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JOHNNY

VAI À
GUERRA
DALTON
TRUMBO

Tradução: José Geraldo Couto


Sumário

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Introdução do autor (1959)

Adendo: 1970

Johnny vai à guerra

Livro I - Os mortos
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X

Livro II - Os vivos
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX

Sobre o autor

Créditos
Introdução do autor (1959)

A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL COMEÇOU como um festival de verão – repleto de saias enfunadas e dragonas
douradas. Milhões e milhões saudavam das calçadas enquanto altezas imperiais,
eminências, marechais de campo e outros tolos semelhantes desfilavam pelas capitais da
Europa à frente de suas reluzentes legiões.
Foi uma estação de generosidade; um tempo de bravatas, bandas, poemas, canções,
orações inocentes. Foi um agosto tornado palpitante e esbaforido pelas noites pré-nupciais
de jovens cavalheiros oficiais e das moças que eles deixariam permanentemente para trás.
Um dos regimentos escoceses partiu para sua primeira batalha atrás de quarenta músicos
vestidos de kilt, soprando com entusiasmo suas gaitas de fole – contra metralhadoras.
Nove milhões de cadáveres depois, quando as bandas silenciaram e as altezas
começaram a correr, o lamento das gaitas de fole jamais voltaria a soar do mesmo modo.
Foi a última das guerras românticas; e Johnny vai à guerra foi provavelmente o último
romance norte-americano escrito sobre ela antes que uma coisa totalmente diferente,
chamada Segunda Guerra Mundial, entrasse em cena.
O livro tem uma história política bizarra. Escrito em 1938, quando o pacifismo era
sacrilégio para a esquerda norte-americana e para a maior parte do centro, ele entrou na
gráfica na primavera de 1939 e foi publicado em 3 de setembro – dez dias depois do pacto
nazi-soviético, dois dias depois do início da Segunda Guerra Mundial.
Pouco depois, por recomendação do sr. Joseph Wharton Lippincott (que julgava que isso
impulsionaria as vendas), os direitos de publicação em capítulos foram vendidos ao The
Daily Worker de Nova York. Durante meses a partir de então o livro foi um ponto de
discussão para a esquerda.
Depois de Pearl Harbor, seu tema ficou parecendo tão inapropriado à época quanto o uivo
das gaitas de fole. O sr. Paul Blanshard, falando sobre censura militar em The Right to Read
[O direito de ler] (1955), diz: “Algumas revistas de língua estrangeira pró-Eixo tinham sido
proibidas, bem como três livros, incluindo o romance pacifista de Dalton Trumbo Johnny, vá
à guerra,1 produzido durante o período do pacto Hitler-Stálin”.
Já que o sr. Blanshard incorreu em erro, espero que de modo inconsciente, tanto no que
diz respeito ao período da “produção” do livro quanto ao título sob o qual foi “produzido”,
não posso depositar muita confiança no relato que ele faz de sua proibição. O certo é que
não fui informado sobre ela; recebi algumas cartas de soldados no estrangeiro que o
haviam lido graças às bibliotecas do exército; e, em 1945, eu mesmo topei com um
exemplar em Okinawa enquanto o conflito ainda estava em curso.
Se, no entanto, ele tivesse sido proibido e eu ficasse sabendo, duvido que viesse a
protestar com muita veemência. Há épocas em que pode ser necessário que certos direitos
individuais cedam lugar para o bem de um público maior. Sei que é um pensamento
perigoso, e não desejo levá-lo longe demais, mas a Segunda Guerra Mundial não foi uma
guerra romântica.
À medida que o conflito se aprofundou, e a edição de Johnny esgotou-se totalmente, a
impossibilidade de obter o livro tornou-se uma questão de liberdades civis para a extrema
direita norte-americana. Organizações pela paz e grupos de “Mães” de todo o país me
soterraram de cartas ardorosamente solidárias denunciando judeus, comunistas,
defensores do New Deal e banqueiros internacionais que teriam interditado meu romance
para intimidar milhões de verdadeiros americanos que exigiam uma imediata negociação
de paz.
Meus correspondentes, muitos dos quais usavam papéis de carta e envelopes elegantes e
exibiam endereços à beira-mar, mantinham uma rede de comunicações que se estendia
até os campos de detenção de prisioneiros de guerra pró-nazistas. Inflacionaram o preço do
livro para mais de seis dólares por um exemplar usado, o que me desagradou por uma série
de razões, uma delas fiscal. Propunham um movimento nacional pela paz imediata, comigo
como chefe de torcida; prometiam (e entregavam) uma campanha de cartas para
pressionar o editor a fazer uma nova edição.
Nada poderia ter me convencido mais depressa de que Johnny era exatamente o tipo de
livro que não deveria ser reeditado antes que a guerra terminasse. Os editores
concordaram. Diante da insistência de amigos que sentiam que o empenho dos meus
correspondentes poderia afetar negativamente o esforço de guerra, eu tolamente relatei as
atividades desses correspondentes ao FBI. Mas, quando uma dupla lindamente harmoniosa
de investigadores chegou à minha casa, estavam interessados em mim, e não nas cartas.
Tenho a impressão de que ainda estão e é bem feito para mim.
Depois de 1945, as duas ou três novas edições que saíram tiveram boa acolhida junto à
esquerda em geral, e ao que parece foram ignoradas por todo o restante das pessoas,
incluindo aquelas mães tão fervorosas da época da guerra. O livro saiu de circulação de
novo durante a Guerra da Coreia, momento em que comprei as chapas de impressão de
modo a evitar que fossem vendidas ao governo para se transformar em munição. E aqui
termina a história, ou começa.
Relendo-o depois de tantos anos, tive que resistir ao impulso nervoso de retocá-lo aqui,
modificá-lo ali, esclarecer, corrigir, elaborar, enxugar. Afinal, o livro é vinte anos mais jovem
que eu, e eu mudei tanto, e ele não. Ou será que mudou?
Será possível que tudo resista à mudança, até mesmo uma mera mercadoria que pode
ser comprada, enterrada, banida, condenada, louvada ou ignorada por todas as razões
erradas? Provavelmente não. Johnny assumiu um sentido diferente para três guerras
diferentes. Seu sentido atual é o que cada leitor quiser que seja, e cada leitor é
gloriosamente diferente de cada outro leitor, e cada um deles também está mudando.
Deixei o livro permanecer como foi para ver o que ele é.

DALTON TRUMBO
Los Angeles
25 de março de 1959
Adendo: 1970

ONZE ANOS DEPOIS. Os números nos desumanizaram. Durante o café da manhã lemos que 40 mil
norte-americanos morreram no Vietnã. Em vez de vomitar, esticamos o braço para pegar a
torrada. Nossa correria matinal por ruas congestionadas não é para gritar contra o
assassinato, mas para chegar ao cocho antes que outro devore nossa ração.
Uma equação: 40 mil rapazes mortos = 3 mil toneladas de carne e osso, 56 mil quilos de
massa cefálica, 190 mil litros de sangue, 1.840.000 de anos de vida que nunca serão
vividos, 100 mil crianças que nunca nascerão. (Esta última perda podemos assimilar: já
existem crianças demais passando fome no mundo.)
Nós por acaso gritamos à noite quando isso entra em nossos sonhos? Não. Não sonhamos
com isso porque não pensamos a respeito; não pensamos a respeito porque não nos
importamos. Estamos muito mais interessados em lei e ordem, para que as ruas norte-
americanas possam estar seguras enquanto transformamos as do Vietnã em esgotos de
sangue a céu aberto que reabastecemos todos os anos obrigando nossos filhos a escolher
entre uma cela de prisão aqui ou um caixão de defunto lá. “Toda vez que contemplo a
bandeira, meus olhos enchem-se de lágrimas.” Os meus também.
Se os mortos nada significam para nós (exceto no fim de semana do Dia dos Mortos em
Combate, quando as rodovias nacionais se entopem de surfistas, banhistas, esquiadores,
campistas, caçadores, pescadores, jogadores de futebol americano, bebedores de cerveja),
o que dizer dos 300 mil feridos? Alguém sabe onde eles estão? Como se sentem? Quantos
braços, pernas, orelhas, narizes, bocas, rostos, pênis eles perderam? Quantos estão surdos,
mudos ou cegos – ou as três coisas juntas? Quantos amputaram um, dois, três ou quatro
membros? Quantos ficarão imóveis pelo resto de seus dias? Quantos sobrevivem como
vegetais descerebrados respirando em silêncio enquanto suas vidas escoam em quartinhos
escuros e secretos?
Escreva ao Exército, à Força Aérea, à Marinha, ao Corpo de Fuzileiros, aos hospitais do
Exército e da Marinha, ao Departamento de Ciências Médicas da Biblioteca Nacional de
Medicina, à Administração dos Veteranos, à Chefia da Saúde do Exército – e fique surpreso
com o que você não fica sabendo. Uma agência relata 726 internações para “serviços de
amputação” desde janeiro de 1965. Outra registra 3.011 amputados desde o início do ano
fiscal de 1968. O resto é silêncio.
O Relatório anual da saúde militar: estatísticas médicas do Exército dos Estados Unidos
deixou de ser publicado em 1954. A Biblioteca do Congresso relata que o Departamento de
Saúde Militar para Estatísticas Médicas “não dispõe de dados sobre o número de
amputados simples ou múltiplos”. Ou o governo não os considera importantes ou, nas
palavras de um pesquisador de uma das redes nacionais de televisão, “o próprio exército,
se tem certeza de quantas toneladas de bombas lançou, não sabe ao certo quantas pernas
e braços seus homens perderam”.
Se não há números precisos, pelo menos estamos começando a conseguir números
comparativos. Proporcionalmente, o Vietnã nos deu oito vezes mais paralíticos que a
Segunda Guerra Mundial, três vezes mais inválidos absolutos, 35% mais amputados. O
senador Cranston, da Califórnia, conclui que, de cada cem veteranos de guerra que
recebem indenização por ferimentos sofridos em ação no Vietnã, 12,4% são inválidos
absolutos. Absolutos.
Mas exatamente quantas centenas ou milhares de mortos-em-vida isso nos propicia? Não
sabemos. Não perguntamos. Viramos as costas a eles; desviamos os olhos, ouvidos, nariz,
boca, rosto. “Por que eu deveria olhar, afinal não foi culpa minha, ou foi?” Foi, claro, mas
não importa. O tempo urge. A morte espera também por nós. Temos um sonho a perseguir,
a mais branca das esperanças brancas, e precisamos seguir em frente para encontrá-la
antes que a luz se apague.
Adeus, derrotados. Deus abençoe. Cuidem-se. Estamos de olho.

