pelos integrantes do
tribunal (obiter dictum). 20
No sistema anglo saxão, por exemplo, o juiz ao apreciar um caso novo
deverá pesquisar sobre a existência de pronunciamento judicial anterior so-
bre o mesmo tema e, constatada a existência, deverá realizar um processo de
decomposição do precedente. Este processo tem como objetivo o de separar
a ratio da decisão das considerações periféricas, ou seja, da obiter dictum21.
Este processo exige uma análise aprofundada do precedente, ou seja, uma
leitura da sua íntegra.
Na sequência, deve o juiz verificar se o precedente é atual ou não, se foi
reformado pela instância superior ou não, se é pacífico na corte e nos demais
tribunais de mesma hierarquia e que lhe são superiores, se a ratio decidendi
pode ou não ser aplicada no caso presente e, por fim, se existem razões para
reexaminá-lo à luz de uma nova ordem jurídica, econômica, social, política
ou cultural que sobreveio a uma anterior, por exemplo22.
Não é suficiente em um sistema que devota respeito aos precedentes, a
mera transcrição da ementa da decisão. A tarefa interpretativa é complexa e
exige um domínio da técnica, para que se possa compreender o real sentido
e alcance da ratio decidendi.23
Um sistema de precedentes deve ser coeso, operar com lógica, de acordo
com técnicas previamente estabelecidas, além de promover orientações jurídi-
cas e assegurar legítimas expectativas aos jurisdicionados. A implementação
de um sistema de precedentes tem como condicionante a previsibilidade das

20 ROCHA, Lara Bonemer Azevedo da. O desenvolvimento pelo acesso a justiça. São Paulo,
Boreal, 2015, p. 131.
21 CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. A força dos precedentes no moderno processo civil bra-
sileiro. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012. p. 559.
22 LIMA, Thiago Asfor Rocha. Precedentes Judiciais Civis no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013.
p. 440.
23 ROCHA, Lara Bonemer Azevedo da. O desenvolvimento pelo acesso a justiça. São Paulo,
Boreal, 2015, p. 131.

211
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

decisões judiciais e de que elas sejam proferidas considerando o sistema como


um todo. Somente assim é possível se falar em um sistema de precedentes
judiciais no Brasil que possa ser eficiente e respeitado pela sociedade.

2. APLICAÇÃO DAS REGRAS DE UNIFORMIZAÇÃO


As regras de uniformização de jurisprudência devem ser seguidas por
todos os órgãos do Poder Judiciário que de acordo com o ordenamento jurídico
brasileiro resguardem competência para a criação, modificação ou revogação
de precedentes. As etapas orientadoras do magistrado são, como indicado,
indispensáveis a correta implementação de um sistema de precedentes judi-
ciais vinculantes.
Contudo, em um balanço de pouco mais de quatro anos da entrada em
vigor do Código de Processo Civil instituído pela Lei n. 13.105/2015, é pos-
sível observar a necessidade de um aprimoramento na aplicação das técnicas
de uniformização, sob pena de comprometimento dos ideais que norteiam o
sistema de precedentes.
A título de exemplo, tome-se as decisões de afetação proferidas pela Turma
Nacional de Uniformização. Para este breve estudo, foram relacionadas três
decisões proferidas pela TNU, que conhecerem os Pedidos de Uniformização
e afetaram o tema como representativo da controvérsia.
O primeiro, diz respeito ao Tema 220, em que foi delimitada a seguinte
questão controvertida:

“Saber se o rol do inciso II do art. 26 c/c art. 151 da Lei no 8.213/91 é


taxativo ou se pode contemplar outras hipóteses de isenção de carência,
como a gravidez de alto risco”.

O julgamento do mérito do referido tema envolve fundamentos exis-


tentes em torno da taxatividade do rol do art. 151, da Lei n. 8.213/91, e da
segurança jurídica, no sentido de se manter restritiva as hipóteses de isenção
de carência. Discute-se, no referido caso, a possibilidade de se relativizar o rol
de doenças que sujeitam a isenção do cumprimento do requisito de carência.
Ocorre que, não bastasse a existência de posicionamento dos TRF da
3ª e 4ª Região acerca da taxatividade do referido rol, o Superior Tribunal de
Justiça, através do instrumento de uniformização dos recursos repetitivos já
proferiu decisão acerca da taxatividade do rol de moléstias previsto no art.
212
Uniformização da jurisprudência e o efeito Peltzman

6º, XIV, da Lei 7.713/88, que trata sobre a isenção de imposto de renda sobre
os proventos de aposentadoria, entendimento consolidado no Tema 250.24
Eventual decisão em sentido contrário pela TNU repercutiria em claro
cenário de instabilidade, na medida em que abriria espaço para um novo ques-
tionamento acerca do posicionamento do STJ, adotado desde 2010. É preciso
destacar, neste caso, além da premissa inafastável de segurança jurídica, a
necessidade de tomada de decisão em relação a um contexto, considerando-
-se as demais regras e princípios já existentes.
Nesta seara, cabe questionar se seria, de fato, caso de afetação, ou seja,
se efetivamente existiria questão controvertida a ser uniformizada, ou se,
seguindo a correta técnica de aplicação de precedentes, não seria o caso de
aplicar a tese já firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, em respeito a es-
tabilidade, coerência e previsibilidade.
Outra decisão que comporta análise diz respeito ao Tema 240, afetado
pela TNU, em que se delimitou a seguinte questão controvertida:

“Saber se a anotação de vínculo empregatício extemporaneamente em


CTPS tem serventia de início de prova material para fins previdenciários
(art. 55, §3º, da Lei 8.213/91) ou se depende de outros elementos materiais
de prova a corroborá-la”.

Este Pedido de Uniformização guarda peculiaridades diversas do Tema


anterior, que comportam especial destaque neste estudo. Como tratado no

24 A questão submetida ao rito de recursos repetitivos foi a seguinte: “Questão referente à na-
tureza do rol de moléstias graves constante do art. 6º, XIV, da Lei 7.713/88 − se taxativa ou
exemplificativa −, de modo a possibilitar, ou não, a concessão de isenção de imposto de ren-
da a aposentados portadores de outras doenças graves e incuráveis”. E a tese foi firmada no
seguinte sentido: O conteúdo normativo do art. 6º, XIV, da Lei 7.713/88, com as alterações
promovidas pela Lei 11.052/2004, é explícito em conceder o benefício fiscal em favor dos
aposentados portadores das seguintes moléstias graves: moléstia profissional, tuberculose
ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase, para-
lisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose
anquilosante, nefropatia grave, hepatopatia grave, estados avançados da doença de Paget
(osteíte deformante), contaminação por radiação, síndrome da imunodeficiência adquirida,
com base em conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraí-
da depois da aposentadoria ou reforma. Por conseguinte, o rol contido no referido dispositi-
vo legal é taxativo (numerusclausus), vale dizer, restringe a concessão de isenção às situações
nele enumeradas.

213
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

item anterior, a correta aplicação de um precedente exige que os casos guar-


dem similitude fática, para que se possa aplicar a ratio decidendi.
O processo judicial que originou o PREFILEF do Tema 240 indica a
inexistência de semelhança entre as circunstâncias fáticas do caso concreto e
do paradigma invocado pela parte recorrente para suscitar a divergência de
entendimento.
Isto porque, no caso concreto, tem-se um vínculo anotado em CTPS
em virtude de uma reclamatória trabalhista, o pedido amparado por outra
prova material, qual seja, a declaração da empregadora, e ainda, a produção
de prova testemunhal perante o Juízo de origem, para fins de comprovação
do vínculo. Já no caso paradigma, tem-se que a anotação extemporânea
do vínculo de seu por ato do empregador, e não tem decorrência de uma
reclamatória trabalhista. Tem-se premissas fáticas diversas, que ensejam
tratamento jurídico distinto.
E o que se revela mais interessante neste caso, é que tanto um, como o
outro caso, já possuem entendimento jurisprudencial firmado pela TNU em
Pedido de Uniformização de Jurisprudência, inexistindo controvérsia a ser di-
rimida. A TNU, no julgamento do PREDILEF n. 0500159-04.2017.4.05.8312,
já fez a oportuna distinção dos casos concreto e paradigmas, indicando que
havendo anotação extemporânea na CTPS em decorrência de sentença traba-
lhista, configura-se início de prova material a ser complementada por outros
meios de prova, cabendo ao INSS o ônus de apresentar prova em contrário.
Por outro lado, havendo anotação extemporânea na CTPS que não em de-
corrência de sentença trabalhista, não se configura início de prova material,
sendo exigidas outras provas materiais e testemunhais para a comprovação
do vínculo.
Há, portanto, decisão tomada em regime de uniformização pela própria
TNU, somando a inexistência de qualquer hipótese de overruling ou ainda,
da necessidade de eventual distinguishing. A afetação deste tema evidencia a
necessidade de uma prévia análise de precedentes já existentes, sob pena de se
colocar em cheque orientações já consolidadas e firmadas pela própria Turma.
Por fim, cabe uma análise do Tema 255, afetado pela TNU, em que se
delimitou como controvertida a seguinte questão:

“Saber se a prorrogação do período de graça, decorrente da presença


de mais de 120 (cento e vinte) contribuições sem a perda da qualidade de
segurado, incorpora-se ao patrimônio jurídico do segurado”.

214
Uniformização da jurisprudência e o efeito Peltzman

O julgamento de mérito deste tema veicula claro risco da já denominada


criação do Direito pelos órgãos do Poder Judiciário, o que igualmente con-
traria a própria essência do sistema de precedentes judiciais. Cabe destacar a
importância dos testes de consistência e coerência indicados por MacCormi-
ck, sendo imperiosa a consideração do contexto e das normas e princípios já
existentes sobre a questão.
Isto porque, muito embora não se tenha neste caso um precedente já
firmado sobre o assunto, há Lei que trata da matéria, notadamente o art. 15,
§§1º e 3º, da Lei n. 8.213/91. Importante destacar que não há na referida Lei,
ou em qualquer outra fonte primária direta do direito, qualquer previsão acerca
da prorrogação do período de graça prevista no §1º, do art. 15, da citada Lei e,
neste sentido, acerca da impossibilidade da utilização das 120 (cento e vinte)
contribuições mensais sem interrupção que acarrete a perda da qualidade de
segurado em mais de uma oportunidade.
Assim, em homenagem ao princípio da legalidade, tanto sob o aspecto
da Administração Pública, nos termos do que enuncia o art. 37, caput, da
CF/88, como também sob a perspectiva do particular, nos termos dos arts.
5º, inc. II, e art. 170, parágrafo único, da CF/88, tem-se que a Administra-
ção Pública obedecerá ao princípio da legalidade, estando adstrita ao que a
Lei expressamente autoriza. O particular, por sua vez, tem a liberdade para
exercer todos os atos da vida civil, exceto aqueles expressamente proibidos
por Lei.25
A rigor, no Direito Positivo brasileiro, Lei deve ser concebida em sentido
amplo, nos termos do que enuncia o art. 59, incisos I a VII, da CF/88. Assim,
conjugando a interpretação deste dispositivo com os preceitos dos arts. 60
a 69, da CF/88, que regulam o processo legislativo, é possível concluir que
a Lei Ordinária é o instrumento adequado para dispor sobre os deveres das
pessoas privadas, sem prejuízo das exceções constitucionais a este respeito.
Assim, resguardando a aplicação do princípio da legalidade neste caso,
inexistindo proibição legal acerca da utilização das 120 (cento e vinte) con-
tribuições mensais sem interrupção que acarrete a perda da qualidade de se-
gurado em mais de uma oportunidade para fins de elastecimento do período
de graça, tem-se que permitida.

25 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Princípio da legalidade administrativa e competência regula-


tória no regime jurídico-administrativo brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Ano
51, n. 202, abr./jun. 2014, p. 10.

215
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Entendimento contrário dependeria de expressa proibição legal, o que


demandaria uma iniciativa do Poder Legislativo, e não do Poder Judiciário,
sob pena de usurpação da competência por parte deste, da função legislativa
e, consequentemente, de um claro cenário de criação do direito em descon-
sideração ao contexto legislativo já existente.
Os temas acima indicados foram selecionados em razão de suas peculiari-
dades e da relação que guardam com a aplicação das normas de uniformização.
Como já adiantado acima, não se trata de generalização, ou ainda, de uma
crítica efetiva, até porque até a data em que este artigo foi escrito os referidos
temas não foram julgados quanto ao mérito. Contudo, o estudo é relevante
pois houve a afetação dos temas, e a partir deste momento, passa a existir
o risco de consequencias não intencionais que repercutem em custos, e não
benefícios, como inicialmente esperado, configurando-se o efeito Peltzman.

3. O EFEITO PELTZMAN
O efeito Peltzman é definido por Shikida como a redução no benefício
esperado de uma regulação econômica, cujo objetivo é aumentar a segurança
em uma determinada situação, por conta da mudança do comportamento das
pessoas potencialmente envolvidas na mesma situação, gerada pela própria
regulação.26
A exemplificação do efeito é demonstrada pelo exemplo de Econs e Laws
extraído a partir do fato verídico observado em San Francisco na ponte Golden
Gate, em Janeiro de 2015. No referido caso, existia uma ponte que ligava duas
ilhas Econs e Laws, no Mar do Desespero. A fim de regular o trânsito na ponte,
os políticos das ilhas resolveram pela criação de um código de trânsito com
penalizações para má conduta de motoristas e pedestres. Após, com o obje-
tivo de reduzir o número de acidentes e mortes, concordaram em construir
uma barreira protetora no meio das pistas. Como resultado, verificou-se um
aumento do número de acidentes, que decorreu de um efeito relaxador na
atitude precaucional dos motoristas.27

26 SHIKIDA, Claudio. Efeito Peltzman, pp. 35-38. In: Análise Econômica do Direito: Justiça
e Desenvolvimento. Org: Marcia Carla Pereira Ribeiro, Victor Hugo Domingues e Vinicius
Klein. Curitiba,PR: CRV, 2016, p. 36.
27 SHIKIDA, Claudio. Efeito Peltzman, pp. 35-38. In: Análise Econômica do Direito: Justiça
e Desenvolvimento. Org: Marcia Carla Pereira Ribeiro, Victor Hugo Domingues e Vinicius
Klein. Curitiba,PR: CRV, 2016, p. 36.

216
Uniformização da jurisprudência e o efeito Peltzman

No caso verídico, restou constatado que a legislação norte-americana


não surtiu qualquer efeito positivo na precaução de acidentes. Pelo contrário,
gerou um custo maior em relação ao benefício esperado.28
Mediante a ampliação do modelo teórico apresentado, é possível verificar
grave risco de configuração do efeito Peltzman pela aplicação das regras de
uniformização de jurisprudência pelos órgãos do Poder Judiciário competente,
quando realizada sem a adequada técnica da teoria dos precedentes judiciais do
sistema common law. Como resultado, tem-se justamente o resultado oposto
ao esperado inicialmente, gerando os custos inerentes a falta de previsibilidade
das decisões judiciais e não os benefícios almejados em decorrência de um
cenário de segurança jurídica.
Assim, ao mesmo tempo em que a adoção de um sistema de precedentes
pode conduzir a significativas melhoras na promoção de valores como o da
segurança jurídica, da previsibilidade das decisões judiciais, da uniformidade
quanto à aplicação do direito e do trato isonômico entre os cidadãos, contri-
buindo para a credibilidade do Poder Judiciário, pode também, se utilizado de
forma inadequada, trazer prejuízos à evolução do Direito e, principalmente,
ao dever de satisfazer com justiça as pretensões deduzidas pela sociedade.29
Desta forma, a variação jurisprudencial sobre um tema só pode ser
admitida e considerada benigna quando a interpretação da norma não tiver
alcançado a maturidade suficiente nas cortes de uniformização. Até este mo-
mento, dificilmente se pode falar em tratamento anti-isonômico das questões.
Contudo, a partir do momento em que a tese jurídica alcança força de pre-
cedente, o desrespeito tanto na linha vertical, como também na horizontal,
representa ato atentatório à segurança, isonomia e estabilidade das relações
sociais, afetando, por consectário lógico, a credibilidade do Poder Judiciário
como instituição imprescindível a garantir o equilíbrio do convívio humano.30
Um sistema de justiça que garante segurança jurídica, nos vieses ora
comentados, fornece com clareza as regras do jogo, proporcionando uma

28 SHIKIDA, Claudio. Efeito Peltzman, pp. 35-38. In: Análise Econômica do Direito: Justiça
e Desenvolvimento. Org: Marcia Carla Pereira Ribeiro, Victor Hugo Domingues e Vinicius
Klein. Curitiba,PR: CRV, 2016, p. 36.
29 ROCHA, Lara Bonemer Azevedo da. O desenvolvimento pelo acesso a justiça. São Paulo,
Boreal, 2015, p. 130.
30 ROCHA, Lara Bonemer Azevedo da. O desenvolvimento pelo acesso a justiça. São Paulo,
Boreal, 2015, p. 130.

217
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

estrutura de incentivos para que os agentes desenvolvam suas atividades,


confiantes de que terão ao seu dispor uma instituição sólida e eficaz para
a proteção de seus direitos na hipótese de qualquer ameaça de violação,
criando, portanto, um ambiente favorável às trocas e, por consequência, ao
desenvolvimento econômico. De outro lado, em um sistema em que as regras
do jogo são instáveis, a cada mudança da jurisprudência surge a necessidade
de adjustment costs, o que prejudica a economia31.
Assim, quando se está diante de um cenário em que as decisões judi-
ciais tendem a uma maior uniformidade, o efeito é de que as informações a
respeito dos atos a serem praticados pelos agentes se tornam mais claras e
perceptíveis, facilitando o juízo de expectativas32. Ao contrário, a ausência de
previsibilidade gera, por consectário lógico, um ambiente de incertezas entre
os agentes e, portanto, insegurança jurídica, na medida em que impossibilita
o cálculo dos efeitos de suas condutas.
A consequência é o aumento dos custos inerentes ao risco gerado por este
ambiente incerto e, consequentemente, uma alocação deficiente de recursos
que dificulta o desenvolvimento.

CONCLUSÃO
O Código de Processo Civil em vigor teve como um de seus propósitos
a implementação de regras de uniformização de decisões judiciais, de manu-
tenção da coerência e estabilidade da jurisprudência, mediante a utilização de
regras de formação, aplicação e superação de precedentes do sistema jurídico
common law.
Apesar de se tratar de uma intenção louvável, a prática tem demonstrado,
em alguns casos, a necessidade de um aprimoramento na aplicação das regras
instituídas pela Lei, especialmente por parte dos órgãos do Poder Judiciário
aos que são dotados de competência para uniformização de decisões.
A compreensão da essência do sistema de precedentes e dos fundamentos
que norteiam a identificação da ratio decidendi, a similitude fática dos casos

31 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e Evolução no Direito. In: ______ (Coord.).
Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 14.
32 DIAS, Jean Carlos. Análise econômica do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método, 2009. p. 100.

218
Uniformização da jurisprudência e o efeito Peltzman

para se verificar se é ou não o caso de aplicação de um precedente já existente


e, principalmente, a imprescindibilidade de se considerar o contexto em que
será proferida a decisão, notadamente as regras e princípios já existentes,
revela-se um aspecto fundamental que precisa ser aperfeiçoado para que se
possa alcançar um sistema estável, garantidor de segurança jurídica.
Evidente que se trata de uma Lei razoavelmente nova, cujos efeitos de
sua aplicação foram verificados somente nos últimos anos. Entretanto, um
balanço dos aspectos positivos e negativos já identificados permite que se
possa formular projeções para o futuro, especialmente mediante a correção
de cenários já identificados como inadequados em um contexto em que se
busca implementar uma cultura jurídica de respeito a doutrina do stare decisis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2012.
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219
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PEREIRA, Paula Pessoa. O Estado de Direito e a Necessidade de Respeito aos Precedentes


Judiciais. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). A Força dos Precedentes –
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ROCHA, Lara Bonemer Azevedo da. O desenvolvimento pelo acesso a justiça. São
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STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas
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WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e Evolução no Direito. In: ______ (Coord.).
Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

220
ABONO DE PERMANÊNCIA

Majoly Aline dos Anjos Hardy1

Art. 8º Até que entre em vigor lei federal de que trata o § 19 do art. 40
da Constituição Federal, o servidor público federal que cumprir as exigên-
cias para a concessão da aposentadoria voluntária nos termos do disposto
nos arts. 4º, 5º, 20, 21 e 22 e que optar por permanecer em atividade fará
jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição
previdenciária, até completar a idade para aposentadoria compulsória.

Antes da vigência da Emenda Constitucional nº 41/2003 o servidor pú-


blico titular de cargo efetivo, ao completar os requisitos para concessão de sua
aposentadoria, mas que optasse em continuar trabalhando até a aposentadoria
compulsória tinha direito à isenção da contribuição previdenciária, conforme
previsão do parágrafo 1º do art. 3º da Emenda Constitucional nº 20/1998.
Se o servidor, atingindo uma regra de aposentadoria, resolvesse continuar
trabalhando poderia assim permanecer até a aposentadoria compulsória e,
não mais sofreria os descontos da contribuição previdenciária.
A isenção foi instituída pela EC nº 20/1998 para estimular o servidor
público a ficar em atividade, o que traria maior economia para os RPPS, pois
além do ente federativo não precisar contratar novo servidor para substituí-lo

1 Procuradora do Município de Curitiba. Assessora Previdenciária do Instituto de Previdência


dos Servidores do Município de Curitiba-IPMC. Certificada pelo ICSS. Membro da Comissão
de Direito Previdenciário da OAB/PR. Coordenadora da COPAJURE-Comissão Permanente
de Acompanhamento de Ações Judiciais Relevantes aos RPPS, vinculada ao CONAPREV.
Secretária da ABIPEM. Mediadora certificada pelo Instituto de Certificação e Formação de
Mediadores Lusófonos-ICFML em Portugal.

221
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

também não haveria o pagamento dos proventos de aposentadoria daquele


que seria substituído.
Entretanto, verificou-se que a EC nº 20/1998 criou uma espécie de “norma
pela metade” como costumamos simplificar, pois atribuiu um direito apenas
para o servidor, esquecendo do princípio contributivo aplicável no RPPS. Foi
então publicada a EC nº 41/2003, criando o abono de permanência no §19
do art. 40 da Constituição Federal, mantendo o mesmo direito do servidor
em não sofrer o desconto da contribuição previdenciária ao completar os
requisitos de aposentadoria, mas com uma metodologia diferente de opera-
cionalização da questão: o servidor passa a sofrer o desconto da contribuição
previdenciária, mas ao mesmo tempo recebe um crédito no mesmo valor. O
desconto foi mantido para que o RPPS continuasse recebendo a contribuição,
mas a devolução ao servidor, no valor equivalente ao desconto, passou a ser
uma obrigação do ente federativo, por meio do órgão de lotação do servidor.
Ou seja, a partir da EC nº 41/2003 deixou de existir a isenção da contribuição
previdenciária passando a ser instituído o abono de permanência.
Essa situação melhor se amolda ao princípio contributivo, expresso no
caput do art. 40 da CF. Da mesma forma que na isenção, o valor do abono
de permanência corresponde exatamente ao valor devido a título de contri-
buição previdenciária. Caso o servidor que adquiriu direito ao abono venha
a cumprir os requisitos de regra de aposentadoria em condições melhores,
não perderá tal direito nem terá que devolver o que já recebeu a esse título.
O servidor tem liberdade de opção pela regra mais vantajosa. É o que prevê
o art. 86, §2º da Orientação Normativa SPS/MPF nº 02/2009.
Sobre o abono não incide contribuição previdenciária (art. 29, §3º da
ON SPS/MPS nº 02/2009, art. 1º, XI da Lei nº 9.717/1998 e art. 4º, §1º, IX da
Lei Federal nº 10.887/2004).
O Supremo Tribunal Federal-STF no Tema 888 decidiu que: “É legítimo o
pagamento do abono de permanência previsto no art. 40, § 19, da Constituição
Federal ao servidor público que opte por permanecer em atividade após o
preenchimento dos requisitos para a concessão da aposentadoria voluntária
especial (art. 40, § 4º, da Carta Magna)”.
A Emenda Constitucional nº 103/2019 inovou no tema. Garantiu o
pagamento do abono para quem já o recebia antes da vigência da Emenda,
manteve o direito ao abono de permanência expressamente no §19 do art. 40
da CF, mas o valor pago poderá ser equivalente, no máximo, ao da contribui-
ção previdenciária do servidor, até que atinja os requisitos da aposentadoria
222
Abono de permanência

compulsória. Os critérios para esse pagamento deverão ser estabelecidos na lei


de cada ente federativo. O abono de permanência poderá sofrer alterações no
valor, podendo variar, de acordo com os critérios que o legislador local definir.
Para o servidor público federal a EC nº 103/2019 estabeleceu uma re-
gra transitória, pois o abono de permanência continua sendo equivalente
ao valor da contribuição previdenciária descontada do servidor, até que lei
federal estabeleça diferentes valores de pagamento. É o que expressa o art.
8º da citada Emenda.
Até a elaboração do presente estudo a lei federal não havia sido pu-
blicada, não havendo parâmetros para análise do cálculo de pagamento do
abono de permanência, nem mesmo nos Estados que já fizeram sua reforma
da previdência2.
A intenção dessa norma seria atrelar o pagamento do abono de permanên-
cia a políticas de gestão de pessoal, estabelecendo critérios que se vinculassem,
por exemplo, à avaliação de desempenho do servidor público, com faixas
de pagamento do abono, com base no cumprimento de deveres funcionais,
estabelecidos na Lei Federal nº 8112/1990 ou conforme definir a futura lei.
Citemos um exemplo: poderiam ser criados critérios de pontualidade e assi-
duidade, que seriam verificados caso a caso. Se o servidor público federal os
cumprir na totalidade seu abono de permanência poderá ser equivalente a
totalidade da contribuição previdenciária descontada. Caso contrário, poderá
sofrer redução.
A discussão envolve a natureza jurídica do abono de permanência, se
remuneratória ou indenizatória3. O STF não reconheceu a Repercussão
Geral no Tema 677, Recurso Extraordinário nº 688001, no qual poderia ter
adentrado nessa definição, e que teria efeitos nessa nova sistemática trazida
pela EC 103/2019. O STJ entende que o abono tem natureza remuneratória,

2 O Estado da Bahia encaminhou à Assembléia Legislativa os Projetos de Lei nº 23729/2020


e 23780/2020 na tentativa de regulamentar o pagamento do abono de permanência aos ser-
vidores daquele Estado. No primeiro o abono foi fixado em 60% do valor da contribuição
previdenciária, mas foi retirado da Assembléia. No segundo garantiu o direito ao abono para
quem já o recebia e garantiu o pagamento aos servidores que completassem requisitos para
concessão de aposentadoria até a data da publicação da lei, o que não ocorreu até a conclu-
são do presente estudo.
3 A respeito desse tema sugiro ver Briguet, Magadar Rosália Costa, Victorino, Maria Cristina
Lopes e Hovath Junior, Miguel. Aspectos Práticos e doutrinários dos regimes jurídicos pró-
prios. São Paulo, Editora Atlas, 2007, p. 125

223
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

incidindo sobre ele o imposto de renda, conforme já decidiu no Tema Re-


petitivo 424, no Recurso Especial 1.192.556/PE. Considerando a natureza
remuneratória, o ente federativo teria competência para legislar a respeito,
estabelecendo valores diferentes de pagamento, atrelados ao cumprimento de
normas de gestão de pessoal, pois estaríamos diante de verba estatutária, cujo
regulamento para pagamento deve estar estabelecido em lei, na qual serão
definidas as exigências para seu recebimento integral.
Resta aguardar a publicação de eventual legislação e verificar as decisões
judiciais decorrentes de sua aplicabilidade.

LEI GERAL DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS RPPS


Art. 9º Até que entre em vigor lei complementar que discipline o §
22 do art. 40 da Constituição Federal, aplicam-se aos regimes próprios de
previdência social o disposto na Lei nº 9.717, de 27 de novembro de 1998,
e o disposto neste artigo.
§ 1º O equilíbrio financeiro e atuarial do regime próprio de previdência
social deverá ser comprovado por meio de garantia de equivalência, a valor
presente, entre o fluxo das receitas estimadas e das despesas projetadas,
apuradas atuarialmente, que, juntamente com os bens, direitos e ativos
vinculados, comparados às obrigações assumidas, evidenciem a solvência
e a liquidez do plano de benefícios.
§ 2º O rol de benefícios dos regimes próprios de previdência social
fica limitado às aposentadorias e à pensão por morte.
§ 3º Os afastamentos por incapacidade temporária para o trabalho
e o salário-maternidade serão pagos diretamente pelo ente federativo e
não correrão à conta do regime próprio de previdência social ao qual o
servidor se vincula.
§ 4º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão
estabelecer alíquota inferior à da contribuição dos servidores da União,
exceto se demonstrado que o respectivo regime próprio de previdência
social não possui deficit atuarial a ser equacionado, hipótese em que a
alíquota não poderá ser inferior às alíquotas aplicáveis ao Regime Geral
de Previdência Social.
§ 5º Para fins do disposto no § 4º, não será considerada como ausência
de deficit a implementação de segregação da massa de segurados ou a
previsão em lei de plano de equacionamento de deficit.
§ 6º A instituição do regime de previdência complementar na forma dos
§§ 14 a 16 do art. 40 da Constituição Federal e a adequação do órgão ou

224
Abono de permanência

entidade gestora do regime próprio de previdência social ao § 20 do art.


40 da Constituição Federal deverão ocorrer no prazo máximo de 2 (dois)
anos da data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional.
§ 7º Os recursos de regime próprio de previdência social poderão ser
aplicados na concessão de empréstimos a seus segurados, na modalidade
de consignados, observada regulamentação específica estabelecida pelo
Conselho Monetário Nacional.

A EC 103/2019 trouxe grande complexidade de normas além da exclusão


dos Estados, Municípios e Distrito Federal das novas regras de aposentadoria e
pensão, o que provocou muitas dúvidas em relação a sua aplicação, e fez com
que o Ministério da Economia, por meio da Secretaria Especial de Previdên-
cia e Trabalho, expedisse a Nota Técnica SEI nº 12212/2019/ME, orientando
os entes federativos e os RPPS sobre quais normas seriam de eficácia plena
(aplicabilidade imediata), contida ou limitada (SILVA, 2004, p. 82).
Essa orientação é de extrema importância para que os RPPS verifiquem
quais artigos da EC 103/2019 devem ser cumpridos imediatamente e quais
dependerão de futura regulamentação, pois os RPPS são fiscalizados pelo
Ministério da Economia e, se cumprirem todas as determinações exis-
tentes, o respectivo ente federativo recebe o Certificado de Regularidade
Previdenciária-CRP, exigido para o recebimento de transferências voluntárias
de recursos pela União e na celebração de acordos, contratos, convênios ou
ajustes, bem como para receber empréstimos, financiamentos, avais e sub-
venções em geral de órgãos ou entidades da Administração direta e indireta
da União, entre outros.
A clássica doutrina atribuída a José Afonso da Silva classifica as normas
constitucionais de eficácia plena, contida e limitada. As de eficácia plena são
aquelas de aplicabilidade imediata, desde sua entrada em vigor, produzindo
efeitos imediatos, sem depender de lei regulamentadora futura. Aquelas que
desde a entrada em vigor da Constituição já estão aptas a produzir efeitos.
Não há restrição quanto a sua eficácia, pois não há outra norma que dispo-
nha em contrário (eficácia contida) e que deva ser observada, uma vez que a
norma constitucional possui força normativa frente a qualquer outra norma
infraconstitucional e, também não exige a publicação de lei futura (eficácia
limitada). As de eficácia contida possuem aplicabilidade imediata, mas não de
forma integral, pois o legislador regulou a questão mas pode haver restrição
futura no exercício do direito (é o caso do abono de permanência, mencio-
225
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

nado no item anterior: o direito ao abono foi mantido, mas lei futura poderá
estabelecer restrições ao seu pagamento integral).
Essa constatação é importante para analisarmos os comandos expressos
no art. 9º da EC 103/2019, pois alguns possuem eficácia plena, enquanto
outros exigem legislação local regulamentando a matéria de que trata.
A primeira norma de eficácia plena expressa no art. 9º da EC 103/2019
está no caput, ao mencionar que se aplicam aos RPPS as orientações desse
artigo e, até que a lei complementar mencionada no §22 do art. 40 da CF
seja publicada, as contidas na Lei Federal nº 9.717, de 27 de novembro
de 1998.
Enquanto a lei mencionada no §22 do art. 40 não for publicada4, a
Lei 9.717/1998, em que pese ser lei ordinária, passa a ter status de lei com-
plementar, a qual já dispõe sobre a observância de determinados comandos
sobre organização e funcionamento dos RPPS. Um dos maiores efeitos ime-
diatos desse novo status é a proibição de sua alteração por meio de Medidas
Provisórias, conforme estabelece o art. 62, §1º, III da CF, fato muito comum
no passado (CAMPOS, 2020, p. 173).
Esse novo status da Lei 9717/1998 também vem cumprir a vedação
prevista no inciso, XII do art. 167 da CF, na redação dada pelo art. 1º da EC
103/2019, que proíbe que os recursos dos RPPS sejam utilizados para outra
finalidade que não seja o pagamento dos benefícios previdenciários ou das
despesas necessárias ao seu funcionamento e organização.
Também possuem a natureza de norma constitucional de eficácia plena
os parágrafos 2º e 3º do art. 9º, que determinam que os RPPS somente serão
responsáveis pelo pagamento de aposentadorias e pensões por morte, não
podendo fazer o pagamento de nenhum outro tipo de auxílio ou benefí-
cio, mesmo que as legislações dos entes federativos estabeleçam de forma
contrária. Caso as leis dos entes federativos façam previsão em contrário
deixaram de ser recepcionadas pela alteração desde a data da publicação
da EC 103/2019.

4 A Secretaria de Previdência do Ministério da Economia constituiu grupo de trabalho para


avaliação de minuta de projeto de lei complementar da lei de responsabilidade previdenciá-
ria, do qual tivemos a oportunidade de participar, conforme Portaria SPREVME nº 39, de
26 de dezembro de 2019, DOU nº Nº 251, segunda-feira, 30 de dezembro de 2019. Infeliz-
mente, as situações provocadas pela pandemia tem afetado o trabalho de todos, nas mais
diversas áreas.

226
Abono de permanência

O art. 1º, III da Lei nº 9.717/1998 estabelece que os recursos previden-


ciários podem ser utilizados somente para o pagamento de benefícios previ-
denciários, sem especificar quais são estes ou limitá-los às aposentadorias e
pensões, como agora faz o art. 9º da EC 103/2019.
A Portaria MPS nº 402, de 10 de outubro de 2008, em seu art. 2º define
que o RPPS deve assegurar, mediante lei, o pagamento de, pelo menos, apo-
sentadoria e pensão por morte, mas cabendo nesse rol outro tipo de benefícios,
erigidos à ordem de benefício previdenciário, se assim a lei local previsse.
A partir da EC 103/2019 essa situação se altera, pois o art. 9º estabelece
expressamente que os RPPS não poderão mais ser responsáveis pelo pagamento
de auxílio pago por afastamento por incapacidade temporária para o traba-
lho e salário maternidade, ficando a cargo do Tesouro dos entes federativos,
passando a ser considerados benefícios estatutários.
Outra norma de aplicabilidade imediata é a prevista no §4º do art. 9º, a
qual estabeleceu que os servidores públicos dos Estados, Distrito Federal e dos
Municípios não poderão ter alíquota de contribuição previdenciária inferior
à da contribuição dos servidores da União, que foi fixada em 14% no art. 11
da EC 103/2019. Porém, a alíquota pode ser fixada em outro percentual se
o RPPS for superavitário, mas não poderá ser inferior às alíquotas aplicáveis
no Regime Geral de Previdência Social.
Diante dessas normas, de eficácia plena e, considerando-se que a EC
103/2019 foi publicada em novembro, quando as leis orçamentárias do
exercício de 2020 dos entes federativos, em sua grande maioria, já haviam
sido publicadas com base na legislação então vigente, instalou-se nos RPPS
a dúvida sobre o que fazer e como agir.
A dúvida aumentou mais quando o Ministério da Economia publicou a
Portaria SEPRT/ME nº 1348, de 03 de dezembro de 2019, exigindo a com-
provação, até 31 de agosto de 2020, da vigência de norma dispondo sobre a
transferência do RPPS para o ente federativo da responsabilidade pelo paga-
mento de qualquer benefício antes considerado previdenciário, que não fosse
a aposentadoria e pensão e, norma que também evidenciasse a adequação das
alíquotas de contribuição ordinária devida ao RPPS, para cumprimento do
disposto nos parágrafos 2º, 3º e 4º do art. 9º da EC 103/2019.
Essa situação criou inúmeras distinções de comportamento nos RPPS do
país. Alguns passaram imediatamente o pagamento dos benefícios estatutários
para o Tesouro, sem qualquer necessidade de alteração legislativa. Outros,
227
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

fizeram suas leis prevendo essa passagem, tomando o cuidado na realização


da alteração das suas leis orçamentárias, atribuindo a devolução ao RPPS dos
valores que foram pagos no interregno entre a publicação da EC 103/2019
até a aprovação da legislação local. Alguns, ainda aguardam aprovação de
legislação pelo Poder Legislativo local.
A Portaria SPRET/ME nº 1348/2019, no entanto, não alterou o termo
inicial de vigência do art. 9º da EC 103/2019, nem teria tal competência
formal. Apenas estabeleceu que Estados, Distrito Federal e Municípios serão
fiscalizados pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho a partir de 01
de agosto de 2020 no tocante à expedição do Certificado de Regularidade
Previdenciária, de que trata a Portaria MPS nº 204, de 10 de julho de 2008,
referente ao cumprimento do contido nos parágrafos 3º e 4º do art. 9º da EC
103/2019.
É certo que o Ministério da Economia nem precisava fazer esse escla-
recimento em relação a esses parágrafos do art. 9º da EC 103/2019, pois da
sua leitura literal constata-se que a norma é autoaplicável e de eficácia plena.
Além disso, devemos lembrar que a Secretaria Especial de Previdência e Tra-
balho não é o único órgão fiscalizador dos RPPS, que também se submetem
ao controle externo exercido pelos Tribunais de Contas.
Outra norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata contida no art. 9º
está no § 1º, que se refere ao modo de comprovação do equilíbrio financeiro
e atuarial do RPPS, “cuja norma encerra em si o conceito desse equilíbrio”5.
O equilíbrio financeiro e atuarial, antes colocados no caput do art. 40 da
CF como princípios aplicáveis aos RPPS, agora possui conceito constitucional,
que estabelecem como deverão ser comprovados, fazendo referência a nor-
matização adotada pela ciência atuarial, tendo como finalidade demonstrar
se o plano de benefícios dos servidores públicos tem solvência e liquidez.
Questão que sempre foi motivo de judicialização entre Estados, Muni-
cípios e Distrito Federal envolve a exigência da comprovação do equilíbrio
financeiro e atuarial dos RPPS6. Os entes federativos sempre foram instigados

5 Nota Técnica SEI nº 12212/2019/ME, item 84.


6 Desde a Ação Cível Originária nº 860, movida pelo Estado do Paraná contra a União, os
entes federativos sempre recorreram ao Poder Judiciário para buscar a expedição do Certi-
ficado de Regularidade Previdenciária, mesmo sem comprovar todos os requisitos exigidos
para sua expedição, principalmente aqueles referentes ao equilíbrio financeiro e atuarial
dos RPPS.

228
Abono de permanência

pelo Ministério da Economia a cumprir esses princípios, sob pena de não


receberem o Certificado de Regularidade Previdenciária. Mas a normatização
específica para tal fiscalização estava definida em portarias, o que acarretava
a concessão de liminares pelo Poder Judiciário, sob a justificativa de invasão
administrativa da União na competência dos entes subnacionais.
Com o conceito expresso no §1º do art. 9º o legislador buscou atribuir
nessa norma o efeito blacklash, na tentativa de obstruir a concessão de novas
liminares7.
O prazo de dois anos, contados da data de entrada em vigor da EC
103/2019, fixado no §6º do art. 9º, para que os entes federativos instituam
o Regime de Previdência Complementar-RPC para seus servidores públicos,
também é norma de eficácia plena.
Trata-se de um regime de previdência completamente diferente do RPPS
e do RGPS, com regulamentação própria e fiscalização por órgãos com os
quais os dirigentes dos RPPS não estão afetos.
Mais ainda, esse assunto está na ordem do dia de todos os entes federa-
tivos, com a obrigatoriedade da instituição do regime de previdência com-
plementar trazida EC 103/2019 para todos os entes federativos que ainda
não o fizeram, mesmo que não possuam, em seus quadros, servidores com
remuneração superior ao limite máximo estabelecido para o RGPS. O prazo
de dois anos é impositivo, portanto, os gestores correm contra o tempo nessa
implantação.
O Conselho Nacional de Previdência Complementar divulgou o Guia8
de Orientação para criação do regime de previdência complementar pelos
Estados e Municípios9, no qual vem sugerido modelo de legislação.

7 A respeito desse tema interessante verificar as decisões proferidas na ACO 3350 no STF,
proferidas após a EC 103/2019. E nas ACO ajuizadas com base na legislação anterior: ACO
3154, ACO 3279, ACO 3134.
8 Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/2019/12/guia-orienta-criacao-de-regime-de-
-previdencia-complementar-em-estados-e-municipios/ Acesso em 06 maio 2020.
9 O guia tem como intuito orientar os Entes no planejamento de implementação do Regime
de Previdência Complementar. Na primeira seção é apresentado um panorama geral sobre
o funcionamento do Regime de Previdência Complementar, apresentando seus principais
conceitos, marcos legais, tipos de entidade, regras de investimento e responsáveis pela sua
fiscalização, dentre outros assuntos. A segunda seção discorre sobre as alternativas de ins-
tituição do RPC e os procedimentos recomendáveis para os Entes que iniciarão o processo
de instituição do Regime. Na terceira, destacam-se temas de relevância e recomendações a

229
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

O Guia foi idealizado por um Grupo de Trabalho formado por integrantes


de diversas entidades, com a finalidade de auxiliar os entes federativos a cum-
prirem o prazo de dois anos fixado na EC 103/2019. Trata-se de documento
de pesquisa e auxílio na tarefa, que certamente foi idealizado com base na
jurisprudência e na legislação específica sobre o RPC.
Até a EC 103/2019 a instituição do RPC era facultativa, como já se
manifestou o STF na ADI 3297: “O Regime de Previdência Complemen-
tar (RPC) é facultativo, tanto na instituição, pelo ente federativo, quanto
na adesão, por parte do servidor. A norma constitucional impõe que os
benefícios a serem pagos pelo RPC sejam estruturados exclusivamente na
modalidade de contribuição definida (art. 40, § 15, da CF), permitindo ao
participante indicar o valor de sua contribuição mensal e projetar o valor da
renda a ser recebida no momento de sua aposentadoria.” Entretanto, com
a redação contida no art. 9º, §6º da EC 103/2019 sua instituição passou a
ser obrigatória.
O §7º do art. 9º permite que os recursos dos RPPS sejam objeto de em-
préstimo consignado aos segurados, mas essa norma é de eficácia limitada,
pois exige futura regulamentação pelo Conselho Monetário Nacional.
O §8º do art. 9º também depende de regulamentação futura, que irá
definir a instituição de contribuição extraordinária10, pelo prazo máximo
de vinte anos, caso eventual contribuição previdenciária cobrada sobre valor
que supere o salário mínimo dos proventos de aposentados e pensionistas em
conjunto com outras medidas adotadas pelo RPPS não tenham sido suficientes
para o equilíbrio atuarial do regime, como define os parágrafos 1º-A e 1º-B
do art. 149 da CF, na nova redação dada pela EC 103/2019.
E o §9º do art. 9º traz outra norma de eficácia plena, atribuindo que
qualquer parcelamento ou moratória de débitos dos entes federativos para
com seus RPPS não pode ultrapassar o prazo de sessenta meses. Essa norma
já foi adotada pelo Ministério da Economia conforme parágrafo único do art.
4º da Portaria SPRET/ME nº 14.816, de 19 de junho de 2020.

serem observados para a implantação do regime. Por fim, o anexo apresenta uma Minuta de
Projeto de Lei para auxiliar os Entes no envio da proposta para as suas Assembleias Legis-
lativas, bem como uma lista de entidades que podem ser contatadas para o oferecimento de
planos de benefícios para os seus servidores.
10 A constitucionalidade dessa norma está sendo discutida junto ao STF nas ADI 6254, 6255,
6256, 6258.

