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CAPITULO 1 Sujeitos do sexo/género/desejo Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Simone de Beauvoir Estritamente falando, nao se pode dizer que existam “mulberes”. Julia Kristeva Mulher nao tem sexo. Luce Irigaray A manifestacao da sexualidade |...] estabeleceu esta nogdo de sexo. Michel Foucault A categoria do sexo é a categoria politica que funda ‘a sociedade heterosexual. Monique Wittig “Mulheres” como sujeito do feminismo Em sua esséncia,.a°teoria.feminista tem presumido que existe uma identidade.definida, compreendida pela categoria de mulheres, que nao s6 deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu proprio discurso, mas constitui © sujeito mesmo em nome de quem a representagao politica 7 PROBLEMAS DE GENERO é almejada. Mas politica e representacdo sao termos po- lémicos. Por um lado, a representagdo serve como termo operacional no seio de um processo politico que busca estender visibilidade e legitimidade as mulheres como su- jeitos politicos; por outro lado, a representagao éa fungio normativa de uma linguagem que revelaria ou distorceria 0 que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres, Paraa teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de representa-las completa ou adequadamente pareceu necessério, a fim de promover a visibilidade politica das mu- lheres, Isso parecia obviamente importante, considerando a condigao cultural difusa na qual a vida das mulheres era mal representada ou simplesmente nao representada. Recentemente, essa concep¢ao dominante da relacao entre teoria feminista e politica passou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. O proprio sujeito das mulheres nao é mais compreendido em termos estaveis ou permanen- tes. E significativa a quantidade de material ensaistico que nao $6 questiona a viabilidade do “sujeito” como candidato Ultimo a representagao, ou mesmo 4 libertagdo, como indica que é muito pequena, afinal, a concordancia quanto ao que constitui, ou deveria constituit, a categoria das mulheres. Os dominios da “representatao” politica e linguistica estabele- ceram a priori octitério segundo o qual os proprios sujeitos sao formados, com.o'tesiiltado, dé arépresentagao 6 se es- tender ao que pode ser reconhecido.como sujeito. Em outras palavras, as qualificagdes. do set sujeito tém que ser atendidas Para que a representacao possa ser expandida. Foucault observa ite os sistemas juridicos de poder Produzem os sujeitos que subsequentemente passam a repre- sentar.' As nogGes juridicas de poder parecem regular a vida Politica em termos puramente negativos — isto é, por meio 18 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO da limitacao, proibicao, regulamentacao, controle e mesmo “protecdo” dos individuos relacionados aquela estrutura politica, mediante uma acio contingent ¢ retratavel de escolha, Porém, em virtude de a elas estarem condiciona- dos, os sujeitos regulados por tais estruturas sao formados, definidos ¢ reproduzidos de acordo com as exigéncias delas. Se esta andlise é correta, a formagiio juridica da linguagem e da politica que representa as mulheres como “o sujeito” do feminismo € em si mesma uma formagao discursiva e efeito de uma dada versio da politica representacional. Assim, © sujeito feminista se revela discursivamente constituido, e pelo préprio sistema politico que supostamente deveria facilitar sua emancipagao, o que se tornaria politicamente problematico, se fosse possivel demonstrar que esse siste- ma produz sujeitos com tragos de género determinados em conformidade com um eixo diferencial de dominagao, ou os produz presumivelmente masculinos. Em tais casos, um apelo acritico a esse sistema em nome da emancipagao das “mulheres” estaria inelutavelmente fadado ao fracasso. “Q sujeito” é uma questao crucial para a politica, e particularmente para a politica feminista, pois 0s sujeitos juridicos sao invariavelmente produzidos por via de prati- cas de exclusfo que nao““aparecem”, uma vez estabelecida a estrutura juridica da politica. Em, outras palavras, a construgao politica do sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimacao ede exclusao,.e-essas operagdes politicas sao efetivamente ocultas e naturalizadas por uma andlise politica. que toma‘as.estruturas juridicas como seu fundamento. © podér juridico “produz” inevitavelmente © que alega meramente representar; consequentemente, a politica tem de se preocupar com essa fungdo dual do poder: juridica e produtiva. Com efeito, a lei produz e 19 PROBLEMAS DE GENERO depois oculta a nogdo de “sujeito perante a lei”,? de modo a invocar essa formagio discursiva como premissa basica natural que legitima, subsequentemente, a propria hegemo- nia reguladora da lei. Nao basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem ena politica. A critica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, 0 sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais se busca a emancipa¢ao. Certamente, a questao das mulheres como sujeito do feminismo suscita a possibilidade de nao haver um sujeito que se situe “perante” a lei, 4 espera de representagao na lei ou pela lei. Talvez 0 sujeito, bem como a evocagao de um “antes” temporal, sejam constitu idos pela lei como funda- mento ficticio de sua propria reivindicagao de legitimidade. A hipotese prevalecente da integridade