D. T.
Los Angeles
3 de janeiro de 1970
Johnny vai à guerra
LIVRO I
Os mortos
I

ELE QUERIA MUITO QUE O TELEFONE parasse de tocar. Já era ruim o bastante estar doente não precisava de um
telefone tocando a noite inteira. Nossa como ele estava mal. E nem era por causa daquele
ácido vinho francês deles. Nem que bebesse todo o vinho do mundo alguém ficaria com a
cabeçorra latejando daquele jeito. Seu estômago dava voltas e mais voltas. Que beleza
ninguém atender aquele telefone. Soava como se estivesse tocando numa sala com um
milhão de quilômetros de largura. Sua cabeça tinha um milhão de quilômetros de largura
também. Ao diabo com aquele telefone.
Aquela maldita campainha devia estar no outro extremo do mundo. Ele teria que
caminhar uns dois anos para chegar até ela. Toca que toca a noite inteira. Talvez alguém
estivesse precisando muito de alguma coisa. Telefonemas no meio da noite são
importantes. Seria de esperar que dessem atenção àquilo. Como podiam querer que ele
atendesse de todo modo? Estava exausto e sua cabeça estava enorme. Podiam enfiar um
telefone inteiro em seu ouvido que ele nem sequer sentiria. Parecia que tinha bebido
dinamite.
Por que ninguém atendia aquele maldito telefone?
“Ei Joe. Bem em frente.”
Lá foi ele indisposto como o diabo abrindo caminho feito um idiota através do galpão de
despacho de encomendas noturnas em direção ao telefone. Era tanto barulho que você não
acreditaria que alguém pudesse escutar um som minúsculo como o de um telefone
tocando. No entanto ele tinha escutado. Por cima do clique-clique-clique das
empacotadoras de Battle Creek por cima do estrépito das esteiras transportadoras do uivo
dos fornos giratórios no andar de cima do estrondo das lixeiras de aço sendo arrastadas
para o seu lugar do ronco dos motores sendo ajustados na oficina para o trabalho matinal
do guincho de carrinhos de mão precisando de óleo por que diabos ninguém os lubrificava?
Caminhou pelo meio do corredor entre as latas de aço que estavam sendo cheias de pão.
Abriu caminho no chão abarrotado de carrinhos de mão caixas papelão amassado e pães
estropiados. Os rapazes acompanhavam com os olhos o seu avanço. Lembrava-se dos
rostos deles flutuando à sua volta enquanto caminhava em direção ao telefone. Dutch e
Little Dutch e Whitey que tomou tiros na espinha e Pablo e Rudy e a rapaziada toda.
Olhavam-no com curiosidade enquanto passava por eles. Talvez porque ele estivesse
apavorado por dentro e deixasse isso transparecer por fora. Apanhou o telefone.
“Alô.”
“Alô filho. Venha para casa agora mesmo.”
“Está bem mãe. Estou indo já.”
Entrou no escritório do mezanino de onde por uma ampla vidraça Jody Simmons o
contramestre noturno vigiava de perto sua equipe de trabalho.
“Jody preciso ir para casa. Meu pai acaba de morrer.”
“Morreu? Puxa garoto isso é horrível. Claro garoto não perca tempo. Rudy. Ei Rudy. Pegue
um caminhão e leve o Joe até a casa dele. O velho… o pai dele acaba de morrer. Claro
garoto vá logo. Eu peço a um dos rapazes para bater seu cartão de saída. Que dureza
garoto. Vá logo.”
Rudy pôs o pé na tábua. Estava chovendo porque era dezembro vésperas de Natal em Los
Angeles. Os pneus rangiam no calçamento molhado e eles avançavam. Era a noite mais
silenciosa que ele já ouvira exceto pelos pneus rangendo e o estrépito do Ford ecoando
entre prédios desertos numa rua vazia. Rudy pôs mesmo o pé na tábua. Havia um
matraquear em algum lugar atrás deles no caminhão que mantinha o mesmo ritmo não
importava a velocidade em que eles iam. Rudy não dizia nada. Só dirigia. Pela rua Figueroa
afora passando pelos velhos casarões depois pelas casas menores e seguindo até a ponta
sul. Rudy parou o caminhão.
“Obrigado Rudy eu te informo logo que tiver acabado tudo. Volto ao trabalho daqui a uns
dois dias.”
“Claro Joe. Tudo bem. É dureza. Sinto muito. Boa noite.”
O Ford deu a partida. Então seu motor roncou e ele saiu derrapando pela rua. A
enxurrada corria pelo meio-fio. A chuva tamborilava em ritmo contínuo. Ele ficou parado ali
por um momento para respirar fundo e em seguida partiu para o local.
O local era no beco em cima de uma oficina atrás de uma casa de dois andares. Para
chegar lá ele caminhou por uma estreita entrada de carro que ficava entre duas casas bem
próximas uma da outra. Estava escuro entre as casas. A chuva escorria dos dois telhados e
se juntava ali gotejando em grandes poças com um estranho eco molhado como o de água
sendo despejada numa cisterna. Seus pés chapinhavam na água ao caminhar.
Ao chegar ao fim do corredor entre as duas casas ele viu luzes acesas acima da oficina.
Abriu a porta. Uma lufada de ar quente o atingiu. Era ar quente perfumado com o sabão e o
álcool aromatizado que tinham usado para limpar seu pai e com o talco que colocaram nele
depois para cobrir as assaduras. Subiu pé ante pé ao andar de cima com os sapatos ainda
encharcados fazendo um leve ruído.
Na sala de estar seu pai jazia morto com o rosto coberto por um lençol. Estivera doente
por um bom tempo e fora mantido na sala porque o alpendre envidraçado que era o quarto
do pai e da mãe e das irmãs de Joe tinha muita corrente de ar.
Ele caminhou até a mãe e tocou-a no ombro. Ela não estava chorando muito.
“A senhora chamou alguém?”
“Sim vão chegar a qualquer momento. Eu queria que você chegasse primeiro.”
Sua irmã caçula ainda estava dormindo no alpendre envidraçado mas a mais velha de
apenas treze anos estava encolhida num canto de roupão de banho ofegando e soluçando
em silêncio. Ergueu os olhos para ela. Estava chorando como uma mulher. Ele não tinha se
dado conta até então de que ela já estava crescida era quase uma adulta. Vinha crescendo
o tempo todo e ele não tinha notado até agora ao vê-la chorando pela morte do pai.
Ouviu-se uma batida na porta no andar de baixo.
“São eles. Vamos para a cozinha. Vai ser lá.”
Tiveram alguma dificuldade em levar sua irmã para a cozinha mas ela foi sem fazer
barulho. Parecia que ela não conseguia andar. Seu rosto estava inexpressivo. Os olhos
estavam grandes e ela mais ofegava do que chorava. A mãe sentou-se num banquinho na
cozinha e tomou a menina nos braços. Então ele saiu para o alto da escada e chamou
calmamente:
“Entrem.”
Dois homens de colarinhos cintilantes de tão limpos abriram a porta de baixo e
começaram a subir a escada. Traziam uma comprida cesta de vime. Ele rapidamente
entrou de novo na sala e puxou de lado o lençol para dar uma olhada em seu pai antes que
eles chegassem ao alto da escada.
Baixou os olhos para um rosto fatigado que tinha apenas cinquenta e um anos de idade.
Baixou os olhos e pensou pai eu me sinto muito mais velho do que você. Lamento muito por
você pai. As coisas não estavam indo bem e nunca teriam ido bem pra você e é até bom
que você esteja morto. As pessoas hoje em dia têm que ser mais espertas e mais duras do
que você era pai. Boa noite e bons sonhos. Não me esquecerei de você e estou menos triste
por você hoje do que estava ontem. Eu amava você pai boa noite.
Eles entraram na sala. Ele se virou e caminhou até a cozinha juntando-se à mãe e à irmã.
A outra irmã de apenas sete anos dormia.
Ouviram-se sons vindos da sala da frente. Os passos dos homens pé ante pé em torno da
cama. Um leve farfalhar de cobertas sendo jogadas para o pé. Em seguida um som de
molas de colchão relaxando depois de oito meses de uso. Então um som de vime rangendo
ao receber o fardo do qual a cama tinha sido aliviada. Então depois de um rangido pesado
de todas as partes do cesto um arrastar de pés saindo da sala da frente e descendo a
escada. Ele ficou se perguntando se eles estavam carregando o cesto na horizontal ao
descer a escada ou se a cabeça estava mais baixa que os pés ou se aquilo era
desconfortável de algum modo. Seu pai caso executasse a mesma tarefa teria transportado
o cesto com muita delicadeza.
Quando a porta ao pé da escada fechou-se atrás deles a mãe começou a tremer um
pouco. Sua voz saiu como ar seco.
“Não é o Bill. Pode parecer que é mas não é.”
Ele deu um tapinha no ombro da mãe. Sua irmã deslizou para o chão de novo.
Isso foi tudo.
Ora então por que não poderia ser tudo? Quantas vezes ele teria que passar por aquilo?
Estava tudo concluído e terminado e por que diabos o maldito telefone não podia parar de
tocar? Ele estava enlouquecido porque sentia uma enorme ressaca e estava tendo
pesadelos. Logo logo se fosse preciso ele levantaria da cama e atenderia o telefone mas
alguém podia fazer isso por ele se tivesse um mínimo de consideração porque ele estava
cansado e enjoado.
As coisas estavam se tornando fluidas e doentias. Estava tudo tão quieto. As malditas
coisas estavam tão calmas. Uma enxaqueca de ressaca martela e retine e instala o inferno
no crânio da gente. Mas aquilo não era ressaca nenhuma. Ele era um homem doente. Era
um homem doente e estava rememorando coisas. Como que emergindo do éter. Mas era de
esperar que o telefone parasse de tocar em algum momento. Simplesmente não podia
continuar para sempre. Ele não podia repetir sem parar aquele negócio de atender e ouvir
que seu pai tinha morrido e então correr para casa numa noite chuvosa. Apanharia um
resfriado se continuasse fazendo aquilo. Além do mais seu pai só podia morrer uma vez.
A campainha do telefone era só um pedaço de um sonho. Tinha soado diferente de
qualquer outro toque de telefone ou de qualquer outro som porque significava a morte.
Afinal de contas aquela campainha era um tipo de coisa particular um tipo muito particular
de coisa como costumava dizer na aula de inglês no colégio o velho professor Eldridge. E
um tipo muito particular de coisa gruda na gente mas não adianta grudar demais. Aquela
campainha e sua mensagem e tudo em torno dela tinham ficado para trás e ele não queria
mais saber daquilo.
A campainha estava tocando de novo. Muito longe como se seu eco atravessasse uma
porção de janelas fechadas dentro de sua cabeça. Sentia-se como se estivesse amarrado e
não pudesse atender contudo sentia que precisava atender. A campainha soava solitária
como Jesus Cristo retinindo no fundo de sua mente à espera de uma resposta. E eles não
podiam fazer ligações. Cada toque parecia mais solitário. A cada toque ele se sentia mais
apavorado.
Sua mente vagou de novo à deriva. Estava ferido. Gravemente ferido. A campainha sumia
aos poucos. Estava sonhando. Não estava sonhando. Estava acordado embora não
conseguisse enxergar. Estava acordado embora não conseguisse ouvir coisa alguma exceto
um telefone que na verdade não tocava. Estava tremendamente apavorado.
Lembrou-se de quando na infância leu Os últimos dias de Pompeia e acordou no meio de
uma noite escura gritando de terror com o rosto sufocando no travesseiro e pensando que o
pico de uma de suas montanhas do Colorado tinha explodido e que as cobertas eram lava e
que ele tinha sido soterrado ainda vivo e que ficaria estendido lá morrendo para sempre.
Tinha a mesma sensação de sufoco agora. Sentia o mesmo aperto de covardia nas tripas.
Estava apavorado como um herege de modo que juntou forças e fez como um homem
sepultado sob terra fofa tentando abrir caminho com as mãos em direção ao ar.
Então sentiu náusea e sufocou e teve um princípio de desmaio e foi trazido de volta à
consciência pela dor. Trespassava todo o seu corpo como eletricidade. Parecia sacudi-lo com
força e depois jogá-lo de volta à cama exausto e completamente imóvel. Ele jazia ali
sentindo o suor brotar da sua pele. Então sentiu uma outra coisa. Sentiu uma pele quente e
levemente úmida sobre ele todo e a umidade permitiu-lhe sentir as bandagens. Estava
enfaixado nelas de alto a baixo. Incluindo a cabeça.
Então estava bem ferido mesmo.
O choque fez seu coração bater contra as costelas. Sentiu comichões pelo corpo todo. O
coração batia com força no peito mas seu ouvido não conseguia escutar a pulsação.
Oh deus então estava surdo. Onde é que arranjaram aquela história de trincheiras à
prova de bombas se um homem dentro de uma delas pode ser atingido com tanta força
que o mecanismo complexo de seus ouvidos é estourado deixando-o surdo surdo tão surdo
que não consegue sequer ouvir a batida de seu próprio coração? Ele tinha sido atingido e
tinha sido atingido com tanta força que agora estava surdo. Não só um pouquinho surdo.
Não só meio surdo. Estava surdo como uma pedra.
Ficou lá deitado por um tempo sentindo a dor diminuir aos poucos e pensando isso vai
me dar algo para ruminar tudo bem tudo bem. E o resto dos rapazes? Talvez não tenham
tido tanta sorte. Havia uns bons garotos naquele buraco. Como será estar surdo e gritar
com as pessoas? A gente escreve as coisas num papel. Mas isso está errado são os outros
que escrevem coisas no papel para a gente. Não é algo que a gente saia dançando para
comemorar mas poderia ser pior. Só que quando você é surdo fica solitário. Desamparado.
Então ele nunca voltaria a ouvir. Bem havia um montão de coisas que ele não queria ouvir
de novo. Nunca quis ouvir o estridente som de castanholas de uma metralhadora nem o
assobio de uma bala de canhão de 75 mm descendo veloz nem o lento trovão quando ela
atinge o alvo nem o gemido de um avião sobre a cabeça nem os berros de um sujeito
tentando explicar a alguém que este tem uma bala na barriga e que seu almoço está
saindo pela frente dele e por que alguém não para de avançar e lhe dá uma ajuda só que
ninguém consegue ouvi-lo porque eles próprios estão todos apavorados. Ao diabo com tudo
aquilo.
As coisas entravam e saíam de foco. Era como olhar para um daqueles espelhos
ampliadores de fazer a barba e movê-lo para perto e para longe da gente. Estava enjoado e
provavelmente fora do seu juízo normal estava gravemente ferido estava solitário estava
surdo mas também estava vivo e podia ainda escutar nítido e distante o som de um
telefone tocando.
Afundava e emergia e em seguida girava em indolentes e silenciosos círculos negros.
Tudo fervilhava de sons. Estava maluco sem dúvida. Teve um vislumbre do grande fosso em
que ele e os garotos costumavam nadar no Colorado antes de ele ir para Los Angeles antes
da panificadora. Podia ouvir o som da água espirrando num daqueles mergulhos do Art que
maluco saltar lá do alto daquele jeito por que o resto de nós não consegue fazer o mesmo?
Seu olhar atravessou os prados ondulados da Grand Mesa a mais de três mil metros céu
adentro e viu acres de aquilégias agitando-se à brisa fria de agosto e ouviu à distância o
murmúrio dos córregos de montanha. Viu seu pai puxando o trenó com sua mãe dentro
numa manhã de Natal. Ouviu a neve fresca assobiando sob as lâminas do trenó. O trenó
tinha sido seu presente de Natal e sua mãe estava rindo como uma menina e seu pai sorria
de lado com aquele seu jeito lento e enrugado.
Pareciam estar se divertindo sua mãe e seu pai. Especialmente naquela época.
Costumavam flertar um com o outro na frente dele antes de as meninas nascerem. Lembra
disso? Lembra daquilo? Eu chorava. Você falava desse jeito. Você tinha um penteado assim.
Você me levantava e eu me lembro de como você era forte e me punha em cima do velho
Frank porque ele era manso e depois disso atravessávamos o rio sobre o gelo com o velho
Frank escolhendo o caminho cuidadosamente como um cachorro.
Lembra do telefone quando você estava me cortejando? Lembro de tudo de quando
estava te cortejando até mesmo do ganso que costumava investir e grasnar para mim
quando eu te pegava nos braços. Lembra do telefone quando você estava me cortejando
que nem um bobo? Lembro. Então se lembra da linha telefônica que percorria trinta
quilômetros ao longo do Cole Creek Valley e tinha apenas cinco assinantes? Lembro lembro
do jeito que você olhava com seus grandes olhos e sua testa lisa você não mudou nada.
Lembra da linha telefônica lembra de como ela era nova? Oh era solitário lá sem ninguém
em cinco ou seis quilômetros e na verdade ninguém no mundo inteiro além de você. E eu
esperando o telefone tocar. Tocava duas vezes para nós lembra? Dois toques e você estava
me ligando da mercearia quando ela estava fechada. E os aparelhos ao longo de toda a
linha todos os cinco fazendo clique-clique Bill está ligando para Macia clique-clique-clique.
E então sua voz que engraçado foi ouvir sua voz pela primeira vez no telefone como foi
maravilhoso aquilo.
“Alô Macia?”
“Alô Bill como vai?”
“Estou bem você já acabou o serviço?”
“Acabamos de lavar a louça.”
“Suponho que todo mundo esteja escutando de novo esta noite.”
“Suponho que sim.”
“Eles não sabem que eu te amo? Pensei que isso bastasse para eles.”
“Talvez não baste.”
“Macia por que você não toca alguma coisa no piano?”
“Tá bem Bill. Que música?”
“Qualquer uma de que você goste eu gosto de todas.”
“Tá bem Bill. Espere até eu ajeitar o telefone.”
E então de Cole Creek para o oeste do outro lado das montanhas para quem vinha de
Denver a música tilintava pelos fios telefônicos que eram novinhos em folha e
maravilhosos. A mãe dele antes de ser mãe dele antes mesmo de pensar particularmente
em ser sua mãe sentava-se ao piano o único piano em Cole Creek e tocava “Beautiful Blue
Ohio” ou talvez “My Pretty Red Wing”. Tocava claro e sem erro e o pai dele em Shale City
estaria escutando e pensando não é maravilhoso isso posso ficar sentado aqui a treze
quilômetros de distância segurando esta coisa preta junto à orelha e ouvindo a distante
música de Macia minha linda Macia.
“Deu para ouvir Bill?”
“Sim. Estava lindo.”
Então outra pessoa talvez uns dez quilômetros mais adiante ou mais atrás na linha
entrava na conversa sem nenhum pudor.
“Macia eu por acaso peguei o telefone e ouvi você tocando. Por que não toca ‘After the
Ball is Over’? O Clem ia gostar de ouvir se você não se incomodar.”
Sua mãe voltava para o piano e tocava “After the Ball is Over” e Clem em algum lugar
estaria ouvindo música pela primeira vez em três ou quatro meses. Esposas de rancheiros
estariam sentadas depois das tarefas diárias com o telefone no ouvido escutando também
e ficando sonhadoras e pensando em coisas que seus maridos nem sequer suspeitavam. E
assim era com todo mundo para cima e para baixo no leito solitário de Cole Creek pedindo
à mãe dele que tocasse uma música favorita e o pai dele ouvindo em Shale City e gostando
mas ficando talvez um pouco impaciente de vez em quando e dizendo a si mesmo quero
que esse pessoal em Cole Creek compreenda que isto é um namoro não um concerto.
Sons sons sons por toda parte com a campainha do telefone sumindo e voltando e ele tão
enjoado e surdo que queria morrer. Estava chafurdando no negrume e lá longe o telefone
tocava sem ninguém para atender. Um piano tilintava à distância e ele sabia que sua mãe o
estava tocando para seu pai morto antes de seu pai estar morto e antes que ela tivesse
qualquer ideia dele seu filho. O piano tocava no ritmo do telefone e o telefone no do piano
e atrás deles o que havia era um silêncio denso e um desejo intenso de ouvir e uma grande
solidão.