230
Abono de permanência

REGRA TRANSITÓRIA DE APOSENTADORIA DO SERVIDOR PÚBLI-


CO FEDERAL
Art. 10. Até que entre em vigor lei federal que discipline os benefícios
do regime próprio de previdência social dos servidores da União, aplica-se
o disposto neste artigo.
§ 1º Os servidores públicos federais serão aposentados:
I − voluntariamente, observados, cumulativamente, os seguintes re-
quisitos:
a) 62 (sessenta e dois) anos de idade, se mulher, e 65 (sessenta e cinco)
anos de idade, se homem; e
b) 25 (vinte e cinco) anos de contribuição, desde que cumprido o
tempo mínimo de 10 (dez) anos de efetivo exercício no serviço público e
de 5 (cinco) anos no cargo efetivo em que for concedida a aposentadoria;
II − por incapacidade permanente para o trabalho, no cargo em que
estiverem investidos, quando insuscetíveis de readaptação, hipótese em
que será obrigatória a realização de avaliações periódicas para verificação
da continuidade das condições que ensejaram a concessão da aposenta-
doria; ou
III − compulsoriamente, na forma do disposto no inciso II do § 1º do
art. 40 da Constituição Federal.

O art. 10 da EC 103/2019 estabeleceu regra transitória de aposentadoria


para os servidores federais porque o art. 40, §1º, III da CF exige na redação
dada pela EC 103/2019, que os requisitos para concessão de aposentadoria
estejam previstos em leis complementares. Até que essa lei seja publicada a EC
103/2019 criou a regra transitória. É a denominada desconstitucionalização
das normas de concessão de aposentadoria e pensão.
Trata-se de artigo dirigido apenas aos servidores federais, pois Estados,
Municípios e Distrito Federal deverão fazer suas reformas de previdência,
podendo adotar os mesmos requisitos ou fixar outros, a depender do cálculo
atuarial que será realizado. Será aplicado aos servidores federais que forem
nomeados via concurso público após a EC 103/2019 ou para aqueles que
não se enquadrarem nas regras de transição, expressas nos artigos 4º e 20 da
Emenda.
A aposentadoria voluntária passa a ter fundamento na idade do servi-
dor federal, que passou de 55 e 60 para 62 e 65, para mulheres e homens,
respectivamente. E também o servidor terá que cumprir 25 anos de tempo

231
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

de contribuição, desde que, neste total estejam incluídos 10 anos de efetivo


exercício de serviço público e 5 anos no cargo efetivo em que a aposentadoria
será concedida. São requisitos que devem ser cumpridos cumulativamente.
O cálculo da aposentadoria será feito com base na lei. Enquanto esta não
é publicada aplica-se o contido no art. 26 da EC 103/2019.
A aposentadoria será concedida sem as benesses da paridade e não será
calculada com base na última remuneração, mas na média prevista no art.
26 citado.
A aposentadoria por invalidez passa a ser denominada de aposentadoria
por incapacidade permanente para o trabalho, no cargo em que o servidor
estiver investido, quando insuscetíveis de readaptação. Acaba a concessão da
aposentadoria com base em doenças graves, contagiosas ou incuráveis. As ava-
liações periódicas são obrigatórias para verificar se existem ou não condições
de trabalho ou se a aposentadoria é recomendada. O cálculo também será com
base na média prevista no art. 26, mas com a diferença de que se a incapaci-
dade permanente for decorrente de acidente do trabalho, doença profissional
e doença do trabalho, o percentual da referida média corresponderá a 100%.
A aposentadoria compulsória não se alterou, pois será concedida com
base no art. 40, §1º, II da CF, que não sofreu nova redação com a EC 103/2019.
Mantem-se, portanto, a idade de 75 anos fixada na Lei Complementar nº
152/2015.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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guiaentesfederativos20.04.pdf Acesso em 04 abril 2020
BRASIL. Lei Complementar 152/2015. Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCI-
VIL_03/LEIS/LCP/Lcp152.htm Acesso em 25 maio 2020.

232
Abono de permanência

BRASIL. Ministério da Economia. Nota Técnica SEI SEI Nº 12212/2019. Disponível em


http://sa.previdencia.gov.br/site/2019/11/SEI_ME-5155534-Nota-Tecnica-12212.
pdf Acesso em 20 maio 2020.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 103/2019. Disponível em http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc103.htm Acesso em 20 maio 2020.
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Acesso em 20 maio 2020.
BRASIL. Ministério da Economia. Portaria SPRET/ME 1348/2019. Disponível em http://
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Acesso em 26 jun 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1ª Seção. Tema Repetitivo 424. Recurso Especial
1.192.556/PE, Sujeitam-se incidência do Imposto de Renda os rendimentos recebidos
a título de abono de permanência a que se referem o § 19 do art. 40 da Constituição
Federal, o § 5º do art. 2º e o § 1º do art. 3º da Emenda Constitucional 41/2003, e o
art. 7º da Lei 10.887/2004. Não há lei que autorize considerar o abono de perma-
nência como rendimento isento. Relator Ministro Mauro Campbell Marques. j 25
agosto 2020. DJe 06 set 2010.
BRIGUEET, Magadar Rosália Costa, VICTORINO, Maria Cristina Lopes e HORVATH
Junior, Miguel. Aspectos Práticos e doutrinários dos regimes jurídicos próprios. São
Paulo, Editora Atlas, 2007.
CAMPOS, Marcelo Barroso Lima Brito de. Manual dos servidores públicos: administrativo
e previdenciário. 1ª edição. São Paulo: Lujur Editora, 2020.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6ª edição. São Paulo:
Malheiros Editores, 2004, p. 82.

233
REFORMA DA PREVIDÊNCIA: É HORA
DE IGUALAR O TRATAMENTO DE GÊNERO?

Marcelo Leonardo Tavares1

Sumário: 1. Introdução – 2. A proposta de igualdade de idade mí-


nima para aposentadoria de homens e mulheres – 3. Extinção da
aposentadoria por tempo de contribuição – não era sem tempo!
– 4. Conclusão – Referências.

1. INTRODUÇÃO
A seguridade social visa a proteger os indivíduos em situações relaciona-
das à existência digna das pessoas e suas necessidades vinculadas ao trabalho
e à integração econômica.2
Através da atuação estatal, a sociedade procura garantir o mínimo social
como condição para manutenção de acesso democrático aos meios de de-
senvolvimento individual e coletivo. Isso porque, sem essa rede de proteção,
uma parcela da população não terá condição de vida digna, ficando relegada
à perpetuação na pobreza.3

1 Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,


credenciado para atuar no Programa de Pós-Graduação Strictu Senso (Doutorado/Mestra-
do). Pós-doutor em Direito Público pela Université Lyon III/FR (Jean Moulin). Doutor em
Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com pesquisa realiza-
da na Université Panthéon-Assas/FR (Paris II). Juiz Federal.
2 MOREAU, Pierre. O Financiamento da Seguridade Social na União Europeia e no Brasil.
São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 32.
3 TAVARES, Marcelo Leonardo. Previdência e Assistência Social: Legitimação e Fundamen-
tação Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 75.

235
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Assim, todo sistema de seguridade social deve ter como base os princí-
pios da liberdade, da igualdade de chances e da solidariedade em sua dupla
dimensão, comutativa e distributiva.4
Pela disposição constitucional, a seguridade social brasileira é dividida
em três componentes: previdência social, assistência social e saúde. No que se
refere à Previdência, cabe destacar que, durante a idade avançada, há perda da
capacidade laborativa e aumentam os gastos com a saúde. Assim, o benefício
da aposentadoria programada é concedido com o intuito de garantir renda
para a subsistência do trabalhador no período em que, em virtude da idade,
não esteja mais apto a participar do mercado.
Atualmente, a questão da isonomia de gênero para efeito de proteção
previdenciária tem gerado diversos debates, inclusive sobre a necessidade
de alteração normativa da Constituição para igualar o requisito etário na
aposentadoria.
O objetivo do presente trabalho é analisar as questões da igualdade de
gênero como pressuposto da fixação da idade mínima para aposentadoria no
Regime Geral de Previdência Social e do impacto da extinção da aposentadoria
por tempo de contribuição.

2. A PROPOSTA DE IGUALDADE DE IDADE MÍNIMA PARA


APOSENTADORIA DE HOMENS E MULHERES
Uma medida apresentada como necessária para equilibrar o orçamento
previdenciário brasileiro é a determinação da igualdade de gênero para acesso
à aposentadoria por idade.
Pela redação original da Proposta de Emenda Constitucional n° 006/2019
(PEC 006),5 que acabou sendo aprovada na EC n° 103/2019 (EC 103),6 a

4 Sobre as duas dimensões da solidariedade como valor inspirador da previdência, ver TAVA-
RES, Marcelo Leonardo; SOUZA, Ricardo José Leite. O Princípio da Solidariedade Aplicado
à Previdência Social. Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/ar-
ticle/view/1495. Acesso em 10.06.2020.
5 BRASIL. Congresso Nacional. Proposta de Emenda Constitucional n° 006/2019. Dis-
ponível em:< https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposi-
cao=2192459>. Acesso em: 10.06.2020.
6 BRASIL. Congresso Nacional. EC 103/2019. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm>. Acesso em 10.06.2020.

236
Reforma da previdência: é hora de igualar o tratamento de gênero?

idade mínima para aposentadoria para homens e mulheres passaria a ser de


65 anos, com tempo de carência de 25 anos de contribuição.
Segundo o Governo, a justificativa para a proposta de igualdade de gê-
nero em âmbito previdenciário teria por base o fato de que a expectativa de
vida ao nascer das mulheres, atualmente, é cerca de sete anos superior à dos
homens. Além de as mulheres poderiam se aposentar cinco anos antes, elas
ainda usufruiriam dos benefícios previdenciários por um período mais longo,
o que oneraria injustamente o grupo de segurados e a sociedade, ao final, caso
necessária a complementação de receitas previdenciárias.
Para a Presidência da República, o tratamento diferenciado entre homens
e mulheres no âmbito da previdência sempre teria sido baseado na concen-
tração da responsabilidade pelos afazeres domésticos nas mulheres (“dupla
jornada”) e na maior responsabilidade com os cuidados da família, de modo
particular, em relação aos filhos e idosos. Contudo, ao longo dos anos, a
mulher teria conquistado espaço importante na sociedade e sua inserção no
mercado de trabalho, ainda que permaneça desigual, é expressiva e com forte
tendência de estar no mesmo patamar do homem em um futuro próximo. A
diferença de cinco anos de idade, critério adotado hoje pelo Brasil, colocaria
o país entre aqueles que possuem maior diferença de idade de aposentadoria
por gênero. Dessa forma, o Governo afirma que se tornou necessário reali-
nhar a política previdenciária, de forma a equiparar as regras de acesso para
homens e mulheres.
Em relação à “dupla jornada” de trabalho das mulheres, os dados apre-
sentados para justificar a PEC 006 indicariam que, conforme apontado pelo
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2014, o número mé-
dio de horas semanais dedicadas a afazeres domésticos pelas mulheres teria
diminuído de 23,0 para 20,5 horas entre 2004 e 2014. Além disso, o número
médio de horas semanais dedicadas a essas tarefas pelos homens teria se
mantido em 10 horas.
Outra justificativa apresentada para fundamentar a igualdade de gênero
na PEC 006 foi a de que, ainda de acordo com a PNAD 2014, o rendimento da
mulher, que chegara a representar apenas 66% do rendimento dos homens em
1995, teria aumentado ao longo dos anos, alcançando 81% desse rendimento
em 2014. Assim, para o Executivo a tendência é que essa diferença remanes-
cente se reduza ainda mais, e com isso, a diferença salarial entre homens e
mulheres não deveria mais ser argumento para sustentar a desigualdade das
idades de aposentadoria. Por fim, a proposta também sustenta que o padrão

237
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

internacional atual é o de igualar ou aproximar bastante o tratamento de


gênero nos sistemas previdenciários.
Os argumentos utilizados pelo Executivo merecem crítica.
Ainda que a expectativa de vida da mulher, ao nascer, seja de fato cerca de
sete anos superior à do homem, esse não é o indicador adequado para análises
previdenciárias, que devem levar em consideração a diferença da expectativa
de vida no momento da aposentadoria, isto é, aos sessenta e cinco anos. Como
a expectativa de vida ao nascer representa o tempo médio a ser vivido a partir
do nascimento, ela inclui a probabilidade de mortalidade infantil e durante a
juventude, que não impactam o recebimento de aposentadoria.
De acordo com a tábua de mortalidade do IBGE referente ao ano de
2015,7 a diferença da expectativa de vida entre homens e mulheres aos 65
anos é de 3,1 anos, portanto, bem menor do que a utilizada pelo Governo na
exposição de motivos da PEC 006.
No que se refere à dupla jornada, os dados do PNAD 2014 demonstram
que o tempo médio de trabalho dedicado pelo homem ao lar corresponde
ainda à metade do tempo de trabalho feminino e comprova que a sobrecarga,
em que pese estar diminuindo, ainda é uma realidade para a maioria das mu-
lheres brasileiras, e não pode simplesmente ser desconsiderada. Além disso,
os argumentos referentes aos novos rearranjos familiares, com poucos filhos
ou sem filhos, não levam em conta que há aumento do tempo de permanência
dos filhos na casa dos pais e a imposição de novas tarefas referentes aos cuida-
dos com os idosos, que em geral acabam sendo assumidas pelas mulheres.8
Quanto à redução das diferenças salariais, a análise retrospectiva desses
dados demonstra que o processo tem sido lento, na razão inferior a um ponto
percentual por ano. Dessa forma, o prognóstico indica que ainda seriam ne-
cessárias cerca de duas décadas para que a igualdade salarial entre homens e
mulheres pudesse ser efetivamente alcançada, mantidas as atuais condições.9

7 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tábua de Mortalidade. Disponível


em: <ftp.ibge.gov.br/Tabuas_Completas_de_Mortalidade/Tabuas_Completas_de_ Mortali-
dade_2015/tabua_de_mortalidade_analise.pdf>. Consulta realizada em 10.06.2020.
8 BRASIL. Instituto Nacional de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios – Síntese de Indicadores 2014. Disponível em: < http://biblioteca.ibge.gov.br/
visualizacao/livros/liv94935.pdf>. Acesso em 10.06.2020.
9 BRASIL. Instituto Nacional de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios – Síntese de Indicadores 2014. Disponível em: < http://biblioteca.ibge.gov.br/
visualizacao/livros/liv94935.pdf>. Acesso em 10.06.2020.

238
Reforma da previdência: é hora de igualar o tratamento de gênero?

Por fim, o exemplo dos países que apresentam igualdade de regras para
a aposentadoria de homens e mulheres, em sua maioria, é o de sociedades já
desenvolvidas, e que possuem políticas públicas voltadas para a igualdade de
gênero há bastante tempo.
De acordo com dados do Relatório das Diferenças de Gênero de 2016,10
elaborado pelo Fórum Econômico Mundial e que abrangeu 144 países, pode-
-se perceber que países como Finlândia, Noruega, Suécia, Nova Zelândia,
Alemanha e França, nos quais a idade de aposentadoria é a mesma para ho-
mens e mulheres, figuram no topo da lista dos países de maior igualdade de
gênero. O Brasil, entretanto, aparece apenas na 79ª posição desse ranking e
na 91ª colocação em relação à participação econômica e oportunidades, que
dimensiona, entre outros aspectos, a participação das mulheres no mercado
de trabalho e a desigualdade salarial entre homens e mulheres.
Dessa forma, pode-se concluir que as mulheres ainda recebem salários
inferiores aos dos homens para exercerem as mesmas funções e que a jornada
de trabalho delas (incluindo o trabalho não remunerado) é superior à deles,
em processo lento de redução da diferença, de forma que o Brasil ainda está
longe de alcançar a igualdade fática de gênero vivenciada, por exemplo, pelos
países nórdicos.
A EC 103/2019 acabou fixando, para a aposentadoria programada por
idade comum, a idade de 65 anos para o homem e de 62 anos para a mulher.
Contudo, igualou o requisito etário para os dois gêneros em relação à apo-
sentadoria especial no RGPS e à aposentadoria do policial no Regime Próprio
de Previdência Social (RPPS).
Resta ainda avaliar, de qualquer forma, se haveria uma outra forma de
enfrentar a questão de gênero no âmbito da previdência social.
Conforme apresentado anteriormente, o Regime Geral da Previdência
Social, em relação à aposentadoria, segue, ainda que parcialmente, as regras
do sistema laborista, baseada no modelo bismarkiano,11 no qual o pagamento

10 Esse relatório busca quantificar a magnitude das disparidades entre os gêneros e acompanha
o seu progresso ao longo do tempo, com um enfoque específico nas lacunas existentes entre
mulheres e homens em quatro áreas-chave: saúde, educação, economia e política. FORUM
ECONÕMICO MUNDIAL. Relatório das Diferenças de Gênero. Disponível em: <www3.
weforum.org/docs/GGGR16/WEF_Global_Gender_Gap_Report_2016.pdf>. Acesso em:
10.06.2020.
11 NEVES, Ilídio das. Direito da Segurança Social. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.

239
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

dos benefícios é financiado pelos segurados, pelos empregadores e pelo Estado,


e deve seguir uma lógica atuarial, de modo que o recebimento de aposenta-
doria seja, de alguma forma, proporcional à contribuição dos segurados. A
solidariedade nesse modelo é preponderantemente comutativa, com traços
residuais, mas não menos importantes, do aspecto distributivo.
Sob essa ótica, a idade inferior e o tempo reduzido de contribuição para
a aposentadoria da mulher não se coadunariam com os princípios e as regras
que devem ser observados para o equilíbrio financeiro do sistema previden-
ciário, dado que essas reduções não guardariam relação com o período em
que as mulheres podem usufruir dos benefícios previdenciários (que costuma
ser superior ao dos homens).
O argumento é importante. Entretanto, parece que o princípio da soli-
dariedade distributiva não permite isolar a previdência básica das complexas
relações sociais por vezes distorcidas e injustas, para que se aplique somente
o fundamento matemático da diferença das contribuições.
A começar que, em que pese as mulheres contribuírem menos tempo para
o sistema, isso não significa que trabalhem menos do que os homens, consi-
derando o período em que se dedicam a afazeres de cuidados com a família,
filhos e pessoas idosas, tempo não contributivo mas não menos importante
sob aspecto de equilíbrio da sociedade. Além disso, o menor número de anos
de contribuição pelas mulheres também se explica porque são mais atingidas
pela taxa de desocupação.12
Por isso se deve refletir se esse aspecto da vida laboral que não aparece
no registro formal do trabalho pode ser simplesmente desprezado pela pre-
vidência.
É verdade que existe a visão exposta, por exemplo, por Carmelo MESA-
-LAGO, quando afirma que as políticas para reduzir as iniquidades de gênero
deveriam ser relacionadas às suas causas, independentemente da natureza do
sistema.13

12 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de Indicadores Sociais –


Uma Análise das Condições de Vida, 2014. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/
visualizacao/livros/liv95011.pdf. Acesso em 10.06.2020, p. 126.
13 MESA-LAGO, Carmelo. As reformas de previdência na América Latina e seus impactos
nos princípios de seguridade social. Brasília: Ministério da Previdência Social, 2006, p.
149. Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/arquivos/office/3_081014-111405-101.
pdf. Acesso em: 10.06.2020.

240
Reforma da previdência: é hora de igualar o tratamento de gênero?

Ocorre que, se esse raciocínio pode ser aplicado sem maiores problemas
em um sistema completamente comutativo, de proteção de grupo, ou de ca-
pitalização individual, merece ressalvas quando se trata de um sistema básico
de previdência, responsável pela garantia da sobrevivência de milhões de
pessoas em um país subdesenvolvido, em que o estado não consegue cuidar
das causas da desigualdade adequadamente.
Não que o referido autor não tenha razão quando afirma que “os trabalhos
domésticos deveriam ser divididos entre o casal, o que exige uma mudança
fundamental na atitude do homem”.14 Contudo, não se pode desconsiderar,
no momento atual, que esse estágio ainda não foi alcançado pela sociedade
brasileira, o que não permite ao sistema previdenciário básico simplesmente
desconsiderar os dados e pretender se estabelecer para uma sociedade utópica,
que não existe no Brasil.
Não há dúvida de que a alteração desse quadro dependa de políticas
públicas que incentivem e viabilizem a divisão do trabalho doméstico e dos
cuidados com a família, de forma que essas tarefas possam ser conciliadas
com a participação no mercado de trabalho. A questão é que não se pode
simplesmente desconsiderar o que se passa hoje no Brasil.15
É imprescindível também a adoção de medidas que busquem a igualdade
salarial entre os gêneros, de forma que homens e mulheres, ao executarem a
mesma tarefa, recebam igual remuneração.
Diante desse contexto, dado que as desigualdades de gênero ainda são
acentuadas no Brasil, em que pese o reconhecimento de que estão reduzindo,
defende-se a diminuição da diferença da idade mínima de aposentadoria para
homens e mulheres para três anos, com a previsão de que, de forma gradual
e de maneira combinada com políticas públicas que incentivem a efetiva
igualdade entre os gêneros, busque-se a igualdade.

14 MESA-LAGO, Carmelo. As reformas de previdência na América Latina e seus impactos


nos princípios de seguridade social. Brasília: Ministério da Previdência Social, 2006, p.
149. Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/arquivos/office/3_081014-111405-101.
pdf. Acesso em: 10.06.2020.
15 Apesar de não ser objeto deste estudo, em princípio, acredita-se que já se poderia cogitar da
igualdade da regra da idade entre homens e mulheres nos Regimes Próprios de Previdência
Social em que as notícias de discriminação de mulheres no ambiente de trabalho não são re-
levantes, as remunerações são iguais, o acesso mediante concurso público reduz as chances
de tratamento diferenciado, além de haver uma tendência, no que se refere à dupla jornada,
de que mulheres com maior grau de instrução e com maior renda sejam mais intolerantes
com homens pouco participativos nas tarefas domésticas.

241
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Paralelamente a isso, e para estimular a política do “trabalhador com


responsabilidades familiares”, alcançada a igualdade futura na previsão da
idade para fim de aposentadoria, poder-se-ia melhorar os parâmetros do
salário-maternidade, de modo a incentivar a maior permanência da família
com o filho no período inicial de vida ou de adaptação.
Assim, uma vez implantada no futuro a igualdade de gênero para o crité-
rio de idade na aposentadoria, propõe-se que o salário-maternidade torne-se
um salário-parental, em que os pais possam de alguma forma decidir com
mais liberdade, de acordo com o projeto familiar e profissional, o período de
afastamento até um determinado limite de tempo conjunto.
No caso de parto, como a Organização Mundial de Saúde e o Ministério
da Saúde no Brasil recomendam o aleitamento materno exclusivo até seis
meses,16 durante seis meses a licença caberia à mulher, com mais seis meses
de licença parental, a ser decidida livremente pelo casal, extinguindo-se a
licença paternidade.
Assim, com o nascimento da criança, observado o período inicial de seis
meses para a mulher, esta poderia ainda ficar afastada por mais três meses e
o homem por três meses, ou por mais um mês e o homem por cinco meses,
por exemplo.
No caso de adoção, a licença seria exclusivamente parental, pelo prazo
total de um ano a ser decidido livremente pelos pais, o que também pode ser
aplicado à união homoafetiva, garantindo-se, no caso de adoção monoparental,
o afastamento integral de um ano para o responsável.
A proposta tem vários pontos positivos.
Uma vez adotada a igualdade na regra de aposentadoria por idade, com
aumento do período contributivo em cinco anos para a mulher e a redução
do período de recebimento de aposentadoria, ela poderia passar a receber
uma proteção social maior justamente na fase da vida em que a diferença de
gênero é mais relevante, no nascimento do filho.
A previsão de parte do período de licença maternidade a ser decidido
livremente pelo casal dá mais liberdade aos novos arranjos familiares e à or-
ganização do planejamento familiar, e ainda será responsável por incentivar

16 BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde da Criança: Nutrição Infantil. Caderno de Atenção


Básica 23. Disponível em:< http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_crianca_nutri-
cao_aleitamento_alimentacao.pdf>. Acesso em 10.06.2020.

242
Reforma da previdência: é hora de igualar o tratamento de gênero?

a redução da discriminação da mulher jovem no mercado de trabalho, pois


para o empregador, pouco importará a realização do cálculo de custo-benefício
para dar o posto de trabalho ao homem, se este poderá acabar fruindo de um
período igual de licença ou, no caso de adoção, até mesmo maior do que o
da mulher.
Sob aspecto financeiro, a alteração será vantajosa para o sistema previden-
ciário. Considerando a atual média de 1,7 filhos por família,17 a previdência
estará trocando o aumento de seis meses de despesa com licença maternidade
(em relação a cada filho) por cinco anos de aumento de arrecadação com a
fixação do novo parâmetro da aposentadoria por idade.

3. EXTINÇÃO DA APOSENTADORIA POR TEMPO DE


CONTRIBUIÇÃO – NÃO ERA SEM TEMPO!
Uma modificação importante feita pela EC 103/2019 foi a extinção da
aposentadoria por tempo de contribuição no regime Geral de Previdência
Social,18 benefício que já há um tempo não existe nos Regimes Próprios de
Previdência Social dos servidores públicos no Brasil.
A aposentadoria por tempo de contribuição é modalidade de proteção
previdenciária em desuso no mundo e somente pode ser encontrada em doze
países,19 uma vez que o trabalho por determinado número de anos não sig-
nifica necessariamente que haja decréscimo da capacidade laborativa.
A justificativa para essa proposta é a de que há necessidade de se estabe-
lecer uma idade mínima obrigatória para aposentadoria voluntária, tendo em
vista a adequação dos requisitos para a aposentadoria por força da mudança
das características demográficas do Brasil e de convergência dos critérios pre-
videnciários brasileiros aos padrões internacionais, sobretudo, em comparação
com países que já experimentaram a transição demográfica em sua plenitude.

17 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de Indicadores Sociais –


Uma Análise das Condições de Vida, 2014. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/
visualizacao/livros/liv95011.pdf. Acesso em 10.06.2020.
18 BRASIL. Congresso Nacional. EC 103/2019. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm>. Acesso em 20.06.2020.
19 UNITED STATES OF AMERICA. Social Security Administration. Social Security Programs
Throughout the World. Disponível em: https://www.ssa.gov/policy/docs/progdesc/ssptw/in-
dex.html. Acesso em 10.06.2020.

243
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

De acordo com o Poder Executivo, no Brasil se enquadra entre os paí-


ses que possuem as mais baixas idades médias de aposentadoria do mundo.
Atualmente, a idade média de aposentadoria para homens no Brasil é de 59,4
anos, enquanto a média nos países membros da Organização para a Coope-
ração e Desenvolvimento Econômico – OCDE é de 64,6 anos. Além disso,
o Brasil é um dos poucos países do mundo que prevê a aposentadoria sem
exigência de idade mínima, o que contribui para a redução da idade média
de aposentadoria no País.
O Governo argumentou que os trabalhadores que conseguem atingir 35
anos de contribuição são justamente os mais qualificados e que ocupam po-
sições com maior remuneração e melhores condições de trabalho, possuindo
mais estabilidade ao longo de sua vida laboral e maior renda.
Por fim, o tempo de contribuição seria um fator relevante não como
critério exclusivo de aquisição do direito à aposentadoria, mas para fim de
cálculo do benefício, estimulando-se o maior tempo de contribuição para
recebimento de um benefício de maior valor, ou seja, além da idade mínima
para concessão do benefício, o tempo de contribuição seria um relevante
critério para apuração do seu valor.
Essa argumentação merece análise.
É procedente o argumento de que a aposentadoria por tempo de contribui-
ção geralmente é concedida para aqueles que percebem maiores remunerações.
No ano de 2015, essa aposentadoria foi o benefício com o maior valor médio
pago pelo Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS (R$ 1.996,20). O
valor médio das aposentadorias por idade foi equivalente a cerca da metade
do da aposentadoria por tempo de contribuição.20
Assim, a afirmação de que, com a extinção da aposentadoria por tempo
de contribuição, a fixação da idade mínima elevada penaliza a população mais
carente não encontra respaldo nos dados da Previdência Social brasileira.
Todavia, a inexistência de mecanismos que estabeleçam correlação entre o
tempo de contribuição e a idade mínima para aposentadoria pode penalizar
trabalhadores que ingressam muito jovens no mercado formal de trabalho e
que percebem um salário mínimo, uma vez que, pelo disposto no § 2º do art.

20 BRASIL. Previdência Social. Base de Dados Estatísticos. Disponível em: < http://www3.
dataprev.gov.br/infologo/> Acesso em: 10.06.2020.

244
Reforma da previdência: é hora de igualar o tratamento de gênero?

201 da Constituição Federal,21 não seria aplicável nesse caso a proporciona-


lidade entre o valor do benefício e o tempo de contribuição.
O ponto mais crítico da reforma da previdência, para a população de
baixa renda, na realidade não é a extinção da modalidade de aposentadoria
por tempo de contribuição, mas sim o aumento da necessidade de tempo
mínimo de contribuição de 15 para 20 anos na aposentadoria por idade (ca-
rência). A própria exposição de motivos da PEC 006/2019 reconheceu que os
trabalhadores menos favorecidos tenderiam a entrar mais cedo no mercado
de trabalho, que seriam submetidos a um nível maior de informalidade, além
de sofrerem mais com a instabilidade de seus empregos. Ao afirmar que os
trabalhadores de menor renda acabam se aposentando por idade, tendo em
vista a necessidade de menos tempo de contribuição, apresenta-se um argu-
mento que demonstra que a comprovação de 20 anos de contribuição pode
ser inviável para boa parcela da população brasileira que possui empregos
informais e enfrenta longos períodos de desemprego.
A dificuldade em se comprovar o tempo mínimo de carência, além de
agravar as desigualdades sociais, especialmente entre os idosos, pode, em vez
de aumentar a arrecadação da previdência, ampliar os gastos com assistência
social.
Em 2015, os gastos com benefícios assistenciais para idosos foram de R$
112 milhões, o que representou cerca de 20% dos gastos com aposentadorias
por idade (R$ 555 milhões).22 A aprovação da exigência de comprovação de
20 anos de contribuição seja aprovada pode incrementar gastos com assis-
tência social, que são custeados exclusivamente com recursos públicos. De
acordo com os dados da Organização Internacional do Trabalho, em países
com altos índices de emprego informal, a aposentadoria é acessível a apenas
uma minoria.23 Essa realidade, no Brasil, pode ser agravada com a ampliação
significativa do tempo de contribuição.

21 BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil. Dis-


ponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso
em: 10.06.2020.
22 BRASIL. Previdência Social. Base de Dados Estatísticos. Disponível em: < http://www3.
dataprev.gov.br/infologo/> Acesso em: 10.06.2020.
23 Organização Internacional do Trabalho. World Social Security Report 2014/2015. Disponí-
vel em: <http://www.ilo.org/global/research/global-reports/world-social-security-report/2014/
lang--en/index.htm>. Disponível em: 10.06.2020.

245
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

A reforma da previdência busca adequar o sistema brasileiro à necessidade


de se ter equilíbrio financeiro no seguro social. Está correta quanto a isso,
desde que sua lógica de implementação não prejudique quem contribui por
mais tempo e nem desestimule o trabalho de quem ainda não tem idade para
se aposentar, mas já tem o tempo de contribuição necessário.
Assim, a ampliação do período mínimo de contribuição para aposenta-
doria, ao mirar no equilíbrio financeiro da previdência, deve ter o cuidado
de não gerar o efeito inverso, de aumentar despesas com os benefícios de
assistência social. A implementação de medidas que busquem a solidariedade
comutativa deve se dar de forma paulatina e gradual, a ser acompanhada de
incentivos à formalização do mercado de trabalho brasileiro, de forma que a
sustentabilidade financeira do sistema previdenciário possa ser alcançada em
conjunto com a garantia do mínimo existencial aos trabalhadores.
Considerando que a previdência social tem características laboristas, de
bases atuarias, as técnicas aplicadas a esse sistema devem guardar propor-
cionalidade com os valores de contribuição. Entretanto, algumas disposi-
ções constitucionais, tais como a garantia do salário mínimo, mitigam essa
regra, incluindo características de solidariedade distributiva na previdência
social, possibilitando, com isso, uma melhoria na qualidade da seguridade
social brasileira, no que se refere à contribuição para a redistribuição de
renda no País.
Assim, a reforma da previdência, além de estabelecer alterações paramétri-
cas que visam à manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial da previdência
social, deve objetivar o atingimento da finalidade do sistema previdenciário,
qual seja, a disponibilização de renda para os trabalhadores que perderam
capacidade laborativa, em consonância com a realidade de trabalho no Brasil.
Por esse motivo, aqui se está de acordo com a extinção da aposentadoria
por tempo de contribuição. Entretanto, alerta-se para o risco financeiro de
se aumentar sem reflexão o período de carência bruscamente, o que poderá
trazer o efeito colateral de incrementar gastos na assistência social. Propõe-
-se, então, a adoção da fórmula de aposentadoria que combine idade e tempo
de contribuição.

4. CONCLUSÃO
A previdência social básica tem, como principal objetivo, a proteção
dos indivíduos contra riscos sociais e, através da atuação estatal, objetiva
246
Reforma da previdência: é hora de igualar o tratamento de gênero?

minimizar as desigualdades sociais, de forma a garantir o mínimo existencial


aos cidadãos.
No que se refere à proposta de igualdade de gênero na fixação da regra
de idade mínima para aposentadoria contida na PEC 006/2019, pode-se cons-
tatar que, ainda que haja o crescente aumento da participação feminina no
mercado de trabalho, as desigualdades ainda são muito relevantes no país, em
especial no que tange à jornada total de trabalho e ao recebimento de salários
desiguais por funções idênticas. Além disso, não se tem como desconsiderar a
diferença de dedicação entre homens e mulheres no que se refere às atividades
domésticas. Assim, a sugestão apresentada foi de que haja redução paulatina
da diferença da idade mínima de aposentadoria para homens e mulheres, com
progressivo encaminhamento para a isonomia de requisitos, de forma gradual,
combinada com políticas públicas de incentivo à igualdade entre os gêneros.
Paralelo a isso, sugere-se o aumento da proteção social do salário-mater-
nidade, que passaria a ser salário parental, com pelo menos parte do período
podendo ser fruído mediante a livre opção dos pais, até o limite de um ano.
Entretanto, no que se refere ao aumento do tempo mínimo de carência
de 15 para 20 anos, essa alteração pode ter impacto negativo para a popula-
ção de baixa renda que, por possuir empregos informais e enfrentar longos
períodos de desemprego, terá dificuldade em alcançar o período mínimo de
contribuição. Esse problema, além de agravar as desigualdades sociais, pode
ampliar os gastos com assistência social. A necessidade de comprovação de
um longo período de carência desestimulará trabalhadores informais a con-
tribuir para a previdência.
Acredita-se que as sugestões possam contribuir para, de um lado, ga-
rantir melhor equilíbrio financeiro do sistema e, de outro, adaptar melhor as
normas à realidade social brasileira, fazendo com que a previdência continue
a ser um vetor de proteção do mínimo existencial de boa parte da população.

REFERÊNCIAS
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247
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

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Mortalidade_2015/tabua_de_mortalidade_analise.pdf>. Consulta realizada em
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Reforma da previdência: é hora de igualar o tratamento de gênero?

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index.php/RevJur/article/view/1495>. Acesso em 10.06.2020.
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249
O AUXÍLIO-DOENÇA PARENTAL
E A LICENÇA PARENTAL: REFLEXÕES
NECESSÁRIAS EM CENÁRIO DE
ENVELHECIMENTO POPULACIONAL

Maria Fernanda Wirth1

O direito não deve ignorar a realidade.


Quando o direito ignora a realidade
esta se vinga e ignora aquele.
Georges Ripert

Sumário: Introdução − 1. Benefício de auxílio-doença: proteção


social face a incapacidade clínica do trabalhador − 2. Licença
para tratamento de saúde de familiar no RPPS: compreensão do
sistema de proteção social − 3. Auxílio-doença parental no RGPS:
compreensão do conceito de incapacidade − 4. Auxílio-doença
parental: ativismo judicial ou interpretação constitucional? − 5.
Auxílio-doença parental: envelhecimento populacional e novos
riscos sociais − Considerações finais − Referências bibliográficas.

1 Mestranda em Direito − Políticas Públicas, Sociedade e Constituição pelo Centro Universi-


tário de Brasília − UniCeub. LL. M. em Direito Previdenciário pelo Instituto Latino-Ameri-
cano de Direito Social − IDS (2018). Especialista em Gestão Judiciária pela Universidade de
Brasília − UnB (2008). Graduada em Direito pela Universidade Católica de Brasília (2002).
Atualmente é Analista Judiciário do Superior Tribunal de Justiça (2007), atuando como
Assessora do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, nas áreas de Direito Previdenciário e
Administrativo (2010). Diretora Científica Adjunta do Instituto brasileiro de Direito Previ-
denciário − IBDP (2017). Professora de cursos de aperfeiçoamento em matéria de Direito
Previdenciário.

251
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

INTRODUÇÃO
Mariana e Gabriela se conheceram na emergência do Hospital de Base
de Brasília, ambas são mães solteiras e têm filhas de dois anos de idade, diag-
nosticadas com leucemia, que receberiam transplante de medula naquela
semana. Ouviram juntas o diagnóstico médico e toda a instrução necessária
para recuperação das meninas, quando lhes foi informado que as crianças
precisariam de uma internação mínima de 60 dias, onde se fazia absolutamente
imprescindível a presença da mãe em todos os momentos, a fim de garantir
o pleno restabelecimento da saúde daquelas crianças.
Mariana tem 35 anos de idade, é servidora pública concursada da Pro-
curadoria Geral da República, está lotada na Secretaria de Administração, sua
função é cadastrar os novos servidores que desejam inscrever-se no plano de
saúde institucional. Após receber as orientações médicas, pediu ao médico
que lhe desse um atestado de acompanhamento para poder manter-se afastada
de suas atividades no período de restabelecimento da saúde de sua filha, sem
prejuízo de sua remuneração.
Gabriela, também, tem 35 anos de idade e, da mesma forma, trabalha
com o cadastro de novos clientes de planos de saúde, mas em uma empresa
privada. Depois da consulta médica, suas preocupações tornaram-se ainda
maiores. Gabriela não sabe como conseguirá conciliar a rotina hospitalar por
dois meses com suas atividades laborais. O medo do desemprego aumenta sua
angústia, pois não possui qualquer outra renda que possibilite sua subsistência
fora do mercado de trabalho.
Mariana e Gabriela têm em comum a doença de suas filhas. Mas o que as
diferencia é a proteção que o contrato previdenciário a que estão vinculadas
lhes confere.
O direito ao seguro social se verifica com o status de beneficiário e a con-
sequente percepção de benefícios decorrentes do risco concretizado. As duas
trabalhadoras estão expostas ao mesmo risco social: a doença. Mas apenas a
trabalhadora vinculada ao Regime Próprio de Previdência Social tem assegurado
o direito de ausentar-se do trabalho, por meio de licença médica, para cuidar
de sua filha. A trabalhadora vinculada ao Regime Geral de Previdência Social
precisa escolher entre cumprir sua jornada de trabalho ou passar as horas no
hospital em companhia de sua filha, uma vez que o RGPS não traz previsão
expressa de concessão de qualquer prestação previdenciária em razão da enfer-
midade de parente próximo ao segurado que requeira seu cuidado intensivo.
252
O auxílio-doença parental e a licença parental

O trabalhador se vê, então, na difícil posição de ter que manter suas ati-
vidades laborais para garantir sua sobrevivência, muitas vezes a sobrevivência
do parente enfermo também, e, ao mesmo tempo, conciliar o abalo psicológico
da situação e administrar os cuidados que o enfermo dele demanda. Não se
pode ignorar que em muitas dessas situações o trabalhador se vê compelido
a deixar sua atividade de trabalho, arriscando sua sobrevivência e de seus
familiares, para garantir ao familiar enfermo os cuidados necessários.
Essas situações nos levam à indagação: pode-se desconsiderar a neces-
sidade de uma proteção previdenciária nesse cenário?
O presente artigo tem por objetivo responder a esse questionamento, o
que, também justifica sua importância. Buscando analisar as situações, em
que, embora a saúde física do trabalhador não apresente comprometimento
clínico, o adoecimento de um parente próximo, que exige cuidado intensi-
vo, culmina em afastar o trabalhador de suas atividades laborais, expondo o
grupo familiar a risco social e à uma situação de vulnerabilidade econômica
que clama pela cobertura da Seguridade Social. A fim de perquirir as possi-
bilidades de cobertura previdenciária que poderiam ser direcionadas a esse
trabalhador nessa situação de contingência.

1. BENEFÍCIO DE AUXÍLIO-DOENÇA: PROTEÇÃO SOCIAL


FACE A INCAPACIDADE CLÍNICA DO TRABALHADOR
Na Bíblia Sagrada, no evangelho de Lucas, é narrada a história do bom
samaritano, um judeu que após ser assaltado e espancado, foi abandonado
na rua, por onde passaram um sacerdote e um levita que não lhe prestaram
socorro. Até que um samaritano teve por ele compaixão e decidiu cuidá-lo
e pagar uma hospedaria para que ali permanecesse até que pudesse voltar às
suas atividades.
Por muitos anos foram a solidariedade e a compaixão os alicerces de
amparo das pessoas em situação de contingência, hoje o Estado assumiu tal
responsabilidade, é ele quem banha as feridas em azeite e vinho e cuida das
despesas da hospedaria2, firmando um pacto social com os indivíduos, que
lhes garante a subsistência em face das contingências sociais.

2 Lucas 10: 5-37. Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu nas mãos de ladrões que,
depois de o despirem e espancarem, se retiraram, deixando-o meio morto. Por uma coinci-

253
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

De certo, a vida em sociedade é permeada por acontecimentos impre-


visíveis capazes de comprometer a capacidade do indivíduo de manter sua
sobrevivência, como a doença, o acidente, o desemprego, o perecimento da
capacidade laboral, a morte súbita do mantenedor. Esses riscos sociais, que
usualmente não podem ser prevenidos ou remediados pelo cidadão comum,
especialmente para aqueles que dependem exclusivamente de sua força de
trabalho para garantir sua sobrevivência e de seus familiares, são reparados
ou prevenidos por meio de arranjos políticos de proteção social, políticas
públicas preponderantemente prestacionais que atenuam os efeitos sociais
de tais contingências3.
A atuação do Estado na prevenção ou compensação dos riscos sociais
se justifica na noção elementar de que a sociedade é perturbada em sua in-
tegridade quando qualquer dos seus membros está em estado de contingên-
cia4. O enfraquecimento do indivíduo, causa o enfraquecimento do grupo
social, ameaçando toda a coletividade5. Portanto, a política de proteção
social não objetiva somente o amparo ao indivíduo, seu núcleo extrapola o
interesse particular. Políticas de proteção social são desenvolvidas em prol
do equilíbrio social, do interesse coletivo, realizando os valores que dão

dência descia por aquele caminho um sacerdote; quando o viu, passou de largo. Do mesmo
modo também um levita, chegando ao lugar e vendo-o, passou de largo. Um samaritano,
porém, que ia de viagem, aproximou-se do homem e, vendo-o, teve compaixão dele. Che-
gando-se, atou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho e, pondo-o sobre o seu animal,
levou-o para uma hospedaria e tratou-o. No dia seguinte tirou dois denários, deu-os ao
hospedeiro e disse: Trata-o e quanto gastares de mais, na volta eu te pagarei. Qual destes
três te parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu o
doutor da lei: Aquele que usou de misericórdia para com ele. Disse-lhe Jesus: Vai-te, e faze
tu o mesmo.
3 Com o desenvolvimento das sociedades, as políticas proteção social extrapolam o senti-
mento de caridade, e passam a se fundamentar no interesse público ameaçado pela fome e
miséria de grandes grupos marginalizados.
4 Se o indivíduo é parte constitutiva da sociedade e se está é resultado da congregação de in-
divíduos, não se pode negar que entre ambos se estabelece uma relação de dependência, de
modo que os fatores que atingem a sociedade acabam por afetar o indivíduo, assim como os
acontecimentos dificuldades enfrentadas pelo indivíduo atingem diretamente a sociedade.
Robert Castel, nesse aspecto, analisa que a insegurança social age como um princípio de
desmoralização, de dissociação social, dissolvendo laços sociais e minando as estruturas psí-
quicas dos indivíduos, com efeitos que se propagam em toda a sociedade. CASTEL, Robert.
A insegurança social, o que é ser protegido? Petrópolis: Vozes, 2005, p. 31.
5 ASSIS, Armando de Oliveira. Em Busca de uma Concepção Moderna de Risco Social. Re-
vista de Direito Social, v. 14, p. 149-173, abr./jun. 2004, p. 161.

