You are on page 1of 9
Eugénio Bucci Sobre Etica e Imprensa 1 FAZ SENTIDO FALAR DE ETICA NA IMPRENSA? No dia 25 de janeiro de 1984, 0 Jornal Nacional tapeou 0 telespectador. Mostrou cenas de uma manifestagio pablica na praga da Sé, em Sao Paulo, e disse que aquilo acontecia em vir- tude da comemoragio do aniversério da cidade. A manifesta- cdo era real: 14 estavam dezenas de milhares de cidadiios em frente a um palanque onde liderangas politicas discursavam, Mas 0 motivo que 0 Jornal Nacional atribuiu a ela nao passa- va de invengdo. Aquele comicio nada tinha a ver com fundagao de cidade alguma. A multidao estava ld para exigir eleigdes di- retas para a Presidéncia da Reptiblica, O Jomal Nacional enga- nou o cidadao naquela noite — prosseguiu enganando duran- te semanas a fio, ao omitir as informagdes sobre a campanha por eleigdes diretas. Para quem sé se inteirasse dos acontecimentos nacionais pelos noticidrios da Globo, a campanha das diretas nio existia. No dia 25 de abril daquele ano, a emenda constitucional que restabeleceria o sufrégio universal e direto para a escolha do presidente da Reptiblica deixou de ser aprovada por 22 v tos no Congresso Nacional. O brasileiro s6 reconquistou o di- reito de votar para presidente com a Constituigdio de 1988, a “constituigéo-cidada”, como foi batizada por Ulysses Guima- Ties, e s6 voltou a exercé-lo em 1989. O eleito foi Fernando Collor de Mello, cuja candidatura contou com 0 apoio do Jor- nal Nacional, do Fantastico e dos outros programas jornalisti- 29 cos da Rede Globo de Televisio. Apoio explicito ¢ Roberto Marinho, o dono das Organizagses Globo, foi muin, claro a esse respeito numa entrevista ao reporter Hélio Comnes ras, publicada no Jornal da Tarde de 6 de abril de 1993, Per, guntou o rep6rter: “Mas o senhor reconhece que a Rede Globs © O Globo influenciaram (0 piblico] para a eleigao do (pre dente) Collor?”. Respondeu Roberto Marinho: “Sim, nés pro. movemos a eleig&o do Collor e eu tinha os melhores motivos para um grande entusiasmo ¢ uma grande esperanga de que ele faria um governo extraordindrio”. Realmente, Collor realizou um governo extraordinério, deixando para a posteridade o re- gistro de vultosas realizagdes na esfera da corrupedo. Tao ex- traordinério que, em 1992, uma outra campanha de massas to- mou as ruas, lembrando as jornadas pelas diretas de oito anos antes, Mas a bandeira era outra: agora, 0 que unia os manifes- tantes era a exigéncia do afastamento do chefe do Executivo federal. O jornalismo da Rede Globo adotou o mesmo compor- tamento de 1984, Ignorou — e, com isso, forgou os seus teles- pectadores a ignorar — intimeras passeatas ¢ atos ptiblicos que tomavam conta do espago piiblico nacional. De novo, sonegou informagio. Na tela da Globo, as jornadas que defendiam 0 im- peachment de Collor nao tinham vez. Foram aparecer apenas tardiamente, quando 0 movimento ja estava perto da vit6ria assumido, 0 COMPROMISSO DAS EMPRESAS DE COMUNICACAO (OU A FALTA DELE) Faz sentido discutir ética num pais onde coisas assim acon- tecem reiteradamente? Ninguém precisa ter freqtientado aulas numa faculdade de comunicaco social para intuir que a0 jor- nalismo cabe perseguir a verdade dos fatos para bem informar © puiblico, que o jornalismo cumpre uma fungiio social antes de Ser_um negécio, que a objetividade € 0 equilibri ue alicercam a boa reportagem. E, no entanto, nesses trés MO- mentos ja incorporados & hist6ria politica do Brasil — a cam- panha das diretas de 1984, as eleigdes presidenciais de 1989 e a mobilizagao popular pelo impeachment em 1992 —, a prin- cipal rede de televisdo do pais falsifica, distorce e omite infor- mages essenciais. Deliberadamente. E passa ilesa por tudo is- so. A Globo foi a tinica? Nao. Mas a sua lideranga impoe a ela 0 énus de ser caso exemplar, sobretudo nos erros. Prossigamos, enti, um pouco mais nesses trés casos exemplares, Lembremo-nos de que o brasileiro se informa prioritaria- mente pela televisao, e que, agora, no ano 2000, a lideranga da Globo sobre as outras redes ainda é uma realidade. E era ainda mais forte entre 1984 ¢ 1992. Uma mentira narrada como verda- de pelos locutores da Globo nao é a mesma coisa que uma men- tira publicada num quinzenario de uma pequena cidade. Muitas vezes, as verses Consagradas na tela da Globo persistem tem- porariamente como verdade. A propésito: tamanha hegemonia exercida por uma tinica rede desequilibra o jogo democritico e a competi¢fo que faz funcionar a economia capitalista — raziio pela qual, alids, nos Estados Unidos e em outras democracias mais desenvolvidas, ha formulas para evitar a concentragao de poder na midia (0 que sera visto com mais detalhes