A lua brilha esta noite sobre a bela Asa Vermelha


Os pássaros suspiram, o vento noturno geme…2
II

SUA MÃE ESTAVA CANTANDO NA COZINHA. Ele podia ouvi-la cantando lá e o som de sua voz era o som da casa. Ela
cantava a mesma canção vezes sem conta. Nunca cantava a letra só a melodia numa
espécie de voz ausente como se estivesse pensando em outra coisa e o canto fosse apenas
uma maneira de matar o tempo. Quanto mais ocupada estivesse mais cantava.
Era o outono daquele ano. Os álamos e choupos-do-canadá tinham se tingido de
vermelho e amarelo. Sua mãe estava trabalhando e cantando na cozinha debruçada sobre
o velho fogão a lenha. Batia creme de maçã numa grande tigela. Ou então estava
enlatando pêssegos em calda. Os pêssegos espalhavam um delicioso cheiro picante por
toda a casa. Estava fazendo geleia. A polpa da fruta pendia dentro de um saco de farinha
sobre a parte menos quente do fogão. Através do tecido os sucos escorriam grudentos e
caíam numa frigideira. A frigideira tinha uma espessa espuma rosada nas beiradas. No
centro o sumo era claro e vermelho.
Ela estava assando pão. Assava pão duas vezes por semana. Mantinha um pote de
levedura na geladeira entre uma assadura e outra para não precisar se preocupar com
fermento. O pão era grosso e marrom e às vezes subia mais de cinco centímetros acima da
beirada da fôrma. Quando ela o tirava do forno lambuzava de manteiga a crosta marrom e
deixava esfriar. Mas ainda melhores que o pão eram os bolinhos. Ela os assava a tempo de
saírem do forno logo antes do jantar. Saíam pelando de quentes e a gente passava
manteiga no meio deles e também geleia ou compota de damasco com nozes na calda. Era
tudo o que se queria para a janta embora a gente tivesse que comer outras coisas
evidentemente. Nas tardes de verão você pegava uma fatia grossa de pão e passava
manteiga fria nela. Então espargia açúcar sobre a manteiga e aquilo ficava melhor que
bolo. Ou então pegava uma fatia grossa de cebola bermuda doce e a enfiava no meio do
pão com manteiga e ninguém em nenhum lugar do mundo tinha uma coisa mais deliciosa
para comer.
No outono sua mãe trabalhava dia a dia e semana a semana mal saindo da cozinha.
Enlatava pêssegos e cerejas e amoras e framboesas e ameixas e damascos em calda e fazia
geleias gelatinas e compotas e molhos de pimenta. E enquanto trabalhava não parava de
cantar. Entoava a mesma cantiga numa voz ausente e sem palavras como se estivesse o
tempo todo pensando em outra coisa.
Havia um homem que vendia hambúrgueres na esquina da rua Cinco com a Principal. Era
magrelo e curvado e tinha cara de pastel e gostava de conversar com qualquer um que
parasse na sua barraquinha. Era o único vendedor de hambúrguer em Shale City de modo
que tinha o monopólio do negócio. Havia quem dissesse que ele era um viciado em drogas
e que em algum momento se tornaria perigoso. Mas nunca se tornou e fazia o melhor
hambúrguer que alguém já comeu. Tinha uma chapa e um fogareiro a gás e num raio de
um quarteirão de distância a gente sentia o cheiro maravilhoso das cebolas fritando ali. Ele
abria a barraquinha por volta das cinco ou seis da tarde e ficava fritando hambúrgueres até
dez ou onze da noite. Tinha fila de espera para conseguir um sanduíche.
Sua mãe adorava os sanduíches do homem do hambúrguer. Nas noites de sábado seu pai
trabalhava até tarde no armazém. Joe ia até o centro nas noites de sábado e esperava até
seu pai receber seu salário semanal. Às quinze para as dez quando o armazém estava se
preparando para fechar seu pai lhe dava trinta centavos para comprar três hambúrgueres.
Ele corria com o dinheiro até o homem do hambúrguer para pegar um lugar na fila. Pedia
três hambúrgueres para viagem com um montão de cebola e mostarda doce. Quando o
pedido ficava pronto seu pai já estaria a caminho de casa. O homem do hambúrguer
colocava os sanduíches num saco e Joe punha o saco junto ao corpo por dentro da camisa.
E corria assim até em casa para que os hambúrgueres continuassem quentes. Corria dentro
das noites cortantes de outono sentindo o calor dos hambúrgueres junto ao estômago. A
cada sábado tentava bater o recorde de rapidez do sábado anterior para que os
hambúrgueres se conservassem ainda mais quentes. Chegava em casa e tirava-os para fora
da camisa e sua mãe comia um no ato. A essa altura seu pai já estava em casa também.
Era um grandioso banquete de sábado à noite. As meninas sendo tão novinhas já estavam
na cama e ele tinha a sensação de ter seu pai e sua mãe só para ele. Era de certa forma um
adulto. Invejava o homem do hambúrguer porque o homem do hambúrguer podia ter todos
os sanduíches que quisesse.
No outono vinha a neve. Geralmente havia neve no Dia de Ação de Graças mas às vezes
não vinha antes do meio de dezembro. A primeira nevada era a coisa mais maravilhosa da
terra. Seu pai sempre o acordava cedo sua voz trovejando a respeito da neve. Era
geralmente uma neve molhada e grudava em tudo o que tocava. Até mesmo a cerca de
arame em torno do galinheiro no quintal dos fundos ficava coberta por mais de um
centímetro de neve. As galinhas nunca deixavam de se espantar e alarmar com a primeira
nevada. Elas pisavam com cuidado sobre a neve sacudindo as patas e os galos andavam de
um lado para outro resmungando o dia todo. Os telheiros ficavam sempre lindos e um
mourão de cerca tinha uma coberta de neve de dez centímetros. Os pássaros nos terrenos
baldios traçavam pequenos desenhos na neve atravessada de quando em quando por um
rastro de coelho. Seu pai nunca deixava de acordá-lo cedo quando a neve começava a cair.
Primeiro ele corria até a janela para olhar. Depois se enfiava em suas roupas grossas e seu
casaco de lã e suas botas e suas luvas de pele de carneiro e pegava seu trenó e não voltava
até que os pés ficassem dormentes e o nariz gelado. A neve era uma coisa maravilhosa.
Na primavera as prímulas cobriam todos os terrenos baldios. Elas se abriam de manhã e
se fechavam quando o sol ficava quente e voltavam a se abrir ao anoitecer. À tardinha os
garotos saíam à caça de prímulas. Traziam grandes buquês de flores brancas do tamanho
de uma mão e as colocavam em vasos rasos com água. No Primeiro de Maio eles faziam
cestas e as enchiam de prímulas escondendo algumas balas sob as flores. Quando
escurecia eles saíam de casa em casa e deixavam uma cesta e batiam na porta e saíam em
disparada noite adentro.
Lincoln Beechy3 veio à cidade. Foi o primeiro avião que Shale City viu na vida. Puseram-no
numa tenda no meio da pista de corrida no terreno destinado às feiras. Todo santo dia as
pessoas faziam fila na tenda para contemplá-lo. Parecia feito de arame e lona. As pessoas
não entendiam como um homem era capaz de fazer sua vida depender de um reles arame.
Se um fio daqueles rebentasse seria o fim de Lincoln Beechy. Na dianteira do avião à frente
das hélices havia um pequeno assento e diante dele uma alavanca. Era ali que o grande
aviador sentava.
Todo mundo em Shale City ficou contente com a ideia da vinda de Lincoln Beechy à
cidade. Era uma coisa maravilhosa. Shale City estava mesmo virando uma metrópole.
Lincoln Beechy não parava em qualquer cidadezinha da roça. Parava apenas em lugares
como Denver e Shale City e Salt Lake e agora iria seguir para San Francisco. A cidade
inteira deixou os afazeres de lado no dia em que Lincoln Beechy fez acrobacias aéreas. Fez
o looping cinco vezes. Aquilo foi a coisa mais infernal que alguém já tinha visto.
O sr. Hargraves que era superintendente de escolas fez um discurso antes do voo. Falou
sobre a invenção do avião como o maior passo à frente que o homem dera em cem anos. O
avião disse o sr. Hargraves iria reduzir as distâncias entre nações e povos. O avião seria um
grandioso instrumento para fazer as pessoas compreenderem umas às outras e amarem
umas às outras. O avião disse o sr. Hargraves estava anunciando uma nova era de paz e
prosperidade e entendimento mútuo. Todos seriam amigos disse o sr. Hargraves quando o
avião entrelaçasse o mundo de tal maneira que os povos compreendessem uns aos outros.
Depois do discurso Lincoln Beechy fez cinco loopings e deixou a cidade. Um par de meses
depois seu avião caiu na Baía de San Francisco e Lincoln Beechy morreu afogado. Shale
City sentiu como se tivesse perdido um morador. O Shale City Monitor publicou um
editorial. Dizia que embora Lincoln Beechy estivesse morto o avião instrumento da paz
tecelão da unidade dos povos iria seguir em frente.
Seu aniversário caía em dezembro. A cada aniversário sua mãe fazia um grande jantar e
ele chamava os amigos. Cada um dos amigos também fazia jantar de aniversário de modo
que havia pelo menos seis grandes eventos durante o ano para os rapazes se reunirem.
Eles geralmente jantavam frango e havia sempre um bolo de aniversário e sorvete. Todos os
rapazes traziam presentes. Ele nunca iria esquecer a vez que Glen Hogan lhe trouxe um par
de meias de seda marrons. Isso foi antes de ele usar calça comprida. As meias pareciam
significar um passo adiante rumo a um futuro adulto. Eram muito bonitas. Depois da festa
ele as calçou e ficou olhando para elas um tempão. Ganhou calça comprida para usar com
elas três meses depois.
Os rapazes todos gostavam do pai dele provavelmente porque o pai dele gostava dos
rapazes. Depois que acabava o jantar seu pai sempre os levava a um show. Vestiam seus
casacos de lã e saíam para a neve e marchavam pesadamente até o teatro Elysium. Era o
máximo sentir-se aquecido por dentro pela comida e o rosto frio no ar de zero grau e tendo
um show pela frente. Ele ainda era capaz de ouvir agora mesmo o som dos passos deles
rangendo na neve. Era capaz de ver seu pai liderando o grupo até o Elysium. Lembrava que
o show era sempre bom.
No outono havia a Feira do Condado. Havia cavalos xucros e bois bravos a ser derrubados
e corridas de índios montados em pelo e corridas de trote. Havia sempre um bando de
índios liderados pela grande Chipeta. Uma rua em Shale City tinha o nome dela. A cidade
de Ouray Colorado tinha esse nome em homenagem ao cacique Ouray marido dela. Os
índios que Chipeta trazia consigo não faziam muita coisa além de ficar de cócoras olhando
em volta mas a própria Chipeta era toda sorrisos e conversas sobre os velhos tempos.
Um parque de diversões veio à cidade durante a feira e a gente via mulheres cortadas ao
meio e motociclistas desafiando a morte para cima e para baixo numa parede circular. No
principal auditório da área da feira havia frutas em conserva cintilando dentro de potes de
vidro e bancas de bordados e bolinhos e pilhas de pão e abóboras enormes e batatas
extravagantes. Nos cercados dos bichos havia novilhos que pareciam sólidos como uma
casa e porcos do tamanho de vacas e galinhas bem criadas. A semana da feira era a maior
semana do ano. De certo modo era até maior que o Natal. A gente comprava chicote com
cabelo de milho na ponta e era um sinal de boas graças acertar de leve com ele as pernas
de uma garota de quem a gente gostasse. Havia um cheiro na área da feira que a gente
nunca esquecia. Um cheiro com o qual a gente sonhava sem parar. Ele sempre sentiria esse
cheiro em algum lugar da sua mente enquanto vivesse.
No verão eles iam até o grande fosso ao norte da cidade e tiravam toda a roupa e
deitavam nas margens e conversavam. A água estava morna sob o ar do verão e o calor
subia como vapor da terra marrom-acinzentada. Nadavam por um tempinho depois
voltavam à margem e sentavam em círculo e se bronzeavam e conversavam. Falavam sobre
bicicletas e garotas e cães e armas. Falavam sobre viagens de acampamento e caçadas de
coelhos e garotas e pescarias. Falavam das facas de caça que todos queriam mas só Glen
Hogan tinha. Falavam de garotas.
Quando chegaram à idade de levar garotas para sair eles as levavam sempre ao pavilhão
montado na área da feira. Começaram a vestir-se com capricho. Falavam sobre gravatas
que combinavam com lenços e calçavam sapatos duráveis de salto baixo e vestiam camisas
que tinham vívidas listras vermelhas e verdes e amarelas. Glen Hogan tinha sete camisas
de seda. Tinha a maioria das garotas também. Uma questão importante era se você tinha
ou não um carro e era muito humilhante levar sua garota a pé até o pavilhão.
Às vezes a gente não tinha dinheiro suficiente para ir dançar então passeava
indolentemente pela área da feira e ouvia a música que saía do pavilhão e inundava a
noite. As canções todas tinham significado e as palavras eram muito sérias. A gente se
sentia crescer por dentro e queria muito estar lá no pavilhão. Ficava se perguntando com
quem a garota da gente estaria dançando. Então acendia um cigarro e conversava sobre
outro assunto. Era uma coisa e tanto acender um cigarro. Você só fazia isso de noite
quando ninguém ia ver. Caprichava com a maior seriedade no estilo devidamente
descuidado de segurar o cigarro. E o primeiro rapaz da turma que conseguiu tragar foi o
maior sujeito da face da terra até os outros conseguirem igualá-lo.
Na tabacaria de Jim O’Connell os velhos sentavam em círculo e conversavam sobre a
guerra. O’Connell ficava bem tranquilo na sala do fundo. Antes de a lei seca vigorar no
Colorado ali tinha sido uma taverna e as tábuas do assoalho ainda cheiravam a cerveja nos
dias úmidos. Os velhos se sentavam ali em cadeiras altas e ficavam olhando as mesas de
bilhar e cuspindo em grandes escarradeiras de latão e conversando sobre a Inglaterra e a
França e por fim sobre a Rooshia.4 A Rooshia estava sempre a ponto de iniciar uma grande
ofensiva que mandaria os malditos alemães de volta para Berlim. Isso seria o fim da guerra.
Então o pai dele decidiu ir embora de Shale City. Foram para Los Angeles. Lá ele tomou
pela primeira vez consciência da guerra. Encaminhou-se para a guerra quando a Romênia
entrou. Parecia muito importante. Nunca ouvira falar da Romênia exceto nas aulas de
geografia. Mas a entrada da Romênia na guerra ocorreu no mesmo dia em que os jornais de
Los Angeles traziam uma matéria sobre dois jovens soldados canadenses que tinham sido
crucificados pelos alemães diante de seus camaradas no meio da Terra de Ninguém. Isso
fazia dos alemães seres não melhores que animais e naturalmente a gente se interessava e
queria que a Alemanha apanhasse até dizer chega. Todo mundo falava dos poços de
petróleo e campos de trigo da Romênia e de como eles abasteceriam os Aliados e de como
isso certamente significaria o fim da guerra. Mas os alemães marcharam Romênia adentro
e tomaram Bucareste e a rainha Maria teve que deixar seu palácio. Então o pai dele morreu
e os Estados Unidos entraram na guerra e ele teve que ir também e lá estava ele.
Ali deitado ele pensava oh Joe Joe isto não é lugar para você. Esta não era uma guerra
para você. Você não tinha nada a ver com isso. O que é que lhe importa tornar o mundo um
lugar seguro para a democracia? Tudo o que você queria Joe era viver. Você nasceu e
cresceu na boa e saudável terra do Colorado e tinha tanto a ver com a Alemanha ou a
Inglaterra ou a França ou mesmo com Washington D. C. como com o homem na lua. No
entanto aqui está você e não era problema seu. Aqui está você Joe e mais machucado do
que imagina. Está machucado de verdade. Talvez fosse bem melhor se você estivesse
morto e enterrado na colina do outro lado do rio em Shale City. Talvez haja mais coisas
erradas com você do que você desconfia Joe. Oh por que diabos você se envolveu nessa
encrenca pra começo de conversa? Porque não era sua guerra Joe. Você nunca soube de
fato que guerra era essa.
III