ontoldgica do sujeito {gio contemporaneo perante a lei pode ser vista como 0 vestigt da hipétese do estado natural, essa fabula fundante que é constitutiva das estruturas juridicas do liberalismo classico. A invocagao performativa de um “antes” nao histérico tor- na-se a premissa basica a garantir uma ontologia pré-social de pessoas que consentemlivremente em ser governadas, constituindo assim a legitimidade do contrato social. Contudo, alémdas fiegSes “fundacion istas” que susten- tam a nogio de sujeito, ha o problema politico que o femi- nismo encontra na suposigao"de-queo termo mulheres denote uma identidade comum. Ao invés de um significante estavel a comandar o:Consentimento daquelas a quem pretende descréver € representar, mulheres — mesmo no plural — tornou-se um termo problematico, um ponto de contestag4o, uma causa de ansiedade. Como sugere 0 titulo de Denise Riley, Am I That Name? [Sou eu este nome?], 20 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO trata-se de uma pergunta gerada pela possibilidade mesma dos miltiplos significados do nome.? Se alguém “é” uma mulher, isso certamente ndo é tudo o que esse alguém é; o termo nao logra ser exaustivo, nao porque os tragos predefinidos de género da “pessoa” transcendam a para- ferndlia especifica de seu género, mas porque o género nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos histéricos, ¢ porque o género es- tabelece intersegdes com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituidas. Resulta que se tornou impossivel separar a nogio de “género” das interseg6es politicas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida. A presuncio politica de ter de haver uma base universal para o feminismo, a ser encontrada numa identidade su- postamente existente em diferentes culturas, acompanha frequentemente a ideia de que a opressio das mulheres pos- sui uma forma singular, discernivel na estrutura universal ou hegeménica da dominagio patriarcal ou masculina. A nogio de um patriarcado universal tem sido amplamente criticada em anos recentes, por seu fracasso em explicar os mecanismos da opressao de'género-nos contextos cul- turais concretos em que ela existe: Exatamente onde esses varios contextos foram consultados por essas teorias, eles o foram para encontrar “exemplos” ou “ilustragdes” de um principiocuniversal pressuposto desde o ponto de partida. Esta forma de teorizacdo feminista foi criticada por seus esforcos-de. colonizar'e se apropriar de culturas nao ocidentais, inst®umentalizando-as para confirmar nogdes marcadamente ocidentais de opressao, e também por tender a construir um “Terceiro Mundo” ou mesmo um “Oriente” em que a opressdo de género é sutilmente 21 PROBLEMAS DE GENERO explicada como sintomatica de um barbarismo intrinseco e nao ocidental. A urgéncia do feminismo no sentido de conferir um status universal ao patriarcado, com vistas a fortalecer aparéncia de representatividade das reivindica- g6es do feminismo, motivou ocasionalmente um atalho na diregao de uma universalidade categorica ou ficticia da estrutura de dominagao, tida como responsavel pela pro- dugdo da experiéncia comum de subjugagao das mulheres. Embora afirmar a existéncia de um patriarcado univer- sal nao tenha mais a credibilidade ostentada no passado, a nogao de uma concepgao genericamente ompartilhada das “mulheres”, corolario dessa perspectiva, tem se mostrado muito mais dificil de superar. E verdade, houve muitos deba~ tes: existiriam tragos comuns entre as “mulheres”, preexis- tentes A sua opressao, ou estariam as “mulheres” ligadas em virtude somente de sua opressio? Hé uma especificidade das culturas das mulheres, independente de sua subordinagao pelas culturas masculinistas hegeménicas? Caracterizam-se sempre a especificidade ea integridade das praticas culturais ou linguisticas das mulheres por oposigado €, portanto, nos termos de alguma outra formagao cultural dominante? “especificamente feminino”, diferen- 1 em sua dife- Existe uma regiao do ciada do masculino como tal e,reconhecivel a univetsalidadé indistinta econsequentemente renga por um »2°A nogao. bindria de masculino/ presumida das “mulheres ferminino constirui nao s6 a.estrutiira exclusiva em que essa especificidade pode ser teconhecida, mas de todo modo a “especificidade” do. feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada; analitica e politicamente separada da constituigdo de classe, raga, etnia ¢ outros eixos de relagdes de poder, os quais tanto constituem a “identidade” como tornam equivoca a nogao singular de identidade.* 22 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO E minha sugestdo que as supostas universalidade e uni- dade do sujeito do feminismo sao de fato minadas pelas restric6es do discurso representacional em que funcionam. Com efeito, a insisténcia prematura num sujeito estavel do feminismo, compreendido como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente, miltiplas recusas a acei- tar essa categoria. Esses dominios de exclusio revelam as consequéncias coercitivas e reguladoras dessa construgao, mesmo quando a construgio é elaborada com propositos emancipatorios, Nao ha divida, a fragmentagao no interior do feminismo e a oposigao paradoxal ao feminismo — por parte de “mulheres” que o feminismo afirma representar — sugerem os limites necessarios da politica da identidade. A sugestio de que o feminismo pode buscar