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Pent ee OTe ee Sees tangencia «marcha das ciéncias, das artes, da filosofi dos misti¢as;mas com 2 qual todo ator, performer, criador tem de lidar diuturnafénte: como descrever.o process” Pere Partindo da experiencia do teatro ~ a arte da exibicao Reese Ted Ren sta coletanea que a Perspectiva publica em sua colecdo Estudos busca definir em palavras ree ORR arr CMe nee een tee teny &Coristumivel de imediato pelos sentidos, mas antes jaz Seance ete SS cee One final, o embate para exprimir o que ele é interessa a artistas, pesquisadores e pedagogos, fazendo com que esta obra va ee rec neem one) Bec eCRON ECO stn a Te -y . a rE a Jealsusesdeu! 0 49A919S ajo “6 Sy Ee” Zi PERFORMANCE, PESQUISA E PEDAGOGIA - if POs de questoes dificeis de serem rete eect ety Pt een ee te) criativo, pergunta deveras estranha e impossivel de responder, perguntamal: como descrever ret rd - Pree 2 ae ' Ecce rs AUTORES MATTEO BONFITT( KONTMCO IY TORS LECeNIE Ras nae TATIANA CARDOSO. VERONIQUE MUSCIANIS! Dida por). Gaiborg Gilberto Icle (org.) DESCREVER _ O INAPREENSIVEL PERFORMANCE, PESQUISA E PEDAGOGIA Equipe de ealzagio ~ Tradugo do fancs: André MubarckTadugo do espanol WS, “ETiiiadhimas'cordmgisdcao-tartenseataunstiadunntn | & pERSPECTIVA pear in Magues Rena: Li Heng Sores Sobrecps Seg Ron A Pl ido W Never Sep Kon Dados internacional de Catalogacio na Publcato (ct) (Cimara ees do Livro, Brat) ‘Desteve onaprecatve: performance, pesquisa epeds tia Gibeno Ile (org), Sto Paul: Editors Pespetv, Sop. (Coleg estos; 363 /coordenegho J,Gunsbrg) ‘Virioe tres 2. Ante. Ates nies 3: Performance (Arte) 4 Tetros Cena cenirios Le, Gbert. Ginsburg, Série. 9.513 conse Tncices para callogo stein 1 Performance peu epedagogia Ate 012 ‘Mar Alice Ferrel ible CRB 8/7969, etigo Ditto reerador ‘Av: Brigade Luis Anti, 035 ‘14-000 80 Palos Bas, “eet on) 355-888 waiorsperpectiv.combe 09 Sumario PREFACIO Em Busca de uma Genética do Inapreensivel Jean-Marie Pradier 1S ns ‘Como Descrever os Processos de Criagio das Priticas Performativas? ~ Gilberto Il. a Parte1 (OS PROBLEMAS DA DESCRIGAO DO PROCESO DE CRIAGAO A Liminaridade e a Metéfora na Descrigao de Projetos Criativos Cénicos - Gabriela Pérez Cubas. © Indizivel Que Salta aos Olhos: Improvisagdo e Descrigéo ‘Como Producio de Conhecimento em Danga e Teatro ~ Gisela Reis Biancalana, Daniel Reis Plé, Heloisa Gravina .....27 Descartes ea Espessura do Impalpével ~ ‘Matteo Bonfitto....--. a 6 Quando as Pesquisas Sobre Processos Criativos se Tornam Criagoes ~ Jean-Francois Dusigne. 83 Parte it [AS POSSIBILIDADES DA DESCRIGAO DO PROCESSO DE CRIAGAO Cartografia dos Corpos em “SerEstando Mulheres” ~ ‘Ana Cristina Colla, Renato Ferracini. 105 ‘A Presenga da Palavra na Descrigio dos Processos de Criagdo Cénica ~ ‘Andréa Lobo, Micael COrtes 2.2.02 +++ “37 Paisagens - Carminda Mendes André ast Descrever um Processo Criativo: Contribuigdes ‘a Partir de uma Abordagem Etnogréfica ~ Véronique Muscianisi, Laure Garrabé... -ays Propostas de uma Escrita Transcriativa (ou Como Compartilhar 0 Gosto de uma Maca?) ~ Carlos Roberto Médinger, Cibele Sastre, ‘Marcelo Adams, Tatiana Cardoso ......+-+++ ‘A Emergéncia da Cultura na Observacio ‘ena Descricéo dos Processos de Criacio ~ Sophie Proust 29 Os Autores .. 2263 PREFACIO: Em Busca de uma Genética do Inapreensivel Jean-Marie Pradier Este livro respondea uma questo fundamental e manifesta uma urgéncia. As teorias generalistas sobre a mistura de culturas, © pretenso “choque de civilizagées’, a globalizagao - a “mun- dializacdo” — declamadas pelos novos impérios econdmicos ¢ politicos falam apenas do tangivel - 0 apreensfvel -,o imediato compreensivel, os objetos de consumo. Na realidade, do que é superficial, das aparéncias. Os discursos simplistas oprimem a criatividade humana em sua diversidade, a sutileza das lin- guas e dos imagindrios,ainventividade daqueles considerados subalternos. Ao colocar-se a tarefa de descrever o inapreensivel, os autores desta obra devolvem ao mundo sua complexidade, sua incerteza, 0 surpreendente. Eles justificam a caminhada sem fim das ciéncias, das artes, da filosofia, dos misticos que preferem os questionamentos aos resultados. ‘Comecarei, entdo, com um testemunho pessoal. O dia no qual Eugenio Barba nos fez. ter consciéncia, pot meio de uma experiencia simples, de que nenhum método, nenhuma cién- cia, pode esgotar o inapreensivel. Vou, entio, contar, escrever, que aconteceu certo dia no sul da Italia, 1 Tiadugio de Andeé Mobarack, x DDESCREVER OINAPREENSIVEL No salto da bota italiana, nas praias ao longo do mar Adria- tico, a gua estava azul-turquesa nesse final de verio de 1987. ‘A quinta sessio da International School of Theatre Anthro- pology, 1stA, fundada e dirigida por Eugenio Barba em 1979, cera realizada na regido de Apiilia, 20 sul, entre Otranto e seus oitocentos martires decapitados pelos turcos em 1480, eo estilo barroco tipico de Lecce, capital de Salento, 28 quil6metros 20 norte. Nosso alojamento ficava diante da areia branca, perto dos lagos Alimini, em um grande edificio que provavelmente havia recebido colénias de férias. Como sempre, o Odin Teatret ‘© 0 Mediterranea Teatro Laboratorio di Lecce, nosso anfitriéo, haviam concebido uma organizagdo surpreendentemente eficaz para um programa, cuja densidade era exuberante. As pesquisas sobre aarte secreta do ator nas diferentes culturas prosseguiam. [Nés ~ denominados “os intelectuais” como de costume -tinha- ‘mos nosso espaco especifico, um imenso dormitsrio, No diaem que chegamos, 1#de agosto, Eugenio Barba nos reuniu diante de ‘uma televisdo com um videocassete, Ele igou o aparelho, colo cou um filme e saiu para continuar seu trabalho ~ certamente receber 08 mestres japoneses,halineses e indianos. © MISTERIO DE PICASSO Na tela, primeiro em preto e branco, depois a cores e em for- ‘mato panorémico, apareceu o primeiro estudo de genética das, formas