254
O auxílio-doença parental e a licença parental

coesão e sustentabilidade à sociedade: cooperação, solidariedade e justiça


social. Nessa condição, como instrumento de realização de direitos sociais,
assumem destacada importância na redução das desigualdades sociais e no
fortalecimento da cidadania.
Na mesma medida, as políticas sociais atendem ao interesse dos donos do
capital, ao administrar o conflito entre trabalho e capital, isto porque a política
de concessão de prestações que melhoram as condições sociais dos trabalha-
dores terminou por se revelar mais eficiente do que a política de repressão
social, trazendo maior conformação à massa assalariada. Aliás, vale pontuar
que na própria declaração de Otto Von Bismarck explicitamente se reconhece
que o reconhecimento de direitos previdenciários teria por objetivo a obten-
ção da paz interna, evitando o conflito entre empregadores e empregados6.
Veja-se que o desenvolvimento econômico da sociedade demanda, ine-
vitavelmente, um ambiente produtivo com trabalhadores saudáveis e presen-
tes para garantir a linha de produção em dia. Ora, a maioria da população
é formada por essas pessoas, que conduzem, movem e dão vida à produção
comercial. De tal sorte, a inexistência ou a perda da força de trabalho desses
indivíduos, ou a sua miséria extrema, impactam diretamente nessa cadeia
produtiva. Por isso, são criados mecanismos que tragam proteção à essa força

6 Reproduzindo a mensagem enviada por Otto Von Bismarck ao Parlamento Alemão, Javert
de Souza Lima, anota: Considerando ser nosso dever imperial pedir de novo ao Reichstag
que tome a peito a sorte dos operários, e nós poderíamos encarar com uma satisfação muito
mais completa todas as obras que nosso Governo pôde até agora realizar com a ajuda visível
de Deus, se pudéssemos ter a certeza de legar à pátria uma garantia nova e durável, que as-
segurasse a paz interna e desse aos que sofrem a assistência a que tem direito. Nos esforços
que fazemos para este fim, contamos seguramente com o assentimento de todos os gover-
nos confederados e com o inteiro apoio do Reichstag, sem distinção de partidos. É neste
sentido que está sendo preparado um projeto de lei sobre o seguro dos operários contra os
acidentes de trabalho. Esse projeto será completado por outro, cujo fim será organizar, de
um modo uniforme, as Caixas de socorros para o caso de moléstia. Porém, também aqueles
que a idade e a invalidez tornaram incapazes de proverem ao ganho quotidiano, têm direito
à maior solicitude do que a que lhes tem, até aqui, dado a sociedade. Achar meios e modos
de tornar efetiva essa solicitude é, certamente, tarefa difícil, mas, ao mesmo tempo, uma
das mais elevadas em um estado fundado sobre as bases morais da vida cristã. É pela união
íntima das forças vivas do povo e pela organização dessas forças sob a forma de associações
cooperativas, colocadas sob a proteção, vigilância e solicitude do Estado, que será possível,
nós o esperamos, resolver este momentoso problema, que o Estado não poderá resolver por
si só com a mesma eficácia. LIMA, Javert de Souza. Da mensagem de Bismarck ao Plano
Beveridge. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, v. 9, out. 1957, p. 125-126.

255
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

de trabalho e lhe garanta bens suficientes para troca no mercado. Assim, com
fins de assegurar a capacidade produtiva do indivíduo e alcançar um grau
de segurança e estabilidade social, são criadas políticas de proteção para as
principais contingências que acometem a vida de um trabalhador, como a
velhice, a incapacidade, a morte, a gravidez, o desemprego, visando diminuir
a vulnerabilidade social a que está exposto o indivíduo7.
A Constituição Federal de 1988, objetivando efetivas essa proteção ao
trabalhador, elencou, em seu art. 201, o rol de riscos sociais que serão prote-
gidos pela Previdência Social. Entendendo-se, aqui, por risco social, as con-
tingências adversas que possam prejudicar a saúde do trabalhador, impedir
seu desenvolvimento ou diminuir suas condições de prover sua subsistência8.
Dentre tais riscos, a Constituição elenca a incapacidade para o trabalho como
evento merecedor de proteção social da Previdência Social, uma vez que a
possibilidade de ocorrência de acidentes e acometimento de doenças, gera uma
situação periclitante à manutenção do nível de proteção social e principalmente
acarreta a prejudicialidade dos objetivos e valores que o bem-estar e a justiça
social, assentados sob o primado do trabalho, oferecem para a ordem social9.
A supressão da força laboral temporária do indivíduo clama por cober-
tura social em substituição a manutenção do poder aquisitivo de compra
e sobrevivência em qualquer grau econômico10, razão pela qual o Estado
reconhece a sua responsabilidade em substituir a renda do trabalhador, por
meio do pagamento de benefício mensal no período em que se encontrar
incapacitado para o exercício de suas atividades de trabalho habituais, nos
termos do art. 59 da Lei 8.213/1991.
O benefício de auxílio-doença foi idealizado, assim, com o intuito de
amparar o trabalhador em situações excepcionais, quando, por eventos cujas
ocorrências não podem ser controladas, o segurado tem reduzida sua capaci-
dade para exercer sua atividade de trabalho. Seu objetivo é, então, concretizar

7 COSTA, José Guilherme Ferraz da. Seguridade Social Internacional. Curitiba: Juruá, 2017,
p. 29-32.
8 SAVARIS, José Antonio. ROCHA, Daniel Machado da. Curso de Direito Previdenciário.
Volume 1. Curitiba: Alteridade, 2014, p. 11.
9 NETO CUTAIT, Michel. Auxílio-doença. Leme: J.H. Mizuno, 2006, p. 11.
10 DARTORA, Cleci Maria. Aspectos relevantes do benefício de auxílio-doença no Regime
Geral da Previdência Social. In Direito Previdenciário temas atuais. DARTORA, Cleci Maria
e FOLMANN, Melissa. Curitiba: Juruá, 2006, p. 326.

256
O auxílio-doença parental e a licença parental

os ideais do seguro social, garantindo uma renda para sua manutenção no


período em que perdurar sua incapacidade. Assim, não deve ser visto como
favor ou privilégio, mas, sim, como a efetivação da proteção garantida ao
trabalhador no contrato de seguro firmado com a Previdência Social.
Como bem reconhece o Professor Marcos Orione Gonçalves Correia:

Marcada pelo signo do trabalho, a seguridade social monta a sua rede de


proteção exatamente baseada na impossibilidade de o segurado encontrar-se
apto, ou não, a realizá-lo. É triste constatar, no entanto, que muitos consi-
deram tal fato a partir de aspectos negativos, desconsiderando exatamente
a função social do trabalho. Ou seja, quando deixa de trabalhar, por estar
incapacitado, o segurado passa a ser considerado como um “peso morto”,
quando, na realidade, deveria ser pensado como alguém que participou,
com o seu trabalho, para a formação de uma nação melhor − merecendo,
quando da intempérie, a proteção social do estado. Enquanto na ativa, por
meio de seu trabalho, gerou riqueza social. Daí a expressão valor social do
trabalho contida na Constituição brasileira. Não raro tal fato é desprezado
e, quando na inatividade, o trabalhador é visto como um estorvo para a
previdência, e todo trabalho passado é desprezado. Assim, as interpretações
referentes à concessão de benefícios são, em geral, restritivas, em dissonância
com as disposições constitucionais protetivas concernentes ao tema.
Na realidade, com base na interpretação constitucional que se refere
exatamente ao valor social do trabalho, é que se deve conceber de forma
menos restritiva possível a proteção do trabalhador no instante da doença
que o incapacita para os atos da vida laboral11.

A Lei 8.213/1991, em seu art. 59, prevê a concessão de benefício a


todos os segurados, obrigatórios ou facultativos, que ficarem incapacitados,
total ou parcialmente, temporariamente para o exercício de suas atividades
laborais por mais de 15 dias consecutivos, desde que preenchida a carência
de 12 contribuições mensais, dispensando-se o cumprimento de carência
nos casos de incapacidade decorrente de acidente de qualquer natureza,
doença profissional ou decorrente das moléstias graves especificadas em
lista elaborada pelo Ministério da Saúde. O benefício tem caráter substitu-

11 CORREIA, Marcos Orione Gonçalves. Algumas breves digressões a respeito dos benefícios
por incapacidade e da sua prova em juízo. In: Revista da Previdência Social, n. 400, São
Paulo, 2014, p. 263-264.

257
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

tivo de renda, correspondendo a 91% do salário de benefício do segurado,


não sendo admissível o pagamento do benefício em valor inferior a um
salário mínimo.
Veja-se que o dispositivo legal não especifica a necessidade de com-
probação de incapacidade clínica, limitando-se a estabelecer como requisito
para sua concessão a comprovação da incapacidade para o trabalho ou para a
sua atividade habitual. Ao contrário da aposentadoria por invalidez que, nos
termos do parágrafo primeiro do art. 42 da Lei 8.213/1991, expressamente
exige a verificação da condição de incapacidade mediante avaliação médica.
O professor Wladimir Novaes Martinez12 define a incapacidade, no
campo da previdência social, como uma limitação humana física ou psicológi-
ca que impede a pessoa de atuar em atividade habitual. No mesmo sentido, o
magistério de José Antonio Savaris adverte que o conceito de incapacidade se
relaciona com a prática de vida de determinada pessoa e não com um conceito
eminentemente clínico, em uma perspectiva abstrata13.
Assim, em linhas gerais, o auxílio-doença é assegurado pelo RGPS nas
contingências atreladas à incapacidade laboral temporária do segurado, não
trazendo o legislador a exigência de comprovação de incapacidade clínica,
nem fazendo distinção acerca de incapacidade física ou psicológica.
Neste passo, andou bem a alteração promovida pela EC 103/2019, quan-
do exclui o termo doença do art. 201 da Constituição Federal, para então
afirmar que o sistema previdenciário brasileiro oferece cobertura ao evento
de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho. Fica mais nítido,
com a nova redação, que a cobertura do Segurado Social ultrapassa o campo
clínico do adoecimento, avançando para uma proteção social mais abrangente
que envolve todo tipo de incapacidade laboral.
O texto do dispositivo está alinhado ao entendimento da Organização
Mundial de Saúde, que no preâmbulo de sua Constituição, assevera: Saúde
é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência
de doença. Fica claro que a saúde está diretamente ligada ao estado físico,
mental e social do indivíduo. Logo, não são apenas questões médicas que são
abrangidas neste conceito, mas, igualmente, questões sociais.

12 MARTINEZ, Wladimir Moraes. Os deficientes no Direito Previdenciário. São Paulo: LTR,


2009, p. 64.
13 SAVARIS, José Antonio. Direito Processual Previdenciário. 6ª edição. Curitiba: Alteridade,
2016, p. 272.

258
O auxílio-doença parental e a licença parental

A proteção previdenciária, então, a partir da EC 103/2019, vê-se alarga-


da para ir além do campo do adoecimento clínico, expandindo seu alcance
para o campo da incapacidade que envolve fatores múltiplos, bem além dos
entendimentos médicos e da análise clínica. Muito embora o art. 59 da Lei
8.213/1991 permaneça inalterado, o Decreto 10.410/2020, altera a redação
do art. 71 do Decreto 3.048/1999, para assim dispor:

Art. 71. O auxílio por incapacidade temporária será devido ao segurado


que, uma vez cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido,
ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual
por mais de quinze dias consecutivos, conforme definido em avaliação
médico-pericial.

2. LICENÇA PARA TRATAMENTO DE SAÚDE DE FAMILIAR


NO RPPS: COMPREENSÃO DO SISTEMA DE PROTEÇÃO
SOCIAL
No âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
incluídas suas autarquias e fundações, é o Regime Próprio de Previdência Social
– RPPS que, por lei, oferece aos seus segurados os benefícios previdenciários,
nos termos do art. 40 da Constituição Federal. Fazem parte destes regimes os
servidores públicos da União, dos Estados e dos Municípios que preferirem
organizar o seu pessoal segundo um próprio estatuto14.
O Regime Jurídico dos Servidores Públicos da União estabelece em seu
art. 184 que o Plano de Seguridade Social dará cobertura aos riscos a que
estão sujeitos o servidor e sua família, garantindo-lhe meios de subsistência
nos eventos de doença, invalidez, velhice, acidente em serviço, inatividade,
falecimento e reclusão. Reconhecendo, expressamente, aos seus beneficiá-
rios a concessão de licença para tratamento de saúde, benefício análogo
ao auxílio-doença do RGPS, que possibilita o afastamento do servidor de
suas atividades habituais em caso de incapacidade, sem prejuízo de sua
remuneração.
Ainda, o Estatuto amplia o alcance da proteção em caso de doença/
incapacidade garantindo a concessão de licença nas hipóteses em que a

14 KERTZMAN, Ivan. Curso Prático de Direito Previdenciário. Salvador: Juspodivm, 2015,


p. 38.

259
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

moléstia não afeta o servidor, mas, sim, um de seus familiares. O art. 83 da


Lei 8.112/1991 reconhece a possibilidade de licença ao servidor por motivo
de doença do cônjuge ou companheiro, dos pais, dos filhos, do padrasto ou
madrasta e enteado, ou dependente que viva a suas expensas e conste do seu
assentamento funcional, mediante a comprovação por perícia médica oficial15,
desde que comprovado que a assistência do servidor é indispensável e que
não é possível ser prestada simultaneamente com o exercício do cargo, pelo
prazo de até 60 dias, consecutivos ou não, mantida a remuneração do servidor.
Essa mesma licença, em razão de doença em pessoa da família do ser-
vidor, também integra o rol de benefícios de servidores públicos submetidos
a outros Regimes Próprios de Previdência, como, por exemplo, o Estatuto
dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo16, o Estatuto dos
Funcionário Públicos Civis do Estado de Minas Gerais17, o Estatuto dos
Funcionários Civis do Poder Executivo do Estado do Paraná18, o Estatuto
dos Servidores Públicos Civis da Administração Direta, das Autarquias e das
Fundações Públicas do Estado do Pará19, entre outros.
A análise de tal instituto é importante, não para fins de se estabelecer
uma analogia, mas para demonstrar que já existe no nosso ordenamento ju-
rídico a preocupação em garantir ao trabalhador, no caso o servidor público,
a oportunidade de prestar assistência ao seu familiar em momento de doença
sem que tal atitude prejudique sua carreira profissional e a manutenção da
sua renda mensal.
O que se mostra irrazoável é que tal preocupação se limite a atender
aos servidores públicos vinculados a regimes próprios de previdência, des-

15 O art. 9º do Decreto 7.003/2009 estabelece a desnecessidade da perícia oficial para a conces-


são da licença nas hipóteses em que o atestado médico ou odontológico seja igual ou inferior
a três dias corridos.
16 Art. 199 da Lei Estadual 10.261/1968 − O funcionário poderá obter licença, por motivo de
doença do cônjuge e de parentes até segundo grau.
17 Art. 176 da Lei Estadual 869/1943 − O funcionário poderá obter licença por motivo de doen-
ça na pessoa do pai, mãe, filhos ou cônjuge de que não esteja legalmente separado.
18 Art. 237 da Lei Estadual 6.174/1970 − O funcionário pode obter licença por motivo de doen-
ça em pessoa da família, na condição de cônjuge, filho, pai, mãe ou irmão, desde que prove
ser indispensável a sua assistência pessoal, incompatível com o exercício do cargo.
19 Art. 85 da Lei Estadual 5.810/1994 − Poderá ser concedida licença ao servidor por motivo
de doença do cônjuge, companheiro ou companheira, padrasto ou madrasta; ascendente,
descendente, enteado, menor sob guarda, tutela ou adoção, e colateral consanguíneo ou
afim até o segundo grau civil, mediante comprovação médica.

260
O auxílio-doença parental e a licença parental

considerando que as mesmas dificuldades também são enfrentadas pelos


trabalhadores vinculados ao regime geral. Como pondera, Miriam Andrade
Santos, não se deve admitir tratamento diferenciado entre as classes trabalha-
doras, por não estar diante das permissões constitucionais para fazê-lo, tendo
em vista que o Regime Geral de Previdência Social se trata de um regime amplo
que atua até mesmo de forma subsidiária ao Regime Jurídico Único em casos
de omissões20.
Esse descompasso entre os regimes, no campo de proteção da incapacida-
de, contraria o conceito de Seguridade Social esculpido na Carta Magna onde
se reconhece que o risco social não é um problema só do indivíduo, ele deve
ser suportado pela sociedade, em regime de solidariedade social, efetivando
a justiça social que prima pela igualitária distribuição dos benefícios sociais,
baseada pelos princípios da seletividade e distributividade. Tal conceito deve-
-se concretizar em ações positivas do Estado, garantindo a máxima proteção
social, especialmente em razão do risco social enfermidade, que é imprevisí-
vel e sujeita todo e qualquer trabalhador, independentemente do regime de
previdência a que ele se vincule.
A legislação brasileira ainda não encoraja a persecução de iguais garan-
tias e direitos entre trabalhadores ligados do RGPS e servidores públicos, que
nada mais são que trabalhadores vinculados a regime distinto de previdência,
em indesejável estímulo a que esses grupos de trabalhadores se mantenham
em lados opostos. Contudo, como se verá nos próximos tópicos a falta de
uma disposição legislativa expressa voltadas aos trabalhadores vinculados do
RGPS não afasta a possibilidade de concessão da prestação de auxílio-doença,
quando se alarga a compreensão da incapacidade previdenciária à luz dos
demais princípios constitucionais que norteiam o instituto.

3. AUXÍLIO-DOENÇA PARENTAL NO RGPS: COMPREENSÃO


DO CONCEITO DE INCAPACIDADE
Como se viu, o legislador optou por trazer disposição literal de licença
voltada aos cuidados de um parente próximo aos trabalhadores vinculados
a regimes próprios de Previdência Social, sem trazer a mesma disposição ex-
pressa aos trabalhadores vinculados ao Regime Geral de Previdência Social.

20 SANTOS, Miriam Andrade. Auxílio-Doença Parental no campo dos Direitos Fundamen-


tais. Tese de Mestrado. Osasco, 2014, p. 99.

261
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Contudo, essa aparente omissão legislativa em nada retira desses trabalhadores


o direito ao gozo de tal benefício.
O legislador, nos termos do art. 59 da Lei 8.213/1991, elegeu como
requisito para concessão do benefício de auxílio-doença, tão somente, a
comprovação da incapacidade temporária para o trabalho, não trazendo a
exigência de comprovação de incapacidade clínica, nem fazendo distinção
acerca de incapacidade física ou psicológica, muito embora o que se perceba,
na prática administrativa e judicial, é que a prestação somente é concedida
quando comprovado o comprometimento físico do trabalhador em razão de
adoecimento ou acidente por meio de perícia médica.
Ocorre que a realidade mostra que a incapacidade para o trabalho não se
limita à condição clínica e/ou física do trabalho, como é o caso da segurada
que, embora goze de boa saúde física, do ponto de vista clínico, precisa afastar-
-se de suas atividades laborais em razão de ameaça de violência doméstica.
Essa situação foi analisada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julga-
mento do Resp. 1.757.775/SP21, onde se reconheceu o direito à concessão
de auxílio-doença à segurada que precisa afastar-se do trabalho, em razão de
violência doméstica e familiar, entendendo-se que tal situação advém da ofensa

21 RECURSO ESPECIAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. MEDIDA PROTETIVA.


AFASTAMENTO DO EMPREGO. MANUTENÇÃO DO VÍNCULO TRABALHISTA. COMPE-
TÊNCIA. VARA ESPECIALIZADA. VARA CRIMINAL. NATUREZA JURÍDICA DO AFASTA-
MENTO. INTERRUPÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. PAGAMENTO. INTERPRETA-
ÇÃO TELEOLÓGICA. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. PREVISÃO LEGAL. INEXISTÊNCIA.
FALTA JUSTIFICADA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO. AUXÍLIO DOENÇA. INSTITU-
TO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. RECURSO ESPECIAL PROVIDO PARCIALMEN-
TE. (...) 3. Incide o auxílio-doença, diante da falta de previsão legal, referente ao período de
afastamento do trabalho, quando reconhecida ser decorrente de violência doméstica e fami-
liar, pois tal situação advém da ofensa à integridade física e psicológica da mulher e deve ser
equiparada aos casos de doença da segurada, por meio de interpretação extensiva da Lei Ma-
ria da Penha. 4. Cabe ao empregador o pagamento dos quinze primeiros dias de afastamento
da empregada vítima de violência doméstica e familiar e fica a cargo do INSS o pagamento
do restante do período de afastamento estabelecido pelo juiz, com necessidade de apresenta-
ção de atestado que confirme estar a ofendida incapacitada para o trabalho e desde que haja
aprovação do afastamento pela perícia do INSS, por incidência do auxílio-doença, aplicado
ao caso por meio de interpretação analógica. 5. Recurso especial parcialmente provido, para
a fim de declarar competente o Juízo da 2ª Vara Criminal de Marília-SP, que fixou as medidas
protetivas a favor da ora recorrente, para apreciação do pedido retroativo de reconhecimento
do afastamento de trabalho decorrente de violência doméstica, nos termos do voto (STJ,
REsp. 1.757.775/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em
20/08/2019, DJe 02/09/2019).

262
O auxílio-doença parental e a licença parental

à integridade física e psicológica da mulher, devendo-se, assim, ser abarcada


no conceito de incapacidade, o que demanda a concessão de auxílio-doença
nessas hipóteses.
No caso dos autos, o afastamento do trabalho se deu em razão de ameaças
de morte sofridas pela autora, reconhecidas pelo juízo criminal, que teria fixado
medidas protetivas de urgência coibindo a aproximação do ex-companheiro.
Entretanto, conforme informam as provas dos autos, a segurada não se sentindo
suficientemente segura com tais medidas, deslocou-se para outra localidade,
estando impossibilitada de comparecer ao trabalho nesse período, o que lhe
conferiu o direito à concessão do benefício de auxílio-doença.
Veja-se, como bem pontua o Ministro Schietti, no voto condutor do
acórdão, em tais casos não se faz necessária a comprovação de uma condi-
ção de debilidade clínica da segurada, devendo-se comprovar, tão somente,
a impossibilidade de a trabalhadora manter o exercício de suas atividades
laborais no período, vez que o bem maior a ser tutelado é a preservação de
sua integridade física e psicológica.
Do mesmo modo, não se pode deixar de reconhecer a incapacidade de
trabalho daqueles que precisam cuidar de um familiar acometido por grave
enfermidade que necessita de cuidados constantes. É certo que em tais aconte-
cimentos, também não é a saúde do trabalhador que está em risco, mas a saúde
de alguém a quem ele tem o dever moral do cuidado, como no caso de uma
mãe que tem uma criança pequena internada em hospital ou um trabalhador
que vive o drama de ter o pai em estado terminal de câncer necessitando de
apoio diário em todas as suas atividades.
A despeito de não haver comprometimento da saúde clínica do traba-
lhador, não se pode deixar de considerar o abalo de sua saúde psicológica.
Decerto que para todo e qualquer ato da vida de uma pessoa é necessário ter
equilíbrio psicológico, e uma mãe, por exemplo, certamente não está dotada de tal
equilíbrio quando um filho se encontra com grave enfermidade. Não há como ar-
gumentar que tais pessoas consigam ter sua capacidade de trabalho em igualdade
de condição com os demais22.
Considerando-se que o risco social protegido pela previdência social se
refere à incapacidade laborativa, seja ela física, mental ou orgânica, não seria

22 BITTENCOURT, André Luiz Moro. Manual dos Benefícios por Incapacidade Laboral e
Deficiência. 2ª edição. Curitiba: Alteridade, 2018, p. 122.

263
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

admissível a concessão do benefício previdenciário de auxílio-doença nestas


situações? Não seria tal proteção aquela necessária para garantir ao segurado
a possibilidade de afastamento temporário da atividade de trabalho, para
prestar cuidados ao familiar gravemente doente, sem que tenha prejudicada
sua subsistência?
Se a concretização da garantia previdenciária elencada na Constituição se
dá por meio da concessão de benefícios, que são os instrumentos pelos quais a
seguridade social realiza, pratica e torna efetiva a proteção social, garantindo
que a ordem social e o bem-estar estejam incólumes ou pelo menos previdentes
quando as situações de necessidade surgirem diante do trabalhador23, como
admitir-se a negativa de benefício em tais situações?
É certo que a Lei 8.213/1991 não traz em seu texto legal a previsão ex-
pressa de que a concessão do benefício de auxílio-doença demande a compro-
vação de incapacidade física, podendo-se, entender, assim, que a incapacidade
decorrente da necessidade de prestar assistência a algum familiar enfermo que
necessita de seu auxílio esteja abarcada no conceito do dispositivo legal, em
uma visão mais abrangente do que seja a incapacidade laborativa.
De fato, em seu art. 1º, a Lei de Benefícios assevera que a Previdência
Social tem por fim garantir aos seus beneficiários meios indispensáveis de
manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade
avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles
de quem dependiam economicamente.
Observa-se que a política de proteção previdenciária, além de prever
cobertura ao risco social incapacidade, também oferece campo de prote-
ção aos encargos familiares, o que dá conformidade à interpretação aqui
sugerida ao art. 59 da Lei 8.213/1991. Lembre-se, ainda, que o sistema
prevê os benefícios de salário-maternidade e salário-família que, embora
sejam prestações destinadas ao segurado, têm como direcionamento a
preservação da entidade familiar. Da mesma forma, o auxílio-doença pa-
rental tem seu direcionamento para a proteção da família, como entidade
primária do Estado.
Não se poderia olvidar que o dever de cuidados dispensados aos filhos
menores e aos pais idosos não são meras escolhas do trabalhador, mas, sim,
obrigações a ele impostas por força do texto constitucional, nos termos dos

23 NETO CUTAIT, Michel. Auxílio-doença. Leme: J.H. Mizuno, 2006, p. 78.

264
O auxílio-doença parental e a licença parental

arts. 22724 e 22925 da CF/1988. Em mesmo sentido, o Estatuto do Idoso em


seu art. 3º26 afirma que é obrigação da família os cuidados com a saúde do
idoso, da mesma forma estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente, no
art. 4º27, que é dever da família e do poder público, com absoluta prioridade,
a efetivação dos direitos referentes à saúde dos menores.
Nesse passo, impõe-se reconhecer que o segurado que tem algum fa-
miliar acometido de moléstia que requer o seu cuidado e acompanhamento,
encontra-se impossibilitado do regular exercício de sua atividade de trabalho,
fazendo jus à proteção social exigida nessa situação. Não sendo admissível
que seja obrigado a decidir entre negligenciar os cuidados com o seu fami-
liar – rompendo sua obrigação imposta pelo constituinte − ou abandonar seu
posto de trabalho, comprometendo a sua sobrevivência e a sobrevivência do
familiar enfermo.
Tomemos como exemplo a situação de uma trabalhadora com filha de
oito meses de idade que sofre um acidente e precisa de internação médica
por quinze dias. A trabalhadora não sofreu qualquer prejuízo de sua saúde,
o que lhe obsta a concessão de auxílio-doença, nos moldes como o art. 59 da
Lei 8.213/1991 tem sido interpretado administrativa e judicialmente, mas é
certo que não é possível a sua permanência no trabalho, uma vez que precisa
acompanhar a sua bebê no hospital 24 horas por dia. Não resta outra opção à
trabalhadora, senão faltar ao trabalho até a alta e recuperação de sua criança,
expondo-se ao risco de demissão por justa causa e o desconto dos dias não

24 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e


ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discrimina-
ção, exploração, violência, crueldade e opressão.
25 Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores
têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
26 Art. 3o É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar
ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade,
ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Anote-se que o art. 16 também garante
expressamente ao idoso o direito a um acompanhante em caso de internação médica.
27 Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegu-
rar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimenta-
ção, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

265
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

trabalhados, o que culminaria em prejudicar ainda mais a situação desse nú-


cleo familiar que já está enfrentando o drama da criança doente.
Em seu estudo sobre o tema, Tais Rodrigues dos Santos retrata essa
difícil realidade:

Inúmeros são os casos de pais que deixam seus empregos para cuidar de
um filho doente, seja em razão do uso de drogas, seja em razão de doença
grave, como, por exemplo, um diagnóstico de câncer, o que tem ocorrido
com grande frequência devido ao aumento dos índices de pessoas com este
diagnóstico, inclusive em crianças; por outro lado, ocorreu um aumento
também na cura desses pacientes e ficou comprovado que o acompanha-
mento da família no tratamento é fundamental para a recuperação. São
nessas situações que a família fica muito fragilizada em razão da gravidade
da doença, o psicológico fica totalmente abalado, a ansiedade aumenta
causando grande e forte preocupação com o risco de vida iminente. É o
momento em que a família mais precisa de recursos financeiros para man-
ter o mínimo de equilibro e não desanimar. A maioria dos pais deixa seus
empregos e não mais conseguem contribuir à previdência, de forma que
nesses períodos de tratamento e acompanhamento de seus filhos acabam
perdendo a qualidade de segurado28.

Na mesma direção, aponta o magistério do Professor André Luiz Moro


Bittencourt:

Ocorre que o risco social da família ainda existe. Como dito, a mãe
(normalmente ela) se retira do mercado de trabalho e, dependendo do
tempo que o tratamento exija como não há atividade laborativa, corre-se
o risco da perda da qualidade de segurada junto ao sistema de proteção
social. Nota-se, então, atualmente, que o sistema não só deixa de ampa-
rar sua situação como, ainda, lhe retira direitos após determinado tempo
sem contribuição.
Caso o segurado não realize suas contribuições, como no caso da
retirada do mercado de trabalho, poderá ficar coberto por até trinta e seis

28 SANTOS, Taís Rodrigues dos. Auxílio-doença parental: risco social evidente, cobertura
inexistente, necessidade urgente. 2014. Disponível em: http://www.lex.com.br/doutri-
na_26123222_AUXILIO_DOENCA_PARENTAL_RISCO_SOCIAL_EVIDENTE_COBER-
TURA_INEXISTENTE_NECESSIDADE_URGENTE.aspx. Acesso em 28 de dezembro de
2019.

266
O auxílio-doença parental e a licença parental

meses, a depender da situação, o que se denomina período de graça. Após


tal período, ficará completamente desamparado29.

É inegável que a enfermidade é um risco social imprevisível que pode


acometer qualquer cidadão, sendo de conhecimento geral que crianças e idosos
são grupos mais vulneráveis ao adoecimento. Assim, não é incomum que no
decorrer de sua vida laboral o trabalhador vivencie a experiência de ter seus
pais ou filhos doentes, o que lhe impõe o dever do cuidado que pode afetar
a sua capacidade de trabalho.
Assim, com base nas colocações aqui expressas, não se revela admissí-
vel negar a realidade de que a debilitação do estado de saúde de um familiar
provoca no segurado um estado de incapacidade por elemento externo, tornando
absolutamente incapaz de conseguir desempenhar atividade que lhe garantia
subsistência30. Aqui cabe trazer à lume a balizada doutrina do Professor Fábio
Zambitte Ibrahim que magistralmente discorre acerca da análise da incapa-
cidade laboral:

Importa também reconhecer que a incapacidade para o trabalho não é


derivada somente de doenças típicas, aferíveis por médico-perito. A previ-
dência social ainda reluta em admitir a existência de incapacidade de outra
ordem, de natureza moral ou social, quando não há inaptidão funcional,
fisiológica do segurado, mas de outra ordem. Por exemplo, um segurado,
fisicamente apto, tem o pesado encargo de cuidar de um parente em estado
terminal, com curta expectativa de vida. Havendo elevado sentimento para
com essa pessoa, estará ela, muito possivelmente, incapacitada de dedicar-
-se ao seu mister, possivelmente colocando em risco sua integridade física
e das pessoas a sua volta. Obviamente, se coagida a trabalhar, sob pena de
indigência, irá exercer alguma atividade, mas isso não é argumento aceitável
para excluir-se a pretensão, pois até mesmo o segurado com doença grave
irá se arrastar ao trabalho, se essa for a única saída para a sobrevivência. É
justamente para erradicarmos essa situação que a previdência social existe31.

29 BITTENCOURT, André Luiz Moro. Manual dos Benefícios por Incapacidade Laboral e
Deficiência. 2ª edição. Curitiba: Alteridade, 2018, p. 123.
30 GOUVEIA, Carlos Alberto Vieira de. Benefícios por incapacidade & perícia médica: ma-
nual prático. 2ª edição. Curitiba, PR: Juruá, 2014, p. 111.
31 IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 16ª edição. Rio de Janeiro:
Impetus, 2011, p. 626.

267
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Como regra geral, a incapacidade está associada ao adoecimento ou à uma


lesão física. Mas a doutrina e jurisprudência há tempos tem avançado neste
conceito, admitindo que fatores pessoais e sociais também dever ser levados
em conta na análise do quando de incapacidade laboral. Ilustrativamente,
observa-se, no julgamento do RESP 965.597/PE, relatado pelo Ministro Napo-
leão Nunes Maia Filho, em seu primeiro julgado na seara previdenciária no STJ,
que, invocando o relevante valor social de proteção conferido ao Trabalhador,
na Constituição Social, concluiu o relator que a concessão do benefício não
poderia se limitar à análise da conclusão médica, impondo-se considerar a rea-
lidade social estampada nos autos, asseverando que colocado o segurado nesta
posição, estaria comprometida a sua própria sobrevivência, já que, sem conseguir
exercer sua atividade habitual, e sem garantia de oportunidades no mercado de
trabalho, não teria como prover as suas necessidades vitais básicas, revelando-se
a necessidade de o Poder Judiciário amparar o segurado neste momento32.
A partir de tal julgado, foi firmada a compreensão, no Superior Tribu-
nal de Justiça, afirmando que a concessão de aposentadoria por invalidez
não pode estar limitada aos requisitos elencados no texto legal, impondo-se a
análise das reais condições sócio econômicas, profissionais e culturais do
segurado em conjunto com a sua condição clínica, a fim de perquirir a sua
concreta possibilidade de reinserção no mercado de trabalho, prevalecendo a
interpretação que confira a maior proteção social ao Trabalhador. Entendimento
jurisprudencial que permite, a partir daí, um alargamento da compreensão
acerca da incapacidade previdenciária, que não pode estar limitada aos hígidos
conceitos da clínica médica33.
Com base nas premissas aqui fixadas, pode-se estabelecer que o concei-
to de incapacidade que justifica a concessão do benefício de auxílio-doença
parental relaciona-se com a prática da vida de determinado trabalhador, não
estando restrita à uma análise médica, devendo ser a incapacidade, nesses
casos, compreendida em uma perspectiva protetiva, em acordo com a pro-

32 STJ. REsp 965.597/PE, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA,
julgado em 23/08/2007, DJ 17/09/2007, p. 355.
33 Em mesmo sentido, a Turma Nacional de Uniformização pacificou a orientação afirmando
que a ausência de sintomas, por si só, não implica capacidade efetiva para o trabalho, nas
hipóteses em que a doença caracteriza um estigma social, impondo-se aferir as condições
sociais a que está submetido o trabalhador a fim de verificar sua real capacidade de exercício
de atividade que lhe garanta subsistência (PEDILEF 5071068220094058400, Rel. Juiz Fede-
ral ALCIDES SALDANHAS LIMA, data do julgamento 16/08/2012, DJe 31/08/2012).

268
O auxílio-doença parental e a licença parental

teção social conferida à saúde integral do trabalhador – física e mental, em


acordo com a proteção conferida aos encargos familiares e em acordo com a
obrigação constitucional de cuidado com menores e idosos.

4. AUXÍLIO-DOENÇA PARENTAL: ATIVISMO JUDICIAL OU


INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL?

Demandas buscando a concessão de auxílio-doença em caso de adoe-


cimento de familiares já têm sido levadas a debate nos Tribunais do país e
tem encontrado respaldo na jurisprudência, havendo decisões que concedem
auxílio-doença ao segurado que vivencia a doença de familiar, a fim de garan-
tir a sua sobrevivência e a manutenção de sua família até o restabelecimento
do membro do grupo familiar. Ilustrativamente, em sentença de consistente
fundamentação, confirmada pela Turma Recursal, exarada nos autos do Pro-
cesso 2006.72.09000786-1/SC, o Juiz assim reconheceu:

Pelo que se extrai dos documentos juntados com a inicial e da análise da


perícia judicial realizada, a enfermidade que acomete a filha da postulante
bem como a expectativa de sobrevida é o limite de 1 ano de idade, em razão
de complicações pulmonares, sendo que no caso a criança já conta 1 ano
e 3 meses de vida, criando para a autora um quadro tal em que, ao mesmo
tempo em que acredita na possibilidade de recuperação da filha, também
tem conhecimento de que não existe possibilidade médica de cura e o pior,
que a cada dia que passa, mais próximo está de uma notícia desalentadora.
Evidente assim que, apesar de fisicamente a postulante não ter qual-
quer limitação para o trabalho, sob o ponto de vista psicológico, conforme
destacado pela perícia judicial, não vislumbra qualquer possibilidade de
que a autora possa desenvolver atividade profissional.
No caso, não se pode desconsiderar o fato de que a criança necessita de
um acompanhamento individualizado que é feito pela mãe já que a UTI tem
apenas atendimento coletivo, conforme consta da perícia. Já a contratação
de uma enfermeira para atendimento individualizado até poderia suprir a
necessidade médica da criança, mas sem o contato afetivo mãe-filha que,
nos termos da perícia médica, gera à criança “maior possibilidade de so-
brevida, segurança e conforto familiar”.
Dessa forma, tanto pelo lado psicológico da mãe, que não conseguiria
qualquer rendimento satisfatório indo trabalhar e deixando a vida de sua
filha esvair-se no hospital, quanto pelo lado da criança, que tem maior

269
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

expectativa de vida ao receber o atendimento materno, verifica-se que não


existe a mínima capacidade laboral por parte da requerente.
(...) Em sendo assim, a conclusão desse juízo é que existe direito à
concessão do benefício auxílio-doença, a ser mantido enquanto persistir o
quadro fático noticiado nos autos34.

Como se vê, o Juiz é claro ao afirmar que a segurada não apresenta qual-
quer incapacidade física, do ponto de vista clínico, que diminua sua capacidade
laboral, contudo, reconhece a importância e a inegável necessidade de estar
no hospital acompanhando sua filha durante a sua recuperação, admitindo
que não é possível impor à trabalhadora que volte ao seu ambiente de traba-
lho desconsiderando o grave estado de saúde de sua filha, o que lhe garantiu
a concessão do benefício de auxílio-doença, assegurando a manutenção da
renda da trabalhadora, seu vínculo empregatício e o devido acompanhamento
de sua criança no hospital.
O posicionamento evidencia a importância dada pelo juiz à plena pro-
teção da trabalhadora, das suas condições física e emocionais, bem como o
cuidado e a preocupação com a condição de saúde da menor e da conduta que
lhe traria maior chance de recuperação. Esta tríade encontra-se em absoluta
harmonia com a promessa constitucional de cobertura dos riscos sociais do
trabalhador e de proteção à família; e em acordo com o artigo 227, caput e
§ 6º da Constituição de 1988, que estabelece que os direitos da criança e do
adolescente devem ser preservados com absoluta prioridade.
No mesmo sentido, vale trazer à lume sentença de procedência pro-
ferida pelo Juízo da 2ª Vara de Birigui, nos autos do Processo 1003687-
72.2016.8.26.0077, da lavra do Juiz LUCAS GAJARDONI FERNANDES, em
ação em que se buscava a concessão de auxílio-doença parental:

O laudo médico às fls. 56/61 e seu posterior aditamento às fls. 65/66,


concluíram, em consonância, pela inexistência de patologia inerente à
mãe, porém, quanto a filha adoecida à época, nada esclareceu, tendo este
juízo assumido como suficientes para a verificação do quadro patológico
apresentado pela dependente da autora os documentos anexados à exordial,
fazendo-se qualquer complementação de extrema desnecessidade.

34 BRASIL. Processo 2006.72.09.000786-1. 2ª Vara Federal de Jaguará do Sul – Seção Judiciária


de Santa Catarina. Juiz Federal EMMERSON GAZDA. DJU 23.6.2006.

270
O auxílio-doença parental e a licença parental

É notável a afirmação do expert de que, apesar da inegável inexistência


patológica quanto à mãe, assevera ter a incapacidade laboral a atingido, a
partir de fevereiro de 2016, quando sua filha Julia Teixeira da Silva, menor
impúbere, fora diagnosticada com LINFOMA NÃO HODGKIN, conforme
ampla documentação juntada. Relacionando tal incapacidade, o expert, à
aflição, medo e angústia (fl. 72, quesito 3) que a mãe, ora autora, revestida
de seu dever parental, biológico, cultural e afetivo tem para com sua filha en-
ferma, advindo, de maneira lógica, pesares que a impossibilitaram ao labor.
Além do mais, há incapacidade física, presencial, devendo a mãe, com
o intuito de sanar os males que acometiam sua filha, a levar em tratamento
quimioterápico em cidade diversa da que residiam.
Há, portanto, dever estatal em garantir à parte autora o exercício pleno
de suas funções laborais, conforme norma insculpida em nossa Constituição
Federal – Art. 6º, o que no presente caso não se fez possível, em decorrên-
cia da grave patologia que acometia a filha da parte autora. Neste sentido:
“[...] a concessão do benefício auxílio-doença parental encontra subs-
trato nos princípios e ideais de um Estado Democrático, estando sob os
auspícios da dignidade da pessoa humana do segurado, cidadão trabalhador,
que necessita do trabalho para garantia de subsistência própria e familiar
e que, ao mesmo tempo, encontra-se em situação que coloca em risco tal
direito social, por não ter a oportunidade de tratar de um familiar doente.
Assim por meio deste benefício previdenciário, o segurado terá garantido o
direito e dever de cuidar da preservação de sua família, além de ter garantido
seu direito ao trabalho”. – Conclusão em obra acadêmica de Mestrado por
Miriam Andrade Santos.
Assim sendo, faz-se plenamente possível, de acordo com ampla funda-
mentação legal e jurídica acima, a concessão do benefício auxílio-doença,
entendendo o referido benefício como passível de extensão ao dependente
enfermo, consagrando as garantias constitucionais, em sua completude
hermenêutica35.

Da mesma forma, entendeu a 6ª Turma Recursal dos Juizados Especiais


Federais da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, nos autos do Processo
0021649-08.2014.4.02.5151/0136, de relatoria do Juiz Federal Luiz Eduardo

35 BRASIL. TJSP. Processo 1003687-72.2016.8.26.0077. Juiz LUCAS GAJARDONI FERNA-


NES. 2ª Vara da Comarca de Birigui. DJe 6.7.2017.
36 BRASIL. Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro. Processo 0021649-08.2014.4.02.5151/01.
Rel. Juiz Federal LUIZ EDUARDO BIANCHI CERQUEIRA, DJe 16.9.2015.

