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A democracia devora seus filhos' Comentarios sobre o novo radicalismo de direita A légica de dominagao da democracia Vencedores histéricos nao poderiam ter uma aparéncia tio direita nao surgiu por conta prépria, mas deve ser inscrita na- quela mesma democracia de mercado que foi aclamada como a\ forma definitiva da sociedade humana. Pois essa praga ideolé- aiu de céu, nem € obra de extraterrestres. Tampouco hd um patégeno desconhecido no sangue de um determinado grupo de pessoas. A democracia nao pode admitir de maneira alguma que se trate de tumores traigoeiros, que brotam em sua prépria face. Ela tenta esconder a verdade banal de que fe- :ndmenos de uma sociedade sempre emergem do interior dessa ‘mesma sociedade, das suas préprias contradigdes. A democra- cia & 0 proprio iitero onde sao gestados esses fendmenos. A palavra de ordem das ditaduras de modernizagao tanto do Ocidente quanto do Leste era que os respectivos regimes, em si positivos, estariam ameacados por poderes exteriores obscuros, com © que ofuuscavam 0 seu prdprio potencial con- "Die Demokratie frist re Kinder. Bemerkungen zum neuen Rechtsra- dikalismus”. Publicado no livio Rosemaries Babies. Die Demokratie und ire Rechtsradikaten. Gruppe Keisis (org). [S.: Horlemann, 1993, ‘Tradugio de Daniel Cana. 2 2 ADEMOCRACADEVRA ELS FLHOS traditério; a repeti¢ao desse argumento francamente defensivo para as tendéncias do novo radicalismo de direita na habitual infecgao democritica aponta, de fato, a unidade interna da de- ‘mocracia da economia de mercado madura com os seus prede- ccessores ditatoriais. Mas isso seria inadmissivel. Uma vez. que a democracia moderna ocidental nao pode de maneira algu- ‘ma ser exposta como a origem e o terreno fértil de onde brota a barbie, a consciéncia democritica busca intensamente as ideologias de justificagio. Que ironia: sob a lideranga da Tur- ‘quia e da Republica Islamica do Paquistao, parceiros de tortura da Otan, foi claborada uma resolugio da ONU segundo a qual as democracias ocidentais, em especial a Alemanha Ocidental, devem sentar no banco dos réus por racismo e xenofobia. Os diplomatas ocidentais, que habitualmente trocam censuras em matérias relacionadas aos direitos humanos, como os emissé- rios de qualquer regime obscuro exportador de banana ¢ de petréleo, falam em “unilateralidade”e “distorgo dos fatos”. As democracias ocidentais devem sempre ser a solugio, € no 0 problema; o bem, e nio o mal. No mundo desarticulado apés ‘ fim da ordem bipolar do pés-guerra, onde quer que racismo, radicalismo de direita ¢ etnonacionalismo desenvolvam o seu programa destrutivo, recomenda-se a democracia como solu- Gao histérica universal. Ou seja, ndo se pode permitir que 0 gume da faca se inverta. Esse padrio de defesa cega da democracia aparece até mes ‘mo no desenvolvimento da Europa do Leste e do Sul, que até aqui nio correspondiam &s expectativas esperangosas apés 0 fim da “ditadura comunista’. “Canibalismo social” (expressio de Henry L. Feingold), poder crescente da méfia, empobre- cimento das massas, etnorracismo, antissemitismo e guerra civil em todas as regiées do finado socialismo de Estado no podem ter nenhuma relagao com as democracias de mercado recentemente “incluidas” na humanidade. A barbérie incon: A crncraia dora seus ios 8 fundivel em incubagio s6 pode ser um génio da lampada vindo do passado, nascido do deficit de modernidade ocidental. Pre- viamente incorporado nas coergbes do socialismo de Estado, 0 génio da lampada emana odores fétidos quando a lampada se quebra, ¢ finalmente se maquia com as cores do mercado para fazer uma transmutagio democritica, Falta pouco para que pequenos genocidios € insignificantes massacres de pessoas desimportantes para a economia de mercado, como mulheres, aposentados, criangas, desempregados ¢ outros nao rentiveis sejam apresentados pela inteligencia liberal como uma espécie de “tempestade refrescante” na qual o deménio nacional-fas- cista balcdnico ou cauicasiano ainda pode tomar félego para a “purificagdo democrética”, uma vez que os mais pobres j te- riam sido “sustentados” por tempo demais, “Trata-se de um construto ideolégico eficaz, Mas como 0 democtata inteligente explica o radicalismo de direita, a agi- taco de pogroms e as cagadas racistas nas proprias democra- cias ocidentais humanitérias? Por exemplo: a Repiiblica Fe- deral de Mercado da Alemanha manteve o seu genio fascista debaixo do tapete, como uma ditadura stalinista qualquer? E quem seria entao o educador democratico dos democratas que educam os democratas? Aqui apenas a indulgéncia do desamparo antropolégico pode ajudar: quando em todas as democracias plenas do mundo, inclusive no maravilhoso Vale do Reno, o mesmo monstro ergue sua cabega repulsiva, entio ele deve vir das profundezas da prépria natureza humana. A democracia seria assim ameagada pelo pré-civilizat6rio, pelo “em si" nas almas adormecidas, e, uma vez mais, a consciéncia democritica é inocentada, Os novos radicais de direita devem ser uma espécie de acidente genético civilizatério, que possi bilita 0 afloramento de impulsos atavicos. A democracia civil de mercado nio teria nada a ver com isso; pelo contrario, ela oferece a tinica defesa contra tal atavismo. 