representagao mais ampla para um sujeito que ele proprio constrdi gera a consequéncia irénica de que os objetivos feministas correm o risco de fracassar, justamente em fungao de sua recusa a levar em conta os poderes constitutivos de suas proprias reivindicaces representacionais. Fazer apelos a categoria das mulheres, em nome de propésitos meramente “estratégicos”, no resolve nada, pois as estratégias sempre tém significados que extrapolam os propésitos a que'se destinam. Nesse caso, a propria exclusio pode restringir como tal um significado inintencional, mas que tem consequéncias, Por sua confor- macao as exigéncias da.politica representational de que o feminismo articule um sujeito estavel,o feminismo abre assim aguarda a acusag6es de dettirpayao Cabal da representagao. Obviamente, a tatefa’polftica’nao € recusar a politica representacional “como Se pudéssemos fazé-lo. As es- truturas juridicas da linguagem e da politica constituem 0 campo contemporaneo do poder; consequentemente, nado hd posi¢do fora desse campo, mas somente uma genealogia 23 PROBLEMAS DE GENERO critica de suas préprias praticas de legitimagao. Assim, 4 artida critico é o presente histdrico, como dex a tarefa é justamente formular, no interior a, uma critica as categorias de ontemporaneay ponto de p finiu Marx. E dessa estrutura constituid identidade que as estruturas juridicas ci engendram, naturalizam e imobilizam. Talvez exista, na presente conjuntura politico-cultural, periodo que alguns chamariam de “pés-feminista”, uma oportunidade de refletir a partir de uma perspectiva feminis. ta sobre a exigéncia de se construir um sujeito do feminismo, ar radicalmente as construgdes na pratica politica feminista, de modo a formular uma politica representacional capaz de renovar o feminismo em outros termos. Por outro lado, é tempo de empreender uma critica radical, que busque libertar a teoria feminista da necessidade de construir uma base tinica e permanente, invariavel mente contestada pelas posigées de identidade ou anti-identidade que o feminismo invariavelmente exclui. Sera que as praticas excludentes que baseiam a teoria feminista numa nogao das “mulheres” como sujeito solapam, paradoxalmente, 0s objetivos femi- nistas de ampliar suas reivindicagdes de “representagao”? Pode ser que o problema seja ainda mais sério. Seria a construgao da categoria das miulheres€omo sujeito coerente e estavel uma regula¢ao ¢ reificagao inconsciente das relagbes de género? Eonao Seria essa reifica¢ao: precisamente o con- trario dos objetivos feministas? Em que medida a categoria das mulheres sOalcanga estabilidade e coeréncia no contexto da matriz heterosééxual2° Se a nocdo estavel de género da mostras de nao mais servir como premissa basica da politica feminista, talvez um novo tipo de politica feminista seja ago- ra desejavel para contestar as proprias reificagdes do género Parece necessdrio repens ontolégicas de identidade 24 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO e da identidade — isto é, uma politica feminista que tome a construgao variavel da identidade como um pré-requisito metodol6gico e normativo, senao como um objetivo politico, Determinar as operagées politicas que produzem e ocul- tam o que se qualifica como sujeito juridico do feminismo € precisamente a tarefa da gemealogia feminista da categoria das mulheres. No decurso desse esforgo de questionar a nocao de “mulheres” como sujeito do feminismo, a invo- cago nao problematizada dessa categoria pode impedir a possibilidade do feminismo como politica representacional. Qual o sentido de estender a representagao a sujeitos cuja constituigdo se da mediante a exclusio daqueles que nao se conformam 4s exigéncias normativas nao explicitadas do sujcito? Que relagdes de dominagio e exelusio se afirmam nao intencionalmente quando a representagao se torna o Unico foco da politica? A identidade do sujeito feminista nao deve ser 0 fundamento da politica feminista, pois a for- macao do sujeito ocorre no interior de um campo de poder sistematicamente encoberto pela afirmagao desse fundamen- to. Talvez, paradoxalmente, a ideia de “representagao” sé venha realmente a fazer sentido para o feminismo quando o sujeito “mulheres” nao for presumido em parte alguma. A ordem compulséria do sexo/género/desejo Embora a unidade nao problematizada da nogao de “mu- lheres” seja frequentemente.invocada para construir uma solidariedade da idéntidade, uma divisdo se introduz no sujeito feminista por meio da distingdo entre sexo e género. Concebida originalmente para questionar a formulagao de que a biologia é 0 destino, a distingao entre sexo e género 25 PROBLEMAS DE GENERO atende a tese de que, por mais que 0 sexo parega intratavel em termos bioldgicos, o género é culturalmente construj- do: consequentemente, nado é nem o resultado causal do sexo nem tampouco tao aparentemente fixo quanto o sexo. Assim, a unidade do sujeito j4 é potencialmente contestada pela distingao que abre espago ao género como interpretagdo miultipla do sexo.” Se o género sao 0s significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, nao se pode dizer que ele decorra de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite légico, a distingdo sexo/género sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e géneros culturalmente construi- dos. Supondo por um momento a estabilidade do sexo bindrio, nao decorre dai que a construgio de “homens” se aplique exclusivamente a Corpos masculinos, ou que 0 termo “mulheres” interprete somente corpos femininos. Além disso, mesmo que os sexos paregam nao problema- ticamente bindrios em sua morfologia € constituig¢do (ao que sera questionado), nao hd razio para supor que 0s géneros também devam permanecer em nuimero de dois.