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See ac eae ae or Pere crs PRIN Py ATIC RG ays x ay en AFORMAGAO DO HOMEM MODERNO VISTA ATRAVES DA ARQUITETURA fe eee nO RSA ICUL Siarera elt Flee) i) corer BIBLIOTECA 7 Jac CarRLos ANTONIO LEITE BRANDAO A FORMAGAO DO HONEN MODERNO VISTA ATRAVES DA ARQUITETURA 2° EDICAO REVISTA Belo Horizonte Editora UFMG 1999 Copyright © 1991 by Carlos Antonio Leite Brandao 1999 - 2.ed. Este livro ou parte dele nao pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizagao escrita do Editor Brandao, Carlos Anténio Leite B817F A formacgio do homem moderno vista através da arquitetura/Carlos Ant6énio Leite Brandio - 2.ed. - Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. 240p., il. - (Colegio Humanitas) 1. Arquitetura - Filosofia 2. Arquitetura - Histéria 1. Titulo IL. Série CDD: 720.1 CDU : 72.03 Cataloga¢ao na publicagéo: Divisao de Planejamento e Divulgacao da Biblioteca Universitaria - UFMG ISBN: 85-7041-155-3 EDITORACAO DE TEXTO Ana Maria de Moraes . . PROJETO GRAFICO BAB2B/ OO? Gléria Campos (Manga) FOTOS Carlos Ant6nio Leite Brandao PREPARACAO DE ORIGINAIS E REVISAO DE TEXTO Rosa Maria Drumond Costa REVISAO DE PROVAS André Luiz Gomes Flavia Silva Bianchi Maria Diana C. Santos Maria Stela Souza Reis Rubia Flavia dos Santos PRODUGAO GRAFICA E CAPA Marcelo Belico FORMATAGAO Alexandre Gregole Colucci Eduardo Ferreira EDITORA UFMG Av. Antonio Carlos, 6627 - Biblioteca Central - sala 405 Campus Pampulha - 31270-9011 - Belo Horizonte/MG Tel.: (031) 499-4650 - Fax: (031) 499-4768 E-mail: Editora@bu.ufmg.br hitp://www.editoras.com/ufmg UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitor: Francisco César de S4 Barreto . Ao Gute, a Trindade, 4 Edinah Henriques Vice-Reitora: Ana Lucia Almeida Gazzola A Flora, ao Guilherme, a S6nia Viegas e ao Moacyr Laterza. CONSELHO EDITORIAL TITULARES Carlos Antonio Leite Brandao, Heitor Capuzzo Filho, Heloisa Maria Murgel Starling, Luiz Otdvio Fagundes Amaral, Manoel Otdvio da Costa Rocha, Maria Helena Damasceno e Silva Megale, Romeu Cardoso Guimaraes, Silvana Maria Leal Céser, Wander Melo Miranda (Presidente) SUPLENTES Anténio Luiz Pinho Ribeiro, Cristiano Machado Gontijo, Leonardo Barci Castriota, Maria das Gracas Santa Barbara, Newton Bignotto de Souza, Reinaldo Martiniano Marques CAPITULO I CAPITULO II CAPITULO III CAPITULO IV LISTA DE FIGURAS NOTA DO AUTOR PREFACIO INTRODUCAO O GOTICO Do Pantheon Romano A Catedral Gética Arquitetura e Significado: O Espaco Gético Da Arquitetura ao Mundo Gético A Arquitetura Gotica e a Filosofia Escolastica A Divina Comédia ea Arché Medieval O RENASCIMENTO A Arché Arquitetura e Significado: O Espago Renascentista A Cidade O Edificio Da Arquitetura ao Mundo Renascentista O MANEIRISMO A Arché Arquitetura e Significado: O Espaco Maneirista A Cidade O Edificio Da Arquitetura ao Mundo Maneirista O BARROCO A Arché e o Espirito de Sistema A Arché O Espirito de Sistema Arquitetura e Significado: o Espago no Século XVII A Cidade e o Espirito de Sistema Roma e a Piazza San Pietro Paris e o Palacio de Versalhes Borromini e a Arché Barroca Bernini e Borromini San Carlo alle Quattro Fontane 11 13 15 21 33 33 41 48 48 56 67 67 75 75 79 94 103 103 112 112 115 123 131 131 131 136 143 143 144 157 163 163 168 CAPITULO V Sant'lvo alla Sapienza A Obra de Guarino Guarini Da Arquitetura ao Mundo Barroco A Arquitetura Barroca e o Homem Moderno A Arquitetura Barroca e a Ciéncia Moderna A Arquitetura Barroca e a Filosofia Moderna A Arquitetura Barroca e o Racionalismo Cartesiano O Barroco em Pascal e Leibniz A PERDA DA ARCHE NO DESENVOLVIMENTO DA MODERNIDADE REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 180 184 188 188 192 200 200 212 229 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 PIRANESI, Giovanni Battista. Pantheon. Interior. (Gravura do século XVII) Santa Sabina, Planta Campo Santo. Pisa St. Stepben. Viena Notre-Dame. Paris. Vista da cabeceira Catedral. Colénia GIOTTO. Exéquias de Sao Francisco Notre-Dame. Paris. Fachada Catedral, Milao BRUNELLESCHI, F. Velha Sacristia de SGo Lourenco. Corte transversal SAVORGNAN e SCAMOZZI. Palma Nova. Pianta BRAMANTE. San Pietro in Montorio. Roma Palazzo Pitti. Florenca BRUNELLESCHI, F. Ospedale degli Innocenti. Florenca ALBERTI. Palazzo Rucellai. Florenga ALBERTI. Santa Maria Novella. Florenca BRUNELLESCHI, F. Ciipula de Santa Maria dei Fiori BRUNELLESCHI, F. Capela Pazzi. Florenga BRAMANTE e MICHELANGELO. Plantas projetadas para a Basilica de SGo Pedro. Vaticano MICHELANGELO e BERNINI. Vista da cipula e da Praca de Sdo Pedra FONTANA, Domenico. Plano de Sisto V para Roma PALLADIO. San Giorgio Magiore. Veneza AMMANATI. Palazzo Pitti. Florenga. Interior VASARI. Uffizi. Florenca MICHELANGELO. Piazza del Campidoglio. Roma 35 36 38 42 44 45 47 53 66 68 76 82 88 89 90 91 94 102 104 105 114 115 117 120 121 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 MICHELANGELO. Biblioteca Laurenziana. Florenca DURER, Albrecht. Melancolia I DELLA PORTA e MADERNO. Trinita dei Monti e Piazza di Spagna. Roma Piazza del Popolo. Roma BERNINI e BORROMINI. Piazza Navona. Roma BERNINI, Piazza San Pietro. Vaticano BERNINI. Colunata da Praca de SGo Pedro. Roma BERNINI. Vista aérea da Praca de SGo Pedro. Vaticano BERNINI. Sant'Andrea al Quirinale. Roma VERSALHES. Planta dos jardins LE NOTRE, Andre. Jardim de Versalbes. Versalhes Von HILDEBRANT, Lucas. Belvedere Superior. Viena BORROMINI. San Carlo alle Quattro Fontane. Roma BORROMINI. Sant'Andrea delle Fratte. Roma. Vista posterior BORROMINI. Sant‘Ivo alla Sapienza. Roma GUARINI, Guarino. Paldcio Carignano. Turim GUARINI, Guarino. San Lorenzo. Interior FISCHER VON ERLACH, John Bernhard. Igreja de Sao Carlos. Viena EIFFEL. Yorre Eiffel. Paris 122 124 142 146 147 149 153 155 156 158 159 162 165 172 181 185 187 189 228 Lancado em 1991 e rapidamente esgotado, este livro recebe agora a revisdo que ja ha algum tempo Jhe era devida, gracas a oportunidade oferecida pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Quanto ao aspecto formal, as mudancas dedicaram-se a buscar uma redagdo mais limpa e organica, a organizar melhor notas e referéncias e a renovar as ilustragdes, além de corrigir alguns erros verificados na primeira edicdo. Quanto ao contetido, condensou-se e atualizou-se a analise de alguns edificios, introduziram-se novas consi- deragées, atenuou-se a distincao entre os diversos periodos estilisticos e a contraposi¢do entre classicismo e anticlas- sicismo. Em grande parte, isso se deve a recentes estudos realizados sobre o guattrocento italiano que apontam a evidéncia de um espirito anti-humanista j4 no interior do Renascimento (sobre tal estudo, preparamos, para breve, a publicagao de Quid tum? O Combate da Arte em Leon Battista Alberti, também pela Editora UFMG). Em virtude do seu carater marcadamente académico e interdisciplinar, preferiu-se manter grande parte das notas e detalhar as remissGes biblio- graficas — tendo em vista, sobretudo, aqueles que se iniciam nessas ligacoes perigosas entre Arte, Arquitetura e Filosofia, intersticio em que as intuicSes costumam ser muitas, mas o rigor, pouco. Nesta oportunidade, cumpre renovar velhos compromissos e consagrar alguns novos. Sao muitos os que nos ajudaram a produzir este livro e seria impossivel agradecer a todos, mencionando-os aqui. Alguns, contudo, vejo-os em cada pa4gina acompanhando-me desde a sua origem, tal como aqueles a quem este livro é dedicado. Outros passaram a habit4-lo durante o processo de sua primeira edicao e, agora, em sua segunda edicdo pela Editora UFMG. Sylvio Podesta e Gaby de Aragio arriscaram, em 1991, a abrir a Editora AP Cultural com