4 /ADEMOCRAG DEVORA SEUS LAOS Com maior ou menor consciéncia, argumentos como esse circulam na esfera publica, de modo que a inteligén- cia democratica procura isentar 0 livre mercado ¢ a poli a, para ela sempre positivos, do constrangedor advento da nova barbarie no Ocidente e no Leste. © ponto de fuga de ‘uma defesa essencialmente relacionada ao passado e 0 com- bate ilusério aos bandos de direita radical que, subitamente, invadem a festa democritica sio, naturalmente, 0 naciona- lismo e o fascismo histérico, em especial 0 nacional-socia- lismo alemao. E como se um brago fantasmagérico vindo dos timulos do passado se estendesse para agarrar pelo colarinho a inocéncia democritica. A dissimulagdo é per- feita, porque 0 préprio carter repressivo e dominador da democracia e da racionalidade ocidental é um tabu em todo © espectro intelectual e politico. Os elementos indubitavel- mente emancipatérios e positivos da democracia ocidental ‘em sua longa ascensio estéo separados ideologicamente do seu lado obscuro e negativo. O critério de comparagio é sempre o pasado, a ser novamente superado, mas nunca um futuro possivel para além da racionalidade ocidental. O cardter histérico da democracia & negado, porque ela ndo pode estar sujeita & finitude histérica e porque depois dela nao pode haver nada de novo sob 0 sol. Os “democratas glo- bais ideais” de todos os partidos agem como se 0 processo de aplicagao dos sistemas democréticos fossem eternos, como se a democracia nao pudesse ter a sua tarefa jamais esgota- da, externalizando 0 seu miicleo repressivo, como se fosse combatida sempre a mesma “ameaca” fascista ou comunista, € como se o que deve ser superado fosse a eterna falibilida- de humana através da “educaca0 democratica” (por que nao uma ditadurat). Quando se acredita que se deve lutar contra a propria natureza humana, poderiamos perguntar aos de- mocratas: nao seria 0 caso de desistir? A eameraia tora sus its % ‘Ninguém contesta a necessidade histérica da democracia © 0 seu grande significado para romper com a estreiteza es- tamental das sociedades agrérias estagnadas. Mas a huma- Tidade néo pode viver desses louros indefinidamente. Que a democracia, como seu préprio nome indica (dominio do ovo), seja apenas o tipo mais moderno de ditadura de uma forma social coercitiva sobre o desenvolvimento das neces- sidades e relagoes humanas, é algo que nem em sonhos a ra- zo democratica embotada pode perceber. Com isso, nao & dificil decifrar a assim chamada economia de mercado como © micleo repressivo da dominagao democratica, pois a sub- ‘missto incondicional de todos os momentos da vida a légica € as coergdes do mercado (seja ele “livre” ou “planejado”) & a caracteristica essencial de todas as democracias modernas, Mas essa relagio é até hoje obscurecida na consciéncia ideo- Logica da modernidade ocidental, porque todas as fragbes imanentes & légica da respectiva racionalidade, em sua ascen- sio, devem relacionar-se autoafirmativamente com o plano de referéncia comum, Isso também vale para 0 conjunto da ‘esquerda — especialmente para o velho e tradicional radica lismo de esquerda, que hoje d4 os seus tiltimos suspiros. Os “democratas radicais” de esquerda de diferentes tendéncias separam as promessas democréticas da sua forma econémica de mercado e opdem externamente as duas faces do proceso de modernizagao. A democracia deveria ser, supostamente, 0 oposto do capitalismo, Essa ilusdo “politicista” busca sempre isolar como emancipatéria a promessa iluminista abstrata da autonomia, responsabilidade, “autoadministracio oper (Trotsky), “razo discursiva” (Habermas), “democracia de base” etc,,e mobilizar a mesma Idgica contra o outro lado, 0 lado repressivo carente de conceito. Ainda nos anos 1970 ha- via uma piada na esquerda que visava denunciar as empresas fi certo que isto ainda hoje acontece com uma reserva masculina de ge nero, pois, estruturalmente, a democracia tem sido adaptada ao discurso \ da esfera pica masculina (democracia dos “cidadios-soldados") desde as antigas protoformas, que sistematicamente deixa de fora o espaco da “privacdade doméstica” (eo que ls acontece). A daca evra seus tas 3 podem explodir essa casca ¢ se libertar dela, Enquanto a cri- tica de esquerda é cética em relagio & racionalidade ociden- tal, mas ao mesmo tempo busca em vio alargar o seu escopo objetivo, a critica de direita (e da “direita radical”) mobiliza sempre momentos de irracionalismo, que sao de fato apenas o reverso obscuro da prépria racionalidade ocidental. Agora novamente parece que se mobilizam formas selva- gens de pseudorrebeliao imanente e limitada, O colapso do socialismo de Estado no Leste, totalmente incompreendido em sua esséncia, ¢ a falsidade e inabilidade do democratis- ‘mo de esquerda anunciaram a vitéria final da democracia de mercado ocidental em escala global. Cresce junto aquilo que foi criado para estar junto: democracia e mercado total, liber- dade abstrata e coergao surda, “autorrealiza¢io” individual e © seu reverso, 0 fracasso na concorréncia.® Agora a dem cia pode mostrar a sua verdadeira face monstruosa em escala ‘mundial. A pauperizagio, a destruigio da natureza e a ani- quilagao das estruturas sociais nunca foram tao intensas, ¢ a deterioragio social nunca se difundiu tao rapidamente quan- to apés 0 triunfo da democracia de mercado. O seu triunfo final é também o estagio final da civilizagao ocidental, que passa imediatamente & total desintegracao. £ uma constela- Gio ideologica e historica que, apds o réquiem da esquerda, abre novamente a tiltima conjuntura do radicalismo de direi- ta; um tiltimo construto de pseudocritica imanente profun- damente irracional. © solo da democracia de mercado triunfante se reve- la como um triste deserto, e € deste mesmo solo que brota a nova barbérie, © “ego” (Selbst] democratico do individuo *"Cresce junto aquilo que fot criado para estar junto”, frase de Willy Brandt referindo-se a queda do Muro de Berlim [NT]. 