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NAO NASCER: ALGUNS TRAGOS DA IMAGEM ARQUETIPICA DO ABORTO Roberto Gambini* RESUMO Neste artigo 0 aborto é encarado no como fendmeno fisico, mas como a intet- rupeao de um processo de germinagdo de contetidos psiquicos ainda no integrados 4 consciéncia, Esse processo & expresso por imagens arquetipicas, dentre as quais so aqui examinadas a abertura precoce do ovo, do forno e do vaso alquimico (ou a inadequacio deste). A amplificagao dessas imagens ¢ cortelacionada pelo autor a momentos criticos da experiéncia psico- terapéutica, Unitermos Arquétipo. Imagem arquetipica. Aborto psicol6gico. Ovo, forno, vaso. Psicote- pia, 0 fendmeno do aborto se manifesta co. mo problema a partir de pontos de vista bastante variados. O exame de cada um desses aspectos — biol6gico, psicol6gico, obstétrico, ético, religioso, legal, demogré- fico, sociolégico, historico, antropolégico ete — € indispensivel para que se possa encarar a questo em toda a sua comple- xidade © assumir uma posicao fundamen- tada frente a inesgotével controvérsia que acompanha 0 assunto. Em todas essas abordagens, o aborto é encarado como um dado concreto ¢ exte- rior. Pergunto-me porém se ele no deveria também ser apreendido a partir de uma perspectiva diversa, ou seja, enquanto rea- Iidade psiquica. A pergunta que coloco, sem qualquer intenedo ética ou de outra ordem, ¢ apenas: como se configura a ima gem do aborto em nossa psique? Devemos a C.G. Junga redescoberta dos arquétipos e sua formulagio em termos as- similéveis pela mente contemporanea, Re- descoberta, porque ele proprio demonstra que essa mesma idéia jé se encontrava nos filésofos platOnicos © seus seguidores no decorrer dos séculos. A importancia dessa ccontribuicao de Jung é muito maior do que pode parecer & primeira vista e seus desdo- bramentos estdo a se fazer sentir com intensidade crescente nos mais variados campos do conhecimento. A nogio de ar- quétipo é uma das pedras angulares da psi- cologia junguiana': Mas em termos prt cos e simples, o que vem a ser um arquéti- por Um arquétipo ¢ uma imagem primordial gravada na psique humana no decorrer dos milénios de sua evolugao, transcendendo cul- ‘ura, raga, sexo e até mesmo époce histor ca, Essa idéia é muito pouco popular numa era materialista como a nossa, pois nos acostumamos a pensar que o homem & condicionado por fatores que vio da cultura & classe social, a0 meio e a historia que no fundo sua mente (pois nem se fala em psique) € de fato, que nos descul- pe Kant, uma tabula rasa onde se inscre vem a ferro e fogo as idéias de um tempo de um sistema. Ora, a ninguém ocorrerd negar que 0 ser humano é dotado de insti. tos e que esses nfo sf0 “inscritos” por * Sociélogo e analista pelo Instituto C.G. Jung, Zurique. Membro associado da SBPA. quem quer que seja — sf0 quando muito «ducados, suprimidos ou deformados ~ mas ‘munea “criados”. Iss0 qualquer um enten- de. Jung porém abriu um campo que em feral as pessoas se recusam a vere se apres: Sam a nevar, ou seja, que o instinto tem uma correspondéncia na psique em termos Ge uma imagem, to real e tio. priméria quanto ele, 86 que invisivel ederiséria para quem persiste em negar a realidade da alma. Certos zodlogos, como por exemplo Konrad Lorenz, tém demonstrado que mes- ‘mo os animais possuem imagens inatas © que as mesmas se correlacionam a certos. padres de comportamento. Entre és, Ihumanos, ha certas reacOes instintivas, cer tos comportamentos, experiéncias e situa Ges emocionais ou existenciais to gerai universais e antigas que vem sempre acom. panhadas de imagens ou representagies psiquicas igualmente universais. A histo- Fia dos simbolos ¢ das religibes, 0s mitos, (08 contos de fada e as manifestagies do in- consciente em todas as suas formas ates- tam de modo impressionante uma unida- de que atravessa o que poderia parecer um pandeménio de imagens caéticas e que nos faz perceber até que ponto o ser humano fala uma lingua comum, Me vem & mente a velha controvérsia entre evolucionismo ¢ ifusionismo nos textos de antropologia: 4 roda no pode ter sido inventada em dois lugares diferentes, ela deve ter surgido num lugar e sido levada até outro; nao é possivel que © motivo do tesouro dificil de encon- tar tenha surgido num conto medieval ‘usso e aparecido igualmente no Tirol, um mereador de boa meméria deve ter ido contando a historia pelo caminho e “dis seminado" a idéia; as visdes de um mistico espanhol do Renascimento nao podem ter ‘ada aver com o sonho de uma pessoa de hoje, & mera especulacéo ou coincidéncia. ‘Todas essas palavras, “difusfo”, “coinci déncia ete, aplicadas nesse sentido, néo fazem mais do que fechar com sete chaves 4 portas da compreensfo de um fendme- no fundamental, ou seja, que a psique hu- mana & dotada de conteiidos coletivos ¢ 50 capaz de encontrar uma expresséo espon- ‘tinea. Assim, por exemplo, alguém que perceber uma similaridade enue, digamos, ‘um mito Bororo ¢ uma imagem do Rig Veda poderé jogar fora 0 achado, racio- cinar sobre a impossibilidade de uma “difu- so” ou simplesmente meditar um minuto se nfo estardo ali duas expressdes cultural- ‘mente tonalizadas de uma verdade que ‘nossa consciéncia talvez néo tenha ainda atingido. Esses exemplos, felizes ou nfo, slo arquétipos. A roda é uma imagem ar- quotipica central que expressa 0 todo, a divindade, © centro profundo, o circulo protetor; é um principio estruturador da psique © sob a forma de mandala assume um caréterextremamente importante como indieador de um processo de trans- formagio interior, como Jung tao. bem demonstrou em seus estudos; ligada a no- sf0 de tempo ciclico, ela aparece como a toda da Fortuna e no Oriente como toda de Samsara, 0 eterno ciclo do karma. Os gndsticos diziam que Deus é uma esfera cujo centro se encontra em toda parte e a ircunferéneia em parte alguma. ‘As amplificagdes poderiam continuar indefinidamente, tal 0 manancial de ex- [resses que essa imagem produziu. A essa imagem arquetipica corresponde, no plano instintivo, © impulso psiquico’ que leva © individuo a circular em tomo de seu cen- {40 € a aproximarse dele num processo em que a unilateralidade de seu pequeno ego consciente & gradualmente substituida por ‘uma personalidade mais ampla. Essas imagens primordiais, das quais a toda