artisticas, precursor de uma drea de pesquisa que repre senta uma das principais inovag6es criticas dos tltimos trinta ‘anos Realizado em 1955, nos estidios da Victorine em Nice por Henri-Georges Clouzot (1907-1977), com assisténcia de Claude Renoir - neto do pintor -, o filme mostra uma obra sendo feita, sem que aparega o seu autor ~ Pablo Picasso - e sem nenhum comentirio audivel. Amigos de longa data, Clouzot e Picasso hhaviam considerado fazer um filme juntos. Vindas dos Estados, Unidos, as primeiras canetas hidrogréficas de tipo marcador 2 Veros arquivo do coli ttraconal La Gntqe ee Tess et de Forme [Deus Comme ocean Cente ature ienational eC, Sono Cera Sal race» 9 deste 2010 Diet Pee Mate ‘bit Aime Hence Prot com a arpa de Debora Bat EMCBUSCA DE UMA GENETICA DO INAPREENSIVEL x permanente, cuja tinta atravessava 0 papel sem borrar, per- mitiram que eles imaginassem uma forma original de filmar. O cineasta teve a ideia de colocar a cimera atris do suporte sobre o qual o pintor desenhava. Com a transparéncia as linhas do desenho apareciam do nada. Elas se organizavam entre elas, agrupando-se, indo para um vazio ou completando uma curva em uma espécie de danca que registrava os vestigios de cada deslocamento, Na segunda parte ~ pintura a éleo -, a cimera registrava quadro a quadro, permitindo que o pintor se afastasse para deixar apenas a tela no quadro da camera. Depois de 1hs8, 1nés quase nao haviamos trocado impress6es sobreo filme, ainda tum pouco desamparados para ir além de comentérios banais sobre a precisio dos gestos, o ritmo, a autoridade manifesta a0 colocar a caneta, o pincel, no lugar certo. Impunha-se a percep: ¢4o de um todo homogéneo no qual cada um dos elementos da composido, ou um detalhe, perdia-se. Pessoalmente, pen- sava que a andlise das imagens por um computador poderia tracar um belo algoritmo, entre caos e determinismo,e restituit ‘uma assinatura estatistica, como uma impressio comportamen- tal que, talvez, permitisse-nos a apreensdo das regularidades no préprio processo de criagao. Na realidade, O Mistério de Picasso - titulo do filme ~ continuava intacto, pois s6 tivemos acesso as aparéncias - a espetacularidade e nao a performa- tividade, ou sea, os itinerdrios mentais, os estados de corpo, ‘ imaginério, as emogdes, a motivagao, alégica, enfim, tudo 0 que constituia @ origem da obra e sua realizacao. Doisanos antes, na mesma regio da Aptlia,o teatro labora- t6rio Mediterranea havia orgenizado um encontro internacional intitulado La logica della passione ~ tecniche darte tra attore e spettatore, O tema de duas intervenes me interessou, em razio das probleméticas com que lidaram. Ingemar Lindh ~ cuja pratica era alimentada por Decroux e Laban ~ havia abordado (0 “processo criativo do ator’ que para ele, devia se basear mais em um trabalho pessoal de memsria, imagens, ideias, do que nna obediénciaainstrugGes. Nicola Savarese, historiador de tea- tro e membro da 1874, havia abordado Limmagine dellattore e la visione dello spettatore (A Imagem do Ator e a Visio do Espectador). Nos dois casos encontra-se a mesma aporia: a des- crigio do imagindrio por meio de suas obras permite 0 acesso a esse imaginario, & sua natureza e & sua dinimica préprias? (resultado no omite suas origens? Penso que se deve retomar ‘oconhecido adégio dos psicofisiologistas, segundo o qual per- cebemos apenas o que aprendemos a perceber, e completamos com um codicilo que levaria em consideragio o imaginério na percepgio. Se meus aprendizados sensoriais, cognitivos, ope ram como um filtro e um amplificador do que eu percebo do ‘mundo, esse material age enquanto estimulador do meu ima- ndrio e cria um metamundo. AS ENCARNAGOES DO IMAGINARIO © objeto da pesquisa em etnocenologia é definido pela compe- téncia do pesquisador. A denominagao objeto é particularmente cequivocada. Ela designa na realidade um projeto, ou seja, uma tarefa a executar, cuja definicéo e realizagéo séo determina- das pelas qualidades daquele que se ocupa dela. A negligtncia desse truismo esté na origem da maioria dos desvios que se introduzem no estudo. O Mistério de Picasso, enquanto filme, pode fornecer matéria a uma surpreendente variedade de and lises que o jargao qualifica de conhecimentos disciplinares. Do hiistoriador do cinema ao fildsofo, um esquadrdo de comenta dorese juizes pode colaborar para o quebra-cabecas, ou melhor, para a teia que s6 faz sentido se reconstitufda integralmente. Essa abordagem, que incita o trabalho na pluridisciplinaridade, consegue tramar relagdes inéditas e dar uma nova vida aquilo ‘que corte o risco de perdé-la em consequéncia da abstracio. Bla tem o mérito de declarar de forma explicita a subjetivi- dade do pesquisador em sua totalidade, incluindo as ordens académica, cultural e ideol6gica. £ a razio pela qual, ape- sar da morosidade universitéria, eu defendo uma conceprio pluridisciplinar da etnocenologia? sem excegdes, que associe iéncias humanas ~ dentre as quais a antropologia eas ciéncias da linguagem - e cincias da vida ~ biologia, etologia, neuro- ciéncias -, néo em um amélgama morno e metaforico, ¢ sim 3 CEJ-M. Prades, La Croyance et le corps, Lat Crane et le corps .57- {75 Mem, Sthnoscenlogy: The Flesh i Sprit em G, Berghaus (org), New “Approaches to Theatre Suds and Performance Analysis, p. 6-8. EMIBUSCA DE UMA GENETICA DO INAPREENSIVEL am coma esperanca de constituir verdadeiros centros de pesquisa critica, A abordagem cientifica pluridisciplinar contempor’- nea associa pontos de vista especializados, nao na busca de ‘uma solugo comum que seria prematura, un consenso, mas ‘como meio de descoberta de zonas inexploradas, longe de qual- {quer autocentrismo, atenta& abertura ea0 desenvolvimento do conhecimento que favorece o didlogo. Uma postura de humil- dade do pesquisador, 0 oposto do integrismo, e revelagéo da inesgotavel e vital abundancia de questionamentos. (Omorfema eto saiu de moda, como se tivesse sido exclufdo ‘enquanto