4 ADEMOCEACADEVORA SEUS FLAGS abstrato produtor de mercadorias vive drasticamente a sua nulidade em relagio aos critérios sistémicos cegos, que em um piscar de olhos desmente esse mesmo ego, no qual a li- berdade parece conquistar seus tltimos triunfos. Na verdade, a liberdade democritica se revela como um vazio tio evasi- ‘vo quanto voraz. Assim como Saturno, o totalitarismo mo- netirjo da democracia de mercado devora os seus préprios filhos\A logica interna de dominagio do sistema democritico dde mercado expulsa repressivamente e, em seguida, produz, como reagio, a invés de uma nova critica emancipatéria, um eco assassino de si mesma, A democracia e 0 radicalismo de direita se correspondem como gémeos siameses, conectados internamente através do sistema circulatério do processo de valorizagio abstrato e suas coerges surdas. Toda democracia produz como reagio imanente ao fim do processo de moder- nizagio, com regularidade légica, o novo radicalismo de reita em qualquer de suas variagdes. A miscara hipécrita da liberalidade propée um pacto, mas € 0 punho de Fausto da propria esséncia fetichista desvelada que golpeia em delitio cego” Ahistéria nao se repete A tentativa da consciéncia democritica ocidental de exter- nalizar a barbérie emergente da direita radical corresponde tentativa de caracterizar 0 fascismo histérico como siste- (go e estranho & democracia (assim como, por outro lado, foram conceituados 0 socialismo de Estado ou o “sta- linismo” como sistemas exteriores antidemocraticos). Esse 7 A frase contém uma referéncia intraduzivel ao Fausto de Goethe, jé que em alemao Faust também significa “punho” [NT Acemotacia devo sus ihas 5 pensamento € subjacente & peculiar achistoricidade do Ilu- minismo burgués, que jé antes de Hegel (e continuando para além de Fukuyama) conceitua a hist6ria tao somente como a pré-hist6ria de si mesmo, ¢ com isso precisa ele préprio se viar da histéria. O tabu da critica emancipatdria, progressista, transcendente da democracia é idéntico ao tabu de pensar a hist6ria para além das categorias da modernidade produtora de mercadorias.* O resultado é duplo. Primeiramente, na ale- gada “pés-histéria” moderna, o processo histérico no pode ‘mais ser reconhecido como um continuum, mas apenas como sucessio de meros eventos frente ao pano de fundo sempre igual das categorias fundamentais aparentemente imutaveis (ontologizadas), enquanto o “desenvolvimento” aparece, em parte, ainda apenas como progresso tecnol6gico, em parte, como mera purificagdo no sentido dessas categorias funda- mentais fixas (essencialmente, as categorias do sistema feti- chista produtor de mercadorias); em segundo lugar, as dife- rentes assincronicidades das fases de desenvolvimento desse sistema-continuum hist6rico aparecem como “prineipios” ex- ternos supostamente contrérios (prineipios “bons” e “maus’, € claro) que lutam entre si e contam “vit6rias” e “derrotas”. Essa a-historicidade e a consequente inconsciéncia demo- critica nao precisam ser explicitas como nos te6ricos do fim da historia de antes e depois de Hegel; elas também se ex- pressam quando a historicidade de sociedade é invocada su- * 0 conceito absurdo de “pés-modernismo”, como jf foi dito varias vezes, linha apenas a va esperanga de estender a modernidade ocidental para além de si mesma e negar 0 seu fim, preenchendo-a com um palavrério aleatério e sem sentido. Quando nao se tem mais nada a dizer nas cate ‘gorias antigas (constituidas pela mercadoria) mas se quer falar para além dosiléncio indulgente,recai-seinevitavelmente na tagarelice infantil. Este Ponto foi agora também alcangado pela politica, e especialmente pela po- litca, ou seja, também (eainda mais) pela chamada politica de esquerda, /, } % ADEMOCRACDEVDRASES FLAOS perficialmente, mas apenas no interior das categorias de base modernas. Quando a esquerda, em todas as suas variagbes, conceitta 0 capitalismo de forma truncada e, portanto, nao © compreende como continuum histérico? quando o entende como a forma social a ser superada historicamente, mas, 20 ‘mesmo tempo, pretende adiar infinitamente o limite histéri- co de um momento essencial dessa mesma forma, nomeada- ‘mente a forma geral de dominagao da democracia, e prolongar eternamente a efetivacio de “reivindicagdes", entio ela repre- senta apenas uma variante cada vez menos original da falta de historicidade democritica e do esquecimento histérico. 