é apenas um exemplo, encontram-se ‘tum nivel da psique muito mais sedimen- tar do. que aquele onde se localizam as, idéias culturais adquiridas, aquelas “ins- rita” pelo tempo historico © que se re- ferem a consciéncia do ego. E por essa ra 20 que a psicologia de Jung, em alemio, € chamada de Tiefenpsychologie, psicolo- ia do profundo, Ou soja, as imagens arque- tipicas coletivas se encontram no nivel in consciente da psique, irompendo em certas circunstancias no plano da conscién- cia, Ee viver dei tempo, sem o © que um individuo, para sociedade, deve partilhar das os da consciéncia de seu get ele realmente nfo é um Ser Social. Mas uma coisa ndo nega a outra, Quer ele queirs, quer nfo, seu espitito é habitado por presencas que ele nunca con: vidou & mesa 2 que talvez nem saiba no- ‘mear. Elss poderdo manifestarse em sonhos, mas os sonhos, para ele, se esfu. sm inspiréeo repentina, nu- mam ato salvador inesperado. Essas “presencas™ tanto podem deixar 0 individuo em az, como ajudé-lo sem que ele se dé conta, ou tomé-lo neurotico. Se esolverem ve 8 tona de repente, inundan- do a frégi casa da consciéncia “adquiri. da”, esta seré aniguilada pela psicose © que os arquétipos so, em si, é impos- sivel saber. Podemos percebé-los através das imagens qu preender u: ficado ena: da psique € principios de vida. No insondavel mar do inconsciente coletivo, os arquétipos vi bram ¢ se movimentam, penetrando-se mu. tuamente, transformando-se, aproximan. dose ou afastando-se do limiar da cons. ‘iéncia. Certos periodos histéricas so ani. mados pela enereta de um arquétipo domi- ante, enquanto outros sfo suprimidos; en- quanto alguns declinam para niveis ainda ‘mais inacessiveis, outros se encontzam em ‘ascenso, como uma estrela que sobe no horizonte. Pars nés, € muito mais fécil hoje em dia conceber 0 homem como pro- duto do meio ~ que ecos do séeulo XIX! — (ou da estrutura social do que como produ- to de sua propria psique. Nao é por outra Faz que todos os nossos esforcos se vol- tam para fora, ne esperanga de que quan- do fora ficar bom dentro também fica, A fossa extrema unilateralidade se esquece e virar essa moeda e perguntar se talvez 0 ‘nosso mundo de fora nfo é de fato um apto espelho da realidade de nossa psique ‘que no queremos reconhecer. Ao invés de brocurar as ressonancias mituas entre mum do € psique, preferimos nos iludir que a segunda € que 6 0 espelho, mera derivagio. E se a roda tiver sido “inventada” justa mente porque existia antes na psique que ‘na pedra? O nosso problema modem é ue quando vemos uma expresso do es pirito na matéria ficamos s6 com a matéria ¢ eliminamos aquilo que tentou-se expri- mir. Um deus falou; mas para nossos ouvi dos, foi o guincho de um pneu na curva, 1. VIDA, MORTE, ABORTO Eu gostaria de considerar o aborto tam- ‘bém como imagem arquetipica. Enquanto fendmeno fisico, ele € um processo biolo- ico: um ovo se desprende da parede de ‘um Gtero receptor; um embriao para de se desenvolver, se atrofia & expulso pelo ‘organismo; um processo germinativo se in fetrompe, murcha e morre, Ou entéo, um acidente, um trauma, uma contusio dio fim @ uma gestagdo. Ou ainda, uma mio exterior interfere fisica ou quimicamente € um fio é cortado, o que se formava é des feito, Essa experiéncia do corpo, de uma mulher que vé sua gravidez interrompida, 1d de ser to antign quanto a propria mu: Iher. © aborto é uma possibilidade funda mental da reprodugao, é seu irm#o gémeo. Com um pé na vida e outro na morte, deve ter se manifestado a0 mesmo tempo que a vida, como um ndo-nascer primor. ial. E dificil imaginar 0 que sejam 3 bi Ihes © 500 milhdes de anos, mas é essa a idade da vida sob a forma de bactérias Parece coisa de louco perguntar se as bac. ‘érias “abortavam”! Mas o que deveriamos responder? Que no principio a vida teria sido sempre uma certeza, uma multiplica. sO perfeita, absoluta ¢ infinite? Bem, vancemos para 500 milhdes de anos atris, quando aparecem os primeiros fésseis de ‘animais multicelulares do Paleazéico. A vida venceu e se diferenciou, mas sera que ‘nenhuma célula se perdeu pelo caminho? Sera que todos os milhares de ovos de um ppeixe hoje fossilizado na vitrine de um mu- seu levaram ao fim sua possibilidade de 31 vida’ Existid taiver dentro de alguma rocha subterranea 0 contomo fossilizado de um embrido de mastodonte? Nao ha por que dizer ndo ¢ talvez ndo seja preciso ser paleontélogo para respon- der a essa questdo. Qualquer crianga de sitio sabe que de dez ovos chocados um talver. gorou. Dentre os feijbes plantados, ‘muitos nasceram, mas esse murchou, aque- le soltou uma ponta ¢ depois no vingou. “Gorou”, “encruou”, “‘deu pra tris” — quem 6 que no sabe que isso faz parte da vida? Pensemos nos mamiferos de 50 milhdes de anos atrds, nos nossos primos macacos, ‘nos hominidas, na sociedade da caverna ‘com seu primeito ritual de fogo. Seria con- cebivel que até entao munca teria uma fe mea perdido o fruto de seu ventre? Que s6 1 partir de um certo ponto é que a nature- za resolveria inventar o estranho processo de estancar algo que ela propria iniciara? Essa hipétese seria to absurda como negar aque vida e morte se pertencem ¢ que an- dam de maos dadas, acompanhadas de uma figurinha menor chamada aborto, que € a morte daquilo que vive mas nfo chega a nascer, que vive e morte no limbo. Essa “figurinha” também habita nossa psique e sua sombra se evanta cada vez que lum gro comeca a germinar. Porque no estd escrito no livro do destino que tudo 0 que germina nascerd. No reino da psique no ha garantias, 56 possbilidades. O que ‘omega poderd nascer ou no, independen- te de nossa vontade — a nao ser que de fato apliquemos um abortivo, porque assim qui semos. Um grdo cai na arcia ¢ seca; outro brota sobre espinhos que o engolem; um terceiro cai na terra e cresce. O exagerado valor que consagramos a idéia de achieve. ‘ment e produtividade nos fazem encarar a vida “certa” como uma desenfreada arran- cada para 0 sucesso. Criar, produzir, fru tificar, disseminar, expandir — no fundo, uma fantasia de poder e de plenitude ma terial para compensar o tremendo vacuo spiritual de nossa era. Dessa perspectiva, ndo criar € o maior dos infortinios; abor 2 tar, no corpo ou na psique, o maior sinal de derrota. “Crescei ¢ multipticai-vos”, fora de seu contexto simbslico © religioso, ‘ransformou-se mum chavo da multiplica edo andrquica e desregulada, da super ‘produgdo inflacionéria, da superpopulario da Terra. Nao € & toa que a doenca de nos- sa 6poca 60 cAncer, a multipicacao letal Hii um tempo de nascer e um tempo de esperar. Nem tudo que reluz é ouro, e nem tudo que se inicia precisa ir até 0 fim s6 porque foi iniciado. A natureza cria des- tdi, faze desfa, inicia e interrompe e seus designios esto além de nosso alcance, Nao hd porque ser sentimental: nem todo aborto é uma tragédia. Do mesmo modo, nem tudo o que fracassa em clevar-se & per cepgdo consciente precisa ser visto como pedra inestimével. Quando natural, 0 abor- to compensa a cupidez do ego que acredita tudo poder controlar e possuir, ¢ 0 que se gostaria que nascesse ndo nasce. Nosso {itero no prende, Nosso solo nao vitaliza. Hi algo que no vai. Nao & hora. Nao é 0 caso, Nao estamos em sintonia com a fon- te elementar. Nao adianta insist. Nao So- ‘mos n6s que controlamos as portas de en- trada e saida desta vida Mas isso nao basta. As vezes algo novo deve imperiosamente nascer e somos nos ‘mesmos 0 agente abortifero. Ai o caso é ‘outro, Porque aquilo que néo nasce, quan- do 0 momento era chegado, tomase des trutivo e passa a corroer por dentro. Mas 0 que € isso, o que é esse momento crucial? No plano psiquico, que € 0 que nos in teressa aqui, um nascimento se refere sem- pre a integracdo de um contetdo incons- ciente pela consciéncia, que em conseqiién- cia se amplia. Esse conteudo tenta emergit uma, duas vezes e aborta. A consciéncia ‘do consegue abrir lugar para ele, suas ma- Ihas estio muito apertadas. Pode ocorrer que um sonho indique que i880 ocorreu, © a pessoa, se estiver em andlise, flearé desesperada, ou perguntaré — “mas 0 qe devo fazer?” e nada adianta. Nao adianta falar, argumentar, persuadir, no adianta © analisando assumir uma atitude de pseu- do-transformagdo, fabricando gestos e ideo- logias com a intengo de convencer a si mesmo € aos demais que livrou-se desse ou daquele problema. Na verdade, nada gent no nasceu, O que aconteceu foi um aborto, ou varios, € 0 que fazer? Deve o analista Sentirse fracassado e o analisando perder 3 esperanga? O processo instintivo e natu- ral deve ser respeitado e compreendido mesmo quando leva a um aborto desse tipo. O desenvolvimento da psique nfo é uma corrida de Férmula T ou uma pesca milagrosa em que todos levam um prémio. E uma pesca, sim, mas paciente, humilde, religiosa. Como diziam os velhos alquimis tas, € uma obra que dari um fruto Deo concedente, se Deus quiser. Mas hi um mo- mento em que esse peixe, esse conteiido até entdo desconhecido do inconsciente quer subir & tona e esta dotado de toda a energia necesséria para. tanto, suficente trabalho jf foi feito e no entanto a cons ciencia se recusa a recebé-to, Fsse aborto custa caro, porque pode ser que a chance no se apresente pela segunda vez. E preci: so portanto saber julgare diferenciar. Nem ‘tudo precisa nascer; mas quando chega 0 momento do Advento reclamado pela alma, é melhor ter pronta a manjedoura 2. ACASCA DO OVO Uma vez sugerido que 0 aborto pode também ser encarado como imagem € pro- cess0 da psique, conviria agora, como pro: rete 0 titulo deste artigo, esbocar alguns tragos da imagem que corresponde a essa experiéneia arquetipica Em primeiro lugar, 0 ovo. Universal mente, 0 ovo € um simbolo de promessa de vida e de principio criativo. Em vérias tmitologias, 0 ove cosmogdnico aparece como ealidade primordial, que contém fem germe a multiplicidade dos seres. Os antigos textos hindus, referindo-se & pré tica da meditagdo ¢ concentragio do pen- samento, apresentam a imagem de uma pessoa chocando um ovo, que seria 0 obje- to de meditacdo. O nascimento do mundo a partir de um ovo aparece na mitologia céltica, egipcia, grega, fenicia, tibetana, hindu, chinesa 'e em muitas outras, Em alguns casos, 0 Homem Primordial nasce de um ovo, como Prajapati na Tndia e Pran-kou na China. Um motivo comum é 0 da dualidade contida na unidade primei- a: do ovo de Leda nascem os gémeos Castor e Polux; 0 ovo primordial do Xin- toismo se separa mima metade leve (Céu) noutra densa (Terra). Na India, essa mes ma imagem aparece no Chindogya Upani- shad (3,19): “No comeco s6 havia © Nao- Ser. Depois surgiu 0 Ser. Este crescou e se transformou num ovo. O ovo ficou fem repouso todo um ano e depois se abrin em duas partes, uma de prata, a Terra, © outra de ouro, o Céu. A membrana externa sio as montanhas ¢ a interna, as muvens; as Yeias 90 08 rios € 0 fluido o mar?” Na mitologia fenicia, o vento cria um ovo um deus que 0 abre, surgindo assim 0 Céu e a Terra. Neste caso 0 ovo nfo é a origem primeira, mas ¢ a substincia bisica a partir da qual um deus criativo forma 0 ‘cosmos. Na tradicio chinesa, antes de qual- quer distingdo entre céu e terra, 0 proprio caos tinha 0 aspecto de um ovo de galinha, que depois de longo tempo se abre © di origem a Yin e Yang. O ovo assim signifi ca um principio inicial de organizagéo do caos; mesmo nao sendo a realidade primei- ra, é 0 germe de futuras diferenciacdes, comportando em sua totalidade tudo o que é virtual. Em seu livro Creation Myths?, Marie- Louise von Franz. oferece varias outras in- dicagdes a esse respeito. No Egito, a cria- do tem vérias etapas: primeiro sao criados Oito principios divinos a partir da égua mordial, que si0 os progenitores de tudo. Seu primeiro ato é criar um ovo enorme; desse ovo nasce 0 deusSol Ra, que se torna a causa imediata da vida na terra, Na Gré- cia, © ovo aparece na tradigio drfica. No principio havia 0 Caos, a noite e 0 abismo {a terra, 0 céu € 0 ar ainda nfo tinham apa- recido). No abismo mais profundo, a noite 53 gerou um ovo alado, do qual nasce o deus Eros. Eros une o Caos ¢ 0 Tértaro € dé ori- gem a primeira geragao de deuses. Segundo von Franz, todos esses ovos po- dem ser compreendidos psicologicamente como simbolos de uma totalidade pré-cons- tante, anterior ao surgimento do ego ¢ de uma consciéneia capaz de dividir. Eo germe que antecipa 0 todo, que ji 0 con- tém em potencial. No Upanishad citado acima (6-12), hd um didlogo em que o mes ‘re manda 0 discfpulo apanhar um fruto de banyan, abrilo, tirar uma semente abrile, e dizer 0 que ve 16 dentro. “Na da”, responde 0 mogo. Entéo 0 mestre diz: “Filho, da