este livro e estarao sempre comigo nessa trajet6ria. Relembro-os junto com Newton Bignotto, Maria Lucia Malard, Soninha e Moacyr, os quais me incentivaram a percorrer esta ponte infinddvel entre a Arquitetura, a Arte, a Hist6ria e a Filosofia. Pela ines- timavel ajuda na produc4o da dissertagao de Mestrado, na primeira edicdo, e nesta que agora se empreende, firmaram-se como colaboradores indispensaiveis Messias Fonseca, Yeda Rodrigues e Jomar Braganga. Ricardo Ostos e Raquel Schmal, monitores do Departamenvo de AniAlise Critica e Histérica da Arquitetura da UFMG, foram inestimaveis colaboradores na ultima fase do trabalho, bem como o Laboratério Grafico para o Ensino de Arquitetura (LAGEAR) da Escola de Arquitetura da UFMG. Além de competentes e dedicados, a ternura e a paciéncia de Ricardo e Raquel serviram para cultivar momentos de delicadeza, mesmo quando os estudos se tornavam 4ridos. Assim contribuiram para manter o saber sempre fecundado pelo sabor. A estes, e aos meus amigos de vida académica, quero deixar registrado aqui meu mais sincero agradecimento, minha homenagem e a alegria de vé-los companheiros nesse percurso que agora se reinicia. Este livro, como nao podia deixar de ser, é parte de todos nos. 14 “A filosofia é reflexdo sobre uma experiéncia nao-filosdfica. [...] A experiéncia nao-filoséfica é€ suficientemente préxima da filosofia para que nessa encontre audiéncia, lhe inspire inquietude e termine por transforma-la como filosofia.” Serve essa nota de De Waelhens como epigrafe geral para esta obra de Carlos Anténio Leite Brandao que, para efeitos de sua dissertagao de Mestrado, selecionou entre um teméario peri- gosamente amplo e complexo o campo filos6fico afeto ao evolver hist6rico da arquitetura, que em seus passos itine- rantes na modernidade ocidental — do Gético ao Barroco — descreveu a propria formacdo_espiritual e ideoldégica do chamado Homem Moderno. A tese transmuta-se neste livro, onde, com alguma modificagéo menor, conservam-se tanto o enfoque noético da filosofia, como a ampla recorréncia hist6rica coligida, por quem sabe e soube sempre o sabor sapiencial da arte da arquitetura para além dos seus valimentos pragmaticos. A consentida ambigttidade de termos como Modernidade, Idade Moderna, Homem Moderno, Arte Moderna, Pés-moderno permite-nos nao restar apenas no campo da mera cronologia, ora fixada no periodo que segue imediatamente ao medievo, ora apontando para o complexo cultural mais contempora- neo (fim do século XIX, comeco do século XX e a atualidade). Indo além da cronologia, Carlos Brandao adentra-se pelo campo dos juizos valorativos, uns positivos, outros negativos, acerca do que se conceitua como Modernidade, Pdos-Modernidade etc. HA em tudo e sempre um senso de historicidade balizando intrinsecamente a reflex4o filos6fica. E isso por uma questdo de principio. Atento aquilo que Manfredo Tafuri designou o eclipse da histéria, na sua critica ao funcionalismo, Carlos Brandao conscientiza-se da “tarefa fundamental do atual critico da arquitetura: Recuperar o papel e o significado das obras junto com as concep¢ées e ideologias” originarias as quais se ligam.”? Daf continuar afirmando: Para nos, voltar 4 hist6ria nao significa abrir um reservatério de valores e formas codificadas nem um outro instrumento de projetagao qualquer. Significa, ao contrario, contestar o pre- sente — tanto a tradi¢ado do novo do moderno, como o novo tradicional do pds-moderno — procurando-se sempre reen- contrar o sentido da arquitetura_e os valores traduzidos pelo ato de projetacao e construgio dos edificios.? Veja que ja na epigrafe de seu livro h4 um cotejo do futuro com o passado, que de alguma maneira vem caucionar 0 sen- tido do presente. A preferéncia se inclina para as exigéncias do pretérito — tomado sempre como valor redivivo ou redivivel ou resgatavel: “Entre todas as exigéncias da alma humana, nenhuma € mais vital que a do passado. [...] E nds niio possuimos outra vida, outro sangue, além dos herdados do passado e dirigidos, assimilados, recriados por nos.”3 Carlos A. L. Brandao segue aqueles que recriaram, parcial- mente que seja, a noética filos6fica, quando debrucando-se sobre 0 evolver temporal da arquitetura (fato ou experimento nao-filoséfico em si mesmo), toma como ponto de referéncia axial de sua reflexao o prdprio sentido da arché que inspira a tectOnica inventiva que o homem construiu, vem construindo. Nao tanto pela estabilidade eledtica de um principio tnico que teimaria em se repetir na diversidade temporal, mas, antes, pela capacidade ou virtualidade inventiva que o principio animador da arte arquitet6nica possui inscrito em si mesmo, ao passar do Romano ao Bizantino, ao RomAnico, ao Gdtico, ao Renascentista, ao Maneirista, ao Barroco, ao Rococd, sequéncia histérica que pontua aquilo que, no cendrio do ' Conferir a Introdugio deste livro. ? Conferir a Introdugio deste livro. * © autor cita a epigrafe da p.7 desta obra, optando por uma inversao na ordem das frases. ab Roe , Y . by tog Wore ey LO : of : Peo . aa ; 16 Lo : ! Ey nt ee YT ay ; odes Le \ oy duet ye? “ so? . co ~ ae += Ocidente, Jacques Maritain, na esteira de E. Male, L. Venturi, A. Malraux, G. Bazin, designou o advento do eu — expressio reinterpretada por Brandao, quando enfatiza a emergéncia da subjetividade criadora nos meridianos dos tempos que construiram a modernidade. “Tirai o andaime, o saibro, a calica, a pedra, a massa ea argamassa, fica a forma e a arquitetura da forma...”, teria dito alhures e com outras palavras o neoplaténico Plotino. Seja, a forma. Problema fundamental para a arte, para a arte da arqui- tetura e para a filosofia da arte. E para a filosofia da arquitetura. A questéo da forma é recolocada pela Gestaltpsychologie. E, assim, incitada, segue a filosofia a pensar o estatuto ontold- gico daquilo que nem é uma coisa, nem se reduz a uma idéia. Sempre a n4o-filosofia despertanto a argticia meditativa do fildsofo. O fil6sofo Carlos Brandao busca as intuigdes pri- mevas de sua meditacdo na vivéncia concreta daquilo que se oculta sob a vetusta roupagem da expressdo conceitual designada situs. Pouco importam as alfaias que o termo recebia dentro da teoria dos predicamentos de Aristdteles e na de seus comentadores escoldsticos. Na verdade, Brandao (e néds com ele) recebemos a nogao de situs, ja estabilizada semanticamente para significar algo atinente nio ao espaco tout court, mas aquilo que designamos o espaco humano, o espaco humanizado, os sitios de nosso solo humano, lugar de nosso habitar, residéncia, habitacgio. Contrastando com o mero ubi (ugar-onde) as categorias aristotélicas referem sin- gelamente o situs como accidens disponens partes corporis in loco. Ou, entao, ordo partium in loco. No mesmo onde, no mesmo lugar, as partes ordenam-se diferentemente, como quem, estando na mesma casa, visita cCOmodos diversos. HA, pois, no mesmo ubi, o sedere, o stare, o inflecti, o decumbere; em Ultima andlise, as milhentas possibilidades de nosso ser-ai, de nosso Dasein, de nosso estar, estar-no-mundo, ja surpre- endidas nas irradiagdes gestuais das modestas posturas de nosso corpo. O estar (assim ou de outro modo) transfigura-se € se redime de sua pobre materialidade, quando o centro de atribuigao se personaliza no estar proprio do ser humano in Senere, e se pessoaliza na situagao humana de cada pessoa individual, nica, inédita, que nao apenas aceita seu sitio, 17 mas 0 determina e o arquiteta, antes de engendr4-lo e edifica-lo. E a pessoa que faz o seu estar, o seu bem-estar, o seu mal- estar... Carlos Brandao dara especial atenciio ao sentido do babitar, que, por outra via mais transcendente, redime