0 fascismo hist6rico, tanto para os democratas oficiais do p6s-guerra quanto para os seus irmaos adotivos da esquerda € da esquerda radical, tinha de ser caracterizado como um “principio” hostil: uma espécie de bicho-papao no nevoei- ro a-histérico da modernidade, que sempre pode voltar. Ou como grave “acidente de trabalho” das reformas democriti ccas, que sempre pode ocorrer quando nao se esta atento, ou simplesmente como evento transcendental, como singulari- dade que fica sem conceituagao, e nessa falta de conceituagao também pode retornar quase mutatoriamente como nova sin- gularidade do horror, “Resista desde os primeiros sinais!” ou “Pense em 33!” eram os motes que atravessavam 0 espectro politico-ideolégico, ea suspeita miitua de fascismo avangava como meio mais efetivo de dentincia, Assim, nio surpreende que 0 novo radicalismo de direita seja tomado prontamente sob o aspecto do “retorno” de um “principio” hostil. _No entanto, a histéria nao se repete. E quando a prépria modernidade puder ser compreendida como historia, e, por- °'Na Alemanha, como a continuidade entre o império do Kaiser, a Repo: blica de Weimar, o nazismo e, finalmente, a Alemanha Ocidental. A deoncracia door seus its 37 tanto, como histérica, o fascismo histérico deverd entéo ser determinado como parte do continuum histérico da moder- nidade produtora de mercadorias. Isso significa, primeiro, que ele marca simplesmente um determinado trecho tem- poral desse continuum, ou seja, nao exterior a ele, ¢, com isso, mesmo nesse sentido banal, nao pode ser repetido. Em segundo lugar, nao se trata de um “contraprincipio” em rela- 40 A democracia, mas do seu precursor histérico, Ou, mais incisivamente: trata-se de uma “forma de incubagao” [Ver- ‘puppungsgestalt] da propria democracia, que pode se tornar efetivo como estagio especial de imposigao, sob condigdes determinadas em determinados paises. Na Alemanha, o fas- cismo foi mal compreendido como um desvio completo do processo de democratizagao, como uma simples aberracio de terriveis proporgées no periodo entre a Repiiblica de Wei- mar e a Repiblica Federal" Mas a “democracia germanica” de Hitler nfo era de maneira alguma apenas um fantistico selo da barbarie (como ainda podia espantar-se Lukacs). Na verdade, 0 nacional-socialismo colocou em curso mudangas sociais estruturais que eram parte do processo de democra- tizagio, caso se entenda a democracia como estrutura totali- zante da democracia de mercado, incluindo o seu lado repres- sivo. No aspecto fenromenolégico, esse reconhecimento nio & novo, Ralf Dahrendorf, em especial, fez abordagens nesse sentido ja em 1965, em sua obra Gesellschaft und Demokra- tie in Deutschland [Sociedade e democracia na Alemanhal, ¢ ** Ou, para apontar mais uma veras variants de esquerda do mesmo pen: samento: 0 fascismo apareceu entio como uma proliferasio maligna do capitalism “antidemocratico” entre a democracia"burguesa” imperfeita da Repiblica de Weimar ea democracia “socialista” da Alemanha Orin: tal (ou, na variante radical de esquerda ocidental: a primeira futura "ver dadeira" democracia socialist) 8 ADEMOCRACADEVORA SELS LAOS no falta ironia no fato de que um liberal tenha contribuido (involuntariamente) para a critica estruturalmente conscien- te da democracia. Claro que nada foi desenvolvido a partir disso, na medida em que o enquadramento teérico ainda era comprometido com a modernizagao produtora de mercado- rias, Dahrendorf liquida o problema explosivo atribuindo os momentos de democratizasio estrutural do nacional-socia- lismo a “efeitos colaterais nfo planejados” e inconscientes. Para uma consciéncia iluminista, que conceitua a intengio subjetiva como essencial (na auséncia de sua constitui¢a0 inconsciente pela forma-mercadoria), a necesséria distancia centre fascismo e democracia & superficialmente reproduzi da." Contudo, quando se conceitua como caracteristica geral da modernidade o fato de que 0 nexo social se produz “atras das costas” dos respectivos sujeitos, como é constitutive para todo sistema fetichista, entdo a identidade geral dos processos estruturais se torna essencial, e nesse plano o fascismo apare- ce sem reservas como o precursor da democracia Naturalmente, esse tipo de afirmacio soa como uma pro- vocagao para a consciéncia democratica em geral, e em es- pecial para os estrategistas de esquerda da “democratizagio”. Nao obstante, alguns fatos no podem ser ignorados. A Pri- ‘meira Guerra Mundial levou a0 absurdo as reliquias estamen- tais e semifeudais do império do Kaiser; mas a Repiiblica de Weimar modificou apenas a forma externa de governo, sem, no entanto, por em pritica estruturalmente o resultado da 1 Na esteira de Dahrendorf,e como reagio a ele, surg te sobre as explicagbes “estruturalistas” ¢" 4ue, no entanto, permaneceu limitado, na medida em que nunca abando- now 0 ponto de partdaacritco e afirmativo da democracia da economia de mercado do pés-guerra. Ao final, ficou provado que os momentos de _modernizagao estrutural no nazismo também podem ser explicados pela “intencionalidade”. tum certo deba- tencionalistas” do nazismo, A eemacracia deo sus ftos 3 ‘guerra, Tratava-se sabidamente de uma repuiblica mal resolvi da, Se 0 problema for despido das vestes ideolégicas finalmen- te tornadas supérfluas ¢ considerado como um problema “sis- témico” ou “estrutural’, trata-se essencialmente da superagao factual das reliquias estruturais estamentais, pré-modernas ¢ guilherminas ja apodrecidas, que ainda no haviam caido, Desta perspectiva decisiva, entdo, 0 nacional-socialismo nao foi, de maneira alguma, retrégrado ou reacionério, pelo con- trério, A sua maneira bestial (¢ temos de pedir desculpas aos animais pela comparacdo), ele executou o resultado da guerra ‘mundial, mobilizando em sua forma o préximo estigio dos processos sistémicos da democracia de mercado, Certamen- te, essa transformagio inevitével do Entreguerras poderia também ter