etapa histérica em diregéo a uma antropologia consi- derada por Claude Lévi-Strauss como ciéncia em devir, sendo ‘que ele se questionava em 1954, a pedido da Unesco, sobre 0 lugar da antropologia nas cincias socials ¢ os problemas coloca- dos pelo seu ensino, Fildsofo de formacio, Lévi-Strauss recebeu etnélogos ~ pesquisadores de campo ~ no Laboratoire dAnthro- pologie Sociale (ts) que ele criou em 1960. No entanto, é a sintese de dados ea construcio de objetos tedricos que constitu seu objetivo. A situagdo inicial na origem da criaglo da etnoceno- logia ~andloga aquela da etnomusicologia, muito antes dela ~ néo eraadeum vasto banco de dados sobre as priticas espetaculares hhumanas, cujos documentos deveriam ser colocados em ordem e documentados para tracar dretrizes transculturais. Pelo contrério, as sinteses e teorizacdes eram abundantes para resultados escassos, e nossas problematicas eram as que Maurice Godelier atribui a antropologia: continuar desconstruindo a antropologia eas cncias socials até seus ‘ltimos meandlos, suas titimas evidéncias. Mas para cada evidéncla desconstruida e que tena perdido sua forca e seu status de verdade, & preciso extra da critica os meios de reconstruir outra representagio dos fatos, outro paradigma que considere as complexidades, as con- tradigbes que tinham sido esquecidas ou menosprezadas até ent’ teatro ~ subconjunto histérico e cultural das préticas espetaculares humanas - é uma invengdo do Ocidente que, assim como a religido’, tornou-se, em mais de dois mil anos, uma evidénciaatal ponto integrada em nosso universo mental, 4 M.Godelis, Au Fondement ds scéés humaine, 34 5 CED. Dubuisson, LOccident ta religion. xv DDESCREVER OINAPREENSIVEL estético, emocional, que ele figura entre os conceitos pandp: ticos fundamentais a partir do qual observou-se o mundo em suas aparéncias. Hierarquizado em géneros, ele foi adotado, para reflexo, edificagio, entretenimento, educacio, evange- lizago, terapia. Um corpus escrito de obras embleméticas da civilizagdo, ensinadas na escola, acompanhado por um abun- dante conjunto teérico, e por palavras-piv6 - comédia, teatro, tragédia, drama, melodrama, vaudevile... - que orientaram 0 colhar europeu para encontrar, no que lhe era distante, analogias em ver de novas inven¢ées, de inédito, de sutilezas desconhe- cidas do pensamento e da criago. Missionérios, mercadores, vviajantes, guerreiros que foram ao Japao, & China, & Coreia, 8 Africa, identificaram, classificaram, julgaram. Alguns termos normativos comprovam o teatrocentrismo que predominow ‘e que ainda nio foi totalmente extinto: “teatro propriamente dito’, “‘paleoteatro’, “prototeatro’, “pré-teatro’. Quando, hi meio século, os estudos teatrais ganharam autonomia em relacdo aos studs literdrios, 0 estudo do fenémeno teatral estimulou @ edificacio de novas teorias que, as vezes, se reapropriaraim do mito evolucionista do processo de civilizagao, enxergando nos rituals - e na religido ~ a fonte da teatralidade. Para nés, objeto de pesquisa ¢ paradoxal: ele trata de uma capacidade universal desses oj ethnoi -oeBvor-, toda essa gente, ‘os outros de uma mesma espécie que fabrica algo tinico,ou melhor, ‘que se fabricam tinicos, que pensam, contemplam, celebram os ‘mortos, rezam, imaginam, por meio de agées fisicas de uma diversidade surpreendente. Sem ter palavras para denominar essa potencialidade, nés compensamos 0 vazio lexical com a adogdo do morfema ceno, do grego skenos em suas acepgées hipocrati- as 0 corpo -, agente, material/sueito e espago de emergéncia espetacular do imaginério, O termo encarnagio deve ser enten- ido aquiem seu sentido estrito, como ele aparece atualmente nas ciéncias cognitivas, essas neurociéncias que renovam a inteligéncia a relagdo corpo/mente. Quanto a0 conceito de imaginério, para 16s ele se inscreve na corrente contemporanea da antropologia ue, a0 reavaliar 0 conceito, restaura seu poder prolifero. (O real ndo é uma ordem separada do simbélico e do ima- gindrio, como mostra Godelier. Se tudo o que ¢ imaginario & imaginado, nem tudo o que é imaginado é imaginario. Pois a0 EMBUSCA DB UMA GENETICA DO INAPREENSIVEL xv imaginar, homem pode tornar possivel oimpossivel. Nos mitos ‘ou nas religides, por exemplo, o que é imaginado nunca é pensado ‘ou vivido como imaginério por aqueles que acreditam: “trans- formado em relagdes socials, istituigdes, obra de arte, azo de ser de grupos sociais com fungéese situacées diferentes, o ima- gindrio das religides e regimes de poder simplesmente gera 0 contexto da vida ordinaria das pessoas no seio de sua sociedade”® A PERCEPGAO E A AGAO Como realizar a descrigio do processo de criagéo, quando 0 que & perceptivel nao & uma coisa pintura, escultura, texto, parttura ~ mas 0 corpo imaginante do sujeito? Essa dificuldade torna necessério distinguir tres aspectos constitutivos do evento: performatividade ~ a ago, como ela é realizada pelo perfor- ‘mer; sua espetaculatidade — a acio, como ela é percebida por um observador, espectador ou testemunha; ea ago enquanto evento simbidtico que coloca em relacio os performers, as testemunhas et ali?, Essas distingdes chamam a atencao para os caprichos e limites da percep¢ao humana, que nao é um simples registro. Quando necessério, o cérebro preenche aslacunas de informa- ‘io eas vezes, acrescenta, otimiza, transforma e atribui sentido, A emogio dé nuances e memoriza, como um juiz arbitrério e, frequentemente, sectério, Mesmo que a neutralidade fosse algo adquirido — por meio de uma cura psicanalitica, como Georges Devereux pedia a seus alunos -, ela nfo conseguiria denegar a empatia necesséria para. relagio do pesquisador com seu objeto, (s termos performance e performatividade podem gerar confusdo na medida em que eles pertencem a vocabulérios dis- tntos. O sentido que é dado aqui se impds nas ciéncias humanas ‘emarca.a volta da agdo* enquanto nogio fundamental de cuja densidade metafisica e espiritual Maurice Blondel (1861-1949) 6M. Godelier imagine, Fimapinate& le symbolgue, p24. 