271
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Bianchi Cerqueira, ao confirmar a sentença que julgou procedente o pedido


de auxílio-doença parental à segurada em razão da doença de sua filha que
demandava acompanhamento contínuo, reconhecendo que tal situação retira
da trabalhadora sua capacidade laboral temporariamente.
Veja-se que tais decisões não importam em ativismo judicial, vez que não
criam benefício previdenciário não previsto em lei, ao contrário, apenas confe-
rem a melhor interpretação possível do disposto no art. 59 da Lei 8.213/1991.
Essa atuação judicial garantista, em verdade, confere maior efetividade
às normas constitucionais, trazendo uma melhor conformação ao orde-
namento jurídico, enfatizando a centralidade da Constituição Federal no
ordenamento jurídico, conferindo ao seu intérprete a possibilidade de atuar
além do texto legal na garantia e concretização de direitos fundamentais,
conferindo-lhe um papel mais ativo, um papel de verdadeiro protagonista na
concretização do direito.
É certo que o intérprete judicial precisa abandonar sua postura de mero
aplicador das leis e das normas, para assumir, definitivamente, a posição
de garantidor da promoção da pessoa humana, considerada em toda a sua
vulnerabilidade concreta. A necessidade dessa postura ativa do intérprete
se revela de forma mais clara em ações que tutelam direitos fundamentais,
como ocorre nas ações previdenciárias. A ação previdenciária concretiza
valores sine qua non para a sobrevivência digna do indivíduo, promovendo
a sua emancipação, o seu sentimento de pertencimento à sociedade na qual
está inserido, impondo ao intérprete especial cuidado na busca da melhor
resposta à controvérsia.
Assim, a análise de uma demanda previdenciária não pode se limitar ao
exame da legislação infraconstitucional. A concretização judicial do Direito
Previdenciário demanda a análise prospectiva dos valores e princípios cons-
titucionais que fundamentam o sistema de Seguridade Social: a dignidade da
pessoa humana, a emancipação do Trabalhador que não dependerá do assisten-
cialismo de terceiros, a erradicação da pobreza, a construção de uma sociedade
mais igualitária, dentre outros igualmente essenciais.
Diante desse contexto, as normas previdenciárias devem ser interpretadas
de modo a sempre favorecer os valores morais da Constituição. Assim, deve-
-se procurar encontrar na hermenêutica previdenciária a solução que mais se
aproxime do caráter social da Carta Magna à luz da realidade do caso concreto,
a fim de que as normas processuais ou mesmo a legislação previdenciária não
venham a obstar a concretude do direito fundamental à prestação a que faz
272
O auxílio-doença parental e a licença parental

jus o segurado. Afinal, a quem interessaria a construção de uma sociedade


de pessoas destituídas de proteção social?
É certo que todos os juristas têm a sensibilidade de perceber as injusti-
ças, ainda que o texto legal não as considere. Aliás, como explica o filósofo
argentino Enrique Dussel, é impossível empiricamente que a norma, o ato, a
instituição e o sistema de eticidade sejam perfeitos em sua vigência e conse-
quências37. Essa afirmação demonstra, com argumentos reais, que o modelo
legalista é insuficiente para explicar as densas tramas sociais. Assim, a realiza-
ção da justiça só será possível se a análise da demanda abranger a análise do
texto normativo, dos princípios constitucionais e da realidade social em que
a situação está inserida.
No mesmo sentido, das lições do Professor Carlos Ayres Britto, se extrai
a compreensão de que a justiça da lei é descoberta pela inteligência (mente, in-
telecto), mas a justiça do caso concreto é intuída pelo sentimento (alma, coração).
E esse jurista recomenda ao julgador fundir os dois meios a fim de vislum-
brar a real visão do justo38. Reafirmando a doutrina do Professor Eros Grau,
quando afirma que a concretização do direito implica em um caminhar do
texto da norma para a realidade dos autos. Diz o mestre Grau que o intérprete
só discerne o sentido do texto (norma) a partir e em virtude de um determinado
caso dado, a interpretação do direito consiste em concretar a lei em cada caso,
isto é, na sua aplicação39.
Tem-se, assim, que as decisões aqui colacionadas não reconhecem bene-
fício não previsto na legislação, ao contrário, conferem a devida interpretação
ao art. 59 da Lei 8.213/1991, garantindo-lhe sua devida conformação com
os princípios constitucionais norteadores do sistema de Seguridade Social e
com a especial proteção devidas aos menores e idosos pelo poder constituinte.
Não é demais asseverar que, como bem conclui Miriam Andrade Santos,
em sua tese de mestrado sobre a temática aqui em estudo, que tal reconheci-
mento não viola a exigência constitucional de preexistência do custeio, uma
vez que não se defende aqui a criação de uma nova prestação previdenciária,

37 DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. Petrópolis:


Vozes, 2002, p. 373.
38 BRITTO, Carlos Ayres. O Humanismo como Categoria Constitucional. Belo Horizonte:
Fórum, 2012, p. 73.
39 GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/aplicação do Direito. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 35.

273
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

mas, sim, a extensão do benefício de auxílio-doença, ampliando-se o con-


ceito de incapacidade para além dos fatores físicos e psíquicos, e passando-
-se a ter em conta o fator incapacitante de ordem emocional (psíquica), moral
e social40.
Aqui vale registrar que embora a extensão do benefício de auxílio-doença
na hipótese de adoecimento de familiar do segurado não tem ganhado muito
espaço na doutrina e na jurisprudência, contudo, o instituto pode encontrar
abrigo na legislação previdenciária. Foi aprovado, em 27 de maio de 2015, no
Senado Federal o PLS 286/2014, de autoria da Senadora Ana Amélia Lemos,
que propõe a inclusão do art. 63-A à Lei de Benefícios, nos seguintes termos:

Art. 63-A. Será concedido auxílio-doença ao segurado por motivo de


doença do cônjuge ou companheiro, dos pais, dos filhos, do padrasto ou
madrasta e enteado, ou dependente que viva a suas expensas e conste da
sua declaração de rendimentos, mediante comprovação por perícia médi-
ca, até o limite máximo de doze meses, nos termos e nos limites temporais
estabelecidos em regulamento.

No projeto apresentado, a Senadora justifica a alteração legislativa, ao


argumento de que devesse buscar a isonomia entre os trabalhadores vinculados
ao Regime Geral de Previdência Social e aos Regimes Próprios de Previdência
Social. Argumentando, ainda, a necessidade de se garantir a efetiva proteção
da entidade familiar:

O que é objeto de grande indagação e carece de resposta adequada


é se, por exemplo, poderia uma mãe ou um pai receber um benefício de
natureza previdenciária em decorrência do tratamento de saúde de um filho?
Ora, se o risco social envolvido é a perda ou a diminuição da capacidade
laborativa e em decorrência disso, a da renda familiar, a resposta parece
ser positiva, pois como poderia uma mãe acompanhar um filho acometido
de neoplasia maligna ou acidentado gravemente e não ter sua capacidade
laborativa comprometida na média em que tem a obrigação familiar de
dar assistência aos seus próprios filhos, acompanhando-os em consultas,
exames, tratamentos, e o mais importante que é prover o apoio psicológico
para uma boa recuperação.

40 SANTOS, Miriam Andrade. Auxílio-Doença Parental no campo dos Direitos Fundamen-


tais. Tese de Mestrado. Osasco, 2014, p. 99.

274
O auxílio-doença parental e a licença parental

Ampliando a questão, observando que a lei não traz restrição explícita (e


toda restrição deve ser expressa) e que a lei deve ser interpretada conforme o
fim social a que se destina (cobertura do risco social) e ainda a interpretação
conforme o texto constitucional parece que a dúvida fica ainda menor ou
até mesmo, deixa de existir. Todavia a autarquia previdenciária interpreta
e regulamenta restritivamente.
Além de ser a cobertura previdenciária um direito fundamental, cabe
lembrar que a Constituição de 1.988 protege o ente familiar e diz expres-
samente no artigo 226 que “a família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado”.
Há que se destacar ainda, que a Lei 8.112/90 tem previsão expressa no
sentido de conceder o benefício em casos como os que ora se apresenta41.

O projeto, que agora tramita na Câmara dos Deputados (PL 1.876/201542),


se aprovado, poderia sanar a aparente lacuna legislativa, que tem levado à
negativa do benefício em âmbito administrativo e judicial, muito embora o
projeto contenha algumas falhas. Por exemplo, não fica claro na proposta do
texto legal se o benefício poderia ser concedido aos dois cônjuges em casos
de filhos menores ou só a um deles. Ou se seria possível a concessão conco-
mitante a trabalhadores irmãos que tenham a necessidade de cuidar do pai
ou mãe enfermos. Outro ponto relevante que mereceria destaque antes da
aprovação final do texto, é a questão da utilização da perícia médica para fins
de concessão do benefício.
É certo que a perícia médica é o meio ideal para aferir a moléstia que
acomete o familiar do segurado, contudo, o benefício de auxílio-doença pa-
rental tem outro requisito específico que precisa ser analisado, qual seja, a
comprovação da real necessidade de acompanhamento familiar. Para aferir
tal requisito seria necessária a análise do núcleo familiar para verificar se
não haveria outras pessoas que pudessem prestar assistência ao enfermo ou
se realmente seria imprescindível a presença do segurado no processo de
cuidados do ente familiar doente.
Esses aspectos não seriam facilmente analisados em perícia médica, o
que poderia levar ao indeferimento prematuro do benefício. A concessão

41 BRASIL. Senado Federal. PLS 286/2014. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/sdleg-get-


ter/documento?dm=590342&disposition=inline.
42 BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 1.876/2015. Disponível em: https://www.camara.leg.br/
proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1306679

275
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

da prestação seria mais bem conduzida se realizada uma perícia complexa.


O ideal seria que a análise fosse feita conjuntamente por assistente social,
em um modelo de análise psicossocial, nos moldes em que já é realizado
na concessão de benefício assistencial de prestação continuada previsto na
LOAS. De toda sorte, o projeto sinaliza uma possibilidade de mudança, de
ampliação da proteção social, perfectibilizando a proteção ao trabalhador, à
família e o trabalho.
Decerto, se a Carta Constitucional afirma que o primado do trabalho43 é
a base para a consecução da ordem social, avulta a importância que o trabalho
tem para pleno desenvolvimento do ser humano e da própria sociedade, o
que justifica a adoção de mecanismos de ampliação do campo de proteção
do risco social, especialmente quando se refere ao risco imprevisível da
enfermidade, de modo a dar garantias efetivas de proteção ao trabalhador,
buscando amparar-lhe em todas as situações decorrentes da doença, inclusive
nas hipóteses em que é um de seus familiares que tem sua condição de saúde
afetada clamando por cuidados.
Incumbe à Previdência Social amparar o trabalhador em todos os in-
fortúnios decorrentes da doença/incapacidade, não podendo ignorar que o
adoecimento de ente familiar compromete, senão fisicamente, psiquicamente
o segurado, afetando a sua capacidade laborativa, o que justifica a cobertura
do Estado de tal risco social, nos moldes em que a legislação já entende devido
aos trabalhadores ligados aos Regimes Próprios de Previdência.
Os princípios que norteiam a Seguridade Social devem ser interpretados
em harmonia com os riscos sociais que se propõe a cobrir. No caso é expresso
em nossa legislação que a enfermidade é um risco social que merece a cober-
tura do Estado, e tal proteção deve ser interpretada de forma abrangente e
com harmonia com a realidade social dos trabalhadores.

5. AUXÍLIO-DOENÇA PARENTAL: ENVELHECIMENTO


POPULACIONAL E NOVOS RISCOS SOCIAIS
O tema do auxílio-doença parental ganha especial importância e urgên-
cia, quando se avalia o atual cenário de envelhecimento populacional em
que entra o país. A população mundial está envelhecendo. Essa afirmação

43 Constituição Federal. Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e
como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

276
O auxílio-doença parental e a licença parental

já não traz surpresa, é consente que a diminuição da natalidade infantil e o


aumento da expectativa de vida tem trazido, em nível mundial, o gradual
envelhecimento populacional. Os indicadores demográficos apontam para
uma transição no sentido do aumento das populações inativas e redução
das ativas com evidências de comprometimento e exaustão da equação que
sustenta os sistemas de seguridade social. Vale lembrar que o envelhecimento
populacional foi uma das bases justificadoras da atual Reforma Previdenciária,
sintetizada na EC 103/2019.
O envelhecimento populacional tem sido visto, em muitos países, como
o principal obstáculo ao equilíbrio dos regimes públicos previdenciários, uma
vez que acontece juntamente com a diminuição da população em idade ativa,
desestabilizando a distribuição de recursos na sociedade, razão pela qual o
fenômeno aparece como justificativa recorrente na elaboração de reformas
dos sistemas de previdência social44.
Ao mesmo tempo, o fenômeno precisa ser estudado a partir dos novos
riscos sociais que origina. É inegável que o aumento da população idosa traz
o aumento de um grupo social mais vulnerável aumentando a desproteção
social e demandando mais ações e serviços do Estado para atender a esse
grupo populacional que tem necessidades especiais. A esta realidade derivada
do envelhecimento deve se analisar o incremento da população em situação
de dependência, por razões de enfermidades e outras causas de incapacidade
ou limitações.
Não se pode desconsiderar que a atenção com as pessoas idosas, mais
vulneráveis às situações de dependência, constitui um dos principais objetivos
da política social dos países em avançado estágio de envelhecimento popu-
lacional. E o objetivo não é outro, que não atender as necessidades daquelas
pessoas que, por se encontrarem em situação de especial vulnerabilidade,
requerem apoio para desenvolver suas atividades essenciais da vida diárias e

44 Na França, em 2013, o presidente François Hollande aumentou o tempo de contribuição


mínimo para 43 anos. Já a idade mínima para se aposentar foi aumentada para 62 anos em
2010, pelo então presidente Nicolas Sarkozy, que também aumentou a idade para receber
aposentadoria integral de 65 para 67 anos. Na Alemanha, a reforma previdenciária de 2007,
estabeleceu um aumento gradual da idade mínima, que em 2029 passará a ser de 67 anos. A
Grécia, em 2012, alterou a idade de aposentadoria para 67 anos, com contribuição mínima
de 40 anos para benefício integral. Houve também convergência da idade mínima das mu-
lheres com a dos homens, sendo facultado àqueles que optem pela aposentadoria antes dos
67 anos, a percepção de um benefício reduzido.

277
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

poder exercer plenamente seus direitos de cidadania. Com efeito, as mudan-


ças demográficas e sociais estão produzindo um incremento progressivo na
população idosa, grupo social em situação de dependência. Esse processo de
envelhecimento constitui, a um só tempo, um êxito das políticas de bem-estar,
especialmente do sistema de saúde, mas, por outro lado, representa novos
problemas de proteção social, aumentando o grupo de indivíduos vulneráveis.
Especialmente em um cenário de envelhecimento populacional, em
que aumenta gradativamente a população idosa, aumentando o número de
indivíduos em situação de dependência social, não se pode esquecer que, até
agora, têm sido as famílias, e em especial as mulheres que tradicionalmente
têm assumido o cuidado com as pessoas dependentes, constituindo o que se
chama apoio informal. Mas as mudanças nas formações familiares e a incor-
poração progressiva das mulheres no mercado de trabalho introduzem novos
fatores nestas situações que tornam imprescindível uma revisão do sistema
de proteção social tradicional para assegurar uma adequada proteção social
ao contingente de idosos que se avoluma, exigindo uma regularização defi-
nitiva da proteção social voltada aos trabalhadores que precisam cuidar de
dependentes em estado de enfermidade, sob pena de se agravar a desproteção
social, que, ao fim e a cabo, levará ao incremento das demandas do Estado.
A situação de dependência emerge, assim, como um novo risco social,
manifesto no aumento gradativo de um grupo social de idade que se carac-
teriza por sua falta de autonomia e demanda uma cobertura específica ante
a inadequação funcional dos mecanismos tradicionais (familiares ou institu-
cionais). Esta emergência de uma nova situação de necessidade diferenciada,
determina em si a insuficiência e o caráter inadequado do modelo indiferen-
ciado de proteção pública atual, demandando um redesenho da política de
proteção social, onde se torne inequívoca a proteção social aos trabalhadores
que precisam afastar-se do mercado de trabalho temporariamente para prestar
assistência à familiares enfermos.
Aliás, é de se lembrar que está consignado na Constituição Federal o
dever de cuidado dos pais para com seus filhos e o dever de cuidados dos
filhos para com seus pais. Não se pode admitir que a constituição respon-
sabilize a família pelo cuidado dos idosos e dos menores, sem lhe oferecer
nenhuma ajuda para tanto. Ora, o cuidado recai sobre os familiares, ou seja,
desresponsabiliza o Estado da função de cuidar, mas lhe atribui a respon-
sabilidade de fiscalizar e punir. Isto significa desconsiderar a realidade das
dinâmicas familiares, o papel social da mulher e o próprio envelhecimento
278
O auxílio-doença parental e a licença parental

da população. Como atribuir responsabilidade de cuidado, quando o tra-


balhador precisa se manter trabalhando para lutar por sua sobrevivência e
de seus familiares?

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal de 1988 avança ao elencar uma série de direitos
e garantias aos trabalhadores, assegurando um compromisso com o bem-
-estar social, asseverando que a ordem social tem como base o primado do
trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. No magistério de
Marisa Ferreira dos Santos:

A Ordem Social tem como base o primado do trabalho, e seus obje-


tivos são o bem-estar e a justiça sociais. O constituinte de 1988 escolheu
o trabalho como alicerce da Ordem Social, indicando que toda atividade
legislativa e interpretativa dessas normas deve prestigiar os direitos do tra-
balhador. O trabalho e a dignidade da pessoa humana são fundamento do
Estado Democrático de Direito (art. 1º, III e IV, da CF). É com o trabalho
que o homem sustenta a si e à sua família, do que resulta que só há digni-
dade humana quando houver trabalho, Só o trabalho propicia bem-estar
e justiça sociais45.

Os direitos sociais fundamentais desenham um modelo normativo de


proteção dirigida às garantias da dignidade da pessoa e da igualdade de todos
perante a lei, objetivando o pleno desenvolvimento do cidadão na sociedade.
A lógica universalista dos direitos sociais pressupõe que esses não podem ser
reduzidos, ao contrário devem ser expandidos e promovidos, afinal, repro-
duzindo as palavras do Professor Luigi Ferrajolli, un derecho no garantizado
no seria un verdadero derecho46.
Essas promessas constitucionais se materializam por meio de ações po-
sitivas do Estado que garantam ao trabalhador condições dignas de sobrevi-
vência, amparando-o em momentos de infortúnios relacionados ao trabalho
e à enfermidade, garantindo que o trabalhador preservará sua dignidade e da
sua família nos momentos de vulnerabilidade. Esse exercício pode ser reali-

45 SANTOS, Marisa Ferreira dos. LENZA, Pedro (coord.). Direito Previdenciário esquematiza-
do. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 40.
46 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. Madri: Trotta, 2010, p. 59.

279
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

zado por todos os Poderes da República, tanto o Poder Legislativo quanto o


Poder Judiciário detêm competência para atuar na efetivação das premissas
constitucionais que fundam nosso modelo de Estado Social.
As decisões judiciais concessivas trazidas na pesquisa refletem essa
possibilidade, afinal, o direito só se positiva na interpretação judicial, a in-
terpretação da lei deve se dar em conformidade com a Constituição e com
o fim social a que se destina. Se a lei, ao instituir o auxílio-doença, busca
amparar o trabalhador em caso de perda ou diminuição da sua capacidade
laborativa, não há como o intérprete da lei não considerar a incapacidade do
trabalhador diante da doença de um familiar ou desconsiderar o risco social a
que essa família estará submetida. É certo que o direito positivo é produzido
pela atividade de interpretação e aplicação do direito ao fato, analisado sob
a perspectiva dos princípios constitucionais que embasam o ordenamento
jurídico, a norma não pode ser lida de forma isolada, ela precisa ser lida na
dinâmica do ordenamento que a insere.
O art. 59 da Lei 8.213/1991 deve, assim, ser lido à luz dos princípios que
ancoram a Seguridade Social. É certo que o sistema do seguro social ampara
a imprevisão da incapacidade, bem como ampara o apoio aos familiares do
segurado e os encargos familiares, o que permite a concessão do auxílio-doença
no caso de adoecimento de familiar.
Seria descabido responsabilizar o trabalhador pelo cuidado de um parente
enfermo, sem lhe oferecer qualquer mecanismo que possibilitasse essa assis-
tência, contrariando a lógica do sistema de proteção social. Assim, mostra-se
admissível a interpretação conforme a Constituição, visando compatibilizar
a excepcionalidade da situação com a proteção previdenciária firmada com
a Autarquia Previdenciária. Tal reconhecimento não pode se limitar à mera
previsão legal, deve estar calcado na análise de todos os institutos jurídicos
envolvidos na questão, quais sejam: a primazia da família, o equilíbrio emo-
cional do trabalhador, a proteção devida ao menor e ao idoso e a ampliação
de cobertura do risco social enfermidade.
Firme nessas premissas, defendo no presente estudo que se deve estender
a concessão do benefício de auxílio-doença ao trabalhador em caso de adoe-
cimento de familiar, com objetivo de garantir a renda mensal do trabalhador
nos períodos em que precisa ausentar-se do trabalho para acompanhamento
de familiar enfermo que prescinde de seus cuidados. Negar tal direito, negar
a realidade dos fatos, omitir-se quanto à penosa situação de acompanhamento
de filho ou pais enfermos, é negar a própria essência da Política Pública de

280
O auxílio-doença parental e a licença parental

Previdência Social, desrespeitando o princípio da dignidade da pessoa hu-


mana. Expondo não só o trabalhador a inúmeros riscos sociais (desemprego,
fome, doença, desestabilização psicológica), como também a sua família,
contrariando as premissas constitucionais que asseguram a formação de um
Estado Social.
Desnecessário um laudo médico ou estudo científico para reconhecer
que o adoecimento de uma criança pequena desestabiliza emocionalmente
sua mãe, que o acometimento de doença grave nos pais retira o equilíbrio
emocional de seus filhos, mesmo que já sejam adultos. Como pondera Carlos
Alberto Vieira de Gouveia,

a incapacidade para o trabalho não precisa se dar em razão de problemas


físicos/mentais, pode se dar através também de problemas psíquicos, pois a
doença no ente querido provoca uma incapacidade ricochete no segurado;
embora a patologia coadunadora não ocorra nele, esta provoca naquele um
estado de incapacidade por elemento externo, tornando-o absolutamente
incapaz de conseguir desempenhar atividade que lhe garanta subsistência47.

Não se faz necessária a criação de um novo benefício, nem mesmo sua


concessão judicial pode ser vista como ato de ativismo judicial, exige-se, tão
somente, o reconhecimento de que o conceito de incapacidade não se res-
tringe às condições físicas do trabalhador, estende-se às questões psíquicas,
morais e sociais.
Como não reconhecer a incapacidade em um segurado que tem seu filho,
seu cônjuge ou genitor padecendo de uma moléstia grave e clamando seus
cuidados? Inegável o prejuízo na capacidade laboral do segurado, pois não há
como se vislumbrar a realização do perfeito desempenho do trabalho, estando
um segurado da previdência social com encargo de cuidar de um familiar
doente, em caráter emergencial ou terminal, o que permite o amparo pela
legislação previdenciária, nos termos do art. 59 da Lei 8.213/1991.
É certo que a conciliação da vida familiar e da vida laboral é um desafio
complexo. Os dois institutos, família e trabalho, tem sua proteção garanti-
da na Carta Magna, assim, ainda que a lei não preveja em sua literalidade a
possibilidade de concessão do auxílio-doença nessas hipóteses, a conjugação

47 GOUVEIA, Carlos Alberto Vieira de. Benefícios por incapacidade & perícia médica: ma-
nual prático. 2ª edição. Curitiba, PR: Juruá, 2014, p. 111.

281
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

das normas constitucionais e previdenciárias, permite o reconhecimento do


direito ao benefício, a fim de garantir a plena cobertura social na vida de quem
labora e tem o direito de constituir uma família.
Portanto, se faz necessário a implantação desta proteção destinada ao
segurado para cuidados de um dependente enfermo, de forma a reconhecer
a incapacidade psicológica ou emocional, moral e social para o exercício das
atividades laborativas, reconhecendo, desta forma, este fator incapacitante
e não ampliando um benefício existente. E, ainda, enquanto pendente a re-
gulamentação e reconhecimento desta prestação previdenciária no Regime
Geral, compete ao Poder Judiciário à atuação para fins de preservar o direito
ao trabalho do segurado, bem como para garantir o cumprimento dos deveres
constitucionais destinados à família, bem como para garantia de uma vida
digna ao segurado e ao familiar doente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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O auxílio-doença parental e a licença parental

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283
PLANEJAMENTO PREVIDENCIÁRIO
COMO FORMA DE PROTEÇÃO SOCIAL

Maura Feliciano de Araújo1

Sumário: 1. Introdução – 2. A proteção social previdenciária no


brasil e o direito adquirido – 3. Patrimônio previdenciário: 3.1 Filia-
ção; 3.2 Segurado, qualidade de segurado e período de graça; 3.3
Carência; 3.4 Tempo de contribuição; 3.5 Salário de contribuição
e período básico de cálculo – 4. Das espécies de planejamento
previdenciário: 4.1 Planejamento previdenciário documental;
4.2 Planejamento previdenciário ambiental; 4.3 Planejamento
previdenciário judicial; 4.4 Planejamento previdenciário finan-
ceiro – Conclusão – Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como finalidade afirmar aos colegas que militam
na esfera previdenciária, a importância do Planejamento Previdenciário, como
instrumento de alcance para a entrega ao beneficiário do Regime Geral de

1 Advogada, Especialista em Direito Previdenciário pela Escola Paulista de Direito – EPD,


MBA em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário pela Faculdade Legale, Presidente da
Comissão Previdenciária 104ª Subseção OAB Itaquera, Coordenadora do Instituto Brasileiro
de Direito Previdenciário – IBDP no Estado de São Paulo, Membro Efetivo da Comissão
Previdenciária da Seccional São Paulo, Professora em cursos de pós graduação em Direito
Previdenciário pela Faculdade Legale, UNOESTE Campus Presidente Prudente, UNIBRASIL
Unidade Itaquera, do Núcleo ESA – SP.

285
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Previdência Social, do melhor benefício previsto na Constituição Federal,


assim como na Lei de Benefício e Decreto Regulamentador.
A base legal para a realização do Planejamento Previdenciário é a pró-
pria Carta Magna quando assegura princípios e regras aplicados ao Direito
Previdenciário, tais como: Princípio da Solidariedade, da Universalidade da
Cobertura e do Atendimento, da Irredutibilidade do Valor do Benefício, da
Regra da Contrapartida, da Equidade da Forma de Participação no Custeio,
entre outros.
Também tem seu respaldo na Lei nº 8.213/91, Lei nº 8.212/91, Decreto
Regulamentador nº 3.048/99 que nos apresentam conceitos elementares ao bom
trabalho do Planejamento, e por fim, a Instrução Normativa nº 77, de 22 de
janeiro de 2015 que regulamenta os atos do servidor, mas que também servem
como ótimo direcionamento no trato do advogado (a) para com seu cliente.
Com a publicação da Emenda Constitucional nº 103, em 13 de novem-
bro de 2019, alterando substancialmente a Carta Magna no que diz respeito
aos Regimes Próprio e Geral de Previdência Social, estabelecendo uma Nova
Previdência, o Planejamento tornou-se imprescindível para a identificação de
um primado Constitucional a ser respeitado, “o direito adquirido”, oportuni-
zando a identificação não apenas do direito previamente alcançado antes dessa
reforma, mas inclusive para assegurar a correta interpretação da lei diante do
já consagrado “tempus regit actum”.
Conceituo Planejamento Previdenciário como sendo o “estudo do patri-
mônio previdenciário do segurado e segurada da previdência social”, sendo
necessário conhecer e aplicar, para cada situação, definições primordiais ao
sistema, tais como: filiação, qualidade de segurado, período de graça, seguido
do que é carência e tempo de contribuição.
De posse desses conceitos e sua identificação no caso sob análise, fica mais
fácil compreender a apresentação dos tipos de planejamento previdenciário,
um desdobramento adotado ao perfeito assessoramento ao cliente, surgindo
assim então o Planejamento Documental, Planejamento Ambiental, Plane-
jamento Judicial e o Planejamento Financeiro, com considerações pontuais
sobre quais documentos baseiam cada um destes.
Concluindo, chegaremos à certeza de que diante de um cenário legislati-
vo previdenciário, com constantes modificações promovidas não apenas por
meio de Emendas, mas também por Leis Ordinárias e Medidas Provisórias,
com nítida restrição de acesso às prestações previdenciárias, o especialista
286
Planejamento previdenciário como forma de proteção social

em direito previdenciário, precisa buscar a excelência no atendimento ao seu


cliente, visando a real proteção social, quando da ocorrência do risco social
na vida do segurado, da segurada e dos dependentes destes.

2. A PROTEÇÃO SOCIAL PREVIDENCIÁRIA NO BRASIL E O


DIREITO ADQUIRIDO
A Declaração Universal dos Direitos Humanos traz em seu artigo 25,
importante base para positivação dos direitos sociais e o direito à previdência
social:
Art. 25. [...]
§ 1º. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar
a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito
à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice
ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora
de seu controle.
§ 2º. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência
especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou forma do matrimônio,
gozarão da mesma proteção social.

Em 24 de janeiro de 1923, é publicado o Decreto Legislativo nº 4.6822,


conhecido como Lei Elói Chaves, iniciando-se assim o grande passo para a
proteção social em nosso país, a nível infraconstitucional.
Esse Decreto, constituído por 49 artigos, traz a razão de sua edição já no
art. 1º: Fica creada em cada uma das emprezas de estradas de ferro existentes
no paiz uma caixa de aposentadoria e pensões para os respectivos empregados3.
No art. 10 temos a previsão de duas espécies de aposentadorias: ordinária e
por invalidez, e o art. 26 traz o benefício de pensão por morte.
A Constituição de 1934 introduziu novas regras, trazendo então a prote-
ção social a nível trabalhista e previdenciário, com destaque à previsão quanto
ao custeio tripartite, conforme art. 121, par. 1º, letra “h”4:

2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/historicos/dpl/DPL4682-1923.htm, acesso em
24 de junho de 2020.
3 Redação original;
4 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm, acesso em 24 de ju-
nho de 2020.

287
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a


esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego,
e instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do em-
pregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade
e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte;

A primeira Constituição a trazer a expressão “previdência social” foi a de


19465, estabelecendo inicialmente, no art. 5º, a competência da União para
legislar sobre matéria de previdência social (inc. XV, letra “b”), e no art. 157
custeio tripartite e a prévia fonte de custeio:

XVI - previdência, mediante contribuição da União, do empregador


e do empregado, em favor da maternidade e contra as conseqüências da
doença, da velhice, da invalidez e da morte;
XVII - obrigatoriedade da instituição do seguro pelo empregador contra
os acidentes do trabalho.
§ 2º Nenhuma prestação de serviço de caráter assistencial ou de bene-
fício compreendido na previdência social poderá ser criada, majorada ou
estendida sem a correspondente fonte de custeio total.

Outro grande marco veio com a edição da chamada e conhecida LOPS


– Lei Orgânica da Previdência Social, Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960,
que unificou os institutos previdenciários, conforme a obra do Prof. Miguel
Horvath, à página 32 de seu livro6:

a) Unificação dos benefícios e serviços previdenciários, eliminando


legislativamente as diferenças históricas de tratamento entre os trabalhadores;
b) Igualdade no sistema de custeio com a unificação das alíquotas de
contribuição incidentes sobre a remuneração do trabalhador (entre 6% e 8%);
c) Ampliação dos riscos e contingências sociais cobertas.

Em 1967, a Constituição Federal traz ampliação e alterações na proteção


social, estabelecendo então um tempo mínimo de serviço à mulher, assim
como o salário família e seguro desemprego (art. 158).

5 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm, acesso em 24 de ju-


nho de 2020.
6 Direito Previdenciário, 7ª Edição.

288
Planejamento previdenciário como forma de proteção social

Em 5 de outubro 1988, é promulgada a atual Constituição Federal,


criando as três áreas de atuação da Seguridade Social – Saúde, Previdência e
Assistência, mantendo ainda o custeio tripartite entre outros.
À medida que a evolução econômica, industrial e comercial avança, os
direitos sociais e sua proteção segue a mesma linha, com adequação a uma
prestação previdenciária mais inclusiva e protetiva.
Mas em vários momentos, essa proteção foi sendo extirpada, e temos
como exemplo de restrição, o impacto e redução do valor de benefícios de
aposentadorias programáveis, com a edição da Lei nº 9.876/997, datada de
26 de novembro de 1999, que alterou de forma radical o período básico de
cálculo8, elevando esse período a ser compreendido desde a competência
julho/1994 ou após essa data para quem ingressou no sistema após 27 de
novembro de 1999, e criando o tão temido fator previdenciário9, capaz de
reduzir consideravelmente o valor da renda mensal inicial do segurado (a)
que requer seu benefício de aposentadoria de forma precoce, ainda que pre-
enchidos os requisitos de acesso (carência + tempo de contribuição mínimo
de 30 anos para mulher e 35 anos para o homem).
Em 4 de dezembro de 2015 é publicada a Lei nº 13.183, possibilitando ao
requerente de aposentadoria por tempo de contribuição integral, o afastamento
do fator previdenciário quando do cálculo da sua renda mensal inicial, desde
que, para 2015 e até o final de 2018 a soma do tempo de contribuição mais
idade atingisse 85 pontos para a mulher e 95 pontos para o homem. A partir
de janeiro de 2019, a soma de pontos foi alterada para 86/96 (M/H) e assim
se manteve quando entra em vigor a Emenda Constitucional nº 103/2019.

7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9876.htm, acesso em 24 de junho de 2020.


8 Até a entrada de vigência da Lei 9.876/99, e assim desde a Constituição Federal de 1988
em sua redação, o período básico de cálculo – PBC, para cálculo do salário de benefício, era
apurado dentro de um período de 36 meses, num intervalo não superior a 48 meses, nos
termos do art. 202 da Carta Magna.
9 Nos dizeres do Prof. Sergio Geromes, em sua obra Cálculo do Benefício Previdenciário na
Prática – Inclui Teses Revisionais, 2ª Edição, LTR, pág. 93, “a finalidade do fator previden-
ciário é forçar o segurado a retardar o requerimento de aposentadoria e, por consequência,
elevar o valor do benefício conforme maior sejam “a idade (Id) e o tempo de contribuição
(TC) do segurado. Ao reverso, reduz o valor da aposentadoria se tenra a idade do segurado e
se contribuiu pouco tempo à previdência”. Citando o ilustre professor, o Procurador Federal
Hermes Arrais Alencar, na obra Cálculo de Benefícios Previdenciário. Regime Geral de Pre-
vidência Social. Teses Revisionais Da Teoria à Prática. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. P. 357.

289
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Atualmente, estamos na era da Nova Previdência, por força da Emenda


Constitucional nº 103, trazendo em seu bojo alterações nas regras de acesso
aos benefícios de aposentadorias programáveis ou voluntárias, para os filiados
a partir de 14 de novembro de 2019. Para os filiados até 13 de novembro de
2019, e desde que não tenham atingido os requisitos para aposentadoria até
esta data, temos regras de transição que exigem cumulativamente, o tempo
mínimo de contribuição (30/35 M/H) com outros requisitos tais como soma
de pontos, idade mínima ou pedágio10.
Outra alteração negativa pela EC 103/2019 se refere à Aposentadoria Es-
pecial que passa a instituir uma idade mínima e a efetiva exposição ao agente
nocivo prejudicial à saúde (e tão somente à saúde), bem como nova fórmula
de calcular benefícios previdenciários, ao estabelecer que a média aritmética
simples dos salários de contribuição passa a considerar 100% (cem por cento)
de todo o período, e não mais 80% (oitenta por cento) com descarte imediato
dos 20% menores salários de contribuição11.
Diante de tantas modificações na legislação previdenciária, ora elevan-
do os direitos sociais e sua proteção social, ora regredindo e tornando mais
inacessível aos benefícios, constata-se que os beneficiários do Regime Geral
de Previdência Social, carecem de uma advocacia especializada quanto à
Lei vigente no momento do fato gerador, e também à aplicação de vários
elementos e conceitos em matéria previdenciária, destacando-se desde então
o Planejamento Previdenciário como forma de se entregar ao Requerente, o
melhor benefício previdenciário.
Numa exposição pontual e objetiva, discorro sobre o Planejamento Pre-
videnciário, a partir dos conceitos filiação, carência, qualidade de segurado,
período de graça, tempo de contribuição, evoluindo posteriormente às espécies
de planejamento existente, e seus principais pontos de estudos.

3. PATRIMÔNIO PREVIDENCIÁRIO
Como já citado, Planejamento Previdenciário é o estudo do patrimônio
previdenciário do segurado e da segurada da Previdência Social, e dentro deste,

10 As regras de transição estão listadas entre os artigos 15 a 21 da Emenda Constitucional nº


103/2019.
11 Até a Edição da Emenda Constitucional nº 103/2019, e desde a vigência da Lei 9.876/99,
o art. 29, incisos I e II da Lei nº 8.213/91 disciplinou que para cálculo dos benefícios de
aposentadorias por idade, tempo de contribuição e especial consideraria a média aritmética
simples dos salários de contribuição, correspondentes a 80% de todo período contributivo.

290
Planejamento previdenciário como forma de proteção social

destacamos os conceitos de Filiação, Carência, Segurado e Período de Graça,


para então adentrarmos nos pontos chaves de cada espécie de planejamento.
(negrito da autora
Tão importante ao planejamento previdenciário para a entrega da me-
lhor prestação previdenciária, a partir dos conceitos aciamam, conforme a
ocorrência do risco social, dois princípios merecem destaque em cada caso
concreto: direito adquirido12 e o primado “tempus regit actum”13.
O Direito Adquirido, previsão constitucional, art. 5º, inc. XXXVI, assim
como também na Lei de Introdução Nacional ao Direito Brasileiro, art. 5º e
art. 3° da própria Emenda Constitucional nº 103/2019, assegura ao segurado
a garantia dessa proteção constitucional, quando reunir todos os requisitos
para o benefício em questão. Quando reunidos os requisitos, poderá exercer
seu direito a qualquer momento, e nenhuma lei ou qualquer outro texto legal
retirará, restringirá ou dificultará esse direito.
Quanto à afirmação, o tempo rege o ato, decorrente da proteção ao direi-
to adquirido, seu reconhecimento é de fundamental importância, diante de
uma legislação que é alterada de tempos em tempos, e por onde então deverá
sempre prevalecer a lei vigente quando da ocorrência do fator gerador. Logo,
quando da ocorrência do risco social, o intérprete da lei deve observar qual
o texto legal estava vigente naquele momento.

3.1 Filiação
Segundo o art. 201, caput da Constituição Federal de 1988, a Previdên-
cia Social é organizada sob a forma de regime geral de previdência social, de
caráter contributivo e filiação obrigatória.
O art. 9º do Decreto nº 3.048/99 estabelece em seu parágrafo 12º: O
exercício de atividade remunerada sujeita a filiação obrigatória ao Regime
Geral de Previdência Social, sendo a Instrução Normativa nº 77/2015, mais
elucidativa ao prever no art. 3º: Filiação é o vínculo que se estabelece entre

12 Art. 5º, inc. XXXVI da CF/1988: a lei não prejudicará o direito adquirido, ato jurídico per-
feito, e a coisa julgada.
13 A lei que deve ser aplicada ao caso concreto é a vigente no momento da ocorrência do fato
gerador, já reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, citan-
do-se, por exemplo, o AI 625.446.

291
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

pessoas que contribuem para a Previdência Social e esta, do qual decorrem


direitos e obrigações. (negrito da autora)
Sendo filiação o elo que se forma entre segurado da previdência social e
previdência com o segurado, essa relação se inicia, nos termos IN 77/2015,
artigo 3º, par. 1º:

[...] decorre automaticamente do exercício de atividade remunerada


para os segurados obrigatórios (tal qual já regulamentou o decreto regula-
mentador) e, em se tratando de segurado facultativo, a partir do pagamento
da primeira contribuição sem atraso.

Percebe-se que a relação direitos e obrigações ocorre em momentos


diferentes a depender se o segurado é obrigatório ou facultativo, e essa iden-
tificação tem importância por ser ponto de partida para o reconhecimento da
carência e do tempo de contribuição, como veremos adiante.

3.2 Segurado, qualidade de segurado e período de graça


ser segurado é ser filiado ao Regime Geral de Previdência Social, porque
está no exercício de atividade remunerada ou enquanto se contribui com o
sistema. Essa qualidade se mantém inclusive, em situações ausentes de vín-
culo ou remuneração, nos termos dos incisos do art. 15 da Lei nº 8.213/91:

I − sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício, exceto do


auxílio acidente;
II − até doze meses após a cessação das contribuições, o segurado que
deixar de exercer atividade remunerada abrangida pela Previdência Social
ou estiver suspenso ou licenciado sem remuneração;
III − até doze meses após cessar a segregação, o segurado acometido
de doença de segregação compulsória;
IV − até doze meses após o livramento, o segurado retido ou recluso;
V − até três meses após o licenciamento, o segurado incorporado às
Forças Armadas para prestar serviço militar;
VI − até seis meses após a cessação das contribuições, o segurado
facultativo.

Acrescenta-se aos incisos acima, a previsão da IN 77/2015, art. 137, inc.


II, que também mantém a qualidade de segurado por até 12 meses:
292
Planejamento previdenciário como forma de proteção social

[...]
após a cessação de benefícios por incapacidade, salário maternidade ou
após a cessação das contribuições, para o segurado que deixar de exercer
atividade remunerada abrangida pela Previdência Social ou estiver suspenso
ou licenciado sem remuneração, observado que o salário maternidade deve
ser considerado como período de contribuição;

Ainda com base no sistema protetivo, tanto a Lei nº 8.213/91 quanto a


IN 77/2015 garantem a prorrogação dos prazos de 12 meses para manutenção
da qualidade de segurado, nos casos em que ficar comprovado que o segurado
contribuiu por mais de 120 contribuições ao sistema, assim como na situação
em que o trabalhador comprova desemprego involuntário.
Dessa forma, dispõe o artigo 15 e seus parágrafos, e redação semelhante
na IN 77/201514:

§ 1º O prazo do inciso II será prorrogado para até 24 (vinte e quatro)


meses se o segurado já tiver pago mais de 120 (cento e vinte) contri-
buições mensais sem interrupção que acarrete a perda da qualidade
de segurado.
§ 2º Os prazos do inciso II ou do § 1º serão acrescidos de 12 (doze)
meses para o segurado desempregado, desde que comprovada essa
situação pelo registro no órgão próprio do Ministério do Trabalho e da
Previdência Social.

Identificar essa questão é de grande importância, quando da análise de


indeferimentos por parte do servidor público, sob justificativa de “perda da
qualidade de segurado”, sem que as exceções e proteções acima não tenham
sido oportunamente avaliadas no caso concreto.

3.3 Carência
Conforme previsão constitucional, a previdência social é organizada
sob a forma de regime geral de previdência social, e de caráter contributivo.
Isso significa dizer que terá acesso às prestações previdenciárias, quando da
ocorrência do risco social, aquele que contribui/contribuiu com o sistema.

14 Art. 137, parágrafos 2º e 4º da Instrução Normativa 77/2015.

293
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Nestes termos do art. 24 da Lei de Benefícios, carência corresponde ao


número mínimo de meses que o segurado (a) precisa ter vertido ao sistema,
para ter acesso ao benefício em questão, e o art. 25 dispõe sobre o número
mínimo de meses que é devido:

I − auxílio doença e aposentadoria por invalidez: doze contribuições


mensais;
II − aposentadoria por idade, aposentadoria por tempo de serviço15 e
aposentadoria especial: cento e oitenta contribuições mensais;
III − salário maternidade para as seguradas de que tratam os incisos V
e VII do caput do art. 11 e o art. 13 desta Lei: dez contribuições mensais;
IV − auxílio reclusão: vinte e quatro contribuições mensais.

Exceção à regra, o legislador protege situações que demandam urgência


na concessão diante da imprevisibilidade de sua ocorrência, e assim, estão
dispensados de carência, as seguintes situações, nos termos do art. 2616,
inc. I: pensão por morte, salário família e auxílio reclusão; e nos termos
do inc. II:

II − auxílio-doença e aposentadoria por invalidez nos casos de acidente


de qualquer natureza ou causa e de doença profissional ou do trabalho,
bem como nos casos de segurado que, após filiar-se ao RGPS, for acome-
tido de alguma das doenças e afecções especificadas em lista elaborada
pelos Ministérios da Saúde e da Previdência Social, atualizada a cada 3
(três) anos, de acordo com os critérios de estigma, deformação, mutilação,
deficiência ou outro fator que lhe confira especificidade e gravidade que
mereçam tratamento particularizado;

Ainda no que concerne à carência, muito se discute quanto aos benefícios


por incapacidade temporária e permanente (expressões adotadas pela Emenda
Constitucional aos benefícios auxílio doença e aposentadoria por invalidez),

15 Desde a reforma constitucional previdenciário promovida pela Emenda nº 20/98, a expres-


são atualizada é aposentadoria por tempo de contribuição.
16 Ainda nos termos do art. 26 da Lei nº 8.213/91, também dispensa-se a carência, as seguin-
tes situações: III - os benefícios concedidos na forma do inciso I do art. 39, aos segurados
especiais referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei; IV - serviço social; V - reabilitação
profissional; VI – salário-maternidade para as seguradas empregada, trabalhadora avulsa e
empregada doméstica.

