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= 2 - a > > > > > a a > = > 2 @ 2 2 a a = 2 @ 2 > 2 2 2 2 = 2 2 = = = = > = = = = = 2 = “ As Artes Indigenas e seus Multiplos Mundos Lux Vidal Em colaboracéo com Esther Castro Sérgio Baptista da Silva Regina Pollo Muller Fabiola Andréa Silva Aristoteles Barcelos Neto Elsje M. Lagrou Rafael de Menezes Bastos Lucia Van Velthem INSTITUTD — SOCIOAMBIENTAL. data / asd dose As Artes Indigenas e seus Miltiplos Mundos A Berta Ribeiro, in memoriam Com 0 sono eu sonho, durmo e sonho. Os outros véo cantando. Eu canto para tornar felizes os outros Que cantaréo meu sonho. Outros cantam no sonho E eu durmo e sonho o que os outros cantardo Poema Xavante* Grinalda Munduruka, Aquisiedo de H. de Buren ‘Santarim, 1853 Museu de Etnografia, Geneva * Giacarria, 8. e Heide, A., Xavante Pove Auténtico, 1984:271, o a o ° o a a o a o a a o « a a a ry a a - a o ° a o o rs o a 5 VPIPIPFIFI III IP FPFIFPOPHOIII PIO III PIII DIDIDD j yD I. A Arte: Um conceito Ao abordar manifestagées estéticas®, procura-se pardmetros conceituais e fisicos que definem uma obra de arte, Os termos habitualmente empregados no mundo ocidental para beleza e arte estdo cognitivamente atrelados aos valores e conceitos correntes nesse universo, Outras culturas podem ndo possuir essas categorias. De acordo com a viséo antropolégica, concebe-se a experiéncia estética como aprendida, culturalmente definida, sem que no entanto descartem-se as possibilidades de investigaciio a partir de conceitos elaborados pela psicologia, pela teoria da comunicagdo e pela estética. E possivel entéo afirmar que o fendmeno estético é feito, digamos, de experiéncias em tom qualitative. O produtor, a platéia e 0 objeto interagem dinamicamente, cada um contribuindo para a experiéncia, que é ao mesmo tempo estética e artistica, Algumas formas de arte, no entanto, conseguem ser mais bem sucedidas oo provocarem essas respostas qualitativas, Por outro lado “para uma apreciagto justa de obras estimadas e consideradas especiais é fundamental indagar a seus produtores e criadores seu significado e importancia"®. Vérios autores, cldssicos (Boas e Mauss) e modernos, tém contribuido para uma compreensio mais adequada do que seriam as artes indigenas. Segundo Geertz* um discurso genérico sobre a arte parece indtil. A acto sobre a matéria ndio é criadora por si mesma. E preciso remeté-la a dinémica geral da experiéncia humana, Sendo assim, os trabalhos de arte acabam por ter uma significagéo cultural localmente elaborada. 2 Vérios trechos nesta parte inspiram-se do texto *Antropologia Estética: enfoques tedricos contribuigdes metodolégicas” de Lux Vidal e Aracy Lopes da Silva, in Grafismo Indigena, Lux Vidal (0rg.), 1992 Studio Nobel/FAPESP/EDUSP. 3 Van Velthem, L. Os Primeiros Tempos e os Tempos Atuais: Artes e Estéticas Indigenas. Catélogo: Mostra 500 anos, artes visuais. Brasil: Fundaciio Bienal, 2000. “ Geertz, C. Local Knowledge: further essays in interpretative anthropology, Nova York, 1983. ENING J FPIFFPFPIPFIHDIHHPIPID J 3 yvID ag ba Hoje, a teoria do simbolismo (Munn, N. e Turner, V.)° constitui um quadro de refer€ncia que pode integrar, em pé de igualdade, o estudo de sistemas socicis, religiosos, cosmoldgicos e estéticos. Inaugura-se assim uma atmosfera mais propicia para a exploragiio do simbolismo nas manifestagées artisticas. Segundo W. M. Vincent®, quando acontecimentos estéticos operam para integrar simbolos significativos, eles proporcionam aos individuos percepgdes elegantes, poderosas e claras, incorporadas em certos conceitos locais de relacdes relevantes. “O papel do fenémeno estético-simbélico, incorporado em processos sociais concretos, permite descobrir tanto o valor da criagdo estética nos comunidades locais, quanto a operacéo do fendmeno estético como veiculo da integracio entre conhecimento e experiéncia’. Nos povos indigenas, segundo Lévi-Strauss, a arte é um meio de significar e significar algo intimamente relacionado 4 natureza como fonte de inspiragdo. Para este autor a passagem da natureza 4 cultura encontra na arte uma manifestacéo privilegiada, Por outro lado, Lévi-Strauss vé a arte como um sistema de signos, algo que possui uma certa estabilidade, tradi¢tio, 0 que permite como no caso da linguagem, a comunicacdio. Mas, contrariamente a linguagem, hé nesse tipo de signos uma relagdio material entre significante e significado, “hé uma mimesis do objeto 07 nas formas que o representam'”. E por isso que a obra de arte é apreendida, inteligivel, diretamente através da experiéncia sensivel. O autor propée, ainda, pensar a relagéio entre arte e sociedade segundo uma abordagem seméntica que considera em sua andlise o referente, o contexto eo destinatério. * Munn, N. Walbiri iconography: graphic representation and cultural symbolism in a Central ‘Australian Society. Tthaca & London, Cornell University Press, 1973. Turner, V. The forest of symbols: aspects of Ndembu ritual. Ithaca & London, Comnell University Press, 1973. 5 Vincent, W. M. “Ethnoesthetics and the ritual context: art and experience omong the Tariana indians of Brazil" Research proposal University of Chicago, 1970. 