7 By etomare! a norio de alo, que eu comprendo como mas préxima perspectivablondeiana do que comportamentalis, lie refer aoe dive. Sos naterlals por exemplo,o mundo dos esprit no chamanismn coreano ‘nog de shen em chines. CE J-M.Pradier, La Peformance ota renisance de action, Communi tions. 925. 284-287, x DDESCREVER OINAPREENSIVEL foi o primeiro explorador?. Na virada do século x1x parao xx 0 fildsofo teve alguns contratempos com a universidade, em que cera criticado por exaltar 0 conceito de ago, o que significava desconsiderar a reflexio, a abstragio caracteristicas do pensa- mento francés ~ “pensar, em francés, éextrair e abstrair™, Ao reivindicar-se como etnociéncia, a perspectiva que defendemos reconhece a competéncia dos que estdo na pratica ea obrigacéo de cruzar a pesquisa com as disciplinas académicas e também com o saber pragmatico, empfrico, com os pés no chéo, que possuem 0s performers. A ruptura entre especulagao tedrica e acdo é antiga. Ela € muito bem descrita pelo anatomista mais respeitado da Renascenca, André Vésale, na introdugdo deseu coptsculo La Fabrique du corps humain. A repugnancia fazia com {que 0s mais famosos médicos da Itlia confiassem aos auxilia- res a realizaco das intervenes manuais ~ e a dissec¢do dos cadaveres ~ ese contentassem em “falar como gralhas”™ diante dos auditérios de estudantes, como escreve o anatomista. No entanto, comentar néo é 0 mesmo que descrever. PROCESSO E SISTEMA COMPLEXO Levando em consideragio a natureza sistémica das encarnagées, do imagindrio, e ao mesmo tempo da cultura, a etnocenologia se inscreve no movimento geral de busca de uma soluglo a ‘um problema local relativo & unidade do corpo/mente. O que ‘combate a aporia clissica de uma heranga filosdfica, traduzida nas ciéncias pela expressao body-mind problem, ou em medi- ‘ina pela palavra "psicossomético” A somaesthetics (de Richard Shusterman), uma petigao lancada recentemente por um grupo internacional de pesquisadores e artistas em favor da criagio de uma science of embodiment, assim como o reconhecimento da “mente corpérea’, a teoria da embodied mind, embodied cog- nition, da “ena”, o surgimento da neuroestética (de Samir 8 CEM. Blondel, Action 40. Laplantne, Toby vil flotant p23 41 Noriginal em francts,“pérorer comme des gai (N. da) 42 J Stewart O,Gapenne;E-A DiPaol (eds), Enaction: Tard a New Paradigm for Cognitive Science. Varea:E. Thompson; E. Rosch, The Embodied Mind (Cognitive Science and Human Experience; A. Shapiro, Embodied Cogiton Zeki), sio sinais de uma profunda transformacao das antigas posturas dominantes. Antes da emergéncia do neuronal turn, entre modismo ¢ evolugao pluridisciplinar, tedlogos,fildso- fos, psicolinguistas, etdlogos, artistas e antropélogos jé haviam ‘mostrado a riqueza do conceito de encarnacio e a difculdade de analisé-lo®, (O processo de criaco corresponde a um sistema complexo, instavel e dinamico, As préticas performativas demonstram por exceléncia o que compreendemos como sistema complexo, e é interessante lembrar, com a especialista de fisica biomédica Annick Lesne, quais sao as caracteristicas usualmente preser- vadas. Qualquer sistema é composto de um grande nimero de elementos. Na maioria dos casos, os elementos sao de virios tipos e possuem uma estrutura interna que ndo pode ser negligenciada. Os elementos estio ligados por interacdes nao lineares, frequentemente, de tipos diferentes, O sistema & sujeito a influéncias exteriores em diversos graus. Como des- taca Annick Lesne: ‘Todavia, para mim, a principal caracterstica de um sistema complexo 4 sua causalidade circular, em termos mais explicttos a exlsténcla de ‘etroagGes os comportamentos coletivos e das propriedades emergentes (mactoscépicas) sobre o comportamento dos elementos (microseépl 0s). Os elementos modificam coletivamente seu ambiente, que por sua vez Vai limité-los e modificar seus estados ou comportamentos possi veis. Em um sistema complexo, nio basta conhecer as propriedades eo ‘comportamento dos elementos isolados para prever 0 comportamento sglobal do sistema." Aeepisteme dos sistemas complexos atua, hoje, narevisio de nosso conceito de ‘sistema motor, ao qual antigamente as neu- rociéncias ~ mas no apenas elas! - atribuiram durante muito tempo um papel secundério, reduzindo-o frequentemente 20 de simples comparsa”’. A observacao, a anlise e a compreen- 19 CEE Laplamtine, Le Soca ele sensible. 14 Modélisation multiébeledessystmes virntset deleurégulton,Conbasco ‘2010 Resumes Colloque, p13. Ver também, de Annick Lesne Complesté du vivant sélection naturelle et éolution, Natures, clones, Soc. 6, isos. 7 p 5-56: Blloge des systtmes:EOrganisaton mulniéchele ‘es yatemes vivant, Mdcine Scenes, m2, p 585-587. 15. G.RizolatsC Siniaghi, Les Newones mir... wil DDESCREVER O INAPREENSIVEL sfo do que ocorre durante processos de modificagéo, alteracao, transformagio de materiais nao orginicos durante manipu- ages de laborat6rio, podem ser relativamente acessiveis a0 “observador. Mesmo se pensarmos no nivel subatémico. Nao hé comparagao quando 0 processo diz respeito ao envolvimento de um performer, que nunca ¢ independente de uma biografia ede um contexto. Devemos admitir que ainda estamos longe ‘de um inventério total dos elementos do sistema complexo que representa um individuo em sua plenitude! DESCRIGAO ERUDITA, ‘Na época das primeiras obras sobre comunicagéo néo verbal, ‘05 pesquisadores filmavam situagGes interativas de forma acele- rada e observavam as imagens quadro a quadro. Os resultados surpreendiam ao revelar micromovimentos e expressbes efé- ‘eras que nao sio percebidas no dia a dia. Quando conheceu 1s filmes experimentais de Daniel N. Stern sobre as interagdes mie-bebé, Robert Wilson descobrin que, ao examinat isola- damente as imagens, era possivel perceber algumas mées cuja primeira reagio aos gritos de seu bebé era de uma expressio