sido realizada por forcas liberais, cristas-demo- ctatas ou socialistas de maneira diferente, mais civilizada e ‘menos atroz. Mas essas forcas foram simplesmente incapazes de fazé-lo. O radicalismo de esquerda do Partido Comunista “Alemio (KPD) se submeteu incondicionalmente aos interes- ses politico-econdmicos da Unido Sovietica, contrafactuais e contraproducentes para a Alemanha, e assim se inviabilizou como possivel portador das mudangas estruturais que esta- vam na ordem do dia em um pais ocidental altamente de- senvolvido. O espectro democritico oficial da Republica de Weimar, estendido até a social-democracia, por outro lado, permaneceu passivo ou até bajulou as estruturas guilhermi- nas que estavam por ser eliminadas. Tratava-se simplesmen- te de democratas imperiais, dignitérios antiquados que nos ‘cem anos seguintes ainda teriam tremido de medo diante de qualquer impostor (essa “notabilidade” antiquada é até hoje ‘uma caracterfstica do Partido Social-Democrata). A maquina mortal ni nal-socialista, em comparacio, era hipermoder- na € orientada para o futuro, € os seus protagonistas suspei- tavam ostensiva e desafiadoramente do guilhermismo. Assim, 0 ADEMOCRACIADEVORA SEUS FLAGS foi a partir deles que se formaram as forgas da reestrutura- 540; 0 resultado catastréfico ainda nao se fazia evidente para a consciéncia geral.!? Nesse sentido, o debate sobre as posigoes de Erich Nolte € seus alunos (como, por exemplo, Rainer Zitelmann) em rela- G40 & avaliagao do nacional-socialismo deve ser reconsidera- do criticamente. A ideia da “historicizacao”, como formulada primeiramente por Martin Broszat, e como apropriada por Nolte e companhia," é bastante frutifera, e mais frutifera, em todo caso, do que uma pouco clara € mitologizante adesio & suposta singularidade “incompreensivel” da barbirie nacio- nal-socialista, que seria exterior ao processo de moderniza- 4520. O interesse em multiplicar 0 peso do Holocausto para poder instrumentalizar moralmente os assassinatos em mas- sa para esta ou aquela posi¢ao nos conflitos atuais no pode, ‘em todo caso, ser o interesse das reais vitimas, assim como nao pode sé-lo o postulado da “incompreensibilidade” deri- Tal afirmagio no tem nada a ver com o desejo de “fazer justica” 20 nacional-socialismo de alguma forma, no sentido condescendente ou algo semelhante, Maso julgamento barato a posteriori sobre a conscitncta s0- cial dos anos vinte, que sempre funciona de uma forma logicamente equi vvocada e até rsivel, sempre opera com os resultados histéricose, portanto, se distancia do nacional-socialismo apenas da maneira mais protocolar ¢ ‘externa e compromete-se com todos os possiveis entendimentos da histd- ria que levaram ao dominio nacional-socialista, Talvee porque a consci éncia democratica global nem mesmo queira compreender essa hist6rla, a e democraciae fascismo pde mesmo ser descoberta poracaso, ° Rainer Zitelmann reivindica para sie seus companheiros ter superado a controvérsia entre a “estrutur cialismo, porque a “questao da modernizagio”, que eles primeiro afirma- ram eofaticamente, seria transversal e mediadora, Naturalmente, a mera mediagio nfo €suficiente enquanto o proprio conceito de “modernizacio” permanecer vazio ou confuso e essencialmente afirmativo ou, na melhor ‘das hipdteses, permanecer como mera critic interna ea “intencionalidade” do nacional-so: Adenocrara devoa sus itas a vado de uma vontade de incompreensaio, O que é insuportivel na versio de Nolte e companhia da “tese da historicizacio” é {que dessa maneira 0 nacional-socialismo é “normalizado” € desculpado, ea histéria alema parece ser corrigida no sentido de uma suposta nova politica alema de poder nacional. B, de fato, a posigdo de Nolte contém momentos que nio se pres- tam a discussdo. £ preciso ser um tanto descarado para apre- sentar a uta do exército de Hitler no Leste como “parcialmen- te justificdvel” no sentido de uma defesa ocidental contra a “barbérie asidtica” e para relativizar o Holocausto dos judeus europeus como simples “fato secundario”, reagio irracional a0 terror dos bolcheviques “asisticos” B claro que Nolte e seus pupilos evitavam desculpar dire- tae explicitamente a dominagio nacional-socialista. Ela foi antes colocada no contexto histérico do pensamento “ut6pi- co” moderno, por assim dizer, como alargamento da teoria do totalitarismo, e 0 terror nacional-socialista aparece, as- sim, em linha com a escatologia do inicio da modernidade, © jacobinismo, 0 marxismo, o stalinismo etc, Essa parte de Nolte foi complementada de maneira notavel por Zitelmann, para quem a “historicizagao” do nacional-socialismo se re- fere sobretudo as fungdes modernizadoras. Como esséncia desses esforgos conjuntos se revela uma construgao bastan- te defeituosa: 0 nacionalismo alemao seria, de certa maneira, dividido em dois momentos completamente opostos; quando cometeu crimes, ele pertencia a0 “coletivismo ut6pico” an- tiocidental e mimetizava miseravelmente elementos “asi. 0s"; quando, no entanto, cumpriu fungoes modernizadoras, pertencia, de alguma forma, & modernidade ocidental, ¢ nao pode ser igualado aos maleficios do “coletivismo”. O efeito re- lativizador de Nolte-Zitel mann em relagdo ao nacional-socia- lismo nao é diretamente apologético, mas, de certa maneira, 0 6 indireta e implicitamente. O que ha de criminoso é externa- 2 ADEMOCAAC DEORASEUS LAOS lizado € escamoteado