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Carla da Costa Dias e Antônio Carlos de Souza Lima

O M us eu Nac i o na l e a const rução do

A rtístico N acional
pa tri mô ni o hist órico nacional

Castro Faria distinguiu o que chamou

e
Introdução

P atrimônio H istórico
de um “nacionalismo retórico” daquilo que
Em uma apresentação realizada no seria um “nacionalismo como política de
seminário A Invenção do Patrimônio – Estado”, vendo o primeiro como prévio
Continuidade e Ruptura na Constituição ao segundo, e desnaturalizando a relação
de uma Política Oficial de Preservação no simplista feita entre a Revolução de 1930
Brasil, posteriormente publicada em livro e o surgimento de ideias nacionalistas,
homônimo, Luiz de Castro Faria procurou ou mesmo de políticas governamentais

do
localizar a criação de um patrimônio histórico marcadas pelo nacionalismo, vocábulo

R evista
e artístico nacional, colocando-a em contexto que deve ser assim percebido como
e relacionando-a ao surgimento de práticas e dual e polimórfico. Apoiando-se em sua
conceitos, e a outras instituições que estavam extensa erudição, mostra-nos no texto
(e estão) marcadas pelo signo do nacionalismo, como nos anos anteriores a 1930 havia
reportando-se, portanto, a uma dimensão que já uma expressiva produção retórica,
tem sido pouco abordada nos estudos sobre com variados matizes nacionalistas. Mais
o patrimônio: a dos processos de formação de importante ainda, destacou como políticas 199

Estado, em particular do sistema de Estado.1 governamentais de cunho nacionalista


estavam já em curso, mencionando a
1. Ver Castro Faria (1995). Da síntese biográfica contida no site
da Academia Brasileira de Ciências (disponível em <http://
Campanha da Nacionalização da Pesca, em
www.abc.org.br/sjbic/curriculo.asp?consulta=lcfaria>,
consultado em 28/02/2009), consta a seguinte passagem: não apenas é importante ressaltar a proximidade de Castro Faria
“Mestre de várias gerações de professores e especialistas no a Rodrigo Melo Franco de Andrade, mas também sua extensa
vasto campo da antropologia, o professor Luiz de Castro Faria participação como integrante do Conselho Consultivo do Sphan
começou a sua trajetória profissional em 1938, participando, e seu papel de formulador das bases da primeira legislação
como representante do Museu Nacional (MN) e do Conselho brasileira de proteção ao patrimônio arqueológico (Castro
de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas (CFE), Faria, 1993:1-25; 27-53). É preciso apontar a notável exceção
da última grande expedição etnográfica do século XX, a que constitui a tese de doutorado de Márcia Chuva (1998),
Expedição à Serra do Norte, que foi chefiada por Claude Lévi- que lança luzes até hoje ainda por serem mais bem seguidas
Strauss. Desde 1936 era ‘praticante gratuito’ do MN e finalizava na direção de análise que considera o patrimônio uma prática
também o curso sobre Museus, onde ministrou seus primeiros de Estado, e parte dos processos de formação de Estado tanto
seminários sobre etnografia, arqueologia e antropologia física. quanto dos de construção da Nação. Para as bases analíticas de
Teve também intensa participação nas atividades culturais da tais ideias, ver Elias (2006) e Abrams (2006), dentre outros.
cidade, participando do círculo de intelectuais (em torno de O presente texto assenta-se amplamente na pesquisa realizada
Rodrigo Melo Franco de Andrade) ou fundando o Movimento por Carla Costa Dias para sua tese de doutorado (Dias, 2005). Desenho de Hermann
Social Brasileiro, onde deu seus primeiros cursos sobre literatura Beneficia-se ainda, das reflexões de Antônio Carlos de Souza Kruse. Januária
Acervo: Museu Nacional
brasileira”. Castro Faria formou-se de fato em biblioteconomia, Lima sobre administração pública no Brasil. Ver, dentre outros,
pelo curso do Museu Histórico Nacional. Para fins deste artigo, Souza Lima (2002:11-22).
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1920, a que poderíamos aduzir a política com muita ênfase, inclusive, além de “patrimônio
para os povos indígenas.2 etnográfico”. Houve, porém, revendo uma citação
Ao se pautar em referências empíricas para do parecer da Comissão da Câmara dos Deputados,
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se desfazer do corte ilusório de 1930 como que recomenda ao plenário a aprovação da lei de
marco para uma total reestruturação do Brasil, criação do Sphan – antes de 1937, portanto –
Castro Faria apontava o quanto essa data nada citação feita em um texto publicado nos Arquivos
mais fazia que reificar a biografia de Getúlio do Museu Nacional, uma referência explícita à
Vargas como “biografia da nação”. Foi a instalação conferência internacional reunida em Atenas,
do regime ditatorial em 1937 que marcou em 1931, acerca do patrimônio arqueológico. O
e
P atrimônio H istórico

a ruptura real com as possibilidades de agir modelo era, portanto, o da Arqueologia clássica,
anteriores, assim como a instauração dos padrões o greco-romano. Isto implica outra concepção de
autoritários segundo concepções e formas de monumento, absolutamente inaplicável ao Brasil.
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implementação de políticas governamentais Tive, na época, um trabalho enorme para


marcadas pelas pretensões a enorme controle convencer Rodrigo Melo Franco de que ele não
social e invenção de rituais que celebravam a podia tombar os sambaquis, como ele queria,
ilusória unidade nacional. Nesse sentido, Castro influenciado por Paulo Duarte, porque isso
do

Faria destacou como instituições que começaram acabaria com qualquer pesquisa arqueológica no
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a ser criadas antes de 1937 ganharam força Brasil.Da mesma forma, se entrasse em vigor uma
depois, situando-nos na trama em que a ideia lei que fora aprovada por GetúlioVargas, proibindo
de patrimônio histórico e artístico nacional foi a exploração das jazidas fossilíferas, toda indústria
institucionalizada no Sphan, em 1937. de cimento ficaria paralisada.
No entanto, ele mencionou apenas A definição de “patrimônio etnográfico” sempre
de modo implícito a participação foi um outro problema. Enquanto eu era membro
200 importantíssima do Museu Nacional (MN) do Conselho do Patrimônio, vivi reiteradamente
nesse processo, talvez pela sua imersão em tal a dificuldade prática de propor a preservação de
processo e pelo quanto isto lhe era óbvio, um qualquer coisa que não se referisse a barroco e
questionador dos mais argutos da instituição à a colonial, com suas igrejas e santos tidos como
qual sua vida profissional esteve intensamente sinônimo de verdadeiro “patrimônio” (Castro Faria,
ligada. É assim que nos diz: 1995:37-38).
Quando fui bolsista na França, um dos
encargos relacionados à bolsa era estudar as leis Optamos por essa longa citação porque
sobre proteção arqueológica. Parecia-me estranho ela tem o duplo peso de realizar uma análise
que se falasse aqui em “patrimônio arqueológico”, e apresentar um depoimento de um ator que
partilhou do momento fundador do Sphan,
2. Quanto à política indigenista, ver Souza Lima (1995). ainda que não tenha sido como parte de seus
Outros autores, como Elisa Pereira Reis (1998:67-90), já quadros. Além das relações de proximidade
chamaram a atenção para o fato de que muito do que se
institucionalizou após 1930 – mas que só se fez sentir com com o “grupo de Rodrigo”, Castro Faria
força real no período ditatorial (1937-1945) dos governos
de Getúlio Vargas – foi concebido e planejado nas primeiras
integrou o Conselho Consultivo do Sphan
décadas do século XX. na qualidade de representante do Museu
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Nacional. Como antropólogo, fez uma Emílio Goeldi)”, configurando o que chamou
carreira ímpar nessa instituição, cujas intensas de “era dos museus”, numa apropriação muito
relações com o Sphan, em algum de seus direta da expressão de George Stocking Jr.3

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aspectos, serão a matéria deste texto. Anderson (1991) já apontara que
Certas marcas estruturantes da prática aspectos fundamentais na construção nacional
patrimonial do Sphan/Iphan estão esboçadas passam pela dimensão que todo museu
nesse trecho, em que Castro Faria torna apresenta de exibição. É importante destacar
evidente a dificuldade com o que não é também o papel das ideias antropológicas
material, “tombável” e “tutelável”, com o contidas nas exposições de museus, tanto

e
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que não pode ser remetido a uma vulgata nos de história natural como os citados
da “história da arte ocidental” (dos estilos acima, quanto nos que só surgirão depois,
arquitetônicos, a bem dizer), mal digerida os de matiz etnográfico propriamente dito.