BRACEJOU EM MEIO ÀS ÁGUAS FRIAS sem saber se conseguiria chegar de novo à superfície. Havia muito lero-
lero sobre gente que tinha afundado três vezes e em seguida morrido afogada. Ele tinha
afundado e emergido durante dias semanas meses quem saberia dizer? Mas não se
afogara. Ao subir cada vez à superfície desfalecia realidade adentro e ao afundar de novo
desfalecia para dentro do nada. Todos eles longos e lentos desmaios enquanto ele forcejava
pelo ar e pela vida. Estava lutando duramente demais e sabia disso. Um homem não pode
lutar o tempo todo. Se ele está se afogando ou sufocando tem que ser esperto e guardar
um pouco de sua força para a última a final a mortal batalha.
Permaneceu deitado de costas quietinho porque não era nenhum idiota. Deitado de
costas você pode boiar. Costumava boiar um bocado quando era garoto. Sabia como fazer.
Suas últimas forças gastando-se naquela luta quando tudo o que precisava fazer era boiar.
Que idiota.
Estavam tratando dele. Demorou um pouco para ele entender porque não conseguia
ouvi-los. Então lembrou que estava surdo. Era engraçado estar deitado ali com gente em
volta tocando nele examinando cuidando e no entanto sem som algum. As bandagens
ainda estavam em torno da cabeça toda de modo que ele também não via nada. Sabia
apenas que na escuridão ao redor fora do alcance dos seus ouvidos havia gente lidando
com ele e tentando ajudá-lo.
Estavam tirando uma parte das suas bandagens. Podia sentir o frescor o súbito
enxugamento do suor no seu lado esquerdo. Estavam cuidando de seu braço. Sentiu o
beliscão de um instrumento pequeno e pontudo pinçando alguma coisa e tirando um
tiquinho da sua pele a cada beliscão. Não se agitou. Permaneceu simplesmente ali deitado
porque tinha que poupar suas forças. Tentou conjecturar por que o estavam beliscando.
Depois de cada agulhada havia um pequeno repuxão na carne de seu braço e um
desagradável ponto de calor como de fricção. O repuxão continuou em pequenos e breves
espasmos com sua pele ficando cada vez mais quente. Doía. Queria que parassem.
Comichava. Queria que o coçassem.
Sentiu-se paralisado rijo e teso como um gato morto. Havia algo errado naquele
formigamento e repuxões e calor de fricção. Podia sentir as coisas que estavam fazendo
com seu braço e no entanto não podia sentir de fato seu braço nem um pouco. Era como se
ele sentisse dentro do braço. Era como se sentisse através do fim do seu braço. A coisa
mais próxima do fim do seu braço que ele era capaz de imaginar era a palma da mão. Mas
a palma da mão o fim do braço estava muito muito muito no alto na altura do ombro.
Oh deus do céu eles tinham cortado fora seu braço esquerdo.
Cortaram bem na altura do ombro ele podia sentir isso claramente agora.
Oh meu deus por que fizeram uma coisa dessas com ele?
Não podiam fazer isso os nojentos filhos da mãe não podiam. Precisavam ter um papel
assinado ou algo assim. Era a lei. Você não pode sair por aí cortando fora o braço de alguém
sem perguntar sem pedir permissão porque o braço de um homem é dele e de mais
ninguém e é algo necessário para ele. Oh Jesus preciso desse braço para trabalhar por que
vocês o arrancaram? Por que deceparam o meu braço me respondam por que o
deceparam? Por que por que por quê?
Afundou na água de novo e forcejou e forcejou e então emergiu com a barriga tendo
espasmos e a garganta doendo. E todo o tempo em que esteve embaixo d’água pelejando
com seu único braço para voltar à tona ficou se perguntando como uma coisa daquelas
poderia acontecer com ele só que tinha acontecido.
Então cortaram meu braço fora. Como vou trabalhar agora? Eles não pensam nisso. Não
pensam em coisa alguma só em fazer do jeito que querem. Ah é só mais um sujeito com
um buraco no braço vamos cortá-lo fora o que vocês acham pessoal? Claro corta fora o
braço dele. Dá muito trabalho e custa um montão de dinheiro consertar o braço de um
sujeito. Isto é uma guerra e a guerra é um inferno então o braço que vá para o inferno. Vem
ver isto rapazes. Engenhoso né? Ele está estendido na cama e não diz nada e que azar o
dele e estamos cansados e de todo modo esta é uma guerra nojenta então vamos cortar
logo esse troço e encerrar o assunto.
Meu braço. Meu braço cortaram fora meu braço. Está vendo esse cotoco? Costumava ser
meu braço. Oh claro eu tive um braço nasci com um e era normal como vocês e podia ouvir
e tinha um braço esquerdo como todo mundo. Mas o que vocês acham daqueles vadios
filhos da mãe que o cortaram fora?
O que estão dizendo?
Não escuto também. Não ouço nada. Escrevam. Coloquem no papel. Sim eu sei ler muito
bem. Mas não ouço. Escrevam e estendam o papel à minha mão direita porque não tenho
braço esquerdo.
Meu braço esquerdo. Fico me perguntando o que fizeram com ele. Quando você decepa o
braço de um homem tem que fazer alguma coisa com ele. Não pode deixá-lo simplesmente
largado num canto. Você o manda para um hospital para que os sujeitos possam retalhá-lo
e ver como um braço funciona? Você o embrulha num jornal velho e joga no lixão? Você o
enterra? Afinal é parte de um homem uma parte muito importante de um homem e deveria
ser tratada com respeito. Você o leva embora e o enterra e diz uma pequena oração? Devia
porque é carne humana e morreu jovem e merece uma boa despedida.
Meu anel.
Havia um anel na minha mão. O que vocês fizeram com ele? Foi a Kareen que me deu e
eu o quero de volta. Posso usá-lo na outra mão. Tenho que ficar com ele porque representa
uma coisa importante. Se vocês o roubaram vou acertar as contas com vocês logo que me
livrar destas bandagens seus ladrões filhos da mãe. Se vocês o roubaram são ladrões de
cadáveres porque meu braço decepado está morto e vocês tiraram o anel dele e roubaram
o morto foi isso o que vocês fizeram. Onde está meu anel o anel que a Kareen me deu antes
de eu afundar de novo? Eu quero o anel. Vocês têm o braço isso não basta pra vocês onde
está meu anel o anel da Kareen nosso anel por favor onde está? A mão em que ele estava
morreu e ele não foi feito para ficar na carne em decomposição. Foi feito para estar sempre
no meu dedo vivo na minha mão viva porque significava vida.
“Minha mãe que me deu. É pedra da lua verdadeira. Você pode usá-lo.”
“Não vai caber.”
“No mindinho seu bobo tenta no mindinho.”
“Ah.”
“Viu eu disse que ia caber.”
“Irlandesinha.”
“Oh Joe estou com tanto medo me beije de novo.”
“Não devíamos ter apagado as luzes. Seu velho vai ficar bronqueado.”
“Me beije. Mike não se importa ele entende.”
“Irlandesinha irlandesinha irlandesinha.”
“Não vá por favor não vá Joe.”
“Quando você é convocado tem que ir.”
“Vão matar você.”
“Talvez. Acho que não.”
“Um monte de gente é morta achando que não vai ser portanto não vá Joe.”
“Um monte de gente volta.”
“Eu te amo Joe.”
“Irlandesinha.”
“Não sou irlandesa sou bohunk.”5
“Você é meio a meio mas parece irlandesa. Tem os olhos e cabelos de uma irlandesinha.”
“Oh Joe.”
“Não chore Kareen por favor não chore.”
De repente uma sombra caiu sobre eles e ambos olharam para cima.
“Parem com isso parem já seus malditos.”
O velho Mike Birkman como foi que ele entrou na casa tão silenciosamente estava de pé
diante deles no escuro encarando-os de cima para baixo.
Deitados no sofá eles o encararam de volta. Ele parecia um anão que cresceu demais
porque suas costas estavam curvadas por vinte e oito anos de trabalho nas minas de carvão
do Wyoming. Vinte e oito anos nas minas com uma carteira da IWW6 e praguejava contra tudo
e contra todos. Ali em pé encarava-os duramente e eles não se mexiam.
“Não quero esse tipo de coisa acontecendo na minha casa. Estão pensando que isso aqui
é o banco traseiro de um calhambeque? Tratem de levantar e se comportar como um par
de pessoas decentes. Vamos. Levante daí K’reen.”
Kareen se pôs de pé. Tinha pouco mais de um metro e meio de altura. Mike jurava que
era porque ela não tivera comida suficiente quando criança mas isso provavelmente não
era verdade porque a mãe dela também tinha sido pequena e Kareen era bem formada e
saudável e linda linda tão linda. Mike tendia a exagerar quando estava nervoso. Kareen
ergueu os olhos sem medo para o velho Mike.
“Ele vai partir de manhã.”
“Eu sei. Eu sei menina. Vá para o seu quarto. Os dois. Talvez nunca tenham outra chance.
Vá K’reen.”
Kareen ficou olhando demoradamente para ele e então com a cabeça baixa como se
fosse uma criança muito ocupada pensando em alguma coisa caminhou quarto adentro.
“Entra lá garoto. Ela está com medo. Vai lá e coloca o braço em torno dela.”
Ele começou a andar para lá e então sentiu a mão de Mike apertando-lhe o ombro. Mike
estava olhando firme para o seu rosto e mesmo no escuro dava para ver seus olhos.
“Você sabe como cuidar dela não sabe? Não é nenhuma vadia. Sabe disso não sabe?”
“Sei sim.”
“Vá para a cama garoto.”
Ele se virou e caminhou para dentro do quarto.
Uma lâmpada elétrica estava acesa ao lado da escrivaninha. No canto do quarto do outro
lado da lâmpada Kareen esperava em pé. Seu corpete jazia numa cadeira a seu lado. Vestia
um saiote. Quando ele entrou ela estava com o corpo torcido em direção ao quadril onde
suas mãos tentavam abrir o fecho da saia. Ela ergueu os olhos e o viu só ficou olhando sem
mover as mãos ou qualquer outra coisa. Olhava para ele como se o estivesse vendo pela
primeira vez e não soubesse se gostava dele ou não. Olhava para ele de um jeito que o fez
ter vontade de chorar.
Caminhou até ela e envolveu-a cuidadosamente com os braços. Ela se inclinou para ele
apoiando a testa em seu peito. Então se virou e foi para a cama. Puxou as cobertas para
baixo e subiu na cama vestida como estava. Manteve os olhos nele o tempo todo como se
temesse que ele dissesse uma palavra áspera ou risse ou fosse embora. Fez movimentos
silenciosos sob as cobertas e então suas peças de roupa começaram a cair do lado da cama
escapando por baixo das cobertas. Quando estavam todas no chão ao lado da cama ela
sorriu para ele.
Ele começou lentamente a despir a camisa sem tirar os olhos dela. Ela olhou em volta e
franziu o cenho.
“Joe vire de costas.”
“Por quê?”
“Esqueci de uma coisa. Vire de costas.”
“Não.”
“Por favor.”
“Não. Eu pego para você.”
“Eu mesma quero pegar. Vire as costas.”
“Não. Eu quero te ver.”
“Você não pode Joe pegue meu penhoar.”
“Tudo bem. Vou pegar.”
“No guarda-roupa. É vermelho.”
Ele foi até o guarda-roupa e apanhou o penhoar. Era uma coisinha fina com flores
estampadas e não bastava para cobrir direito ninguém. Levou o penhoar até a cama e o
segurou a certa distância dela.
“Traz mais perto.”
“Vem pegar.”
Ela riu então estendeu rapidamente o braço e arrebatou o penhoar da mão dele e voltou
depressa para baixo das cobertas. Teve que estender tanto o braço que ele viu a curva do
seu seio. Ela riu de mansinho o tempo todo em que pelejou sob as cobertas para vestir o
penhoar como se tivesse pregado uma boa peça nele. Então afastou as cobertas e saltou da
cama e correu descalça para a sala de estar. Ele viu seus pés quando saltaram para o chão.
Cada um deles tinha dois arcos um no dorso e outro que atravessava a sola subindo
delicadamente da almofada na base dos dedos e ia terminar perto do calcanhar. Ele pensou
que lindos os pés dela que fortes e lindos eles são.
Ela voltou com um vaso cheio de gerânios vermelhos. Levou-os para uma mesinha que
ficava em frente à janela.
Abriu a janela e então se virou devagar para encará-lo de frente. Estava recostada na
mesinha e ao mesmo tempo meio apoiada nela com as mãos.
“Se você quer mesmo me ver.”
“Mas se você não quiser eu não faço questão.”
Ela caminhou até o guarda-roupa e ficou de costas e deixou cair o penhoar. Então se virou
olhando o tempo todo para os pés e foi até a cama e deslizou para baixo das cobertas.
Ele apagou a luz e tirou a roupa e deitou na cama ao lado dela. Lançou seu braço em
torno dela meio desajeitadamente como se tivesse sido um acidente. Ela ficou deitada bem
quieta. Ele mexeu a perna. Uma pequena lufada de ar subiu de entre as cobertas e ele
sentiu o cheiro dela. Carne limpa limpa e cheiro de sabão e lençóis. Colocou a perna junto à
dela. Ela girou o corpo em direção a ele e jogou os dois braços em torno do seu pescoço e o
abraçou forte.
“Oh Joe Joe não quero que você vá.”
“Você acha que eu quero ir?”
“Estou com medo.”
“De mim?”
“Oh não.”
“Irlandesinha.”
“Está gostoso assim né?”
“Ummm.”
“Você já esteve desse jeito com alguém antes?”
“Não com alguém que eu amasse.”
“Fico contente.”
“É verdade. E você?”
“Você não devia fazer essa pergunta.”
“Por quê?”
“Porque eu sou uma dama.”
“Você é uma irlandesinha.”
“Nunca fui.”
“Eu sei.”
“Mas você não tinha como saber de verdade oh Joe queria que você fugisse e não fosse.”
“Vem cá. Deita em cima do meu braço esquerdo. Como um travesseiro.”
“Me beija.”
“Minha irlandesinha.”
“Querido. Oh querido. Oh. Oh meu querido meu querido meu querido meu.”
Não dormiram muito. Às vezes cochilavam e despertavam e percebiam que estavam
separados e então se juntavam de novo e se abraçavam forte muito forte como se tivessem
se perdido um do outro para sempre e se encontrado de novo. E ao longo de toda a noite
Mike andou de um lado para outro pela casa tossindo e resmungando.
Quando veio a manhã ele estava em pé junto à cama deles segurando uma tábua de
bater carne servindo de bandeja para o café da manhã dos dois.
“Aqui garotos tratem de comer.”
O velho e bruto Mike ali parado amável e grisalho e veemente com dolorosos olhos
injetados. Mike tinha ido parar na cadeia tantas vezes que só podia ser um bom sujeito. O
velho Mike que odiava todo mundo. Odiava Wilson e odiava Hughes e odiava Roosevelt e
odiava os socialistas porque eles só tinham palavrório e leite nas veias em vez de sangue.
Odiava até mesmo Debs um pouco mas não muito. Vinte e oito anos na mina de carvão
tinham-no transformado num formidável odiador. “E agora sou um segurança de estrada de
ferro um maldito segurança de estrada de ferro que maneira mais nojenta de ganhar a
vida.” Mike com suas costas curvadas do trabalho nas minas ali em pé com o café da
manhã deles.
“Aqui garotos. Comam logo. Não têm muito tempo.”
Comeram. Mike saiu resmungando e não entrou mais no quarto. Quando acabaram de
comer ficaram um tempo deitados olhando para o teto e fazendo a digestão.
“Você roncou.”
“Eu não. Além do mais não é educado de sua parte mencionar isso. Foi você de todo
modo.”
“Foi um ronquinho bonitinho. Eu gostei.”
“Você é terrível. Levanta você primeiro.”
“Não primeiro levanta você.”
“Oh Joe me beije não vá.”
“Tratem de se apressar garotos.”
“Levanta você.”
“Você.”
“Vou contar – um dois três.”
Saltaram da cama. Estava friozinho. Tiritaram e riram um para o outro e demoraram uma
vida para se vestir pois paravam a todo momento para se beijar.
“Depressa seus desgraçados. Vocês vão perder o trem e aí quem vai fuzilar o Joe são os
americanos em vez dos alemães. Seria uma vergonha danada.”
Havia quatro trens cheios deles partindo naquela manhã e uma multidão monstruosa na
estação. A estação toda e os vagões e até mesmo as locomotivas estavam cobertos de
faixas e bandeiras e as crianças e mulheres agitavam bandeirolas distraidamente. Havia
três bandas que aparentemente tocavam ao mesmo tempo e uma porção de policiais
agrupando e conduzindo as pessoas de um lado para outro e canções e o prefeito fazendo
um discurso e pessoas chorando e se perdendo umas das outras e rindo e bêbadas.
A mãe e as irmãs dele estavam lá e Kareen estava lá e Mike estava lá resmungando
malditos idiotas e olhando feio para todo mundo e observando Kareen com atenção.
“E suas vidas se necessário para que a democracia não seja eliminada da face da terra.”
É um logo caminho até Tiperrary7 é um longo caminho a percorrer.
“Não tenha medo Kareen. Está tudo bem.”
“Como disse aquele grande patriota o Patrick Henry.”
Johnny pegue sua arma pegue sua arma pegue sua arma.
“Como disse aquele grande patriota George Washington.”
“Adeus mãe adeus Catherine adeus Elizabeth. Vou mandar para casa metade do meu
soldo e a pensão do pai vai segurar as pontas até eu voltar.”
E não vamos voltar até que a coisa acabe por lá.
“Pise firme garoto você agora está no exército.”
Enfie todos os problemas em sua velha mochila militar e sorria sorria sorria.
“Como disse aquele grande patriota Abraham Lincoln.”
“Cadê o meu menino cadê o meu menino? Ele ainda não tem idade vocês não estão
vendo? Chegou de Tucson não faz nem uma semana. Jogaram ele na cadeia por vadiagem e
eu vim de lá até aqui para levá-lo de volta. Deixaram ele sair da cadeia se entrasse no
exército. Ele só tem dezesseis anos só que é grande e forte para a idade sempre foi. É
novinho demais estou lhes dizendo é uma criança ainda. Cadê o meu menino?”
Adeus mãe adeus pai adeus mula com seu bom e velho zurro.
“Como disse aquele grande patriota Theodore Roosevelt.”
América eu te amo você é como uma namorada para mim.
“Não vá Joe fuja eles vão te matar você sabe disso eu não vou te ver de novo nunca mais.”
Oh Kareen por que inventaram uma guerra justo agora que a gente acabou de se achar?
Kareen temos coisas mais importantes que a guerra. Nós Kareen você e eu numa casa. Vou
voltar para casa à noite para você em minha casa sua casa nossa casa. Teremos filhos
gordinhos felizes filhos espertos também. Isso é mais importante que uma guerra. Oh
Kareen Kareen eu olho pra você e você só tem dezenove anos e você é velha velha como
uma velha. Kareen eu olho pra você e choro por dentro e sangro.
Nada mais que uma oração de uma criança ao entardecer quando a luz se esvai.
“Como disse aquele grande patriota Woodrow Wilson.”
Há uma borda prateada brilhando em torno da nuvem escura.
“Todo mundo embarcando. Todo mundo embarcando.”
Por ali por ali por ali por ali.
“Até logo filho. Escreva para nós. Vamos aguentar.”
“Adeus mãe adeus Catherine adeus Elizabeth não chorem.”
“Pois vocês são os filhos de Los Angeles. Que Deus os abençoe. Que Deus nos dê a
vitória.”
“Todo mundo embarcando. Todo mundo embarcando.”
Os ianques estão chegando os ianques estão chegando.
“Vamos rezar. Pai nosso que estás no Céu.”
Não posso rezar. Kareen não pode rezar. Kareen Kareen não é hora de rezar.
“Assim na terra como no céu.”
Kareen Kareen eu não quero ir. Quero ficar aqui e estar com você e trabalhar e ganhar
dinheiro e ter filhos e amar você. Mas tenho que ir.
“Pois teu é o reino o poder e a glória para sempre e sempre Amém.”
“Adeus Mike adeus Kareen eu te amo Kareen.”
Oh digam vocês estão vendo8
“Adeus mãe adeus Catherine adeus Elizabeth.”
O que saudamos com tanto orgulho
“Você em meus braços para sempre Kareen.”
Cujas largas listras e estrelas brilhantes
Adeus todo mundo adeus. Adeus meu filho pai irmão amante marido adeus. Adeus adeus
minha mãe pai irmão irmã namorada esposa adeus e adeus.
Sobre a terra dos livres e o lar dos bravos
“Adeus Joe.”
“Adeus Kareen.”
“Joe caro querido Joe me abrace mais forte. Solte a mochila e ponha os braços ao meu
redor e me abrace com força. Com os dois braços me envolvendo. Os dois.”
Você nos meus braços Kareen adeus. Nos meus dois braços. Kareen nos meus braços. Em
ambos. Braços braços braços braços. Estou desmaiando e acordando o tempo todo Kareen
e demoro um pouco para entender. Você está em meus braços Kareen. Você em meus dois
braços. Em meus dois braços. Em ambos. Ambos.
Não tenho braço nenhum Kareen.
Meus braços se foram.
Ambos os meus braços se foram Kareen os dois.
Se foram.
Kareen Kareen Kareen.
Cortaram fora meus braços ambos os meus braços.
Oh Jesus mãe deus Kareen cortaram meus dois braços fora.
Oh Jesus mãe deus Kareen Kareen Kareen meus braços.
IV

