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Este conto foi um dos vencedores selecionados para compor a coletanea "Antologia Romantica", organizada por Margareth Brusarosco na Vivendo de Inventar (de André Vianco) e publicada em 2019 pela Editora Lura. Estrela Transcendente Orion jurou a si mesmo que era a ultima vez que atravessava a porta daquela livraria. Folheou um grande volume de astronomia, e deslizou os dedos pelas gravuras como quem se despede. Suspirou. Os olhos, atentos a visdo periférica, moveram-se para 0 vendedor de ombros largos que ria com uma garota na ala de livros infantis. “Tao lindo...”, pensou Orion, afastando os cabelos dourados dos olhos. Desviou rapido quando teve a impressdao de ter sido descoberto pelo rapaz. Mordeu o labio e balangou a cabega, soltando o ar dos pulmGes. la devolver o livro a estante e se mandar dali, mas uma funcionaria se aproximou. — Com licenga — comecou ela. — Notei que é a terceira vez que vem essa semana... Parece que gostou bastante do livro. Ela sorria. Nao fora acusativa, mas Orion cravou os dentes como se ela |he apontasse um punhal. — Nao, eu... — hesitou. Sem querer, voltou a espiar o rapaz que agora demonstrava a certa pressa em acompanhar a menina junto a mae até o caixa. — Nao posso estudar isso. — Haa... Se fala do prego, posso tentar um desconto, ja que esta tao interessado. — Nao estou! — contestou Orion mais alto do que pretendia. — Quero dizer... Sejamos realistas. Isso vai além de minhas possibilidades. E s6 um monte de besteira. Parecendo contrafeita, ela anuiu e se afastou enquanto Orion se ajoelhava para devolver o volume na prateleira mais baixa da estante. “Um monte de besteira...”, ecoou ele na mente, ainda agachado e segurando a lombada espessa. Com a mao livre, retirou do bolso um impresso amassado e observou. Era 0 anuncio de uma palestra que teria aquela noite no observatorio da cidade vizinha. Orion apertou o papel entre os dedos e fechou os olhos. Segundos depois, ouviu passos se aproximando. Quando pegou ar para insistir 4a moca que nao estava interessado no desconto levou um susto. Nao era ela, e sim aquele rapaz. Deu um passo em falso e tropecou no cadarco, esbarrando na estante. — Cuidado! — alertou o vendedor, se aprumando para ficar acima de Orion e impedir que os livros caissem sobre o loiro. Em compensa¢ao, suas costas sentiram o peso das lombadas rigidas lhe acertando. Orion, ainda estatelado no chao, olhou para cima. O rapaz que tanto admirou secretamente durante toda a semana agora lhe sorria com os bracos estendidos para estabilizar a estante no lugar. Conseguiu ler “Isaac” no cartao de identificagao. — Por pouco essa chuva astronémica nao cai na sua cabega — riu Isaac, agachando para ficar na mesma altura do garoto caido. Sentia as dores das pancadas, mas os olhos cor de musgo que lhe fitavam o distrairam. Estendeu a mao. — Se machucou? Nao obteve uma resposta. Orion abaixou a cabega, escondendo o rubor atras dos cabelos, e se levantou. Correu para longe dali, loja afora. No corredor, junto a bagunga de livros, ficou um Isaac confuso. Ele relaxou a m4ao que estivera estendida para o nada ao ver que o garoto havia deixado cair um papel. Quando o pegou, seus olhos brilharam. “Palestra no observat6rio? Entao é aqui que vocé estara essa noite?” Mordeu a ponta do polegar num sorriso contido, guardando o panfleto. Minutos depois, ja longe, Orion estalou a lingua ao entrar em casa. Nao era de seu feitio fugir daquela forma, mas ter aquele rapaz olhando-o tao de perto causou em seu interior um rebuligo. Como pdde ser tao descuidado? Agora sim, sabia que nunca mais colocaria os pés na livraria. Depositou as chaves em uma mesinha enquanto tateava os bolsos em busca de algo, mas 0 panfleto havia sumido. Do corredor, sua mae se aproximou vendo que o filho franzia o cenho e bufava. — Que houve? Ele respirou fundo, passou os dedos pelos cabelos e apoiou as maos na mesinha. — Acho que vocé tinha razao, sobre a conversa de ontem — admitiu Orion, fitando o cadargo desamarrado. — Parece que as coisas estao conspirando contra mim. Melhor eu nao ir a palestra... Sua mae cruzou os bracos e elevou as sobrancelhas. — O que eu falei foi para seu bem, Orion. Essa fixagdo por astronomia é desafiar Deus! Seu pai foi além dos limites com essas coisas de ciéncias. Quis ser diferente, e o que aconteceu? Deus castigou jogando-o ladeira abaixo! — Mae, aquilo foi um acidente... Enquanto ela resmungava sobre a “providéncia divina” com lagrimas nos olhos, Orion se fechou em seu quarto. Recostou-se na porta e olhou para o teto, piscando algumas vezes para espantar seus fantasmas. O choque de quando recebera a noticia da morte do pai, poucos meses antes, ainda o afetava. O astr6nomo caiu no deslizamento de um barranco enquanto fazia observagdes com um telescopio. “Se for verdade que Deus odeia pessoas que transgridam suas leis, entao... eu...” Seus olhos verde-musgo passearam pelo péster que continha uma foto em alta resolugao de uma nebulosa. Sobrepondo a bela imagem, alguns rabiscos a caneta reproduziam a Constelagdo de Orion. A explosao de luzes e cores da imagem trouxe a sua mem6oria 0 belo rosto sorridente do vendedor de livros. A respiragao de Orion acelerou, e ele subiu na cama num pulo, alcangando o