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ainda hoje, quando a hegemonia do saber Em suma, é importante questionar de que
arquitetônico parece mitigada pela maior maneira se formulou o que se desejava que
presença da história e alguma presença dos fosse apreensível por um público amplo.
saberes antropológico e arqueológico na ideia Tal dimensão implica considerar redes

do
de um patrimônio imaterial. sociais e articulações por vezes distintas

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Nosso interesse no presente texto é, daquelas que desembocaram numa outra
pois, mostrar a interação constante entre o forma de institucionalização das disciplinas
Museu Nacional, particularmente na esfera antropológicas. Isto é, aquelas que desaguarão
da antropologia, e o Sphan, para tanto muito tempo depois na pós-graduação,
procurando um ângulo pouco explorado na questões que têm sido superestimadas na
pesquisa sobre a história da constituição do formulação de uma história da antropologia
patrimônio histórico e artístico nacional e na no Brasil, com graves consequências para as 201
do próprio saber antropológico no Brasil. periodizações estabelecidas, para a escolha das
Ou seja, aquele que se refere à constituição instituições consideradas e dos conteúdos a
de coleções científicas e de sua exibição serem analisados.
em exposições. Mariza Peirano (1981) Assim, como já se disse, se o tema da
nos chamou a atenção para a relação entre construção da nação é recorrente no caso do
antropologia e nation-building. Lilia Schwarcz
3. Não sendo esta a oportunidade para tanto, cabe mencionar
(1989:20) se propôs a analisar “... os anos que haveria muito para se discutir sobre esta simples frase,
que vão de 1870 a 1930 – período em que os e sobre o texto mais amplamente (já que este acabou por
figurar como parte relevante de um livro em dois volumes
museus etnográficos nacionais conheceram sobre a história das ciências sociais no Brasil), a começar pela
três momentos distintos (nascimento, caracterização reducionista de três museus de história natural
como museus etnográficos. Tendo sua pesquisa limitada aos
apogeu institucional e decadência), que principais periódicos dos três museus, Schwarcz (1989:45-67)
conformam como que trajetórias comuns a desconhece aspectos que contradizem, em larga medida, seu
argumento mais geral e que estariam evidenciados, ao menos
estabelecimentos locais: o Museu Paulista, no caso do Museu Nacional, por uma pesquisa que levasse em
conta todas as publicações da instituição no período. E que,
o Museu Nacional e o Museu Paraense de pretendendo ser histórica, lidasse com o material constante dos
História Natural (futuro Museu Paraense arquivos do mesmo museu.
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estudo do período que ficou conhecido como Se a definição do âmbito do patrimônio
Estado Novo e na história do patrimônio histórico e artístico nacional, como política
histórico e artístico nacional, é preciso governamental, ocorreu nos anos 30 e 40,
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trazer à tona os processos de formação de passando também pelo Conselho Nacional


Estado em jogo na institucionalização e de Fiscalização de Expedições Artísticas e
generalização das crenças na sua necessidade. Científicas (Grupioni, 1998), dentre outras
Tais processos não devem ser confundidos instituições, as demandas pela criação de uma
com os relativos à construção nacional, ação de Estado com tais funções parecem
ainda que extremamente entretecidos, sob vir de mais longe no tempo e encontrar
e
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o risco de se apagarem temporalidades no Museu Nacional um de seus locais de


distintas como a análise de Castro Faria ancoragem. Assim, na ata da 365ª sessão da
nos chama a atenção.4 Definir uma cultura congregação do Museu, realizada em 27
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“autenticamente brasileira” significou de agosto de 1907, lê-se que o professor


construir um acervo, um patrimônio, Domingos Sérgio de Carvalho, titular
reconhecido como emblema e componente da Seção de Antropologia, Etnografia e
do que Benedict Anderson (1991) Arqueologia, propunha que o Museu pedisse
do

denominou de “comunidade nacional ao Congresso Nacional a “regulamentação


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imaginada”. Todos esses movimentos tanto da saída das coleções científicas do país,
implicaram o entramado de redes sociais, bem como a do serviço de catequese dos
de redes institucionais, bens materiais índios” (Museu Nacional, 1904-1911:53).5
estatizados, na produção, por um corpo de O controle do patrimônio cultural e da
funcionários do sistema de organizações população considerada relativamente incapaz
estatais, de crenças para serem generalizadas acabaria mais tarde, sabemos, sob o signo da
202 a uma coletividade – a “nacional” –, em tutela (Souza Lima, 1995; Chuva, 1998).
normas, códigos e rotinas sob a caução A gestação das classificações do que é
de um pretenso monopólio do exercício passível de tombamento e “patrimonializável”
legítimo da violência. E tudo isso operando tem, pois, uma genealogia mais recuada,
sob um âmbito espacial (um território) que que poderia ser ainda muito mais explorada
aos poucos se foi formando, para além dos analiticamente a partir de pesquisas empíricas
mapas oficiais, pela dispersão das unidades de diversas ordens. Se tal produção de
administrativas de distintos serviços do classificações oficiais encontra na criação
governo federal, insuflando a criação do Sphan, em 1937, um momento de
ou capturando outros serviços estaduais decantação, tinha já antecedentes nos
ou municipais. Ou seja, isso implicou a processos de tombamento característicos dos
montagem de uma política de governo e museus. E, dentre os existentes à época, é
gestão para o patrimônio.
5. Sobre Domingos Sérgio de Carvalho, ver Souza Lima
4. Para uma apresentação cristalina da diferença e conjunção (1989:33-36). Livro de ATAS da Egrégia Congregação do
dos conceitos relativos aos processos de formação de Estado e Museu Nacional, no período de 1904-1911. Manuscrito. Sobre
construção da nação, ver Elias (2006:153-166). Domingos Sergio de Carvalho, ver Souza Lima, 1989:33-36.
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inegável a proeminência do Museu Nacional o “popular” surge na literatura dissociada do
no corpo da administração pública federal. Museu Nacional, mas julgamos que esse é um
A ideia da identificação como nacional de dos mais fortes elos entre o Sphan o Museu

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certos conjuntos de objetos como integrantes Nacional no período Vargas. Como mais uma
de um patrimônio cultural coletivo, por vez nos lembra Castro Faria:
parte dos atores concretos que participaram
dessas agências estatais, pressupõe, portanto, (...) Observe-se que, além da proteção de
atos de colecionismo e sistemas arbitrários sítios arqueológicos, de coleções de antropologia
de valoração e significação historicamente e etnografia indígena, preocupou-se também com

e
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determinados, que em si devem ser vistos a proteção de objetos de arte dos neobrasileiros,
como partes de processos mais amplos de neologismo vulgarizado por Roquette-Pinto, e que
estatização da vida social. Colecionar é revelava uma postura dos antropólogos do Museu

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uma prática indissociável dos museus: é Nacional – não usar a expressão folclore
por ela que se constituiu o corpo edificado, (de fato, nunca aparece nos textos de seus
materializado dessas instituições estatais, pesquisadores). As expressões etnografia
operada por rotinas administrativas que sertaneja (Roquette-Pinto) e etnografia