como “intrinsecamente asidtico” € no ocidental, ou seja, no capitalista, sobrando um remanescen- te compativel com 0 “liberal-capitalismo” ocidental que pode ser colocado em primeiro plano. Apesar de esse construto ser pouco justificdvel, ele oferece, involuntariamente, um ponto de partida para uma resolugao critica, que tem de permanecer oculta para os contendores democriticos radicais ¢ liberais, porque ela é refratria A ma- neira como entendem a si mesmos. £ importante notar que os argumentos apologéticos de Nolte e Zitelmann nao se desen- volvem mais a partir de um pensamento antiocidental ou da direita radical anticapitalista, como ainda era caracteristico para a direita em geral nos tempos da Repiiblica de Weimar. Precisamente devido ao impulso pré-capitalista e “pré-indi- vidualista” de sua abordagem, tem-se a posigio explosiva na qual, de um lado, 0 nacional-socialismo € decifrado estrutu- ral e historicamente, em muitos aspectos, como o precursor das instituigdes alemas da democracia de mercado;" de outro, % 0 aspecto da “poténcia modernizadora” nos estudos cientificas © de- bates sobre 6 nacional-socialismo nio é fundamentalmente novo pelo ‘menos desde Dahrendorf; no ent cste aspecto muito mais do que as contribuigaes relevantes anteriores e, acima de tudo, levaram a inquirigio critica para “mais perto” de onde o nervo da conscitncia democritica € atingido, ou sea, do carster inovador « prototipico das turbuléncias nacional-socialistas para as insituigbes de- mocriticas posteriores da Alemanha Ocidental. Depois da abordagem de Rainer Zitelmann, o historiador Jargen W, Falter, por exemplo, decifrou ro sem boas razdes 0 Partido Nazista como o “primeito partido popular” ‘ecomo modelo para os posteriores ‘partidos populares" tipicos, com um. amplo espectro de clientela na cemocracta alema ocidental. A propés! to, argumentos relevantes jé podem ser encontrados na andlise do nacio- nal-socialismo do contemporineo Otto Kirchhelmer, que mostrou que 0 Partido Nazista se caracterizava como “partido de integragdo de massas" tum feito notével, embora ainda nio se pudesse estabelecer a relagio com as futuras instituigdes democriticas da Alemanha Ocidental. No senti- to, Nolte e companhia enfatizaram A demcrara doaa seus ihos 4 se coloca ideologicamente de maneira positiva ¢ afirmativa 0 conceito e a realidade da modernizacao e da democracia de mercado. Mas se 0 nacional-socialismo foi sob muitos aspectos 0 precursor estrutural e progenitor de algo em si positivo, entio essa avaliagao positiva é refletida quase inevitavelmente nele préprio, Para os “democratas ideais” e patriotas do Estado de direito pré-ocidentais (assim como para o que resta dos demo- ctatas radicais de esquerda), a “tese da historicizacto” de Nolte € Zitelmann ndo é to inaceitavel porque essa posigio defen- deria o nacional-socialismo contra a democracia, mas porque, pelo contrario, ele € relativizado em nome da democracia, isto 4 ideologicamente ela toma 0 mesmo ponto de vista do culto incondicional e acritico da democracia de mercado ocidental, argumentando tal qual seus opositores democratas de cartei- rinha, Nolte e Zitelmann sio persona non grata porque sio (inconscientemente) “traidores", porque eles, por assim dizer, sem intengao, revelaram um segredo indizivel da democracia: sta relagéo estrutural e historica, sua compatibilidade com 0 nacional-socialismo. Basta apontar a faca para o lado contré- rio para que a andlise afirmativa de Nolte & Cia. se transforme em arma da critica, Iss0, no entanto, s6 funciona do ponto de vista de uma critica emancipatéria e transcendente da demo- cracia de mercado, isto a partir de uma posi¢ao que se dis- tancia criticamente do processo global de modernizagao, ticando também a ilusio de esquerda da “democratizacao” no interior das formas categoriais incompreendidas do sistema produtor de mercadorias. Mas o democratismo de esquerda & do de uma andliseestrutural,€ bastante corteto apontar essas conexdes histérico-genéticas, eo uivo indignado mostra apenas a proximidade dos “emocratas ofendios com o continuum que une estruturalmente 0 nacio- nal-soctalismo ea democracia do pés-guerra “4 ADEMODRACADEVORA SEUS FHS {80 pouco capaz. quanto pouco disposto a fazer essa critica, jé que ele proprio seria atingido no coragao e teria a sua identida- de ideol6gica aniquilada. Com isso, Nolte (¢ logo em seguida Zitelmann) se tornam os bodes expiatdrios sacos de pancada para a hipécrita indignacao do democratismo de esquerda, € ‘o potencial da “tese da historicizagao” permanece inexplorado pela critica social mais elevada. De fato, o nacional-socialismo promoveu estruturalmente a liberdade e a igualdade e superou as reliquias estamentais do guithermismo. Isso nao € tao surpreendente, se liberdade ¢ igualdade sao conceituadas como categorias funcionais do sistema produtor de mercadorias, © Estado nacional-socia- lista impulsionou a igualdade ao transformar 0 “povo” em ‘massa de iguais sem rosto diante do “Fihrer” e funcionalizou democraticamente a hierarquizacao, isto é, a livrou de todo privilégio de nascimento feudal-patriarcal, de oligarquias locais, estruturas especiais inchadas etc. Ele promoveu, para falar como Ferdinand Ténnies, a “Sociedade” [Gesellschaft] abstrata geral contra as formas antigas e pesadas da “comu- nidade” [Gemeinschafi] patriarcal; e, em iiltima anilise, a “democratizagao” nao nada