de desgosto, invisivel a olho nu. A partir disso, Wilson concebeu (© projeto de expor em cena esses invisiveis da expressio, por meio de um estiramento do tempo e do jogo dos atores. Dea- fran Glance (O Olhar do Surdo, 970), sua primeira obra desse tipo, decompunha em sete horas o tumulto de afetos dissimula- dos pelo tempo ordinario e pela pressa que temos em vivé-los. ‘As maquinas descrevem o inatingivel por meio de fragmen- tos, captam 0 invisivel, interpretam. No século xxr, cimeras associadas a programas de andlise do movimento detectam os comportamentos suspeitos dos passantes nas ruas, por meio do célculo de parametros fisicos. A imagiologia cerebral, sen- sores de todos os tipos que penetram no corpo sem entrar rele, fazem-no mostrar seu estado, detectam suas anomalias, ‘com uma precisio cada vez maior, a ponto de provocar um devaneio cientifcista que lembra 0 reducionismo otimista do hhomem méquina teorizado pelo doutor Julien Offray dela Met- trie no século xvin. EMBUSCA DE UMA GENETICA DO INAPREENSIVEL xx Para oobservador,o imaginario do outro se deixa capturar apenas por meio de suas acées. Dessa forma, é natural que a pesquisa cientifica tena privilegiado o estudo das estratégias motoras e cognitivas de esportistas e bailarinos. As ciéncias das atividades fisicas se debrucaram, assim, sobre a situacdo de improvisagao permanente intrinseca aos esportes coleti- ‘vos ~ futebol, righi, héquei... - que obrigam os jogadores a encontrar e aplicar uma solucéo imediata a um problema, de forma coletiva' “Mauitos trabalhos de psicologia cognitiva foram feitos para estudar a motricidade do bailarino, no entanto menos frequen- tes no contexto de improvisagio”. A motricidade do bailarino uma motricidade expressiva, em oposicdo a motricidade rea- tiva, posterior primeira de acordo com Jacqueline Nadel", que lembra que para sobreviver, a crianga €estimulada aestabelecer ‘um didlogo “ténico-emocional” para comunicar algo a alguém, ‘A abordagem do fatorrelacional fol incentivada pelos trabalhos sobre empatia, e neurénios espelho. Se na danga solo, a relacéo parece reduzida, em um processo de improvisagao, ela inter- vvém diretamente. A partir do estudo de publicagées, Monica M. Ribeiro, atriz e bailarina, e Agar Fonseca, especialista em neuropsicologia, propoem a ideia de empathic choreography. Na danga contemporinea, a improvisacao seria baseada na percepcio empitica dos participantes de forma que as inten- bes do outro seriam processadas em um nivel infraverbal ¢ permitiriam a estruturagio do movimento e dos deslocamentos. ‘A exposicio de dados recentes, realizada por Marielle Cadopi, destaca a articulacio fundamental entre 0s pro- cessos sensério-motores e cognitivos em danga: “as formas corporais produzidas implicam o aprendizado e o controle de coordenagées motoras complexas que devem ser lembradas dda maneira mais precisa possivel, o sistema mnésico é, assim, particularmente solicitado”®, Apesar de seus limites, 0s estu- 18. Paraumaapresentagio gral ver Rober. Weinberg Danie Gould, Founda tion af Sport and BxerisePoycholagy. 47 CLC, Valle, mprovztion dans ls raiques physiques et artiqus. 48 Apud M, Cadoph, La Motricté du danseurApproche cognitive, Bulletin de cei tf. 275 9 pone em: omc, 19M. Cadopt, opt x DDESCREVER 0 INAPREENSIVEL dos objetivos, no estado atual da pesquisa, tém o mérito de compensar parcialmente as deficiéncias das verbalizacoes dos individuos e as lacunas da observagdo. O que é dito sobre 0 valor da meméria ~ experiéncia e aprendizados especificos ~ pode estender-se a0 conjunto das atividades humanas, mesmo as mais inovadoras. A questio do processo se renova. De fato, ‘como sugerem os estudos comparativos sobre os aprendizados em sociedades culturalmente distantes, uma técnica ~ a pirueta em baléclassico, por exemplo ~ pode ser assimilada pela dana, coreana Hanbaldeuleodolgi, na qual se encontra a pirouette en dehors, mesmo conservando suas especificidades estéticas € ccognitivas préprias”. O processo de criagio ¢ profundamente marcado pelo processo de aquisicao, que néo se reduz apenas a0 dominio de uma técnica. Mais uma vez, 0 estudo mostra 0s parimetros invisiveis, ou técitos, que se encontram to, ou ‘mais, subjacentes ao exercicio da arte quanto as indicag6es for- ‘mais relativas&fisica da aco. Assim, na base da expressio de certos movimentos dinamicos, a danca clissica privilegiaria 0 ela do movimento de port de bras, enquanto a danca coreana primaria o ritma da respiragao. No que diz respeito a verbali- zagao das indicagdes, Kyung-Bun Shim observa que enquanto, as professoras francesas valorizam 0 corpo ¢ 0 espaco, as pro- fessoras coreanas destacam mais os componentes imateriais™: AS RACIONALIDADES EM AGKO Qualquer processo de agdo é baseado em uma légica. Durante ‘muito tempo, o Ocidente considerou-se o tinico detentor da razio e de seu corolirio ~ a racionalidade, mae putativa da civi- lizagdo. Os contatos entre sociedades,linguas,culturas, 0s quais se juntam as trajetérias contemporineas da antropologia histé- rica, assim como a evolugdo das ciéncias da matéria e de seus aparelhos mateméticos, contribuiram para perturbar certezas arrogantes ao revelar novas problemiticas e modelos cogni- tivos ignorados até entio. Desde a Renascenga, os jesuitas da 20 CES. Ke. Shim, LAsiniation i tur pivot en danse dasigue la Prout ten dehors parla danse corenne Hanbaldealeodel 21 Ibidem. F\CBUSCA DEUMA GENETICA DO INAPREENSIVEL xx China tiveram consciéncia das lacunas filos6ficas representadas pelos intraduziveis da lingua, inscritos na préxis, materializa- «bes de uma cosmografia™. Lembremos, no entanto, 0 quanto foi dificil para eles expor os pilares doutrindrios de uma “reli- giao” gerada e veiculada pelo Ocidente®. A preocupacéo de considerar a natureza humana em sua totalidade biopsiquica, co desejo de “entrar na dimensao da mente” shen para “aceder alma do mundo’, contrariamente & racionalidade europeia, criaram