7 Hénaff, M, Claude Lévi-Strauss. Pierre Belfond, Paris, 1991, ES a FVII HFFFFIFFIPHFFHPF FPF FHFHFPFFH PFI PFI, FTI HDD No capitulo "Uma Sociedade Indigena e seu Estilo", consagrada aos Caduveo, em Tristes Trépicos®, o autor vai um pouco mais longe na sua interpretacéo. E necessério agora “mostrar de maneira especifica como um tipo de sociedade se diz, ainda que de maneira invertida ou idealizada através de certas formas plésticas determinadas", ‘Nas suas intrincadas e belissimas pinturas faciais, os Caduveo representariam ndo 0 que eles de fato sto, mas 0 que eles gostariam de ser - A arte aqui, conteria mensagens filoséficas para uma reflexto sobre a sociedade e suas instituigdes - consequentemente, a relagiio entre arte € sociedade néio é direta, mas faz intervir como acontece com os mitos, um raciocinio analégico. "Lévi-Strauss consegue nos convencer de que a emocio estética esté diretamente ligada ao valor cognitivo da obra de arte ou, inversamente, uma emogio estética acompanha sempre o ato do conhecimento" (Hénaff). Padréo de pintura facial Cactveo. Colecdo Esperidido Rocha, 1956 Museu Nacional RI Outra contribuicéo importante para a teoria da arte indigena da Amazénia ‘Tropical sto os trabalhos que apontam para a importéncia dada nestas sociedades & “corporalidade”. O “corpo" seria uma matriz de sfmbolos e um objeto de pensamento, e ocuparia uma posigéio organizadora central. A fabricacéo, decoracaio e transformacéo dos corpos (incluindo aqui os “artefatos") stio temas em torno dos quais giram as mitologias, a vida cerimonial e a organizacéio social’, * Lévi-Strauss, C. Tristes Trépicos. Sd Paulo: Companhia das Letras, 1998 [1955], ° Seeger, A; Da Matta, R. e Viveiros de Castro, E, "A Construgdo da Pessoa nas Sociedades Tndigenas Brasileiras", Boletim do Museu Nacional, 1979, 32:2-19. Pra) mrs FPVPPPFOFFFSPOPO FOO BOO PSO FSO >FFOFOFS SSO FOaOOTOTIIIIID LES Mais recentemente, vérios autores vem mostrando de forma renovada a atualidade € a importancia do xamanismo, propondo novos modelos e novas perspectivas, redimensionando os conceitos de natureza e cultura’. Segundo Descola, diferentemente do dualismo moderno que distribui humanos e no humanos em dois dominios ontolégicos mais ou menos estanques, as cosmologias amazénicas estabelecem uma diferenca de grau, néio de natureza entre os homens, as plantas e os animais. Nhiakrekampin, Xam@ Kayapé-Xikrin desenhando o sobrenatural. Foto: Lux Vidal, 1978 Bemoti, chefe Kayapo-Xikrin (aldeia do Cateté) contande mites. oto: Lax Vidal, 1974 Descola, P, "Estrutura ou Sentimento: o RelagBo com o Animal na Amaz6nia" im Mana, 4:23-45, 1998. Viveiros de Castro, €, “Os Pronomes Cosmolégicos e o Perspectivismo Amerindio" in Mana, 2(2), Editora Contracapa, Rio de Janeiro, 1996, DIVDIFFHOSHH SS SHS SHS SSS SHH SHS FISH ISH DDS HHH HDHD DD»D fu mya Fe Certos artefatos, objetos artisticamente elaborados, como as méscaras, os bancos zoomorfos ou mesmo desenhos de entidades sobrenaturais no papel, hoje em dia, stio muitas vezes, em contextos especificos, considerados réplicas vivas das entidades sobrenaturai: “representadas e consideradas gente como nés, com alma, consciéncia reflexiva e intencionalidade, pessoas capazes de experimentar ‘trocar mensagens com os homens" (Descola). Banco zomorfo Galibi-Marworno. Foto: Lx Vidal, 1996 Méscare de tamandus Kayopé-Mekragnoti. Méscara de tamandud. Aquisigdo: Gustaf Verswijver, 1981 Desenho de Nhiakrekampin. Museu de Emografia, Geneva ama Kayapé-Xikrin, 1974 PXFIFPFDIPDO IFO OSPF SSOP POPPI IAP POO DSI FIFO FIO FOOOOOIFO DO IDO IRIdDD D Jd em 1992, Galois! mostrou como a iconografia pode ser um meio de comunicacdo privilegiado com o mundo sobrenatural, onde espécies naturais e/ou sobrenaturais € motivos relacionados aos mortos e aos inimigos constituem grafismos, expressando néo categorias sociais, mas categorias de alteridade césmica, por meio das quais 0s povos indigenas definem por oposicdo Idgica, sua prépria especificidade, ou seja a natureza ou a esséncia de sua humanidade. Esta vistio de mundo repercute diretamente na producdo de artefatos e seu embelezamento, Uma panela de barro, entre os Wayana, povo Caribe do Tumucumaque, pode ser considerade um Ser, que nasce, vive e morre assim como os seres humanos, que também precisam ser “fabricados" e embelezados para se apresentarem de maneira correta aos membros de sua sociedade e as entidades sobrenaturais™. . A origem mitica dos motivos pictoricos e grdficos e das artes figurativas é atestada em vérios grupos sua vinculagdo com as cosmologias indigenas, enquanto teorias nativas globalizantes, faz-se evidente. Assim, segundo as concepcées Wayana a decoragéo das peles (humanas, vegetais e sobrenaturais) ordena 0 universo e a decoragdo permite a reintroducdo da Natureza e da Sobrenatureza na sociedade. Na iconografia, corpos e artefatos decorados s&o “painéis de Homem Wayana tecendo um poraxi cesto comum. Rio Paru de Leste - Pard Foto Lucia Van Velthem, 1978 reproducio sociocosmolégicos'” Gallois, D. “Arte Zconogréfica Weidpi" in Grafismo Indigena, 1992. 