294
Planejamento previdenciário como forma de proteção social

se estes períodos são considerados como carência, ou seja, como número de


meses para concessão de benefício; neste sentido, a jurisprudência vem se
solidarizando com a previsão contida na lei de benefícios, assegurando tanto
quanto se consideração como tempo de contribuição.

3.4 Tempo de contribuição


outro conceito relevante na análise do planejamento previdenciário,
comum às espécies de aposentadorias antes e após a Emenda Constitucional
nº 103/2019, é o tempo de contribuição, definido na Lei de Benefícios como
sendo proveniente da contagem de data a data correspondente às atividades
do segurado/segurada, e, conforme previsão do art. 55, também às seguintes
situações em que, mesmo sem renda ou trabalho, há de se computar como tal:

I − o tempo de serviço militar, inclusive o voluntário, e o previsto no § 1º


do art. 143 da Constituição Federal, ainda que anterior à filiação ao Regime
Geral de Previdência Social, desde que não tenha sido contado para inativi-
dade remunerada nas Forças Armadas ou aposentadoria no serviço público;
II − o tempo intercalado em que esteve em gozo de auxílio-doença ou
aposentadoria por invalidez;
III − o tempo de contribuição efetuado como segurado facultativo, desde
que antes da vigência desta lei;
III − o tempo de contribuição efetuada como segurado facultativo;
IV − o tempo de serviço referente ao exercício de mandato eletivo fe-
deral, estadual ou municipal, desde que não tenha sido contado para efeito
de aposentadoria por outro regime de previdência social;
V − o tempo de contribuição efetuado por segurado depois de ter deixado
de exercer atividade remunerada que o enquadrava no art. 11 desta Lei;
VI − o tempo de contribuição efetuado com base nos artigos 8º e 9º da
Lei nº 8.162, de 8 de janeiro de 1991, pelo segurado definido no artigo 11,
inciso I, alínea “g”, desta Lei, sendo tais contribuições computadas para
efeito de carência.

Acrescenta-se a previsão do art. 60, inc. IX do Decreto nº 3.048/99, que


considera como tempo de contribuição o período em que o segurado esteve
recebendo benefício por incapacidade por acidente do trabalho, intercalado
ou não; bem como as previsões dos incisos XIII e XIV: período de licença
295
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

remunerada, desde que tenha ocorrido desconto de contribuições e período


de segurado colocado à disposição pelo empregador, mas que também tenha
ocorrido remuneração e desconto previdenciário.
Associado ao texto legal, importante conhecer e aplicar a evolução juris-
prudencial, onde situações como seminarista, menor aprendiz, tempo rural
antes dos 12 anos entre outros tem sido admitida como tempo de contribuição.
Assim, destaco a leitura do Súmula 73 da TNU:

o tempo de gozo de auxílio doença ou de aposentadoria por invalidez


não decorrentes de acidente de trabalho só pode ser computado como tempo
de contribuição ou para fins de carência quando intercalado entre períodos
nos quais houve recolhimento de contribuições para a previdência social.

A discussão que paira na advocacia no momento, vem da redação do


art. 25 da Emenda Constitucional nº 103/2019, e a alteração promovida ao
art. 201, par. 14º da Carta Magna. As alterações promovidas retiram a possi-
bilidade do tempo ficto ser contado como tempo de contribuição, e dentro
desse conceito está exatamente, entre outros, os afastamentos por benefícios
por incapacidade.
Assunto em discussão, que compete ao advogado na via judicial, buscar
a aplicação do que está previsto na Lei Nacional de Introdução ao Direito
Brasileiro, art. 5º: Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que
ela se dirige e às exigências do bem comum.

3.5 Salário de contribuição e período básico de cálculo


no que tange ao salário de contribuição, que é base de cálculo das contri-
buições previdenciárias com posterior reflexo em benefícios previdenciários,
dispõe o art. 201, par. 11 da Carta Magna:

Os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorpo-


rados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e conseqüente
repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei.

Nos termos da Lei de Custeio nº 8.212/91, considera-se como salário de


contribuição, nos termos do art. 28, todos os valores recebidos pelo segurado
a título de remuneração pelo trabalho realizado a uma ou mais empresas, com
296
Planejamento previdenciário como forma de proteção social

exceção apenas ao segurado facultativo, que tem como salário de contribuição


o valor por ele declarado, respeitando-se os limites mínimo e máximo.
Reconhecer as propriedades do salário de contribuição, assim como o
período básico de cálculo de onde se extrairá a média aritmética simples des-
tes salários é tão importante quanto saber, com base legal, a responsabilidade
tributária quanto à obrigação de se descontar, recolher e repassar à Receita
Federal, as contribuições previdenciárias, evitando assim que o benefício
seja apurado em valor inferior à real contrapartida, bem como impedir que
o contribuinte individual indenize a Previdência Social naquilo que não lhe
traz proveito econômico.
Diante destes apontamentos objetivos, passo então à exposição quanto
às espécies de planejamento previdenciário, e de que forma se alcança, com
base na lei, decreto e instrução normativa, a conclusão quanto ao melhor be-
nefício, na via administrativa, seja em fase inicial ou recursal administrativa,
ou pela via judicial.

4. DAS ESPÉCIES DE PLANEJAMENTO PREVIDENCIÁRIO


A partir dos conceitos e apontamentos acima, quanto ao patrimônio pre-
videnciário do cliente, passamos à adequação de sua documentação ao objetivo
do Planejamento, seja para corretamente instruir um pedido administrativo,
seja para uma análise quanto à hipótese de recurso/revisão administrativa ou
ação judicial.
Didaticamente, subdivido o planejamento em: Planejamento Previden-
ciário Documental, Planejamento Previdenciário Ambiental, Planejamento
Previdenciário Judicial e por fim, Planejamento Previdenciário Financeiro,
e assim passo à exposição pontual de cada um, sem pretensão alguma de
esgotar o tema neste artigo.

4.1 Planejamento previdenciário documental


nesta espécie, o foco está na documentação que segurado ou segurada
possui, a fim de apuração quanto ao tempo de contribuição e carência neces-
sário ao benefício a ser pleiteado.
Ao iniciar o atendimento ao cliente, e a depender de sua espécie (empre-
gado, doméstico, avulso, contribuinte individual, segurado especial, segurado
297
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

facultativo), a Instrução Normativa detalha entre os artigos 10 a 32, quais são


os documentos que fazem prova de vínculos.
Via de regra, considerando que boa parte dos clientes se filiaram ao Regime
Geral de Previdência Social como empregado (ou em algum momento da vida
já foram empregado), o principal documento de análise do especialista será
sempre a Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS, ou, a depender
da categoria, a Carteira Profissional.
Espera-se que este documento esteja em perfeito estado de conservação,
em ordem cronológica quanto às suas informações, com todas as folhas e
anotações constantes, até porque, em decisão da Turma Nacional de Uni-
formização17, se este documento assim se apresenta servirá para as devidas
averbações junto ao CNIS – cadastro nacional de informações sociais.
Situação comum ao cliente, é não ter a CTPS apta a ser averbada no
CNIS, ocasião então em que o especialista deverá se atentar à coleta de outros
documentos, previstos nas alíneas do art. 10, inc. I da IN 77/2015.
Todo e qualquer documento que comprove vínculo tem seu valor, seja
na via administrativa seja na via judicial, devendo sempre instruir o processo
administrativo previdenciário.

4.2 Planejamento previdenciário ambiental


desde a primeira previsão legal com vistas a proteger a saúde do tra-
balhador, com a edição da LOPS (nº 3.807/60)18, a legislação já passou por
inúmeras alterações e avanço protetivo, que por fim, com a Emenda Cons-
titucional nº 103, veio a reduzir o acesso dos trabalhadores que por 15, 20
ou 25 anos exerceram suas funções com exposição a agentes nocivos à sua
saúde e integridade física.

17 Súmula 75: A Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) em relação à qual não se
aponta defeito formal que lhe comprometa a fidedignidade goza de presunção relativa de
veracidade, formando prova suficiente de tempo de serviço para fins previdenciários, ainda
que a anotação de vínculo de emprego não conste no Cadastro Nacional de Informações
Sociais (CNIS).
18 Art. 31: A aposentadoria especial será concedida ao segurado que, contando com no mínimo
50 anos de idade e 15 anos de contribuição, tenha trabalhado durante 15, 20 ou 25 anos pelo
menos, conforme a atividade profissional, em serviços que, para esse efeito, forem conside-
rados penosos, insalubres ou perigosos, por Decreto do Poder Executivo.

298
Planejamento previdenciário como forma de proteção social

Em sua mais recente obra19, a Mestre D.ra Adriana Bramante relembra


a evolução histórica, finalizando que: mesmo sem estudo técnico, a idade
mínima passa a ser exigida a partir da publicação da EC 103/2019, na regra
transitória[...].
O foco nesta espécie de planejamento é identificar duas questões: 1) se
o trabalhador em algum momento tem presunção de nocividade quanto ao
exercício de sua função, em razão do enquadramento por categoria profissio-
nal; 2) se a exposição deverá ser medida em razão da exposição aos agentes
acima dos limites de tolerância.
A primeira hipótese tem respaldo nos Decretos 53.831/64 e 83.080/1979,
e como exemplo, cita-se o motorista de ônibus e cobrador; o médico; o en-
fermeiro, entre outros.
No que pese as discussões sobre o limite de enquadramento por categoria
profissional, se até 28 de abril de 1995 ou se até 5 de março de 199720, o fato
é que ao analisar carteiras de trabalho do trabalhador, atenção deve ser dada
ao campo: “cargo”/”função”, pois há possibilidade do enquadramento por
categoria ocorrer, apenas pela anotação neste documento.
A partir de então, a atenção quanto a possível reconhecimento de ativida-
de especial, por exposição a agentes nocivos, ocorre por meio de formulários
técnicos fornecidos pelo empregador (ex), sendo atualmente o formulário
vigente o PPP – Perfil Profissiográfico Previdenciário.

4.3 Planejamento previdenciário judicial


quando do atendimento ao cliente, oportuno reconhecer no CNIS – ca-
dastro nacional de informações sociais, se o segurado (a) já requereu benefício
previdenciário, e qual o desfecho desse pedido (deferido ou indeferido).
Se o requerimento administrativo foi negado, necessário apurar se houve
interposição de recurso administrativo ou ação judicial, alinhado a uma análise
prévia do processo administrativo, a saber quais atos foram praticados pelo
servidor, dos quais podem resultar em reconhecimento de contagem e con-

19 Aposentadoria Especial Teoria e Prática, pág. 43.


20 Com a edição da Lei nº 9.032/95, o enquadramento por categoria profissional deixou de
existir em nosso ordenamento jurídico. Todavia, como essa lei somente foi regulamentada
pelo Decreto 2.172, em 6 de março de 1997, o Poder Judiciário reconheceu que é possível o
enquadramento por função, até 5 de março de 1997.

299
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

versão de tempo especial, averbação de período rural, averbação de períodos


constantes em CTPS e ausentes no CNIS, entre outros que muito agrega em
novo requerimento administrativo.
Situação comum no que diz respeito ao Planejamento Judicial, é a aver-
bação da sentença trabalhista, onde o Requerente pode ter buscado no Poder
Judiciário, do reconhecimento do vínculo empregatício à integração de par-
celas salariais pagas por for, ocasião que, qualquer que tenha sido a situação,
há de se ter cópia integral do processo trabalhista, e sua juntada quando do
protocolo do requerimento administrativo.
Todavia, o art. 71, inc. II da Instrução Normativa 77/2015, sugere que
a sentença trabalhista não é imprescindível para reconhecimento de vínculo
empregatício, e para tanto, fazemos uma análise conjunta deste dispositivo,
com o art. 10, inc. I, letra “i” da mesma instrução:

Art. 71. A reclamatória trabalhista transitada em julgado restringe-se à


garantia dos direitos trabalhistas e, por si só não produz efeitos para fins
previdenciários. Para contagem do tempo de contribuição e o reconheci-
mento de direitos para os fins previstos no RGPS, a análise do processo pela
Unidade de Atendimento deverá observar:
I a existência de início de prova material, observado o disposto no art.
578;
II o início de prova referido no inciso I deste artigo deve constituir-se
de documentos contemporâneos juntados ao processo judicial trabalhista
ou no requerimento administrativo e que possibilitem a comprovação dos
fatos alegados;

O art. 10, inc. I, letra “i” dispõe: outros documentos contemporâneos


que possam vir a comprovar o exercício de atividade junto à empresa.
Logo, a depender do conjunto probatório e contemporâneo que o cliente
possua, desnecessária a sentença trabalhista.
Outras hipóteses de decisões administrativas e judiciais também devem
ser avaliadas: sentença judicial que reconhece união estável; decisão da junta
de recurso da previdência ou da câmera de julgamento, que reconhece tempo
de contribuição, carência, tempo especial entre outros.
E a fundamentação para essa fase do estudo do patrimônio previdenciário,
está na própria Carta Magna a nos garantir: lei não prejudicará [...] a coisa
julgada, no já mencionado art. 5º, inc. XXXVI.
300
Planejamento previdenciário como forma de proteção social

4.4 Planejamento previdenciário financeiro


Quando do planejamento previdenciário financeiro, considerando a
proteção social que o Requerente carece de imediato, nessa espécie de pla-
nejamento não se avalia o “retorno financeiro” de o que muitos podem dizer
“investimento na previdência social”; e isso porque não estamos a tratar de
uma análise voltada à faculdade de se contribuir e com qual valor.
Nessa espécie e planejamento, a proteção social está em primeiro pla-
no, considerando as hipóteses de segurados obrigatórios do regime geral
de previdência social, com base de cálculo sedimentada em seu salário de
contribuição, que há de obedecer entre os valores mínimo e máximo ditados
em lei e portaria.
Assim, partimos de hipóteses reais de contribuições, existentes em de-
monstrativos de pagamentos e guias de contribuição da Previdência Social,
análise do CNIS quanto às informações ali repassadas, tudo com respaldo na
Lei de Custeio e no Decreto Regulamentador; verifica-se se estes valores foram
lançados corretamente e dentro do prazo legal, e se há lacunas, devendo em
cada caso, sua correção.
Uma questão importante pertinente a esta espécie de planejamento: de
quem é a responsabilidade tributária pelo recolhimento previdenciário, pois
é esta quem define a prova da remuneração assim como se a indenização será
interessante para fins de carência e/ou tempo de contribuição.
Dispõe o art. 30 da Lei de Custeio da Previdência Social, que a responsa-
bilidade da empresa é, letra “a”, arrecadar e recolher as contribuições de seus
empregados e trabalhadores avulsos a seu serviço, e, na letra “b”, também
se responsabiliza quanto ao contribuinte individual que lhe presta serviços.
Essa é a situação típica da responsabilidade tributária atribuída a terceiros,
e que de nenhuma forma os segurados empregado (incluindo o doméstico),
o avulso e o individual que presta serviços a pessoa jurídica, sofrerá algum
tipo de sanção, como por exemplo, não ter esse período computado como
tempo de contribuição, carência ou ter seu benefício negado.
Aliás, é nesse sentido que foi editado o Enunciado nº 2 do Conselho de
Recursos da Previdência Social: Não se indefere benefício sob fundamento
de falta de recolhimento previdenciário quando a responsabilidade tributária
não competir ao segurado.
Assim, o planejamento previdenciário financeiro auxilia preventivamente
na correção de ausência de salários de contribuição dentro do período básico
301
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

de cálculo, assim como poderá ser um suporte preliminar na ação revisional


junto ao Poder Judiciário.
No que tange ao contribuinte individual que presta serviços a pessoa
física, ou que prestou serviços a pessoas jurídicas até 31 de março de 200321,
a responsabilidade quanto ao recolhimento previdenciário sempre foi deste se-
gurado22, daí o porque se avaliar, no caso concreto, a relevância de se indenizar
o INSS se há competências sem recolhimento em que se opere a decadência.

CONCLUSÃO

Como demonstrado inicialmente, a legislação previdenciária passou por


profundas alterações tanto a nível constitucional quanto infraconstitucional,
tendo como primado a proteção social às hipóteses de invalidez, doença,
velhice, maternidade e morte.
Percebemos que após uma linha ascendente de proteção social, o le-
gislador passou por meio de leis ordinárias e medidas provisórias, a tolher
os benefícios previdenciários, aumentando a carência de 60 meses para 180
meses, quando da edição da Lei 8.213/92; extinguiu a aposentadoria por
tempo de contribuição proporcional em dezembro/1998; alargou o período
básico de cálculo e passando a considerar todos os salários de contribuição,
com possibilidade de exclusão dos 20% menores salários de contribuição em
novembro de 1999.
Ainda em 1999, foi criado ao fator previdenciário, que trouxe um deses-
tímulo ao requerimento precoce de aposentadoria por tempo de contribuição
integral.
Em 2015, como forma de compensar os valores pagos, o legislador es-
tabelece lei a permitir o afastamento do fator previdenciário no cálculo do
benefício de aposentadoria, e para tanto, necessário se computar uma soma
de pontos a conter o tempo mínimo de contribuição e a idade do requerente
quando do requerimento.

21 Com a edição da Lei nº 10.666/2003 o contribuinte individual que presta serviços a pessoa
jurídica tem a responsabilidade tributária quanto ao recolhimento, atribuída ao seu tomador
de serviços, nos termos do art. 4º.
22 Art. 30, inc. II da Lei nº 8.212/91.

302
Planejamento previdenciário como forma de proteção social

Atualmente, a Emenda Constitucional traz uma Nova Previdência, e


prevê regras de transição àqueles segurados que não se enquadram no rol de
proteção social descrito no art. 5º, inc. XXXVI da CF/88. Regras de transição
que exigem do segurado um tempo mínimo de contribuição, e deste requisito,
outros deverão ser cumulados: idade, pedágio de 50% ou 100% a depender
do tempo que faltava para se chegar ao mínimo de 30 ou 35 anos de tempo
de contribuição se mulher ou homem.
Por essa evolução que vem ao longo dos últimos anos restringindo o
acesso aos benefícios previdenciários, tem-se a conclusão quanto à importân-
cia de se fazer o planejamento previdenciário, partindo do patrimônio previ-
denciário do Requerente, e assim aplicar o melhor momento de se requerer
um benefício de aposentadoria, bem como estratégias legais para manter o
segurado/segurada com cobertura para acesso às prestações previdenciárias.
O Planejamento Previdenciário é ainda ferramenta que se usa também
para apurar condições que levaram ao indeferimento do benefício previden-
ciário, daí a importância do conhecimento prévio neste trabalho quanto aos
conceitos de carência, tempo de contribuição, segurado, qualidade de segurado
e tempo de contribuição.
Pelo mesmo raciocínio é possível também estabelecer a melhor estratégia
quanto à tese do recurso administrativo ou ação judicial, se estamos a falar
de benefício negado, ou então, se revisão administrativa ou também ação
judicial, se a concessão foi feita com erro/omissão.
Que o presente artigo desperte no leitor seu aprimoramento e bom uso
na advocacia diária, tornando seu atendimento ao cliente um trabalho de
excelência.
E que a proteção social do seu cliente se dê em adequação ao Direito
Adquirido, preconizado na Constituição Federal de 1988, assim como ao
enquadramento do correto tempo rege ato.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALERA, Wagner. Noções Preliminares de Direito Previdenciário – São Paulo: Quartier
Latin, 2004.
GEROMES, Sergio. Passo a Passo do cálculo do benefício previdenciário: antes e de-
pois da reforma da previdência / Sergio Geromes. – 1. ed. – São Paulo: LUJUR
Editora, 2020.

303
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário/Miguel Horvath Júnior – 7ª ed. – São


Paulo: Quartier Latin, 2008.
LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria especial: teoria e prática./
Adriane Bramante de Castro Ladenthin./5ª edição./ Curitiba: Juruá, 2020.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991;
Lei 8.212, de 24 de julho de 1991;
Decreto Regulamentador nº 3.048, de 6 de maio de 1999;
Instrução Normativa nº 77, de 22 de janeiro de 2015.

304
ANÁLISE DO ART. 24 DA
LEI N. 13.846/2019 ACERCA DA
NOVA FORMA DE COMPROVAÇÃO
DA UNIÃO ESTÁVEL PARA ACESSO
À PENSÃO POR MORTE

Miguel Horvath Júnior


miguelhorvathjr@uol.com.br
Professor do Departamento de Direito Público e do Programa
de Pós Graduação Stricto Sensu da PUC/SP.
Doutor em Direito Previdenciário pela PUC/SP.

Rômulo Pedrosa Saraiva Filho


romulo@romulosaraiva.com.br
Mestrando em Direito Previdenciário pela PUC/SP.
Advogado especialista em Previdência Social pela EsmatraVI
(Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região) e pela Esmafe/RS
(Escola de Magistratura Federal no Rio Grande do Sul); Professor de Direito
Previdenciário de Pós-Graduação Lato Sensu na Estácio de Sá.

Resumo: Este artigo tem por objetivo abordar a possível inconstitucio-


nalidade do art. 24 da Lei nº 13.846/2019, que alterou o art. 16 da
Lei de Benefícios, para acrescentar requisitos que dificultam o direito
de quem vive em união estável possa receber a pensão por morte,
enquanto que dependentes egressos de casamentos não sofrem essa
distinção. Com as mudanças promovidas, a própria existência da
união estável e a dependência econômica exigem início de prova
material contemporânea aos fatos, produzida em período não su-

305
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

perior a 24 meses anterior à data do óbito. A alteração realizada no


artigo impõe uma restrição a quem vive em união estável, tolhendo o
dependente de se valer exclusivamente de prova testemunhal. Além
disso, estabelece que a caracterização da união estável só surta efeitos
jurídicos se as provas forem anteriores aos últimos dois anos antes do
óbito. A lei federal traz inovações limitando no tempo as provas para
comprovação da união estável visando conluio ou eventual fraude.
Porém, tal limitação pode ser questionada no âmbito teórico dou-
trinário em face do possível choque com a garantia constitucional
fixada no art. 226 da Constituição Federal promovendo assimetria
entre integrantes da mesma classe de dependentes previdenciários
(casados e conviventes de união estável).

Palavras-chave: Pensão por morte. União estável. Lei nº 13.846. Incons-


titucionalidade. Cerceamento de defesa. Prova material. 24 meses.

Abstract: This article aims to address the possible unconstitutionality


of art. 24 of Law No. 13,846 / 2019, which amended art. 16 of the Law
of Benefits, to add requirements that hinder the right of those living in a
stable union to receive the death pension, while dependents who have
left the marriage do not suffer this distinction. With the changes pro-
moted, the very existence of a stable union and economic dependence
require the beginning of material evidence contemporary to the facts,
produced in a period not exceeding 24 months prior to the date of death.
The change made to the article imposes a restriction on those who live
in a stable union, preventing the dependent from using only testimonial
evidence. Furthermore, it establishes that the characterization of the
stable union only has legal effects if the evidence is older than the last
two years before death. The federal law brings innovations limiting the
time to prove the stable union for collusion or possible fraud. However,
such a limitation can be questioned in the theoretical doctrinal scope in
view of the possible clash with the constitutional guarantee established
in art. 226 of the Federal Constitution promoting asymmetry between
members of the same class of social security dependents (married and
living in a stable union).

Keywords: Death pension. Stable union. Law no 13.846/2019. Uncons-


titutionality. Defense fencing. Material proof. 24 months.

Sumário: Introdução −1. Exposição de Motivos da Medida Provisória nº


871/2019 −2. Crescimento da união estável no Brasil −3. Interdiscipli-
naridade dos ramos do direito: 3.1 Meio de prova admissível no direito
processual e constitucional; 3.2 União estável no direito de família −4.
Durabilidade e tempo mínimo de convivência −5. Controle difuso de
constitucionalidade − Conclusão − Referências bibliográficas.

306
Análise do art. 24 da Lei n. 13.846/2019

INTRODUÇÃO
A redação do art. 24 da Lei nº 13.846/2019 é um divisor de águas no
direito previdenciário no que diz respeito à instrumentalidade da prova de
um relacionamento entre duas pessoas que constituíram família, mas não
resolveram casar oficialmente. Seus efeitos legais serão melhor identifica-
dos agora − com o transcurso do tempo − quando as mortes de conviventes
de união estável começarem a se avolumar e surgindo a necessidade de os
dependentes procurarem as agências previdenciárias sob a égide da nova
legislação. O parágrafo 5º, do artigo 16, da Lei nº 8.213/1991, foi alterado
com requisito que contraria toda a orientação jurisprudencial e legal de
admitir todos os meios de prova em direito para o interessado provar ou
não se realmente teve uma união estável, mesmo quando a única prova dis-
ponível sejam os relatos das testemunhas. A partir de 2019 torna-se crucial
que haja “prova material contemporânea dos fatos” (é possível usar a prova
oral mas é necessário documentos do período de 24 meses anteriores ao
óbito) para obter acesso à pensão por morte. O objeto da análise do presente
artigo recai, portanto, na apreciação da constitucionalidade do art. 16, § 5º,
da Lei nº 8.213/1991 em razão da mudança realizada em 2019 percorrer
o conceito de união estável. O objetivo do presente artigo não é discorrer
sobre a restrição de 2015, mas as situações de dependentes − na condição
de conviventes de união estável − que viveram juntos em prazo superior
a dois anos, mas não possuem provas documentais suficientes a respaldar
essa constância e ficaram sem receber a pensão por morte (temporária aci-
ma de 4 meses ou vitalícia).Além do empecilho probatório, há outro que
também chama a atenção na nova redação da Lei de Benefício: a carência
de 24 meses para caracterizar a união estável, alterada em conjunto com a
necessidade da prova material.

1. EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA MEDIDA PROVISÓRIA


Nº 871/2019

A Medida Provisória nº 871, de 18 de janeiro de 2019, foi uma das


primeiras ações tomadas no início do Governo Bolsonaro, batizada de “MP
Antifraude do INSS”, uma micro reforma da Previdência com o objetivo de
reduzir o déficit previdenciário e ser instrumento de combate a fraudes, com
estimativa de economia aos cofres públicos.
307
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Nesse contexto, foi inserido dentro desse “pacote antifraude” mudanças


significativas nas regras de acesso à pensão por morte, sobretudo para quem
vive em união estável.
A MP 871 instituiu também o Programa Especial para Análise de Bene-
fícios com Indícios de Irregularidade, o Programa de Revisão de Benefícios
por Incapacidade, o Bônus de Desempenho Institucional por Análise de Be-
nefícios com Indícios de Irregularidade do Monitoramento Operacional de
Benefícios (BMOB) e o Bônus de Desempenho Institucional por Perícia Médica
em Benefícios por Incapacidade (BPMBI). Conforme o Boletim Estatístico da
Previdência Social de abril/20201, a pensão por morte ocupa a quarta posição
entre os benefícios com maior gasto mensal no âmbito do Regime Geral da
Previdência Social: aposentadorias (por idade, invalidez e tempo de contri-
buição) com R$ 195 milhões; auxílios (doença, acidente e reclusão) com R$
98 milhões; salário-maternidade com R$ 58 milhões; e pensão por morte com
R$ 33 milhões. Todavia, na Exposição de Motivos para criar a MP 871/2019,
o Ministro da Economia, Paulo Guedes, justificou que a comprovação do
direito da pensão por morte deve ser exigido início de prova documental
contemporânea de união estável e dependência econômica, “com o objetivo
de reduzir fraudes nos pedidos de pensões por morte, mediante o reconhecimento
da união estável ou da dependência econômica com base em prova testemunhal
ou ações simuladas” 2.
Em 2016, depois de já ter sido aprovada a MP 664/2015 que alterou a
vitaliciedade da pensão por morte como regra geral, entre outras providências,
fora realizado um estudo por consultores da Câmara e do Senado Federal,
intitulado Alternativas Para o Ajuste Fiscal − Medidas Estruturantes na Área da
Previdência3, que sugeriria mudanças nas regras de concessão de pensão a fim

1 BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Boletim Estatístico da Previdência Social – Vol. 25


nº 04. Benefícios concedidos por clientele segundo grupos de espécies. Disponível em: <<http://
sa.previdencia.gov.br/site/2020/05/Beps042020_trab_Final_sem_TMC.pdf>>. Acesso em: 6
jun. 2020.
2 BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Exposição de Motivos EMI nº 00007/2019 ME C.
Civil/PR. Disponível em: <<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/medpro/2019/medidapro-
visoria-871-18-janeiro-2019-787627-exposicaodemotivos-157299-pe.html>>. Acesso em: 6
jun. 2020.
3 “As regras de pensão por morte no Brasil são as mais benevolentes do mundo. Isso faz com
que tenhamos gastos cada vez maiores com esse tipo de benefícios. As comparações da nossa
legislação previdenciária com a maioria dos países mostram que o Brasil possui regras in-

308
Análise do art. 24 da Lei n. 13.846/2019

de gerar no RGPS uma economia de R$ 171 bilhões durante dez anos. Uma
das justificativas é que a pensão por morte possui regras elásticas no Brasil
e tem despesas com pensões muito elevadas na comparação internacional.
Esse levantamento de gastos da pensão por morte serviu de referencial para
a nova medida provisória. E, com base nesse clima de insatisfação com os
gastos, a MP nº 871/2019 incorporou a reforma do benefício da pensão por
morte tendo como principal inovação legislativa acrescentar no art. 16 da
Lei nº 8.213/1991 uma série de condicionantes para que o companheiro ou
a companheira na comprovação do seu direito e do relacionamento vivido
em união estável, sob fundamento de regras benevolentes e desestímulo de
fraudes, o que pode ter grande implicação social levando em consideração o
crescimento da união estável no país.

2. CRESCIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL NO BRASIL

O tema em estudo tem grande repercussão social e econômica, uma vez


que é significativo o número de brasileiros aderindo a união estável. De acordo
com o Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF)4, entidade
que congrega os cartórios de notas de todo o Brasil, mais de um terço dos
casais optou por viver uma união estável em detrimento do casamento civil,
ou seja, 36,4% do total dos relacionamentos no Brasil são consensuais, espon-
tâneos e sem a chancela burocrática do Estado. Embora os números do CNB
apontem o crescimento de interessados em união estável, esses dados foram
contabilizados a partir dos companheiros que demonstraram interesse em

justificadamente frágeis para a concessão e manutenção de pensões, bem como inadequadas


em relação a vários pontos de vista, como financeiro e de incentivos”. BRASIL. SENADO.
Alternativas Para o Ajuste Fiscal − Medidas Estruturantes na Área da Previdência. Disponível
em: <https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2015/estc03-2015>. Acesso
em: 6 jun. 2020, p. 42.
4 “Os casais estão preferindo se juntar a se casar, segundo dados da Censec, Central de Da-
dos do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF), entidade que congrega os
cartórios de notas. Os tabelionatos de notas de todo o Brasil registraram um aumento de
57% no número de formalizações de uniões estáveis de 2011 (87.085) a 2015 (136.941),
enquanto os casamentos cresceram aproximadamente 10% no mesmo período, segundo o
Sistema IBGE de Recuperação Automática (Sidra), passando de 1.026.736 para 1.131.734
atos realizados” COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL. União estável início e fim. Publicado
em 9 mar 2019. Disponível em: <<https://www.cnbsp.org.br/?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lh-
cw==&in=MTc3MDY=&MSG_IDENTIFY_CODE>>. Acesso em: 29 mar 2020.

309
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

fazer o registro no cartório de notas, mas não contempla o universo daqueles


que vivem em união estável e não formalizaram nada no cartório. Por isso, a
quantidade de brasileiros que vivem em união estável é maior que os dados
oficiais consignados no colégio notarial. A alteração introduzida pelo art. 24
da Lei nº 13.846/2019 afetará todos aqueles que vivem em união estável e
precisem requerer pensão por morte.

3. INTERDISCIPLINARIDADE DOS RAMOS DO DIREITO

O tema nuclear do artigo envolve o benefício de pensão por morte (área


previdenciária), mas tem uma interseção oportuna com outros ramos jurí-
dicos, por envolver assuntos de união estável (direito de família e constitu-
cional) e meios de prova (processo civil e também constitucional). Por meio
dessa interdisciplinaridade, busca-se interação entre as disciplinas da ciência
jurídica, possibilitando coerência e harmonia no conhecimento, integração
entre conceitos, visão mais ampla da realidade e melhor contextualização
do problema. Por essa razão, faz-se breve incursão sobre o amadurecimento
dos conceitos de “meios de prova” e “união estável” nessas correspondentes
áreas do saber.

3.1 Meio de prova admissível no direito processual e


constitucional
O acesso ao contraditório e à ampla defesa são direitos fundamentais e,
portanto, alçados ao patamar de cláusula pétrea, insuscetível de ser alterada
ou sofrer ameaça de mudança. A intenção é garantir que qualquer cidadão
tenha condições de se defender no Estado Democrático de Direito e essa
garantia seja perene.
A Lei nº 9.784/1999, conhecida como Lei do Processo Administrativo
Federal, reflete o preceito constitucional, ao garantir no seu art. 2º e parágrafo
único, inciso I, que a Administração Pública deve respeitar o princípio da
legalidade e a ampla defesa. 5

5 “Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade,


finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contra-
ditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos

310
Análise do art. 24 da Lei n. 13.846/2019

Surgindo um possível antinomia entre a previsão da Lei do Processo


Administrativo e da previsão do art. 24 da Lei 13.846/2019. Teria o art. 24
da Lei nº 13.846/2019 revogado tacitamente o art. 2º, § 1º, I, da Lei de Pro-
cesso Administrativo Federal? Como o direito é dialético sempre teremos a
possibilidade de construção de duas formas de resposta.
Uma no sentido da prevalência da nova lei, uma vez que estabelece forma
de prova específica de determinada relação jurídica além de seu caráter espe-
cial. Estando autorizada a prever e determinar uma forma de prova tarifada.
Como já efetivada pelo art. 55, § 3º da Lei n. 8.213/91.
Outra no sentido de que o art. 24 da Lei nº 13.846/2019 ofende a livre
forma da produção de provas prevista na Constituição Federal na lei de pro-
cesso administrativo federal e no Código de Processo Civil. Destaque-se que
o atual Código de Processo Civil utiliza o sistema de persuasão racional (art.
371) e o sistema cooperativo (art. 6º) em que juiz e partes atuam juntos, na
construção do contraditório do resultado do processo e na busca da verdade.
E também assegura às partes o direito de empregar todos os meios legais para
provar seu direito (art. 369 do CPC).6
O ponto nodal em relação à alteração legal apresentada diz respeito à
situação de que nem sempre o dependente previdenciário dispõe de docu-
mentos que se reportem à toda constância da relação afetiva e nessas horas
a prova testemunhal pode ser decisiva para suprir lacunas ou dúvidas do
relacionamento não acobertada por documentos. E vice-e-versa. Às vezes há
limitação de testemunhas (ou inexistência) e as provas documentais são cru-
ciais, preponderantes ou exclusivas para provar os elementos da união estável.
A limitação quanto ao uso da prova testemunhal (possibilidade autorizada
legalmente nos casos de motivo de força maior ou caso fortuito ou quando
apresentados documentos no período de 24 meses anteriores ao óbito) como
opção de exercitar o direito provoca uma reflexão importante. Diante da
possibilidade de se criar mecanismos antifraudes e a limitação da forma de
comprovação do direito o que deve prevalecer?

administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I − atuação conforme a lei e
o Direito;”.
6 Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmen-
te legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em
que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.

311
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

A limitação da prova testemunhal na forma do art. 24 da Lei nº 13.846/2019


demonstra maior peso da norma material em detrimento das previsões pro-
cessuais. Diante da situação posta caberá ao Supremo Tribunal Federal se
posicionar sobre a constitucionalidade ou não da Lei nº 13.846/2019 neste
ponto em específico. Além de que o tratamento da união estável afeta várias
relações jurídicas.

3.2 União estável no direito de família


A Constituição Federal de1988 equiparou o casamento à união estável.
Essa modalidade de entidade familiar passou a ter proteção do Estado, ficando
a decisão do planejamento familiar ser de livre escolha do casal (§§ 3º, 7º e
8º do art. 226).7 Após a Constituição Federal encampar a proteção da união
estável surgiram as normas infralegais. Em 1994, a primeira regula-
mentação no direito de família da união estável veio com a Lei nº 8.971 que
criou o requisito temporal de 5 anos8 como condicionante da caracterização
da relação. Em 1996, depois de muitas críticas sobre a existência do tempo
mínimo de convivência, a legislação (Lei nº 9.278) suprimiu esse requisito
temporal, bem como previu no seu art. 8º que – a qualquer momento – é
admissível converter9 a união estável em casamento; outro sinal de que a
união estável não está atrelada a tempo mínimo para ser caracterizada.
Em 2002, numa evolução legislativa, o Código Civil aperfeiçoou as ca-
racterísticas da união estável (nos artigos 1.723 a 1.727 e 1.790) e legitimou

7 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3º Para efeito da
proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.§ 7º Fundado nos princípios da
dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre
decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para
o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais
ou privadas. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que
a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
8 “Art. 1º A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divor-
ciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se
do disposto na Lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não constituir nova união e
desde que prove a necessidade”.
9 “Art. 8° Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a con-
versão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da
Circunscrição de seu domicílio”.

312
Análise do art. 24 da Lei n. 13.846/2019

as repercussões patrimoniais, mas sem impor qualquer limitação de tempo


mínimo de convivência da união estável. O Código Civil − a principal norma
infraconstitucional que regula a união estável no Brasil − condiciona que a
caracterização não é o requisito tempo, mas deve constar atributos como ser
“reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mu-
lher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família” (art. 1.723).
Além disso, previu como indispensável para validade do casamento civil
a existência de duas testemunhas para corroborarem a cerimônia (art. 1.534,
CC), evidenciando a importância da testemunha como elemento legitimador
da união entre duas pessoas. Quem não deseja casar-se no civil, é possível
providenciar a escritura pública declaratória de união estável – que possui
valor probante – por ser documento dotado de fé pública e instrumento útil
para comprovar convivência contínua, pública e duradoura, com fins de
constituição familiar (conforme o art. 1.723 do Código Civil). O tabelião tem
o direito de emitir esse documento com fé pública (Lei nº 8.935/1994, art.
7º, I), baseada na vontade das partes.
Com a edição da Lei nº 13.846/2019, não se sabe como vai ficar a eficácia
da escritura pública para fins de prova e o valor que o Poder Judiciário atribuirá
a esse instrumento para reconhecer o direito da pensão por morte, uma vez
que o § 5º do art. 16 com a redação ada pela Lei n. 13.846/2019 exige prova
nos últimos dois anos anteriores ao óbito, para caracterizar a união estável
que gerará o direito de percepção da pensão por morte por parte do compa-
nheiro sobrevivente. Se escritura pública for expedida no início dos dois anos,
pela previsão da no valei será necessária a juntada de mais documentos, pois,
mesmo considerando a fé pública da escritura, inexiste na lei a dispensa de
prova documental para os meses restantes até completar os 24 meses.
Um dos argumentos no tocante à inconstitucionalidade diz respeito à
assimetria gerada entre o casamento e união estável com a modificação in-
troduzida pela Lei 13.846/2019.

4. DURABILIDADE E TEMPO MÍNIMO DE CONVIVÊNCIA


A doutrina tem apontado que a durabilidade da relação é um dos aspectos
cruciais na formação do convencimento para distinção do que seria união
estável ou não. Rodrigo da Cunha Pereira aponta que um dos elementos ca-
racterizadores do companheirismo é a durabilidade “desta relação para que
313
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

se possa medir suas consequências, sua extensão e seus efeitos, especialmente


patrimoniais” 10.
Rainer Czajkowski considera que o tempo de convivência é importantís-
simo para estabelecer o tipo de relacionamento, pois considera que o ‘amor
distante é amor vazio’:

“Sob outro prisma, a assistência moral entre os parceiros está fortemente


vinculada à convivência, ou seja, à presença de um na vida do outro. A
convivência é elemento conceitual da entidade familiar informal (art. 1º da
Lei n. 9.278); mas deve ser bem compreendida. É extremamente difícil ima-
ginar uma união livre onde não haja nenhuma fração de convivência entre
os parceiros, onde a presença de um em face do outro se afaste totalmente
do aspecto ‘proximidade física’. Amor distante é amor vazio, é amor não
realizado. Convivência explica-se bem por participação de um na vida do
outro, é entrosamento de vidas. Ausências eventuais não descaracterizam a
convivência, mesmo que prolongadas. Viagens embaladas com a saudade
do retorno não são viagens de adeus. A convivência ditada pela lei não
deve ser entendida como exigência de moradia comum, nem como neces-
sidade de vida em comum more uxorio. Um homem e uma mulher podem
conviver mesmo que habitem residências distintas. Não convém engessar a
união livre com restrição que até no casamento começa a ser discutível” 11.

É inegável que o fator tempo é muito importante para caracterizar a união


estável e, apesar desses doutrinadores tentarem auxiliar nessa parametrização
conceitual, é o Poder Judiciário quem tem sacramentado no caso concreto
a definição do conceito subjetivo de durabilidade, tempo exíguo, análise da
affectio societatis e do estado de posse entre homem e mulher, vivendo como
se casados fossem. Ou mesmo distinguir sutilezas conceituais entre o que
é união estável, namoro simples ou qualificado12; este distingue-se por ser

10 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 6ª ed. Belo Horizonte: Del Rey.
1996 p. 29.
11 CZAJKOWSKI, Rainer. União livre. Curitiba: Juruá.1996, p. 59.
12 “Na relação de namoro qualificado os namorados não assumem a condição de conviventes
porque assim não desejam, são livres e desimpedidos, mas não tencionam naquele momento
ou com aquela pessoa formar uma entidade familiar. Nem por isso vão querer se manter
refugiados, já que buscam um no outro a companhia alheia para festas e viagens, acabam
até conhecendo um a família do outro, posando para fotografias em festas, pernoitando um
na casa do outro com frequência, ou seja, mantêm verdadeira convivência amorosa, porém,

314
Análise do art. 24 da Lei n. 13.846/2019

uma relação de afeto mútuo e até duradouro, mas o casal não tem o menor
interesse de constituir família juntos. Já o namoro simples “se enquadra em
um relacionamento aberto, às escondidas ou sem compromisso, e não se
confunde com a união estável” 13. Desde 1996, o tempo mínimo de 5 anos foi
expurgado do ordenamento jurídico do direito de família como caracterizador
de união estável e ficou em aberto o critério para configuração do relacio-
namento. Em 2002, o Código Civil endossou o critério subjetivo para aferir
a união estável, que seria a percepção dos atributos fixados no art. 1.723 do
Código Civil: “comprovar convivência contínua, pública e duradoura, com
fins de constituição familiar”. A partir dos requisitos subjetivos apontados no
Código Civil, qual seria a exata compreensão de “convivência duradoura”?
A lei não trata especificamente o critério objetivo de “convivência du-
radoura”. E quem vem fazendo a modulação desse parâmetro é sobretudo
o Superior Tribunal de Justiça – responsável no país pela interpretação da
legislação federal. Há ampla liberdade na lei, já que ela não define o critério
temporal e objetivo; o STJ, portanto, vem construindo a tolerância mínima
ou mesmo apontando a exiguidade temporal para saber o que é ou não união
estável. Além da durabilidade, alguns julgamentos do Poder Judiciário apontam
que o juízo de valor sobre o chamado “requisito acidental”, que, embora não
seja obrigatório de existir no relacionamento, é importante no enquadramento
da união estável − se presentes na experiência de vida de cada pessoa. São
aspectos como: o tempo de convivência, a existência de filhos14, a constru-
ção patrimonial em comum, a lealdade e a coabitação. Importante que tais
aspectos não são pressupostos para caracterizar a união estável. Inclusive, o
Supremo Tribunal Federal já os considerou como prescindíveis, a exemplo da

sem objetivo de constituir família”(STJ, REsp 1.263.015/RN, 3ª Turma, Rel. Min Nancy An-
drighi, julgado em 19/6/2012, DJe 26/6/2012).
13 CABRAL, Maria. Namoro simples, namoro qualificado e a união estável: o requisito subjetivo de
constituir família. Publicado em: set. 2014. Disponível em: <http://mariateixeiracabral.jus-
brasil.com.br/artigos/135318556/namoro-simples-namoro-qualificado-e-a-uniao-estavel-o-
-requisito-subjetivo-de-constituir-familia>. Acesso em: 5 abr. 2020.
14 “A só existência de um filho comum não significa o reconhecimento automático da vontade
de formar família, porque a prole pode ter vindo por descuido dos namorados ou ficantes, ou
pelo desejo parental de um dos parceiros. Lembra Victor Reina que a simples cópula não é
objeto do pacto de constituição de uma família, seja ela matrimonial ou de fato, já que o ob-
jeto formal do consentimento de querer estabelecer uma entidade familiar é a típica relação
intersubjetiva”. MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense,
2011, pag. 1046.