no capitu- lo 4). O fato é este: as falsificagdes jornalisticas da Globo nio _deram conta de barrar, mas contribuiram para retardar a evolu= ao de movimentos populares ¢ da propria democracia brasilei- “ra. Desobedecendo frontalmente aos imperativos éticos do jor- “halismo. E entio? Se isso pode acontecer, por que falar de ética? ‘A discusso ética s6 produz resultados quando acontece sobre uma base de compromisso. Se uma empresa de comuni- cago nfo se submete na prética as exigéncias de busca da ver- dade e do equilibrio, o esforco de didlogo vira proselitismo va- io. E inatil. No maximo, um coléquio de etiqueta. Aliés, é assim que acontece com freqiiéncia. Debatem-se as boas maneiras dos reporteres, se eles tratam bem o entrevistado, se se apre- sentam corretamente como jornalistas, se ouvem os dois ou mais lados do tema que estio cobrindo, se invadem a privaci- 31 dade da atriz que depois decide processar a revista sua ver s6 vive de explorar detalhes da intimidade Tamosas —, ¢ assim por diante. Tudo isso é impo mas é pouco diante das faltas éticas que vitimam brasileira, Essas até contam com a colaboragao ati istas que tomam parte na confecgdo das impost geral sfio cometidas por empresas e no por redat tas institucionais e nao desvios pessoais. ‘As empresas esforgam-se em contratar jomalis querem funciondrios que no falsifiquem declar que nao cometam pligios, que no digam que gas a verba que na realidade consumiram tomando voltar para a redago. As empresas tém razio e cia: do caréter dos seus profissionais depen qualidade técnica dos produtos jornalisticos qui yenda, Mas elas precisam devolver essa mi transparéncia ao puiblico — e, infelizmente, agem assim. Por isso, uma discussdo ética que. ca das empresas resulta numa conversa de * Essa deontologia ghitea termina por ajudar a que 0s piores problemas da imprensa brasilei construidos no interior das empresas de corm as ¢ interesses que ultrapassam os dominios nada tém a ver com os interesses legitimos dores, leitores, ouvintes. Mais ainda: ajuda a) que o ambiente de absoluta ausénci orientem as empresas de comunicagao é uma nao restrita, portanto, a um segmento profis Discutir ética na imprensa s6 faz sentid em questo os padrdes de convivéncia entre dualmente, ¢ de toda a sociedade no que se a informagao de interesse pablico e com a cisam se subordinar no apenas os jornalistas, seus patrdes e as corporagées em que funcionam comunicagio. Essa discussio s6 tem um interes 32 dao. Ninguém mais. E para ele que a imprensa deve existir — € 86 para cle. As vezes, parece que todos nos esquecemos disso. Jomais, revistas, emissoras de radio ¢ televisio dedicados ao jornalismo, assim como os sites informativos na internet, nada disso deve existir com a simples finalidade de gerar em- pregos, fortunas ¢ erguer os impérios da midia; deve existir por- que os cidadiios tém o direito & informagio (garantido em todo 0 mundo democritico, sobretudo desde a Declaragaio Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que estabelece, no artigo 19, © direito a liberdade de opinido ¢ expressio, que inclui a liber dade de “procurar, receber ¢ transmitir informagées e idéias por quaisquer meios ¢ independentemente de fronteiras”, e ga- rantido também no Brasil, pela Constituigio Federal, artigo 5° — xiv). Sem que esse direito seja atendido, a democracia nao funciona, uma vez que o debate puiblico pelo qual se formam as opinides entre os cidadios se torna um debate viciado. Por ‘isso a imprensa precisa ser forte, independente e atuante. E ver~ dade que a atividade jornalistica se converteu num mercado, mas, atengdo, esse mercado é conseqiiéncia, e no o fundamen- to da razo de ser da imprensa, Do direito fundamental a que corresponde a imprensa, o direito & informagao, resulta a ética que deveria reger os jornalistas ¢ as empresas de comunicagio —e deveria reger também os vinculos que ambos estabelecem com as suas fontes (as pessoas que fornecem as informac&es 08 jornalistas), com o ptiblico e, sobretudo, com o poder (eco- némico, politico ou estatal). Quando o poder age no sentido de idadao a informagao que Ihe é devida, est corroen- “do-as bases do exercicio do jornalismo ético, que é 0 bom jor- nalismo, e corrompendo a sociedade. Quando se trata das relagdes dos jornalistas e das empre- sas de comunicagio com o poder, um outro horizonte se abre Para aqueles interessados na discussdo ética. Pois assim como as redagdes nao existem & margem das empresas, mas no inte- rior delas, também as empresas nao pairam soltas no espaco, ‘mas tém o seu lugar dentro da sociedade — e essa sociedade é marcada (definida) pelas relagdes de poder e de dominagao. 