o gesto de se autodispor num sitio, concretizando a ordo partium in loco numa dimensao onde tanto o lugar, como o corpo que o freqienta, o estar, e o gesto de se dispor para um determinado estar sao recalibrados 4 luz de uma concepcao do prdéprio ser. Disso falaremos adiante. Notemos antes sua estratégia de profundidade. Ao se re- portar diretamente ao conceito arché, na busca dos primeiros principios que respeitam 4 compreensfo da arquitetura, sua pesquisa € solidaria com a que busca na palavra ars (e de- pois Arte), a modulagdo ética e politica de sua antecedente etimolégica arete. Essa modulacao que da conta do sentido social da arte e, mais imediatamente, da arte da arquitetura, Carlos Brandao foi busca-la direto dos harménicos do radical arché. Para tanto, reinterpreta — dentro da melhor tradicao cientifica das ciéncias humanas, e seguindo as interferéncias dessas Ultimas sobre o Ambito filos6fico em suas vertentes contemporaneas — reinterpreta a nocdo de situs, efetuando um audaz translado de sua significagao espacial para o nivel temporal ou, mais propriamente, para o nivel hist6rico. Trata-se agora da situacao histérica do homem, crédito inalie- navel de sua existencialidade, mais do que crédito estacio- nario de sua essencialidade. Essa situacGo nao é tio-somente um dado irrecusdvel — aquela determinatio ad unum que atinge inelutavelmente as coisas sempre postas, dispostas, repostas, colocadas, deslocadas, transpostas, transferidas, manipuladas. A situagao humana é a sua soberba gestual autodeterminante de seu estar. Na ordem individual, quando edifica um pouco de seu ter, de suas posses, de seu babere, arquitetando e edificando o seu habitat, tecendo a rede de seu habito ou a trama de seus habitos. Mas, principalmente, quando a polis interfere na dgora, monumentalizando e historializando seu ser cultural e sua presenga civilizatéria. Consegue assim o homem eternizar-se, perenizando no ins- tante sua experiéncia histGrica, sua solucdo inédita para con- sertar as inadiaveis relagGes que deve assumir com o mundo, consigo mesmo, com os demais homens e com os deuses. 18 Carlos Brand4o, sem desconhecer a solugdo do classicismo greco-romano, nos leva a investigar outro periodo, intermedia- rio entre © contemporaneo e o da cidade antiga. Por isso, ja na introducao, nos adverte: O que pretendemos aqui é, justamente, analisar a arquitetura como documento da lenta formagao deste homem moderno, desde o final do periodo medieval até o século XVIII, reapren- dendo-a como imagem da relagado homem-Deus-mundo espe- cifica de cada perfiodo, do Gético ao Barroco.* E para nés significativo que ao falar de arte, Palavra, Pa- lavra Essencial, a que funda o ser — e nao a que se banaliza e se publicaliza — Heidegger use a expressdo casa, habitacao, moradia: a palavra é a morada do ser. A arquitetura como arte — para além de seu sentido prag- matico — é também Palavra que funda o ser, que lhe oferece oO recato, a seguranga, a morada onde confirmamos nossas certezas. Carlos Brandao cita, pois, Heidegger, ao se referir a crise do sentido do habitar, entendendo por habitar o funda- mento do ser do homem, como o sentimento da protec4o e seguranga existencial frente aos deuses, ao universo e a Si mesmo: “E j4 nado aprendemos a habitagao como se fosse o ser (sein) do homem: e menos ainda pensamos na habitacgao como traco fundamental da condi¢ao humana. [...] E preciso, antes de tudo, aprender a habitar. Talvez o objetivo de nosso estudo esteja nesse aprendizado.”” Menos por este livro, menos pela sua atividade docente e mais por seu labor reflexivo, que uma década e meia de con- vivéncia profissional me autoriza a testemunhar, Carlos A. L. Brandao tem dado provas de que seu aprendizado tem efeti- vamente se consumado. Arquiteto e fil6sofo, tem j4 provado soberania, autdrkeia, maitrise de soi méme na area de sua especializagdo. Essa sua forca intelectual, seu titulo de nobreza, seu babere, seu modus se habendi. Que nao é outro o significado da venerada palavra habitus. Tao diferente da rotina. E do babitude. ‘ Conferir mais uma vez a Introducio. * Idem. 19 Como fil6sofo, prova estar autorizado a repensar a arquitetura, recolocando-a no seu contexto histérico — seu verdadeiro habitat. E, mais do que nunca, situando — junto e através do seu labor meditativo — a obra humana do arqui- teto ao nivel do processo de des-ocultagdo ou desvelamento do Ser, a-létheia, epifania, esplendor, luzir e verdade. Quando os arquitetos (que também sao gente) encontram o sentido do Ser, as casas tornam-se habitaveis... porque confirmam as nossas certezas... Moacyr Laterza 20 A arquitetura funcionalista que dominou o século XX trouxe consigo dois axiomas que distorceram as pretensdes dos seus fundadores: por um lado, o repertério tecnolégico-construtivo e as necessidades sociais reduzidas 4 sua_pragmaticidade tornaram-se os condicionantes fundamentais dos projetos e recolocaram a arquitetura como servig¢o mais do que como arte; por outro, promoveu-se a novidade absoluta como o objetivo maior de suas criacgdées vanguardistas e_rompeu-se com toda e qualquer referéncia 4 histéria da arquitetura e aos estilos passados. Contudo, por mais que tenha feito, esse funcionalismo comecou a ser criticado por todos os lados, a partir da década de sessenta, seja pelo seu carater abstrato e intelectual que n4o atende as exigéncias de identidade cultural do habitante com seu habitat, seja pela desconfiancga em re- lacdo a tecnologia e aos avanc¢os construtivos, como capazes de resolverem os problemas sociais e o bem-estar da humani- dade. Proclamava-se, entao, o esgotamento de sua linguagem formal, considerada excessivamente racional, fria e objetiva. Sem avaliar-lhes o mérito, o movimento pds-moderno, que se consolida ao final dos anos setenta, assume tais criticas e propoe uma retomada da tradicao, do passado e dos estilos histéricos da arquitetura.’Essa atitude historicista pos-modernista, no entanto, é falsa. Sob sua mascara esconde-se o atrelamento da arquitetura a uma sociedade violentamente consumista, que substitui a sociedade industrial moderna. O resultado é o ressurgimento de uma mentalidade arquitet6nica vitoriana, responsavel por um .meo-ecletismo assentado em formas desprovidas de significado e que, em momento algum, promove a identidade cultural, cuja falta seria a razao da crise do funcionalismo, ou a compreensao histérica tao proclamada pelos pés-modernistas. 1 AQHA Oh op oe a MANNS Mas © maior perigo se assenta na reducdo da histéria a instrumento de uma pratica revivalista que esvazia a arqui- tetura de sentido. Tornada mero objeto de consumo, ela nao se define nem como servico 4 sociedade, nem como expressio artistica.. Nesse ponto, a critica hist6rica viu-se reduzida a uma justificagdo teérica da muleta estilistica a que somos obrigados a recorrer em nosso tempo. E, ao invés de retomar-se a historia, tende-se a substitui-la. Por caminhos diferentes, o eclipse da historia desencadeado pelo funcionalismo_se. prolonga no pés-moderno.! Portanto, se a retomada da critica hist6rica € necessdria, a maneira pela qual ela foi compreen- dida é falha, e perigosa o suficiente, para exigir dos teéricos e historiadores uma leitura do passado da arquitetura que seja capaz de confirmar, a cada passo, a totalidade caracteris- tica do objeto construido — o.sentido das formas e o signifi- cado do edificio e da cidade frente ao contexto histérice-e- existencial da humanidade. Esta é a tarefa fundamental do atual critico da arquitetura: recuperar o papel e significado das obras junto com as concepgées e ideologias originarias as quais se ligam. Voltar 4 histéria