315
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

necessidade de coabitação15. Mas é verdade que, se existirem, eles auxiliam


e possibilitam que o julgador tenha melhor substrato para exercer seu juízo
cognitivo e de convencimento.
No entanto, há compreensão de que a união estável necessita também
de estabilidade de convivência e certa durabilidade para migrar da etapa an-
tecedente do namoro até atingir os atributos mencionados no art. 1.723 do
Código Civil. Já o namoro qualificado pode por exemplo durar 10 anos e,
mesmo assim, não ser uma união estável. Juliana Giachin destaca:
“Hoje em dia um casal de namorados pode ter filhos e não ter união
estável. Hoje em dia podemos ter uma união estável que se caracterize em
seis meses e um namoro qualificado de dez anos. Não existe tempo máximo
para união estável. O que importa são os conceitos de convivência pública
notória, a vontade de constituir a família que pode se dar, por exemplo em
alguns meses. O mesmo vale para casais homoafetivos, que também podem
constituir união estável em cartório” 16.

No julgamento do Recurso Especial (RESP 1.761.887/MS) o Ministro Luis


Felipe Salomão, afastou o pedido de reconhecimento de união estável por con-
vivência de duas semanas, pois “é impossível a qualquer casal estabelecer um
vínculo de dependência material, espiritual e socioafetivo, que os assemelhe
ao casamento civil, tal qual exige a legislação federal, para reconhecimento
da relação estabilizada e duradoura”.
Portanto, observa-se que o STJ procura ter o cuidado de diferenciar a
união estável de namoro simples ou qualificado, mas usando o requisito de
convivência como um dos principais balizadores. O critério “tempo” tem as-
pecto relevante, mas deve ser conjugado com outros fatores previstos no art.
1.723 do CC, pois os precedentes citados apontam que uma relação muito
curta é só namoro e, mesmo uma relação decenal, pode ser namoro qualifi-
cado e não união estável.
É importante mencionar que a legislação previdenciária por muito tem-
po (de 1966 a 1991) foi coerente com a respectiva legislação civil aplicável

15 O requisito de coabitação não é necessário para configurar a união estável, como restou
apaziguado na Súmula nº 382 do STF: “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio,
não é indispensável à caracterização do concubinato”.
16 GIACHIN, Juliana. Não confunda namoro qualificado com união estável. Disponível em: <<
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/nao-confunda-namoro-qualificado-
-com-uniao-estavel/>>Acesso em: 01 abr 2020.

316
Análise do art. 24 da Lei n. 13.846/2019

à época, que impunha tempo mínimo para caracterizar o companheirismo e


acesso ao benefício previdenciário.17
Em verdade, a partir de 1991 a legislação previdenciária foi mais vanguar-
dista que a legislação civil, uma vez que a Lei nº 8.213/1991 – já influenciada
pela valorização que a união estável obtivera com a nova ordem do art. 226
da Constituição Federal de 1988 − rompeu com o critério quinquenal como
definidor do companheirismo, enquanto que a legislação civil só aboliu tal
requisito em 1996 com a Lei nº 9.278.
Embora o antigo art. 16 da Lei nº 8.213/1991 apenas tenha autorizado
a obtenção de ganhar a pensão por morte se provar a união estável, critério
este subjetivo, dando margem à análise de todos os aspectos (convivência
pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição
de família), a regulamentação desse dispositivo em 1999 por meio do Decreto
nº 3.04818 previa que a união estável poderia ser provada se o dependente
apresentasse cabalístico de três documentos referentes ao período da união
estável, independente da data de cada um (se expedido no início, no meio
ou no fim da relação afetiva). Regra prevista no art. 22, § 3º, do Decreto nº
3.048/1999 redação originária.19 Como à época tal previsão estava apenas
no Decreto Regulamentar o Poder Judiciário erigiu construção no sentido

17 Lei nº 3.807/1960: “Art. 11. Consideram-se dependentes dos segurados, para os efeitos desta
Lei:
I − a esposa, o marido inválido, a companheira, mantida há mais de 5 (cinco) anos, os filhos
de qualquer condição menores de 18 (dezoito) anos ou inválidos, e as filhas solteiras de
qualquer condição, menores de 21 (vinte e um) anos ou inválidas”. Decreto nº 77.077/1976:
“Art 13 Consideram-se dependentes do segurado, para os efeitos desta Consolidação: I − a
esposa, o marido inválido, a companheira mantida há mais de 5 (cinco) anos, os filhos de
qualquer condição menores de 18 (dezoito) anos ou inválidos e as filhas solteiras de qual-
quer condição menores de 21 (vinte e um) anos ou inválidas”. Decreto nº 89.312/1984:
“Art. 10. Consideram-se dependentes do segurado: I − a esposa, o marido inválido, a
companheira mantida há mais de 5 (cinco) anos, o filho de qualquer condição menor de 18
(dezoito) anos ou inválido e a filha solteira de qualquer condição menor de 21 (vinte e um)
anos ou inválida”.
18 Súmula 63 da TNU: “A comprovação de união estável para efeito de concessão de pensão
por morte prescinde de início de prova material”.
19 Destacamos que o Decreto n.º 10.410 de 30 de junho de 2020 deu nova redação ao artigo 22,
§ 3º do Decreto n. 3.048/1999. § 3º Para comprovação do vínculo e da dependência econô-
mica, conforme o caso, deverão ser apresentados, no mínimo, dois documentos, observado
o disposto nos § 6º-A e § 8º do art. 16, e poderão ser aceitos, dentre outros

317
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

de que aquela previsão era restritiva ao direito de ampla defesa do depen-


dente previdenciário, admitindo que a união estável também pudesse ser
provada, mesmo quando a prova testemunha seja o único meio (Súmula
63 da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados
Especiais Federais20).
Ocorre que no atual cenário temos novo panorama uma vez que a de-
terminação é integrante do artigo 16, § 5 º da Lei n.º 8.213/91. A norma pre-
videnciária alterada construiu a necessidade de prova material praticamente
resumida à necessidade de o requerente apresentar documentos. Gerando um
aparente conflito com a garantia constitucional da ampla defesa e do con-
traditório com o uso dos meios de prova em direito admissíveis e a previsão
protetiva do artigo 226.

20 “Art. 22. A inscrição do dependente do segurado será promovida quando do requerimento


do benefício a que tiver direito, mediante a apresentação dos seguintes documentos: […]
§ 3º Para comprovação do vínculo e da dependência econômica, conforme o caso, devem
ser apresentados no mínimo três dos seguintes documentos: (Redação dada pelo Decreto nº
3.668, de 2000)
I − certidão de nascimento de filho havido em comum;
II − certidão de casamento religioso;
III − declaração do imposto de renda do segurado, em que conste o interessado como seu
dependente;
IV − disposições testamentárias;
V − anotação constante na Carteira Profissional e/ou na Carteira de Trabalho e Previdência
Social, feita pelo órgão competente;
VI − declaração especial feita perante tabelião;
VII − prova de mesmo domicílio;
VIII − prova de encargos domésticos evidentes e existência de sociedade ou comunhão nos
atos da vida civil;
IX − procuração ou fiança reciprocamente outorgada;
X − conta bancária conjunta;
XI − registro em associação de qualquer natureza, onde conste o interessado como depen-
dente do segurado;
XII − anotação constante de ficha ou livro de registro de empregados;
XIII − apólice de seguro da qual conste o segurado como instituidor do seguro e a pessoa
interessada como sua beneficiária;
XIV − ficha de tratamento em instituição de assistência médica, da qual conste o segurado
como responsável;
XV − escritura de compra e venda de imóvel pelo segurado em nome de dependente;
XVI − declaração de não emancipação do dependente menor de vinte e um anos; ou
XVII − quaisquer outros que possam levar à convicção do fato a comprovar”.

318
Análise do art. 24 da Lei n. 13.846/2019

5. CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

Até a presente data os legitimados a proporem a Ação Direta de Consti-


tucionalidade (ADi)21 não exerceram sua prerrogativa no tocante ao controle
concentrado.
Podendo a discussão ser efetivada através do controle difuso ou incidental
de constitucionalidade. O controle difuso ou incidental de constitucionalidade
e convencionalidade é garantia constitucional prevista no art. 5º, XXXV, da CF,
quando prevê que “a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito”. Portanto, é possível o crivo do Judiciário para aferir
se norma infraconstitucional é compatível com a Constituição da República.
Qualquer juiz ou tribunal possui competência para exercer controle difuso
ou incidental de constitucionalidade e controle de convencionalidade ao
apreciar, incidentalmente, de ofício ou mediante provocação do interessado,
questão relacionada com a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de
lei ou ato normativo.
Em “Observações iniciais sobre a Medida provisória n° 871”, o Professor e
Juiz Federal Rafael Vasconcelos Porto transpareceu no artigo que as medidas
decorrentes da primeira minirreforma previdenciária do Governo Bolsonaro
causaram impressões positivas. Especificamente sobre o assunto tratado
considera que a mudança é excelente inovação para reduzir a ocorrência de
fraudes, in verbis:

“Destacamos, por fim, que parcela da jurisprudência, corrente à qual nos


filiamos, já vinha exigindo na união estável alguma demonstração material
de vida em comum (como, por exemplo, de mesma residência), ciente de
que a exigência apenas de prova testemunhal causa enorme insegurança.

21 Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de cons-
titucionalidade: (Redação da EC 45/2004): I − o Presidente da República; II − a Mesa do Se-
nado Federal; III − a Mesa da Câmara dos Deputados; IV − a Mesa de Assembleia Legislativa
ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (Redação da EC 45/2004)V − o Governador de
Estado ou do Distrito Federal; (Redação da EC 45/2004) VI − o Procurador-Geral da Repú-
blica; VII − o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII − partido político
com representação no Congresso Nacional; IX − confederação sindical ou entidade de classe
de âmbito nacional.
§ 3º Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de nor-
ma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá
o ato ou texto impugnado.

319
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Acreditamos, destarte, consistir em excelente inovação, que vai auxiliar


muito na redução de fraudes” 22.

A situação retratada antes da minirreforma era acobertada pelos efeitos


extremados da Súmula n.º 63 da TNU que tutelava o reconhecimento da
união estável independentemente de qualquer testemunha, bem como havia
corrente de entendimento mais austera que exigia a apresentação de três
documentos para caracterizar a união estável. O novo cenário legal muda
radicalmente tais matizes.
Compulsoriamente, a Lei nº 13.846/2019 exige como regra geral prova
material e contemporânea aos fatos, anteriores aos dois anos à data do óbito,
sob pena de, não conseguindo, frustrar a pretensão de ganhar a pensão por
morte.
Por outro giro Priscilla Milena Simonato de Miguelli destaca que a exi-
gência documental “afasta o direito previdenciário daqueles que são compa-
nheiros, pois, muitas vezes, a união estável é pautada na total informalidade”
23
. Simonato analisa que não é objetivo do constituinte criar formalidade ou
objeção para os relacionamentos de união estável; o Estado, ciente das novas
relações sociais, deve proteger a família: “o que importa para a sociedade é a
realidade e não a redução do plano fático ao documental”.

CONCLUSÃO
As mudanças promovidas pelo art. 24 da Lei n.º 13.846/2019 inserindo o
parágrafo 5º ao artigo 16 da Lei n.º 8.213/1991 alteraram de forma significativa
a forma da comprovação da união estável para fins de acesso à pensão por
morte. Houve a alteração da lei para exigir prova tarifada. Surgindo possível
antinomia entre a previsão da Lei do Processo Administrativo e da previsão
do art. 24 da Lei 13.846/2019. Antinomia que será analisada primeiro pelo
Superior Tribunal de justiça e posteriormente em face de eventual questiona-
mento acerca da inconstitucionalidade da mudança introduzida pelo Supremo

22 PORTO, Rafael Vasconcelos. Previdência: observações iniciais sobre a MP 871. Caxias do Sul:
Juris Plenum Previdenciária, v. 7, n. 25, fev-2019, p. 70.
23 MIGUELI, Priscilla Milena Simonato de. Pensão por morte e os dependentes do regime geral
de previdência social: de acordo com a reforma da previdência (EC 103/2019). Curitiba: Juruá,
2020, p. 84.

320
Análise do art. 24 da Lei n. 13.846/2019

Tribunal Federal seja em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ou pelo


exercício do controle difuso ou incidental de constitucionalidade. Como forma
de se garantir segurança jurídica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável, antiga forma de casamento de fato. São Paulo:
Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 90, 1995.
BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Boletim Estatístico da Previdência Social – Vol.
25 nº 04. Benefícios concedidos por clientele segundo grupos de espécies. Disponível
em: <<http://sa.previdencia.gov.br/site/2020/05/Beps042020_trab_Final_sem_TMC.
pdf>>. Acesso em: 6 jun. 2020.
BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Exposição de Motivos EMI nº 00007/2019 ME
C. Civil/PR. Disponível em: <<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/medpro/2019/
medidaprovisoria-871-18-janeiro-2019-787627-exposicaodemotivos-157299-pe.
html>>. Acesso em: 6 jun. 2020.
BRASIL. Sancionada com vetos medida provisória que combate fraudes no INSS. Publica-
do em: jun. 2019. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/mate-
rias/2019/06/19/sancionada-com-vetos-medida-provisoria-que-combate-fraudes-
-no-inss>. Acesso em: 5 abr. 2020.
BRASIL. SENADO. Alternativas Para o Ajuste Fiscal − Medidas Estruturantes na Área da
Previdência. Disponível em: <<https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/
estudos/2015/estc03-2015>>. Acesso em: 6 jun. 2020.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.263.015/RN. 3ª Turma, Rel. Min
Nancy Andrighi, julgado em 19/6/2012, DJe 26/6/2012.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1454643/RJ, Rel. Ministro MARCO
AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/03/2015, DJe 10/03/2015
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 97.818/RJ. Rel. Min. Soares Munhoz.
Julgado em 30.11.1982
CABRAL, Maria. Namoro simples, namoro qualificado e a união estável: o requisito subjetivo
de constituir família. Publicado em: set. 2014. Disponível em: <http://mariateixeira-
cabral.jusbrasil.com.br/artigos/135318556/namoro-simples-namoro-qualificado-e-a-
-uniao-estavel-o-requisito-subjetivo-de-constituir-familia>. Acesso em: 5 abr. 2020.
COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL. União estável início e fim. Publicado em 9 mar 2019.
Disponível em: <<https://www.cnbsp.org.br/?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&i
n=MTc3MDY=&MSG_IDENTIFY_CODE>>. Acesso em: 29 mar 2020.
CZAJKOWSKI, Rainer. União livre. Curitiba: Juruá.1996.

321
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

GIACHIN, Juliana. Não confunda namoro qualificado com união estável. Disponível em:
<< https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/nao-confunda-namoro-
-qualificado-com-uniao-estavel/>>Acesso em: 01 abr 2020.
MIGUELI, Priscilla Milena Simonato de. Pensão por morte e os dependentes do regime
geral de previdência social: de acordo com a reforma da previdência (EC 103/2019).
Curitiba: Juruá, 2020.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 6ª ed. Belo Horizonte: Del
Rey. 1996.
PORTO, Rafael Vasconcelos. Previdência: observações iniciais sobre a MP 871. Caxias do
Sul: Juris Plenum Previdenciária, v. 7, n. 25, p. 69-76, fev-2019.
ROCHA Joaquim Freitas. GOMES, Noel. A falta de qualidade legislativa como obstáculo à
aplicação jurisdicional: o caso paradigmático da lei dos compromissos e dos pagamentos
em atraso (LCPA). Minho: Revista Julgar, 2013.

322
“EU, DANIEL BLAKE”: O VIÉS DA
REABILITAÇÃO PROFISSIONAL SOB A LUZ
DA CRÍTICA DO DIREITO E CINEMA

Miriam Olivia Knopik Ferraz1

Sumário: 1. Introdução − 2. Direito e cinema: “eu, Daniel Blake”


como paradigma ficcional para compreensão do direito previden-
ciário − 3. O viés da reabilitação profissional sob a luz da crítica
do direito e cinema − 4. Conclusão − 5. Referências.

1. INTRODUÇÃO
“Eu, Daniel Blake, sou um cidadão, nada mais, nada menos”.2 Esta é a
frase final do filme: Eu, Daniel Blake, em que o personagem tenta, até o fim,
ver algum benefício ser concedido a ele. A interação entre Direito e Cinema é
útil para humanizar o direito, mas também, para transgredi-lo e denunciá-lo.
Nesse sentido, por meio da metodologia lógico-dedutiva utiliza-se
esse referencial cinematográfico para denunciar a realidade da reabilitação

1 Doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná − Brasil (bolsista


PROSUP), Mestre e Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
− Brasil. Especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Consti-
tucional. Editora Adjunta da Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Aca-
demia Brasileira de Direito Constitucional. Coordenadora Adjunta do Grupo de Estudos
em Análise Econômica do Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná- Brasil.
Professora da Universidade Positivo, FAE Business School e da UNIFACEAR. Advogada do
Kozikoski, Paiva dos Santos & Bertoncini Advogados Associados. Fundadora do NÔMA –
Norma e Arte. E-mail: m.okf@hotmail.com.
2 LOACH, Ken. Eu, Daniel Blake. Inglaterra, 2016.

323
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

profissional no brasil. A pesquisa breve foi subdividida em duas análises:


o direito e cinema, abordando sobre a metodologia de análise geral do
direito e literatura e, em específico o direito e cinema, para verticalizar no
estudo da obra “Eu, Daniel Blake”. Posteriormente, adentra-se no tópico
específico sobre a reabilitação profissional, no qual demonstra-se por meio
do espelho à pesquisa qualitativa de Melina Trento Vendrameto Tessarro na
Agência de Previdência Social de Jaú/SP, o quanto a realidade está próxima
da ficção.

2. DIREITO E CINEMA: “EU, DANIEL BLAKE” COMO


PARADIGMA FICCIONAL PARA COMPREENSÃO DO
DIREITO PREVIDENCIÁRIO
Diante da necessidade de invocar interpretações e conteúdos não encon-
trados nos códigos e manuais e, considerando que o operador do Direito deve
balancear os interesses sociais valendo-se de uma fundamentação pragmática,
bem como que o direito não é capaz de sustentar apenas uma única resposta
diante de um caso concreto e sua utilização não se resume à mera aplicação
mecânica da lei, propõe-se a presente pesquisa fundada no estudo de Direito
e Cinema, com o objetivo de estimular a construção e o fortalecimento de
pontes entre o Direito e outras formas de arte.
Considerando que a hermenêutica jurídica não comporta apenas o positivis-
mo, o estudo referente à relação entre Direito e Cinema tem por fim aproximar
as relações das matérias de conteúdo jurídico à sociedade através de filmes,
séries, documentários e outras expressões que narram realidades diversas.
Ademais, o direito, assim como o cinema, em suas mais variadas ex-
pressões, tem como fator estruturante a linguagem. É por meio da lingua-
gem que a compreensão e a interpretação do mundo se tornam possível. O
cinema, portanto, representa um papel fundamental para que, em conjunto
com o direito, se permita uma maior compreensão a respeito daquilo que
se estuda.
O estudo relacionado ao Direito e ao Cinema está localizado no campo
da interdisciplinaridade. Nesse sentido, estudos envolvendo a temática pro-
movem uma postura zetética jurídica em contraposição ao dogmático. Além
disso, o diálogo entre o Direito e o Cinema possibilita a ampliação da capa-
cidade de reflexões críticas a respeito de diversos temas, unindo a emoção e
a capacidade de reflexão racional.
324
“Eu, Daniel Blake”: o viés da reabilitação profissional sob a luz da crítica do direito e cinema

Assim, este projeto justifica-se pela análise do direito em sua perspectiva


humana integral e “não fracionada na forma de uma mera tecnologia prática,
de cunho predominante dogmático”.3
Ademais, ressalta-se que o Direito e Cinema encontra-se fundado nas
relações entre direito e literatura, esta que são tão recentes e atravessam a his-
tória do século XX.4 Para o presente estudo utiliza-se como marco o período
de renascimento dos estudos na área, que compreende o desenvolvimento
das pesquisas a partir da década de 1970, com a publicação da obra de James
Boyd White, The Legal Imagination, em 1973. O desenvolvimento histórico do
movimento pode ser pensado “a partir da tensão entre a ênfase na diferença
da literatura como obra de ficção e na assimilação ao discurso jurídico”.5
Nesse sentido, busca-se por meio da tensão entre cinema e direito, refletir
sobre a reabilitação profissional.
A obra cinematográfica selecionada é “Eu, Daniel Blake”6 lançado em
2016 e dirigido por Ken Loach. O filme gira em torno do personagem Daniel
Blake que é um carpinteiro de 59 anos de idade no Nordeste da Inglaterra,
que sofreu um ataque cardíaco e, por isso, precisa do Auxílio Financeiro ao
Trabalho, transposto ao Brasil, equipara-se ao Auxílio-doença.
O filme inicia com uma profissional de saúde (forma intitulada pelo
filme) realizando o atendimento por telefone de Daniel Blake, e tecendo
perguntas relacionadas a possibilidade física de levantar o braço, andar 50
metros, colocar camisa etc. Entretanto, a atendente não realiza um aten-

3 OLIVEIRA, Mara Regina de. Direito e cinema. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fer-
nandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teo-
ria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga,
André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/89/edicao-1/
direito-e-cinema
4 TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. O estudo do Direito e Literatura no
Brasil: surgimento, evolução e expansão. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Di-
reito e Literatura, v. 3, n. 1, pp. 225-257, jan./jun. 2017. Disponível em: http://rdl.org.br/
seer/index.php/anamps/article/view/326. Acesso em: 30 jun. 2020.
5 SÁENZ, María Jimena. Direito humanos e literatura: um espaço emergente do encontro
entre o direito e a literatura na tradição norte-americana. ANAMORPHOSIS – Revista Inter-
nacional de Direito e Literatura, v. 3, n. 1, pp. 5-24, jan./jun. 2017. Disponível em: http://
rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/302. Acesso em: 28 jun. 2020.
6 LOACH, Ken. Eu, Daniel Blake. Inglaterra, 2016.

325
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

dimento pessoalizada, se demonstrando absolutamente indiferente aos


problemas dos cidadãos.
Ademais, Daniel Blake possui o seu Auxílio Financeiro ao Trabalhador
negado, entretanto, possui diversos exames de seus médicos constando que
ele se encontra incapacitado ao trabalho. Então, o personagem volta-se a um
dilema: teve seu auxílio negado, mas por outro lado não pode trabalhar. A
partir desse ponto ele tenta conseguir outro benefício: o seguro-desemprego.
As dificuldades não se encerram, para o recebimento do seguro-desem-
prego ele precisa comprovar a tentativa de conseguir um emprego e Daniel
Blake não possui conhecimentos tecnológicos suficientes para nem sequer
elaborar um currículo. O filme enfrenta diversos temas como a inacessibili-
dade dos serviços aos idosos, mas a principal temática é a insensibilidade dos
sistemas de atendimento para auxílio social.
Durante todo o filme o personagem não é visto, ouvido e compreendido. A
frase que ressoa no filme é “Quando a gente perde a dignidade, acabou tudo”, e
assim o diretor traz a reflexão de quanto de dignidade ainda resta: Daniel Blake
procura diariamente empregos que não existem, não aceitam sua condição de
idoso e com diagnóstico médico de incapacidade; filas e insensibilidade no
atendimento como cenas que demonstram os atendentes afastados da realidade
das pessoas serem atendidas. Por fim, uma das reflexões que o diretor traz à
tona é que apesar de toda a condição e sujeição passada por Daniel Blake, ele
ainda é um cidadão, e por isso, o seu direito deve ser salvaguardado.
Os temas que podem ser extraídos do filme são vários, mas os que se
propõe à discussão são: i. dificuldade de aproximação da realidade com as o
atendimento realizado; ii. a reabilitação profissional e a afastamento dos sujeitos.

3. O VIÉS DA REABILITAÇÃO PROFISSIONAL SOB A LUZ DA


CRÍTICA DO DIREITO E CINEMA
Os serviços de reabilitação profissional se tratam de estratégias de regulação
econômica dos sistemas previdenciários, uma vez que possuem o objetivo de
reduzir o tempo de concessão de benefícios e paralelamente atuam no sentido
de redução e superação das desvantagens produzidas pelas incapacidades.7

7 MOMM W, GEICKER O. Disability: Concepts and Definitions. In: MOON, W; RANSOM,


R. Disability and Work. Encyclopaedia of Occupational Health and Safety. 4 ed. Geneva,
International Labor Office, 4.v, Part III, Capt 17, 1998.

326
“Eu, Daniel Blake”: o viés da reabilitação profissional sob a luz da crítica do direito e cinema

Nesse sentido, os serviços de reabilitação profissional, em regra, estão


acompanhados por serviços de apoio ao emprego e renda e, assim, de forma
conjunta atuam para a integração ou reintegração ao trabalhador.8 Destaca-se:

A integração profissional das pessoas com deficiência é apoiada pela


atribuição de assistência financeira, pelo acompanhamento de disposi-
ções no domínio da formação profissional e pela adaptação do local de
trabalho às necessidades especiais do trabalhador com deficiência. Aqui,
novamente, as práticas variam muito entre os diferentes países. A gama
de benefícios vai desde alocações financeiras relativamente pequenas e
de curto prazo até medidas de reabilitação vocacional em larga escala e
em longo prazo.9

No caso brasileiro o serviço de reabilitação é oferecido pelo Instituto


Nacional do Seguro Social (INSS) e é regulamentado pelo artigo 89 da Lei
Federal nº 8.213, de199110:

A habilitação e a reabilitação profissional e social deverão proporcio-


nar ao beneficiário incapacitado parcial ou totalmente para o trabalho e as
pessoas portadoras de deficiências os meios para a (re)educação e de (re)
adaptação profissional e social indicados para participarem do mercado de
trabalho e do contexto em que vivem.11

Dessa forma ela possui como objetivo a efetivação de meios para a (re)
educação e (re)adaptação profissional com o enfoque claro de participação
dos atores no mercado de trabalho e, também, na sociedade. Há um amparo
direto da Convenção sobre Direitos das Pessoa com Deficiência incorporada
pelo rito de emenda constitucional.12

8 SEYFRIED, E. Vocational rehabilitation and employment support services. Disability and


Work. Encyclopedia of Occupational Health and Safety. Geneva: OIT, 1998. p.17.18-17.22.
9 MOMM W, GEICKER O. Disability: Concepts and Definitions. In: MOON, W; RANSOM,
R. Disability and Work. Encyclopaedia of Occupational Health and Safety. 4 ed. Geneva,
International Labor Office, 4.v, Part III, Capt 17, 1998.
10 Demais regulamentações sobre o tema: Encontra previsão legal nos art. 62, 89 a 93, 101 da
Lei de Benefícios (Lei 8213/91), amparada pelo Decreto Regulamentador da Previdência
Social no3048 de 6/05/1999, na lei de Inclusão Social li n 13.146 de 06/07/2015, no Capítulo
V, Seção XIII, da INSTRUÇÃO NORMATIVA INSS/PRES Nº 77, de 21/01/2015.
11 Brasil. Lei Federal nº 8.213, de 1991.
12 BRASIL. Decreto Legislativo no 186, 2008 e Decreto no 6.949, de 25 de agosto de 2009

327
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Del-Masso traz a diferença entre habilitação profissional e reabilitação


profissional, sendo a primeira a criação de uma nova habilidade e a segunda
“processo complexo e dinâmico que envolve capacitação ou readaptação a
uma nova atividade”.13
Este processo não é simples. O Enfrentamento da incapacidade deve ser
vislumbrado diante das estruturas e fatores sociais e, assim, a identificação
subjetiva dos fatores de facilitam e dificultam o retorno ao trabalho, propor-
cionam medidas efetivas para uma intervenção. 14
Nesse sentido, a literatura aponta que os fatores prognósticos do retorno
ao trabalho após afastamento por motivo de doença podem ser divididos em
três categorias: sociodemográficos, relacionados ao trabalho e relacionados à
condição médica que motivou o afastamento.15 Destaca-se algumas dificul-
dades que são inclusas nesse processo:

Idade avançada, baixa escolaridade, condições socioeconômicas pre-


cárias, o afastamento em si, alta precoce, tipo de ocupação, trabalhos com
riscos psicossociais e/ou físicos, trabalho braçal, trabalho pouco qualificado,
características predatórias das relações interpessoais no trabalho, conflitos
entre trabalhador e chefia, altas exigências emocionais no trabalho, ausência
de intervenções nos riscos ocupacionais, metas de produtividade, gravidade
das comorbidades, causa da incapacidade, auto percepção negativa do
estado geral de saúde e atitudes discriminatórias para com o readaptando,
ineficiência de programas de reabilitação profissional, mecanismos inefi-
cientes de comunicação entre serviços, sistemas e políticas preventivas16

13 DEL-MASSO, M. C. S. Readaptação e Reabilitação Profissional. In.:SCHMIDT, M. L. G.;


DEL-MASSO, M. C. S. (Org.). Readaptação profissional: da teoria à prática. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2014. p.19-45.
14 TAKAHASHI, M. A. B. C. et al. Programa de reabilitação profissional para trabalhadores
com incapacidades por LER/DORT: relato de experiência do Cerest- Piracicaba, SP. Revista
brasileira de saúde ocupacional, v. 35, n. 121, 2010.
15 ØYEFLATEN, I. et al. Prognostic factors for return to work, sickness benefits, and transi-
tions between these states: a 4-year follow-up after work-related rehabilitation. Journal of
Occupational Rehabilitation, [S. I.], v. 2, n. 24, p.199-2012, jun. 2014
16 TESSARRO, M.T.V. Reabilitação Profissional do INSS: uma análise à luz do Laboratório
de Mudanças. 2019. 121 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Medicina de Botucatu,
Departamento de Saúde Pública. Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2019.Com base
em: TOLDRÁ, R. C. et al. Facilitadores e barreiras para o retorno ao trabalho: a experiência
de trabalhadores atendidos em um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador – SP.
Revista brasileira de Saúde Ocupacional. São Paulo, 2010. p. 10-22; VIEIRA, G. S. et al.

328
“Eu, Daniel Blake”: o viés da reabilitação profissional sob a luz da crítica do direito e cinema

Esta listagem é apenas exemplificativa, vez que as vivências humanas


dependem também do meio em que se desenvolvem. Paralelamente, tem que
também os facilitadores para o retorno ao trabalho:

ausência de dor, suporte social no trabalho, apoio familiar, acolhimento


pelas equipes de reabilitação, reconhecimento do sofrimento presente no
processo saúde-doença-trabalho, apoio de colegas e da chefia, intervenção
nas condições de trabalho e engajamento dos empregadores no plano de
retorno ao trabalho.17

Dessa forma, a reabilitação profissional deve ser pautada nessa visão ampla
e particular, estimulando-se inclusive os facilitadores do retorno profissional.
Ademais, a inobservância ou inadequação da assistência pode gerar, inclusive,
a piora dos sintomas.18

Programa de retorno ao trabalho em um hospital de São Paulo: resultados iniciais, fatores


facilitadores e obstáculos de uma perspectiva administrativa. Rev. Bras. Med. Trab, v. 8, n.
2, p. 105-14, 2010; SALDANHA, J. H. S. et al. Facilitadores e barreiras de retorno ao trabalho
de trabalhadores acometidos por LER/DORT. Rev. bras. saúde ocup., São Paulo, v. 38, n. 127,
p. 122-138, jun. 2013; ØYEFLATEN, I. et al. Prognostic factors for return to work, sickness
benefits, and transitions between these states: a 4-year follow-up after work-related rehabi-
litation. Journal of Occupational Rehabilitation, [S. I.], v. 2, n. 24, p.199-2012, jun. 2014
17 TESSARRO, M.T.V. Reabilitação Profissional do INSS: uma análise à luz do Laboratório
de Mudanças. 2019. 121 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Medicina de Botucatu,
Departamento de Saúde Pública. Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2019. Com base
em: GRAVINA, M.E. R; NOGUEIRA, D. P.; ROCHA, L. E. Reabilitação profissional em um
banco: facilitadores e dificultadores no retorno ao trabalho. Revista de Terapia Ocupacional
da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 19-26, set./dez. 2003.; WATANA-
BE, M. A. Reabilitação é possível: um estudo de caso de uma empresa de economia mista.
Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) − Faculdade de Ciências Médicas, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, p. 206, 2004; SAMPAIO, R. F. et al. Implantação de servi-
ço de reabilitação profissional: a experiência da UFMG. Fisioterapia e Pesquisa, São Paulo,
v. 12, n. 2, p. 28-34, 2005; TOLDRÁ, R. C. et al. Facilitadores e barreiras para o retorno ao
trabalho: a experiência de trabalhadores atendidos em um Centro de Referência em Saúde
do Trabalhador – SP. Revista brasileira de Saúde Ocupacional. São Paulo, 2010. p.10-22;
VIEIRA, G. S. et al. Programa de retorno ao trabalho em um hospital de São Paulo: resulta-
dos iniciais, fatores facilitadores e obstáculos de uma perspectiva administrativa. Rev. Bras.
Med. Trab, v. 8, n. 2, p. 105-14, 2010; SALDANHA, J. H. S. et al. Facilitadores e barreiras
de retorno ao trabalho de trabalhadores acometidos por LER/DORT. Rev. bras. saúde ocup.,
São Paulo, v. 38, n. 127, p. 122-138, jun. 2013
18 TOLDRÁ, R. C. et al. Facilitadores e barreiras para o retorno ao trabalho: a experiência de
trabalhadores atendidos em um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador – SP. Revista
brasileira de Saúde Ocupacional. São Paulo, 2010. p. 10-22

329
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

O procedimento de reabilitação profissional passa primeiramente pela


Avaliação da Capacidade Laborativa, que é feita pelo perito-médico e são
observadas as condições funcionais e emitido um parecer. Após, o segurado é
encaminhado ao Profissional de Referência que irá realizar a Orientação Pro-
fissional, este profissional fará uma avaliação socioprofissional do segurado,
observando fatores como histórico profissional, possiblidades de emprego,
faixa etária, função que exercia, perda funcional, funções conservadas, habi-
lidades e a imprescindibilidade de concessão de órtese ou prótese.19 Nesse
sentido, segue-se fielmente o disposto na lei nº 8.213/1991 no art. 89:
a) o fornecimento de aparelho de prótese, órtese e instrumentos de
auxílio para locomoção quando a perda ou redução da capacidade fun-
cional puder ser atenuada por seu uso e dos equipamentos necessários à
habilitação e reabilitação social e profissional;
b) a reparação ou a substituição dos aparelhos mencionados no inciso
anterior, desgastados pelo uso normal ou por ocorrência estranha à vontade
do beneficiário;
c) o transporte do acidentado do trabalho, quando necessário.20

O que se observa é que não há a formação de um sistema complexo e


estruturado para a reabilitação profissional e o que é apresentado pela lei,
demonstra-se muito limitado.
Com o objetivo de aprofundar o tema da reabilitação profissional de for-
ma subjetiva, destaca-se o estudo realizado na Agência de Previdência Social
de Jaú/SP.21 A pesquisa utilizou-se do método qualitativo e casuístico, com o
obetivo de compreender as causas sistêmicas e históricas dos distúrbios que
ocorrem na reabilitação profissional da referida Agência.
Os principais problemas observados foram: i. a mudança na organização
sistemática da reabilitação profissional que foram determinadas por aspectos
profissionais e pela interferência judicial, o que não foi acompanhado da ade-

19 Serão observados os recursos necessários como prótese e órtese,; instrumentos de auxílio


para locomoção, implemento profissional; instrumento de trabalho; auxílio-transporte; au-
xílio-alimentação, e diária, com previsão no § 2o art. 137 do Dec. 3.048/1999 e no art. 402
e seus incisos da INSTRUÇÃO NORMATIVA INSS/PRES Nº 77.
20 BRASIL, Lei nº 8.213/1991.
21 TESSARRO, M.T.V. Reabilitação Profissional do INSS: uma análise à luz do Laboratório
de Mudanças. 2019. 121 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Medicina de Botucatu,
Departamento de Saúde Pública. Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2019

330
“Eu, Daniel Blake”: o viés da reabilitação profissional sob a luz da crítica do direito e cinema

quação do sistema como um todo, gerando incompatibilidades; ii. Há excessiva


demora dos programas, como casos em que os sujeitos permaneciam mais de
3 anos e como resultado recebiam alta sem reabilitação; iii. Dificuldades no
levantamento dos dados pela própria agência em virtude da dependência de
parceiros, não possuindo informações como usuários em novos programas e
saída de programas já iniciados.22
Paralelamente a autora aponta casos, em outra cidade, que foram bem
sucedidos, como o programa realizado em Piracicaba

método empregado foi fundamentado no modelo social da incapa-


cidade, valorizando a atenção terapêutica multidisciplinar, com equipe
formada por médico, assistente social, psicólogo, terapeuta ocupacional,
fisioterapeuta e sociólogo. O público-alvo era composto por trabalhadores
afastados do trabalho, com diagnóstico e nexo causal de LER/DORT, vínculo
empregatício (ou último emprego) com empresas com grande número de
pessoas afetadas por LER/DORT.23

Destaca-se que neste caso, a análise em grupo obteve sucesso, por se tratar
de um mesmo nicho de pessoas afetadas e com situações similares. Evidencia-
-se a utilização de equipe multidisciplinar que possibilita a visualização da
problemática por diversas vertentes.
Nesse ponto, retoma-se o caso de Daniel Blake. Como visto anteriormente,
foram visualizadas as seguintes dificuldades no caso dele: i. dificuldade de
aproximação da realidade com o atendimento realizado; ii. a reabilitação
profissional e a afastamento dos sujeitos.
Daniel Blake traça diversas tentativas de contato com o responsável pelo
auxílio para dialogar e explicar a sua situação. A mera realização de um laudo,
como é a regra no sistema brasileiro, não permite a visualização de todas as
dificuldades que estão inclusas no processo de reabilitação de Daniel Blake:
a idade avançada, o afastamento médico, a ausência de familiares, região em
que reside, escolaridade e o conhecimento profissional, por exemplo.

22 TESSARRO, M.T.V. Reabilitação Profissional do INSS: uma análise à luz do Laboratório


de Mudanças. 2019. 121 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Medicina de Botucatu,
Departamento de Saúde Pública. Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2019
23 TESSARRO, M.T.V. Reabilitação Profissional do INSS: uma análise à luz do Laboratório
de Mudanças. 2019. 121 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Medicina de Botucatu,
Departamento de Saúde Pública. Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2019

331
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Paralelamente, não se vislumbra nenhuma das situações que poderiam


auxiliar no processo de reabilitação, quais sejam, a “ausência de dor, suporte
social no trabalho, apoio familiar, acolhimento pelas equipes de reabilitação,
reconhecimento do sofrimento presente no processo saúde-doença-trabalho” etc.
Dessa forma, se o paradigma cinematográfico fosse contextualizado na
realidade brasileira, Daniel Blake passaria pelas mesmas situações: dificuldade
no atendimento, insensibilidade, afastamento, invisibilidade.
Resta, entretanto, a possibilidade de Daniel Blake ser agraciado por uma
política como a realizada em Piracicaba, que o colocaria na posição mínima
de sujeito.

4. CONCLUSÃO
“Eu, Daniel Blake, sou um cidadão, nada mais, nada menos”.24 A este
cidadão cabe o regime de reabilitação de Jaú/SP ou de Piracicaba/SP? O diá-
logo entre direito e literatura, com o enfoque no cinema, permite questionar
a realidade dos cidadãos brasileiros, alguns na posição de Daniel Blake.
Nesse sentido, denota-se que o processo de reabilitação possui uma
abordagem insuficiente na legislação geral da matéria o incide em problemas
como: a incompatibilidade entre a legislação geral e específicas, bem como por
meio de julgados, a demora no atendimento e na efetivação do programa, e a
própria dificuldade no levantamento de dados. A questão é que a reabilitação
profissional não precisa ser vislumbrada somente pela realidade de Jaú, pois
outras realidades são possíveis, como a de Piracicaba. A metodologia focalizada
em grupos de similar situação e composta por uma equipe multidisciplinar,
dentro outros elementos, é possível e gera resultados.
A questão é: ao cidadão, Daniel Blake, José, João, Maria ou Antonia, é
reservada a situação de Jaú ou a de Piracicaba?

5. REFERÊNCIAS
DEL-MASSO, M. C. S. Readaptação e Reabilitação Profissional. In.:SCHMIDT, M. L. G.;
DEL-MASSO, M. C. S. (Org.). Readaptação profissional: da teoria à prática. São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. p.19-45.

24 LOACH, Ken. Eu, Daniel Blake. Inglaterra, 2016.

332
“Eu, Daniel Blake”: o viés da reabilitação profissional sob a luz da crítica do direito e cinema

GRAVINA, M.E. R; NOGUEIRA, D. P.; ROCHA, L. E. Reabilitação profissional em um


banco: facilitadores e dificultadores no retorno ao trabalho. Revista de Terapia
Ocupacional da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 19-26, set./
dez. 2003.;
LOACH, Ken. Eu, Daniel Blake. Inglaterra, 2016.
MOMM W, GEICKER O. Disability: Concepts and Definitions. In: MOON, W; RANSOM,
R. Disability and Work. Encyclopaedia of Occupational Health and Safety. 4 ed.
Geneva, International Labor Office, 4.v, Part III, Capt 17, 1998.
OLIVEIRA, Mara Regina de. Direito e cinema. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso
Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.).
Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de
Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediaju-
ridica.pucsp.br/verbete/89/edicao-1/direito-e-cinema
ØYEFLATEN, I. et al. Prognostic factors for return to work, sickness benefits, and tran-
sitions between these states: a 4-year follow-up after work-related rehabilitation.
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SÁENZ, María Jimena. Direito humanos e literatura: um espaço emergente do encontro
entre o direito e a literatura na tradição norte-americana. ANAMORPHOSIS –
Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 3, n. 1, pp. 5-24, jan./jun. 2017.
Disponível em: http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/302. Acesso
em: 28 jun. 2020.
SALDANHA, J. H. S. et al. Facilitadores e barreiras de retorno ao trabalho de trabalha-
dores acometidos por LER/DORT. Rev. bras. saúde ocup., São Paulo, v. 38, n. 127,
p. 122-138, jun. 2013;
SAMPAIO, R. F. et al. Implantação de serviço de reabilitação profissional: a experiência
da UFMG. Fisioterapia e Pesquisa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 28-34, 2005;
SEYFRIED, E. Vocational rehabilitation and employment support services. Disability
and Work. Encyclopedia of Occupational Health and Safety. Geneva: OIT, 1998.
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com incapacidades por LER/DORT: relato de experiência do Cerest- Piracicaba, SP.
Revista brasileira de saúde ocupacional, v. 35, n. 121, 2010.
TESSARRO, M.T.V. Reabilitação Profissional do INSS: uma análise à luz do Laborató-
rio de Mudanças. 2019. 121 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Medicina
de Botucatu, Departamento de Saúde Pública. Universidade Estadual Paulista,
Botucatu, 2019.

333
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

TOLDRÁ, R. C. et al. Facilitadores e barreiras para o retorno ao trabalho: a experiência


de trabalhadores atendidos em um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador
– SP. Revista brasileira de Saúde Ocupacional. São Paulo, 2010. p. 10-22;
TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. O estudo do Direito e Literatura no
Brasil: surgimento, evolução e expansão. ANAMORPHOSIS – Revista Internacio-
nal de Direito e Literatura, v. 3, n. 1, pp. 225-257, jan./jun. 2017. Disponível em:
http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/326. Acesso em: 30 jun. 2020.
VIEIRA, G. S. et al. Programa de retorno ao trabalho em um hospital de São Paulo: resul-
tados iniciais, fatores facilitadores e obstáculos de uma perspectiva administrativa.
Rev. Bras. Med. Trab, v. 8, n. 2, p. 105-14, 2010;
WATANABE, M. A. Reabilitação é possível: um estudo de caso de uma empresa de eco-
nomia mista. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) − Faculdade de Ciências
Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, p. 206, 2004;

334
RESPONSABILIDADE CIVIL DO
PATROCINADOR POR DANO
PREVIDENCIÁRIO A PARTIR DA TESE
FIXADA NO TEMA 955 DO STJ

Noa Piatã Bassfeld Gnata1

Sumário: 1. Introdução – 2. Competência e legitimidade – 3.