* m sistema bindrio dos géneros encerra im- A hipotese de ui io, mimética entre género plicitamente a crenga numa rélac¢ € sexo, na qual o génefo refleteo sexo ou é por ele restrito. Quando o status construfdo-do género é teorizado como radicalmente independente do.sexo;0-préprio género se torna um artificio'fluruante,.comea consequéncia de que homem e masculino. podem, com, igual facilidade, significar tanto um corpo’feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino. Essa cisdo radical do sujeito tomado em seu género levan- a outro conjunto de problemas. Podemos referir-nos aum ‘dado” sexo ou um “dado” género, sem primeiro investigar 26 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO como sao dados 0 sexo e/ou 0 género e por que meios? E o que é, afinal, o “sexo”? ele natural, anatémico, cromossé- mico ou hormonal, e como deve a critica feminista avaliar os discursos cientificos que alegam estabelecer tais “fatos” para nds?’ Teria o sexo uma histéria?" Possuiria cada sexo uma hist6ria ou historias diferentes? Haveria uma hist6ria de como se estabeleceu a dualidade do sexo, uma genealogia capaz de expor as opgdes bindrias como uma construcgao varidvel? Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos discursivamente por varios discursos cientificos a servico de outros interesses politicos e sociais? Se o cardter imutavel do sexo é contestavel, talvez o préprio construto chamado “sexo” seja tio culturalmente construido quanto © género; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o género, de tal forma que a distingao entre sexo e género revela-se absolutamente nula."! Se o sexo é, ele proprio, uma categoria tomada em seu género, nao faz sentido definir 0 género como a interpre- tagdo cultural do sexo. O género nao deve ser meramente concebido como a inscri¢ao cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepgao juridica); tem de Essa conceépgao do “sexo” como radicalmente nao construido sera novamente objeto de nosso interesse na discussao sobre Lévi-Strauss € 0 estruturalismo, no capitulo 2. Na conjuntura atual, jé esta claro que colocara 27 PROBLEMAS DE GENERO Assim, como deve a nogao de genero ser reformulada, para abranger as relagdes de poder que produzem o efeito de um sexo pré-discursivo e ocultam, desse modo, a propria operagao da produgao discursiva? prop! Género: as ruinas circulares do debate contemporaneo conforme se e diz que a género?” Havera “um” género que as pessoas posseim, diz, ou € 0 género um atributo essencial do que s pessoa é, como implica a pergunta “Qual é 0 seu Quando tedricas feministas afirmam que © género € uma interpretagao cultural do sexo, ou que 0 género é construido culturalmente, qual é 0 modo ou mecanismo dessa constru- Gio? Se o género é construido, poderia sé-lo diferentemente, ou sua caracteristica de construcao implica alguma forma de determinismo social que excluia possibilidade de agéncia ou transformacdo? Porventilra a nogao de “construgdo” sugere que certas leis geram diferen¢as de género em conformidade com eixos universais ‘dadiferenca sexual? Como e onde ocorre a constracaé ‘do género? Que juizo podemos fazer de uma construgao qué nao podepresumir um construtor humano anterior ‘a ela mesma? 28 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO “cultura” relevante que “constrdi” 0 género é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressao de que o género é tao determinado e tao fixo quanto na formulagio de que a biologia é 0 destino, Nesse caso, nao a biologia, mas a cultura se torna o destino. Por outro lado, Simone de Beauvoir sugere, em O segun- do sexo, que “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.” Para Beauvoir, 0 género é “construido”, mas ha um agente implicado em sua formulagao, um cogito que de algum modo assume ou se apropria desse género, podendo, em principio, assumir algum outro. E o género tao variavel e volitivo quanto parece sugerir a explicagao de Beauvoir? Pode, nesse caso, a nocdo de “construgao” reduzir-se a uma forma de escolha? Beauvoir diz claramente que alguém “se torna” mulher, mas sempre sob uma compulsio cultural a fazé-lo. E tal compulsao claramente nao vem do “sexo”. Nao ha nada em sua explicagao que garanta que o “ser” que se torna mulher seja necessariamente fémea. Se, como afir- ma ela, “o corpo é uma situagdo”, nao ha como recorrer a um corpo que ja nao tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais; consequentemente, 0 sexo no poderia qualificar-se como uma facticidade anatémica pré-discursiva. Sem duvida,.sera sempre apresentado, por definicao, como tendosido género desde o.comego.'