nao significa, pois, abrir um reservatorio de valores e formas codificadas, nem um outro instrumento de projetagéo qualquer. Significa, ao contrdario, contestar o presente — tanto a tradic¢do do novo do moderno, como 0 novo tradicional do pés-moderno — procurando-se sempre reencontrar o sentido da arquitetura e os valores produzidos pelo ato de projetar e construir edificios. Na verdade, s6 atingiremos o 4mago‘da crise disciplinar que hoje vivemos se compreendermos que o eclipse da histéria, promovido por aquelas duas atitudes, corresponde ao eclipse do sentido da arquitetura. Com muita argticia e no apogeu do funcionalismo, Heidegger percebia que a verdadeira crise ‘The danger is the theoretical justification of the stylistic crutch. Mohology-Nagy, Sybil. The canon of arquitectural history. In: The history, theory and criticism of arquitecture, papers from the 1964, p.40, citado por TAFURI. Teorias e historia da arquitetura, p.34, Como introducao As atitudes modernas e pés-modernas, ver também PORTOGHESI. Depois da arquitetu- ra moderna; SUBIRATS. Da vanguarda ao pos-moderno e, principalmente, TAFURI. Teorias e bistéria da arquitetura, destacando o primeiro capitulo, A arquitetura moderna e o eclipse da hist6ria, p.31-106. ’ Sobre as tarefas da atual critica da arquitetura frente & historia, conferir te Teorias e bistoria da arquitetura, p.275-286. 4M , pla. Spy 22 verre da arquitetura néo era_uma_ crise de alojamentos, mas.uma crise do. sentido do habitar — entendendo o babitar como o fundamento do ser do homem e como o sentimento de protecao e seguranca existencial frente aos deuses, ao universo e a si mesmo: “Ja nado aprendemos a habitacao como se fosse o ser (sein) do Homem; e menos ainda pensamos a habitacdo como trago fundamental da condigdo humana. E preciso, antes de tudo, aprender a habitar.”> Talvez o objetivo de nosso estudo esteja nesse aprendizado. Tal crise manifes- ta-se antes do século XX ¢ reflete um estagio ulterior das concepeoes do homem moderno a respeito de si mesmo, de Deus e do mundo. Portanto, ela ultrapassa 0 campo especifico da arquitetura e remete-nos a questoes cientificas e filosficas no seio das quais o arquiteto desenvolve sua pratica. O que pretendemos aqui é, justamente, analisar a arquitetura como documento da Jenta formacgao deste homem moderno, desde o final do periodo medieval até 0 século XVII, ‘reaprendendo- a como imagem da relacdo fhomem-Deus-mundo, especifica de cada periodo, do Gético ao Barroco. Tanto na arquitetura quanto na filosofia, o surgimento do. -homem moderno é um marco que altera a produgao artistica _e teérica. Representa a descoberta e a afirmacao da subjeti- vidade criadora que se consolida no cogito, ergo sum de Descartes e na arte barroca. A historia da arquitetura divide-se. em dois momentos: um primeiro, onde os ediffcios mais significativos imitam o Universo (mimesis); e um segundo, onde o que importa 6 a expressao de uma progressiva subje- tividade, cuja autonomia e infinitude caracterizam 0 homem do século XVII que luta para se comunicar e se revelar ao mundo, através do trabalho executado na matéria pelo arqui- teto (metteur en oeuvre). Pesquisar 0 eclipse do sentido da arquitetura requer, antes de tudo, encontrar, justamente, em que ponto a passagem de um momento a outro contribuiu para seu aparecimento. Superar a atual crise, portanto, exige compreender as razGes e condicdes do nascimento do homem moderno, a fim de encontrarmos o sentido original da propria perda de sentido que agora experimentamos. > Conferir HEIDEGGER. Construir, babitar, pensar, p.345 et seq. 23 Cremos que uma releitura daquele periodo da arquitetura ocidental — do final século XII ao inicio do XVUI — resgata o aprendizado requerido ao critico atual e confere ao nosso estudo um inseparavel carater didatico. Esse carater é dupla- mente dimensionado. Por um lado, ele se dirige aos historia- dores, criticos de arte e, especialmente, aos arquitetos, procurando remeté-los aos significados primdrios dos quais se origina o objeto arquiteténico e aproxima-los do campo cientifico e filos6fico. Carece de sentido, como ja afirmamos, a analise do edificio que se abstrai das concep¢des existenciais que conferem totalidade e legitimidade ao produto do trabalho do arquiteto. Este documenta, nas suas obras, os problemas mais fundamentais colocados pela humanidade em um deter- minado momento histérico e é desta relacdo, entre ele e a sociedade, que depende o sucesso e 0 valor artistico do edificio. Por outro lado — na medida em que, com o mesmo interesse, dirigimo-nos a pessoas de outras dreas, especialmente a filo- s6fica — preocupamo-nos em orientar e educar os olhos para uma fruigao’ do objeto arquitetOénico que lhe faca justica e alcance a plenitude das significacdes contidas nos recursos formais, funcionais e construtivos adotados pelos arquitetos. Causa-nos preocupag¢ao, e isso se deve muito A pragmaticidade desenvolvida pelos préprios funcionalistas, uma progressiva dessensibilizagao ou dificuldade de entendimento da arqui- tetura enquanto manifesta¢ao artistica. Retomando-a enquanto tal, introduziremos os recursos especificos e as profundas pos- sibilidades significativas da sua linguagem, das quais, infeliz- mente, afastamo-nos cada vez mais. Dai a estratégia da nossa andlise. Em primeiro lugar, re- colheremos edificios que comportam um elevado grau de monumentalidade frente 4 histéria. Contudo convém nao con- fundirmos monumentalidade com grandiosidade, pomposi- dade ou algo parecido. Entendemos 0 monumento como aquele edificio que incorpora um determinado valor, ideologia ou Mensagem e a transmite pelos séculos afora. Por isso, eles permanecem no tempo. Tal escolha, portanto, se define pela capacidade do edificio revelar-nos os valores de uma época hist6rica determinada; capacidade esta que ajuda a definir o seu valor artistico-expressivo. Assim, por exemplo, tanto 24 a suntuosidade da Basilica de S40 Pedro como a rusticidade de Santa Sabina, ambas em Roma, carregam enorme valor monumental. Passemos ao segundo ponto. Nosso objetivo aqui é visualizar as concep¢oes mais significativas em que se da a formacio do homem moderno através da arquitetura. Se o conseguirmos, acreditamos afirma-la como meio fundamental por intermédio do qual o homem confere significado 4 sua existéncia. Por isso, o caminho da investigagao que adotamos se dedica, primei- ramente, a analise do edificio para, em seguida, e através dele, reconhecermos as concep¢ées histéricas das quais é expressao. Assim, evitamos um duplo erro: cair em um histo- ricismo no qual a arquitetura é tomada como mero reflexo da €poca, sem reconhecer o papel ativo por ela desempenhado de afirmar ou contrariar as ditas concep¢ées e evitar um incon- tavel numero de aspectos histéricos irrelevantes que fariam desviar a atencdo da potencialidade expressiva do objeto artis- tico. Ndo queremos provar que a arte é produto do meio, mas que € co-autora dele, e interage com ele dialeticamente. Chegamos, entdo, ao terceiro ponto de nossa estratégia. Desejamos uma descricao clara e relevante da totalidade arquitetOnica e procuramos a intencdo que a ela preside. Consideramo-la como um pequeno mundo, onde se concre- tizam valores sociais os quais procuramos identificar, sem perder de vista a especificidade da linguagem artistica. Trés momentos sio basicos para essa andlise. Primeiramente, devemos empreender uma andlise sintdtica do monumento, estudando a construcdo légica interna do seu sistema de sim- bolos, formas, técnicas e materiais. Embora esse momento nao baste para revelar-nos a verdade da obra, ele é impres- cindivel para se