um espaco central para o invisvel, sem adicionar a ele a referéncia a uma doxa baseada na ideia de verdade™t: “Nao se trata de acreditar no(s) shen(s) como se pode acreditar no Espirito Santo ou na existéncia de uma alma imortal. Trata-se muito mais de meditar sobre as poténcias numinosas,invisiveis, iisteriosas que animam e transformam o real, de se conectar com elas, de ‘entrar no shen’ (ru shen)?" ‘Apés algumas décadas, semindrios* etrabalhos discutem o pluralismo das racionalidades em acio, em lugar de consideré- -las como antin6micas. Controvérsias desenvolveram-se sobre a racionalidade intracultural, como 0 caso do Capitéo Cook, ‘que opés dois antropélogos culturalistas: Marshall Sahlins € Gananath Obeyesekere. Diversas vezes, Sahlins havia declarado que 0s havaianos do século xvi demonstravam sua irraciona- lidade a0 considerar o Capitao James Cook um de seus deuses, Lono. Ao partir, o antropdlogo havia deduzido que os esquemas conceituais dos povos diferiam e geravam diferentes critérios de racionalidade. Obeyesekere respondeu acusando Sahlins de eurocentrismo e destacando que @ racionalidade humana tinha por base um sistema cerebral comum e que os havaianos viam em Cook um chefe, nao uma divindade. Sahlins contra-atacou considerando Obeyesekere preso a prejulgamentos ocidentais e anacronismos. Depois de Ian C. Jarvie e Joseph Agassi, o fil6- sofo japonés Kei Yoshida opds relativistas e universalistas a0 propor nocio de “niveis de racionalidade’. A solucio pode ser 12 Ver partcularmente, nme especial da revista Bstrme-Oriet Extrome- ‘Octdent,preparado por Romain Graniani e Roel Sterck, De Esprit aux sprit, Enguéte sues notion de Shen, Vincennes, 29,2007. 29. CED. Dubuisson, LOccident et a rligon: Myths, senceetiéaloge p28. 24 CER Grasiani Qua lpi demeure tou Sul, p.. 25 Hemp 25 CEI-P Verna et al, Divination tration xa DDESCREVER O INAPREENSTVEL resumida assim: “se admitirmos que existem niveis de raciona- lidade, 0s ocidentais e os indigenas podem ser mais racionais em alguns casos, e menos racionais em outros””. Pesquisador do programa de estudos sobre a diversidade cultural na Uni- versidade de Téquio**, Yoshida deixa suspensa a questio da racionalidade enquanto légica gerada por um sistema de pen- samento e/ou de crencas. F interessante fazer um paralelo entre ‘o mito do processo de civilizagao eo esforgo de evangelizacao,, para compreender 0 que a antropologia evolucionista deve a cles. As religides da revelacdo se desenvolveram a partir de uum locus veritatis, centro de um cfrculo fechado, fora do qual existe apenas erro, distorgdo e perversdo. A imagem evangé- lica da pedra sobre a qual deve construir-se a Igreja (Mateus 16,18) €significativa, O vocabulério das ciéncias humanas ainda conserva vestigios dessa filiagdo teocéntrica: divinacdo, fit ‘aria, animismo, totemismo, magia, superstigéo. O estudo das praticas designadas por esses lexemas, contextualizados e his- toricizados, deu lugar ao reconhecimento de diferentes tipos de racionalidade. helenista Jean-Pierre Vernant havia diti- gido, durante os anos 1970, um semindrio pioneiro no Centre de Recherche Comparée Sur les Sociétés Anciennes”. Teses foram defendidas®, e propostas foram elaboradas*. Gilson ja havia observado a permeabilidade relativa dos sistemas: “sabemos que o pensamento cristio, o pensamento judaico ¢ © pensamento muculmano interferiram uns nos outros, seria ‘um método errado estudé-los como sistemas fechados e isola- dos", Os historiadores participam do coro lembrando que € deacordo com a visio que eles inham da razio que 0s fildsofos da Antiguidade - Aristételese Platao seus epigonos justifi- carama escravidio, cuja aberracdo horrenda apareceu apenas 27 ¥.Kei, Comparing and ExplsningDilferent Caltres, em. Keletal, Utopia Here ard There ‘26 Sesina Instructor, Integrated Human Sciences Program fr Clr Diver. siy (as), Univesity of Tokyo. 29 Cl J-P Vernantet a op cit Paraa China, vero nimero especial da revista [irdme-Orient Exicme-Orcdent, Divination et rational dan ls Chine ancien, Vincennes, m3 3999. 30 CLE Sancher, La Rational des croyances magus. 531 CEH, Paret,On Balering: Epistomolgial and Semitic Approache/De a royce: Approches pieémologigues et smitiques. .Gileon, Esprit de lapilasophie med. EMIBUSCA DE UMA GENETICA D0 INAPREENSIVEL xan com a evolucao do pensamento e dos costumes". A astrologia divinat6ria € um bom exemplo da combinagéo inextricével de suposig6es que ndo podem ser verificadas sobre o poder dos astros na organizacéo do destino da astrologia matemitica, ‘As polémicas antiastrol6gicas durante a Renascenca, a flosofia e mesmo a teologia filoséfica de Toms de Aquino, que menciona amarca da alma celeste - anima colestis - em nossas almas, que transforma nosso corpo, baseiam seus argumentos nas cién- cias da época¥, Sociologia e psicologia estaisticas forneceram resultados distorcidos, com um actimulo de célculos rigotosos sobre informagies errbneas. Na antropologia, a postura mis- sionaria do pastor e etnolégo autodidata Maurice Leenhardt** no podia deixar de levar a uma teoria do animismo canaque enquanto pré-religiosidade, da mesma forma que nas artes falon-se em pré-teatro, ou em prototeatro, ‘As cigncias da matéria participam da evolugéo do conceito plural de racionalidade. O fisico dinamarqués Niels Bohr, pré- ‘mio Nobel, compés seu brasio com o simbolo chinés do tao, acompanhado da expresso latina contraria sunt complementa ~ 60s contrérios sio complementares -, que desenvolve a nogéo deenantiodromia ~ evavtiobpouia - de Heréclito de Efeso, ou a forga dos contrétios. Bohr havia sido surpreendido, durante sua viagem & China em 1937, por um modo de pensamento que Ihe parecia estar mais de acordo com a episteme da fisica uantica e sua teoria da complementaridade do que a légica aristotélica dominante na Europa. Depois disso, em varias con- feréncias e publicagGes, ele mostrou a riqueza epistemolégica dessa nogio em outras dreas além da fisica”. Ele nio foi 0 ‘inico, Carl Gustav Jung, Paul Watzlavick e muitos outros em diferentes interpretagdes. Evidentemente, o pensamento chi- nés nao se reduz a um modelo uniforme “que nos faz perceber 2 CL J-P Dogue, Les Philsophs et sclaage 4 CET. dAquin pod E. Garin, Le Zodiaque de la vie p.247 5 Exemplonotivel ay pesquisas sobre 0d! dos afo-americanos que usam tes ter tendenciosos ‘98 Ver particularmente, M, Leenhardt, Do Kamo: La Personne ete mythe dans le monde mdlanéen Sobre wane cicada ade de Leenbard, ver A ‘Bensa, Chronigues Kanak: LEthnolgie en marche. 