FAZIA CALOR. UM CALOR TÃO GRANDE QUE JOE parecia estar queimando por dentro e por fora. Estava tão quente
que não conseguia respirar. Só conseguia arfar. Lá longe contra o céu havia uma enevoada
linha de montanhas e a estrada de ferro cruzava em linha reta o deserto dançando e
vibrando no calor. Parecia que ele e Howie estavam trabalhando na ferrovia. Era engraçado.
Oh diacho as coisas começavam a ficar misturadas de novo. Ele já tinha visto tudo aquilo
antes. Era como entrar numa nova lanchonete pela primeira vez e sentar e de repente
sentir que tinha estado ali muitas vezes antes e que tinha ouvido o que o atendente iria
dizer tão logo viesse servir a gente. Ele e Howie trabalhando na ferrovia sob o calor? Claro.
Claro. Tudo bem. Estava tudo sob controle.
Ele e Howie estavam trabalhando ali embaixo do sol quente assentando aqueles trilhos
através do deserto de Uintah. E ele sentia tanto calor que achava estar a ponto de morrer.
Sentia que se pelo menos pudesse parar para descansar um pouco tudo se refrescaria. Mas
essa era a coisa ruim de um trabalho de turma como aquele. Você não podia parar nunca.
Os camaradas não riam nem brincavam como seria de imaginar. Não diziam uma palavra.
Simplesmente trabalhavam.
Se a gente olha para uma equipe de trabalho parece sempre que eles estão trabalhando
devagar. Mas é preciso trabalhar devagar porque você nunca para e tem que dosar a
energia. Você não para porque tem medo. Não é que você tenha medo do contramestre
pois o contramestre nunca incomoda ninguém. É que você teme pelo serviço e pelo tanto
que os outros rapazes vão fazer. Então ele e Howie trabalhavam devagar e sempre tentando
não ficar para trás dos mexicanos.
Sua cabeça latejava e ele podia ouvir o coração batendo contra as costelas e até mesmo
nas panturrilhas sentia a forte pulsação e no entanto não podia parar de trabalhar nem por
um minuto. Seu fôlego foi diminuindo diminuindo e parecia que seus pulmões eram
pequenos demais para reter o ar que ele precisava jogar dentro deles se quisesse continuar
vivo. Estava cinquenta graus na sombra e não havia sombra e ele se sentia como se
estivesse sufocando sob um quente cobertor branco e tudo o que conseguia pensar era
tenho que parar tenho que parar tenho que parar.
Pararam para almoçar.
Era o primeiro dia deles na turma e ele e Howie naturalmente achavam que seriam
abastecidos de almoço pelo carro de mão da ferrovia. Mas não foram. Quando o
contramestre viu que eles não tinham nada para comer disse alguma coisa para um par de
mexicanos. Os mexicanos vieram e ofereceram a eles um pouco do que havia em suas
marmitas. Os mexicanos estavam comendo sanduíches de ovo frito cobertos de pimenta.
Ele e Howie só resmungaram não obrigado e deitaram de costas. Então viraram de bruços
porque o sol estava tão quente que teria queimado seus olhos mesmo com as pálpebras
baixadas. Os mexicanos ficaram ali sentados comendo seus sanduíches de ovo frito e
observando os dois.
De repente houve o rumor dos mexicanos se levantando então ele e Howie se desviraram
para ver o que estava acontecendo. A turma toda estava caminhando pela ferrovia numa
marcha meio apressada. O contramestre ficou lá sentado só olhando a turma. Eles
perguntaram ao contramestre o que significava aquilo e ele respondeu que os rapazes iam
dar um mergulho.
A ideia de um mergulho era demais. Ele e Howie se levantaram de um salto e saíram
correndo atrás dos outros. Do jeito que o contramestre falou eles acharam que iam andar só
um pedaço pequeno da ferrovia. Mas acabou que tiveram de caminhar mais de três
quilômetros até chegar a um canal com uns três metros de largura e cor de lama e ambas
as margens atulhadas de touceiras de salsola. Os mexicanos começaram a tirar as roupas.
Ele e Howie ficaram pensando como poderiam entrar na água sem ficar cheios de espinhos
e algas. Decidiram que devia haver alguma trilha no meio das algas senão os mexicanos
para começar não teriam topado ir lá nadar. Quando eles acabaram de se despir os
mexicanos já estavam se debatendo e espirrando água e rindo e gritando no meio do fosso.
Acontece que não havia caminho algum entre as touceiras de salsola entrelaçadas.
Ficaram envergonhados de estar ali tão nus e tão brancos comparados aos outros e parados
sem fazer nada. Então começaram a saltar as touceiras do jeito que dava até chegar à
água. A água estava quente e tinha um cheiro alcalino mas isso não fazia a menor
diferença. Era como um aguaceiro de abril. Ele pensou na piscina da ACM em Shale City.
Pensou deus do céu esses sujeitos agem como se esta fosse a mais grandiosa piscina do
mundo. Pensou aposto que nunca na vida estiveram numa piscina de verdade. Estava
parado ali com os pés enfiados até as canelas na lama do fundo do fosso quando os
mexicanos começaram a escalar as margens e vestir suas roupas de novo. A natação tinha
terminado.
Quando voltaram para onde estavam suas roupas ele e Howie tinham plantas
espinhentas grudadas até os quadris. Notavam que os mexicanos nem sequer se davam ao
trabalho de tirar os espinhos. Alguns dos mexicanos já estavam a caminho do carrinho de
mão de modo que eles limparam de qualquer jeito as pernas e saltaram para dentro das
roupas. Então correram de volta os três quilômetros e terminou a hora do almoço e era hora
de voltar à labuta.
À medida que a tarde avançava ele e Howie começaram a cambalear no trabalho e
finalmente a cair. O contramestre não dizia coisa alguma quando eles caíam e os
mexicanos tampouco. Os mexicanos simplesmente paravam e esperavam que eles
levantassem encarando-os o tempo todo feito bebês. Quando eles se punham mal e mal
em pé recomeçavam a arrastar os trilhos. Cada músculo de seus corpos doía e ainda assim
eles tinham que seguir trabalhando. A maior parte da pele das mãos estava escalavrada.
Toda vez que seguravam as tenazes quentes e erguiam os pedaços de trilhos chegavam a
sentir na boca o gosto da dor das mãos em carne viva. Os espinhos nos pés e nas pernas
pareciam penetrar mais fundo a cada passo e eles se enchiam de feridas e não havia tempo
para parar e arrancar os espinhos.
Mas as dores e os machucados e o terrível cansaço não eram o pior. O corpo de algum
modo podia aguentar mas eram as coisas dentro dele que começaram a oprimir e urrar.
Seus pulmões ficaram tão secos que chiavam a cada respiração. O coração estava inchado
de bater com tanta força. Teve um princípio de pânico por perceber que não poderia
aguentar e saber que não tinha escolha. Desejou morrer desde que isso o livrasse do
trabalho. O chão começou a subir e descer sob seus pés e as coisas tingiram-se de cores
estranhas e o homem mais próximo parecia flutuar na névoa a quilômetros de distância.
Não havia nada real exceto a dor.
Toda a tarde foi um tal de cair de joelhos na areia e arfar em busca de fôlego e sentir o
estômago inchar e latejar e repuxar com força. Tentou pensar em Diane. Tentou pensar na
aparência dela. Tentou encontrá-la ali no deserto para ter algo a que se apegar. Mas não
conseguiu trazer o rosto dela para diante de seus olhos. Não conseguiu sequer imaginá-la.
De repente pensou oh Diane você não merece. Não pode merecer isso tudo. Ninguém na
terra exceto talvez a mãe da gente poderia valer tanto sofrimento. No entanto trabalhando
ali no meio do sofrimento ele tentava conceber desculpas para Diane. Talvez ela não tivesse
realmente a intenção de enganá-lo. Talvez ela tivesse saído com Glen Hogan porque não
tinha encontrado uma escapatória. Se isso fosse verdade e ele esperava que fosse então era
uma tremenda idiotice ele estar ali no deserto querendo esquecer tudo no meio de um
bando de mexicanos quando poderia muito bem estar de volta à sombra fresca de Shale
City gozando férias de verão e pensando talvez eu saia com a Diane hoje à noite.
Pensou as garotas são mesmo uma coisa terrível. As garotas são provavelmente falsas e
infiéis e tentam esmagar um sujeito mas é isso que você precisa esperar delas. Você tem
que esperar isso delas e aprender a perdoá-las porque era lógico que quando você saía
correndo como ele e Howie para o meio do deserto e decidia enterrar-se lá pelos três meses
de férias de verão só quem sofria com isso era você mesmo. E ainda deixava a garota lá em
Shale City livre para sair com Glen Hogan todas as vezes que quisesse. Arrastando trilhos e
cambaleando e tentando respirar ele foi tomado subitamente por uma sensação horrível.
Estava perguntando uma coisa a si mesmo. Estava dizendo a si mesmo Joe Bonham você
fez papel de bobo?
Alguém gritou que era o fim da jornada e as coisas começaram a se dissolver lentamente
diante dos seus olhos. Quando as colocou de novo em foco estava deitado de bruços com a
cabeça pendendo para fora de um carrinho de mão de ferrovia e Howie deitado a seu lado.
Lembrava-se de estar olhando para o chão que corria como água de rio diante de seus
olhos e de ouvir aqueles mexicanos cantando. Eles se revezavam na alavanca do carrinho
que os levava de volta ao alojamento. E ele lá deitado arfando um pouco e ouvindo-os
cantar.
O chão do alojamento era de terra. Era uma espécie de barracão com um telhado de
zinco. Era tão quente ali dentro que ele queria agarrar o ar com as mãos para encher os
pulmões. Os beliches eram de madeira. Ele e Howie ocuparam um beliche. Não se deram
sequer ao trabalho de estender a roupa de cama. Simplesmente desabaram no beliche e
ficaram ali deitados bem quietinhos. O contramestre apareceu e perguntou se queriam que
ele lhes mostrasse onde podiam jantar. Mas eles não lhe deram a menor atenção. Só
ficaram lá deitados e fecharam os olhos.
Ele tinha atingido um estado estranho. Era a primeira vez em sua vida que se sentia
daquele jeito. Nenhuma parte de seu corpo doía mais do que as outras de modo que a dor
assim espalhada cessou e ele ficou apenas entorpecido e sonolento. Pensou de novo em
Diane. Não por muito tempo mas ela foi o último pensamento em sua cabeça antes da
escuridão. Pensou em Diane pequenina e bonitinha e assustada na primeira vez que a
beijou. Oh Diane pensou como você pôde fazer uma coisa dessas? Como pôde? E então
alguém o estava sacudindo.
Podia fazer horas que o estavam sacudindo. Abriu os olhos. Ainda estava no alojamento.
Estava escuro e suspiros preenchiam o ar. Havia um cheiro de fumaça no ambiente. Os
mexicanos tinham cozinhado seu jantar num fogareiro no meio do alojamento. Havia um
buraco no telhado de zinco por onde saía a fumaça. Pelo buraco ele podia ver as estrelas
tremeluzindo como coisas que aparecem num sonho febril. Sentiu engulhos. O cheiro de
comida e fumaça no ar. Não era típico de um mexicano querer jantar alguma coisa pelando
depois de passar um dia inteiro no fundo do inferno?
Era Howie que o estava sacudindo.
“Acorde. São dez horas.”
Não sabia se era de noite ou se seus globos oculares tinham simplesmente apagado e ele
não era mais capaz de diferenciar a escuridão da luz do sol.
“Da manhã ou da noite?”
“Da noite.”
“De hoje ou de ontem?”
“De ontem acho eu. Ei veja o que eu tenho aqui. Acabaram de mandar do escritório do
despachante.”
Howie segurou alguma coisa diante do rosto dele e iluminou-a com sua lanterna de bolso.
Tinham lembrado de trazer uma lanterna ainda que tivessem esquecido as luvas. Era um
telegrama o que Howie estava lhe mostrando. As pontas por onde Howie o tinha segurado
estavam manchadas de sangue. Dizia Querido Howie por que você é tão impetuoso stop
estou arrasada pensando no que você fez stop por favor me perdoe e volte agora mesmo a
Shale City stop odeio Glen Hogan stop com amor Onie.
Mesmo na penumbra do alojamento ele podia ver a felicidade no rosto de Howie. Então
Onie odiava Glen Hogan não era mesmo? Bom ele sabia o porquê e se Howie não sabia era
porque era um idiota. Onie odiava Glen Hogan porque Glen a tinha dispensado para ficar
com Diane. Ficou pensando nisso por um momento e no quanto Diane era mais bonita que
Onie e em como a coisa toda mostrava que Glen Hogan tinha bom senso. Então percebeu
que Howie estava esperando uma resposta. Quando tentou responder só conseguiu
sussurrar.
“Precisava acordar um sujeito que precisa tanto dormir só para mostrar isso para ele?”