alcangar a atitude adequada ao recolhimento da experiéncia transmitida pela obra, e para fazermos justica ao objeto estudado. Sem ele, nado nos embasaremos o suficiente * Segundo Argan, ef monumento es un edificio que conserva su valor y lo transmite mds alla de su propria grandeza bistérica, |...) una forma arquitec- tonica que transmitia un contenido ideolégico, un contenido que se supone conserva una vallidez mds alla de su término, [...] es la obra de arte que atraviesa los siglos conservando y transmitiendo su proprio valor ideolégico. ARGAN. El concepto del espacio arquitecténico desde el Barroco a nuestros dias, p.55 et seq. , para a posterior analise, nem alcangaremos © carater didatico pretendido. Em um segundo momento, a andlise pragmadtica estuda a relacio existente entre o edificio e€ aqueles que oO habitam, procurando encontrar as modificagoes, reacoes, atitudes e sentimentos despertados no fruidor, com vistas a transmissio de mensagens e valores significativos de um determinado periodo. Enfim, é necessario 0 Ultimo e mais interessante momento: a andlise semdntica, em que estuda- remos a relacio entre aquele sistema de simbolos € a reali- dade histérica com a qual ele interage, entre o signo e 0 designado. Nesse momento, a arquitetura leva-nos a uma meta-arquitetura, a algo que a ultrapassa e nos p6e em con- tato com os valores da época e as significagées primarias que lhe conferem a exceléncia de Arte.? Mas sera legitima essa passagem? Nao estariamos ai tornando a arquitetura excessivamente ampla e dela exigindo mais do que nos pode dar? Esticando-a no /eito de Procusto de nossa teoria? Nao. Na medida em que a analisamos como Arte, é justamente este o seu dever. Em primeiro lugar, pela propria esséncia do objeto artistico. Enquanto a clencia se baseia em simbolos descritivos, a arte procura simbolos expressivos que nos proporcionam conhecimento, mas também expressam valores. A cipula do Pantheon, por exemplo, sugere um antropocentrismo; a de Santa Sofia, uma admiracao mistica; a ogiva gotica, um sentimento de transcen- déncia; a cipula de Michelangelo, uma atitude introspectiva. A obra de arte é a concretizacao de um objeto intermediario, resultado do encontro de valores — filosdficos, cientificos, religiosos, éticos e estéticos — que por ela sao conservados, comunicados e tornados comuns. Mas, o que é um valor? “E o proprio de um bem, de um objeto que responde a algumas de nossas tendéncias e satisfaz algumas de nossas necessidades.”® Por isso a arte comunica-nos os valores fundamentais do mo- mento historico por ela concretizado. Cada detalhe arquitet6nico de um templo grego, por exemplo, se faz morada da divindade, 5 Essa estratégia inspira-se na andlise estrutural proposta por Norberg-Schulz e H. Sedlmayr. Conferir NORBERG-SCHULZ. Intenciones en arquitectura, p.36-70. 6 DUFRENNE. Estética e filosofia, p.23-31; NORBERG-SCHULZ. Intenciones en arquitectura, p.45-49. 26 aproxima-nos da vida e do mundo grego, manifesta-nos a violéncia dos ventos, a agitagao do mar, o brilho do céu, a luminosidade da pedra e as sombras da noite. Como diz Heidegger, a obra de arte “realiza a abertura de um mundo, mantendo-o permanentemente presente”.’ A obra, portanto, apresenta-nos o mundo do qual é devedora, e nenhuma investigacdo hist6rica sobre ela pode prescindir desta remissao semantica ao mundo que a originou, sob pena de tornar-se incompleta e ingénua. Se nao bastasse isso, a prépria definicAo de arquitetura exige que ultrapassemos o puro objeto, e reconhecamos os valores e 0 mundo que o edificio torna visivel. A origem etimoldgica da palavra arguitetura, entre os gregos, decorre da necessidade de distinguir algumas obras providas de significado existencial maior do que outras, que apresentavam soluc6es meramente técnicas e pragmaticas. Assim, precedendo ao termo tektonicos (carpinteiro, fabricante, agdo de construir, construcao), acrescentou-se o radical arché(origem, comeco, principio, autoridade). Nessa origem da arquitetura, se a entendemos como Heidegger, encontra-se o ser essencial da propria arte, o qual a distingue da simples construcdo. Se- gundo Vernant, o termo arché aparece no vocabulario de Anaximandro traduzindo a soberaneidade, a exceléncia de um principio original e comum a nortear e ordenar a sociedade grega. A arché é o centro da esfera social daquele mundo e deve ser traduzida nos edificios, apresentando os deuses, a hist6ria e a conformacdo ética do povo grego. Por essa raz4o, distinta da simples construcdo, a arquitetura reenvia-nos 4s origens, aos principios fundamentais e 4s leis originais e éticas que atravessam uma sociedade. Ela produz a visibilidade de um mundo e de sua ordenacdo e, por meio da arché nela contida, nos da acesso ao campo originario de onde emerge o edificio com a exceléncia e a legitimidade de objeto ’ HEIDEGGER. A origem da obra de arte, p.54. Conferir também a apresentagao de Maria José R. Campos e o primeiro capitulo, A coisa e a obra, da traducao desse livro, In: HEIDEGGER. Revista Kriterion, p.185-210. Ver ainda PANOFSKY. Significado nas aries visuais, p.22-26, 33-36; ECO. Obra aberta, p.54, 55. Nessa obra Umberto Eco afirma: “A arte, mais do que conhecer o mundo, produz complementos do mundo, formas aut6nomas que se acrescentam As existentes [...] e que podem perfeitamente serem encaradas senio como substituto do conhecimento cientifico, como metaéfora epistemoldgica.” 27 arquitetOnico. Portanto um triplo suplemento encontramos nele. Em primeiro lugar, ele reenvia ao comeco, a uma ins- tancia originaria que o distingue (suplemento de origem). Além disso, essa origem é ordenadora e, assim sendo, o edificio é harmonioso trazendo em si uma unidade e uma lei exemplar de organizac4o (suplemento de ordenacdo). Em Ultimo lugar, ele é digno de ser teorizavel, ou seja, de permitir uma inves- tigagao que alcanga o mundo que lhe da origem (suplemento de fenomenalidade ou visibilidade). Por sua prépria definicdo, a arqui-letura exige-nos esse estudo histérico e teérico, no qual se pode demonstrar como ela nos péde em contato com as origens arquetipicas, as representacdes e as concep¢des mais fundamentais daqueles que a construiram. Assim fazendo, a arquitetura participa da hist6éria das significacées existen- ciais, torna-se signo do homem e permite-nos atingir suas concep¢odes mais profundas. Quais seriam estas? As concepc6es sobre si mesmo, sobre a natureza que o cerca e sobre o absoluto, divindade ou origem da propria existéncia e do universo. Por isso, depois de atravessarmos as andlises sin- taticas, pragmaticas e seminticas dos edificios, aportaremos nos campos cientificos, religiosos e filos6ficos dos diversos momentos da formagao do homem moderno, procurando encontrar neles os fundamentos da arquitetura. Eis, entdo, a nossa chave de leitura: reconhecermos na arché da arquite- tura a arché da €poca, do mundo, do modo pelo qual os “homens habitaram a terra em um determinado momento” .® Nesse ponto, evidencia-se a razdo do carater filoséfico deste estudo. Quando situamos a arquitetura como arte, reconhecemos o suplemento de fenomenalidade ou visibili- dade nela produzido. Isso significa que a andlise estética considera as formas construtivas tais como estas se d4o na sensibilidade do fruidor, que, com elas, estabelece uma relacao familiar, imediata, construfda no reino da pura visibilidade. Dai resulta a comoc4o do nosso olhar. Sendo bem formado, esse olhar € capaz de levar-nos aos limites do visivel, presentifi- cando-nos o sentido da totalidade histérico-cultural da obra de arte: é o préprio desejo de ver o caminho que nos conduz "Sobre o significado, a origem e a etimologia da arquitetura, conferir PAYOT. Le philosophe et l’architecte; sur quelques déterminations philosophiques de l'idée d’architecture, p.7-11 e, principalmente, p.53-65. 