2 Van Velthem, LO Belo € @ Fera. Tese de Doutorado, Departamento. de Antropologia USP, So Paulo, 1995, ® Van Velthem, L.H. A Pele de Tulupere, Uma Etnografia dos Trangades Wayana. Belém-Paré, ‘Museu Porcense Emilio Goeldi, 1998. ~ ~ ~ a9 PIFPFIOOFPF PPI HOPI, KIID , yoy Concomitantemente a estes desdobramentos teéricos os recursos audio- visu s&o cada vez mais utilizados. Permitem uma visto estética muito mais abrangente, mostrando conjuntos de rituais importantes, suas miltiplas seqiiéncias e atividades associadas. Os video-makers que muitas vezes hoje sto indios, tiveram que recorrer em vérias ocasiées a "efeitos especiais" para marcar a passagem de um dominio do cosmo a outro e acompanhar assim a produgéio de imagens dos xaméis rnas suas viagens onfricas a “outros mundos" Apesar do niimero crescente de trabalhos sobre artes indigenas, com ampla contribuigéo e autoria dos préprios indios, existem poucas publicagdes” que apresentem uma sintese destas artes e nenhuma atualizada, 0 que se torna uma tarefa urgente tendo em vista a qualidade e diversidade das pesquisas, a reorganizagio do acervo de certos museus, a participagio de artistas pldsticos indigenas no cendrio das artes contempordneas e a globalizagdo da cultura, especialmente no campo da misica e da transmisstio de imagens. Qs livros sobre “Arte Brasileira”, sistematicamente, tratam das artes indigenas nas pdginas iniciais, diferenciando apenas a arte rupestre e arqueolégica das obras das sociedades nativas histéricas, e para estas, sem nenhum critério de tempo e espaco. Com a arte produzida pelo colonizador instaura-se a grande ruptura e a arte produzida pelos indios simplesmente desaparece. Ou melhor os indios sofrem uma estranha transfiguraio, reapropriados em obras “cléssicas”, belfssimas, de artistas estrangeiros e brasileiros'®, Galleis,D.¢ Carll, V. Segredos da Mata, Apina - Conselho das Aldeias Waiapi/Video nas Aldeias - CTI, 1998 Voladto, V. Yakwa - 0 Banquete dos Espfrites, Video nas Aldeias CT, 1995. ‘iiller, R. e Valadtio, V. Morayngava - A Porta se Abriu e Eu Entrei, Instituto de Artes - UNICAMP, Video nas Aldeias - CTE, s/d. 48 até a década de 80, os trabalhos de Berto e Darcy Ribeiro eram os Unicos a tratar do assunto, além de Heloisa Fenelon Costa que pesquisou entre os Mehinaku, Pode ser citado ainda: Ribeiro, B. 6, iciondrio de Artesanato Indigena, Ed. Ttatiaia/EDUSP, 1988. "6 Para apenas citar dois exemplos: Indios flechando uma onga, 1830, de J. M. Rugendas, e Moema, 1865, de Victor Meirelles. In Tradigéio e Ruptura, Sintese da Arte e Cultura Brasileiras, Fundacdo Bienal de Séo Paulo, Nov. 1984-Jan, 1985, pp. 121 e 127. 10 Prevalece, assim, a estratigrafia e a datactio pelo carbono 14 para a arqueologia e verifica-se a auséncia de uma “histéria da arte" indigena. Tudo sempre se reduz ao paradigma “antes e depois do contato" que se alastra ao longo dos séculos, sendo que os etndlogos tem sua parte de responsabilidad por esta lacuna, Processo de confeccdo de cesto Wayana Autor do cesto: Araibd. ‘Aldeia Maxipwrimo, Alto rio Paru de Leste, Para Foto: Paula Morgado, 1992 PPP PE PPS OPPS se STR eeeeeeeeee eee S ~ a a u IL. A Unidade na Arte Indigena: O Elo Primordial “A arte tem o poder de extrair do pensamento cada coisa As imagens significam para 0 povo a sombra de sua sabedoria’. Raimundo Leopardo Ferreira Ticuna’” Uma das grandes fontes de inspiragiio da arte indigena tradicional e mesmo contemporanea, apesar das mudancas e novas adaptagées, é 0 mundo dos sobrenaturais, onde residem os “mestres das artes" que por intermédio dos xamiis visionérios transmitem imagens poderosas, cantos expressivos, normas e regras para a confecgio dos objetos e motivos decorativos, considerados modelos pelos artestios, artesds, artistas indigenas. Um ponto de vista, evidentemente, nativo. Por esta razdo muitos “artefatos", incluindo aqui a danca, a misica, as narrativas miticas e mesmo o corpo humano, ndo séo vistos apenas como representagées - belos objetos expostos para a contemplactio, ainda que este aspecto seja também importante para os indigenas, segundo os seus préprios cGnones - mas sim como réplicas vivas destes outros “seres" com os quais se comunicam em contextos preestabelecides. E esta visiio e filosofia que per toda a arte indigena e que de alguma forma Ihe confere uma certa unidade, um estilo caracteristico, apesar da grande diversidade de suas manifestacdes concretas e especificas, diferenciando-a das artes ocidental, africana e asidtica como jé 0 havia percebido Darcy Ribeiro em seu artigo seminal e sensivel sobre Arte Endia'*®. Estilo barroco, luminoso ou sombrio, mescla de figuras distorcidas, exageradas e de marcas geométricas, enigméticas, repetitivas e bem comportadas. Uma paixdio de se revelar e ao mesmo tempo de se ocultar. 1 Curricular Nacional para as Escolas Indigenas. MEC-SEF,, Brasilia, 1998, “arte India’ in SUMA Etnolégica Brasileira. Vol. 3. Vozes/Finep Petrépolis, 1986. * Ribeiro, POVIPFIFIOPOOFIOI OO SOO FP FOODS POFFO OSPF ORF OOO OOO OO DID ® 2 Figuras antropomorfas com pintura decorativa e enfeites de cobeca. Possivel méscara antropomora. Toca do Salitre— Sitio arqueolégico ‘Sto Raimundo Nonato ~ Piaué Foto: Silvia Maranca (MAE-USP, FUNDHAM), 1973 Figuras zoomorfa (cervideo) e antropomorfa com pintura estilizada. Toca do Salitre~ Sitio arqueolégico Serra Nova - So Raimundo Nonato ~ Piawi Foto: Silvia Maranca (MAE-USP, FUNDHAM), 1973, 1B Parece cada vez mais evidente - e as pesquisas mais recentes o comprovariam - que os indios conseguiram preservar uma notdvel autonomia no campo da produgio artistica, tanto no que diz respeito ao contetido como a forma, mesmo quando usam técnicas ou ambientacdes modernas e a despeito das concessdes inevitéveis, para adaptar certos artefatos ao mercado, E como se, neste campo especifico, se integrassem a sociedade envolvente "virando as costas ao ocidente", Na arte, os indios concordariam plenamente com a visto “perspectivista”’. O outro, que realmente interessa, para a construgio da alteridade inspiradora, é um outro semelhante e de ordem cosmolégica, ‘A bem da verdade excetuando as pecas mais