“Porque consegui entender tudo.”
“Ah.”
Howie começou a sussurrar com grande excitação.
“É simples assim. Para um camarada como você ou eu gastar os melhores anos da vida
labutando numa turma de trabalho é o mesmo que uma garota uma boa garota como Onie
ou Diane de repente decidir virar lavadeira.”
Ele não disse nada. Só ficou lá deitado pensando no assunto. Percebia muito bem o
sentido do argumento. A ideia de Diane ser uma lavadeira era tão terrível que ele fechou os
olhos de novo. Howie continuava sussurrando.
“Claro que se a Onie se sente assim eu nem sei o que fazer com a coitadinha.”
Ele permaneceu deitado de olhos fechados e sem dizer nada.
“Não é mais como se eu não tivesse motivo para voltar. É quase como se voltar agora
fosse meu dever.”
Continuou largado na cama em silêncio. Mas ouvia atentamente o que Howie dizia.
“O despachante diz que tem um grande trem de cascalho que vai passar por aqui esta
noite com destino a Shale City.”
Ele ainda seguiu sem dizer nada. Ainda era todo ouvidos.
“Nele a gente chegaria lá em uma hora.”
Mexeu um pouco a perna para mostrar que ainda estava acordado escutando.
“Esse trem de cascalho vai passar aqui em dez minutos.”
Ele saltou do beliche e num instante já estava com o colchonete enrolado sobre os
ombros. Howie arregalou os olhos de surpresa.
“Que está fazendo?”
Olhou para Howie de um jeito que mostrava que a coisa toda estava agora nas mãos de
Howie.
“Bom se você está decidido a desistir do nosso acordo acho que não posso fazer nada
para te deter. Se vamos pegar o tal trem de cascalho é melhor a gente ir saindo.”
Na maior parte da viagem de volta a Shale City ele ficou pensando em Bill Harper. Pensou
consigo mesmo outra noite eu mesmo esmurrei o Bill Harper. Pensou consigo mesmo o Bill
Harper era meu melhor amigo e estava me contando a verdade e eu o esmurrei por isso.
Deitado de costas no cascalho ele contemplava as estrelas. Lembrou-se de Bill Harper
sentado com ele na lanchonete e pigarreando e hesitando e finalmente chegando ao ponto.
Rememorou toda a raiva que sentiu quando Bill Harper lhe contou que Diane estava saindo
aquela noite com Glen Hogan. Ele sabia que provavelmente era verdade senão Bill Harper
não teria lhe contado. No entanto tinha ficado de pé e chamado Bill Harper de mentiroso e
tinha esmurrado Bill Harper e derrubado Bill Harper no chão e saído sozinho da lanchonete.
Voltando para casa ele dera de cara com Diane e Glen Hogan saindo do carro esporte de
Glen e entrando no teatro Elysium. Então soube que Bill Harper tinha dito a verdade. Sabia
que Diane o estava traindo.
Descendo a rua encontrou Howie. Howie vinha tendo problemas com Onie por causa de
Glen Hogan de modo que ambos decidiram deixar tudo para trás e ir para o deserto
trabalhar como homens e esquecer o assunto. Não é que ele e Howie fossem iguais. Howie
nunca fora capaz de manter uma garota. Ele até se incomodava com o fato de Howie incluí-
lo em sua categoria. Mas queria tanto ir embora dali que quando Howie fez a sugestão ele
disse vamos amanhã mesmo.
Deitado no vagão de cascalho ele rememorava todas as viagens de acampamento e os
bons momentos que ele e Bill Harper tinham vivido juntos. Lembrou-se da primeira vez que
cada um deles saiu com uma garota. Saíram em quatro porque estavam apavorados.
Lembrou-se de quando Major seu cachorrinho foi atropelado e Bill veio visitá-lo naquela
noite no carro do pai e levou-o para rodar pelos campos até depois da meia-noite sem dizer
uma palavra o tempo todo porque sabia como ele estava se sentindo. Lembrou-se de um
monte de outras ocasiões e pensou Bill Harper é um amigo bom demais para a gente
perder por causa de uma garota qualquer que seja. Pensou Bill é um amigo bom demais
para perder até mesmo por Diane e amanhã eu vou dizer isso a ele. Amanhã vou à casa
dele e digo Bill vamos esquecer o que houve. Bill vamos ser amigos porque isso não vai
acontecer nunca mais.
E então à medida que o trem de cascalho se aproximava de Shale City ele voltou a pensar
em Diane. No frescor da noite era capaz de trazer à mente o rosto dela. Não tinha
conseguido fazer isso lá no deserto. Agora podia ver o rosto dela com os olhos da mente e
ela estava sorrindo. Pensou Howie achava que tinha perdido Onie mas não tinha pois Onie
admitiu que estava errada e pediu a ele que voltasse. Pensou além disso eu não quero
Diane saindo por aí com Glen Hogan. Qualquer um menos Glen Hogan. Só porque tinha um
carro estiloso Glen parecia achar que podia tomar com uma garota liberdades que um
sujeito comum jamais cogitaria. Ficava horrorizado sempre que pensava em Diane e Glen
Hogan juntos. Achava que era mais ou menos seu dever procurar Diane e falar com ela
como um irmão e contar-lhe sobre Glen Hogan. Sabia que precisava poupar Diane do
constrangimento de descobrir por si própria que tipo de sujeito era Glen Hogan. Devia fazer
isso a despeito de seu orgulho.
Saltaram do trem de cascalho pouco antes de chegar à estação porque não queriam que
ninguém os visse naquele estado deplorável. Caminharam por dois quarteirões então
Howie estacou.
“Bom aqui eu me separo de você.”
“Aonde vai?”
“Pensei em passar na casa da Onie.”
Howie disse isso de um jeito meio sonhador e um pouco insinuante também porque sabia
que Joe não tinha outro lugar para ir que não fosse a própria casa. Howie que nunca
conseguia conservar uma garota. Ah!
Howie se afastou escuridão adentro. Ele ficou sozinho. Começou a andar para casa. Shale
City parecia a cidade mais bonita do mundo naquela noite. O céu estava pálido mas azul e
havia um milhão de estrelas reluzindo. As árvores eram verdes e pretas e uma brisa fresca
brincava com suas folhas. De repente era como se o deserto e a turma de trabalho nunca
tivessem existido. Estava morto de cansaço mas não havia ninguém ali para ver que ele
continuava andando e ele sabia que podia parar e descansar quando quisesse e que de
algum modo recobrara o fôlego e com isso nem notava o peso do colchonete sobre os
ombros. Parecia que ele simplesmente se deixava levar por aquela brisa fresca. Passava um
pouco das onze.
E então de repente ele percebeu por que se sentia tão bem quando o tempo todo devia
estar se sentindo mal. Era porque estava na rua de Diane. Não tinha planejado
deliberadamente estar ali pois ficava uns dois quarteirões fora do seu caminho e ele estava
mesmo morto de cansaço. Parecia até que alguma coisa o puxara até aquela rua e isso o
deixava contente. Mesmo em noites comuns ele sempre tivera uma sensação muito
estranha ao se aproximar da casa de Diane. Sempre ficava com um nó na garganta e meio
excitado meio amedrontado toda vez que chegava perto de onde ela morava.
Então não mais que de repente ele pensou olhe aqui você não pode passar diante da casa
da Diane todo sujo e de mãos ensanguentadas como está agora. Não pode correr o risco de
ser visto por ela nessas condições. Então atravessou a rua e começou a andar pé ante pé
como se ela pudesse estar dormindo e o próprio som de seus passos pudesse acordá-la e
assustá-la. E o tempo todo alguma coisa dentro dele lhe dizia amanhã você vai vê-la
amanhã você vai vê-la amanhã você vai vê-la.
Então do outro lado da rua bem em frente à casa dela ele ficou imóvel e parou de
respirar. Diane estava lá nos degraus da escada da frente com os braços em torno de
alguém e os braços de alguém em torno dela. Estavam se beijando. Ele não fez nada.
Simplesmente ficou ali meio escondido atrás de uma árvore e olhou. Não queria olhar e no
entanto queria olhar mais do que qualquer outra coisa. Sentiu vergonha de espiá-la e no
entanto não conseguia se mover nem um centímetro do lugar onde estava. Simplesmente
ficou ali. Ficou ali e olhou.
Pouco depois o sujeito que ela estava beijando soltou-a e Diane subiu a escada correndo
com aquele jeitinho engraçado que sempre foi o dela e se virou ao chegar à porta para
sorrir. Ele evidentemente não conseguia ver o rosto dela mas sabia que estava sorrindo. Um
minuto disso e então quem quer que fosse que ela estava beijando virou-se e começou a
caminhar pela calçada. Estava assobiando. Estava assobiando suavemente e quase
saltitando para cima e para baixo em sua caminhada depois de ter beijado Diane. Quando
ele saiu de trás das árvores a luz das estrelas caiu sobre seu rosto. Era Bill Harper.
Ele continuou ali parado. Bill Harper desceu a rua e dobrou a esquina. A luz da sala de
estar da casa de Diane se acendeu e se apagou. Em seguida acendeu-se a luz do quarto
dela. Ele viu sua sombra na cortina duas vezes quando ela atravessou o quarto. Então a luz
se apagou. Ele ficou ali parado e pensou adeus Diane adeus.
Então começou a andar para casa.
Cada músculo de seu corpo estava dolorido. Suas mãos e sua barriga e sua cabeça
latejavam e ardiam. O rolo do colchonete parecia pesar quase cinquenta quilos. Mas não
era isso o que machucava. Era uma coisa dentro dele que dizia sem parar você não vale
nada. Simplesmente não vale nada.
As pessoas perguntariam por que não vejo mais você e Diane juntos? e ele não teria o
que responder. As pessoas perguntariam o que houve entre você e Bill Harper que não os
vemos mais juntos por aí? e ele não teria o que responder. Seu pai perguntaria como é que
você arranja um serviço na turma de trabalho e fica só um dia? e ele não teria o que
responder.
Estava tudo acabado. Era algo que ele nunca poderia explicar. Algo que ninguém
entenderia. Ele perdera o único amigo para quem poderia contar o ocorrido. Porque sabia
que ele e Bill jamais poderiam voltar a ser o que tinham sido. Podiam até trocar um aperto
de mãos e dizer deixa pra lá amigo e começar a vadiar um pouco juntos de novo mas não
seria a mesma coisa. E ambos saberiam disso. Ambos saberiam que Diane estava ali entre
eles. Ambos também saberiam que Diane provavelmente não se importava mas isso não
mudaria em nada as coisas para eles. Nunca seriam capazes de explicar nem mesmo para
eles próprios.
Mas mais do que isso ele pensou em Diane. Era como a morte pensar que não a veria de
novo e que não ririam e não zombariam um do outro de novo. Não era Glen Hogan que
tinha feito aquilo. Ele poderia tê-la perdoado por Glen Hogan. Poderia tê-la perdoado por
isso e tentado passar uma borracha na coisa toda. O terrível era que ela havia feito uma
coisa que ele nunca poderia perdoar por mais que quisesse. E ele queria. Queria muito. Mas
nunca poderia.
Na cama antes de dormir ele pensou oh por que um sujeito tem que passar por uma coisa
dessas? Pensou por que eles não pegam o cidadão e lhe dão um tiro enquanto ainda há
nele alguma coisa de valor? Pensou ora bolas todo mundo tem um melhor amigo. Até
mesmo os sujeitos na penitenciária provavelmente têm melhores amigos em algum lugar.
Mas eu não tenho. Pensou até Howie tem uma garota. Até aqueles mexicanos cantando no
meio do deserto têm garotas. Mas eu não. Pensou ora bolas todo mundo é capaz de
encontrar dentro de si alguma centelha de autorrespeito. Até mesmo um assassino ou um
ladrão ou um cachorro ou uma formiga tem alguma coisa que os mantém de cabeça
erguida e segundo em frente. Mas eu não tenho.
Aquela noite na cama foi a primeira vez que ele chorou por uma garota. Ficou lá deitado
soluçando como uma criança. Suas mãos estavam ensanguentadas e suas pernas cheias de
espinhos e seus olhos cheios de lágrimas e seu peito cheio de aflição. Demorou um bom
tempo para conseguir dormir.
Tudo parecia tão real na época e agora não era nem um pouco real. Tinha sido muito
tempo atrás. Tinha sido em Shale City. Antes de ele ir para Los Angeles. Tinha sido quando
ele era um garoto de colégio. Parecia tão distante no tempo. Em algum lugar
provavelmente no Colorado ainda perambulavam Glen Hogan e Howie. Ele recebeu uma
vez uma carta dizendo que Bill Harper tinha sido morto na Floresta de Belleau. Bill Harper
era um sujeito de sorte. Bill Harper tinha conseguido Diane e depois tinha sido morto.
Oh Cristo ele estava todo confuso de novo. Não sabia onde estava nem o que fazia. Mas
se sentia mais calmo e refrescado. Não estava mais ardendo. Estava apenas atordoado e
confuso e não conseguia entender direito as coisas. Era tudo uma bagunça mas pelo menos
ele tinha uma sensação de frescor.
V