do
guardam e transmitem histórias. regional ocupam o seu lugar. (Castro Faria,

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O Museu Nacional, como instituição 1999:318. Grifos nossos).6
governamental cujas funções em uma
“coletividade brasileira” estavam marcadas O sertanejo, o regional, o folclórico, o
no próprio título de nacional, era um dos popular, remetidos cada um desses termos a
lugares destinados a se elaborar e disseminar regimes distintos de concepção e enunciação,
ideias de nação. E isso se daria por meio de deram ensejo a ações de colecionamento
diferentes maneiras de manipular a cultura estatizado e de encenação nacional por meio 203
material de povos variados, e de coletividades dos dispositivos que são as exposições. Isso
culturalmente distintas que, por esses mostra que instituições como os museus
processos, acabaram também por se tornar podem significar uma peça importante também
um único povo. Lugar de destaque das ciências para ampliação de redes sociais territorializadas
do homem nas primeiras décadas do século (o que se poderia recompor, recuperando as
XX, o Museu Nacional é uma instituição cuja malhas sociais que permitiram colecionar), de
história é chave para pensarmos processos fronteiras simbólicas, que, nos processos de
de representação cultural, de elaboração formação do Estado, fornecem as bases para
de um discurso sobre o outro. O discurso elaboração de sentimentos de pertencimento
sobre o “povo” e o “popular” no contexto de a uma comunidade imaginada como única
um governo totalitário, buscou, por meio e nacional. Vale lembrar, como ressalta
de diversas formas, símbolos e expedientes Dominique Poulot (2003:35), que a cultura
cênicos, construir a imagem do todo unitário
que deveria ser a nação sob a sua tutela. Em 6. Sobre Edgard Roquette-Pinto, ver, dentre outros, Castro
grande medida, a maioria dos estudos sobre Faria (1998:149-171).
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
do patrimônio, pela norma do direito romano, e os expedicionários.7 Nesse mesmo ano,
está associada à herança paterna, que deveria foi criada pelo governo provisório pós-
ser transmitida num processo contínuo. Um revolucionário a Inspetoria de Monumentos
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“bem de herança”, transmitido de pais a filhos, Nacionais (IMN), ligada ao Museu Histórico
é o principal atributo a ser reivindicado. Assim, Nacional, primeiro órgão oficial no Brasil
o Estado assume a “paternidade” da nação e destinado à defesa dos monumentos e
constitui o que será identificado e transmitido incumbido, entre outras funções, do restauro
ao povo como patrimônio, para que o preserve e da inspeção dos monumentos nacionais e
e retransmita às gerações futuras. do comércio de objetos artísticos. A IMN
e
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manteve essas atribuições até 1937, quando


foi criado, como já mencionamos, o Serviço
O patrimônio em de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
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práticas e serviços (Sphan), ligado ao Ministério de Educação e


Saúde (MES). Desde que assumiu esta pasta,
A preocupação com a proteção dos bens em 1934, Gustavo Capanema desenhou um
culturais apropriáveis como signos nacionais projeto de reforma ministerial em que seriam
do

passou a ganhar novos contornos na década instituídos vários órgãos, dentre eles o Sphan.
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de 1930, indicando passos progressivos de A diretriz nacionalista do Estado Novo


um processo de estatização. A proteção de instituiu políticas governamentais de cunho
um patrimônio nacional passou a ser uma assistencialista e disciplinador. A formação do
preocupação do Estado, que criou órgãos para “povo” passava por um processo educativo,
gerenciar o que viria a ser considerado como formativo de um caráter nacional. O popular
tal. Em 1933, o Ministério da Agricultura começou a ser incorporado ao universo simbólico
204 criou o já referido Conselho de Fiscalização dessa nação única, percebido como “espontâneo”
de Expedições Artísticas e Científicas no e “natural”. Afinal, o “outro” não precisava ser
Brasil, finalmente dando forma ao sonho de reconhecido, mas deveria ser representado. A
Domingos Sérgio de Carvalho, colocando no integração nacional era, nesse momento, uma
mesmo plano tanto as excursões de turistas proposta acima de tudo educacional. O MES
que colecionavam souvenirs quanto aquelas de tinha como uma de suas propostas desenhar um
caráter científico. O Conselho de Fiscalização projeto de reforma educacional baseado na ideia
determinava que nenhum espécime botânico,
zoológico, mineralógico ou paleontológico 7. As ações do Conselho não se pautavam pela qualidade ou pela
especialidade das coleções apreendidas. O que interessava não
poderia ser levado para fora do País, a eram as coleções, mas a constituição de acervo e a ampliação do
menos que existissem similares em algum “tesouro nacional”, encaminhando-se o material para instituições
de pesquisa, principalmente o Museu Nacional. Com a criação
dos institutos científicos do Ministério da do Sphan, o Conselho de Fiscalização passou a atuar junto com
Agricultura ou no Museu Nacional. Além as expedições estrangeiras e particulares, evitando a evasão do
patrimônio nacional, e o Sphan encarregou-se do tombamento e
disso, todo o material científico colhido pelas da preservação de monumentos. O Conselho foi extinto no final
da década de 1960, quando houve uma estagnação nos estudos
missões estrangeiras deveria ser dividido de cultura material e, consequentemente, no colecionamento
em partes iguais entre o governo brasileiro etnográfico nos museus brasileiros.
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
de unidade nacional. Nesses quadros, a função de construção e de disseminação dos
didática dos museus ganhou mais força ainda produtos de uma ciência nacional, pautado
com o projeto de Mário de Andrade para um no conhecimento dos elementos naturais e

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Serviço do Patrimônio (Chuva, 1998). Muito em humanos que se inscreviam num território,
função dos interesses etnográficos de Andrade, este, por sua vez, também em construção
os museus passaram a ser vistos não só como (Ribeiro, 2005). Para Edgard Roquette-
espaços destinados a cultuar o passado, mas Pinto a educação era a via para empreender
principalmente como parte de uma cultura que mudanças e transformar o país em uma
contribuiria para construir e formar as futuras nação entre as demais do mundo “civilizado”.

e
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gerações. Os museus teriam a função de inspirar Roquette-Pinto dava curso à ideia de
atitudes cívicas mediante a preservação do construir uma visão positiva do povo
patrimônio da nação. brasileiro e uma memória que exaltasse o

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Era o que propunha Edgard Roquette- passado e justificasse o presente – uma ideia
Pinto, diretor do Museu Nacional entre 1926 de redescoberta. Os trabalhos desenvolvidos
e 1931, como uma forma de assegurar a no Museu ganharam assim novos contornos.
“construção inteiriça” da nação, conquistada A crença em que o Museu Nacional

do
por meio de árduos percursos: que se era uma instituição voltada para o povo

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conservassem com carinho os monumentos, permeou a administração de Heloisa Alberto
por mais simples que fossem, tais como os Torres, que, após ter sido vice-diretora
retratos que as famílias guardavam de sua do Museu no período de 1935 a 1937,
gente velha.8 inaugurou em 1938 dezessete anos de gestão,
findos um ano depois da morte de Vargas.
(...) Mas além de tudo isso, entre os Dona Heloisa, como era chamada, filha de
documentos da nossa nacionalidade – haveis de Alberto Torres, teve uma atuação efetiva na 205
me permitir a ousadia desta inclusão, – conto os trajetória dos museus de história natural e
artefatos e os utensílios característicos dos sertanejos na constituição da política científica e de
do Brasil, material etnográfico que os nossos museus gestão do patrimônio histórico e artístico
devem começar a recolher e a guardar. (Roquette- nacional, durante o governo de Getúlio
Pinto, 1927:100-101). Vargas.9 Quando assumiu a direção do Museu,

O Museu Nacional já possuía, desde 9. Heloisa Alberto Torres (1895-1977) iniciou sua vida
a década de 1920, um projeto educativo acadêmica em 1918, ingressando no Museu Nacional como
auxiliar de Edgard Roquete-Pinto, sendo efetivada na
instituição em 1925. Torres sempre trabalhou nas coleções
etnográficas da Divisão de Antropologia e Etnologia. Era
8. Roquette-Pinto, em seu discurso de recepção no IHGB, próprio do trabalho no Museu a restauração e a preparação
levantou a questão relativa à conservação de monumento das coleções e a organização dos dados relativos às peças e
como forma de assegurar a construção inteiriça conquistada ao tombamento. Como pesquisadora da Seção de Etnologia,
em árduos percursos. Para o autor, conservar com carinho os ela formou e organizou coleções de arqueologia e etnografia,
monumentos, por mais simples que estes fossem, tais como e reuniu coleções para o Museu. Chefiou a Seção de
os retratos que as famílias guardam de sua gente velha, era Antropologia e Etnografia entre 1926 e 1931, tornando-se
fundamental, pois destruí-los sob pretexto de progresso, vice-diretora entre 1935 e 1937 e, finalmente, diretora entre
impiedosamente, não seria trabalhar pelo nosso bem. 1938 e 1955 (Castro Faria, 1998:203)
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
Torres pretendeu fazer de sua disciplina, a Museu Nacional em 1938, que cooperasse
antropologia, um instrumento científico para com o Sphan no projeto e na execução do
a preservação da cultura brasileira, assim tombamento e da preservação dos bens
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como enxergou o Museu como parte de uma etnográficos e arqueológicos nacionais. Essa
política cultural abrangente, de expressão cooperação foi constante e envolveu diversas
nacional, em concordância com os ideais do instâncias de atuação, configurando-se uma
governo totalitário de Vargas. malha institucional tecida com uma trama
Trilhar o papel desempenhado por Dona bastante estreita:
Heloisa no contexto institucional do Estado
e
P atrimônio H istórico