Interesse processual e prescrição – 4. Configuração e extensão
do dano: 4.1 Configuração do dano; 4.2 Extensão do dano – 5.
Conclusão – 6. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO
O recente julgamento do Superior Tribunal de Justiça – STJ em regime
de recursos repetitivos no REsp 1.312.736/RS, enumerado como Tema 955,
transitado em julgado em 28/03/2019, disciplina a reparação possível aos
trabalhadores que, tendo reconhecido, em reclamatória trabalhista, o direito
ao recebimento de verbas remuneratórias, não obtiveram os respectivos refle-
xos na base de cálculo do salário-de-participação, com o intuito de definir os
benefícios previdenciários previstos nos regulamentos de planos patrocinados
de previdência complementar a que estivessem vinculados em razão daquela
relação de emprego.

1 Advogado e consultor jurídico. Mestre e Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade So-


cial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP Largo de São Francisco.
Diretor-adjunto de atuação judicial nos tribunais superiores do IBDP.

335
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

No julgado, a Segunda Seção do STJ disciplinou os efeitos dessa reparação,


utilizando-se do artifício da modulação temporal, para distinguir as hipóteses
de direito à revisão do benefício mantido pelo plano de previdência comple-
mentar das hipóteses em que, prejudicado este direito, restará ao trabalhador
o direito à indenização por perdas e danos.
Assim ficou firmada a tese no Tema 955:

I − A concessão do benefício de previdência complementar tem como


pressuposto a prévia formação de reserva matemática, de forma a evitar o
desequilíbrio atuarial dos planos. Em tais condições, quando já concedido
o benefício de complementação de aposentadoria por entidade fechada de
previdência privada, é inviável a inclusão dos reflexos das verbas remune-
ratórias (horas extras) reconhecidas pela Justiça do Trabalho nos cálculos da
renda mensal inicial dos benefícios de complementação de aposentadoria;
II − Os eventuais prejuízos causados ao participante ou ao assistido que
não puderam contribuir ao fundo na época apropriada ante o ato ilícito do
empregador poderão ser reparados por meio de ação judicial a ser proposta
contra a empresa ex-empregadora na Justiça do Trabalho;
III − Modulação de efeitos (art. 927, § 3º, do CPC/2015): para as de-
mandas ajuizadas na Justiça Comum até a data do presente julgamento, e
ainda sendo útil ao participante ou assistido, conforme as peculiaridades
da causa, admite-se a inclusão dos reflexos de verbas remuneratórias (horas
extras), reconhecidas pela Justiça do Trabalho, nos cálculos da renda mensal
inicial dos benefícios de complementação de aposentadoria, condicionada
à previsão regulamentar (expressa ou implícita) e à recomposição prévia e
integral das reservas matemáticas com o aporte de valor a ser apurado por
estudo técnico atuarial em cada caso;
IV − Nas reclamações trabalhistas em que o ex-empregador tiver sido
condenado a recompor a reserva matemática, e sendo inviável a revisão
da renda mensal inicial da aposentadoria complementar, os valores cor-
respondentes a tal recomposição devem ser entregues ao participante ou
assistido a título de reparação, evitando-se, igualmente, o enriquecimento
sem causa do ente fechado de previdência complementar.

É corolário do julgado, em razão da modulação temporal de efeitos ex-


pendida pela douta Seção, a possibilidade de revisão do benefício daqueles
que a pleitearam judicialmente antes do respectivo julgamento, desde que se
recomponha a reserva matemática proporcional à base de cálculo resultan-
te da incorporação das verbas salariais antes reconhecidas na reclamatória

336
Responsabilidade civil do patrocinador por dano previdenciário a partir da tese fixada no tema 955 do STJ

trabalhista na remuneração mensal, tanto em relação às contribuições patro-


nais, às expensas do patrocinador, quanto às contribuições do participante
patrocinado.
A hipótese do inciso II da tese firmada disciplina as situações em que
o participante patrocinado não promoveu ação revisional contra o plano de
previdência complementar, em que só se torna possível buscar a reparação
de danos pela via indenizatória em razão do prejuízo sofrido.
A solução encontrada no Tema 955, que basicamente fixa a não interfe-
rência do juiz no direito de fundo, resolvendo a questão em perdas e danos,
é a solução clássica do direito processual liberal, como ensina:

Para o direito liberal não só não importava a qualidade da parte como


também não importava a qualidade do bem em litígio. A essa abstração,
isto é, a essa indiferença pela diversidade das pessoas e dos bens, − que,
diga-se de passagem, era absolutamente natural para o direito liberal clás-
sico −, correspondia, no plano da sanção que podia ser imposta pelo juiz,
a tutela ressarcitória, que não alterava – e isso era adequado para o direito
liberal – o natural funcionamento do mercado.
A tutela ressarcitória, limitando-se a exprimir o equivalente em dinheiro
do bem almejado, nega as necessidades de determinado grupo ou classe e a
diversidade de importância dos bens. Nada mais natural quando o objetivo
é o de preservar o funcionamento do mercado, sem qualquer preocupação
com a tutela das posições social e economicamente mais fracas.
Ora, se o direito a ser tutelado possuía natureza patrimonial, e podia –
conservando sua importância e valor – ser convertido em pecúnia, a tutela
ressarcitória pelo equivalente era efetiva em caso de violação de direito2.

Nada de novo, portanto. O STJ buscou a solução secular para a matéria,


cabendo distinguir o tratamento do direito de fundo e o tratamento da solu-
ção indenizatória, dadas as competências materiais distintas que exsurgem
na hipótese (a tutela revisional de competência cível e a tutela ressarcitória
de competência trabalhista, por força de disposição constitucional).
A distinção entre o direito de fundo – a relação jurídica previdenciária
– e o direito incidental – de reparação com solução de indenização por per-

2 MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdicional


através do processo de conhecimento. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2003. p. 75

337
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

das e danos pela lesão irreparável do direito de fundo – é fundamental para


a definição dos elementos do seu instrumental e correlato direito de ação,
como competência, legitimidade, interesse processual e prescrição, bem como
os critérios de prova da ocorrência e da extensão do dano.

2. COMPETÊNCIA E LEGITIMIDADE
É notícia histórica a sedimentação na Justiça do Trabalho, no início da
década de 2010, do entendimento de que a relação previdenciária comple-
mentar não era diretamente relacionada à relação de trabalho, tendo-se de-
finido a competência da justiça comum cível para apreciação das demandas
que pleiteavam a revisão dos benefícios mantidos pelas entidades fechadas
de previdência complementar.
A partir de tal sedimentação, isso impedira que tais entidades fossem
demandadas como litisconsortes ao lado dos empregadores nas reclamatórias
trabalhistas. Os pedidos de revisão dos benefícios previdenciários pagos pelas
entidades fechadas de previdência complementar, desde então, assentaram-se
na competência cível, o que culminaria com a afetação do tema e afirmação
da tese em comento pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ.
O STJ disciplinou a matéria, como exposto acima, limitando o referi-
do direito de revisão e reconhecendo, nas situações em que o participante
houver sofrido prejuízos na previdência complementar, quando este estiver
prejudicado pela não propositura de ação antes do julgado, não mais o direito
de fundo à revisão dos respectivos benefícios contra os fundos de pensão na
justiça comum, mas o direito incidental de indenização contra o empregador,
na medida dos prejuízos sofridos.
E mais do que definir o direito indenitário, reconheceu também a com-
petência da Justiça do Trabalho, no item II:

II − Os eventuais prejuízos causados ao participante ou ao assistido que


não puderam contribuir ao fundo na época apropriada ante o ato ilícito do
empregador poderão ser reparados por meio de ação judicial a ser proposta
contra a empresa ex-empregadora na Justiça do Trabalho;

A primeira assunção é de que, apesar de declarado pelo Superior Tribu-


nal de Justiça, tal direito incidental será tutelado e entregue pela Justiça do
Trabalho, porque direcionado perante o empregador que causou dano em
338
Responsabilidade civil do patrocinador por dano previdenciário a partir da tese fixada no tema 955 do STJ

montante equivalente ao prejuízo havido ou em sua conta de capitalização


individual, ou em sua reserva matemática de previdência complementar e em
seu benefício previdenciário complementar, por conseguinte.
A tutela do direito incidental indenizatório, portanto, se distingue da
tutela, inviabilizada, do direito de fundo revisional. A primeira não implica
qualquer efeito direto na relação com a entidade fechada de previdência
complementar, como seria a segunda. Mantém-se o valor do benefício en-
quanto ele for pago.
A tese afirmada no STJ é plenamente compatível com a sedimentação
da matéria na Justiça do Trabalho, pois não devolveu para ela a competência
para julgamento de revisões de aposentadorias complementares contra aquelas
entidades. Pelo contrário, assumiu-a e estabeleceu sua extensão e limites.
Para além deste limite, onde já não há como resolver diretamente a
relação previdenciária, o que resta é a possibilidade de decidir a questão em
perdas e danos, responsabilizando-se o empregador pelo prejuízo causado
contra o trabalhador ao longo dos anos. É como no direito e processo civil:
a tutela ressarcitória se apresenta quando é impossível a entrega efetiva
da tutela específica. Por exemplo, se não é possível constranger quem
causou o dano ao conserto do veículo automotor abalroado, em razão
da extensão do dano ou por já não haver peças originais de substituição
no mercado, resta ao magistrado condená-lo ao pagamento do respectivo
valor de mercado.
Remonte-se à separação clássica, na teoria da responsabilidade civil,
entre reparação e compensação, no intuito de restabelecimento do status quo
ante, do estado das coisas como se encontravam antes de ocorrer o fato ou os
fatos que causou ou causaram o dano.
Na hipótese, o Superior Tribunal de Justiça deu limite à possibilidade
de reparação, atuando sobre a relação jurídica previdenciária e determinando
a revisão dos benefícios mediante recomposição das reservas matemáticas
de quem já tenha proposto as demandas contra as entidades fechadas de
previdência complementar e, observado este limite, reconheceu o direito de
compensação (apesar da atecnia na utilização do termo reparação no item da
tese afirmada, incompatível com a essência da tutela indenizatória no rigor
teórico, ou seja, admitiu-se na técnica textual a compensação indenitária
como reparação em sentido amplo na tutela geral da responsabilidade civil),
como solução indenitária para os prejudicados que não tenham proposto tais
demandas.
339
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

A tese afirmada no STJ, diga-se de passagem, não buscou garantir a ir-


responsabilidade de quem causou prejuízos aos trabalhadores ao não verter
contribuição sobre as verbas salariais não pagas, mas sim limitar a responsabi-
lidade dos fundos de pensão. A consolidação deste entendimento visa a tornar
previsíveis e perpetuáveis as respectivas gestões e evoluções patrimoniais,
dada a necessária segurança jurídica dos ativos que garantirão o pagamento de
aposentadorias e pensões dos respectivos beneficiários, sobremaneira após a
consolidação dos planos de contribuição definida, de capitalização individual,
em que os participantes somente recebem o fruto das contribuições suas e
dos patrocinadores quando do gozo das aposentadorias.
Limitada a responsabilidade dos fundos de pensão e da competência
cível, a tutela da reparação possível do dano, para além deste limite, não
alcançável a relação jurídica previdenciária e diretamente decorrente da re-
lação de trabalho, será de competência da Justiça do Trabalho e direcionada
exclusivamente contra o antigo empregador, estando assim, imunizado pelo
STJ o respectivo fundo de pensão das possíveis decorrências.
Tendo a Justiça do Trabalho a competência para julgar todas as questões
decorrentes da relação de emprego contra o empregador, inclusive danos pa-
trimoniais causados por eles contra os seus empregados, consoante artigo 114
da Constituição da República, é de se assumir sua competência para a tutela
indenizatória em tela, no sentido, e mesmo independentemente, do disposto
na tese afirmada no Tema 955 pelo STJ. É sabida a afetação da repercussão
das demais rubricas remuneratórias eventualmente aferíveis em reclamatória
trabalhista, para além das horas extraordinárias, no Tema 1021 do da Colenda
Corte, que visa à uniformização dos critérios e prover segurança jurídica aos
fundos de pensão.
Ressalte-se que o fundamento normativo direto do direito a indenização
para reparação de danos materiais é o Art. 114 da Constituição da Repúbli-
ca, independente da similitude fática estreita que se alcance, ou não, com a
definição do Tema 955 no STJ.
A respeito do tema, também merece destaque o seguinte precedente
do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região – TRT3, que
acertadamente ratificou o entendimento do STJ, reconhecendo que o jul-
gamento dos pedidos de indenização por perdas e danos decorrentes da
não inclusão de verbas salariais, judicialmente reconhecidas como tais no
cálculo do benefício de previdência complementar, é de competência da
Justiça do Trabalho:
340
Responsabilidade civil do patrocinador por dano previdenciário a partir da tese fixada no tema 955 do STJ

COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. REPASSE DE CONTRI-


BUIÇÕES. PREVIDÊNCIA PRIVADA. A Justiça do Trabalho é competente
para apreciar pedido de repasse das contribuições para a entidade de
previdência privada instituída e mantida pelo reclamado, decorrentes de
diferenças salariais reconhecidas na presente ação, por não se tratar de
pretensão relativa à complementação de aposentadoria.
(...)
A reclamada sustenta a incompetência da Justiça do Trabalho para
apreciar e julgar a presente demanda, que versa sobre plano de benefícios
da FUNCEF. A reclamada afirma, ainda, que a FUNCEF deveria estar no
polo passivo da demanda, e que a sua ausência deve acarretar a extinção
do processo sem resolução do mérito.
A reclamante pretende a condenação da reclamada ao pagamento de
indenização por perdas e danos advindas da não inclusão da parcela salarial
de CTVA, paga no contracheque de agosto de 2006, na operação do salda-
mento do REG-REPLAN. Portanto, o pedido não é de complementação de
qualquer benefício previdenciário. Trata-se de obrigação da empregadora
e a pretensão da reclamante não ultrapassa a competência desta Justiça
Especial, porque decorre da relação de emprego.
(TRT3, Segunda Turma, Relator Exmo. Desembargador Lucas Vanucci
Luis, ROT 0010096-63-2019.5.03.0143, julgado em 16/07/2019) (destaques
acrescidos).

Percebe-se no julgado que o empregado que teve verbas sonegadas du-


rante o contrato do trabalho e que, posteriormente, obteve reconhecimento
judicial de sua natureza salarial, tem direito a postular a justa indenização
pelos prejuízos sofridos perante a Justiça do Trabalho.
No mesmo sentido aponta o precedente da 23ª Vara do Trabalho de
Curitiba, que decidiu o seguinte a respeito da competência e da legitimidade
das partes:

A pretensão é de diferenças do benefício percebido de entidade de


previdência complementar, em face de suposto ilícito praticado pelo empre-
gador. A competência para a solução do conflito é da Justiça do Trabalho,
na forma do art. 114 da Constituição Federal. Não se trata de complemen-
tação de aposentadoria e sim de indenização de danos oriundos de parcela
devida e não paga integrante da base de incidência da contribuição devida
à entidade de previdência complementar.
(...)

341
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Abstratamente, é do Banco do Brasil S/A a obrigação que pretende a


parte Autora seja cumprida, sendo legitimado a responder pelo dano cuja
reparação é pleiteada. Possui, destarte, legitimidade passiva ad causam.
Rejeito.
(TRT9, 23ª Vara do Trabalho de Curitiba, RTOrd 000113-
78.2019.5.09.0088, Juíza Titular Suely Filippetto, julgado em 15/04/2020).

3. INTERESSE PROCESSUAL E PRESCRIÇÃO


O que importa, em última análise, é a racionalidade de satisfação do
direito e, fundamentalmente, o nascimento do direito de ação indenizatória,
como última ratio e revelando-se única alternativa do trabalhador no momento
em que o Superior Tribunal de Justiça veda o direito de ação para tutela es-
pecífica do direito à recomposição da reserva matemática e para a revisão do
benefício previdenciário complementar. Até então, até então tinha o direito
de ação cível tutelado pelo Ar. 75 da LC 109/01 e pelas Súmulas 291 e 427 do
STJ, inclusive em relação ao curso da prescrição na relação de trato sucessivo.
Antes do julgamento do Tema 955 no STJ, não havia sequer interesse
processual, na modalidade necessidade, na tutela indenizatória. Tanto é que
não há notícia de uma única demanda sequer buscando a satisfação indeni-
zatória em toda a Justiça do Trabalho até o mencionado julgamento remeter
solução para a via indenitária. Não havia interesse, pois não havia necessidade,
e se alguém a tivesse arquitetado, fatalmente teria a pretensão extinta sem
julgamento de mérito por carência de ação.
A relação básica entre interesse e necessidade no estudo das condições
da ação é narrada por Marinoni: “(...) no que diz respeito ao interesse de agir,
este repousa sobre o binômio necessidade + adequação. A parte tem “necessi-
dade” quando seu direito material não pode ser realizado sem a intervenção
do juiz”3.
Nos casos subsumidos aos temas 955 e 1021 do STJ, o direito material
poderia ser plenamente realizado sem a intervenção do juiz trabalhista (tutela
ressarcitória), dada a possibilidade de realização do direito previdenciário por
meio do juiz de direito comum (tutela específica).

3 MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdicional


através do processo de conhecimento. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2003. p. 67

342
Responsabilidade civil do patrocinador por dano previdenciário a partir da tese fixada no tema 955 do STJ

Com a definição do Tema 955, entretanto, nasce a necessidade, e com


ela o interesse e, por conseguinte, o direito de ação. A via se torna necessária,
fazendo nascer direito, não em razão de uma imposição pelo STJ de um agir
da Justiça do Trabalho, mas em razão da vedação pelo STJ do direito de ação
cível para tutela específica da relação previdenciária.
Tal dinâmica é fundamental para se compreender os regimes distintos dos
direitos de ação a) trabalhista; b) previdenciária e c) indenizatória decorrente
do julgado no Tema 955 pelo STJ, especialmente no que concerte o curso do
prazo prescricional.
Se o direito de ação trabalhista para discutir os aspectos do contrato e
da relação de trabalho tem o curso do prazo prescricional, em regra, a partir
da data da rescisão do contrato de trabalho; e a ação revisional previdenciária,
tendo trato sucessivo em razão dos danos presentes e futuros – recebimentos a
menor a título de complementação com efeitos vitalícios – regulado pelo Art.
75 da LC 109/01, c/c Súmulas 291 e 427 do STJ, com prescrição retroativa ao
prazo quinquenal para efeitos meramente financeiros; então o trato prescri-
cional da ação indenizatória para compensação pelos danos previdenciários
pode admitir controvérsia inicial em razão dos critérios distintos assumidos
pelos direitos de ação trabalhista e previdenciária.
Em razão disso, merece análise mais apurada para que se revele, a seguir,
o óbvio.
Três critérios parecem atrair atenções: o da competência, o do interesse e
o da natureza e da extensão do dano.
Como já exposto nos tópicos anteriores, a competência trabalhista
decorre do comando constitucional, a causa do dano específico tem origem
na repercussão previdenciária mensal – dano autônomo indiretamente re-
lacionado com o dano trabalhista tutelado na respectiva reclamatória –, e a
extensão do dano é plenamente aferível com base em valores equivalentes ao
prejuízo havido na relação previdenciária, ainda que ela perdure intacta após
a satisfação indenizatória, já que inviável a pretensão de obtenção da tutela
jurisdicional específica.
Em razão da competência trabalhista, é previsível a atração do regime
jurídico celetista e da causalidade do contrato de trabalho para suscitar início
e duração do prazo prescricional da ação indenizatória também na data da
sua rescisão, seguindo a regra geral da CLT.
Ocorre que a competência material para a tutela jurisdicional da reparação
de danos causados pelo empregador ao empregado decorre normativamente
343
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

da Constituição da República, e não distingue entre danos causados ou não


em decorrência do contrato de trabalho.
Se o contrato de trabalho tem efeitos que se esgotam na respectiva
rescisão, por sua natureza – a compra e venda de tempo de trabalho, com
entrega de força e intelecção com contraprestação em dinheiro –, dando
sentido à dinâmica celetista da prescrição do direito de ação para discutir
quaisquer de seus aspectos; por sua vez o contrato previdenciário tem efeitos
que perduram de forma complexa. Se o contrato de trabalho se extingue
antes da elegibilidade do trabalhador patrocinado para receber o benefício,
ele dependerá da gestão da EFPC para somente recebê-lo no futuro. Se de-
pois, ele passa a recebê-lo e continua a fazê-lo desde então e, via de regra,
enquanto viver.
Cediço que o valor da conta individual de capitalização (nos planos
de contribuição definida), da reserva matemática individual e do benefício
complementar (nos planos de benefício definido) são resultados diretos das
disposições regulamentares que definem os valores dos aportes do participante
e do patrocinador e, principalmente, de suas bases de cálculo, que via de re-
gra são afetadas a posteriori pelo resultado das reclamatórias trabalhistas, era
patente que o trânsito em julgado da reclamatória trabalhista, e a consequente
homologação dos cálculos da respectiva execução, era o que fazia nascer o
direito de ação revisional previdenciária.
Como resultado da reclamatória trabalhista, e não da rescisão do contrato
de trabalho, nascia o direito à ação revisional, que tinha prescrição tutelada
pelo Art. 75 da LC 109/01 até a definição do Tema 955 no STJ. Ou seja, o
direito à ação revisional nascia anos – via de regra mais de dois – depois da
rescisão do contrato de trabalho. E durava indefinidamente, respeitando-se
apenas o prazo quinquenal retroativo para fins financeiros, permitindo ao
participante dispor do direito de ação a qualquer tempo.
O direito de ação indenizatório, que não existia – porque não havia neces-
sidade e, em razão disso, interesse, tratando-se portanto de direito, até então,
carente de ação, como infirmaria a teoria processual clássica –, surge em razão
da necessidade criada pelo STJ na definição do Tema 955, para tornar inviável
um direito por sua vez que só nascia no trânsito em julgado da reclamatória
trabalhista, quando da homologação dos cálculos da respectiva execução. E
para compensar o dano material decorrente dessa inviabilidade, ou seja, de
não mais ser possível receber na justiça comum o quinquênio retroativo nem
a revisão do benefício pro futuro.
344
Responsabilidade civil do patrocinador por dano previdenciário a partir da tese fixada no tema 955 do STJ

Em razão disso, depois de organizadas as ideias, seria cínica, ou ao menos


perversa, qualquer tentativa de atração do prazo prescricional do direito inde-
nizatório à regra geral que fixa o respectivo termo inicial da data da rescisão
do contrato de trabalho.
Na data da rescisão do contrato o direito revisional previdenciário ainda
não existe, pois depende de proposição e julgamento de reclamatória traba-
lhista antecedente; e o direito indenizatório decorrente da inviabilidade do
direito revisional, ulteriormente fixada pelo Superior Tribunal de Justiça, tam-
bém não. Não há porque e nem como correr o prazo prescricional enquanto
o direito de fundo, para o qual serve de instrumento o direito de ação, não
existe, faltando-lhe certeza, liquidez e exigibilidade.
Portanto, não é aplicável à tutela jurisdicional do direito de ação para
reparação do dano material específico em comento apesar da indiscutível
competência material da Justiça do Trabalho, a regra geral celetista de pres-
crição, nem em relação ao seu termo inicial e nem em relação à sua duração.
É por conta da dependência do direito indenizatório ao direito de fundo,
que com ele não se confunde mas que tem a sua mesma e precisa extensão,
pois depende dele para que se configure, que o seu direito de ação instru-
mental deve obedecer aos mesmos critérios e condições que o direito de ação
instrumental daquele, admitindo precisamente o mesmo trato prescricional.
O prazo excepcional de prescrição para proposição de nova reclamatória
trabalhista, previsto na CLT – que admite a primeira reclamatória como causa
de interrupção do prazo de prescrição para a segunda – também não pode ser
atraído inadvertidamente à hipótese.
Imaginemos que no mês imediatamente anterior ao início do julgamen-
to que culminou com a definição do Tema 955 no STJ, em julho de 2018,
alguém cuja reclamatória trabalhista havia sido julgada havia três ou quatro
anos tinha o direito pleno de ação revisional previdenciária, do qual podia
ou não dispor, ao seu critério. Quando a questão é levada para a Justiça do
Trabalho a partir da solução indenitária definida no referido julgamento, seu
direito legítimo seria arbitrariamente fulminado caso nela fosse recebido pela
excepcional regra celetista, já que decorrido o biênio do trânsito em julgado
da reclamatória.
Nunca tirando os olhos de sua inequívoca competência constitucio-
nal para a tutela da responsabilidade pelos danos materiais causados pelo
empregador patrocinador, e admitindo que os danos materiais possam ter
naturezas estranhas ao contrato de trabalho e próprias do contrato previ-
345
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

denciário, que lhe é consequente porém autônomo, a Justiça do Trabalho


passa a ter, sob sua tutela, regime prescricional não celetista, mas civil e
previdenciário, tecendo as condições instrumentais de saneamento do di-
reito indenizatório. Presentes tais condições, pode apreciar a configuração
e a extensão do dano material previdenciário cuja reparação é o conteúdo
da própria tutela jurisdicional.
É firme a lição de Mauro Schiavi, abalizado em Pontes de Miranda e José
Hortêncio Ribeiro Junior:

Para se aquilatar qual o prazo prescricional de determinado direito,


mister se faz investigar, primeiramente, a natureza da relação jurídica con-
trovertida. Se a relação jurídica for trabalhista, aplica-se a prescrição prevista
no Direito do Trabalho (art. 7º, XXIX da CF e art. 11 da CLT). Se a natureza
for civil, aplicam-se as regras disciplinadas no Código Civil.
Nesse sentido, a lição abalizada de Pontes de Miranda:
O ramo do direito em que nasce a pretensão é o que lhe marca a pres-
crição, ou estabelece prazo preclusivo ao direito. Se essa regra jurídica não
foi prevista, rege o que o ramo do direito aponta como fundo comum a ele
e a outros ramos do direito. No plano internacional, o sistema jurídico que
é estatuto da pretensão também é da prescrição.
Desse modo, julgando uma controvérsia que não é oriunda de uma
relação de emprego, o Juiz do Trabalho deverá aplicar a prescrição referente
ao ramo do direito ao qual pertence a pretensão. (...) Nesse contexto, é a
opinião de José Hortêncio Ribeiro Junior:
Estando a regra do art. 7º, XXIX, da Constituição Federal voltada às
relações de emprego, não seria aplicável às novas relações jurídicas inse-
ridas no espectro da competência da Justiça do Trabalho. Para estas causas,
teremos que observar os prazos prescricionais previstos para as relações
jurídicas materiais, podendo, portanto, reclamar incidência das regras (...)
do Código Civil”.4

Como o que se discute em tela é o prejuízo em relação jurídica que decorre


da relação de emprego mas que com ela não se confunde, ou seja, é oriunda
do inadimplemento de regras contidas no regulamento do plano de benefícios

4 SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho: de acordo com o novo CPC,
reforma trabalhista – Lei 13.467/2017 e a IN. n. 41/2018 do TST. 14ª ed. São Paulo: LTr,
2018. p. 542

346
Responsabilidade civil do patrocinador por dano previdenciário a partir da tese fixada no tema 955 do STJ

patrocinado pelo empregador, ou seja, é oriunda da relação previdenciária,


então os prazos que a tutelam devem ser observados.
Esgotadas, portanto, as possibilidades de incidirem na hipótese os prazos
bienais prescritos na CLT – aqui revela-se o Juiz do Trabalho como mais do que
juiz do contrato de trabalho –, tendo em vista a natureza do direito de fundo
e do respectivo direito instrumental de ação, resta avaliar o direito aplicável.
Como o triênio previsto no Código Civil é regra geral que dá vez à regra
específica do Art. 75 da LC 109/01, respaldada pelas Súmulas 291 e 427 do
STJ no direito de fundo, e como a ação indenizatória visa justamente a com-
pensar o participante pela inviabilização do direito revisional previdenciário,
é o critério do direito previdenciário de fundo que deve ser aplicado na tutela
do direito incidental indenizatório pela Justiça do trabalho, especialmente no
que governa o curso da prescrição: rege a matéria a prescrição quinquenal, a
partir de cada pagamento feito a menor para o participante.

4. CONFIGURAÇÃO E EXTENSÃO DO DANO


Enfrentadas as questões preliminares e prejudiciais que pressupõem a
tutela do direito indenizatório criado pela solução dada no Tema 955 pelo
STJ, passamos a analisar os parâmetros de comprovação e valoração do dano
material. Seu conteúdo e extensão podem demonstrados, para configuração
do direito de indenização, pelo preciso valor do efetivo prejuízo causado ao
ofendido.
É lição basilar que o Código Civil adota, em seus Art. 186 e 9275, a teoria
da responsabilidade civil do agente causador de dano, bem como o dever de
reparar os prejuízos causados, configurando a responsabilidade como regra
na análise das indenizações. Ademais, a Carta Magna de 1988, com a finali-
dade de garantir a proteção aos direitos fundamentais de todos os cidadãos,
prescreve em seu Art. 5º, X, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada,
a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação”.
Inegável a constatação, nas hipóteses tuteladas pelo Tema 955 do STJ,
com o reconhecimento do prejuízo e a definição da solução indenizatória

5 Art. 186 Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar
direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927
Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

347
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

decorrente da inviabilidade da solução revisional, também como corolário


intrínseco o reconhecimento de que a redução dos referidos benefícios
previdenciários complementares é dano que compromete todo o futuro da
condição de subsistência dos interessados, apesar dos direitos assegurados
nos regulamentos dos respectivos planos de benefícios.
Destarte, quer por ação deliberada, logo, intencional; quer por negligência
e imprudência, as condenações trabalhistas dos patrocinadores são a prova
cabal da existência da conduta lesiva que dá causa direta e imediata à redução
dos valores pagos mensalmente a título de aposentadoria complementar aos
ex-funcionários pelos fundos de pensão por eles patrocinados, especialmente
nos planos de benefício definido.
Ora, sonegadas as verbas reconhecidas na reclamatória trabalhista na
base de cálculo do benefício concedido pelo plano de previdência comple-
mentar oferecido pelo réu, a diferença entre o valor que este benefício teria,
caso obedecido o regulamento, e aquele em que foi concedido pelo fundo de
pensão, materializa dano de trato sucessivo em prejuízo seu, com efeitos que
se reproduzirão enquanto o benefício for mantido, inclusive sobre eventual
pensão devida a dependente após seu falecimento.

4.1 Configuração do dano


Tateadas, nos casos que se adstringirem à hipótese em comento, a ca-
racterização da ilegalidade da conduta (a tese fixada remete expressamente
ao “ato ilícito do empregador” de deixar o patrocinador de atender ao regu-
lamento, no que determina a incidência das contribuições previdenciárias
complementares sobre os efetivos salários de participação, neles devendo-
-se incluir todas as verbas remuneratórias percebidas nos meses utilizados
para o cálculo do salário real de benefício, critério majoritário dos planos
de benefício definido), a existência do dano (a redução do benefício com-
plementar), bem como o nexo entre a conduta e dano do empregador no
infortúnio (o valor a menor do benefício mensal é corolário direto do valor
a menor dos salários de participação que via de regra embasam o cálculo
do Salário-Real-de-Benefício).
Nos planos de benefícios, em regra o valor do Salário-Real-de-Benefício
decorre diretamente dos salários de participação contidos no período de pres-
tação de serviço que suscitou a reclamatória trabalhista. A variação do valor
dos salários de participação em função do direito reconhecido na reclamatória
348
Responsabilidade civil do patrocinador por dano previdenciário a partir da tese fixada no tema 955 do STJ

trabalhista cristaliza o dano material sofrido pelo trabalhador, dado seu efeito
direto sobre o valor do Salário-Real-de-Benefício.
Os salários de participação, por sua vez via de regra são afetados pelo
resultado da reclamatória trabalhista, tendo em vista que se consideram, tanto
para fim das contribuições mensais quanto do cálculo do benefício, o total das
parcelas salariais incorporadas, de forma definitiva, às remunerações recebidas
pelo trabalhador. Ressalte-se que, em regra, tais remunerações só não foram
originalmente consideradas para o cálculo das contribuições mensais em razão
da sonegação do direito aos seus valores corretos, mais tarde reconhecido na
Justiça do Trabalho, circunstância absolutamente alheia e lesiva à vontade e
ao direito do participante.
Tendo em vista que, em razão do assentamento da matéria no STJ, que
aniquilou o direito de ação em busca da tutela jurisdicional de revisão das
relações jurídicas jacentes entre os participantes e os fundos de pensão, resta-
-lhes buscar a tutela ressarcitória na Justiça do Trabalho, em baliza equitativa
ao prejuízo decorrente da impossibilidade de rever o valor do respectivo
complemento.
Cumpre ressaltar que a jurisprudência do Egrégio Tribunal Regional
do Trabalho da Terceira Região – TRT3 aponta pela procedência do pleito
indenizatório embasado no Tema 955 do STJ, conforme demonstram os pre-
cedentes a seguir expostos:

INTEGRAÇÃO DA PARCELA CTVA NO SALÁRIO DE CONTRIBUIÇÃO


À FUNCEF. INDENIZAÇÃO. MIGRAÇÃO PARA NOVO PLANO. SALDA-
MENTO DO REG/REPLAN. POSSIBILIDADE. Em virtude do seu caráter
salarial, o CTVA deve ser integrado ao salário de contribuição para fins
de aposentadoria complementar. A adesão ao Novo Plano de previdência
complementar não obsta a discussão do recálculo do saldamento do antigo
plano, objetivando o recolhimento de contribuição para a FUNCEF sobre a
parcela salarial. Logo, não se pode falar em afronta a ato jurídico perfeito,
sendo devida a indenização por perdas e danos.
(...)
Acrescente-se que a não inclusão do CTVA na base de cálculo do salário
de contribuição devido à FUNCEF acarretou inegáveis prejuízos à recla-
mante, tendo em vista a redução do fundo matemático a que tem direito.
Inafastável também a ação culposa da ré, que deixou de repassar à entidade
de previdência privada o valor correto, bem como o nexo de causalidade
entre a ação da empregadora e a redução da reserva matemática da obreira

349
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

junto à FUNCEF, reputando-se presentes os requisitos estabelecidos no art.


186 do Código Civil.
Ademais, ressalte-se que são inócuos os cálculos constantes nas razões
recursais da reclamada (ID d2824b5 − Pag. 27/28), por meio dos quais a
recorrente intenta demonstrar que a adesão ao Novo Plano foi benéfica à
reclamante, ainda que sem a integração do CTVA à base de
cálculo das contribuições à FUNCEF. Isso porque o ponto central da
questão reside no fato de que o CTVA possui inegável natureza jurídica
salarial, nos termos do art. 457, § 1º, da CLT, donde decorre, necessaria-
mente, a incidência das contribuições previdenciárias sobre o valor que
lhe é correspondente.
(TRT, Segunda Turma, Relatora Exma. Desembargadora Maristela Íris da
Silva Malheiros, ROT 0010107-60.2019.5.03.0186, julgado em 01/10/2019)
(destaques acrescidos).

INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS PELA NÃO INTEGRAÇÃO DA


PARCELA CTVA NO SALÁRIO DE CONTRIBUIÇÃO À FUNCEF. SALDA-
MENTO DO REG/REPLAN. PROCEDÊNCIA. A CTVA, verba salarial, deve
integrar o salário de contribuição para fins de aposentadoria complementar.
Devida, portanto, a indenização por perdas e danos, correspondente às
diferenças de reserva matemática decorrentes da não inclusão da CTVA na
base de cálculo do benefício REG-REPLAN saldado. Recurso ordinário da
autora conhecido e provido.
(TRT3, Quarta Turma, Relatora Exma. Juíza Convocada Cristina Adelai-
de Custódio, ROT 0010528-62.2019.5.03.0182, julgado em 27/11/2019)
(destaques acrescidos).

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. CTVA (COMPLEMENTO TEMPORÁRIO


VARIÁVEL DE AJUSTE AO PISO DE MERCADO) E PORTE. REFLEXOS NO
ADICIONAL POR TEMPO DE SERVIÇO E NA VANTAGEM PESSOAL. As par-
celas CTVA e Porte, pagas pela CEF, integram a remuneração do empregado
e geram reflexos no adicional por tempo de serviço e na vantagem pessoal.
Tese Jurídica Prevalecente nº 14 deste Egrégio Regional.
(...)
Logo, como a empregadora não computou parcela de reconhecida inte-
gração na base de cálculo do salário de contribuição, deve responder pelos
danos decorrentes da reserva matemática das contribuições que deixaram
de ser vertidas ao Fundo Previdenciário na época própria.

350
Responsabilidade civil do patrocinador por dano previdenciário a partir da tese fixada no tema 955 do STJ

Portanto, deve ser mantida a condenação da ré ao pagamento de inde-


nização correspondente à diferença entre a reserva matemática calculada
pela FUNCEF e a reserva que seria encontrada caso a parcela CTVA tivesse
sido incluída na operação de saldamento, conforme se apurar em liquidação
de sentença.
Porém, em função da prescrição quinquenal acolhida na origem (ID
fe1a1bc − Pág. 4), os valores da condenação ficam limitados a 11/03/2014,
devendo, portanto, os efeitos
financeiros se restringirem a esse marco prescricional.
(TRT3, Sexta Turma, Relator Exmo. Desembargador Anemar Pereira
Amaral, ROT 0010254-21.2019.5.03.0143, julgado em 24/09/2019) (des-
taques acrescidos).

Independentemente de quem seja o empregador e quais foram as verbas


salariais sonegadas, as consequências jurídicas dessa sonegação resultam em
dano ao custeio do plano de previdência complementar e prejuízo no valor
pago mensalmente ao participante, o qual, como já mencionado, está conso-
lidado diante do teor do Tema 955/STJ, restando somente a via indenizatória
para solucionar a questão.
Forte tal razão jurídica, a 23ª Vara do Trabalho de Curitiba decidiu pela
total procedência do pleito obreiro em caso revestido pela similitude fática,
decisão a qual se expõe in verbis:

A pretensão é de reparação de danos materiais oriundos da não inclusão


da parcela auxílio alimentação ou auxílio refeição na base de cálculo das
contribuições vertidas à entidade de previdência complementar auferido
desde julho de 2015 (fl. 1195). Referido auxílio foi reconhecido como
vantagem remuneratória para empregados admitidos até 31/8/1992, em
julgado transitado em julgado (0000429- 23.2015.5.09.0015 − fl.27/123).
Não tendo sido computado, por culta do empregador, é deste a res-
ponsabilidade por reparar eventuais prejuízos, ante o princípio da integral
restituição dos danos. O Autor foi admitido em 08/11/1982, sendo benefi-
ciário da decisão proferida na ação 000429-23.2015.5.09.0015. Tem direito
a diferenças decorrentes da suplementação da aposentadoria em face da
exclusão de verba prevista no regulamento como integrante da base de
cálculo das contribuições à PREVI e do reconhecimento da não possibili-
dade de revisão do benefício, em prol do equilíbrio atuarial, na forma do
precedente obrigatório do STJ, incocado na petição inicial.

351
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

O autor recebe renda mensal como complementação de aposentadoria


por tempo de contribuição e tem direito a diferenças decorrentes dos reflexos
de verbas remuneratórias nos cálculos de referida renda complementar, em
parcelas vencidas e vincendas.
A pretensão é assegurada pelo art. 28 do Regulamento do Plano I, ao
assegurar o salário-de-participação igual à soma das verbas remuneratórias,
no caso, a parcela auxílio alimentação/auxílio refeição.
Observar-se-á, na recomposição da renda complementar para fins de
apuração das diferenças devidas, a forma de cálculo adotada na forma do
Regulamento do Plano I, inclusive o teto de que trata o § 2º do art. 28 do
Regulamento. (fl. 1300).
A reparação, frise-se, decorre do precedente do STJ, cuja tese resulta
ser da empregadora a responsabilidade por diferenças não passíveis de
recomposição em face da entidade de previdência complementar.
(TRT9, 23ªVara do Trabalho de Curitiba, RTOrd 000113-78.2019.5.09.0088,
Juíza Titular Suely Filippetto, julgado em 15/04/2020).

Sob estes fundamentos, quando comprovadas as circunstâncias em co-


mento, restará configurado o direito de reparação de danos, fundamentado
na responsabilidade civil do empregador, com a consequente condenação ao
pagamento do quantum debeatur equivalente ao dano material irreversível
eventualmente causado sobre a relação jurídica previdenciária.

4.2 Extensão do dano


A quantificação da indenização por dano material é regida pelo artigo
944 do Código Civil, o qual dispõe que “a indenização mede-se pela extensão
do dano”.
Tratando-se de prejuízos no valor do benefício pago pelo plano de previ-
dência complementar patrocinado pelo ex-empregador, cumpre identificar o
conteúdo e a extensão do dano patrimonial. O dano patrimonial, na hipótese,
é plenamente aferível, não se confundindo com as hipóteses de indenização
por dano moral, não se aplicando a respectiva prefixação legal ou jurispru-
dencial de valores.
Tratando-se de prejuízo à renda mensal de benefício previdenciário
complementar de duração vitalícia, o dano tem a precisa extensão do valor a
menor percebido na respectiva renda, desde a concessão do benefício e em toda
a sua duração.

352
Responsabilidade civil do patrocinador por dano previdenciário a partir da tese fixada no tema 955 do STJ

Na hipótese, é de se aferir, resolvendo em indenização por perdas e danos


equivalente ao valor dos prejuízos,
a) a diferença entre os valores devidos e os recebidos a título de benefício pre-
videnciário complementar do plano patrocinado, com juros moratórios e correção
monetária até a data do efetivo cumprimento do julgado (que são os valores que
perseguiria caso fosse viável a ação judicial revisional previdenciária prejudi-
cada pelo definido no Tema 955 pelo STJ), para tutelar as parcelas vencidas
e vincendas ao longo do processo; e
b) o capital suficiente para remunerar renda equivalente a esta diferença
mensal em toda duração do benefício, a partir do efetivo cumprimento do jul-
gado, para tutelar as parcelas vincendas – duração via de regra vitalícia nas
disposições dos regulamentos, dado se tratar de pagamento de prestações
pecuniárias futuras de caráter alimentar, permitindo, nesse caso, aplicação
do disposto no artigo 533 do CPC, ou
c) o pensionamento mensal quando da conduta lesiva do empregador
resultar prejuízo em remuneração futura do trabalhador. É a rotina da tutela
indenizatória acidentária, tutelada pelo artigo 950 do Código Civil, como
exemplo. Na hipótese, não se trata de acidente que prejudica salários futuros,
mas de falta de cumprimento do dever legal e regulamentar de que igualmente
resulta prejuízo em remuneração futura do trabalhador.
A exegese normativa cristaliza efeitos do artigo 944, mas é boa baliza o
critério do artigo 950, tendo em vista o prejuízo da renda futura, compensado
pela constituição de capital.
Quanto ao valor a título de pensão mensal, deve-se levar em consideração
a precisa diferença entre os valores devidos, caso tivessem sido regularmente
destinadas as contribuições previdenciárias sobre a base de cálculo conforme
prevista no regulamento, e os recebidos, sem tais contribuições terem sido
destinadas.
Oportuno transcrever os ensinamentos do Dr. Sebastião Geraldo Oliveira,
em sua obra Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional,
quando, abordando tópico concernente à base de cálculo da pensão, esclarece
o seguinte:

Sendo reparatória a natureza jurídica da pensão, a sua base de cálculo


deve ser apurada considerando os rendimentos que a vítima percebia (...).
Pelo princípio da restitutio in integrum que orienta o cálculo da in-
denização, deve-se apurar os rendimentos efetivos da vítima, computan-

353
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

do-se o valor do seu último salário, mais a média das parcelas variáveis
habitualmente recebidas, tais como: horas extras, adicional noturno,
insalubridade, periculosidade, acréscimos previstos em convenções
coletivas etc.6

É certo que ele estava prevendo relação diversa, mas assumindo que o
pensionamento tem como paradigma a remuneração que a pessoa percebia
na hipótese do acidente, para dar efeito ao artigo 950 do Código Civil. É ple-
namente factível assumir também, como baliza, a remuneração que a pessoa
perceberia a título de benefício previdenciário complementar, caso não tivesse
sido lesada, para dar efeito ao artigo 944 do referido diploma, na regra geral
de quantificação do dever de indenizar.
Nas hipóteses em análise, quando demonstrado o prejuízo na renda da
previdência complementar, pode o magistrado fixar condenação ao paga-
mento de pensão mensal vitalícia, nos termos do artigo 944 do Código Civil,
delimitando-se os patamares na exata medida da renda prejudicada.