28 a filosofia. Através dela, resgatamos a espessura do mundo original e © espetaculo do qual os homens, a obra e os artistas participavam sem, talvez mesmo, perceber. Aquela andalise estética que, inicialmente, tomava o edificio em sua fenomenalidade — como algo que se da a ver, que se mani- festa —- ganha assim uma dimensdo filosdéfica que nos leva a buscar na manifestacao da obra a manifestacao do mundo no qual ela se insere. O esforco filos6fico se ancora, portanto, numa aprendizagem da sensibilidade que aponta para o leitor, através da analise do monumento, a possibilidade de leituras sensiveis mais aprofundadas que o fazem perceber no espaco construido o espaco vivido. Os proprios conceitos operatérios da arquitetura véem-se alargados no horizonte dessa abordagem. Quando encontrarmos, por exemplo, 0 centro, o caminho, a luze as tensdes nos edificios, reconheceremos nao apenas elementos espaciais, mas estruturas existenciais que 0 arquiteto cuidou de assumir e presentificar. Isso estabelece um jogo de sentido rico e critico por meio do qual a arquitetura é reconduzida ao espacgo maior da histéria. Mas, simultaneamente, a histéria se reconhece na concre- tude da obra arquitet6nica e, também aqui, é importante o olhar filosdfico que a resgata e que, infelizmente, parece faltar no revivalismo presente em parte da producao arquiteténica pdés-moderna. Esse olhar afasta-nos da “historicidade letal, oficiosa, pomposa e idolatrada dos museus”, como diz Merleau-Ponty, em A Linguagem Indireta e as Vozes do Siléncio, e€ nos introduz em uma historia da arquitetura mais viva e mais real, que exp6e a pulsacao da vida do artista sob sua época. Através da obra, o olhar filos6fico me instala no tempo, inspeciona 0 mundo e acolhe o sentido original do edificio. Por meio dele, a hist6ria da arquitetura deixa de ser um fdolo exterior, ou um arquivo de formas, para ser um Aambito de interrogagdes e espantos, um centro de reflexSes que jamais se esclarece conclusivamente, mas que insiste em invocar a verdade da arquitetura — da qual parecemos nos afastar definitivamente. Enfim, s6 esse olhar critico e vigilante pode impedir que as informacoées histéricas se esgotem no passado. E ele o responsdvel pelo desejo incessante de conferir As reflexdes deste livro um sentido de abertura para a conside- racao da arquitetura presente e futura. 29 Tais propésitos justificam 4 bibliografia adotada. Trés autores foram fundamentais. Primeiramente, Daniel Payot e seu livro Le Philosophe et L Architecte, pelo reconhecimento da arché filos6fica dos periodos mais importantes da historia da arquitetura, inspiracao deste trabalho. A seguir, Christian Norberg-Schulz, autor da andlise estrutural mais interessante, a nosso ver, dos periodos da histéria da arquitetura ocidental. Em seu Meaning in Western Architecture, Principalmente, encontramos tanto uma boa andlise das obras quanto uma ancoragem, ainda que rapidamente feita, no mundo que lhes deu origem. Contudo, talvez pela amplidao temporal a que O autor se propde abarcar, nao saboreamos a substancia profunda dos periodos investigados e a maneira pelas quais eles se inter-relacionam. Compreendendo o estudo da for- ma¢cao do homem moderno neste periodo que vai do Gotico ao Barroco, acreditamos precisar melhor tais relagées. Tam- bém a leitura hist6rica da arquitetura feita por Giulio Carlo Argan tornou-se importante caminho de acesso As origens da arquitetura no periodo estudado e, embora bem mais restrito do que o mundo revelado por Norberg-Schulz, o seu cotejamento entre os PropOsitos dos varios estilos e dos varios arquitetos é precioso, principalmente o desenvolvido em El Concepto del Espacio Arquitetonico desde el Barroco a Nuestros Dias. Reconhecido o territ6rio basico da investigacao arquitetOnica, cumpre destacar os autores que nos guiaram na investigacao cientifica e filos6fica da passagem do homem e do universo gético ao homem e ao universo moderno. Entre esses, Ernst Cassirer Undividuo y¥ Cosmos en la Filosofia del Renacimiento), Edwin Burtt (Los Fundamentos Metafisicos de la Ciencia Moderna) e Robert Lenoble (Origines de la Pensée Scientifique Moderne) forneceram-nos os pontos fundamentais da mudanca ocorrida. Delimitada, assim, a geografia a ser per- corrida, partimos para a consulta aos estudos mais interessantes relativos a arte e A arquitetura de cada época, e para os textos mais representativos das concep¢ses do homem em cada uma delas. Do primeiro estudo, destacamos Worringer, Panofsky, Wittkower, Pappaioannou, Venturi, Hauser, Maritain, Giedion e Zevi, além dos ja citados Argan e Norberg-Schulz. Do segundo destacamos, dentre outras utilizadas, as obras de Dante, Shakespeare, Cervantes, Nicolau de Cusa, Bruno, Bacon, Galileu, Maquiavel, Montaigne, Pascal, Leibniz, 30 4 Newton, Hume e, principalmente, Descartes. Uma de nossas grandes perguntas no comeco deste trabalho era em que ponto as duas principais manifestagdes do homem seiscentista, aparentemente tao opostas, 0 racionalismo cartesiano e a arquitetura barroca, se entrelacavam. Para resolvé-la, alguns comentadores de Descartes, como Gueroult, Laport, Lefréve e Lebrun foram-nos de grande ajuda. A esses e aos demais — impossivel serem todos comentados aqui — espero que nosso estudo faga justiga, assim como a preciosidade dos seus textos. Bem sabemos quao dificil seria acrescentar-lhes algo novo ou pretender substituf-los. Contudo, dar-nos-emos por satisfeitos se, reunindo-os, sensibilizarmos fildsofos, arquitetos, estudantes, historiadores, criticos, professores de arte e outros interessados em uma dimensio existencial da arquitetura enquanto signo do homem, merecendo interesse e reflexao muito mais ricos e profundos do que aqueles que, até agora, tém-lhe sido dedicados. Nao se trata apenas de estudar o seu passado, mas recuperar o seu sentido, recuperda-la enquanto arqui-tetura, salvando-a, enfim. E o que significa salva-la? Deixa-la voltar ao seu proprio ser de habitacdo, de estadia dos mortais na terra, de lugar no qual reside a nossa. condi¢ao humana. Tratemo-la com cuidado, portanto. 31 0 GOTICO De Deus, a cobra humana é neta, é descendente. Se volveres a lembranga ao Génese, entenderas que o homem retira da natureza o seu sustento e a sua felicidade. Dante Alighieri A Divina Comédia, Inferno, XT. DO PANTHEON ROMANO A CATEDRAL GOTICA Desde a arte classica, como exposto por Vitrivio em De Architectura Libri Decem (século I a.C.), até o inicio da modernidade, a arquitetura afirma estabelecer uma relacdao de reciprocidade com o universo..O edificio se assemelhaao cosmos, € a sua construgao a criacdo_do_universo. Dessa forma, um envia ao outro e, através da arquitetura, micro e macrocosmos se comunicam. O universo serve como.modelo original para o edificio e este, reciprocamente, apresenta-nos _O universo: O templo representa o mundo; mas o mundo, inversamente, é construido como um templo. Aqui, o reenvio € reciproco [...] e o edificio como arqui-tetura, isto é, ordem simétrica, reenvia ao mundo como modelo, isto é, harmonia, proporcionalidade universal. ! ~~ Esse periodo da histéria da arquitetura, como afirma Payot, € dominado pela idéia de uma mimesis arquitetural, em que © edificio adquire sua exceléncia, sua arché, ao enviar-nos a ee 'PAYOT. Le philosophe et l’architecte; sur quelques déterminations philoso- phiques de l’'idée d’architecture, p.68. (grifos nossos) wo origem, ao mundo, ao Criador, ao modelo césmico, a natureza: “alguma coisa de divino — que confere a arquitetura superio- ridade —- comanda, ent&io, varias tentativas para produzir a verdadeira arquitetura: imitar o edificio construido segundo as prescrigdes de Deus”? O Pantheon (Roma, 118-128) € um belo exemplo disso ao impressionar o espectador pelo cardter césmico do firmamento que sua ciipula representa. O espaco circular, centralizado no eixo vertical, definido sob a grande abertura no zénite da cipula, domina o Pantheon. Nele, a sagrada dimensao da vertical se introduz na organi- zacio interna do espago, unifica a ordem cO6smica e a ordem humana e faz com que o homem “se experimente como um deus inspirado, explorador e conquistador, como um produtor de historia de acordo com o plano divino”.’ Este homem é quase divino, confiantemente estabelecido no seu poder, na sua autoridade e no império que domina e explora. Tal centralidade reflete, portanto, além do universo, a confian¢< que o homem.deposita em si mesmo e€ que O leva a figurar um pseudocosmos, em suas construgoes, no centro do qual ele se imagina situado. Com significado semelhante, vere- mos esse esquema espacial centralizado repetir-se nas plantas renascentistas. Contudo, junto com a decadéncia do império romano, dilui-se essa divinizagao do homem e, como conseqtiéncia, os edificios medievais deixam de criar o pseudocosmos antropocéntrico do Pantheon. Neles, uma. atmosfera diafana_. e mistica penetra no espaco e desperta no espectador um sen-_ timento de sobrenaturalidade e transcendéncia. A mesma idéia de mimesis permanece presidindo os edificios. Porém, nao sao mais os céus que chegam 4 terra, mas o homem que deve elevar-se a Deus e 2 graca divina} E a igreia €¢ o edificio encarregado dessa ascensao, que nos poe em contato com verdades mais elevadas do que as encontradas no plano ter- reno. E dentro da igreja que o Deus cristao — que nao pode 2 PAYOT. Le philosophe et 'architecte; sur quelques déterminations philosophiques de Vidée d’architecture, p.74. 3 NORBERG-SCHULZ. Genius loci; towards a phenomenology of architecture, p.34,52. Sobre o Pantheon, conferir, nesta mesma obra, p.50-57; ZEVI. Saber ver la arquitectura, p.61; NORBERG-SCHULZ. Intenciones en arquitectura, p.80. 34 ser compreendido. como abstracao de fenédmenos naturais . Z“ . , hist6ricos ou humanos, mas so pela fé — se revela. E ela a . portadora da mensagem religiosa, a Unica que providencia seguranga existencial e espiritual para o homem do medievo: € preciso atingirmos o amor de Cristo para compreendermos o significado da vida. i Figura 1 - PIRANESI, Giovanni Battista. Pantheon. Interior (Gravura do século XVID Espacialmente, essa comunhdo deve ocorrer no altar, onde reside o centro de ascensio. Mas, para atingi-lo, deveremos percorrer todo o caminho longitudinal da nave, simbolo do caminho da salvacdo que devemos trilhar em nossas vidas. Depois de comungar com Cristo, o homem retorna ao mundo e contribui para transforma-lo numa verdadeira civitas det. A basilica crista primitiva é a responsdvel por introduzir essa longitudinalidade crist& que substitui a centralidade romana. Santa Sabina (Roma, 422-432) é um 6timo exemplo disto. A articulacdo horizontal é nitidamente dominante e o movimento 35 em profundidade é ritmado pelas arcadas da nave, pela cobertura e pela sucessao dos vitrais superiores. A wrajerona do observador € 0 tema interior da construcao, definindo O dida que nele se caminha:/O Pantheon era estatico espaco a me a-/O Panthes o. Santa Sabina, ao contrario, € dinamica, tensionada e centralizad: t . tar e a nave, banhada por uma luz lao uniforme que, entre o al 10 U atravessando as aberturas como se fosse a propria mensagem divina, ilumina a parte de cima do edificio e reserva uma maior ? escuridao para as naves laterais inferiores. Ao penetrar, a luz trabalha a superficie, desmaterializando-a, o que resulta num. espaco mais espiritualizado.“C Figura 2 - Santa Sabina. Planta t Tanto o movimento horizontal como essa spina sao mais evidentes em San Apolinar Nuevo (Ravena, 493-52¢ )», onde o ritmo faz-se mais acelerado pelo excesso de referencias horizontais e a anulagao das verticais ¢€ onde se utiliza uma cromaticidade bem maior no revestimento interior. | Mesmo nas plantas centrais do Bizantino, as linhas verticais sio ofuscadas e o espaco se dilata até fluir velozmen alcancar as perspectivas mais tensas. A famosa Santa ve ia (Constantinopla, terminada em 537) €um bom exemp oO ‘ isso, com suas arcadas internas a tensionar € longitudinalizar a planta centrada. Como no Pantheon, sua cipula coroa a igreja e mimetiza o universo. —_— 4 Sobre a Basilica de Santa Sabina, ver NORBERG-SCHULZ. Meaning in western architecture, p.66, ZEVL. Saber ver la arquitectura, p.62-69. 36 Em Santa Sofia, porém, a luz é didfana‘e a atmosfera mistica inunda o edificio, desmaterializa o cardter tect6nico dos muros € transporta o fiel para um mundo onde nao valem as leis do reino fisico e profano, mas as do sobrenatural e transcen- dente Reino de Deus,-Nao ha aquele eixo vertical e centrali- zador do Pantheon, definido pela abertura zenital. Em Santa Sofia, as janelas cruzam, sob a cupula, fachos de luz que representam a luz divina emanada da abdbada celestial, difun- dindo-se sobre o mundo dos homens. Esse efeito é reforgado pelos pilares e paredes que perdem sua aparéncia de suporte e sao desmaterializados pelo revestimento de mdrmore e mosaicos. Um poeta da corte de Justiniano I (483-565), que mandara construir a igreja, expressa o sentimento evocado por Santa Sofia: Quando o primeiro raio de luz, com seus bracos rosados, expulsou as trevas saltando de arco em arco, todos os principes e o publico cantaram cinticos de prece e louvor; lhes parecia que os poderosos arcos tivessem sido edificados no céu. E acima de tudo se eleva pelo ar incomensuravel o grande elmo que, curvando-se como os céus radiantes, abraca a igreja. [...] A torrente dourada de raios resplandecentes cai como chuva e golpeia os olhos dos homens de modo que mal se consegue olhar. [...] Assim, através dos espacos da grande igreja irrom- pem raios de luz que expulsam as nuvens de preocupacio, preenchendo o espirito com esperanga, e mostrando o cami- nho para o Deus vivo. [...] Quem quer que ponha o pé dentro deste lugar sagrado gostaria de nele permanecer para sempre, e seus olhos se encheriam de lagrimas de jubilo.6+™ Na igreja, portanto, o fiel sente-se transportado para um mundo transcendental, onde se pde em contato com a luz de Deus, quase a cegar-lhe. Para isso, ser4é importante a apre- _sentacgao do caminho da salvacdo, ao fim do qual faz-se a comunhao, favorecendo a interpretagdo longitudinal das basilicas cristas primitivas, modelo que sera adotado de prefer€ncia aos esquemas mais centralizados da arquitetura * Versos de Paul, the Silentiary, citado por NORBERG-SCHULZ. Meaning in wesiern architecture, p.69, 70. Sobre Santa Sofia, conferir, ainda nesta mesma obra, p.66-70. Sobre as arquiteturas cristi primitiva e bizantina, conferir NORBERG-SCHULZ. Meaning in western architecture, p.58-74; ZEVI. Saber ver la arquitectura, p.62-69. 