Novo e sua ação à frente do Museu Nacional Havendo necessidade de essa repartição
nos permite realizar a (re)montagem de uma prosseguir nos trabalhos iniciados, sob a vossa
rede social que se organiza em torno das orientação pessoal, com o objetivo de proceder
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propostas nacionalistas do regime ditatorial. ao tombamento dos bens de excepcional valor


E também dos embates intelectuais e arqueológico e etnográfico existente no país e bem
culturais propostos pelo contexto inovador assim de adotar as medidas convenientes para a
do Movimento Modernista e da formação localização e proteção dos achadouros do material
do

da disciplina antropológica. Torres foi daquela natureza, venho consultar-vos sobre a


R evista

personagem fundamental na estruturação da possibilidade de, na forma do disposto no art. 25


disciplina antropológica no Brasil. A rede de do decreto-lei n. 25, de 30 de novembro de 1937,
relações sociais por ela articulada, em grande o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
parte documentada em cartas, apreciações e Nacional obter a cooperação do Museu Nacional
relatórios depositados no Arquivo Histórico para o fim da secção de antropologia e etnografia
do Museu Nacional (AHMN), possibilita que desse estabelecimento tomar a si a execução da
206 compreendamos a magnitude da dinâmica referida tarefa. Na hipótese de resposta favorável
institucional que ela empreendeu por à presente consulta, esta diretoria delegará a
meio de relações sociais de proximidade e mencionada secção do Museu Nacional os poderes
reciprocidade pessoal e institucional.10 Foi que lhe foram atribuídos pelo dito decreto-lei
por esses canais que Rodrigo Melo Franco para o efeito desejado, correndo as despesas que
de Andrade, diretor do Sphan, solicitou se tiverem de realizar com os trabalhos em apreço
a Heloisa Alberto Torres, já diretora do por conta das dotações consignadas no vigente
orçamento ao Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional. Quanto à elaboração do
10. No período em que ocupou a direção, o Museu Nacional
funcionou como base logística para antropólogos estrangeiros programa a ser realizado durante o ano corrente
que vinham realizar suas pesquisas, sancionadas pelo Conselho no tocante às questões de arqueologia, etnografia
de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil,
de que Torres fez parte entre 1934 e 1939. Essa participação e arte popular, deverá ser assentado mediante
contribuiu de forma significativa para a ampliação das coleções proposta que vos dignardes apresentar a esta
do Setor e para formação de pesquisadores brasileiros que
se beneficiaram de cursos e de um ambiente intelectual diretoria logo que vos parecer oportuno (AHMN.
específico. Para a ação de Heloisa Alberto Torres, na expansão
de pesquisa etnográfica no Brasil, ver Corrêa (1997), em franca
Doc. 98, pasta 123, 24 de fevereiro de 1938,
contradição com a análise de Lilia Schwarcz. of. 42).
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
O Museu Nacional ganhou, além de Coleções representam
uma já mencionada cadeira no Conselho o povo
Consultivo do Sphan, 11 a função de

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definir o patrimônio etnográfico e Edgard Roquette-Pinto, ao inaugurar, nos
arqueológico nacional. Tal definição estava anos 20, a exposição da Coleção Sertaneja,
em contraposição ao projeto de Mário incorporou ao Museu um novo campo, o dos
de Andrade, para quem o controle e a estudos dos tipos brasileiros. O propósito
gestão desse patrimônio deveriam estar a desse colecionamento era fazer ver o “mais
cargo de uma instituição específica, que típico dos nossos elementos”, aquele que foi

e
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encampasse o próprio acervo etnográfico por ele apontado como “filho mais autêntico
e arqueológico do Museu, o qual ficaria da terra”, o sertanejo.
limitado à história natural, então por

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ele já percebida como destituída dos No Museu Nacional inauguramos uma
conteúdos voltados para as coleção para onde deverão entrar todas as peças
populações humanas. 12 que documentam a vida do nosso povo: utensílios,
No Museu Nacional, foi com a instrumentos próprios, materiais aplicados etc.

do
denominação já referida de regional que Chamei a essa coleção: Etnografia Sertaneja,

R evista
as coleções etnográficas incorporaram porque o sertanejo é, como o estamos vendo, o mais
a dimensão política de representação da típico dos nossos elementos étnicos (Roquette-
nação assumida no período, ampliando o Pinto, 1927:69).
alcance da noção inaugurada por Roquette-
Pinto ao identificar um tipo humano a uma Os tipos nacionais, fruto da terra, do
determinada situação geográfica, com base cruzamento, da influência da geografia
na antropogeografia. seriam, nessa chave de leitura, os filhos da 207

nação brasileira. Aqui a retórica nacionalista,


11. Uma das principais atribuições do Conselho Consultivo para retomarmos os termos de Castro
era analisar e dar solução às indicações de tombamento
de bens que enfrentassem algum tipo de impedimento. Faria, tornava-se política de Estado: política
O Conselho era formado pelo diretor do Sphan – que de exibição, de um ser nacional que se
presidia o Conselho – pelos diretores dos Museus
Nacionais ligados a objetos históricos ou artísticos e afirmaria, evidenciando-se a dupla realidade
por mais dez membros nomeados pela presidência da do Estado, isto é a de sistema de agências
República, sem critérios preestabelecidos. Como assinala
Chuva (1998), todos os membros tinham alguma inserção e de ideia e dispositivo representacional,
nas redes do Estado.
12. Em 10 de janeiro de 1937, meses antes do decreto-lei
reforçada de certo pós-1937.13 O sertão e o
que criou o Sphan, e antes mesmo da promulgação da lei de sertanejo tornaram-se “a cara do verdadeiro
reestruturação do Ministério da Educação e Saúde (MES),
Torres redige uma carta-documento de seis páginas ao Brasil”. A “etnografia sertaneja”, retomando
“Senhor Director do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Euclides da Cunha, focalizava a relação
Nacional”. O documento discorre sobre os critérios a
serem adotados para o tombamento das coleções do entre o homem e a natureza e, na visão
Governo e das particulares, do material paleontográfico de Roquette-Pinto, a associação entre o
e do etnográfico provenientes de “indústrias de populações
indígenas e regionais” Doc. do Setor de Etnologia, 10 de
janeiro de 1937. 13. Sobre esta dupla natureza, ver Abrams (2006) e Geertz (1991).
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
sertanejo e a formação da nacionalidade determinismo geográfico. Suas proposições,
estaria fundada na extrema adaptação do baseadas nos textos de Alberto Torres e
homem às condições ecológicas.14 Desse Oliveira Viana, serviram para fundamentar
A rtístico N acional

modo, o sertanejo seria o fiel depositário da o trabalho na Divisão de Antropologia


alma brasileira, um elemento mediador capaz e Etnologia do Museu Nacional. Castro
de resolver e apaziguar os embates raciais que Faria (1999:315) mencionou a leitura
permeavam o pensamento social brasileiro no e a atualização de Organização nacional,
início do século. de Alberto Torres, por intelectuais que
A Sala Euclides da Cunha ficava ao lado viram a possibilidade de pôr em prática
e
P atrimônio H istórico

da Sala Humboldt, reforçando a identidade os seus ideários de reforma e construção


entre os dois, e de certo modo inserindo o de uma forte e nova identidade nacional,
primeiro na galeria dos naturalistas, assim o transformando os projetos em ações.
Dias & Sou za Lim a

consagrando. Os “euclidianos” pretendiam Os estudos e pesquisas de Roquette-


transformá-la em um pequeno museu Pinto tinham por objetivo conduzir a uma
dedicado à memória desse autor. Segundo visão positiva das características físicas e
Venâncio Filho, um dos objetivos da sala era morais do homem brasileiro e suas variações
do

perpetuar as lembranças dos sertões brasileiros. étnicas, construindo uma tipologia racial
R evista

Roquette-Pinto, além de organizar a sala no baseada nos conhecimentos da antropologia