* A controvérsia sobre o’significado:de construgao pa- rece basear-se na polaridade filoséfica convencional entre livre-arbitrio:e’determinisino. Em consequéncia, seria razoavel suspeitar que algumas testrigées linguisticas comuns ao pensamento'tanto formam como limitam os termos do debate. Nos limites desses termos, “o corpo” aparece como um meio passivo sobre o qual se inscrevem significados culturais, ou entéo como o instrumento pelo 29 PROBLEMAS DE GENERO qual uma vontade de apropriagao ou interpretagao deter- mina o significado cultural por si mesma. Em ambos os casos, 0 corpo é representado como um mero instrumento ou meio com o qual um conjunto de significados culturais Mas o “corpo” €em si mesmo uma construgao, assim como o é a miriade de “corpos” que constitui o dominio dos sujeitos com marcas de género. Nao se pode dizer que os corpos tenham uma existéncia significavel anterior a marca do seu género; € emerge entao a questao: em que medida pode 0 corpo vir a existir na(s) marca(s) do genero © por meio delas? Como conceber novamente 0 Corpo, ndo mais como um meio ou instrumento passivo 4 espera da capacidade vivificadora de uma vontade caracteristicamente imaterial?¥ Se o género ou 0 sexo sao fixos ou livres, é fungdo de um discurso que, como se ira sugerir, busca estabelecer certos limites a andlise ou salvaguardar certos dogmas do humanismo como um pressuposto de qualquer andli- se do género. O locus de intratabilidade, tanto na nogéo de “sexo” como na de “género”, bem como no proprio significado da nogao des‘construgao”, fornece indicagdes sobre as possibilidades culrurais que podem e nao podem ser mobilizadas por meio de quaisquer andlises posteriores. Os limites da andlise discursiva do. género pressupdem € definem por antecipagao as possibilidades das configura- gdes imaginaveis-€ realizaveis'\do.género na cultura. Isso nao quer dizer que toda equalquer possibilidade de género seja facultada, mas que as fronteiras analiticas sugerem os limites de uma‘experiéncia discursivamente condicionada. Tais limites se estabelecem sempre nos termos de um dis- curso cultural hegeménico, baseado em estruturas bindrias que se apresentam como a linguagem da racionalidade é apenas externamente relacionado. 30 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO universal, Assim, a coergao € introduzida naquilo que a linguagem constitui como o dominio imaginavel do género. Embora os cientistas sociais se refiram ao género como um “facor” ou “dimensao” da andlise, ele também é aplicado a pessoas reais como uma “marca” de diferenga biolégica, linguistica e/ou cultural. Nestes ultimos casos, /6)généro pode ser compreendido como um significado assumido por um corpo (ja) diferenciado sexualmente; contudo, mesmo assim esse significado s6 existe em relagao a outro signi- ficado oposto. Algumas tedricas feministas afirmam ser 0 género “uma relacgio”, alids um conjunto de relagGes, nio um atributo individual. Outras, na senda de Beauvoir, argumentam que somente o género feminino é marcado, que a pessoa universal e o género masculino se fundem em um 86 género, definindo com isso as mulheres nos termos do sexo deles e enaltecendo os homens como portadores de uma pessoalidade universal que transcende 0 corpo. Num movimento que complica ainda mais a discussao, Luce Irigaray argumenta que as mulheres constituem um paradoxo, se ndo uma contradigao, no seio do proprio discurso da identidade. As mulheres sao 0 “sexo” que nao é “uno”. Numa linguagem difusamente masculinista, uma linguagem falocéntrica; as mulheres constituem 0 trzepre- sentdvel. Em outras palavras, as mulheres representam o sexo que nao pode ser pensado, uma auséncia e opacidade linguisticas. Numa linguagem que repousa na significagdo univoca, 0 sexo feminino Constitui aquilo que nao se pode restringir nem designar. Nesse sentido, as mulheres sdo © sexo que nao é “uno”, mas miltiplo.’* Em oposic¢ao a Beauvoir, para quem as mulheres sio designadas como o Outro, Irigaray argumenta que tanto © sujeito como o 31 PROBLEMAS DE GENERO Outro sao os esteios de uma economia significante falocén- trica e fechada, que atinge seu objetivo totalizante por via da completa exclusio do feminino. Para Beauvoir, as mu- [heres sao 0 negativo dos homens, a falta em confronto com lentidade masculina se diferencia; para Irigaray, a qual aid ar constitui um sistema que exclui essa dialética particul uma economia significante inteiramente diferente. Nao s6 Iheres sao falsamente representadas na perspectiva do Outro-significado, agao as mu sartriana do sujeito-significador ¢ como a falsidade da significagao salienta a inadequ de toda a estrutura da representacao. Assim, 0 sexo nao é uno propicia um ponto de partida para a critica das monicas ¢ da metaffsica da que representagdes ocidentais hege substancia que estrutura a propria nocdo de sujeito, O que éa metafisica da substancia, e como ela informa as de sexo? Em primei- sujeito tendem a adora de varios © pensamento sobre as categori ro lugar, as concep¢des humanistas do presumir uma pessoa substantiva, port atributos essenciais ¢ nao essenciais. A posigao feminista humanista compreenderia 0 género como um atributo da pessoa, caracterizada essencialmente como uma substancia ou um “niicleo” de géneropreestabelecido, denominado pessoa, que denota uma capacidade universal de razao, moral, deliberagao moral-ou linguagem, Como ponto de partida de‘uma teria’ social do género, entretanto, a concep¢io universal'da pessoa € deslocada pelas posigdes hist6ricas ou antropolégicas qué compreendem o género como uma relagdo entte sujeitos socialmente constituidos, em contextos especificaveis. Este ponto de vista relacional ou contextual sugere que 0 que a pessoa “é” —earigor,o que 0 género “é” — refere-se sempre as relagdes construidas em que ela é determinada.'