33 ‘Tanto € assim que alguém que pretendesse fazer a defesa da conduta da Rede Globo em 1984, 1989 © 1992 poderia ale. sar que clas eram devidas nfo & vontade autOnoma da empre- ay esitn as presses do Estado sobre a empresa, Presses exis- tem, ¢ sio fortes. Principalmente sobre as emissoras de radio e tv, Até a promulgagio da Constituicao de 1988, um ato diseri- cionério do Executivo bastaria para por fim & concessiio de uma emissora de rédio ou televisio. Atualmente, contudo, as concessdes dependem também do Congresso Nacional, e as possibilidades de uma rede de televisao enfrentar presses go- vernamentais sio mediadas pelo Legislativo. De toda forma, aceitar silenciosamente, durante tanto tempo, que uma ingerén- cia governamental imponha a censura velada ao jornalismo constitui, além de uma postura empresarial pusilénime, uma traicdo A confianga do cidadao Nao € 0 caso, aqui, de verificar os meandros das negocia- Ges que empresas de comunicagao e governos podem se permi- tir entre si. O que interessa saber € de que lado tém permanecido as emissoras de televisio: se ficam do lado do direito & informa- do ou do lado das conveniéncias comerciais e politicas que exi- gem sacrificio da ética. Como regra, elas téri preferido a segun- da alternativa. Eticamente, portanto, agem de forma condendvel. Entio a ética seria a negagao do espirito pragmatic que caracteriza 0 mundo dos negécios? Nao necessariamente. A ética na imprensa é, sim, a demarcagao de limites para o prag- matismo, que, por si, no conhece limites. Enfrentar a discus- sio ética é aceitar 0 pressuposto de que € possivel, ainda que numa perspectiva mais ou menos utpica, buscar mecanismos que protejam valores coletivamente eleitos contra um regime do nao-valor moral. Esse pressuposto soa ingénuo para muitos, mas a alternativa a ele € o abandono de toda pretensio a uma convivéncia melhor. Temos aqui uma encruzilhada légica: de um lado, abre-se o caminho do vale-tudo, j4 que a ética ndo Passaria de um sonho pueril como o das criangas que acreditam em Papai Noel; do outro lado, esta a estrada mais tortuosa € di- 34 Leen, ficil, na qual € preciso combater o vale-tudo porque, embora Papai Noel nao exista, as préticas humanas podem ser melho- res do que so. Nao é ingenuidade pretender que as empresas de comunicagio devam dar prioridade, como valor, a informacao. Em se tratando de canais de radio ¢ televisio, isso é ainda mais verdadeiro, pois € em nome desse direito que o Estado, Tepresentando a sociedade, concede os canais para que se tor- nem objeto da atividade comercial, Uma emissora de televisao ou de radio s6 pode funcionar mediante concessio piiblica; é preciso que o poder puiblico conceda a permissio para que aque- Ja determinada freqiiéncia (aquele canal) seja utilizada por uma empresa para enviar seus sinais aos aparelhos receptores. Sem essa permissio, nada feito. O que vale dizer: em tiltima andlise, 0 cidadao € o dono das freqiiéncias exploradas pelas empresas. Cameras, antenas, parques eletrénicos instalados para a confec- Gio das imagens eletrénicas, podem ser propriedade privada — mas a freqiiéncia pela qual sao transmitidas as ondas eletro- magnéticas pertence ao povo e, em nome do povo, é concedida a empresa privada. Portanto, 0 cidadao tem legitimidade para exigir que essa exploracio comercial nao o desrespeite. Por tudo isso, 0 exemplo da conduta da Rede Globo em 1984, em 1989 ¢ em 1992 ilustra de modo bastante claro o al- cance que deve ter a discussiio ética sobre imprensa. Mais do que as normas de conduta que orientam a ago dos jomalistas, € preciso envolver no debate a ética das empresas que se dedi- cam ao negécio da comunicagio social e identificar, ou propor, limites ao poder (econdmico, politico ou estatal) que procura subordinar a comunicagdo aos seus interesses, violando, com isso, 0 direito a informagio. Os desvios éticos da imprensa brasileira nao se resumem, Portanto, as falhas dos jornalistas — que, evidentemente, de- Vem ser analisadas em ptiblico, para o bem da melhoria da qua- lidade de informagio; eles se estendem as empresas € & socie- dade. O problema ético é um problema estrutural e sistémico. ao direito EJ |A desinformagao nao se deve apenas a maus prot também a atitudes empresariais que revelam fa ‘om 0 direito & informagio, que se articul interessado na Cs ios dos drgaos de imy nantes (que também sio cidadios mas se encont de condigdes que os diferenciam dos demais); 0 sado € 0 cidadio como outro qualquer, aquela {que consome as noticias e que, no fim, é 0 benefici jomalismo de qualidade — ou a vitima do jornali isso que essa discussao vale a pena, faz sentido isso, € urgente.

You might also like