Museu, proferiu palestras, redigiu artigos física, que havia sido alargada pelos estudos
e contribuiu para aumentar o prestígio de antropogeográficos. É importante lembrar
Euclides da Cunha, destacando o caráter que, sob o regime ditatorial do Estado Novo,
etnográfico da sua obra. Para Abreu (1998), a geografia foi a disciplina hegemônica por
Euclides da Cunha foi transformado em excelência na representação da nação. O
208 mártir e herói nacional, pois passou a território foi desenhado pelos aspectos
representar um projeto de nação que da natureza e pela diversidade dos tipos
enfatizava a ideia de território, de virada para humanos que a ela teriam se adaptado,
o interior, projeto que deveria ser iniciado transformando e integrando-se à paisagem.
com estudos científicos da terra. A representação da territorialidade foi
Embora considerando a importância do uma estratégia privilegiada pela cultura
meio para a formação humana, Roquette- política do Estado Novo. As bandeiras foram
Pinto não restringiu sua interpretação ao unificadas em uma só: a bandeira de uma
única nação que, sob a tutela do Estado
14. Para Sílvio Romero, o tema do povo emergiu com Euclides totalitário e unificador, salvaguardaria os
da Cunha, ao mesmo tempo em que ganhava corpo a ideia de direitos dos trabalhadores e do povo até nos
que no centro, no interior do País, encontrava-se o Brasil real.
Para ele, Euclides havia conseguido definir os tipos humanos, recantos mais ermos. O governo ditatorial
do mesmo modo que o havia feito com a natureza selvagem de Vargas acionou e reuniu as propostas
(Abreu, 1998:249). O objetivo dos primeiros folcloristas
era encontrar raízes autênticas e genuínas que definissem a que definiam uma imagem do todo, de
identidade nacional. Também a identidade regional é criada, a
exemplo da nacional, por meio de representações sociais que
modo que o sentimento da diversidade e da
são expressas na materialidade dos objetos. pluralidade de formas e costumes, modos
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
e hábitos compusessem um rico conjunto A temática racial e o determinismo
de “filhos” que, embora diferentes entre si, geográfico estavam embutidos na avaliação
seriam legítimos representantes da nação. de como os diferentes aspectos da natureza

A rtístico N acional
Também aqui se retomou um movimento marcavam as especificidades regionais
estruturado antes de 1930 (Ribeiro, 2005), e esboçavam o perfil dos grupos que
mas reforçado com o aparelhamento da contribuiriam para definir uma identidade
disciplina no Conselho Nacional de Geografia nacional, representados pelos diferentes tipos
e no Instituto Nacional de Estatística, identificados pelo Censo Nacional de 1941.
depois Instituto Brasileiro de Geografia e Em 1939, a Revista Brasileira de

e
P atrimônio H istórico
Estatística.15A construção de um “passado Geografia, publicação do IBGE, inaugurou
regional” foi parte da construção da a seção “Tipos e aspectos do Brasil” (Daou,
identidade nacional naquele momento. As 2001). Os temas regionais da revista,

Dias & Sou za Lim a


regiões foram, antes de tudo, apresentadas ilustrados por Percy Lau e reproduzidos em
em sua geografia, seu espaço físico, como diversas outras publicações, contribuíram
uma natureza específica em que as ações dos para sinalizar e difundir a imagem do
homens se sedimentaram e criaram raízes, homem integrado à natureza, quase

do
configurando uma imagem de imutabilidade. parte da paisagem. Assim, os temas

R evista
O debate sobre as diferenças regionais eram apresentados em correlação e
foi intenso no decorrer das duas primeiras identificavam o tipo humano na paisagem
décadas do século XX. Por um lado, a que ele dominava ou com a qual convivia,
diversidade era vista como nociva, signo adaptando-se e extraindo da natureza a
de inferioridade, e as diferenças, como “seiva” para o seu trabalho e o seu sustento.
sinônimo de atraso e um obstáculo para o Nas edições compiladas da Revista Brasileira
empreendimento cultural da modernidade. de Geografia, o conjunto de tipos e aspectos, 209
Por outro lado, para os intelectuais ligados listados por região, representava um mapa
ao movimento modernista, as diferenças ilustrado do País, com suas características
eram consideradas parte da riqueza da físicas e seus tipos humanos compondo um
cultura brasileira e da identidade nacional. só desenho da nação. A noção de região
foi adquirindo um caráter de elemento em
15. “Em julho de 1934 foi criado o Instituto Nacional de uma composição, ao afirmar a conquista,
Estatística, que só seria efetivamente instalado em 1936, com
a criação do Conselho Nacional de Estatística. Seu objetivo
o domínio e o controle do território –
era coordenar nacionalmente todas as atividades estatísticas base da nação, em toda sua extensão.
das diversas esferas administrativas. Em 1938, o Conselho
Nacional de Estatística e o recém-criado Conselho Nacional Considerações como essas embasaram
de Geografia passaram a integrar o Instituto Brasileiro de a formação da Coleção Regional, uma
Geografia e Estatística. Em seus primeiros tempos, o IBGE
funcionou como autarquia subordinada à Presidência da amplificação da Coleção Sertaneja, que,
República, o que demonstra a importância que se atribuía à como já se viu antes, eram rótulos a se
geografia e à estatística como braços da ação governamental.
Somente em 1967 o IBGE transformou-se em fundação”. opor à ideia de folclore.
Disponível em <http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/
htm/anos37-45/ev_poladm_ibge.htm>, consultado em 28 de
O conjunto de materiais de cultura
fevereiro de 2009. denominado Coleção Regional foi
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
constituído, sobretudo, entre as décadas âmbito das relações sociais entre os agentes
de 1930 e 1950. Sua formação se baseou institucionais do Sphan e do Museu Nacional.
no conjunto anteriormente identificado Referimo-nos, principalmente, a duas
A rtístico N acional

como Coleção Sertaneja, inaugurada por coleções etnográficas, uma reunida em 1941,
Roquette-Pinto em 1918, cuja exposição tombada no Museu Nacional com o nome
mais bem-remodelada a apresentaria Coleção Hermann Kruse, e outra, tombada
em 1928. A Coleção Regional foi uma em 1945, como Coleção Sphan. Além dessas
construção do período em que Heloisa duas que apresentam uma clara importância,
Alberto Torres dirigiu o Museu Nacional e outra coleção atribuída ao Sphan reúne itens
e
P atrimônio H istórico

trabalhou junto com o Sphan no projeto de provenientes da região de Guarapari, no


definir e constituir um patrimônio histórico Espírito Santo, composta por rendas e ornatos
e artístico nacional. Torres era detentora do feitos de conchas. Algumas outras peças são
Dias & Sou za Lim a

capital cultural e político que a legitimava referidas a Rodrigo Melo Franco de Andrade,
para posicionar-se como “curadora” da como ofertas pessoais ao Museu.16
coleção. Nessa empreitada, Torres contou Hermann Kruse, alemão naturalizado
com a aliança com o Sphan. Vejamos então brasileiro foi um pesquisador e estudioso
do

como se dava essa colaboração na montagem de inscrições rupestres. Em 1936, publicou


R evista

do patrimônio nacional, olhando para suas Goyaz, o verdadeiro coração do Brasil. O livro, em
práticas mais cotidianas, pouco investigadas. alemão, editado em São Paulo, é um relato de
Para isso será necessário investigar a partir pesquisa, ilustrado com fotos dos personagens
dos arquivos e livros tombos do Museu que são apresentados pelo nome. No relato,
Nacional, onde ficaram depositados Kruse descreve seus encontros, as histórias
e tombados os objetos do patrimônio do povo com o qual conviveu e explica
210 etnográfico, em si partes evidenciadoras das numerosos termos “nativos”, demonstrando
ideias de construção nacional subjacentes seu interesse pela pesquisa etnográfica. Como
às práticas de ambas as agências de Estado representante do Sphan, foi enviado em
naquele período. diversas missões desta instituição a lugares
distantes e materialmente precários, mas
com grande riqueza humana. Em meados
t de 1939, partiu numa longa excursão ao
interior da Bahia, em busca de cidades perdidas,
As coleções etnográficas remetidas amparado financeiramente pelo Sphan e
ao Sphan, ainda que de maneira distinta, animado pela Sociedade Geográfica de
representam o conjunto de objetos reunidos Londres, como noticiaram os jornais, entre
no Museu Nacional por intermédio de os quais os baianos, que descreveram sua
um representante do Sphan. Uma série de busca como: “o único monumento da epopeia
objetos desperta particular interesse, porque
16. 34458 – Cerâmica (figura antropomorfa). Santarém.
com a identificação de alguns registros é Pará. Of. do dr. Rodrigo de Melo Franco, em julho de 1946.
possível desvelar processos e significados no Livro de Tombo nº 16.
1 2