NÃO CONSEGUIA SE ACOSTUMAR COM O MODO como as coisas estavam se dissolvendo umas nas outras. Às vezes
ele estava flutuando no topo de nuvens brancas apavorado com sua própria pequenez em
meio a uma coisa tão imensa como o céu. Às vezes estava aconchegado em travesseiros
macios que de algum jeito o faziam escorregar primeiro pelos pés sobre um terreno áspero
e acidentado. Mas na maior parte do tempo ele estava boiando em algum remanso do rio
Colorado no trecho que serpenteava através de Shale City. Estava deitado na água de um
rio que atravessava sua terra bem antes de ele ir para Los Angeles bem antes de conhecer
Kareen bem antes de partir num trem coberto de bandeiras com o prefeito fazendo
discursos.
Estava boiando de costas. Perto da margem havia salgueiros e trevos-de-cheiro. Um sol
forte batia em seu rosto mas sua barriga e suas costas estavam frias por causa da água que
tinha sido neve nas montanhas pouco tempo antes. Estava lá boiando e pensando em
Kareen.
É ótimo Kareen ficar boiando aqui. Deite de costas mais assim e mais daquele outro jeito.
Não é bom Kareen adoro isso e adoro você. Flutue Kareen mantenha a cabeça fora d’água
para poder respirar. Fique pertinho de mim Kareen não é uma delícia boiar aqui sem
precisar ir para lugar algum e nem mesmo querendo ir para lugar algum? Só deixando o rio
cuidar das coisas. Nada para fazer e nenhum lugar para ir. Ficar em cima do rio frio e
quente e pensativo e no entanto sem pensar em nada.
Chegue mais perto Kareen. Não se afaste. Mais perto mais perto Kareen e cuidado com a
água subindo ao seu rosto. Não consigo me virar de barriga para baixo e nadar Kareen só
consigo boiar por favor não se afaste tanto. Kareen cadê você não consigo te encontrar e a
água está subindo ao seu rosto. Não afunde Kareen não deixe a água submergir o seu rosto.
Volte Kareen você vai se afogar vai se encher como eu estou me enchendo. Você vai
afundar Kareen cuidado por favor cuidado. Volte Kareen. Lá se foi você. Você nem estava
aqui. Apenas eu sozinho no rio com água chegando até o meu nariz minha boca meus
olhos.
A água banhava seu rosto e ele não tinha como detê-la. Era como se sua cabeça fosse
pesada demais para o corpo e ele não conseguisse boiar de costas sem afundar. Ou talvez
seu corpo fosse leve demais para sua cabeça de modo que não havia peso suficiente para
equilibrar a cabeça e mantê-la erguida. A água batia em ondas nos seus olhos e boca e ele
resfolegava por causa disso. Parecia que ele ia deitado de costas com os pés na frente
contra a correnteza só que estava deslizando como um trenó com os pés e as pernas
inteiramente fora d’água e a cabeça abaixo da superfície. Estava indo cada vez mais rápido
e se não parasse ora bolas iria se afogar com tanta água que passava sobre o seu rosto.
Já estava começando a se afogar. Forçou os músculos do pescoço tentando erguer o nariz
para fora d’água mas ele não subia. Tentou nadar mas como pode nadar um homem que
não tem braços? Afundou mais e mais e finalmente se afogou. Parecia que tinha se afogado
sem sequer lutar e estava no fundo escuro do rio enquanto acima dele talvez só uns dois
metros acima dele havia o brilho do sol e salgueiros e trevos-de-cheiro e ar. Afogou-se sem
luta porque não tinha como lutar. Parecia não ter com o que lutar. Era como um pesadelo
em que alguém persegue você e você está morto de pavor só que não há nada a fazer
porque você não consegue correr. Suas pernas estão grudadas no concreto e você não
consegue mexer um músculo. Era por isso que ele tinha se afogado.
Ficou lá deitado embaixo d’água pensando que desgraça se afogar quando a gente está
talvez apenas a uns dois metros do ar e da luz do sol. Que tremenda desgraça é se afogar
quando bastaria ficar em pé e esticar a mão acima da cabeça para talvez alcançar um
galho de salgueiro balançando dentro d’água como o cabelo de uma garota como o cabelo
de Kareen. Mas quando você está afogado não pode ficar de pé. Quando você está morto e
afogado não resta nada exceto o tempo que passa sem parar como a água sobre seu corpo.
As coisas começaram a correr para a frente e para trás diante dos seus olhos. Foguetes e
bombas e fogos de artifício e grandes labaredas brancas rodopiavam dentro da sua cabeça
e afundavam na parte molhada e macia de seu cérebro com um som sibilante. Ele podia
ouvir muito claramente o assobio. Era como o vapor saindo de uma locomotiva. Podia ouvir
explosões e uivos e gemidos e palavras que nada significavam e apitos tão altos e
estridentes que perfuravam seus ouvidos como facas. Tudo era atordoante e ensurdecedor.
Doía tanto que ele pensou que toda a dor do mundo estava aprisionada entre sua testa e a
parte de trás do crânio e tentando sair dali a marteladas. A dor era tão terrível que tudo o
que ele conseguia pensar era por favor por favor por favor eu prefiro morrer.
Então as coisas se acalmaram de repente. Tudo ficou quieto dentro da sua cabeça. As
luzes diante de seus olhos sumiram tão depressa como se alguém as tivesse apagado com
um interruptor. A dor desapareceu também. A única sensação que ele tinha era da intensa
pulsação do sangue no cérebro inchando e contraindo sua cabeça. Mas era pacífico. Era
indolor. Era um alívio tão grande que ele saiu do seu afogamento. Agora conseguia pensar.
Pensou bem garoto você está surdo como um poste mas não existe mais dor. Você não
tem braços mas não está dolorido. Nunca mais vai queimar a mão ou fazer um corte no
dedo ou esmagar uma unha seu caipira sortudo. Você está vivo e sem dor e isso é muito
melhor do que estar vivo e dolorido. Há um montão de coisas que um sujeito surdo e sem
braços pode fazer desde que ele não sinta uma dor ensurdecedora. Pode arranjar ganchos
ou coisa parecida no lugar dos braços e pode aprender leitura labial e ainda que isso não o
coloque no topo do mundo pelo menos ele não está afogado no fundo de um rio com a dor
rasgando seu cérebro em pedaços. Ainda dispõe de ar e não está lutando e tem salgueiros
e consegue pensar e não sente dor.
Não entendia por que a enfermeira ou quem quer que estivesse cuidando dele não o
estendia direito na cama. A metade inferior dele estava leve como uma pluma ao passo que
a cabeça e o tórax tinham um peso mortal. Era por isso que ele tinha pensado que estava
se afogando. Sua cabeça estava muito baixa. Se ele pudesse afastar o que estava sob suas
pernas e deixar seu corpo nivelado iria se sentir melhor. Não teria mais aquele sonho de
afogamento.
Começou a espernear para afastar o que quer que estivesse sob suas pernas. Só começou
já que não tinha pernas para espernear. Em algum lugar logo abaixo dos quadris tinham
decepado suas duas pernas.
Sem pernas.
Nunca mais correr caminhar rastejar se não tinha pernas. Nunca mais trabalhar.
Sem pernas veja você.
Nunca mais mexer os dedos dos pés. Que coisa tremenda que coisa linda maravilhosa
mexer os dedos dos pés.
Não mais.
Se pudesse pensar apenas em coisas reais ele destruiria aquele sonho ruim de estar sem
pernas. Navios a vapor pãezinhos garotas Kareen metralhadoras livros chicletes pedaços de
pau Kareen mas pensar em coisas reais não ajudava porque aquilo não era um sonho.
Era a verdade.
Era por isso que sua cabeça tinha dado a impressão de estar mais baixa que suas pernas.
Porque ele não tinha pernas. Era natural que parecessem leves. O ar também é leve. Até
mesmo uma unha do pé é pesada comparada com o ar.
Ele não tinha braços nem pernas.
Jogou a cabeça para trás e começou a berrar de pavor. Mas só começou já que não tinha
boca para berrar. Ficou tão surpreso ao não conseguir berrar que começou a mover a
mandíbula como um homem que achou uma coisa interessante e quer testá-la. Estava tão
seguro de que a ideia de não ter boca era um sonho que pôde investigá-la com calma.
Tentou mover a mandíbula e não havia mandíbula. Tentou passar a língua pela parte
interna dos dentes e pelo céu da boca como se estivesse à procura de uma semente de
framboesa. Mas ele não tinha língua e não tinha dentes. Não havia céu da boca e não havia
boca nenhuma. Tentou engolir mas não conseguiu porque não tinha palato e não tinham
sobrado músculos para a ação de engolir.
Começou a sufocar e ofegar. Era como se alguém tivesse empurrado um colchão contra
seu rosto e o segurasse ali. Ele respirava fundo e rápido agora mas não estava respirando
de verdade porque não havia ar algum passando por seu nariz. Ele não tinha nariz. Sentia
seu peito subir e descer e estremecer mas nenhum ar estava passando pelo lugar onde seu
nariz costumava ficar.
Sentiu uma aterrorizada urgência de morrer de se matar. Tentou acalmar a respiração até
parar inteiramente de respirar de modo a morrer sufocado. Podia sentir os músculos no
fundo da garganta fechar-se firmemente contra o ar mas a respiração em seu peito
continuou do mesmo modo. Não havia ar em sua garganta para ser bloqueado. Seus
pulmões o sugavam por algum ponto abaixo da garganta.
Ele agora sabia que certamente estava morrendo mas estava curioso. Não queria morrer
antes de descobrir tudo. Se um homem não tem nariz nem boca nem palato nem língua
ora bolas é racional que ele esteja desprovido de outras partes também. Mas isso era
besteira porque um homem em tais condições estaria morto. Você não pode perder uma
porção tão grande de si próprio e ainda assim continuar vivendo. No entanto se você sabia
que tinha perdido tudo aquilo e estava pensando a respeito então você devia estar vivo
porque os mortos não pensam. Os mortos não são curiosos e ele estava louco de
curiosidade portanto não podia estar morto ainda.
Começou a esticar os nervos do rosto. Começou a repuxar para sentir o nada que havia
ali. Onde antes estavam a boca e o nariz agora não devia existir coisa alguma além de um
buraco coberto por bandagens. Estava tentando descobrir até onde ia o buraco. Estava
tentando sentir as beiradas do buraco. Forçava nervos e poros do rosto para sondar as
bordas daquele buraco e verificar até onde ele se estendia.
Era como perscrutar a escuridão absoluta com os olhos saltando fora das órbitas. Era um
processo de sentir com a pele de explorar usando algo que não podia se mover para onde
sua mente mandava. Os nervos e músculos de seu rosto estavam rastejando como cobras
em direção a sua testa.
O buraco começava na base da garganta logo abaixo de onde deveria estar sua
mandíbula e subia em forma de círculo dilatado. Ele era capaz de sentir a pele se mexer em
torno da borda do círculo. O buraco ficava cada vez maior. Alargava-se quase até a base das
orelhas se é que ainda as tinha e depois se estreitava de novo. Terminava em algum lugar
acima de onde costumava ficar seu nariz.
O buraco era alto demais para que houvesse olhos ali.
Estava cego.
Era engraçado sentir-se assim calmo. Estava tranquilo como um comerciante fazendo um
balanço de estoque e dizendo a si mesmo vejo que não tenho olhos é bom anotar isso no
livro de encomendas. Não tinha pernas nem braços nem olhos nem ouvidos nem nariz nem
boca nem língua. Que raio de sonho. Tinha que ser sonho. Claro meu bom deus é um
sonho. Tinha que despertar ou ficaria maluco. Ninguém podia viver daquele jeito. Uma
pessoa em tais condições estaria morta e ele não estava morto portanto não estava
naquelas condições. Só estava sonhando.
Mas não era um sonho.
Podia desejar para sempre que fosse um sonho e isso não mudaria nada. Porque ele
estava vivo vivo. Não passava de uma posta de carne semelhante ao pedaço de cartilagem
que o velho professor Vogel costumava usar nas aulas de biologia. Pedaços de cartilagem
que não tinham coisa alguma exceto vida de modo que seguiam vivendo com base em
substâncias químicas. Ele tinha uma mente e ela estava pensando. Isso é mais do que o
professor Vogel poderia jamais dizer sobre sua cartilagem. Ele estava pensando e ele não
passava de uma coisa.
Ah não. Não não não.
Não podia viver assim porque ficaria louco. Mas não podia morrer porque não tinha como
se matar. Se ele ao menos respirasse por conta própria poderia morrer. Era engraçado mas
era verdade. Poderia prender a respiração e se matar. Era a única saída que restava. Só que
ele não estava respirando. Seus pulmões bombeavam ar mas ele não tinha como impedi-
los de fazer isso. Não podia viver e não podia morrer.
Não não não isso não pode estar certo.
Não não.
Mãe.
Mãe cadê você?
Depressa mãe depressa depressa depressa venha me acordar. Estou tendo um pesadelo
mãe cadê você? Depressa mãe. Estou aqui embaixo. Aqui mãe. Aqui no escuro. Me pegue
no colo. Nana neném. Agora vou nanar. Oh mãe depressa que eu não consigo acordar. Aqui
mãe. O vento embala o berço a cuca vem pegar. Me erga bem alto bem alto mãe.
Mãe você foi embora e me esqueceu. Estou aqui. Não consigo acordar mãe. Me acorde.
Não consigo me mexer. Me abrace. Estou apavorado. Oh mãe mãe cante para mim me
esfregue me banhe penteie meu cabelo lave minhas orelhas brinque com os dedos dos
meus pés bata minhas palminhas sopre meu nariz beije meus olhos e boca como vi você
fazer com Elizabeth como deve ter feito comigo. Então acordarei e ficarei com você e nunca
mais partirei nem sentirei medo nem sonharei de novo.
Oh não.
Não posso. Não aguento. Berrar. Mexer. Sacudir alguma coisa. Fazer um ruído um ruído
qualquer. Não aguento. Oh não não não.
Por favor não posso. Por favor não. Venha alguém. Me ajude. Não posso ficar estendido
aqui assim para sempre até que talvez daqui a anos morra finalmente. Não posso. Ninguém
pode. Não é possível.
Não consigo respirar mas estou respirando. Estou tão apavorado que não consigo pensar
mas estou pensando. Oh por favor por favor não. Não não. Isto não sou eu. Socorro. Não
pode ser eu. Não eu. Não não não.
Oh por favor oh oh por favor. Não não não por favor. Por favor.
Não eu.
VI