além disso. Isso vale apesar da terminologia da “comunidade nacional” [Volksgemeinscha- fil, que é formulada como conceito paradoxal, pois o gran- de espaco abstrato do “povo” [Volk] (da economia nacional e do Estado nacional) é contraditério com o espago familiar € local da “comunidade”, O nacional-socialismo promoveu a0 _mesmo tempo alliberdade, ao alargaro sistema de relases do individuo nesse grande espago abstrato, dissolvendo a velha cultura de estamentos e classes com seus vinculos pessoais no totalitarismo do partido tinico (“partido do povo”), que tornou mais facil para o individuo a admiss4o nas diferentes estruturas de fungao e comando e, com isso, mais do que an- tes, fez dele um “individuo abstrato”. Ademocraa devo sus its 46 Nesse sentido sistémico, pode-se dizer que a democracia da Alemanha Ocidental continuou e finalizou estrutural- mente 0 nacional-socialismo. A oposigao ideolégica, as de- ‘monstragdes retrospectivas de aversao e distanciamento nao conseguem esconder essa relacdo sistémica. Entretanto, é claro que o nacional-socialismo e a democracia da Alema- nha Ocidental nao sio imediatamente o mesmo, mas apenas diferentes estdgios de desenvolvimento de uma identidade; a lentidade nao é imediata, mas histérico-genética, Portanto, a compreensio do caréter dessa identidade equivale a com- preensio de que o nacional-socialismo nao pode ser Fepetido. 150 significa tudo menos um “sinal verde”. Pois dessa pers- pectiva histérico-genética, o nacional-socialismo surge como momento especifico do proceso de construgio da democra- cia moderna da economia de mercado, como um de seus es- tagios preparatérios e de desenvolvimento, e a crise de entio (guerra mundial e crise econémica) como a maior de suas ctises de desenvolvimento. Hoje, pelo contrario, apés o ultra- curto verao histérico da prosperidade fordista do pés-guerra (am verao siberiano, por assim dizer) ¢ a realizagao das es- truturas democréticas, temos de lidar com a crise histérica de declinio e com a barbara desintegra¢ao da democracia de mercado, que se choca contra os seus limites absolutos, ‘Também essa tese, novamente, pode parecer ousada ofensiva para a consciéncia democratica. Mais uma vez, as evidencias que podem ser apresentadas so mudangas estru- turais essenciais, que atestam ao mesmo tempo a diferenga com 0 nacional-socialismo histérico ¢ a impossibilidade do seu retorno, Essas mudangas estruturais estio relacionadas com 0 sistema do trabalho abstrato e sua organizagdo, com © problema da ditadura, com 0 cariter do “povo” e do con- ceito de povo, com o nexo entre economia nacional e nagao politica, e, nao por tiltimo, com a capacidade de mobiliza~ 6 ADEMOCRADIDEVOA ELS FOS G40 do racismo ¢ do antissemitismo e suas formas. Esses ele- -mentos estruturais e seus conceitos apontam para uma rela- io interna, na qual eles esto alinhados e se condicionam mutuamente, Com isso, trabalho, povo ¢ nagao formam as costuras centrais da “roupagem” da coeréncia sistémica, na qual a sociedade tem de “crescer”: 0 tiltimo e mais dinamico estagio desse crescimento foi a época de guerras mundiais ¢ crise econémica até a metade do século XX. Essa “roupagem” serviu como uma luva apenas no curto verso da prosper de fordista do pés-guerra; mais tarde, na nova época de crise iniciada no fim dos anos 1970, a sociedade arrebentou as cos- turas, restando apenas farrapos. Frequentemente se afirma que a modernidade ocidental seria “universalista” ~ quase sempre no sentido positivo, rela- cionado aos direitos humanos, Estado de direito, democracia etc, Trata-se sempre do universalismo abstrato da mercadoria (do sistema produtor de mercadorias), incluindo todos os seus momentos repressivos, O caréter destrutivo desse universa- Tismo, a destruicio das estruturas sociais e ecol6gicas, a acei- taco da enorme miséria, a sujeigao da humanidade & dina. ica sem sujeito dos processos de mercado € ao “desenvolvi- mento” da logica utilitarista empresarial: tudo é minimizado como “o prego do progresso” ou “o prego da modernizacio”. O universalismo abstrato do sistema produtor de mercado- rias se alimenta desde 0 Renascimento (e acima de tudo, & claro, a partir do Tuminismo e do inicio da industrializagao) das estruturas nao universalistas das antigas sociedades agré- rias, Essa situagao leva 0 observador, a posteriori, a operar com 0 pressuposto ticito de um “capitalismo” uniforme, nao importa se em perspectiva critica ou afirmativa; um aspecto da achistoricidade autoafirmativa da modernidade. A légica ‘econémico-empresarial de mercado, porém, mesmo nos pat- ses ocidentais mais desenvolvidos ainda no século XX, nao a- A dani der seus itas a estava de forma alguma estabelecida no sentido autoevidente atual, e tampouco o estava a democracia no sentido atual.'