propria essencia dessa semente, que vocé no vé, que vem a arvo- re. Creia-me, uma esséncia invisivel e sutil € 0 Espirito do universo inteiro. Isso € a Realidade*”. Essa imagem equivale a do ‘ovo que s6 precisa de calor para germinar, pois ja contém tudo em sie dispensa adi ges. Assim, a semente ou 0 ovo sio uuma imagem do Self, a totalidade psfqui- ca, mas em sua forma potencial, ainda nao realizada — é uma possibilidade, mas ainda © ova, portanto, indica o inicio de um processo de formagiio de consciéncia a par- tir do abismo escuro do inconsciente. Sem: pre que aparece em sonhos ou fantasias, essa imagem vem carregada de energia © costuma antecipar um desenvolvimento positive, Duas condigdes, porém, devem ser observadas: 0 ovo precisa de um calor constante, nfo muito forte nem muito fraco, e no pode ser aberto antes da hora. ‘Von Franz nota que na mitologia e na pritica @ imagem do ovo se associa a idéia de concentragao e a0 nascimento da inteli- faéneia e que portanto esse motivo no apa- rece mum estado psicoldgico muito primi tivo. O ovo surge em sonhos ou outras ma- nifestagbes do inconsciente quando o indi- vviduo se encontra num estado que Ihe pet- mite, pela primeira vez, refletir sobre si mesmo — 0 que ocorre independente de ross vontade, mas apenas quando. as von Franz diz: “O momento de reflexdo, de possbilidade de tornarse consciente, ¢ © momento em que 0 Sol nasce do ovo. Quando 0 ovo aparece num sonho vooe sabe que este momento esti se aprox: mando, que agora o nascimento da cons ciBneia, enquanto ato de autoreflexdo, ¢ pelo menos possivel ¢ esti constelado. A Iibido se concentra em um ponto © agora ele pode vir a tona’”. Ea concentragao, 6 © ato introvertido de chocar, de cultivar a psique, que tome esse nascimento vidvel ise entao como se 0 mundo tivesse nas cido. A introversfo da libido & a fonte do calor que choca o ovo. 0 aborto é a possibilidade de que tudo fss0 no dé em nada. Abortar, nesse com texto simbolico, seria abandonar uma certa atitude de concentragio meditativa face a uma gestagio interior por raz®es que vio desde perda de interesse, até a increduli dade (“ora, isso tudo é besteira”) ou as tentagbes de uma postura extrovertida to falmente inadequada nesse momento. As vezes uma pessoa tem que chocar, ficar de molho, incubar ou concentrarse, pois $6 assim seu ovo germinari. Outro tipo de aborto seria abrir o ovo antes da hora para ver como esta dentro. Hi pessoas que nto conseguem manter a boca fechada. O pri meito sinal de transformagéo interior vira imediatamente assunto de conversa socal © segredo profissional do analista deve ser também’ partilhado pelo analisando, ‘A energia que nesse momento € to essen- ial dentro nifo deve ser gasta em discursos. ‘As vezes um analisando — e nfo necessa fiamente apenas uma pessoa nessa cond 40 — € visto pelos outros como antiso- Cial, fechado, pensativo. E que ele pode estar chocando! Se abrir ovo numa ati tude impensada, no surgirdo Céu e Terra, fe menos ainda o Sol, mas apenas duas cas: as vazas,O espirito voou! Jung se tefere a este processo em set livroSimbolos de Transformagio, onde centre outras hai uma figura de Prajapati eo ove césmico. O ovo esté se abrindo ¢ den tro vése uma roda ou mandala. Nesse ex to, Jung nota que a atitude de introversao, através da qual uma pessoa 6 fertlizada, inspirada e tegenerada, adquiriu na mito. logia hindu um significado cosmognico, Prajfpati, © “Senhor da CriagGo”, é um exemplo desse atitude, pois ele se concen- tra, se aquece com seu proprio calor, é um ovo gerado de si mesmo que eria o mun. do. Dentro desse ovo ele se choca; entran- do em si, ele se toma seu proprio itero, engravida de si mesmo para criar o mundo dda multiplicidade, Jung assim conclui que na filosofia hindu — como de resto em sua propria psicologia — a criatividade deriva 4a introversdo, da imersfo em si mesmo € no inconsciente®. Aborta aquele que ndo 44 mergulho, quando sua prépria vida 0 levou até a ponta do trampolim. ‘A imagem do ovo aparece também em ontos de fada de vérios patses. Em seu li vio A Sombra e 0 Mal nos Contos de Fada, M-L. von Franz interpreta uma historia escandinava chamada “O pigante que nifo tinha em si seu coragio”. Em resumo, tra- tase das peripécias de um principe que tenta salvar seus seis inmiios petrificados Por um gigante. Auxiliado por um lobo, lum salmZo © um corvo a quem salvara a vida, 0 heréi € conduzido ao palécio de lum gigante, onde uma princesa ird ajudé Jo, Ele fica sabendo que para redimir os lnmios 6 preciso descobrir 0 coragao do gi gante, escondico numa ilha distante. Nes. sa ilha ha uma igreja, na igreja um pogo, ‘no pogo um pato, no pato um ovo, € no ‘v0 © coragio do gigante. Com a coopera: eo dos trés animais o principe consegue Atingir seu alvo. Apertando 0 ovo na méo cle forga o gigante a devolver a vida a seus fimifos'e no fim, esmagando 0 ovo, faz © gigante mortere casa com a princesa Quem se interessar poderd ler a fasci nants interpretagdo psicol6gica desse conto no referido livro, na qual cada detalhe se liga aos diferentes aspectos de um proces $0 de desenvolvimento. 0 ovo, em particu lar, simboliza aqui 0 centro mais profundo que contém a possbilidade de redengao ¢ de uma nova vida, anulando a tremenda emocionalidade representada pelo gigante. Neste caso, 0 ovo € a coisa mais dificil de encontrar, € 0 objetivo da busca heréica — © tem que ser pressionado e finalmente aberto com firmeza, pois em seu interior se encontra a resolueao, a forga redentora E ao ser esmagado, ele 20 mesmo tempo ria a nova consciéncia e destréi aquilo que petrificava seu desenvolvimento. Vemos aqui portanto outro aspecto. O aborto, neste caso, cortesponderia 4 covardia de nfo empzeender 2 busca, ou de abandoné- Jaa meio caminho, talvez por nfo contar © heréi com a indispensivel ajuda dos ins tintos. Outra possbilidade seria chegar até © ovo, mas falhar no momento crucial de extrair dele seu enorme poder. Hi portan- to diferentes modalidades de aborto, con- forme os estégios e as dificuldades do pro- cxsso, Esse mesmo motivo aparece igualmente tum dos contos que compoem a coleca0 coletada pelos irmdos Grimm, “A Bola de Cristal®”. Aqui os elementos so outros, ‘mas a estrutura e 0 sentido sio os mesmos. Hi aqui um duplo enfeitigamento, De um lado, uma feiticeira