37 bizantina. Desta, permanecera o tratamento interior das super- ficies e 0 carater transcendente e espiritual de seu espaco. Observe-se que, tanto no Paleocristéo como no Bizantino, o edificio se volta para dentro de si préprio. Seja pela tensio entre a porta e o altar, seja pela tensao entre 0 alto e o baixo, em ambos os estilos o mundo divino e o mundo humano se colocam a distancia, quase como rompidos e inacessiveis. A partir da arquitetura romanica uma nova relagio comega a se estabelecer: a igreja se abre para seu entorno e torna visivel a mensagem religiosa desenvolvida no seu interior. Com isso, ela torna-se forga ambiental ativa que invade o mundano e representa a tentativa de fazer a mensagem divina penetrar neste mundo e interagir com ele. Também a métrica romanica e o ritmo longitudinal dos seus edificios procuram uma comunicagao maior com o movimento do homem, inclusive, exteriormente. A Catedral de Pisa (1063-1118) e a Catedral de Santiago da Compostela (1075-1125) exemplificam essa maior comunicabilidade do edificio. Ail tits Figura 3 - Campo Santo. Pisa 38 Junto com a longitudinalidade, as torres sineiras encarregam-se de verticalizar a construcao. Norberg-Schulz percebe af um duplo propésito de transcendéncia e protecao. Transcendéncia, entendida como o desejo de se alcangar as verdades e graca divinas, e protecdo, simbolizando o papel de seguranga exis- tencial que a Igreja desempenhava para o homem medieval. Ao verem esses elementos verticais, todos os homens sob ela abrigados percebiam a protetora existéncia de Deus. ¥ Durante os séculos X e XI, igrejas e monastérios converteram-se no centro espacial, politico e econdmico europeu, ao incor- porarem as verdades divinas que deviam reger o mundo humano. Essas verdades eram espirituais e deviam ser repre- sentadas na matéria construtiva dos edificiosyAssim a arquite- tura romanica aproxima-se do G6tico ao representar a immaterialia na materialia construtiva, com mais desenvol- tura que o Bizantino. Para isso, foi de grande importancia no romanico o desenvolvimento de uma linguagem tecténica mais baseada na ossatura estrutural do que nas massas, como se vé no interior de Santiago da Compostela ou na Abadia de Cluny (1157), onde os vazios dominam os cheios. Contudo, na aparéncia geral do edificio romanico, ainda eram por demais evidentes o peso das pedras, a natureza dos elementos construtivos e as leis fisicas, como a da gravidade.® Chega-se, entao, 4 arquitetura gdtica, concretizagao de todo o anseio espiritual medieval, e a representagao mais bem ela- borada das concep¢des que o homem do perfodo desenvol- vera a respeito de Deus, do mundo e de si mesmo. Também nela, a arquitetura tera um escopo religioso e servira como guid para a transcendéncia do plano inferior ao plano superior. Seu ideal de beleza é o “esplendor do verbo encarnado”, inseparavel do bem e da verdade.’ Mais do que qualquer periodo anterior, sera o século XHI imponente pela amplitude e pela harmonia, o século c/dssico da Idade Média. E a arqui- tetura gdtica, construtivamenté 4 mais desenvolvida e ousada que a bizantina ou romfnica, regera a sinfonia das artes e cada arte em particular (pintura, escultura etc.), adequando a ° Sobre a arquitetura romanica e seus significados, conferir NORBERG-SCHULZ. Meaning in western architecture, p.75-91; ZEVI. Saber ver la arquitectura, p.72-75; CONTI. Como reconocer el arte romdnico, p.6-39. ” Conferir NUNES. Revista Barroco, p.24. 39 forma a idéia, a tecnica A expressao.® A arquitetura romanica, trabalhando com abdbadas de pedra, caracteriza-se pelo aspecto pesado, em que a ess€ncia. material constitui a base_ tanto da construgao como da expressdo estética: “o estilo romanico é _um estilo de massas”, afirma Worringer. Procu- Tando “espiritualizar a matéria e dela extraindo as energias vitais ativas”, as nervuras e ogivas do estilo gotico expressaram, : i . 1 8 mt . A +49 9 de maneira mais intensa, o “afa’ medieval de transcendéncia”. O processo de desmaterializagao da arquitetura conclui o esforco abstrato de toda arte medieval, ao erigir, a partir do final do século XII, uma “construc4o toda nervo, sem carne supérflua, sem massa inutil e que correspondia as necessidades. da-alma gotica”.!” Como diz Worringer, “a catedral gotica € a representa¢gao mais enérgica e ampla da sensibilidade medieval”. Nela, a mistica e a escolastica, as duas poténcias vitais da Idade Média, e que costumam aparecer em inconciliavel oposigao, permanecem inti- mamente unidas e profundamente compenetradas. Se_o espago interior é todo mistica, o exterior do edificio é todo. escolastica. Une-os o mesmo afa de transcendéncia, o qual se serve de distintos meios expressivos, ora da sensa¢ao organica, ora do mecanismo abstrato. A mistica do espaco interior € uma escolastica vertida para o intimo, desviada no sentido da sensacdo organicay’ Dir-se-ia que o inconcebivel movimento ritmico do espaco se petri- ficou do lado externo. As forcas ascensionais, que no interior nao chegaram 4 quietude, parecem precipitar-se para fora, a fim de, livres de toda estreiteza e limitacZo, irem perder-se no infinite, Em renovados alentos, abragam-se ao ntcleo do espago interior para supera-lo e, acima dele, disparar em diregao ao infinito." Esse perfeito recobrimento entre a arquitetura gdtica e o espirito do século XIII, referenciado na escolastica, exemplifica a unidade da concep¢ao filos6fico-religiosa do mundo medieval. ® COHEN, SCHNEIDER. La formation du génie moderne, p.2. Ver, nessa mes- ma obra, a Introduction générale, p.1-12. 9 “Esta forma é, para dizé-lo assim, um breve esquema linear do afA medieval de transcendéncia e, portanto, do afa gético de expressao. WORRINGER. La esencia del estilo gotico, p.116. 10 WORRINGER. La esencia del estilo gético, p.119. Conferir, nesta mesma obra, p.83-96, p.115-124. " WORRINGER. La esencia del estilo gotico, p.125-128. MEME P ot 40 —F ARQUITETURA E SIGNIFICADO: O ESPACO GOTICO A catedral gética recolhe as potencialidades espaciais dos periodos precedentes do medievo e as desenvolve plena e organicamente no seu espaco. Dizemos ser ela a classica expressio da Idade Média porque nela se reunem a longitu- dinalidade do Cristao Primitivo, a espiritualidade, misticidade e transcendéncia bizantinas e o estruturalismo, verticalidade e comunicabilidade urbana despontados no Romanico. Além disso, como veremos, a catedral g6tica realiza a idéia de uma perfeita proporcionalidade entre o nivel inferior (mundo sublu- nar) e o nivel superior da criagdo (mundo supralunar), base do periodo medieval e da arché de suas construgdes. Em sua pedagogia, ela torna visiveis as palavras da Sagrada Escritura e serve como modelo educativo para o homem conquistar um habito mental escolastico, ajudando-o a visualizar as verdades mais elevadas, bem como afirma e transmite o papel central da igreja durante a Idade Média, fonte de todas as verdades e vértice regulador de toda a piramide hierarquica da sociedade e valores do periodo. Vimos que, apesar de sua aparéncia robusta, a igreja roma- nica desempenha um papel urbano mais significativo e conver- te-se em centro das pequenas cidades que se desenvolvem a partir do século XI. No século XIII, essas cidades, tendo como base o comeércio, j4 se desenvolveram o suficiente para conquis- tar relevante autonomia, atividade e estrutura. Dentro de seus muros, uma vida comunal ultrapassa os limites dos mosteiros e€ passa a compreender uma unidade social mais ampla. A organizacao urbana ideal da época colocava a catedral no centro. Dela irradiavam-se dois eixos perpendiculares (Norte- Sul e Leste-Oeste), lembrando a cruz, que dividiam a cidade em quatro quadrantes. Ordenando-a desta forma, acreditava-se que a cidade repetia a mesma ordenacgao césmica concebida pela imaginagaéo medieval, cujo universo era estruturado em quatro pontos cardeais e concebia Roma e Jerusalém, simbolo e berco da cristandade, como seu duplo centro. A fun¢do primor- dial da catedral é, portanto, estruturar e organizar o espaco, tornando visivel o papel central da igreja como instituicao que deve governar a sociedade. Mais do que no Romi§nico, 41

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