61 a7 Sob aarte rig, ver Nis Bohr, The Unity of Knowledge (93-E ‘ane: Unité de laconnalsssnce, Physique atomique et connaissance humaine, paar. China como uma floresta monocromética, sendo que somos tio répidos para identificar as minimas nuances da minima folha de drvore quando se trata de uma cultura que nos é mais familar”, Nasua monumental Histéria do Pensamento Chinés, ‘Anne Cheng apresenta as diversas escolas de ldgicos que no podemos mencionar aqui sem diminuir sua riqueza.” CRIATIVIDADE Criatividade é uma dessas palavras guarda-chuva que também causam problema, apés terem enriquecido os vastos campos da ingenuidade e aqueles que se aproveitam disso. Segundo Todd Lubart, o estudo da criatividade, palavra vinda do inglés crea- tivity e que entrou no uso corrente nos anos 1970, inscreve-se atualmente em uma abordagem integrativa da psicologia™. Pro- veniente, na mitologia comum, da criagao ex nihilo do mundo, de inspiragio teolégica, sua historia particularmente fértil foi renovada nas ciéncias, nas artes e na pedagogia*. Foi assim ‘que a crenga aristotélica na geragio espontanea, derrubada no século xvi, voltow &tona no século x1x até que Pasteur provasse sua inanidade. Antes de ser guilhotinado em 1794, na época da revolugio, o quimicoe filésofo Antoine-Laurent Lavoisier havia derrubado a teoria do flogistico em favor de uma concepcio ‘antecipada da biosfera: 0 mundo vivo é um todo em estado permanente de reciclagem e recombinacées. Alguns séculos antes, o fildsofo grego Anaxagoras de Clazomenas havia mani- festado um ponto de vista semelhante em seu tratado Sobre a Natureza (Tlepi Ovoewc): nada se cria, nada se perde, mas tudo se mistura e se separa a partir do que jé existe. O nascimento corresponde a ouvxpiveo@at, associat, combinar elementos existentes, ea morte se resume a desfazé-los, Biaxpiveo@at.Sim- ples questio de organizacio cadenciada entre dois polos, com seus proprios ritmos. As teorias da criatividade oscilam entre ‘A. Cheng, La Chine pense p26. em, Histor del pense chine, p30, 85-90 18-147 26. (CET Lubar, Photog de la rativt Para uma evista aualizada sobre a questo. ver M.H, Hanson, Workdoxak ing Pychology andthe Moly of Creat 2388 BUSCA DE UMA GENETICA DO IKAPREENSIVEL xxv a ideologia do ex nihilo - 0 génio criativo -, ea capacidade de combinar “elementos” preexistentes dos quais 0 individuo no tem necessariamente conhecimento, O modelo de competéncial performance desenvolvido na linguistica por Noam Chomsky, nos anos 1960, para analisar a criatividade do locutor,seja qual for seu nivel de educacio, retoma a teoria combinatéria®. Desde amais tenra idade, acrianca adquire uma competéncia linguis- tica por inculturagdo, aprendizado passivo, imersdo, interacéo. O capital adormecido é colocado em ago — performance - nas situagdes de comunicagio e no que chamamos de linguagem interior. Evidentemente, 0 modelo competéncia/performance softeu criticas, adaptacées e se desenvolveu. De minha parte, ewo considero particularmente estimulante na medida em que cle propée pistas para a pesquisa sobre o proceso de criacio, sua andlise e descriZo, Nao que os linguistas e psicolinguistas consigam fazer isso em seus campos. Contudo, a competéncia, para o artista, artesdo, cientista e qualquer criador potencial, & composta tanto pelo conjunto da experiéncia quanto pelos aprendizados especificos e pelo exercicio. Como descrever 0 surgimento da invencao da linguagem na performance, ou s¢ja, ‘omomento no qual sem se preocupar da corregdo do enunciado, conseguimos construir algo novo que &s vezes nos surpreende? Essa questio ainda continua em aberto. ‘As relagbes de exclusio das entidades se baseiam em sua asseidade, ou seja, em uma pré-concepgdo que Ihes exclui de qualquer partilha com outras entidades. Assim, opor espon- taneidade e virtuosidade é 0 mesmo que adotar uma postura criacionista e fechar neles mesmos, em espacos restritos, ‘os aspectos complementares de um comportamento complexo. Em 1981, em um texto intitulado “La Course des contraires’, para uma obra do Centre National de la Recherche Scientifi que (cxRs) sobre a formagao do ator, Barba discorreu sobre @ espontaneidade, palavra guarda-chuva pot vezes reivindicada ‘em nome da criatividade/liberdade sem limites. Ele empregou ‘uma bela expressio: A espontaneidade nao se opée & “virtuosidade’, pois ela ¢ posterior. E apenas quando um pianista ultrapassa a virtuosidade que ele pode, por 42 CN. Chomsky, Aspect ofthe Theory ofSytae, p.3. xvi DDESCREVER OINAPREENSIVEL meio de sua forma de tocar, transmitir algo pessoal, Ele pode se expr mir — fazer sair ~ por meio da resistencia imposta pelo campo musical limitado de seu instrumento e pelas eis da musica. NIVEL DE ORGANIZAGAO E PROCESSO ‘A nogio fundamental de nivel de organizacéo, itil para Euge- rio Barba em sua antropologia teatral*, apareceu inicialmente za biologia, subsequente a teoria celular do naturalista alemio ‘Theodor Schwann (1810-1882), que publicou em 1839, em Berlim, suas pesquisas microscépicas sobre a concordéncia naestrutura eno crescimento dos animais e das plantas, Para os bidlogos, 05 sres vivos si constituidos por unidades organizadas em sis- temas dinémicos interdependentes: moléculas, células, Srgaos, individuo, biétopo e assim por diante, até um nfvel macroscépico {que ignoramos completamente. Concebida na