transforma seu ptimet zo filho em dguia e o segundo em baleia, enquanto 0 terceiro consegue fugir a tem: po e torna-se o herbi da historia: de outro, a filha do rei é reduzida por um feiticeiro a uum estado de repelente feitira ¢ aprisio nada no Castelo do Sol. Todos os que ten- tavam salvé-la morriam. O her6iinicia sua aventura com 0 objetivo de redimir tanto 08 inmdos quanto a princesa ¢ de inicio onsegue trapacear dois gigantes e apode- arse do barrete mégico que o transporta ao castelo. A. princesa entéo Ihe revela que 86 aquele que conseguir descobrir a bola de cristal poderd desfazer as maldigoes. s dois irmiios animalizados conespon- dem aos trés animais da outra historia, Nes- 1a, 08 gigantes também tém que ser venci dos e de fato 0 barrete que possuem é um valor essencial, A grande diferenga neste ‘caso 6 a figura materna negativa e o feiti- ‘eiro que atinge a filha do rei, o que indica ‘uma constelagio extremamente desfavord- 35 — eee ell vel nos dois prineipios geradores de vida. A situagao so pode ser resolvida pela raiz, (0 seja, atingindose a bola de cristal re dentora que jaz dentro do ovo — como 0 ‘coragao no caso anterior. ‘A dificuldade culminante se apresenta aqui da seguinte forma: ao sair do castelo © her6i deveré descer ao vale e matar um touro que guarda uma fonte. De dentro do touro sairé um péssaro de fogo que voari pelos ares carregando no bico um ovo in- tandescente, dentro do qual se encontra a bola de cristal. O passaro tem que ser for gado @ abrir 0 bico, mas se 0 ovo cair no thio ele causari um grande incéncio e der- reteré junto com a bola. O herbi vence © touro ¢ seu irmio-dguia forga 0 péssaro a abrir 0 bico, caindo 0 ovo no teto de uma choupana de pescador (eis ai 0 pescador & espera do “peixe” certo!), & beira do mar. Quando o Fogo ia comegar, o irmo-baleia levanta uma onda e o extingue. A ago ‘combinada de gua e fogo faz.0 ovo rachar ea bola de cristal fica intacta. Através dela 0 poder dos feiticeiros & anulado, os frmaos readquirem sua forma humana ¢ 1 princesa recobra sua beleza € casa com oherdi. "Vemos aqui que amaldigao contém a pos- sibilidade da redengdo, pots a dgua ¢ a ba- leia eram exatamente adequadas as tarefas aque se apresentariam, Nessa historia 0 ovo © pivd de um conflito entre duas forgas clementares e abre por si no momento cer- to, apesar de ameagado por enorme destrutividade. Ele 6, por assim dizer, a fltima casca que recobre o Self, 2 mem- brana protetora do nicleo, configurando-se no estigio final do processo. 0 aborto nesse caso seria fatal, pois 0 ovo derrete- ria com ele a bola de cristal. A situaglo psicologica aqui simbolicamente expressa é altamente cartegada de energiae de tensio. Por ai se vé 0 que significa tentar contac tar o centro da psique ¢ 0 tipo de atitude necessiria, agravando-se ainda mais 0 risco de um equivoco quanto verdadeira natu- tera do heroismo, que de fato no tem nada a ver com um mero ativismo do eg0 56 consciente, Essa falsa atitude, em si, jé seria abortifera, pois aqui as rédeas esto nna mao do inconsciente, Esse ovo nfo seria jamais atingido através de um “planejamen: to estratégico”. . . Fle nao cai na casa do tecnocrata, mas na choupana de um and- ‘nimo pescador. ( estudo dos contos de fada a partir de uma psicologia do inconsciente permite ‘observar de que modo os arquétipos rea- gem & consciéncia coletiva de uma época, ‘Mas esse mesmo tipo de material pode igualmente aparecer em sonhos, visOes € fantasias. ‘Num semingrio que se desenrolou por ‘quatro anos, de 1930 a 1934, Jung analisow luma série de visoes de uma paciente ameri- cana que com ele estivera em andlise na ‘dscada precedente. Dado o caréter arque- tipico das visdes, os aspectos pessoais fo- ram completamente deixados de lado. Uma das visOes apresenta exatamente esse moti- vo do gigante ¢ do ovo. Em sua imagina- ‘¢do, a pessoa em questio “viu” 0 que pass f resumir: “Apareceu um gigante horrivel deitado no cho, que disse que ia esfregar ‘meu rosto na terrae me chicotear. Eu disse, Mundo, ndo tenho medo. Dai tudo escureceu e eu me vi no meio de um tur bilhao de sangue. O gigante encobria 0 céu, Gritei de agonia. Daf ele desaparecen em seu lugar surgiu um enorme ovo, branco € refulgente”? ‘A interpretagio de Jung é brilhante, mas ‘aqui s6 vou teproduzir os tragos essenciais. gigante, neste contexto, se liga a um con- flito da paciente com seu passado: ela nfo compreendia que devia cartegi-loe relacio- arse com ele, pois quem penetrou no ‘mundo interior sente que perdeu 0 contato ‘com 0 mundo de antes. O desenvolvimento spiritual sempre leva a um afastamento do ‘mundo, como demonstram os mosteiros € ‘eremitérios. Mas a dindmica psiquica leva de volta a viver no mundo, pois somente rnele & que se pode ctiar —e nio no ar. B preciso sujar as mos na matéria; mas isso varia conforme a época ou o individuo e (© grau de reconhecimento da realidade spiritual. Nessa visio, o gigante significa © enorme poder da terra, que esfrega 0 rosto da mulher no chio. Quando ela su- cumbe na escuridgo, surge © ovo como romessa de vida. O cadéver do passado é © titero eo germe do futuro, aqui em condigdo dormente. Essa mesma imagem aparece na filosofia tintrica ou no gnosti- cismo como um ovo circundado por uma cobra, Kundalini E o que faz o gigante desaparecer é o grito de agonia, o sofrimen- to. E como se o mundo estivesse gravido de Jum ovo invisivel, que a0 aparecer faz 0 mundo desaparecer. Na visio, 0 ovo se abre e surge uma cabeca negra e antiga co- berta pelo pé das eras, Depois de muitas peripécias e apari- es novamente surge o ovo nas visbes des- sa paciente, mas agora a situagio é menos propicia para um nascimento. A mulher se W no fundo de um desfiladeiro estreito, ‘em frente a uma roda que barra seu cami- nho. Finalmente ela passa para o outro lado e encontra um ovo rodeado de serpen- tes. Uma multiddo grita que 0 ovo é de peda! Aqui ndo se sabe se 0 ovo germinaré ou ‘go. Ha mais vida no mundo das serpen- tes que no ovo, ou seja, hi demasiada in- consciéncia e isso é que impede 0 ovo de se desenvolver ~ além da manifestacdo nega- tiva da opiniZo pablica, que afinma ser 0 ovo de pedra. Esse 6 sem diivida um trago da atitude abortiva: negag#o de uma pos- sibilidade a partir de valores convencionais, somada a insuficiéncia da atitude