1 – Vitrina da Exposição Regional Nordeste, que 3 4


integra a exposição permanente do Museu Nacional
da Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro. Indústria
regional. Peças adquiridas por Hermann Kruse, em
1941, durante viagem a Carinhanha, Rio de Contas,
Monte Alto. Acervo: Museu Nacional

2 – Detalhe da vitrina da Exposição Regional. Coleção


Hermann Kruse. Acervo: Museu Nacional

3 – Detalhe da vitrina da Exposição Regional


Acervo: Museu Nacional

4 – Detalhe da vitrina da Exposição Regional. Peças


adquiridas por Hermann Kruse. Acervo: Museu Nacional
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
bandeirante, do bandeirismo do século XVI”.17 edificações como também dos sambaquis
Segundo os jornalistas que o entrevistaram, ou quaisquer outros monumentos naturais
a excursão foi difícil e cheia de obstáculos. ou não que tivessem interesse artístico ou
A rtístico N acional

Kruse contou ter encontrado centenas de histórico.19


pinturas rupestres e alguns objetos dotados Em junho de 1941, Kruse viajou
de “certa arte aplicada” que, em sua opinião, novamente para a região do rio São Francisco,
apresentavam uma semelhança surpreendente desta vez numa missão conjunta orquestrada
com a arte de Marajó. Como prova dessa pelos diretores dos dois institutos, Rodrigo
afirmação, apresenta um cachimbo que por lá Melo Franco de Andrade e Heloisa Alberto
e
P atrimônio H istórico

encontrou.18 Torres. Kruse foi como representante enviado


Em março de 1940, Kruse fez nova pelo Sphan em missão para o Museu.
viagem pela mesma zona e aí ficou até
Dias & Sou za Lim a

fins de agosto, sempre coletando objetos O diretor do Museu Nacional – Rio de Janeiro
em que reconhecia algum valor artístico. – pede a todas as autoridades Federais, Estaduais
Por solicitação da regional de São Paulo e Municipais, bem como a todos os que vivem no
do Sphan, Kruse partiu em viagem de país, queiram facilitar ao Snr. Hermann Kruse o
do

pesquisa pelo litoral sul daquele Estado, desempenho da missão de caráter científico que a
R evista

mais especificamente a Cananeia e Iguape, serviço do Museu Nacional, vai realizar no Estado
para fazer levantamentos de plantas e de Minas Gerais.20
documentação fotográfica de edifícios antigos Às autoridades federais, estaduais e municipais
(igrejas, casas de residência, fortes antigos e eclesiásticas dos Estados de Minas Geraes, Bahia
etc.). Ele tinha a incumbência de proceder e Goiaz. O Portador deste, Snr. Hermann Kruse,
a um levantamento extenso não só das acha-se incumbido por esta diretoria de proceder
212 ao inventário sistemático dos monumentos e
obras de valor histórico e artístico existentes nos
17. Arquivo Iphan. Série Personalidades, Pasta Hermann
Kruse. Jornal Folha da Noite/SP, 15 de fevereiro de 1940. Estados de Minas Geraes, Bahia e Goiaz, para os
Quando de seu retorno, o jornal designou-o “decifrador de fins estabelecidos no decreto-lei nº 25 de 30 de
inscrições rupestres”.
18. Arquivo Iphan, Série Personalidades. Jornal O Imparcial novembro de 1937 e, bem assim, adquirir peças
– Bahia, 14 de novembro 1939. “Numa de nossas edições de para os Museus federais. Solicito com empenho às
setembro divulgamos de primeira mão que o Sr. Hermann
Kruse, autor do livro Goyaz, o verdadeiro coração do Brasil, em autoridades acima mencionadas, que lhe queiram
excursão pelo interior bahiano, para fazer estudos sobre as
cidades legendárias. (...) depois de corrigir dados publicados,
facilitar o desempenho de sua missão.21
dar detalhes da localização abrindo um mapa, diz: ‘Nessa
excursão passei horrores. Andei centenas de quilômetros a
pé. Tive que enfrentar inúmeros obstáculos para localizar a
cidade. (...) encontrei centenas de pinturas rupestres e alguns
objetos do uso desses indígenas até uma certa arte applicada, 19. Carta de Luís Saia, assistente técnico da 6ª Região, ao
que demonstra uma semelhança surprehendente com a arte de prefeito de Cananeia, 9 de janeiro de 1942. Saia atestou
Marajó. Dou-lhe uma prova nesse cachimbo que lá encontrei. a idoneidade de Kruse quando órgãos do governo federal
(...) Estou encantado com o interior bahiano por mim visitado solicitaram informações a seu respeito, a fim de verificar se
e com as suas bellezas naturaes. O sertão da Bahia é um este mantinha atividade política.
campo vasto para ser estudado ainda por muitos anos’”. Em 20. Credencial fornecida a Kruse por Heloisa Alberto Torres, 1941.
outra entrevista, Kruse confirmava o que chamava de “signaes 21. Credencial fornecida por Rodrigo M. F. Andrade, 18 de
indiscutíveis dos vestígios de arte”. junho de 1941.
Carta de Hermann Kruse a Heloisa Alberto Torres, de 1941. Acervo: Museu Nacional
1 2

1 – Vitrina da Exposição Regional Nordeste. Peças 3


adquiridas por Hermann Kruse. Acervo: Museu Nacional

2 – Detalhe da vitrina da Exposição Regional com


ex-votos. Acervo: Museu Nacional

3 – Detalhe da vitrina da Exposição Regional


Nordeste. Ex-voto da Coleção Hermann Kruse
Acervo: Museu Nacional
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
Antes de embarcar, Kruse escreveu a relatórios com referências etnográficas
Torres para tornar explícito o modo como das peças, seu uso e produção. Pelo que
pretendia desenvolver seu trabalho de informava Kruse, a produção desses

A rtístico N acional
colecionamento. Nessa mesma ocasião, relatórios era sua principal tarefa. A
encaminhou a primeira remessa de objetos missão tinha, assim, um caráter científico
para que pudessem ser analisados e avaliados adequado ao Museu.23
em termos do interesse do Museu e de sua Na correspondência que manteve
diretora e servissem como referência para as tanto com Torres quanto com o Sphan,
futuras aquisições. Kruse deixava claras as relações e a forma

e
P atrimônio H istórico
como se construía o conhecimento sobre
Em primeiro lugar, quero exprimir a Va. a materialidade e as representações do
Exa. os meus mais sinceros agradecimentos povo. Coletar um conjunto completo tinha um

Dias & Sou za Lim a


pela confiança e a generosidade que a Senhora significado que ia além de simplesmente
dispensou para comigo, não faltarei com o ilustrar certa produção própria.24 O envio
devido zelo para justificar a atenção que a da primeira remessa tem um sentido
distinta Senhora demonstrou para minha de comunicação imprescindível para a

do
humilde atividade. continuidade dos trabalhos

R evista
(...) O material foi despachado hoje vae junto de colecionamento.
uma lista do material todo e acho que deve conter Essa primeira remessa era formada por
algo de interessante para os estudos do Museu. cerca de 120 itens, que Kruse classificou
QueiraVa. Exa. de posse dos objetos, dizer-me, quaes em três categorias. A primeira é Material
dos objetos mais lhe interessam e o que eu tenho que Etnológico, composta por ex-votos de
observar com relação a eles.22 cera, madeira e barro, recolhidos em Bom
Juntei mais algumas cópias de relatório Jesus da Lapa. Entre esses, Kruse chamava 215
que ainda tinha, – talvez de interesse para o a atenção para uma “figura feminina de
Dr. Luiz de Castro Faria, – e não duvidando do barro”, por ser “interessante a manifestação
consentimento do Dr. Rodrigo. de habilidade artística”. Outro conjunto
referia-se aos “objetos da indústria da cidade
Ao enviar alguém legitimamente de Rio das Contas”, como esporas, punhal,
credenciado nas “artes do sertão”, Torres faca, isqueiro. Há na carta uma observação
pretendia não só reunir uma quantidade de sobre um conjunto de oito esporas velhas “de
peças exemplares como também formar notável confecção a de nickel e a de cobre”. A
uma coleção criteriosa. Ela manteve segunda categoria presente no relato contido
intensa correspondência com Kruse, na na carta é a de Material Diverso: mostruário
qual indicava os rumos do colecionamento de rendas de bilro, fusos, mantas, cavaquinho,
e fazia exigências quanto à produção de prato de madeira, marca de gado e xícara