antigas, tudo 0 que existe nos acervos dos museus pode ser encontrado ainda hoje ou nas aldeias ou nas lojas de arte india, A solidez dos alicerces conceituais tradicionais de ordem cosmolégica, parecem explicar ainda uma perceptivel continuidade nas expressées artisticas indigenas desde as pinturas rupestres até os desenhos mais recentes dos Ticuna expostos em ambiente de galeria e em belissimas pul Esta visto explica também a capacidade de afirmacio e de resisténcia dos povos indigenas dizimados e desprestigiados durante séculos, e que se utilizam da arte para sobreviver. Um caso extremo seria os Pataxé de Coroa Vermelha, no sul da Bahia, Os Guarani do litoral paulista sdo outro exemplo. Recentemente langaram um CD, definido por eles como um segredo ¢ uma revelagdo, ou nas palavras dos préprios indio: ® Viveiros de Castro, E,"O que ler na Ciéncia Social Brasileira” in: Micelli, S. org.) Antropologia, vol. I, Ed, Sumaré/Sdo Paulo, ANPOCS/CAPES/Brasilia, 1999, ® Gruber, J. 6. (Org.) O Livro das érvores ~ Ticuna, Organizacdo Geral dos Professores Ticuna, Bilingies, Benjamin Constant, Amazonas, 1998 ¢ O Calendério Burti 2000, Editora Gréfices Burti Ltda. 71 Cd Nainde Reko Arandu ~ Meméria Viva Guarani, 1999. eee sC sf ee 14 “Qual é 0 significado, qual é 0 caminho que o Guarani sempre se guia, Os mais velhos falam. Outro dia mesmo estdvamos conversando: ‘Nés no temos mais jeito de esconder’. Quando voc néo mostra, o povo branco fala que néio tem mais tradigio e de repente vocé mostra e ¢ valorizado, Através do CD todo mundo vai ver que 0 Guarani tem isso. Guarani existe. Vai existir. A misica fala isso’. Com este olhar talvez possa-se entender melhor o impacto estético produzide por algumas obras clissicas da arte indigena, incessantemente reproduzidas, em livros sobre a arte “brasileira’, revistas e catélogos, Nas réplicas de Mestre Cardoso de Icoaraci e mesmo nas alegorias das Escolas de Samba. Sto os muiraquitas esverdeados, objetos liticos em forma de sapo ou de ré as figuras antropomorfas da cerémica arqueolégica, como a Marajoara, de Santarém e Maracé: as méscaras dos encantados Ticuna, do Alto SolimBes ou mesmo os mais recentes rururis com suas pinturas altamente policrémicas; a ‘maruana, roda de teto dos Wayana, ornamentada com lagartixas sobrenaturais: a cestaria dos Kayabi que se destaca pela exceléncia técnico-ornamental; os bancos de madeira do Alto Xingu; as bonecas licocds, modeladas pelas indias Karajé, de grande beleza pléstica: a pluméria monumental dos indios Bororo, Kayapé e Karajé: os enfeites de pena dos Kaapor do Maranhéo ¢ as antigas coifas e grinaldas multicoloridas dos Munduruki do Tapajés. Isto para citar apenas alguns exemplos de uma longa lista, DOPDDO DHHS HSA SDS D PHD DOOD DPD DD DODD DDD PDO DOD DDO DD D>DdDD MM bael r 5 Vaso com gargalo, cultura Santarém Colegao F Barata Museu Paraense Enilio Goeldi, Paré ‘Maruana Wayana com figuras sobrenaturais,feita para vend 2000 Foto: Patrick Pandini "Tawve Rukaia” Panela de cerémica Asurini para uso ritual com apliques em relevo de biches que ‘representam xanés primordiais. Colegdo Regina P. Miller, 1980 >vPPF ,FFPFPFTFPOIOOPOPFPPFPFRPVeFFPFFPFPPFPFFv,eFrFFeD 16 Todas estas obras denunciam uma mesma vontade de ultrapassar as condig&es da existéncia humana, como os Kayapé-Xikrin do Pard que se considera aves”, profundamente insatisfeitos com sua condicéio apenas terrestre, impossibilitados de usufruir de uma vistio panorémica, entenda-se estética, do mundo e de suas belas aldeias circulares. Ou, inversamente, estas obras afirmam o desejo, durante os grandes festivais, de trazer ao convivio dos humanos estes “seres* do outro mundo, belos, perigosos ds vezes, “gente como nés" no seu habitat, espiritos invisiveis neste mundo, tornados porém visiveis pela arte do mito narrado, do canto convidativo, das flautas e dos clarinetes, da danca, da escultura e da fura, instrumentos da “revelacéo”. Ritual Xikrin. Lux Vidal, 1990 * Giannini, TLV. A Ave Resgatada: a impossibilidade da leveza do ser. Dissertacio de mestredo, ‘S80 Paulo, FFLCH/USP, 1991. Ei 7 “Entre os Suyd do Alto Xingu, 0 corpo pode ser visto como um instrumento musical e a sociedade uma orquestra, onde se opera a recriagiio vocal das relagées sociais. Além disso, a musica cuja origem é do mundo animal, transcende os atributos apenas humanos, acerta a sua vocagiio espiritual e cosmolégica, reafirmande os acordos de reciprocidade entre 0 mundo animal e 0 mundo dos homens?**, Muitas vezes, durante os grandes rituais os humanos agradecem as cures concedidas pelos sobrenaturcis, oferecendo-Ihes fumo e bebidas fermentadas a base de mandioca, milho e mel. Na ocasiéio, como entre os Waurd™, recebem também as visées estéticas. Visto deste @ngulo a arte se insere em uma rede de trocas e de ajuda miitua, base da sociabilidade nas sociedades indigenas da América Tropical. Néo se pode esquecer, entretanto, que desde 0 século XVI, época da colonizacio, as artes indigenas se manifestam e evoluem sempre dentro de um contexte colonial co qual os “painéis de reprodugdio sociocosmolégica” e 0s “mestres das artes” néo stio imunes (mas sim atentos). O grau de autonomia da arte indigena, articulada ao "sagrado” varia muito no tempo e de acordo com as vicissitudes da histéria. Pode chegar ao limite da sobrevivéncia como pode em outras ocasiées ressurgir com forca renovada, O que néo muda sto a natureza da fonte de inspiractio e as estratégias utilizadas para sua interpretactio € manifestacdo. 