consciem. te. Isso € um aborto: matar 0 ove por con- sideré-lo apenas pedra. Mas a visfo prossegue: a mulher enfrenta a multidgo e defende sua posigao de que se trata de um verdadeizo ovo. Todos entao se afastam. Ela pede 20 ovo que se abra para cla. Ele se divide em quatro e ela fica coberta de gema. ‘A defesa de uma conviegdo mais eleva: da, ainda que impopular, permitiu que a atividade vital retomasse seu curso. Foi uma mudanga de atitude que tornou pos- sivel essa transformagio. Coberta de gema, a mulher se torna ela propria o germe e ‘assim seu renascimento se constela, Mas 0 processo podia perfeitamente ter aborta do ~ o que seria 0 mais comum. No ja citado Creation Myths, voz Franz relata 0 caso de uma paciente que atraves- ‘a um epis6dio psicético, com sérios riscos de suicidio". Essa mulher havia pratica- ‘mente destruido sua natureza feminina e se ‘encontrava no limite. Era quase impossivel falar com ela, pois ndo havia a menor rea gio de sua parte. Consciente da gravidade a situagéo, von Franz finalmente Ihe per- guntou se ela néo havia tido nenhum so. ho, ¢ a paciente disse: “apenas um frag. mento, Vi um ovo, e uma voz disse — a mae ¢ a filha”. Von Franz falou sobre 0 sonho, dizendo que havia ali o germe de uma nova possibilidade de vida, que era apenas preciso esperar o ovo abrir etc; falou sobre uma nova consciéncia feminina, sobre 0s mistérios de Eleusis e mitos de tig. A paciente se acalmou. Passado algum tempo ela contou que naquele mo- ‘mento tinha cajdo num buraco escuro ¢ nfo entendia mais nada, Sabia apenas que a terapeuta tinha visto algo positivo fem seu sonho e que era capaz de com: Preendé-lo, Foi essa compreensio que Permitiu o estabelecimento de uma ponte ‘uma situagdo extremamente perigosa, fem que 0 ego quase passou definitivamente para o lado de I, 3. O VASO BEM FECHADO Através do motivo do ovo, € portanto possivel derivarse indiretamente alguns tragos da imagem de aborto e suas impli- cages psicologicas. Mas hé outro motivo importante que aparece principalmente na alquimia, 0 de vaso onde se opera a obra. Foi Jung quem abriu para o homem mo- demo a possibilidade de uma compreensio psicol6gica dos velhos tratados alquimicos. Entretanto, prevalece ainda a nocio de que a alquimia no passa de um palavrdrio Sem nexo cujo tinico mérito teria sido dar 87 lugar & quimica. Esse preconceituoso equ vyoco de considerar que a alquimia, antes de mais nada, era uma “filosofia natural” subterrinea © compensatéria aos ensin mentos dogmaticos cristdos, ela propria ‘mais antiga que 0 Cristianismo. Além disso, (8 alquimistas no cansavam de repetir que ‘0 ouro que buscavam ndo era © ouro vulgar, mas o filos6fico, Jung foi capaz de perceber no trabalho e nos escritos ¢ ima~ gens alquimicos a expressio de simbolos do inconsciente coletivo projetados sobre a matéria e suas transformagoes. A retorta colocada sobre o fogo, na qual ia a8 pou- os se alterando a matéria-prima, era um teatro vivo no qual a imaginaglo do adepto via desenrolar-se 0 drama da psique. Os es- critos alquimicos estio repletos de imagens de teros, fecundacies, cOpulas, fetos nascimentos, como veremos a seguir. A de aborto, porém, devers mais uma vez ser extraida indiretamente ‘A idéia central & de que 0 vaso her mético é um titero no qual se opera um pprocesso de transformagio e de renasci mento espiritual”®. Em termos projeta- dos, a matéria vil é progressivamente pur- sada, dividida, dissolvida, evaporada, con- densada ¢ solidificada até atingir sua es séncia mais preciosa ¢ liberar o espirito; em termos psicol6gicos, é dentro do vaso {que ocorte a imersfo no inconsciente, com todo o seu dinamismo. Na obra de Jung Psicologia e Alquimia hi uma sévie de gravu- a8 retratando 0 vaso, sempre com forma ar- redondada, de ovo ou iitero: € a matriz da qual nasceré o fiius philosophorum, @ ppedra milagrosa, 0 que tevela que se trata fantes de mais nada de uma idéia mistica”*. Hid uma ilustragdo em que 0 vaso realmente tem a forma de um ovo e dentro dele se v8 Mercirio, com um pé sobre 0 Sol € outro sobre a Lua, os principios opostes que ele unifica™*; ou entdo é um cdlice onde Rex fe Regina esto imersos na agua mercu rial'S. Em outra imagem, um casal copula na gua, dentro do vaso — expressio da conjugagdo de opostos no inconsciente"® ‘A Virgem Maria € as vezes concebida como 38 (0 vaso que contém a crianga divina: o tero € portanto 0 centro, a fonte da vida” ‘A atengdo deve concentrarse toda no eentro e para tanto 0 vaso nao deve ser aberto, ou 0 processo seri interrompido. Merciirio, 0 espirito de transformacto, & fugitivo. Esse € 0 perigo, af est o aborto: ‘em primeiro lugar, nfo ter um vaso apro- priado, ou nfo ter nenhum receptéculo: (© que emerge do inconsciente se perde ‘como agua na peneira. O individuo, diga- ‘mos, no tem a menor capacidade de uma compreensfo psicologica de seus fend: ‘menos interiores. Aqui ja estou saltando ‘mito depressa para uma linguagem psico- ogica pratica, mas vamos Id. Em segundo ugar, possuir um vaso, que seria uma at: tude de relativa introversdo, mas ele € fra co € ndo resiste, Falta persisténcia, ou ac- pacidade de suportar o desconforto inicial causado pelas primeiras tenses provenien- tes do inconsciente. Pode ser, por exemplo, que a pessoa nessa situago nfo tenha a orientagéo de um analista para comegar ‘andar no escuro, ¢ assim bate a cabega na parede. Em terceiro, pode ocorrer que alguém julgue possuir uma atitude ade- quada para lidar com sua matérieprima, julgue possuir um excelente vaso; mas ele std. vazio, a pessoa ndo tem sonhos ou outro tipo de material inconsciente, Nes. se caso poderd haver conversas, papos, leituras, conferénecias, intoxicagées, mas no fundo nada acontece. Outro tipo de abor to seria trabalhar com a matéria:prima erra- da. Isso € visivel quando uma pessoa assu- me uma postura extremamente intelectua lizante com respeito ao processo, ou tenta racionalizar tudo em termos de uma teoria, impedindo qualquer forma de manifesta- 0 psiquica espontinea. Uma pessoa nessa condigo pode atravessar anos de ppsicoterapia e na verdade nunca ter um contato vivo com o outro lado da persona lidade, tudo aquilo que € 0 oposto do ego cconsciente. Seria viver no mundo dos con- ceitos ¢ no no da psique. Uma quinta pos- sibilidade abortifera seria tentar inserir no ‘vaso algo adicional. Um texto do Rosarium Philosophorum, citado por Jung, diz: “Na da deve ser adicionado (8 peda) que nfo exteja nla contigo; pois se algo esto: rho for acrescentado, ela serd imediata mente adulterada'*”. Assim como mencio- nado com respito a0 ovo, oo mesmo no caso de uma gestagdo biologica, tudo jf std potencialmente contido no. gene Nada mas € preciso; 0 adicional seed su. pérfluo e pemicios, Por exemplo, uma pessoa esti deprimida einicia uma andlive, © analista procura criar um vaso, uma ati tude de concentrasto e comunicagio den t20 dos limites proteores da relaga0 te. rapéutica e comesa a trabahar os prime! 