? Como fenémeno inconstante e 32 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO Irigaray afirmaria, no entanto, que 0 “sexo” feminino € um ponto de awséncia linguistica, a impossibilidade de uma substancia gramaticalmente denotada e, consequentemente, 0 ponto de vista que expde essa substancia como uma ilusao permanente e fundante de um discurso masculinista. Essa auséncia nao é marcada como tal na economia significante masculinista — afirma¢ao que se contrap6e ao argumento de Beauvoir (e de Wittig) de que o sexo feminino é marcado, ao passo que o masculino nao o é. Para Irigaray, 0 sexo feminino nao é uma “falta” ou um “Outro” que define o sujeito negativa e imanentemente em sua masculinidade. Ao contrario, o sexo feminino se furta as proprias exigéncias da representagao, pois ela nao é nemo “Outro” nema “falta”, categorias que permanecem relativas no sujeito sartriano, imanentes a esse esquema falocéntrico. Assim, para Irigaray, o feminino jamais poderia ser a marca de um sujetto, como sugeriria Beauvoir. Além disso, o feminino nao poderia ser teorizado em termos de uma relacdo determinada entre o masculino e o feminino em qualquer discurso dado, pois a nocio de discurso nao é relevanite aqui. Mesmo tomados em sua variedade, os discuirsos constituem modalidades da linguagem falocéntrica.[O'Sexo feminitio €, portanto, Paradoxalmente, Beauvoir prefigurou essa impossibilidade em O segundo sexo, ao argumentar que os homens nao podiam resolver a questéo das mulheres porque, nesse caso, estariam agindo como juizes e como partes interessadas." 33 PROBLEMAS DE GENERO As distingdes existentes entre as posigdes acima mencio- nadas esto longe de ser nitidas, podendo cada uma delas ser compreendida como a problematizagao da localizagao e do significado do “sujeito” € do “género” no contexto de uma assimetria de género socialmente instituida. As possibilidades interpretativas do conceito de género nao se exaurem absolutamente nas alternativas acima sugeridas. A circularidade problematica da investigagao feminista sobre 0 géncro é sublinhada pela presenga, por um lado, de posigoes que pressupdem ser o género uma caracteristica secundaria das pessoas, e por outro, de posigdes que argumentam ser a propria nogao de pessoa, posicionada na linguagem como “sujeito”, uma construgao masculinista e uma prerrogativa que exclui efetivamente a possibilidade semdntica e estrutu- ral de um género feminino. Essas discordancias tao agudas sobre o significado do género (se genero é de fato 0 termoa ser discutido, ou se a construgao discursiva do sexo € mais fundamental, ou talvez a nogdo de mulberes ou mulher el ou de homens ou homem) estabelecem a necessidade de re- pensar radicalmente as categorias da identidade no contexto das relages de uma assimetria radical do género. Para Beauvoir, 0 “sujeito”, na analitica existencial da misoginia, é sempre ja masculino, fundido com 0 universal, diferenciando-se de um “Outro” feminino que esta fora das normas universalizantes:que constituem.a condi¢ao de pes- soa, inexoravelmente “particular”, corporificado e condenado aimanénciaeEmbora se yeja frequentemente em Beauvoir uma defensora do direito de‘as. mulheres se tornarem de fato sujeitos existenciais e, portanto, de serem incluidas nos termos de uma universalidade abstrata, sua posi também implica uma critica fundamental a propria descor- porificacao do sujeito epistemologico masculino abstrato.!” Esse sujeito é abstrato na medida em que repudia sua cor- 34 SUJEITOS DO SEXO/GENEROJ/DESEJO porificagéo socialmente marcada e em que, além disso, projeta essa corporificagdo renegada e desacreditada na esfera feminina, renomeando efetivamente 0 corpo como feminino. Essa associagio do corpo com o feminino fun- ciona por relagées magicas de reciprocidade, mediante as quais 0 sexo feminino se torna restrito a seu corpo, € 0 corpo masculino, plenamente renegado, torna-se, para- doxalmente, 0 instrumento incorp6reo de uma liberdade ostensivamente radical. A andlise de Beauvoir levanta implicitamente a questo: mediante que ato de negagdo e renegagao posa 0 masculino como uma universalidade descorporificada ¢ é 0 feminino construido como uma cor- poralidade renegada? A dialética do senhor e do escravo, aqui plenamente reformulada nos termos nao reciprocos da assimetria do género, prefigura o que Irigaray descre- veria mais tarde como a economia significante masculina, a qual inclui tanto 0 sujeito existencial como 0 seu Outro. Beauvoir propde que 0 corpo feminino deve ser a situa- ¢do eo instrumento da liberdade da mulher, e nao uma es- séncia definidora c limitadora.”’ A teoria da corporificagao que impregna a andlise de Beauvoir é€ claramente limitada pela reprodugao acritica da distingao cartesiana entre liberdade e corpo. Apesar de.nieus proprios esforcos ante- riores de argumentar o.contrario; fica claro que Beauvoir mantém o dualismo mente/corpo, mesmo quando propoe uma sintese desses termos.?? A preservagao dessa distingao pode ser lida como sintomatica do proprio falocentrismo que Beauvoir subestima! Na'tradigao filos6fica que se ini- cia em Plato e continiia.em Descartes, Husserl e Sartre, a distingdo ontoldgréa entre corpo e alma (consciéncia, mente) sustenta, invariavelmente, relagdes de subordinagao e hierarquia politicas e psiquicas. A mente nao s6 subjuga © corpo, mas nutre ocasionalmente a fantasia de fugir 35 PROBLEMAS DE GENERO A construgao discursiva “do corpo” e sua separagao do estado de “liberdade”, em Beauvoir, nao consegue marcar no eixo do género a prépria distingao corpo/mente que deveria esclarecer a persisténcia da assimetria dos géneros. Oficialmente, Beauvoir assevera que 0 Corpo feminino é marcado no interior do discurso masculinista, pelo qual 0 corpo masculino, em sua fusio com o universal, permane- ce nao marcado. Irigaray sugere claramente que tanto 0 marcador como 0 marcado sao mantidos no interior de um modo masculinista de significagao, no qual 0 corpo femi- nino é como que “separado” do dominio do significavel. Em termos p6s-hegelianos, ela seria “anulada”, mas nao tura de Irigaray, a afirmagao de Beauvoir inverte-se para significar que ela é ainda — preservada. Na lei de que mulher “é sexo” ndo € 0 sexo que é designada a serymas, antes, encore (e en corps}*— © sexo masculino, apresentado a maneira da alteridade, Pata Irigaray, esse modo falocéntrico de significar 0 sexo femining réproduz perpetuamente as fantasias deseu proprio desejo autoengrandecedor. Ao invés de um gesto,lingufstico autolimitativo que garanta a alteridade ou'a diferenga'das mulheres, o falocentrismo oferece um nome-paraéclipsar o feminino ¢ tomar seu lugar. Ressalta-se o jogo de palavras, citadas em francés no original, entre encore (ainda) e en corps (no corpo), homéfonas em francés. (N. R. T.) 36 Ct SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO Teorizando o bindrio, 0 unttario e além Beauvoir e Irigaray diferem claramente sobre as estruturas fundamentais que reproduzem a assimetria do género; Beauvoir volta-se para a reciprocidade malograda de uma dialética assimétrica, ao passo que Irigaray sugere ser a propria dialética a elaboragdo monolégica de uma economia significante masculinista. Embora Irigaray amplie claramente © espectro da critica feminista pela exposigio das estruturas ldgicas, ontologicas e epistemolégicas de uma economia significante masculinista, o poder de sua anilise é minado precisamente por seu alcance globalizante. Sera possivel iden- tificar a economia masculinista monolitica e também mono- l6gica que atravessa toda a colegao de contextos culturais e hist6ricos em que ocorre a diferenga sexual? Sera o fracasso em reconhecer as operagoes culturais especificas da propria opressao do género uma espécie de imperialismo epistemo- légico, imperialismo esse que nao se atenua pela elaboragao pura e simples das diferengas culturais como “exemplos” do mesmissimo falocentrismo? O esforgo de incluir “Outras” culturas como ampliagGes diversificadas de um falocentrismo global constitui um ato de apropriagao que corre o risco de repetir o gesto autoengrandecédor do falocentrismo, coloni- zando sob o signo do mesmo diferengas que, de outro modo, poderiam questionar esse coneeito totalizante.”? Acritica feminista tem de explorar as afirmagoes totali- zantes da economia significante masculinista, mas também deve permanecer autocriticaem relagdo aos gestos totali- zantes do feminismo,,O'esforgo de identificar o inimigo como singular em Sua forma é um discurso invertido que mimetiza acriticamente a estratégia do opressor, em vez de oferecer um conjunto diferente de termos. O fato dea tatica af PROBLEMAS DE GENERO poder funcionar igualmente em contextos feministas ¢ an- tifeministas sugere que 0 gesto colonizador nao € primatia ou irredutivelmente masculinista. Ele pode operar para le- var a cabo outras relagdes de subordinagao heterossexista, racial e de classe, para citar apenas algumas. Claro que arrolar as variedades de opressdo, como comecei a fazer, supde sua coexisténcia descontinua e sequencial ao longe de um eixo horizontal que nao descreve suas convergéncias ocial. Um modelo vertical seria igualmente as opressOes nao podem ser sumariamente e distribuidas no campo S$ insuficiente; classificadas, relacionadas causalmente, entre planos pretensamente correspondentes ao que é “original” e ao que é “derivado”.* Certamente, 0 campo de poder em parte estruturado pelo gesto imperializante de alética excede e abrange 0 eixo da diferenga sexual, oferecendo um mapa de intersegdes diferenciais que ndo podem ser sumariamente hierarquizadas, nem nos termos do falocentrismo, nem nos de qualquer outro candidato a posigao de “condigao primdria da opressao”. Em vez de tatica exclusiva das economias significantes mas- culinistas, a apropriagao € a supressdo dialéticas do Outro centralmente empregada, € ansao e da apropriagao di: sdo uma tatica entre muitas; fato, mas ndo exclusivamente a Servigo da exp racionalizagaéo do dominio masculinista. Os debates feministas contemporaneos sobre cialismo colocam dé’outra:maneira’a questao da univer- salidade da identidade feminina ¢.da opressao masculina. As alegagGes univérsalistas s0 baseadas em um ponto de Ihado, compre- o essen- vista epistemolégico comum ou comparti endido como consciéncia articulada, ou como estruturas compartilhadas de opresséo, ou como estruturas osten- sivamente transculturais da feminilidade, maternidade, 38 i SUJEITOS DO SFXO/GENERO/DESEJO sexualidade e/ou da écriture feminine. A discusso que abre este capitulo argumenta que esse gesto globalizante gerou certo mimero de criticas da parte das mulheres que afirmam ser a categoria das “mulheres” normativa e ex- cludente, invocada