23 Seeger, A. Why Suyé Sing. A Musical Anthropology of an Amazonian People, Cambridge University Press, 1987. * Barcelos Neto, A. Arte, Estética e Cosmologia entre os indios Wauré da Amazénia Meridional Dissertacio de mestrado, PPGAS Universidade Federal de Santa Catarina, 1999. ,vVueweeee ee eee eee eee ae ae ae eee eee eee eee eee eee , 18 ‘Ngewane € uma drvore encantada que existe desde o principio do mundo, Ela é grande, assim como uma samaumeira, e tem leite, assim como o tururi €.a sorva, Cresce em lugares distantes, dificeis de se encontrar: nas cabeceiras dos igarapés, nos igapds ena beira dos lagos. (..) Além dos peixes, no Ngewane se criam outres animais, como jabuti, jacaré, tracajd, veado, queixada, macaco, tamandud, tatu, anta, copivara, cobra, calango, cutia @ ainda todas as aves.” (Gruber, Jussara Gomes (org.). O Livro das Arvores. Benjamim Constant: Organizacdo Geral do Professores Ticuna Bilingiies, 1997, p.36-40.) ug ba ee NG III. A Diversidade: A Arte em Contexto Quando queremos transmitir a imensa riqueza das expresses artisticas indigenas, precisamos nos render ao especifico, ao detalhe, ao trabalho de campo, & observacdo participante, ao diélogo sensivel com os artistas, ao envolvimento. Pesquisas recentes tem contribuido para uma compreenstio diversificada e co mesmo tempo mais abrangente e aprofundada das manifestacées artisticas indigenas. A seguir, escolhi apresentar alguns exemplos paradigméticos relatados, resumidamente, pelos préprios pesquisadores. (ZU K al x Motives de pintura corporal Kayapo-Xikrin, Desenhos Lax Vidal ~ a ~ a ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ 20 Trangados Krahé: Uma Abordagem Visual”® “Os indios Krahé, habitantes dos cerrados no Estado do Tocantins, pertencem ao grupo lingiiistico Jé - Timbira, Com interesse nas questées etno-estéticas e ciente do potencial do desenho como meio de abordagem dos objetos, passei a desenhar a forma e os trancados dos cestos dos indios Krahé, desvendando 0 significado de grafismos puros, nem sempre perceptiveis para um olhar menos atento. O desenho € um didlogo silencioso entre 0 objeto escolhido e o artista cientista. Os olhos, a mente e a méo integram-se em horas de absoluta concentragtio. E a percepgtio que vai revelando detalhes e oferecendo ao mesmo ‘tempo particularidades que formam um conjunto, ampliando © nosso conhecimento do objeto. desenho possibilitou saber que no monocromatisma dos trangados dos indios Krahé hé uma imensa variacéo de linhas, de ornamentos ou de iroc, isto é, enfeites, como posteriormente me explicaram os Krahé. Formei uma colectio de desenhos, que levei ds aldeias e pude, entéio, conversar com eles sobre os seus trangados. Os trangados Krahé inserem-se na sua organizactio social e na sua cosmologia. Para os Krahé tanto a sociedade como o cosmo & dual: dividido em duas metades que regem e explicam o mundo dado. ‘As metades denominam-se Wakmeie e Katamie, Pertence & metade Wakmeie tudo que relaciona-se ao sol: calor, cor vermelha, vegetais que vicejam ao sol, frutos maduros, folhas secas, animais de terra firme, pessoas que recebem seus nomes relacionado a esse campo de caracteristicas. Pertence 4 metade Katamie tudo que podemos atrelar & lua: noite, escuro, preto, ‘mide, chuva, égua, frio, vegetais do inverno, da umidade, frutos verdes, folhas novas, bichos da dgua, pessoas com nomes referentes a essa metade. 25 Castro, £.O Cesto Kaipé dos Krahé: Uma Abordagem Visual; Dissertacéo de Mestrado, Departamento de Antropologia da USP, 1992. PPPPEDYPR DAMA D DAA D APPEARED ag ba a Os trancados sintetizam esses dois sistemas de metades. Séo como a pele humana, um todo. Para que isso aconteca os Krahé tecem tomando as seguintes providéncias: 1. Como matéria-prima usam unicamente fibras feitas & partir da palmeira Buriti (Mauritia vinifera). E um vegetal especial para os Krahé porque pertence tanto & metade Wokmeie quanto & metade Katamie, 2. Como técnica de trancade usam © chamado Trancado em Diagonal, no qual as fibras sto cruzadas aos pares, segundo dois procedimentos bésicos, que resultam em duas diferentes diregées, a saber: a. kokaigor : € assim denominado 0 trangado com diregiio horizontal. b. kotxua : é assim denominado o trancado com direcio vertical. Os termos kokaigor e kotxua integram-se na classificagtio fundamental: kokaigor é katamie porque é horizontal como as dguas e kotxua é _wakmeie porque é vertical como cresce 0 milho. Das variagdes de kokaigor e kotxua resultam inimeros ornamentos, iroc, enfeites especiticos de cada tipo de objeto, como ilustraremos com 0 cesto do tipo Kaipé. Tad oid EWN 22 Enfeite Katamie : Kokaigor Enfeite Wakmei : Kotxua Neste contexto, o que é Belo? E belo quando é tecnicamente perfeito; é belo quando o ornamento é correto para o tipo de objeto; é belo quando a fibra de buriti esta corretamente tratada. Nestas condigées temos, como dizem os krahé "o jeito certo de se fazer" ¢ é Impéi, isto é, Belo, que se dito com certa intonagtio de voz indica : extremamente Belo!" PPV FFF FPKHDHFFF FFF FPF PID HHI DHIFFI PFPA IIID SPT) me 23 Os Grafismos Kaingang: Marcas Imunes ao Tempo”* A utilizagéo de dados histéricos para o entendimento de sistemas de representacdo visual arqueolégicos, principalmente os grafismos rupestres e ceramicos, entre outros, é hoje moeda corrente na vida académica. Por exemplo, pressupée-se uma continuidade concreta entre o registro arqueolégico e a