10s sonhos, procurando mostrar que poueo 4 pouco o sentido dessa depresséo poderd vir a tona e que o material a ser trabalhado apareceréespontaneamente. Recomenda uma cert atitude de paciencia e forga mo. ral para suportaro embate. Ora, pods ocor. ter que o andlsando, nfo se adaptando a ¢sea proposta, procure preencher seu vaio Inca com toda sorte de adgbes, desde cal. antes a excitantes, gndstic, yoga, med tapdo transcendental, cogumelos,repimes macrobistices, acupuntura, massagens, ex pressio corporal ot o que for Diante des $a enxurrada de aditivos, o material incons. ciente, que nem comesa a ser recomhesido € apreciado, fice com seu efeito totalmente reduzido. Mais torna-se menos. © panora ta psiquico vira uma feira de vaedades onde jé nao se sabe mais o que é alho e © que é busalho, 0 que foi realmente um Progresso e © que nf0 pass de efeito tan- St6rio de uma anietamina Os alquimistas diziam: vas bene clau- sum. Outto tipo de aborto consist em no fechar bem o vaso. Hoje em dia se fabrica potes de compota. que fam “hermetic tente fechados". Como em quase tudo, & 4 vitdria do prosaico. O vaso deve ser bem fechado porque dentco dele se travam ver Aadeirasbatalhas de vida e morte, catacs: mas, empestades,golpes de Estado esac fivios. Nada deve escapar, nenhum vapor, nenhuma centelha. evidente que isto no precisa ser tomado a0 pé daletta Uma pes soa entregue ao trabalho interior ndo preci- 8a se tomar muda e surda para 0 mundo, antisocial ou eremita. Nao é 0 caso de se ‘mudar para um convento. Mas uma certa discregio é. recomendavel, uma atitude de suportar 0 conflito dentro de si sem hecessariamente se transformar num foco de atengao, sobrecarregando a familia ¢ os amigos com seus “problemas” e seus inte- ressantes sonhos cheios de simbolismo. Uma certa clagio inicial ¢ compreensivel, pois as primeiras experiéncias de contato com 0 inconsciente podem produzir uma sensago de descoberta, de uma nova pers- pectiva, © a pessoa naturalmente tende- i a comunicar esse estado ou a tentar con- vencer seus amigos a fazerem o mesmo. Mas essa atitude no deve perdurar, pois 0 processo é longo e se desenrola interna. mente ‘Outra modalidade de aborto consiste em abrir 0 vaso antes da hora. A atitude intro- vertida de voltar-se para dentro, ot a andl Se, so situages transitérias. Como uma sravidez, 6 um periodo de espera. Néo é 0 melhor ‘momento para grandes decisdes, grandes empreendimentos exteriores. O ‘tempo é um clemento fundamental e é ‘preciso respeitar o ritmo interior, O perigo extremo, nesse caso, seria quebrar 0 vaso. Em termos priticos, isso seria abandonar busca, ou interromper uma andlise de um momento para outro, por resisténcia, im- aciéneia, ou qualquer ovtra razdo emo- ional de negagdo. E finalmente, hé o abor to representado pela profanagio do vaso. A obra alquimica é também uma obra religio- sa no sentido mais genuino, é um servico, uma devogao, um sactificio, Profanar 0 vaso é ridicularizar e prostituir a propria alma Nada mais nascerd 4. OFORNOMEDIO (0 vaso deve ser colocado num forno e aquecido em fogo brando ¢ constante, Hi uma seqiéncia de imagens alquimices do steulo XVII que principia com o forno, 39 sendo cada gravura acompanhada por um texto simbélico, Interpretando essas ima gens, HK. Fierz’? diz que para iniciar 0 processo € preciso “coceo, tempo © pa Ciencia” © uma disposigdo positia, pois a0 trabalhar com 0 fogo encontramos nossas emogdes. A imagem do forno, no qual 0 fogo é utiizado para fins culturais © hu- ‘manos, quer dizer: “controle seu fogo, suas femogdes; no seja explosivo; trabalhe seus ‘estados emocionais para atingie sua propria realidade e a realidade do mundo” (a0 fundo da gravura, por tris do forno, apare- ce uma cidade). No banho-maria(invengi0 dos. alquimistas}), a substancia no fica ‘quente demais; o trabalho deve ser suave e gradual. Avidez demasiada nfo leva a um bom resultado. 1 primeiro contato com o inconsciente pode produzit uma depressio, uma sens- fo de perda, de escuro, Em linguagem junguiana, & quando comeca 0 comtronto com a sombra — a area da psique nao il ‘minada pela consciéneia do ego — e coma anima ow animus, A integraglo desses po- deres ¢ 0 grande trabalho de anos. “Trata- se de um periodo”, escreve von Franz, “du rante 0 qual 2 pessoa é afastada da realida de exterior, devendo manter fechada a re torta do proprio trabalho interior, e refle tir, no sentido literal da palavra, sobre si mésma, a fim de tornarse consciente des ses dois aspectos do inconsciente?®”. E 0 periodo de trabalho pesado, na alquimia (00-1 andlise. Depois disso, basta prosse- fuir com fogo brando. No’ momento em {que se inicia 0 contato com o arquétipo do Self, o vaso pode ser aberto: a partir de entdo é o centro interior que passa a egu- lar 0 processo (¢ a vida) © no mais 0 ego. J4 nao € mais preciso retorta alguma, pois © Self se solidificou, A solider do vaso se transforma na solide. da pedra, ou seja pprossegue von Franz. — uma experiéncia in ferior permanente do Self que dispensa recursos artficiis ‘Uma forma ou outra de aborto é porém inevitével, Nos estamos sempre a abortr. Em termos psiquicos, porém, nada € abso- 0 luto e irrepardvel. As vezes parece que um longo trabalho de concentragio no dew em nada, mas nfo é assim. O alquimista Dorn dizia que através de uma concentra 0 devotada acaba nascendo uma erianca no fundo da alma, uma presenga, uma per- sonifieaglo do Seif, fonte da cura psicolé- pea" 5, IMAGENS NA PALAVRA ‘Uma palavra é um som, mas é, também, 10 nascedouro, uma imagem. A palavra ‘aborto” pertence a uma singular familia que inclui: oriente (orientar, desorientar, crientagao etc), origem (original, originali dade) @ aborigene®*. A raiz do grupo in teiro é 0 verbo latino oriri, que significa levantar-se ou erguer-se, especialmente com referéncia ao Sol e & Lua, e dai surgit, co ‘megar, nascer. O participio presente de oriri 6 oriens, Sol nascente, e dai deriva a idéia de orientarse, O prefixo ab, que indi- ca afastamento, produz aboriri, abortar, ou seja, afastarse da vida, do movimento ascensional, da origem, da originalidade, da condigao aborigene. A etimologia oferece aqui tum eco 4 mitologia ea imagem arque- tipica que procuramos configurar. © Sol nascente é um simbolo essencial do desper- tar da consciéncia e a nogéo de origem, originalidade (individualidade) © orienta- fo a partir de um centro se relacionam diretamente do conceito junguiano de Sel. (© homem orientado pelo Self € de fato um aborigene, no sentido de que pisa em seu chio original, esté em casa, é 0 homem natural. E aborto é tudo aquilo que desvia, que leva para longe, que desorienta. Em alemio, aborto ¢ Abtreibung, com ‘© mesmo prefixo ab revertendo o sentido do verbo teiben, que significa: mover, fazer andar, impelir, estimular, levar, de- dicarse a, cultivar, fazer brotar, conduzir; ‘como substantive, o termo quer dizer mo- vimento, vida, trifego, atividade, ocupa- go. Como derivados, temos: Treiber, condutor; Treibhaus, estufa; Treibkraft, forga motriz; Treibrad, roda motriz e Treibsand, ateia movediga. Abrreiben, abortar, significa também desviar, afastar, Separar, abater. Elaborando um pouco, € destruir um cultivo, uma dedicacdo, um culto; & perder a diregao e brecar a roda motriz de um dinamismo, E puxar para baixo 0 Sol que se levanta, A conexo central, portanto, 6 com criatividade. Em seu jé citado livro, von Franz relata virias tentativas abortadas de ctiag¥o na mitologia; antes de surgir 0 ho- ‘mem, surgem anjos e deménios, pigantes ¢ andes, titas e aleij0es otc, que seriam pré. formas da consciéncia®®, Esses estigios Preparatérios so também vis{veis no pro- sso individual de criaggo. Uma excita. ¢d0 titdnica e um estado de espirito infla- do se apoderam do individuo quando se onstela um progress da consciéncia ou algo criativo. Quem tem uma boa idéia fica possufdo por enorme entusiasmo, exa- gerando a importincia de seu plano e de si mesmo. Depois de se entregar ao trab: Iho de concretizar o impulso criativo, 0 re- sultado, em comparacio com a visio inte. tor original, parece pobre. No estigio pré-criativo ficamos inflados; uma vez. feito © trabalho, sentimos um vazio e uma certa tristeza, como uma mulher que acaba de dar 2 luz, Isso tem a ver com a tremenda carga de energia ligada ao impulso criat vo ~ ¢ 6 por medo dessa deflagao que cer- {as pessoas nunca se entregam a um traba- Tho de parto, preferindo atravessar a vida como “alguém que promete”. 6. ABORTO Do ESPIRITO Se eu parasse aqui, estas reflexdes fica- riam ineompletas, pois terse-ia a impressa0 de que afinal de contas tudo isso nao pas. sa de “imagens”, uma projegao de dia. ositivos da psique onde se vé que sim, verdade, hii mesmo algo que sugere abor to! Tudo continua cindido e dissociado ‘como hé tanto tempo (mas nao desde sem- pre), psique de um lado e mundo de outro. Reconheve-se que num nivel mais pro- fando e geral que os traumas da biogratia © 0 material reprimido — tao trabalhado Por Freud ~ existem arquétipos, padroes de comportamento, mas e dai? E dai que, por tris do gesto, da situa: 0 ou do problema hé um conjunto de imagens ou disposigBes que os rege, Quan- do @ imagem de nao nascer se constela na Psique, hd uma ressonéncia na materia, luma correspondéncia, Toda uma existen, cia poderé ser regida pelo arquétipo do aborto, que poder manifestarse seja no plano biolégico como no psiquico, ou em ambos. Quando 0 aborto se constela no Jnconsciente, prevalece uma atitude psico- 1gica de bloqueio, de negagdo da vida e de movimento, de amargura e desestimulo 2 qualquer tipo de criatvidade ~ inclusive 4 alheia. A inveja é uma emopio tipica des 5 quadro. O individuo, ou a sociedade, tomamee prisioneiros do Nao e em geral localizardo © problema apenas no plano ex- terior ¢ material. Esse aspecto pode inclu. sive existir por trés do aborto de uma mulher. Hoje se discute tanto o problema ético do aborto e por toda parte, como em tudo, ouvese pr6s e contras. Se 0 aborto é legal a dlientela pode aumentar desmesurada’ ‘mente e no se pode mais garantir a taxa de reprodugdo dz forga de trabalho ou a ‘mera manuten¢do dos “costumes”; se m0 6 continua a ser praticado do mesmo mo. 4o, com rscos ¢ exploracio economica. A Iaeja breca, apelando para suas velhasteo- Tias — como se esta fosse atinica forma de ‘morte que causamos. Hé casos em que in- dubitavelmente uma gestagio pde em ris oa vida da mulher e deve ser interrom- pida, ou em que o feto 6 mal-formado; pode ser também o caso de no haver @ ‘menor possiblidade psicol6gica ou social de que esse novo ser receba um minimo de condigdes compativeis com a existéncia Ou ele meramente significaria o fim de um certo estilo de vida e prazer, fof um desc. do! No plano exterior e dos prineipios a controvérsi, como boa controvérsia que €, 61 6 antiqifssima e nunca se resolve, basta pesquisar a histéria do aborto. ‘Com a morte da alma, porém, ndo se preocupam tantos. E como se nfo ocomres fe. E assim prossegue o longuissimo dester- 10 doespitito, ABSTRACT In this paper abortion is viewed not as 1 physical phenomenon, but as the inter- ruption of a process whereby psychic contents not yet integrated into conscious- ness are slowly germinated. This process ‘manifests itself through archetypal images, among which are here examined the unti- rely opening of the egg, oven and alchem- ical vase (also, its inadequacy), These images are amplified in connection with critical moments in psychotherapy. Uniterms Archetype. Archetypal image.Psycholog- ical abortion. Egg, oven, vase. Psycho- therapy. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS. | CG. Jung. The Archetypes and the Colect- ve Unconscious, 9, 1, Collected Works, Princeton University Pres, 1976. 2. Citado por J. Chevalier eA. Gheerbrant. Dictionnaire des Symboles. Pais, Seghers, 1974, p. 300, . Zurich, Spring Publications, 1978, cap. ‘VinI ~""Germs and Eggs”, p. 144-49. 1. 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