5. CONCLUSÃO
O julgamento da questão contida nos enumerados Temas 955 (horas
extras) e 1021 (demais rubricas) no Superior Tribunal de Justiça – STJ é
um importante marco para a solução jurisdicional dos prejuízos sofridos
pelos participantes de planos de benefícios patrocinados, tendo em vista
a incerteza e imprevisibilidade que pairavam sobre a matéria, gerando
insegurança jurídica tanto para os fundos de pensão quanto para os parti-
cipantes. A solução ressarcitória, que redireciona a responsabilidade para
os antigos empregadores, tem o potencial de entregar segurança jurídica
para ambos.
Cabe agora à comunidade jurídica trabalhar na cooperação para sedi-
mentar os critérios e métodos bastantes para a efetiva realização dos direitos.
Este trabalho tem a pontual finalidade de contribuir, em seus limites de pos-
sibilidade, para tanto.

6 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupa-
cional. 5ª Ed. São Paulo, LTr, 2009, p. 257.

354
Responsabilidade civil do patrocinador por dano previdenciário a partir da tese fixada no tema 955 do STJ

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdi-
cional através do processo de conhecimento. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003.
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidente do trabalho ou doença
ocupacional. 5ª Ed. São Paulo, LTr, 2009
SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho: de acordo com o novo
CPC, reforma trabalhista – Lei 13.467/2017 e a IN. n. 41/2018 do TST. 14ª ed. São
Paulo: LTr, 2018.

355
AÇÕES REGRESSIVAS PREVIDENCIÁRIAS
E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER1

Vicente de Paula Ataide Junior2

Sumário: 1. Introdução – 2. Seguridade social em reforma: a am-


pliação das ações regressivas previdenciárias (ações de ressarci-
mento sui generis) – 3. Previdência social, violência doméstica e
ações regressivas – 4. Considerações finais – Referências.

1. INTRODUÇÃO
O escopo deste pequeno ensaio é tecer considerações preliminares sobre
um dos aspectos do último movimento de reformas na Previdência Social
brasileira, especificamente no que se refere às alterações promovidas pela Lei
13.946/2019 nos arts. 120 e 121 da Lei 8.213/1991.
Essas alterações ampliaram o objeto das chamadas ações regressivas previ-
denciárias (as quais seriam mais bem denominadas como ações de ressarcimento
“sui generis”, pelo seu nítido caráter arrecadatório),3 para abarcar também,
como fundamento, a violência doméstica e familiar contra a mulher.

1 Artigo escrito com a colaboração do Prof. Alberto Luiz Hanemann Bastos, jovem previ-
denciarista formado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, que tão
gentilmente aceitou revisar o material e acrescentar novas ponderações sobre as reformas.
2 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), nos
cursos de graduação, mestrado e doutorado. Doutor em Direito pela UFPR e Pós-Doutor
em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Juiz Federal da 2ª Turma Recursal
Federal do Paraná, especializada em Direito Previdenciário.
3 Para uma visão mais ampla dessas ações, inclusive quanto ao seu cabimento, à sua consti-
tucionalidade e aos seus aspectos processuais, de acordo com a Lei 13.946/2019, consultar:

357
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Para tanto, procede-se, em um primeiro momento, a análise das ações


regressivas previdenciárias no âmbito da seguridade social em transforma-
ção, com os dilemas atinentes à universalidade de cobertura e ao equilíbrio
financeiro e atuarial do sistema.
Como segunda etapa, demonstra-se que a preocupação com a violência
contra a mulher, especialmente no âmbito familiar e doméstico, transborda
o Direito Previdenciário, para abranger outros campos jurídicos e normativas
internacionais em relação às quais o Brasil é signatário.
É a partir dessa realidade de sensibilização para o problema da violência
contra a mulher que se localiza a ampliação das ações regressivas da Previ-
dência Social para abranger as chamadas ações regressivas Maria da Penha.
Mas, não se desconhece que orbitam sobre tais ações variadas indagações
sobre sua própria legitimidade e, até mesmo, sobre sua (in)compatibilidade
com a Constituição Federal. O presente ensaio não enfrentará tais indagações,
ainda que, aqui e acolá, possa demonstrar algum inconformismo sutil sobre
as soluções preconizadas para o estrito âmbito do Direito Previdenciário.
De qualquer forma, a nova modalidade de ação já começa a ser usada pelo
INSS, de modo que o estudo das suas possibilidades é necessário e urgente.

2. SEGURIDADE SOCIAL EM REFORMA: A AMPLIAÇÃO DAS


AÇÕES REGRESSIVAS PREVIDENCIÁRIAS (AÇÕES DE
RESSARCIMENTO SUI GENERIS)
A seguridade social brasileira foi redesenhada pela Constituição da Re-
pública de 1988, a fim de garantir a todos os benefícios de saúde, assistência
e previdência social.
Acompanhando a previsão universalizante desses direitos sociais funda-
mentais, contida no art. 194, parágrafo único, inciso I, da CF, o próprio texto
constitucional se encarregou de lançar as bases para uma rígida disciplina
fiscal e orçamentária destinada a custear os respectivos programas.
Se, de um lado, admite-se que o acesso à previdência social desponta
como um direito fundamental de segunda dimensão,4 dotado de aplicabilidade

ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Ações regressivas previdenciárias: ações de ressarci-


mento sui generis. 2. ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
4 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria

358
Ações regressivas previdenciárias e a violência contra a mulher

direta e imediata; de outro, reconhece-se que o acobertamento efetivo dos


riscos sociais elencados no art. 201 da CF e no art. 1º da Lei 8.213/1991 so-
mente se torna possível na medida em que são estabelecidos critérios racionais
de administração e de ponderação das receitas e dos custos que compõem a
dinâmica financeira-atuarial desse sistema.
Essa preocupação com a higidez econômico-financeira da seguridade
social é bem representada por norma constitucional impondo que “nenhum
benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou
estendido sem a correspondente fonte de custeio total.” (CF, art. 195, § 5º).
A previdência social, em particular, nesse mesmo espírito de responsa-
bilidade fiscal, deve ser “organizada sob a forma de regime geral, de caráter
contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o
equilíbrio financeiro e atuarial.” (CF, art. 201).
Portanto, é lícito concluir que a Constituição quer uma seguridade social
universal, mas, ao mesmo tempo, economicamente sustentável.
Talvez esse seja um dos desafios mais agudos para a política brasileira:
cumprir as expectativas de proteção social prometidas pela Constituição, sem
quebrar as finanças do Estado.
Nada obstante, imperioso assumir que este debate engloba uma série
de complexidades que extrapolam a seara estritamente jurídica. Com efeito,
pautas políticas, financeiras e governamentais também assumem protagonis-
mo nas cizânias diuturnamente altercadas nos órgãos dos Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário.
Nesse sentido, os movimentos políticos sazonais de reformas na estru-
tura constitucional e infraconstitucional do Brasil incluem, quase sempre,
propostas de “reforma da previdência”, porém, não para tornar os benefícios e
serviços da seguridade social mais universais, mas para restringi-los em nome
da sustentabilidade econômica do sistema.5 “Universal” e “sustentável” pare-
cem características incompatíveis no âmbito do Direito da Seguridade Social.

do Advogado Editora, 2015. p. 47-48; SCHÄFER, Jairo. Classificação dos direitos funda-
mentais: do sistema geracional ao sistema unitário: uma proposta de compreensão. 3. ed.
rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. p. 52-59.
5 Já no primeiro ano da presidência de Jair Bolsonaro, dois marcos legislativos de grande im-
pacto jurídico e financeiro foram promulgados no âmbito previdenciário. O primeiro deles
é a Lei 13.846/2019, a qual, dentre outras providências tendentes a reduzir os gastos da
seguridade social e a intumescer as receitas desse sistema, instituiu a carência de 24 (vinte e

359
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Fato é que, até o fim de 2014, o déficit da Previdência Social era orçado
em cerca de 49 bilhões de reais.6 Para 2016, esse prejuízo era estimado em
200 bilhões de reais.7 Em meados do segundo semestre de 2019, previu-
-se que o déficit do Regime Geral da Previdência Social atingiria o ápice de
244 bilhões de reais.8 Claro que esse problema não deriva apenas de gastos
sociais que exorbitam as receitas do orçamento da seguridade social: é um
pouco mais do que evidente que as causas desse déficit não se restringem a
essa simples fórmula contábil.
Nesse panorama de desequilíbrio financeiro e atuarial é que se inserem
as ações regressivas previdenciárias (na verdade, ações de ressarcimento “sui
generis”), mormente porque tais ações possuem cunho eminentemente arre-
cadatório e, agora, com a extensão do seu cabimento em face dos responsá-
veis pelo cometimento de violência familiar e doméstica (art. 120, II, da Lei
8.213/1991), a sua notoriedade torna-se cada vez mais intensa.9

quatro) meses para a obtenção do benefício de auxílio-reclusão; constituiu o “Programa Es-


pecial para Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade” e o “Programa de Revisão
de Benefícios por Incapacidade”, com o intuito de diminuir os indícios de fraude perante a
previdência social, bem como a concessão de benefícios indevidos; e, também com o desi-
derato de acrescer a receita financeira, autorizou o INSS a promover ação regressiva contra os
responsáveis por violência doméstica e familiar contra mulher, nos casos em que o ato ilícito
ocasione prejuízos ao erário previdenciário. O segundo marco, por sua vez, é a Emenda Cons-
titucional 103/2019, a qual culminou na modificação da regra geral de cálculo do valor dos
benefícios previdenciários, que passou a corresponder a 60% da média aritmética de todos os
salários-de-contribuição vertidos pelo segurado – sem o descarte de 20% das menores contri-
buições vertidas ao RGPS –, com acréscimo de 2 pontos percentuais a cada ano de contribuição
que, via de regra, exceder o tempo mínimo de contribuição exigido para a respectiva aposenta-
doria, conforme apregoa o art. 26, § 2º. Além disso, a Emenda Constitucional 103/2019 impôs,
para fins de aposentação, a idade mínima de 62 anos para mulheres e 65 anos para os homens,
com a concomitante prestação de 15 e 20 anos de contribuição, respectivamente.
6 Jornal Gazeta do Povo, Curitiba, 22 nov. 2014, em matéria intitulada “Previsão de rombo da
Previdência sobre para R$49,2 bi.”
7 Globo News, 22 jun. 2016, em matéria intitulada “Déficit da Previdência é de 200 bilhões só
neste ano”. Disponível em: http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2016/06/deficit-da-pre-
videncia-e-de-r-200-bilhoes-so-neste-ano.html. Acesso em: 9 set. 2016.
8 Folha de S. Paulo, 30 ago. 2019, em matéria intitulada “Governo prevê alta no déficit da Pre-
vidência para R$ 244 bilhões em 2020”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mer-
cado/ 2019/08/governo-preve-alta-no-deficit-da-previdencia-para-r-244-bilhoes-em-2020.
shtml. Acesso em: 6 fev. 2020.
9 ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Ações regressivas previdenciárias: ações de ressarci-
mento sui generis, passim.

360
Ações regressivas previdenciárias e a violência contra a mulher

A gênese das ações regressivas previdenciárias, para o ressarcimento


ex lege, remonta ao art. 120 da Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei
8.213/1991), o qual, em sua redação original, autorizava a “Previdência Social”
(não menciona, até hoje, o INSS) a ajuizar “ação de regresso” estritamente
perante as situações envolvendo acidentes de trabalho, nos casos de negligência
quanto às normas-padrão de segurança e higiene do trabalho indicados para
a proteção individual e coletiva.
Durante vários anos esse dispositivo legal permaneceu praticamente
esquecido. Pouco sobre ele se tratou na década de 1990, tirante, talvez, os
clássicos artigos de Daniel Pulino, Sérgio Luís Ruivo Marques e Eduardo
Gabriel Saad, todos de 1996.
Apenas na primeira década do novo milênio, e mais propriamente na
sua segunda metade, é que a “ação regressiva” do art. 120 foi redescoberta.
As ações começaram a ser efetivamente propostas, pelo INSS, a partir de
2007, com a milésima ação regressiva distribuída em 2009, sendo que mais
de quatro mil dessas ações já foram ajuizadas por todas as regiões da Justiça
Federal. Até o final de 2014, a expectativa de arrecadação por meio dessas
ações beirava os setecentos milhões de reais – perspectiva que foi mais bem
avaliada no início do ano de 2019.10
Nesse período, a produção acadêmica foi revigorada, com nítida pre-
valência de artigos e livros assinados por Procuradores Federais ligados ao
INSS, os quais acabaram, de uma maneira geral, por orientar os caminhos da
jurisprudência dos tribunais federais brasileiros.

10 Segundo Fernanda Valente, “A Advocacia-Geral da União ajuizou 395 ações regressivas aci-
dentárias em 2018. A expectativa é que sejam recuperados R$ 173 milhões ao INSS. Os
dados mostram que houve recuo de 30% em relação a 2017, quando foram apresentados
568 processos. Essas ações pedem que responsáveis por acidentes que resultem em paga-
mento de pensões aos acidentados ressarçam o INSS pelos gastos. A medida é prevista na
Lei 8.123/1991. Com o ajuizamento das ações regressivas em 2018, foram arrecadados R$
24 milhões, o que corresponde ao valor que o INSS já desembolsou na concessão do bene-
fício acidentário. A expectativa de ressarcimento é a quantia que a autarquia ainda pagará
e espera receber de volta quando essas ações forem julgadas. De acordo com a AGU, 376
(95,2%) ações ajuizadas em 2018 tiveram como base os relatórios de fiscalização produzidos
pelos órgãos do Ministério do Trabalho. Foram ajuizadas ações coletivas em decorrência
de acidente de trabalho e algumas delas resultaram na proposição de ações civis públicas
por parte do Ministério Público do Trabalho.” (AGU ajuíza 395 ações regressivas para re-
cuperar R$ 173 milhões para o INSS. CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
2019-jan-30/agu-ajuiza-395-acoes-recuperar-173-milhoes-inss. Acesso em: 10 nov. 2019).

361
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Na defesa da pertinência e legitimidade dessas ações – as quais, antes da


Lei 13.846/2019, abrangiam apenas as ocorrências ligadas ao acidente de tra-
balho – costuma-se apontar-lhes uma tripla finalidade: reparar, punir e educar.
Reparar o patrimônio público em relação aos danos causados pelos atos
ilícitos dos empregadores, auxiliando na manutenção do equilíbrio financeiro
e atuarial da previdência social. Punir ou sancionar esses empregadores pela
desobediência às normas de segurança do trabalho. Educar, pela via do castigo
financeiro, para que sejam respeitadas essas normas coletivas, prevenindo a
ocorrência de novos acidentes e preservando o meio ambiente laboral.
Para viabilizar esses propósitos, tais ações foram construídas a partir da
teoria da responsabilidade civil, falando-se em ato ilícito, culpa, dano e nexo
causal, a qual, não obstante apresente sérias inconsistências conceituais para
fundar essas ações, continua sendo utilizada como base.
Sob a égide dessa teoria civilista e da redação original do art. 120 da Lei
8.213/1991 concebeu-se que, nos casos em que o empregador age com culpa,
contribuindo ilicitamente para a ocorrência do acidente de trabalho, causava
dano não somente ao trabalhador, mas também aos cofres da Previdência Social,
ante o desembolso de prestações previdenciárias que poderiam ser evitadas.
Mas, observe-se que, pelos danos materiais e morais causados ao tra-
balhador, há a pretensão indenizatória trabalhista individual, cuja demanda é
hoje proposta na Justiça do Trabalho.
Paralelamente, caso preenchidos os respectivos requisitos legais, o tra-
balhador ou os seus dependentes têm direito às prestações previdenciárias
administradas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), as quais, uma
vez indeferidas, geram a pretensão acidentária por benefícios, a ser deduzida
na Justiça Estadual.
Paga qualquer prestação previdenciária em função do mesmo acidente
de trabalho, surge uma terceira pretensão, fundada no referido art. 120, agora
para a Previdência Social, de se ressarcir, contra o empregador culpado, em
ação de regresso (no caso, mais bem compreendida como uma obrigação ex
lege), das quantias pagas ao trabalhador a título de benefícios previdenciários,
desembolsos que representariam, em tese, dano ao patrimônio público.
Essa última pretensão, que não mais envolve o trabalhador, mas a Pre-
vidência Social de um lado, e o empregador de outro, dá origem ao que se
convencionou chamar de ações regressivas acidentárias ou, em termo mais
amplo, ações regressivas previdenciárias.
362
Ações regressivas previdenciárias e a violência contra a mulher

Concebeu-se, também, que mesmo estando o empregador obrigado a


pagar um seguro público contra acidentes de trabalho, cujo valor serve para
financiar as prestações acidentárias concedidas pelo INSS, isso não o livra de
recompor os cofres da Previdência Social, dado que tal seguro não poderia
servir de “alvará” para que empresas negligentes com a saúde e com a própria
vida do trabalhador fiquem acobertadas e liberadas da sua responsabilidade.
Raciocínio similar pode ser utilizado para a elucubração da dinâmica
do atual art. 120, inciso II, da Lei 8.213/1991 – com redação conferida pela
Lei 13.846/2019 – o qual dispõe que o INSS está autorizado a ajuizar ação
regressiva contra os responsáveis nos casos de “violência doméstica e familiar
contra a mulher”.
Trata-se da nova ação regressiva Maria da Penha.11
Isso porque, como consequência de atos de violência dessa natureza, é
possível sobrevirem contingências sociais das mais variadas ordens: é con-
cebível que a agressão possa acarretar a incapacidade laborativa da vítima e,
por conseguinte, o deferimento de um benefício de auxílio-doença ou, em
casos mais graves, de aposentadoria por invalidez; é plausível – e também
lastimável – que tal agressão possa ocasionar a morte da vítima, fato que
enseja a concessão do benefício de pensão por morte aos seus dependentes.
A violência doméstica, nesta linha de raciocínio, trata-se de um aconteci-
mento apto a gerar repercussões no âmbito previdenciário. Desse modo, o INSS
almeja intervir neste cenário com desideratos idênticos àqueles vislumbrados
nas ações regressivas acidentárias: reparar, punir e educar.
Nesse particular, intenta-se reparar o patrimônio público despendido para
custear o benefício de auxílio-doença/aposentadoria por invalidez deferido à
vítima da agressão doméstica ou, em casos extremos, a pensão por morte con-
cedida aos seus dependentes; punir o agressor por meio da cominação de sanção
pecuniária que se soma às penalidades já elencadas na Lei Maria da Penha;12
e, por fim, educar os infratores no sentido de evidenciar os malefícios desta

11 ZIMMERMANN, Cirlene Luiza. A condenação em sede de ação regressiva previdenciária ao


ressarcimento de benefícios futuros de espécies distintas não viola o princípio da sentença
certa. Revista Magister de Direito Previdenciário, São Paulo: Magister, n. 20, p. 82-99, abr./
maio 2014. p. 83.
12 É o que dispõe o atual art. 121 da Lei 8.213/1991, com redação determinada pela Lei
13.946/2019, in verbis: “O pagamento de prestações pela Previdência Social em decorrência
dos casos previstos nos incisos I e II do caput do art. 120 desta Lei não exclui a responsa-

363
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

conduta antijurídica e, dessa maneira, inibir a ocorrência de futuras agressões


domésticas.
A redação original do art. 120 da Lei 8.213/1991, complementada pelos ul-
teriores incisos que lhe foram conferidos pela Lei 13.846/2019, sedimentaram
as principais características dessas ações, com polêmicas gravitando, dentre
outros assuntos, sobre competência, legitimidade, ônus da prova, prescrição
e, até mesmo, sobre a própria possibilidade jurídica dessas ações, incluindo
a discussão sobre a constitucionalidade do art. 120 da Lei 8.213/1991.13
Cabíveis ou não, constitucionais ou não, é certo que as ações regressivas,
propostas pelo INSS (cuja legitimidade ativa pode ser questionada), conti-
nuam se reproduzindo e, com a ampliação das suas hipóteses de cabimento,
certamente tendem a se proliferar.

3. PREVIDÊNCIA SOCIAL, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E AÇÕES


REGRESSIVAS
Conquanto inicialmente cogitadas como um instrumento de reforço
para o cumprimento da legislação trabalhista14 e de tutela jurídica do meio
ambiente do trabalho,15 é certo que fins paralelos também passaram a inte-
grar a dinâmica das ações regressivas previdenciárias, tais como a garantia do
equilíbrio financeiro e atuarial do RGPS16 e, até mesmo, de proteção ao direito
difuso à higidez do patrimônio público.17

bilidade civil da empresa, no caso do inciso I, ou do responsável pela violência doméstica e


familiar, no caso do inciso II.”
13 ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Ações regressivas previdenciárias: ações de ressarci-
mento sui generis, passim.
14 PULINO, Daniel. Ação regressiva contra as empresas negligentes quanto à segurança e à hi-
giene do trabalho. Revista de Previdência Social, São Paulo: LTr, n. 182, p. 6-16, jan. 1996.
passim.
15 ZIMMERMANN, Cirlene Luiza. A ação regressiva acidentária como instrumento de tutela
do meio ambiente de trabalho. São Paulo: LTr, 2012. p. 83 e 195 et seq.
16 ALVES, Marcus Alexandre. A ação regressiva acidentária e a prescrição da pretensão indeni-
zatória do Instituto Nacional do Seguro Social. Revista da AGU, Brasília, n. 28, p. 215-242,
abr./jun. 2011.
17 CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. A aplicabilidade do microssistema processual coletivo
às ações regressivas acidentárias. Revista Brasileira de Direito Processual RBDPro, Belo
Horizonte, ano 18, n. 69, jan./mar. 2010. Disponível em: http://www.bidforum.com.br/bid/
PDI0006.aspx?pdiCntd=65829. Acesso em: 6 nov. 2014.

364
Ações regressivas previdenciárias e a violência contra a mulher

Com essas duas últimas perspectivas, o objeto das ações regressivas do


INSS tem se alargado para abranger o ressarcimento de qualquer despesa pre-
videnciária decorrente de atos ilícitos – como o cometimento de acidentes de
trânsito e de ilícitos penais dolosos que resultem em lesão corporal, morte ou
perturbação funcional –, independentemente, portanto, de se relacionarem
com o descumprimento de normas de proteção da saúde, higiene e segurança
do trabalho.
Nesse sentido, vale conferir o teor da Portaria Conjunta da Procuradoria-
-Geral Federal e da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS 6/2013,
cujo art. 2º conceituava a ação regressiva previdenciária como sendo toda a
demanda que “tenha por objeto o ressarcimento ao INSS de despesas previ-
denciárias determinadas pela ocorrência de atos ilícitos”. Vê-se que o escopo
da autarquia, ao editar tal ato normativo, era o de estender as hipóteses de
cabimento das ações regressivas, de modo que passassem a englobar não
somente o fenômeno do acidente de trabalho, como também atos ilícitos de
qualquer natureza. Logo, não é sem razão que a dicção do art. 120 da Lei
8.213/1991 foi expandida para passar a englobar também, no bojo das ações
regressivas movidas pelo INSS, os atos de “violência doméstica e familiar
contra a mulher”.
Eis o teor do art. 120, inciso II, da Lei 8.213/1991: “a Previdência Social
ajuizará ação regressiva contra os responsáveis nos casos de: (…) II – violên-
cia doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da Lei no 11.340, de 7
de agosto de 2006.”
Lamentavelmente, a violência doméstica é um ilícito corriqueiro no Brasil.
Embora escassas as fontes necessárias para a realização de um estudo empírico
preciso sobre o tema, sobretudo por conta de sua evidente sensibilidade, os
dados constantes do relatório Segurança Pública em Números, disponibilizado
quando da realização do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018,
identificaram 221.238 casos de violência contra mulheres durante o ano de
2017, o que demonstra uma média de 606 incidentes por dia.18
Além dessa alarmante constatação, é ainda mais expressivo o dado de
que parcela significativa das agressões ocorre dentro do próprio âmbito do-

18 Segurança Pública em Números. Documento disponibilizado pelo Fórum Brasileiro de Segu-


rança Pública, quando da realização do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018. Dis-
ponível em: http://assets-dosses-ipg-v2nyc3.digitaloceanspaces.com/sites/3/2018/08/FBSP_
Anuario_Brasileiro_Segurança_Publica_Apresentacao_2018.pdf. Acesso em: 14 fev. 2020.

365
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

miciliar. Tais inferências são confirmadas pelo Mapa da Violência de 2015,


cujo âmbito temático versou justamente sobre o homicídio de mulheres no
Brasil.19 No referido relatório, consta que o âmbito doméstico figura como
local corriqueiro de incidentes de violência contra a mulher; nesse sentido,
concluiu-se que “quase a metade dos homicídios masculinos acontece na
rua, com pouco peso do domicílio”, enquanto, nos homicídios femininos
(os feminicídios, nos termos do art. 121, § 2º, VI, do Código Penal, com
redação dada pela Lei 13.104/2015) “essa proporção é bem menor: mesmo
considerando que 31,2% acontecem na rua, o domicílio da vítima é, também,
um local relevante (27,1%), indicando a alta domesticidade dos homicídios
de mulheres”.
De fato, ao contrário do raciocínio vigente num passado relativamente
recente, não é mais possível, tampouco razoável, olvidar a problemática da
violência domiciliar com base na ignóbil crença de que a discussão sobre tal
comportamento pertence exclusivamente à esfera particular e interna à própria
família.20 Pelo contrário, o quadro posto justifica a premente necessidade de
que o Estado promova todo um plexo de medidas necessárias para a inibição
de todas as formas de violência contra a mulher (e, inclusive, a doméstica),
seja mediante promulgação de leis específicas sobre o assunto, seja por meio
da intervenção do aparato jurisdicional, ou pela estruturação de políticas
públicas numa determinada localidade em específico.21
A atuação específica do Estado no sentido de inibir a violência contra a
mulher decorre de uma tríplice fundamentação jurídica.22 Em âmbito geral,
o art. 226, § 8º, da CF impõe que “o Estado assegurará à assistência à família
na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a

19 Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Disponível em: https://www.ma-


padaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf. Acesso em: 15 fev. 2020.
20 MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Comentários ao art.
226 § 8º, da CF. In: CANOTILHO, Joaquim José Gomes; SARLET, Ingo Wolfgang; MENDES,
Gilmar Ferreira; STRECK, Lênio Luiz (coords.). Comentários à Constituição do Brasil. 2.
ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 2.223.
21 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 6. ed. Salvador: Editora Juspodivm,
2019. p. 238-248.
22 Para pormenores sobre as obrigações nacionais e internacionais assumidas pelo Estado bra-
sileiro no sentido de combater a violência contra a mulher, vale conferir: DIAS, Maria Be-
renice. A Lei Maria da Penha na Justiça, p. 41-52. No mesmo sentido: MELLO, Adriana
Ramos de; PAIVA, Maria de Meira Lima. Lei Maria da Penha na prática. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2019. p. 39-48.

366
Ações regressivas previdenciárias e a violência contra a mulher

violência no âmbito de suas relações”. No plano internacional, o art. 5º, item


a, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher – mais conhecida pela sigla CEDAW, pacto internacional
cuja incorporação foi intermediada pelo Decreto 4.377/2002 – apregoa que os
Estados-partes tomarão todas as medidas apropriadas para modificar padrões
sócio-culturais de conduta de homens e mulheres, “com vistas a alcançar a
eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra
índole que estejam baseados na ideia de inferioridade ou superioridade de
qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres”. Por
fim, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher – alcunhada “Convenção de Belém do Pará” e incorporada
pelo Decreto 1.973/96 –, em seu art. 7º, alínea c, consolidou que os Estados
deveriam empenhar-se em incorporar na sua legislação interna “normas pe-
nais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para
prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as
medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis”.
Ao fim, a atuação específica e coordenada do Estado no resguardo da
dignidade da mulher visa a inibir todos os atos e gestos responsáveis por des-
prezar a condição de mulher mediante o controle do seu corpo ou de seu com-
portamento para conformá-lo de acordo com estereótipos pré-determinados
por uma cultura marcada pela intolerância à diversidade.23
É neste contexto que desponta a Lei 11.340/2006 – mais conhecida por Lei
Maria da Penha –, cujo principal objetivo é o da criação de mecanismos para
coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 1º), de
modo a privilegiar a sua dignidade, autodeterminação e igualdade. Variadas
frentes de atuação foram impostas pelo legislador para o cumprimento dos fins
almejados, dentre elas: o aumento do rigor punitivo para os crimes de violência
por questões de gênero no âmbito doméstico (art. 44); estímulo à realização
de pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes acerca da violência
doméstica (art. 8º, II); atendimento especializado à mulher vítima de agressões
(art. 8º, IV; 10; 10-A; 11; 12; 12-A e 12-C); bem como instituição das medidas
protetivas de urgência, com vistas a resguardar a integridade física da vítima
nas situações de perigo, seja direcionando restrições judiciais ao agressor (art.
22), seja estabelecendo prerrogativas específicas de guarda da vítima (art. 23).

23 MELLO, Adriana Ramos de; PAIVA, Maria de Meira Lima. Lei Maria da Penha na prática,
p. 68-70.

367
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Em que pese a notável importância de toda esta temática, é necessário


destacar que a intersecção da seguridade social com a violência doméstica é
ainda pouco explorada na doutrina do Direito Previdenciário, sobretudo por
ter sido referida, na Lei de Benefícios, muito recentemente.
Como exposto alhures, antes da superveniente alteração da redação do
art. 120 da Lei 8.213/1991, ocorrida com a promulgação da Lei 13.846/2019,
era possível visualizar tentativas esparsas de imputar ao agressor a respon-
sabilidade de ressarcir os danos indiretamente ocasionados ao erário da
previdência social. Contudo, a principal guinada das ações regressivas, fun-
dadas na Lei Maria da Penha, deu-se com o posicionamento enunciado pelo
Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do REsp 1.431.150.24
Nele, o Tribunal decidiu que a ausência, à época, de previsão expressa de
ressarcimento do INSS em face do agente que praticou ato ilícito no qual
resultou a concessão de benefício previdenciário, não implicaria óbice ao
ajuizamento de ação regressiva, eis que tal pretensão encontraria guarida na
aplicação conjunta dos arts. 120 e 121 da Lei 8.213/1991 e dos arts. 186 e 927
do Código Civil (fundado, portanto, da teoria da responsabilidade civil).25
Assim, é lícito afirmar que o art. 24 da Lei 13.846/2019 sedimentou a
conexão entre a Lei Maria da Penha e a Lei de Benefícios da Previdência Social
no plano legal, todavia, como visto, tal interseção foi cogitada antes mesmo
da previsão expressa dessa modalidade de ação regressiva no art. 120, II, da
Lei de Benefícios da Previdência Social.

24 STJ, 2ª Turma, REsp 1.431.150/RS, Rel. Min. Humberto Martins, j. 23 ago. 2016, p. 2 fev. 2017.
25 O julgamento do REsp 1.431.150/RS teve imensa repercussão e o seu teor integrou intensas
discussões na doutrina previdenciária. Naquela ocasião, a professora Melissa Folmann, em
comunicado à imprensa emitido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM),
teceu as seguintes observações: “[…] em 2012, foi ajuizada a primeira ação regressiva do
INSS baseada na Lei Maria da Penha e que agora passa pelo crivo do STJ […]. É lamentável
termos de chegar a isso para educar, mas foi a alternativa, já que o sentido de cuidado com o
próximo está cada vez mais longe das relações em sociedade e as consequências financeiras
estavam ficando exclusivamente com o INSS. Em suma, se o STJ afastar o dever indenizató-
rio do réu baseado na ausência de previsão na Lei 8.213/91, esvaziará o mérito de ações de
mesmo teor. E, naturalmente, o cunho de educação pela máxima ‘sentiu no bolso, aprendeu’
perderá seu sentido.” (Comunicado à imprensa emitido pelo IBDFAM, 13 jan. 2016, em
notícia intitulada “INSS pode cobrar de ex-marido que matou a ex-mulher ressarcimento
de pensão paga aos filhos do casal? STJ vai decidir”. Disponível em: http://www.ibdfam.
org.br/noticias/5872/INSS+pode+cobrar+de+ex-marido+que+matou+a+ex-mulher+ressarci-
mento+de+pens%C3%A3o+paga+aos+filhos+do+casal%3F+STJ+vai+decidir. Acesso em: 5
fev. 2020).

368
Ações regressivas previdenciárias e a violência contra a mulher

Ademais, pode-se dizer que o movimento de delimitação do “ressarci-


mento integral” dos gastos estatais despendidos para a promoção das diretrizes
indicadas na Lei Maria da Penha não se exauriu com a tipificação da ação
regressiva fundada na agressão doméstica. Com efeito, a Lei 13.871/2019 –
posterior à tipificação legal da assim chamada ação regressiva Maria da Penha
– foi responsável por inserir os §§ 4º e 5º no art. 9º da Lei 11.340/2006, os
quais estipulam que eventuais gastos públicos para o custeio do tratamento
das vítimas no sistema SUS, bem como para a instalação de dispositivos de
segurança para o monitoramento de mulheres ameaçadas, terão de ser inteira-
mente ressarcidos pelo agressor. Isso posto, reconhece-se que a ampliação dos
espectros de ressarcimento de danos ao erário decorrentes de ilícitos cometidos
por particulares não é movimento exclusivo do Direito Previdenciário, mas
engloba também outros campos de atuação do poder público.
Portanto, com a menção expressa da Lei 11.340/2006, no bojo do art. 120
da Lei 8.213/1991, resta evidenciada a tentativa de aproximar a seguridade
social da problemática da agressão domiciliar.
Nesse mote analítico, a intersecção entre a violência doméstica e o Direito
Previdenciário pode ser cogitada em dois específicos riscos sociais acober-
tados pelo INSS, quais sejam, a incapacidade e o óbito, sobretudo porque
ambos integram o campo de abrangência tanto da Lei 8.213/1991, quanto
da Lei 11.340/2006. Na Lei de Benefícios da Previdência Social, é sabido que
a incapacidade laborativa temporária perfaz o fato gerador do benefício de
auxílio-doença (art. 59); a incapacidade laborativa permanente, por sua vez,
enseja a concessão do benefício de aposentadoria por invalidez (art. 42); e,
por fim, o óbito do segurado do sistema previdenciário acarreta a prestação de
benefício de pensão por morte aos seus dependentes (art. 74). Na Lei Maria
da Penha, a incapacidade laborativa e a morte, em certa medida, são vistas
como fatores de risco a serem prevenidos pelo endurecimento das punições
direcionadas aos agressores domésticos, cujos ilícitos passaram a integrar uma
forma qualificada de lesão e homicídio (art. 7º).
Segundo o art. 7º da Lei Maria da Penha, a violência doméstica e familiar
subdivide-se em cinco modalidades distintas, a saber: a física, a psicológica,
a sexual, a patrimonial e a moral.26

26 Parcela da doutrina entende que tal rol não é taxativo, de modo que podem ser averiguadas
outras formas de violência além daquelas antevistas pelo legislador (LIMA, Renato Brasileiro

369
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

Apesar da relevante ampliação das modalidades de violência moral, se-


xual e patrimonial – as quais usualmente não constam no escopo da violência
referida no Código Penal, adstrita à agressão física ou corporal27 –, impende-
-nos focar nas violências de cunho físico (art. 7º, I, da Lei 11.340/2006) e
psicológico (art. 7º, II, da Lei 11.340/2006). Isso porque estas duas formas
de agressão possuem repercussão direta na esfera previdenciária, na medida
em que podem ocasionar a incapacidade laborativa da segurada ou o seu
óbito, o que poderá ensejar, por conseguinte, a concessão de benefício por
incapacidade ou de pensão por morte aos seus dependentes.
A violência física é definida como toda a ação ou omissão apta a
ocasionar danos à integridade física ou à saúde da mulher, sendo normal-
mente associada aos crimes de feminicídio, tentativa de feminicídio e lesão
corporal.28 A depender da gravidade da lesão, é possível a manifestação de
incapacidades laborativas das mais diversas ordens, que podem decorrer,
por exemplo, de patologias ortopédicas supervenientes à agressão, aptas a
impossibilitar o exercício de atividades braçais ou de profissões que exi-
jam perambulação – tais como a de vigilante ou inspetora de produção; de
morbidades oculares supervenientes à violência física, as quais impedem
o exercício de profissões que dependam de visão acurada – tais como a de
médica cirurgiã, motorista e odontóloga. Diante disso, impor-se-á ao INSS
o deferimento dos benefícios de auxílio-doença ou de aposentadoria por
invalidez. Também, caso a violência doméstica resulte em feminicídio (art.
121, § 2º, VI do CP), será concedido benefício de pensão por morte aos de-
pendentes da segurada instituidora – sendo excluído do rol de beneficiários,
evidentemente, o autor da agressão, nos termos do art. 16, § 7º e art. 74, §
1º, ambos da Lei 8.213/1991.
Em passo diverso, a violência psicológica, nos termos do art. 7º, II, da Lei
Maria da Penha, caracteriza-se por qualquer conduta que cause dano emocional
e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvi-
mento, ou que vise a degradar ou controlar ações, comportamentos, crenças
e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,

de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 4. ed. Salvador: Editora Juspo-
divm, 2016. p. 911).
27 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único, p. 910.
28 MELLO, Adriana Ramos de; PAIVA, Maria de Meira Lima. Lei Maria da Penha na prática, p.
83-84.

370
Ações regressivas previdenciárias e a violência contra a mulher

isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,


ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que lhe causa prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
Mello e Paiva, nesse sentido, indicam que a corriqueira forma de agres-
são psicológica é o chamado “gaslighting” – termo traduzido livremente do
inglês como manipulação –, que consiste numa “forma de abuso psicológico
no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer
o abusador ou simplesmente inventá-las com a intenção de fazer a vítima
duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade.”29 Noutros termos,
entende-se que o agressor tira proveito de determinadas vulnerabilidades
da vítima com o fito de esfacelar a sua altivez, tornando-a psicologicamente
dependente do perpetrador da violência e, por isso, inapta a aperceber-se dos
riscos das agressões praticadas no transcurso da relação de afeto ou convívio.
Durante longo período, as intercorrências psicológicas foram olvidadas
do espectro incapacitante dos benefícios previdenciários, no entanto, hodier-
namente, com o redimensionamento do próprio conceito de saúde face ao
paradigma biopsicossocial, o enfoque psíquico e o psicossomático da saúde
ganham “importância, à vista da dinâmica e vivências do homem no mundo,
diante das inquietações, cansaço, esgotamentos, desgaste de energias men-
tais, pressa, ansiedade, incertezas dos fatos da vida econômica e social.”.30
Uma vez inserida a saúde psíquica no âmbito de proteção dos benefícios por
incapacidade, é totalmente possível que a agressão psíquica prevista pela
Lei Maria da Penha consubstancie causa para a concessão de benefício de
auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, pois não raro a violência psi-
cológica acarreta patologias das mais diversas ordens – tais como a depressão,
o distúrbio do sono e a ansiedade,31 as quais, consequentemente, obstam o
exercício da profissão.
Com essa ampliação, as ações regressivas estão deixando de ser apenas
acidentárias, para assumirem extensão de ações regressivas previdenciárias, ou

29 MELLO, Adriana Ramos de; PAIVA, Maria de Meira Lima. Lei Maria da Penha na prática, p.
86-87.
30 BRAMANTE, Ivani Contini. Determinantes sociais da incapacidade no direito da seguridade
social. In: MARTINEZ, Wladimir Novaes (orient.); KOSUGI, Dirce Namie (coord). Perícia
biopsicossocial ou complexa. São Paulo: LTr, 2017. p. 40.
31 MELLO, Adriana Ramos de; PAIVA, Maria de Meira Lima. Lei Maria da Penha na prática, p.
87.

371
REFORMA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE TÉCNICA E APOLÍTICA

universais, como percebe Savaris,32 uma vez que não mais se limitam ao res-
sarcimento de valores pagos a título de benefícios acidentários, abrangendo
também benefícios não decorrentes de acidente de trabalho. Seguindo essa linha,
Zimmermann 33 acrescenta denominações específicas, como ações regressivas
de trânsito e ações regressivas Maria da Penha – esta última erigida à hipótese de
ação regressiva típica no art. 120, II, da Lei 8.213/1991 – nesse último caso se
referindo aos ilícitos praticados contra a mulher, referidos na Lei 11.340/2006.34
Assim, qualquer estudo jurídico-processual sobre o gênero ações re-
gressivas previdenciárias tem que partir da análise do próprio cabimento
ou possibilidade desse tipo de ação – ainda permeadas de controvérsias e
polêmicas – à luz não só das regras legais ordinárias, como também à luz da
Constituição e da teoria geral da responsabilidade civil, local onde se abriga
o direito de regresso.
Será que o art. 120 da Lei 8.213/1991, ao determinar ação regressiva
contra os responsáveis, realmente diz respeito à ação de regresso tratada nas
instituições de responsabilidade civil? Será de responsabilidade civil que trata
esse dispositivo? Seria responsabilidade civil apenas porque a lei menciona
ação de regresso? E caso se constate que a figura prevista no artigo não se
amolda aos contornos da responsabilidade civil, quais seriam as consequências
práticas em termos de sua aplicabilidade? Haveria algum outro fundamento
jurídico que respaldasse o proposto ressarcimento aos cofres públicos, sem
que se tratasse de direito de regresso?35
Analisando criticamente o art. 120, II, da Lei 8.213/91, como tratar a
sensível questão da agressão doméstica na esfera previdenciária sem submeter
à vítima da violência a uma rememoração do trauma sofrido em momentos

32 SAVARIS, José Antonio. A ilegitimidade da ação regressiva do INSS decorrente de ato ilícito
não acidentário. Revista de Previdência Social, São Paulo: LTr, n. 391, p. 477-485, jun.
2013. p. 481.
33 ZIMMERMANN, Cirlene Luiza. A condenação em sede de ação regressiva previdenciária ao
ressarcimento de benefícios futuros de espécies distintas não viola o princípio da sentença
certa, p. 83.
34 Confira, também, as denominações constantes na “Cartilha de Atuação nas Ações Regressi-
vas Previdenciárias”, produzida pela AGU, no seguinte link: http://www.compromissoeatitu-
de.org.br/wp-content/uploads/2014/03/AGU_cartilhaacoesregressivasprevidenciarias2014.
pdf. Acesso em: 1 jul. 2020.
35 Algumas respostas a esses questionamentos são delineadas em ATAIDE JUNIOR, Vicente de
Paula. Ações regressivas previdenciárias: ações de ressarcimento sui generis, passim.

372
Ações regressivas previdenciárias e a violência contra a mulher

pregressos? Como legitimar o manejo de execução fiscal em face do respon-


sável pelo ato ilícito sem expor a intimidade familiar? Como justificar, ao fim,
a discussão do tema na seara do direito público, sem violar o preceito do art.
10-A da Lei Maria da Penha, cujas diretrizes procedimentais impõem a “não
revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo
fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo”?
Essas e outras questões ainda pedem respostas definitivas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parece bastante evidente que o enfrentamento da violência contra a mu-
lher, especialmente a perpetrada no âmbito familiar e doméstico, exige uma
série de esforços concentrados em diversas áreas e com variadas intensidades.
A Lei Maria da Penha, sem dúvidas, é um marco político e jurídico para
esse enfrentamento, transmitindo uma mensagem clara de mudança cultural
em relação ao problema.
Nesse panorama, a ampliação das ações regressivas previdenciárias para
também abranger o ressarcimento ao erário de valores pagos a título de be-
nefícios previdenciários à mulher vítima, ou aos seus dependentes, em caso
de violência familiar ou doméstica, pode servir de instrumento de reforço
econômico, no sentido de desestimular as práticas violentas.
Em outras palavras, é sempre importante reforçar que a violência contra
a mulher, seja como for, sejam em que grau for, além de criminosa, jamais
poderá ser compensatória para o agressor.
Não obstante a riqueza de propósitos que essa ampliação possa ostentar,
não podem ser deixadas sem respostas as indagações lançadas ao final deste en-
saio, pois, algumas delas, dizem respeito à proteção da própria mulher-vítima.
Além disso, as permanentes e intrínsecas dificuldades das ações regressi-
vas previdenciárias, como gênero, ante seu caráter tipicamente arrecadatório,
afora problemas de ordem processual, podem macular a legitimidade das ações
escudadas nos propósitos da Lei Maria da Penha.

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