sociedade Kaingang parte-se do principio do estabelecimento de um modelo Kaingang, sua visto de mundo e sua forma de sensibilidade para o empreendimento da analogia etnogréfica, ou seja, para interpretar e lancar luz sobre o sistema de representacées visuais presente na cerémica e na arte parietal dos antecedentes desta sociedade. O objetivo é desvendar novas possibilidades de entendimento da cultura material das chamades "tradigées arqueolégicas ceramistas locais" do Planalto Sul-brasileiro. Isto também se aplica a objetos da cultura material antigos e depositados em museus. A andlise € interpretacéo dos grafismos Kaingang e Proto-jé meridionais partiu do pressuposto de que o poder estético neles contido deve ser procurado nas relagées das expresses estéticas com outros modos de atividade social. Por exemplo, na figura abcixo, temos um cesto com tampa do inicio do século XX que simboliza os lagos matrimoniais entre os Kaingang. Trata-se de homem e mulher pertencentes a patrimetades opostas e exogdmicas, representadas visualmente na cultura material. kre (cesto) com krité (tampa) Museu lio de Casinos ~ 8S: Foto: Sergio Baptista da Siva * Pesquisa de Sérgio Baptista da Silva, Arquesiogo e Professor do Departamento de Antropologia da UFRGS e doutorando do PPEAS da USP. PXIFFPFIFFOO OOOO SFO OO FO ODP PO ODI OOOO FIO FO ODI SO ODO DDIID»D »D SPT) sh yervrv7yvrvvvnvveereavyryervPrPevPxyaxyFxaOearFerFrFrFrFrFrFr,rrD * ISA 24 O cesto representa uma mulher da metade Kainru-kré casada com um homem Kamé, estes dois nomes stio ainda os dos herdis culturais kaingang na mitologia deste povo. Todos os Kaingang, conhecidos seus ou néo, que a vissem usando seu Kré, cesto, saberiam de sua condi¢@o de casada com um homem Kamé, pois na tampa que representa a mulher estdo grafismos kainru-kré e no bojo, que representa o homem, encontram-se os grafismos kamé, Os dois grafismos, Kong-aiir, Kaingang sto 0 ratei, uma marca comprida e aberta, pertencente aos Kamé, e 0 ra-ror, uma marca redonda - ou quadrangular nos trancados - e fechada, pertencente aos kainru-kré. Neste caso especifico, de objeto com grafismos diferentes, tem-se a interferéncia de dois niveis do sistema de representacies visuais: 0 morfolégico, através dos signos bojo / homem / parte maior ; tampa / mulher / parte menor e 0 aréfico, por intermé: formas que compéem o cesto dos grafismos tei e ror, presentes em cada uma destas Outro exemplo é 0 do grafismo ra ror @, ou seja, muitas marcas dos kainru- \ Grafismo ra ror é em Kuré (manto tecido com fies de urtiga), de 1906. ‘MAE ~ USP Foto: Sergio Baptista da Silva Grafismo ra ror € em cerémica da “fase” Guctambu - "Tradi¢do" Taquara. ‘Acervo do Museu de Arqueologia do ROS Foto: Sergio Baptista da Silva Grafismo ra ror é em galerias subterréneas ‘Morro do Avencal - Urubici -SC Detathe de foto de RoHR, 1972 J ,;Fyrervresyryre yrPpPPypre ypyppypeppepvpyeryeeseyrevpeverree ;,D 25 Na cerdmica arqueolégica Proto-j6 meridional, este grafismo pode ser observado na “Fase" Guatambu da "Tradi¢éo" Taquara, datada de 950 A.D. Nas galerias subterréneas do Morro do Avencal - Ubirici/SC, este grafismo aparece gravado no arenito. Em Sao Paulo, em 1906, alguns anos anteriores & época da chamada “Pacificagdo" dos Kaingang paulistas, este mesmo grafismo ocorre em outro tipo de suporte: um kurd, manto tecido com fios de urtiga. Atualmente, o ra ror € encontra-se pintado no corpo dos homens kainru-kre de Trai/RS, que participam de" dancas guerreiras ", exibidas pare autoridades ou em ocasiées especiais, dentro de um contexto politico de luta pelas terras expropriadas e marcagtio de identidade étnica. Grafismo ra ror é em pintura corporal. Kaingang de Iral~ RS - 1986 Foto: Sergio Bapista da Sitva PPD PVF PPRPHH IID POI FPHPIDID d POP IIPFOP PDI DDD 26 Q Modelo Tayngava e a Panela Tauva: Grafismo e Cerémica Asuri “O grafismo Asurini é um bom exemplo das complexas inter-relagées entre artes plasticas e os domfnios da natureza, do sobrenatural e de humano. Os Asurini, de lingua tupi-guarani, habitam as margens do curso inferior do Xingu no Pard. A despeito das condicdes adversas - um abalo demogréfico de 50% da populactio, na época do contato em 1971 - os Asurini continuaram a realizar seus rituais religiosos e a praticar sua arte, 0 que muito os auxiliou para sobreviver. Entre eles, a arte ultrapassa a funcéo utilitéria e decorativa para ocupar 0 lugar de uma manifestagtio intrinsecamente constitutiva de uma cultura indigena tradicional. Neste quadro convém assinalar a importancia da arte gréfica nesta sociedade ‘assim como o papel da mulher na sua execuctio e reproducéio. A mulher € ao mesmo tempo a principal responsdvel pelas atividades agricolas, base da economia do grupo - dai a importancia da oleira - e pela transmisstio de principios e nogdes fundamentais da cosmologia e filosofia Asurini através de signos visuais. As representacées grdficas sto essencialmente abstratas, seu repertério & padronizado, mas passivel de milltiplas recombinagées. Os Asurini aplicam estes desenhos geométricos em diferentes suportes (corpo humano, cerdmmica, cabacas) ¢ com diferentes técnicas (pintura, gravura e tatuagem). A maioria dos desenhos é uma readaptagéo de um padrdo estrutural conhecido pelo nome tayngava (imagem, réplica do Ser humano). Este padréo é entendido como uma regra formal, a partir da qual os desenhos sio elaborados. ® Texto elaborado a partir de dados de Milller, RP. Os Asurini do Xingu (Histéria e Arte), Ed. da UNICAMP, Campinas, 1990 ¢ de dados transmitides pessoalmente por Fabiola Andrea Silva, etnoarquedloga, doutoranda do PPGAS - USP. nS a7 A cerdmica, por exemplo, é decorada com uma imensa gama de motives, com diferentes significados, sendo que a maioria deles apresenta como unidade minima o tayngava. Este conjunto de motives padronizados sto adaptados aos suportes em que séo desenhados, estabelecendo uma relacéo intima entre grafismo e forma e entre Foto Aldo Lo Curto, 1995 forma e significado. As regras de estilo possuem uma caracteristica formal, a geometrizactio infinita do espaco, que corresponde a um modo de percepctio totalizante: a técnica do negativo/positivo e que revela o modo como uma realidade visual é percebida: 0 claro/escuro, fundo/superficie configuram imagens. Sendo assim, a geometrizacéio infinita do espaco articula diferentes dominios césmicos através de abstracées visuais portadoras de contetidos simbdlicos. E de fato, na praxis Asurini, os espiritos participam do cotidiano e os xamés por sua vez os visitam, podendo, nas suas viagens onfricas, se transformar em divindades. ea uae eS 2edoaellouk yA ASAD Padréo decorative de pega de cerémica Asurini. Motivos tayngava e pirinyna. Desenhos de Filipeli Jr a a a o a a a o a o o o a o o a o a a o o a a o a o o a a a a a o a o o . o a o - - - 28 A cerémica Asurini é também uma expressto plistica de destaque num conjunto simbdlico constitufde por objetos, ornamentacio corporal, coreogratia, canto e mésica instrumental, que configuram 0 aspecto expressive, performético durante o ritual cosmogénico, o Turé, Durante a danca do Turé, a ceriménia que se desenvolve ao redor de uma grande panela de barro, a tauva rukaia, constitui-se em um dos principais momentos deste ritual, relacionado a vérias instituigdes: & celebraciio dos mortos, a guerra e @ iniciagdio dos jovens. Sobre 0 corpo desta POFFO OOOO panela hé apliques em relevo, que representam animais que, supde-se, constituem uma isca para atrair 0 espirito feminino da dgua, a tava e a cobre, entidade sobrenatural que danca ao redor da panela na mesma ocasido. Panela de barro Asurini, “Tauva Rukaia’, Colegio Regina P. Miller, 1980 FovPFPFPFPFOOOOO ODO POP DIODIIRDD sees reePr eee eee ele 29 Para entender as miltiplas mensagens transmitidas pelas artes plisticas aqui em pauta, a cerémica, os grafismos e os apliques, é preciso entender que os apliques sao feitos por um homem, 0 chefe da casa grande onde se desenvolve 0 ritual e que os animais representados sto os pajés primordiais, especialmente o sapo, © primeiro kauariva, instaurador do ritual. Hoje, no final da ceriménia, os jovens iniciados pulam por cima da panela, tal como o faziam os peixes por cima do pari, armadilha tradicional, obedecendo ao seu dono, o jacaré, também um kauariva, Durante os rituais xaménicos masculinos, o lugar para onde se dirigem os espiritos é a tocaia, uma cabana de folhas, vista pelos Asurini como uma armadilha para capturar animais. No Turé que também inclui um ritual xamanistico - feminino desta vez - realizado para invocar a tauva e a Cobra, o lugar para o qual se dirigem 08 espiritos fica associado & panela, artefato fundamental para a realizactio da atividade feminina por exceléncia: a preparacio do alimento". ‘Mather Asurini pintando panela de barro, Foto: Fabiola Silva, 1998 “Cabe ressaltar, ainda, que além dos objetos que eles mesmos produzem, os Asurini também reafirmam sua identidade cultural e estabelecem esta correlactio de diferentes dominios césmicos através da significagéo dos vestigios arqueolégicos existentes em seu territério, como por exemplo, da cerdmica arqueolégica - esta eles atribuem a personagem mitica _Anumai que no passado se retirou para um outro mundo em companhia de xaméis primordiais. yrvyrvryyFyFPFPIFIFFFIFPII HF HFHH IF FFP HI HII DH SD 30 No caso Asurini é possivel constatar que eles consideram os vestigios ‘arqueolégicos como sendo os testemunhos da existéncia ¢ presenca de seus herdis e ancestrais miticos. Neste sentido, é preciso entender a incorporagéio dos vestigios arqueolégicos no cotidiano Asurini - independentemente de uma continuidade histérica comprovada entre eles e aquelas populagdes que os produziram - como um dos aspectos da constructio e manutencto de sua identidade étnica na medida em que sdo elementos materiais que falam para eles sobre a sua ancestralidade e contribuem para a manutencéio de sua meméria cultural. Para o arquedlogo estes dados evidenciam que o interesse e a interpretactio dos vestigios do passado néo € exclusividade do seu saber cientifico, podendo ser objeto de discursos diferenciados, embasados por diferentes visées de mundo e constituindo-se em um rectirso cultural essencial para as comunidades vivas. Além disso, 0 interesse arqueolégico em observar e registrar aspectos relativos ds concepgées estéticas e de produgéio dos itens materiais reside na sua relevaincia para a compreensdio dos diferentes processos culturais que influenciam e afetam a formacio dos registros arqueolégicos. Em se tratando da relacdo entre funcionalidade e decoractio dos vasilhames, por exemplo, estes dados podem vir a contribuir na construgtio de modelos que superem as andlises meramente tipolégicas das vasilhas, chatando a atencdo para a importancia de aspectos como a dieta olimentar, a organizagio social e os simbolismos culturais subjacentes a elaboractio das formas cerémicas e & sua utilizagto. Finalmente