enquanto as dimens6es nao marcadas do privilégio de classe e de raga permanecem intactas. Em outras palavras, a insisténcia sobre a coeréncia e unidade da categoria das mulheres rejeitou efetivamente a multipli- cidade das intersecées culturais, sociais e politicas em que é construido o espectro concreto das “mulheres”. Alguns esforgos foram realizados para formular politicas de coaliz4o que nao pressuponham qual seria o contetido da nocao de “mulheres”. Eles propdem, em vez disso, um con- junto de encontros dialdgicos mediante o qual mulheres dife- rentemente posicionadas articulem identidades separadas na estrutura de uma coalizdo emergente. E claro, nao devemos subestimar o valor de uma politica de coalizdo; porém, a forma mesma da coalizdo, de uma montagem emergente e imprevisivel de posigGes, nao pode ser antecipada. Apesar do impulso claramente democratizante que motiva a constru- cao de coaliz6es, a teorica aliancista pode inadvertidamente reinserir-se como soberana do processo, ao buscar antecipar uma forma ideal para as estruturas da Coalizao, vale dizer, aquela que garanta efetivamente a unidade.do resultado. Esforgos correlatos para determinar qual. é qual nao é a verdadeira forma do didlogo, aquilo que constitui a posic¢ao do sujeito — e,°6 mais importante, quando a “unidade” foi ou nao alcangada-—, podem. impedir a dinamica de autoformagao e autolimitagao da coalizao. Insistir @ priori no objetivo de “unidade” da coalizéo sup6e que a solidariedade, qualquer que seja seu prego, é um pré-requisito da ac¢ao politica. Mas que espécie de politica 39 PROBLEMAS DE GENERO exige esse tipo de busca prévia da unidade? Talvez as coa. lizdes devam reconhecer suas contradig6es ¢ agir deixandy essas contradig6es intactas. Talvez o entendimento dialdgicg também encerre em parte a aceitacao de divergéncias, rupty. ras, dissensdes e fragmentagdes, como parcela do processy frequentemente tortuoso de democratizagio. A prépria no. «didlogo” éculturalmente especifica ¢ historicamente 5 esteja certa de que pode estar certa de uestionar as relacdes cao de delimitada, e mesmo que uma das parte a conversacao esta ocorrendo, a outra que nao. Em primeiro lugar, devemos q de poder que condicionam e limitam as possibilidades dia. légicas. De outro modo, o modelo dialdgico corre 0 risCo 1pOe que os diversos de degenerar num liberalismo que pr‘ agentes do discurso ocupam iguais posigdes de poder e falan apoiados nas mesmas pressuposicoes sobre o que constitu; “acordo” e “unidade”, que seriam certamente 0s objetivos a serem perseguidos. Seria errado supor de antemao a exis- téncia de uma categoria de “mulheres” que apenas neces~ sitasse ser preenchida com os varios componentes de raga, classe, idade, etnia ¢ sexualidade para tornar-se completa, A hipotese de sua incompletude essencial permite a catego- ria servir permanentemente.como espago disponivel para os significados,contestados. A incompletude por definigao dessa categoria poder, assim, virea servir como um ideal normativo, livre dé qualquer forga coercitiva. ‘A “unidade” énecessaria para a agdo politica efetiva? Nao sera, precisamente, 2 insisténcia prematura no obje- tivo de unidade a causa da fragmentagao cada vez maior e mais acirrada das fileiras? Certas formas aceitas de fragmentagao podem facilitar a acdo, ¢ isso exatamente porque a “unidade” da categoria das mulheres nao é nem pressuposta nem desejada. Nao implica a “unidade” uma 40 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO norma excludente de solidariedade no ambito da identida- de, excluindo a possibilidade de um conjunto de agées que rompam as proprias fronteiras dos conccitos de identidade, ou que busquem precisamente efetuar essa ruptura como um objetivo politico explicito? Sem a pressuposigao ou 0 objetivo da “unidade”, sempre instituido no nivel concei- tual, unidades provisérias podem emergir no contexto de ages concretas que tenham outras propostas que nado a articulagao da identidade. Sem a expectativa compulséria de que as agdes feministas devam instituir-se a partir de um acordo estavel e unitario sobre a identidade, essas agées bem poderao desencadear-se mais rapidamente € parecer mais adequadas ao grande nimero de “mulheres” para as quais 0 significado da categoria est4 em permanente debate. Essa abordagem antifundacionista da politica de coali- zOcs ndo supde que a “identidade” seja uma premissa, nem que a forma ou significado da assembleia coalizada possa ser conhecida antes de realizar-se na pratica. Considerando que a articulagao de uma identidade nos termos culturais disponiveis instaura uma definigdo que exclui previamente © surgimento de novos conceitos de identidade nas agdes politicamente engajadas e por meio delas, a tatica funda- cionista nao é capaz de tomar como.ebjetivo normativo a transformacao ou expansdo dos conceitgs de identidade existentes. Além-disso, quando as identidades ou as estru- turas dialégicas consensuais, pelas quaisas identidades ja estabelecidas si6 comunicadas, nao Constituem 0 tema ou o objeto da politica, isso signifia que as identidades podem ganhar vida e se dissolyer, dependendo das praticas concre- tas que as constituam,Certas prdaticas politicas instituem identidades em bases contingentes, de modo a atingir os objetivos em vista. A politica de coalizées nao exige uma a

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