* A primeira metade do século XX destravou pela primeira vez a verdadeira dindmica democrética de mercado, ¢ a forma aca- bada desse sistema tanto nas estruturas sociais internas quan- to na sua forma como “sistema-mundo” (Immanuel Wallers- emergiram tardiamente. ‘A fungao modernizadora do nacional-socialismo consiste essencialmente no fato de ele ter desenvolvido de maneira es- pecifica 0 universalismo abstrato da forma-mercadoria no in- terior das estruturas sociais existentes. Com isso, continuou- -se um paradoxo apresentado em todas as sociedades moder- nizadoras desde o final do século XVIII: nomeadamente, 0 fato de que o universalismo tem de se fundir em seguida com ‘uma “particularidade de ordem superior’, na linha povo ~ nagao - sistema do trabalho abstrato. Frente as particularida- des pré-modernas das variegadas estruturas internas de tipo familiar, local e feudal, o universalismo se alinhava &s novas meta-particularidades dos espagos abstratos da economia na- ional. O préprio universalismo manteve e desenvolveu uma forma nao tniversalista, a igualdade e liberdade foram sepa- radas da igualdade e liberdade dos “outros” através das fron- teiras; a concorréncia teve um momento de implantagao de » Valeria a pena investigar as limitagbes do direito de voto, do Estado de direto, da liberdade de circulacdo e do universalistmo em palses como Inglaterra, Franga e até mesmo nos EUA (as chamadas “velhas democra- cias ocidentais, com o seu suposto caréter exemplar) do ponto de vista da historia da democracia eda critica da democracia até 0 século XX. Hi, na- turalmente, material abundante sobre isso, sobretudo os documentos dos vis (e sua perseguicio legal ou polictal) no entanto falta uma apresentagdo tebria consistente, porque ot6pico s6 pode ser adequadamente compreendido de um ponte de vista emancipa- (Gro “pés-democratico” 48 ADeMOCRACR evoRA SEUS OS nao concorréncia, mas derivado da propria metaconcorréncia nacional. Uma vez que 0 nacional-socialismo desenvolveu a liberdade e a igualdade nesse espaco das economias nacionais, le tinha de insistir com especial énfase em tais momentos de implantagao. ‘Os meios foram a ditadura “totalitaria” (contrastando com as formas de dominagao de oligarquias e estamentos, ainda nao plenamente modernas) e o “principio do Fuhrer”, a forma modernizadora do autoritarismo. Abstendo-se das fantasticas elucubragées ideoldgicas (germanidade etc), & evidente que nao se trata de uma especificidade do fascismo e do nacional-socialismo. O culto centralizador do Fiihrer e, paralelamente, a formagao de uma “massa” uniforme como outro lado do mesmo processo se impem até hoje através da historia da modernizacao em quase todos os paises, indepen- dentemente de coloragdes ideol6gicas."* Depois de atingido 0 objetivo oculto sob embrulho ideolégico (¢ assassino), 0 acon- dicionamento e a incubagio totalitéria podiam e deviam ser dispensados apés @ Segunda Guerra Mundial. Como em todo processo de modernizacéo, o momento externo ditatorial néo foi superado, mas internalizado. © alinhamento coetcitivo, violento e “totalitério” dos individuos ao sistema de reprodu- gio desenvolvido da democracia de mercado em sua forma nova € muito mais abrangente (s6 entao o célculo econdmi- co-empresarial incorporava os itimos ramos tradicionais da + Mesmo os detalhes que aparecem na formagio das massas, na militar ‘zagio do sistema educacional etc. sto estranhamente idénticos: por exem- plo, o hébito de ter criangas ov soldados uniformizados nas escola for- ‘mando letras, slogans ou simabolos “vivos” que 6 podem ser reconhecidos do alto ou a grandes distncias (por exemplo, em estidios). Pode-se ver nisso um “exercicto do individuo abstrato", um treinamento de univers lismo no qual os sujcitos mondidicos constituem as moléculas do sistema produtor de mercadorias. Accra doa sus tos 49 produgao) podia, aps a Segunda Guerra, funcionar “por si ‘mesmo’, jé que sua implantago havia sido bem-sucedida. Ao contrario do que diz a ideologia democratica, o momento “to- talitério” ndo desapareceu, apenas se deslocou para a autodis- ciplina internalizada dos sujeitos da mercadoria realizados: de agora em diante, todos podiam ser o seu préprio Hitler ou Stalin em nome do totalitarismo democratico sem sujeito, ou seja, da forma-dinheiro e da forma-mercadoria alastrada por todos os poros da sociedade. Apés esse estagio se completar, a nova crise estrutural do fim do século XX naturalmente nao conduz de volta is velhas ditaduras modernizadoras. Os su- jeitos da mercadoria autonomizados encaram 0 universalis- mo total da forma-mercadoria reagindo de maneira violenta e irracional, mas como aquilo que se tornaram, como étomos sociais que no podem mais ser conformados em um novo nexo total ditatorial, O nexo social existe pres forma do universalismo abstrato, ou seja, no sistema produtor de mercadorias realizado, cujos critérios de dominagao ima- nente nao sao criticaveis, mas que agora tampouco podem seguir se desenvolvendo, ‘A formagio autoritaria fordista do nacional-socialismo re- presenta para a Alemanha o tiltimo impulso de uma via de modernizagao “recuperadora” excepcional.” A construgao \mente na 170 conceita de sodernizagio recuperadora® aplca-se sobretudo ao so- cialismo de Estado e aos pales pés-coloniais do Terceiro Mundo no séeu- Io XX. Mas mesmo no século XIX js havia trajetrias nao simultineas de desenvolvimento, Essa primeira “modernizagio recuperadora’, que ainda podia ser bem-sucedida sob as condigdes do mercado mundial e de pro- dutividade do século XIX, ocorreu exemplarmente na Alemanha, Itélia e Japio. fascismo, 0 nacional-socialismo e o regime imperial japonés fo +am os iltimos ramos ditatoriais dessa via de desenvolvimento, enquanto a Inglaterra e a Franga jé haviam produzido suas ditaduras centrais de modernizagio em épocas anteriores; nos EUA nunca houve o problema ‘de uma ditadura de imposigio do sistema produtor de mercadorias contra

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