cartaz. — Merda! — gritou, puxando uma das pontas e rasgando a imagem ao meio. Encostou a testa na parede e fechou seu punho contra ela. — Isaac... Por que me olhou daquele jeito? Tsc! Eu merego um castigo duplo... “Deus nao tem espaco no mundo para um aspirante a astr6nomo que curte caras”, pensou, se jogando na cama. O baque fez mover sua prateleira, e de la caiu um pequeno globo de vidro que estilhagou, esparramando toda a falsa neve que preenchia o enfeite. — E mais essa agora... Do chao, pegou o pequeno E.T. que escapou do globo. Encarou-o por alguns segundos e entao uniu as sobrancelhas, fechando-o entre os dedos. “Um ultimo sinal”. Assim que a noite caiu, Orion saiu pela porta da frente. Ao ser questionado pela mae, disse que iria “destruir um globo de vidro”. Ela achou que o filho estivesse ficando louco. Quando ele chegou ao observatorio a palestra ja tinha comegado, mas Orion no se dirigiu para la. Deu a volta na grande construgao do morro gramado e foi até o mirante da montanha. La chegando, puxou todo o ar para seus pulmées e gritou. Foi um urro que saiu de sua alma e ecoou pela reserva florestal que se estendia por quildmetros mais abaixo. — Quer me punir? — berrou, abrindo os bracos. — Anda! Estou aqui! A resposta foi o siléncio das milhares de estrelas que, naquele ponto da cidade, eram mais brilhantes e numerosas. No observatorio, Isaac abandonou sua cadeira, desanimado. Nao prestou atencao a palestra pois procurava entre os espectadores um jovem loiro que nao estava ali. Temendo nao mais vé-lo, pegou sua mochila e saiu. Porém, chegando ao estacionamento, ouviu algo. Um berro de furia, trazido pelo vento. Franziu o cenho e deu meia-volta. Aproximando-se do mirante, seu coragdo deu um pulo. La estava, pendurado ao parapeito, o garoto que procurava. — Hey! — gritava Orion, para o céu. — Se esta ai, me mande a droga de um sinal! Isaac riu silenciosamente, e se aproximou. — Esperando um bip divino? Ouvir aquela voz fez Orion congelar. Ele virou para o lado, e nao conseguiu acreditar em seus olhos. Piscou algumas vezes, mas Isaac permanecia diante dele. Nao era miragem. — Como sabia que... — Vocé deixou isso cair, hoje cedo — explicou Isaac, mostrando o papel amarrotado e se recostando ao parapeito. — Como se chama? — Deixéi... c- cair? — balbuciou. — Ha, eu... Sou Orion. E meu nome. Igual a constelagao... — Hum, diferente — observou o mais velho, ficando mais perto. — Mas combina com vocé, ja que é um nome bonito... Sou Isaac. Pensei que fosse te encontrar la dentro, mas olha sd! O que estava fazendo? A atengao do garoto tinha enroscado na parte do elogio ao nome. Aquilo fora uma indireta? Sentiu o rosto aquecer. E pela segunda vez, no mesmo dia, o sorriso de Isaac despertou as borboletas em seu est6mago. — Vocé... ouviu tudo? - perguntou, olhando para o barranco. “Deus, me mate logo”. — Ouvi a parte em que pede um sinal — explicou o outro. — E entao... encontrou? Recebeu seu sinal? — N-nao sei - gaguejou Orion, voltando os olhos para o rapaz a sua frente. — E se eu ajudar? Dizendo isso, lsaac tirou da mochila algo pesado. Passou para as maos do loiro, que arregalou os olhos quando reconheceu o volume de astronomia avangada que estava cobicando ha semanas. Orion acariciou a capa dura e respirou fundo. Estendeu o objeto de volta. — Nao posso aceitar... Isso esta além de mim. — Quero que fique com isso. Sei que estava namorando esse livro ha um tempo. — Sabe? lsaac moveu sua mao, tocando a de Orion. — E... Te vi varias vezes por l4. Mas sempre que eu ficava livre e te procurava, vocé ja tinha sumido. Hoje tive sorte — revelou ele, balangando o panfleto. — Esse foi o meu sinal. Ja tem um tempo que té a fim de conhecer o garoto que tanto busca livros que transcendem nossos olhares banais. Foi inevitavel para Orion dar um sorriso acanhado. — Mas... Sera que a gente tem mesmo 0 direito de estender nossos olhares assim? Acho que tenho que reconhecer meu lugar. — Sabe 0 que eu acho? — perguntou Isaac, levando dois de seus dedos ao queixo do outro. — Que tem beleza demais nesse universo para nao ser apreciada. Acho que temos que estourar nossas bolhas pra nao afogarmos no marasmo... Antes que Orion pudesse replicar, sentiu a respiragao de Isaac proxima. O livreiro viu as estrelas refletirem nos olhos verde-musgo, e entao o beijou. O sabor da boca de Isaac tomou a razao do garoto. Sentiu os labios macios e a lingua molhada... Tao quente. Seu coragao acelerou. Orion se afastou minimamente, apoiando as maos no peito do vendedor de livros. — Isaac... — sussurrou, mantendo o toque dos labios. — O que a gente faz... Sabe, depois de estourar a bolha? — A gente respira aliviado — respondeu Isaac, entrelagando os dedos de ambos. — E a gente finalmente entende que a barreira estava 0 tempo todo em nossas cabegas. Um cometa riscou o manto escuro enquanto Orion se entregava mais uma vez aos bracos daquele que viria a ser sua primeira estrela descoberta. Uma estrela que o ensinaria que transcender as linhas riscadas a giz é superar limites imaginarios, levando sua consciéncia ao passo seguinte: a aceitagao de que qualquer buraco negro no peito pode conter um sol que brilha tanto a ponto de superar qualquer escuridao. coe--Y--cce

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