e, acima de tudo, pode-se dizer que as populagées ceramistas histéricas constituem um campo privilegiado de pesquisa e aprendizado para os ‘arqueslogos. A possibilidade de. vislumbrar a dinamica dos processos de producto e uso da cerémica, bem como de sua simbologia, implica na necesséria complexificacdio do campo interpretative desta drea de interesse da arqueologia”. vyvvrvervrvvvrrreFFaPeFePPvPrFrFTFIFIOIIOOROAPOFFPFFOIOIOI IID 31 Golocando Sonhos E Transes No Papel “Entre os Wauré, grupo indigena de lingua Aruak do Alto Xingu, o xamanismo encontra-se no centro da producdo artistica. Sonhos, transes, doencas graves, morte, assim como as festas de mdscaras e flautas constituem os contextos de visualizagéo do “ sobrenatural " e, mais recentemente os desenhos sobre papel recolhidos por antropélogos. Todos os artefatos da cultura material (méscaras, bancos e panelas zoomorfas) e também os desenhos "geométricos" que os decoram, foram um dia sonhados, vistos em transe pelos xamds ou doentes graves ou transmitidos pelos ancestrais, que os teriam aprendido diretamente com os personagens miticos donos dos conhecimentos artisticos, Tais imagens reportam- se a um universo visual vastissimo e em geral abordam temas pertinentes as classificacdes cosmolégicas e aos seres " extra humanos " do cosmo conhecidos como Apapaatai e Yerupéhé. “Apapaatai Yanuma Kopi", monstro aguttico bicéfale. Autor: Ajokuma. Colepo Aristételes Barcelos Neto, 1998 Téenica: lis de cor Foto: Thomaz Harvez *® Barcelos Neto, A. Arte Figurativa na Amazénia, mimeo, 1999. (Resumo) Bera) SN 32 O Wauré tem grande prazer em explorar a figuracdo e as possibilidades técnicas dos meios e suportes, sejam estes tradicionais (argila, palha, madeira) ou recém introduzidos, Cerémica zoomorfa Wauré. Colegio Ariststeles Barcelos Neto Outrossim, comparando-se os desenhos sobre papel feitos com tintas, Idpis de cor, grafite € pastel nas décadas de 1970 e 1980 com as coletadas em 1998, evidencia-se uma considerdvel complexificagdo formal e temética recente, 0 que indica que estd em curso um amadurecimento e interesse dos Waurd por essas novas técnicas de expresstio artistica. A postura dos artistas indigenas em relaciio co material oferecido pelos antropélogos é bastante critica, exigindo cada vez mais materiais que proporcionem bons resultados plésticos e estéticos. a - o o o a a a a o o a o a o a a a a - o . e . a - , PFIPIFIIO OOO POO OPAPP POPP PPO IO POIPO IDO IO ROI SOOO IDO DOdIIIIDI»D»D 33 As imagens de Apapaatai e Yerupéhd existem de modo "bruto" nos sonhos e descrigées verbais dos xaméis, elas formam um esqueleto conceitual da imagem figurativa e que talvez passaria desopercebida caso néio fosse expressamente solicitado aos xamds 0 seu registro em suportes bidimensionais. Papel, ldpis e tinta constituem um contexto especial de (re) criacdo das imagens oniricas a partir da expresstio plistica. O estudo particularizado dos desenhos de cada xamd - visiondrio aponta significativas variacées interpretativas de cada tema, “Sopukuya wd Yuluma. apapactar iynain, ‘Autor: Akuna. Colecdo Aristételes Barcelos Neto Foto: Thomas Harres Nesse contexto de criagtio das imagens de seres "sobrenaturais", deve- se ter claro que os Apapaatai e seus conhecimentos artisticos (pinturas, ornamentos, dangas, misicas, festas) sdo sempre descobertas pessoais: a experiéncia com o “sobrenatural " é essencialmente de ordem individual. Cada desenhista, através da interpretacio visual de seus sonhos, contribui para a constituicde de uma iconografia do cosmo Wauré e torna-se de fato um discurso native sobre este cosmo. Nesse sentido, a escolha metodolégica do desenho sobre papel parece uma estratégia minimamente capaz de dar conta do processo de producdo da imagem figurativa e de atingir as nocBes a ela ligadas yvvvrvrvrvvvvvPvPvPvPvDPPOdDO POOP OOO OOO OOOO OPPO DIORA RID»® 34 (Os conhecimentos iconogréfico e musical sobre os seres “extra humanos sobrenaturais", reportam-se diretamente aos dominios da doenca e da cura, O universo simbélico da arte Wauré esta fortemente ligado ds relacdes entre os homens e os Apapaatai, sendo estes os "donos" de quase tudo 0 que se conhece em termos de artes expressivas. As execugdes de uma cancdo, de uma panela, de um desenho, de uma pintura corporal ou de uma médscara esto carregadas de importante sentido magico, pois 0 que esté ali ndo é uma criagdo puramente humana; é a transferéncia de uma parte do mundo dos seres “sobrenaturais" para dentro da vida humana. Esse processo de transferéncia se dé através da miniaturizagéo de um mundo poderoso e perigoso, com os quais os humanos convivem. A miniaturizagéo por meio de obras de arte, é um dos poucos meios de" domesticar " os Apapaatai. Sao os xamas - visionérios que informam aos demais individuos os cénones pldsticos e estéticos aprendidos entre os Apapaatai, que de fato sao os modelos originais (e origindrios) para a producdo artistica. Como se observa, a transposicéio da imagem dos seres sobrenaturais para 0 papel tem implicages simbélicas muito sérias para os Waurd, a mais importante talvez seja o status potenciaimente vivo da imagem: 0 desenho ndo é uma mera representacdio no sentido ocidental, ele é, antes de tudo, uma duplicagéo do Ser em causa, a sua presentificacto". "Kamalu Hai" carregande nas costas suas ponelas cantoras. Desenho em papel - Autor: Kuri. Colegdo Aristteles Barcelos Neto

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