23. Idem. Grifos meus.


22. AHMN. Carta de Hermann Kruse a Heloisa Alberto Torres. 24. A Revista do IBGE só apresenta em 1943 os “Barqueiros do
São Paulo, 10 de junho de 1941. São Francisco e as grutas calcáreas do São Francisco”.
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
de cabaça, guardada no baú dos escravos do Sphan, um representante treinado e
de uma casa de Rio de Contas. E também especializado, que detinha os requisitos
cestinhas, tigelinha, tamborim de candomblé necessários para reconhecer e adquirir as
A rtístico N acional

e pulseira de Santa Bárbara ou Mãe d´água, peças que ela havia solicitado, Torres não abria
Candomblé.25 A terceira categoria presente mão da função de autoria ao definir o que
é Material Arqueológico, com 36 peças fazer ou não.
procedentes de excursão à Serra do Sincorá, As peças coletadas por Kruse são no
municípios de Mucuje, Andaraí, Santa sentido estrito uma coleção, com todos
Teresinha e Rui Barbosa.26 os objetos pensados a partir de uma ideia
e
P atrimônio H istórico

Kruse, percebendo a dificuldade concebida na experiência do trabalho


para classificar os objetos, sugere: “Acho empírico nas representações materiais de
que tenho que ir ao Rio para assistir cultura, na interlocução com a diretora do
Dias & Sou za Lim a

à classificação dos objetos”, embora Museu e com o diretor do Sphan


não saiba como fazê-lo por falta de e na contínua reelaboração de suas
passagem. 27 Torres responde, confirmando premissas teóricas.
o recebimento e observando que “embora Um dos itens bastante representativos
do

o Museu se encontre no momento em da coleção reunida por Kruse é uma série


R evista

grandes obras, considero desvantajoso de ex-votos coletados na Lapa do Bom


retardar o trabalho de organização das Jesus, sobre os quais destacou o fato de não
coleções remetidas”. 28 Nessa viagem, ter selecionado os itens, mas coletado o
Kruse reuniu grande parte da coleção que todo disponível, não exercendo qualquer
está registrada em seu nome. As peças arbítrio de julgamento estético. Kruse
foram pagas pelo Museu, como demonstra analisava as pequenas peças considerando
216 a correspondência e atestam as notas e os o seu sentido de oferenda, mas detendo-
recibos depositados no AHMN. 29 se nas questões pertinentes à forma e
A correspondência trocada entre o ao fazer, bem como nas relacionadas às
colecionador/coletor e a diretora do Museu possibilidades formais de cada material e às
deixava claro o papel que ela exercia como diferentes experiências de ordem estética
“curadora”. Ao enviar, com o concurso que cada um pode vir a suscitar naquele
que o fabrica.
25. Listagem anexada à Carta, dando a relação dos objetos que
foram enviados ao Museu.
Os ex-votos expressam de modo
26. Kruse registra ainda que seguem em anexo dois atabaques exemplar a comunicação com o invisível.
de candomblé, confiscados pela polícia de Andaraí, em 1939.
27. Em carta de Pirapora, de 10 de novembro de 1941, Expostos e dispostos nos altares, sinalizam a
Kruse comunica o envio dos 13 volumes para o Museu: “O dádiva recebida e a relação de reciprocidade
caixão maior contém modelos descompostos de machinismos
sertanejos, etc.” de seu significado “prático”.
28. Correspondência, 24 de novembro de 1941. AHMN. Em setembro de 1945, Kruse seguiu em
29. “Tenho igualmente grande urgência em saber ao certo o
montante total da minha dívida para com Vossa Senhoria” (24 mais uma viagem ao sertão baiano, com o
de novembro de 1941). “Junto lhe remeto o recibo relativo aos
2:000$000 da viagem ao S. Francisco dos quais lhe fiz entrega
objetivo de reunir uma coleção para o Museu,
antes de sua partida” (3 de fevereiro de 1942). AHMN. mais tarde nomeada Coleção Sphan. Várias
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
cartas trocadas entre Kruse, Andrade e Torres arregimentação de informantes treinados
deixam entrever a dinâmica entre esses três em viagens anteriores.31 Como etnógrafo,
personagens e a relevância da coleção. ele reunia objetos que reconhecia durante

A rtístico N acional
o convívio com as pessoas que visitava
Prezado Dr. Rodrigo, conforme a nossa devido ao valor que lhes era atribuído. Em
conversa de ontem, dou em seguida o itinerário outra carta, informava sobre os objetos
planejado da minha nova viagem à Baía. que adquiriu e, mais uma vez, ressaltava
(...) seguirei a Santa Maria daVitória, a participação de Torres e Andrade na
o lugar clássico de fabricação de barcas e constituição da coleção.32

e
P atrimônio H istórico
especialmente de cabeças de barcas, típicos para a
navegação do Rio São Francisco. Objetos etnológicos: já comprei muitas
De Santa Maria voltarei à Lapa e de lá a um coisas mais ou menos como aquelas que já

Dias & Sou za Lim a


lugar (distante m/m 50 km), um centro de arte comprei em 1941, para Dona Heloisa. Porém os
aplicada popular (mantas, redes, bordados). Seguirei preços, naturalmente, já subiram – entretanto
a outro lugar, cujo nome, no momento não sei, e menos como era de esperar. (...) Fora disto peço
o qual me foi reportado como lugar ótimo para uma requisição de frete para minha bagagem

do
adquirir “trem velho”. e outra para os volumes destinados ao MN.

R evista
Pretendo continuar, aVilaVelha, antigo centro Os objetos destinados ao Museu podem ser
de manufatura de objetos de metal. EmVilaVelha examinados por VaSa, respectivamente por Dona
ainda conheço alguns possuidores de móveis antigos Heloisa A. Torres, eu acho que todos eles são de
etc. os quais, na minha última viagem, se mostraram interesse etnológico, porém, os aceitarei de volta,
prontos para vendê-los. se não agradarem.33
Voltarei de lá, via Catité a Monte Alto,
também lugar de arte aplicada (bordados, Enquanto se dedicava ao colecionamento 217
tecidos, cochenis, instrumentos musicais) e para o Museu, Kruse continuava a
Carinhanha (rio São Francisco), onde se devem desempenhar trabalhos de levantamento e
encontrar ainda objetos arqueológicos, que diagnóstico de edificações históricas para o
foram achados, depois da minha última estadia Sphan. Em 1946, escreveu a Rodrigo Melo
em 1941, e provavelmente se encontram ainda
em poder do meu amigo o prefeito. Trata-se de 31. Kruse dirige-se a Rodrigo M. F. Andrade como amigo
e lhe devota sempre muito respeito e gratidão pela
uma zona onde continuamente se encontram confiança em seus serviços. Em uma carta (24.6.47), o
tais objetos.30 diretor do Sphan comunica o interesse na aquisição de
alguns itens. “Quanto as mantas de lã a que se refere sua
carta e das quais o Senhor informa ter adquirido 200,
Kruse informava seu itinerário, tenho o prazer de comunicar-lhe que me interesso pela
aquisição de 8, uma vez que sejam bem semelhantes entre
mencionava os objetos que buscava e si e possam assim ser utilizadas para formar um só tapete”.
suas práticas de coleta, que incluíam a Note-se o caráter altamente pessoalizado desse tipo
de relação.
32. Para o papel das cartas pessoais como gênero textual na
administração pública brasileira dos inícios do século XX, ver
30. Carta de Hermann Kruse a Rodrigo Melo Franco de Vianna (1995).
Andrade, 6 de setembro de 1945. 33. Carta 31.7.45 Monte Alto, n.1832/45.
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
Franco de Andrade informando sobre a Museu.37 Torres passaria alguns anos em busca
situação da Igreja, que este mandou examinar, de informações sobre a coleção que estava
sugerindo os possíveis encaminhamentos para pronta para ser enviada para o Museu.38
A rtístico N acional