interdisciplina- ridade, indissocidvel da perspectiva sistémica, a nogio de nivel de organizagéo gerou uma sucessao de disciplinas especializa- das, algumas ef€meras, outras se abrindo a vastos campos de pesquisa. O destaque de cada um dos niveis de organizacio provocou atitudes, métodos, hipéteses heuristicas, proporcio- nalmente a elementos de menor complexidade. A segmentacio cerudita apoiou assim “disciplinas”teoricamente interdependen- tes, na medida em que nenhuma delas pode fugir 4 limitacao de suas ambigdes. Além disso, a dindmica das interagbes no ‘corre no interior das fronteiras disciplinares, A plenitude ideal poderia ser atingida apenas a condigio - quimérica - de conhe- cer cada um dos elementos do sistema in foto, e suas dinamicas. ‘A palavra proceso nao elucida nada sobre o nivel de orga- nnizagdo que o observador é capaz. de apreender. Ao longo dos ‘anos, Barba alcou ao primeiro plano de sua atividade de dire- tor o que ele chamou de dramaturgia do ator: “como provocar reagdes pessoais nos atores e orquestré-las em um espeticulo que nio imitaria a vida, mas possuiria a qualidade de vida"®. 43 EBarba,LAvhipl du shétre, p.2. ‘4 Idem, Le Cano de paper Traité anthropologiethéttrale,Boufoneri, estou, 2629, 1958 P23 45 Idem, Bréer sa malson p34 EMBUSCA DE UMA GENETICA DO INAPREENSIVE svt Perplexo diante do emaranhado de tantos elementos para com: preender e colocar em pratica em seu oficio, ele ouve o doutor Henri Laborit falar de “nivel de organizagao’, durante o cold- ‘quio de Karpacz em 1979; “Na verdade, foi a maneira de pensar dos biélogos que me ajudou a compreender meu proprio tra- balho ~ ele escreve. Em biologia nao se deve diferenciar apenas as partes, os componentes de um organismo [...] mas também 1s niveis de organizacio”** Qualquer processo de aprendiza- ‘gem, de criagao, também pode ser subdividido em niveis de ‘organizacio, do mais simples (as qualidades psicofisioldgicas) ‘a0 mais complexo (0 contexto). Considerado em relacéo a0 tempo, o processo se inscreve na ontogenese - no minimo -, ‘ou seja, na evolugdo diacrénica do individuo, de tal maneira que uma acao presente guarda nela uma meméria longingua, inconsciente, reprimida ou simplesmente esquecida. Desafio real para qualquer descrigdo da aco, que guarda apenas par- cela mais evidente, a que emerge no momento presente. A AMBIGUIDADE DO PROCESSO A importincia atribuida ao processo se impés a partir do momento em que se admitiu que as tentativas de anélise do espetéculo, da performance, tratavam na realidade apenas do exame de um objeto terminado cuja simples percepcio bastaria para esgotar o sentido. Dessa forma, a andlise comportava-se como o cotidiano comum, no qual, por economia, prestamos atengdo apenas nas aparéncias percebidas ao momento do encontro, Ficamos satisfeitos com essas interacdes breves sem preocupar-nos com suas bases reais, com suas circunstan- cias, e passamos de um momento a outro como uma galinha debicando graos. Um quadro é uma natureza morta que per mite a investigacdo sem limites. Mesmo que o pintor jéesteja morto, a obra deixa-se observar, contemplar, anatomizar de tal forma que a pesquisa se mostra interminévele frutuosa de acordo com a evolugao das ciéncias e das técnicas, Nao existe, paraas préticas performativas, um equivalente do laboratério 46 tbidem. svat DESCREVER OINAPREENSIVEL canme”’ do museu do Louvre. Esse renomado laboratério de pesquisa dos museus franceses, chamado inicialmente de Ins- titut Mainini, havia sido criado, em 1931, gracas a generosidade de dois médicos argentinos, Fernando Perez e Carlos Mainini, para o estudo cientifico das pinturas e obras de arte que inte- gram as colegdes nacionais. Apés a criagio de uma secio de fisica, com espectrografia infravermelha, cromatografia em fase gasosa e difracio de raios X, foi realizada uma grande exposi- ‘gio em 1980, intitulada “a vida misteriosa das obras-primas’ Um ano apés 0 coléquio de fundacio da etnocenologia, em janeiro de 1996, 0 Laboratoire de Recherche des Musées de France associou-se ao crs para criar uma unidade mista de pesquisa, ur-171. A criacdo da International School of Theatre ‘Anthropology (Ista) ~ concebida e dirigida por Eugenio Barba ‘em 1979 ~ patece fazer eco ao projeto do Institut Mainini, na ea do espetéculo, Um eco que nao carece de utopia temperada ‘com autoironia, Apés as primeiras sess6es da Ista, quando Barba ‘Nicola Savarese iniciaram a publicacéo de uma obra que faria tum balango das pesquisas realizadas, eles deram-Ihe o titulo Anatomia deltattore (1982)*, Foi ao ver um cartaz que anunciava ‘uma exposigdo sobre a histéria da anatomia que Ihes surgiu a ideia desse nome tio eficente. Eugenio Barba tinha justamente ‘0 projeto de explorar os arcanos da presenga do homem emuma situagdo de representacdo e identificar seus principios comuns, que ultrapassavam as diferengas culturais. A organizacio e 0s, programas das sessbes da Ista foram amplamente expostos € comentados*. O préprio principio dos trabalhos era regido pela definigio da antropologia teatral formulada por Barba: ‘A antropologia teatral ¢ 0 estudo do comportamento biolégico e cultural do homem em uma situagao de representacio, ou sea, do homem que utiliza sua presenca fisica e mental de acordo com principios diferentes dos que regem a vida cotidiana.”® ‘Tendo em vista que, no mundo académico e artstico, o humor, 47 Centre de Recherche et de Restaration des Musée de France. (N. aT) 415A bra frtamente stad pula inicalmentemtaliano, fier seguida tradusida em facts (9,995 2008) ngs, expan, poragues, jeponés treo tcheco sev, russ, chines, m dvesasediSes para mesma ling . Acesso em: 18 de. 2018. Lunar, Todd. Pyeholgi de la cratvit Pris: Armand Colin, 2003 aanet, Herman, On Believing: Epistemological and Sersotic Approaches/De la croyance:Appprochesépistémologigues et sémotiqus. Berlin: Walter de Gruyter, 198. nats, Jean-Marie (6d). 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