a sua preservação.34
Kruse muito se empenhou em adquirir as
chamadas cabeças de barca, objetos de grande Formando acervos,
interesse para o Museu, que em mais de uma tecendo malhas
ocasião haviam sido solicitados pela diretora.35 administrativas,
Em sua última carta, quando se preparava formando Estado
e
P atrimônio H istórico

para retornar ao Rio depois de uma longa


estada, Kruse mencionou novas tentativas de Ao longo deste texto procuramos
conseguir as cabeças. Nessa carta, ele relatou mostrar a relevância da abordagem da
Dias & Sou za Lim a

ainda, etnograficamente, as dificuldades da construção do patrimônio histórico e artístico


vida naquela região.36 nacional como parte dos processos de
Hermann Kruse faleceu em 1947, formação de Estado no Brasil e dispositivos,
em Monte Alto, quando se preparava para também, de construção nacional. Partindo
da pesquisa nos arquivos do atual Iphan e
do

retornar de uma temporada em que havia


no AHMN, destacamos as relações sociais
R evista

feito uma grande compra para a coleção do


– por vezes altamente personalizadas,
como a leitura das cartas depositadas nesses
arquivos deixa entrever – entre agentes
posicionados de instituições que compunham
34. Arquivo do Iphan. Série Personalidades. Carta de 31 de
julho de 1945. Em resposta aos relatos, Rodrigo Andrade o espaço do nacionalismo como política no
218
escreve: “Recebi com grande atraso sua atenciosa carta datada período histórico abordado. Nossa intenção
de 29 de maio último e agradeço-lhe pelas informações que
o Senhor me transmitiu ali não só sobre suas atividades nessa era fugir às análises mais frequentes que,
região, mas também a respeito de outros assuntos de interesse por serem marcadas pelo ensaísmo, ou
para esta repartição. Estimei vivamente saber que este pertence
hoje em dia a uma empresa dirigida por pessoas esclarecidas e reduzidas a pesquisas empíricas de fontes
que saberão zelar pela sua conservação”.
35. Em 1946, uma correspondência trocada entre Torres, diretora
muito limitadas e em geral publicadas,
do Museu Nacional, e Antônio Joaquim de Almeida, diretor do superestimam as dimensões de retórica,
Museu do Ouro, em Sabará, revela a rede interinstitucional que
Rodrigo Melo Franco de Andrade articulou através do Sphan, que ia
além dos tombamentos e envolvia o colecionamento. Na primeira 37. No AHMN, um telegrama enviado por Torres ao prefeito
carta,Torres solicita transporte para um caixote contendo material de Carinhanha, em 1950, pede informações sobre o destino
científico, “uma cabeça de barca trazida do rio São Francisco pelo da coleção de objetos que Kruse havia reunido para enviar ao
Sr. Kruse e destinada ao Museu do Ouro”. O diretor do Museu do Museu quando veio a falecer.
Ouro responde que se trata de uma “esplêndida cabeça de proa, 38. Ainda sobre as cabeças, em 1949, Donald Pierson, em
característica da região do Rio São Francisco, sendo uma peça viagem, telegrafa a Torres informando do interesse do prefeito
que há muito tempo ambicionava para enriquecer a seção de Arte de Juazeiro (BA), em ceder algumas figuras de proa de barco.
Popular que estou organizando neste museu”. O diretor diz estar à Informa ainda que durante a viagem viu poucas figuras, sendo
espera de maiores esclarecimentos sobre a procedência e o destino estas mais comuns numa localidade que não se pode visitar
da referida peça.Torres responde de pronto, dando ciência de que (Santa Maria das Vitórias).Torres dirige-se ao prefeito solicitando
o Museu agiu como mero intermediário na remessa da cabeça de informações sobre o valor, a quantidade e a possibilidade de
proa de barco do São Francisco, “que é realmente enviada pelo envio das peças para o Rio e afirmando o grande interesse do
doutor Rodrigo” (Prot. 266/46). Museu em adquirir essas figuras de proas de embarcações do São
36. Arquivo Sphan, carta de Kruse, 29.5.47, doc. nº 861/47. Francisco. AHMN, pasta Telegramas de 1950.
O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
A rtístico N acional
e
P atrimônio H istórico
Dias & Sou za Lim a
1

do
R evista
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2 3

1 – Vitrina da Exposição Regional Minas Gerais Tecelagem doméstica,


também adquirida por Hermann Kruse em suas viagens. Acervo: Museu
Nacional

2 – Vitrina da exposição regional de Minas Gerais Tecidos. Acervo:


Museu Nacional

3 – Detalhe da vitrina da Exposição Regional. Acervo: Museu Nacional


O Mu s eu N acional e a const r ução do Pat r i mônio. . .
de puro simbolismo, de ideologia como modo, pode parecer meramente mágico
constitutivas dos nacionalismos, na qual ou profundamente abstrato: a produção
se insere a história do patrimônio histórico e de inventários e acervos de bens culturais,
A rtístico N acional

artístico nacional. parte das atividades de um centro – bastante


Procuramos esboçar a proficuidade precário e fraco – como se afigurava ser
de uma investigação genealógica e aquele de onde emanava o exercício dos
sociogenética das práticas e saberes poderes de Estado nesta área da vida
(com especial destaque para a presença social. Há, pois, muita documentação
dos saberes antropológicos) presentes por ser trabalhada e amplo espaço para se
e
P atrimônio H istórico

nas rotinas diárias dessas instituições, produzirem, a partir dela, novas perspectivas
parte de um legado histórico que ainda analíticas em torno dos mais diversos
não desapareceu. Assim, reportamo- aspectos das práticas patrimoniais.
Dias & Sou za Lim a

nos ao trabalho contido no Museu


Nacional, lócus que foi dos primeiros
processos de tombamento de acervos de Referências
cultura material, mais especificamente
ABRAMS, Philip. “Notes on the difficulty in studying
do

o realizado com as coleções etnográficas


the state”. Em Sharma, Aradhana & Gupta, Akhil
R evista

regionais ou sertanejas, como uma das (eds.). The anthropology of the state: a reader. Oxford:
bases do que viria a se instituir como Blackwell Publishing, 2006, p. 112-130.
ABREU, Regina. O enigma dos sertões. Rio de Janeiro:
prática patrimonial no Brasil a partir da Funarte-Rocco, 1998.
criação do Sphan em 1937. Decerto, se _____. A fabricação do imortal – memória, história e
tivéssemos abordado também as coleções estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Lapa-
Rocco, 1996.
arqueológicas, muito outros contornos, ANDERSON, Benedict. Imagined communities.
220 nuances e relações surgiriam. Reflections on the origins and spread of nationalism.
Londres: Verso, 1991.
Assim, inventar um povo, componente BOURDIEU, Pierre. “Gostos de classe e estilos de vida”.
de uma nação única, homogêneo em suas Em Ortiz, Renato (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São
tão propaladas diferenças, positivá-lo em Paulo: Ática, 1983.
CASTRO FARIA, Luiz de. “Museu Nacional – O
seus aspectos mais distintos, implicou a sua espetáculo e a excelência”. Em Castro Faria, Luiz
representação por meio de objetos de cultura de. Antropologia-espetáculo e excelência. Rio de Janeiro:
UFRJ-Tempo Brasileiro, 1993.
material. Representar o povo, naquela
_____. “Nacionalismo, nacionalismos – dualidade e
quadra histórica, implicou colecionar polimorfia”. Em Chuva, Márcia (org.). A invenção do
objetos. E os dois processos demandaram patrimônio. Rio de Janeiro: Iphan, 1995.
_____. Antropologia – escritos exumados – 1. Espaços
a constituição de redes de relações que circunscritos; tempos soltos. Niterói:
deram substância às práticas administrativas UFF, 1998.
_____. Antropologia – escritos exumados – 2. Dimensões
delineadas, nas quais (re)surgem figuras
do conhecimento antropológico. Niterói: UFF, 1999.
relativamente anônimas para a historiografia CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da
e a sociologia da produção intelectual hoje, memória: a construção do patrimônio histórico e artístico
nacional no Brasil - anos 30 e 40. Tese de doutorado em
como é o caso de Hermann Kruse. Seguir história. Niterói: PPGH/Dept. de História/ICHF/
essas trajetórias lança luz ao que, de outro UFF, 1998.
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