NA PANIFICADORA ELE ANDAVA A NOITE TODA de um lado para outro. Andava quase vinte quilômetros a cada noite.
Andava com as pernas sobre o chão de cimento e os braços balançando livres no ar. Ele
quase nunca se cansava. Pensando bem aquilo não era ruim. Caminhar a noite toda e
trabalhar duro e ganhar dezoito dólares no fim da semana pelo esforço despendido. Nada
mau.
As noites de sexta-feira eram sempre as mais puxadas no serviço de carregamento
noturno porque no sábado de manhã os motoristas levavam aos fregueses pães e tortas e
bolos e bolinhos suficientes para durar o fim de semana todo. Isso demandava trabalhar
como o diabo e caminhar como o diabo nas noites de sexta. Mas não era ruim. Eles sempre
buscavam alguém na Midnight Mission9 para reforçar a equipe de trabalho nas noites de
sexta. Os sujeitos da Missão sempre vinham fedendo a desinfetante e mal vestidos e
envergonhados. Sabiam que quem sentisse o cheiro de desinfetante saberia que eles eram
mendigos vivendo de caridade. Não gostavam disso e quem é que gostaria? Eram sempre
humildes e quando eram espertos o bastante trabalhavam duro. Alguns deles não eram
nada espertos. Alguns nem sequer conseguiam ler as ordens nas caixas. Um deles vinha da
região da terebintina na Georgia. Nunca tinha ido à escola. A maioria dos preguiçosos vinha
do Texas.
Uma noite veio da missão um porto-riquenho. O nome dele era José. As coisas ficavam
sempre bagunçadas no galpão de carregamento nas sextas à noite com caixotes e
carrinhos de mão e cavaletes espalhados pelos corredores e sujeitos berrando e as esteiras
mecânicas matraqueando e os fornos rotatórios chiando no andar de cima ao girar sobre
placas quentes carentes de lubrificação. Era uma tremenda balbúrdia e a maioria dos
sujeitos da Missão ficava confusa quando vinha trabalhar pela primeira vez. Mas não José.
Ele observou o lugar e ouviu atentamente as instruções e então começou a trabalhar. Era
alto de olhos castanhos e tinha uma ótima aparência para um mexicano ou porto-riquenho
ou o que quer que fosse. Havia algo nele que sugeria que era um pouco diferente dos
outros sujeitos da Missão ou que talvez tivesse tido um pouco mais de sorte que o resto.
Nas noites de sexta todos os homens comiam seu jantar no vestiário masculino em vez de
ir a um restaurante porque ali havia bancos e armários e você podia sentar num banco e
comer seu jantar depressa e voltar para o trabalho. José não tinha trazido jantar algum
então os rapazes roubaram um litro de leite da geladeira da padaria e deram-lhe um
pãozinho para comer com ele. José ficou muito agradecido. Enquanto mastigava seu
pãozinho e bebia seu leite ele falava. Disse que a Califórnia era uma região maravilhosa.
Disse que era ainda mais maravilhosa que seu Porto Rico. Disse que a primavera estava
chegando e logo ele poderia dormir no parque. Disse que a Califórnia era um território
formidável para quem não tinha onde dormir porque não fazia tanto frio e você podia se
enrolar num capote no parque e ter uma noite ótima de sono muito obrigado. Disse que
gostaria de arranjar um emprego fixo na padaria porque assim poderia conseguir se manter
limpo. Não gostava de estar sujo e não gostava do desinfetante que colocavam na água lá
na Missão. Havia uma porção de homens pobres lá na Missão que não pareciam se importar
com o desinfetante mas ele se importava sim e muito.
Disse que tinha vindo para a Califórnia para entrar no mundo do cinema. Não ele não
queria ser ator. Mas lá devia haver muitos empregos para um jovem ambicioso como ele
numa atividade grandiosa como o cinema. Disse que pensava poder trabalhar talvez no
departamento de pesquisa de um dos estúdios. Quem sabe alguém pudesse lhe dar
alguma informação sobre como conseguir emprego num estúdio será que não?
Os rapazes só olharam para ele e resmungaram. Se algum deles soubesse como arranjar
trabalho num estúdio já não teria feito isso em vez de ficar atolado naquela padaria
asquerosa? Não. Ninguém sabia como arranjar trabalho para José num estúdio.
José limitou-se a encolher os ombros. Era duro disse ele. Quando foi para Nova York as
coisas estavam indo muito bem para ele e então uma garota muito rica se apaixonou por
ele e ele teve que sair de lá.
Uma garota rica apaixonada por você José?
Sim. Ele tinha um emprego de chofer de uma família muito rica que morava na Quinta
Avenida e as coisas iam muito bem e então a filha dos patrões deu de gostar dele de modo
que José e a tal filha fizeram um acordo. A filha queria aprender espanhol e José queria
aprimorar seu inglês por isso começaram a intercambiar lições. E então a garota essa se
apaixonou e queria casar com ele de modo que ele teve que sair de Nova York e vir para a
Califórnia.
Os rapazes sentados em círculo no vestiário só olharam uns para os outros e não
disseram nada. Todo mundo que vinha da Missão tinha uma história. Todo mundo tivera
dinheiro um dia e de repente acontecera alguma coisa e agora lá estavam eles na Missão.
Não adiantava questioná-los e nem mesmo provar que muitas daquelas histórias eram
mentirosas pois eles continuavam agarrados a elas mesmo assim. Tinham que se agarrar.
Suas histórias eram sua única desculpa para ser o que eram de modo que com o tempo o
pessoal da panificadora acabou aceitando sem dizer nada as histórias contadas pelos
sujeitos da Missão. De modo que quando José acabou de falar eles resmungaram e voltaram
ao trabalho.
Na semana seguinte era Páscoa e isso significava biscoitos marcados com cruz e isso
significava que iriam precisar de muita ajuda extra porque a equipe de carregamento não
conseguiria expedir vinte ou trinta mil dúzias de biscoitos sem trabalhadores adicionais.
Então Jody Simmons ofereceu a José trabalho por uma semana e José aceitou. Era um
trabalhador tão bom no que se refere aos biscoitos com cruz que quando Larry Brigão caiu
fora José ficou com o emprego dele. Ficou muito grato e muito quieto. Também ficou
contente pelo tempo estar mais quente. Estava dormindo no parque e isso era maravilhoso.
Dava para economizar dinheiro e José precisava de dinheiro para comprar roupas. Um
homem que vai trabalhar num estúdio de cinema precisa estar bem-vestido dizia José.
Então um dia José chegou com uma carta. Estava muito desconcertado. Mostrou-a aos
rapazes e pediu seu conselho. Os americanos são um povo estranho disse ele a gente
nunca sabe exatamente quais são os costumes deles. Então o que um cavalheiro deve fazer
nessas circunstâncias?
Todos os rapazes leram a carta de José. Estava escrita com caligrafia feminina num papel
muito caro. No alto da página estava impresso em relevo em letras pequenas um endereço
na Quinta Avenida em Nova York. Era uma carta da garota sobre a qual José tinha falado. Na
carta ela dizia querer que ele mandasse seu endereço para que ela não precisasse escrever
sempre para a posta-restante. Ela havia acabado de ganhar algum dinheiro só um pouco
mais de meio milhão de dólares e assim que descobrisse onde José estava morando viria a
Los Angeles para se casar com ele.
Isso deu o que pensar aos rapazes da padaria. José podia até falar um monte de
bobagens como todos os outros vagabundos da Missão mas pelo que estava parecendo a
tal garota dele era de verdade. Deus do céu eles disseram a José não seja idiota case logo
com a moça. Mande-lhe seu endereço e deixe que ela venha o mais depressa possível e ela
que traga toda a grana dela e você trate de casar antes que ela mude de ideia. Mas José
balançava a cabeça. Disse que não havia perigo de ela mudar de ideia porque como ele
dissera a garota era louca por ele. E com certeza ele não tinha nenhuma objeção a se casar
com uma garota cheia de dinheiro. Na verdade ele achava que a única coisa inteligente
que um rapaz sem dinheiro podia fazer era se casar com uma moça que tivesse dinheiro.
Mas ele também queria amar a garota com dinheiro com quem um dia se casaria. Essa
garota era uma pena mas ele não a amava.
Ora seu filhodamãe disseram os rapazes da padaria você pode aprender a amá-la não
pode? Não José disse com pesar não posso não. Ele só queria saber qual era o costume
americano com relação àquelas coisas e como ele poderia escrever para a garota se
explicando. Era educado da parte de um cavalheiro americano dizer a uma garota
americana que não a amava? Mas não claro que não aquilo seria muito descortês. Não seria
melhor que um amigo talvez uma das pessoas da panificadora escrevesse à garota e lhe
explicasse que José tinha se matado por causa de seu amor e agora já estava cremado? José
estava disposto a fazer qualquer coisa que fosse correta.
A essa altura todos os rapazes concluíram que José era louco. Mas concluíram também
que ele era uma espécie de louco esperto. Quando ele contava histórias sobre seu Porto
Rico natal eles agora prestavam mais atenção porque já que a história da garota era
verdadeira podia haver cinquenta por cento de chance de que aquelas histórias de Porto
Rico também fossem. José era um sujeito muito engraçado mas a padaria estava cheia de
sujeitos engraçados e era melhor não examiná-los muito de perto. Você os aceitava como
eram e não dizia nada.
Cerca de um mês depois José chegou uma noite com uma expressão muito preocupada.
O que foi que houve José? Por que essa cara tão desanimada? José suspirou e franziu o
cenho. Tinha entrado numa encrenca muito séria disse ele. Que encrenca José? Tinha
passado o dia todo fora procurando um emprego e encontrara o tal emprego.
Todos então ficaram interessados porque todo mundo na panificadora queria um
emprego melhor só que nenhum deles jamais encontrava um. Onde você encontrou esse
emprego melhor José? Num estúdio de cinema é óbvio disse José. Foi por isso que eu vim à
Califórnia. Eu não disse a vocês que vim aqui para procurar trabalho nos estúdios?
Ninguém abriu a boca. Ficaram só encarando José de olhos arregalados. Vindo de
qualquer outra pessoa aquilo teria parecido mais uma lorota mas vindo de José eles sabiam
que era verdade. O que dizer daquilo? No que diz respeito aos rapazes da padaria os
estúdios poderiam ficar tanto na China como em Hollywood. Os estúdios pagavam uma boa
grana mas ninguém exceto talvez quem tivesse um tio ou um sobrinho por lá poderia
conseguir uma chance. No entanto José com a maior calma do mundo tinha entrado num e
conseguido o que queria.
Como conseguiu esse emprego José? Eu o pedi disse José. Oh disseram os rapazes da
padaria. Então se sentaram em torno dele e o encararam mais um pouco. Por fim alguém
tomou a palavra e disse José por que isso é uma encrenca e por que você está tão
preocupado?
José pareceu surpreso. Qualquer um deveria saber disse ele. Ele tinha vindo para a
Califórnia e andado sem dinheiro e se enchido de desinfetante na Midnight Mission e ficado
muito infeliz. Então aquele cavalheiro gentil Jody Simmons o aceitara na padaria e lhe dera
um bom emprego. Isso o deixava em dívida com Jody Simmons não era mesmo? Muito
bem. Estava em dívida com Jody Simmons e agora encontrara um emprego. Como é que
ele poderia deixar o emprego que Jody Simmons lhe arranjara para assumir o novo
emprego sem ofender seu benfeitor?
Todos os rapazes começaram a ficar agitados. Cada um tinha um discurso diferente a
dizer a Jody Simmons para deixar o emprego. Um rapaz achava que um bom jeito de fazer
isso era dar um soco bem no meio da fuça de Jody Simmons. Outro sujeito disse que o
melhor era ir educadamente até Jody Simmons e lhe dizer que enfiasse o emprego no rabo.
Outro disse que bastava não aparecer para trabalhar no dia seguinte e Jody Simmons iria
entender rapidinho. E havia várias outras opções que os rapazes da padaria podiam
imaginar. Não era para menos. Eles tinham passado anos pensando naquilo. Uma grande
quantidade de talento tinha sido gasta pensando em meios de dizer a Jody Simmons que a
pessoa estava deixando o emprego. Ali estava um sujeito que de fato iria fazer aquilo então
todo mundo naturalmente queria cooperar.
Mas depois que todas as soluções lhe tinham sido oferecidas José abanou a cabeça e seus
olhos pareceram mais tristes do que nunca. Ele disse que precisava pensar num jeito
melhor. Não seria cortês demitir-se de nenhuma das maneiras sugeridas. Jody Simmons era
seu benfeitor e aquelas não eram coisas para se fazer ao benfeitor da gente. Mesmo que
fosse um costume americano fazer as coisas de modo diferente ele teria que seguir o
costume de seu Porto Rico natal e em Porto Rico uma pessoa bem-nascida não fazia uma
coisa daquelas.
Quando você vai começar nesse novo emprego José? Amanhã de manhã disse José e
estou muito cansado e agora vou ter que trabalhar a noite toda e isso vai me deixar ainda
mais cansado de manhã para o outro trabalho e isso vai continuar então por isso é uma
grande encrenca e não sei o que fazer.
Então José trabalhou a noite toda e os rapazes da padaria pensaram no assunto e por fim
acabou sendo tão desconcertante para eles como era para José. Começaram a pensar numa
saída para José e mal começavam a falar abanavam a cabeça e diziam não isso não daria
certo e então seguiram trabalhando e pensando muito. Aquele José era uma peça rara e
suas ideias eram malucas mas todo mundo àquela altura queria encontrar uma solução de
modo que se tornou uma questão de profundo interesse para toda a equipe noturna.
A noite chegou ao fim. Todos os rapazes da equipe foram para casa e dormiram e então
voltaram para trabalhar na outra noite perguntando-se sobre José. José também voltou.
Estava mais pálido. Disse que estava se sentindo muito cansado. Disse que tivera apenas
quarenta e cinco minutos de sono e que se não pensasse em alguma coisa urgentemente
não sabia o que iria fazer. Disse que com certeza devia haver algum costume americano
para resolver aquela emergência. Mas eles tinham lhe contado todos os costumes
americanos na noite anterior e ele os rejeitara.
Então ele trabalhou a segunda noite inteira e quando saiu pela manhã e encarou o
primeiro raio de sol fora da padaria era um homem de aspecto muito abatido. Durante todo
o dia que se seguiu ele trabalhou para o estúdio e na noite seguinte quando chegou para
trabalhar estava quase cambaleando. Disse por favor por favor pensem em algum modo de
eu deixar este emprego porque a saúde de um homem não dura para sempre e a minha
está se arruinando rapidamente já que não dormi nem um pouco hoje e um homem precisa
de sono mesmo que tenha apenas um emprego honesto.
Então aconteceu de Pinky Carson ter uma ideia. José Pinky Carson disse vou te dizer o que
fazer. Por volta das duas da madrugada quando a fornada de tortas descer você pega seis
ou oito tortas em suas caixas e caminha com elas diante daquela vidraça da sala do Jody de
modo que ele possa te ver e então você deixa cair as malditas tortas. Então o Jody vai
despedir você e tudo vai ficar bem. José pensou um pouco. Não gosto do uso da violência
disse ele por fim mas sou um homem desesperado e se você acha que a violência vai
funcionar então eu vou usá-la. Pensou mais um pouco e em seguida disse posso pagar
pelas tortas que eu tiver estragado não posso? Todos disseram sim se ele queria ser um
tonto podia pagar pelas tortas que estragasse.
Então naquela noite por volta das duas ou das três José apanhou seis tortas e posicionou-
se diretamente na linha de visão de Jody diante da vidraça da sala de Jody no mezanino.
Todos os rapazes estavam por perto fazendo de conta que trabalhavam mas na verdade
observavam José. Esperavam atentos pelo momento em que Jody Simmons iria erguer os
olhos de sua mesa e olhar pela vidraça. Quando ele olhasse Pinky daria um sinal e então
José derrubaria as tortas. Parecia que estava demorando mais do que nunca para Jody olhar
pela vidraça. Mas finalmente ele olhou e Pinky Carson deu o sinal e José deixou cair as
tortas.
Jody saiu de sua sala zunindo como um zangão. Disse que diabo se passa com você seu
filho da mãe desajeitado olha o que fez derrubou as tortas todas. Estão arruinadas e você
vai ter que pagar por elas. O pobre José ficou lá parado quase desmanchando de tristeza.
Voltou seus grandes olhos para Jody Simmons e disse sinto muito senhor Simmons ter
estragado suas tortas. Foi um acidente eu lhe garanto e só um péssimo funcionário poderia
fazer uma coisa dessas e estou arrasado por causa disso e terei o maior prazer em pagar
pelas tortas e o senhor aceita minhas desculpas senhor?
Jody Simmons olhou feio para José por um momento e então um sorriso irrompeu em seu
rosto e ele disse ora é claro José todos cometemos erros. Você pode pagar pelas tortas. Ele
disse José você é um trabalhador bom e cuidadoso e não tem importância que cometa um
deslize de quando em quando. Disse José quisera eu ter outros homens como você agora
esqueça isso tudo e volte ao trabalho.
José ficou postado ali todo trêmulo e abanando a cabeça como se não pudesse acreditar
que um azar tão grande pudesse lhe ocorrer. Então se virou e encarou os rapazes da equipe
que o tinham observado o tempo todo. Olhou para Pinky Carson como um cachorro que foi
traído pelo dono. Em seguida virou as costas e saiu caminhando pelo primeiro corredor
entre caixas e começou a trabalhar de novo.
Pinky Carson deu um jeito de se aproximar dele o mais rápido possível. Olhe aqui José ele
disse a ideia era boa só que não foi uma coisa grande o bastante. Para largar um emprego
bom como este você tem que fazer algo muito grande. A fornada de tortas já terminou esta
noite mas não perca a esperança José porque temos uma fornada a cada noite e amanhã
você pode pegar uma daquelas prateleiras grandes de tortas. Pode pegar uma daquelas
prateleiras que tem cento e oitenta tortas pense só nisso e você vai e leva essa prateleira
até aquele mesmo lugar e emborca ela ali e faz um esparramo dos infernos. Oh garoto oh
garoto que bruta esparramo e então o Jody Simmons te despede com certeza.
José olhou para Pinky Carson e disse a coisa toda é muito infame mas minha saúde não
vai aguentar muito mais então vou fazer isso mesmo amanhã à noite quando sair a fornada
de tortas. E cambaleou de volta ao trabalho.
A maioria dos rapazes nem conseguiu dormir no dia seguinte de tão ansiosos que
estavam para ver José emborcar aquela prateleira. Todos chegaram cedo para trabalhar.
Jody Simmons habitualmente só chegava por volta das dez horas. Mas todos tinham
esperança de que ele viesse mais cedo e assim pudessem ter mais tempo de contemplar o
rosto de um homem que iria ver cento e oitenta tortas derrubadas bem na frente da sua
sala. Mas quando passaram em frente à sala de Jody e espiaram lá dentro ele não estava lá.
Não havia nada exceto uma grande caixa comprida que parecia uma caixa de flores em
cima da mesa de Jody. Todos lançaram um olhar para a caixa e em seguida subiram ao
andar de cima para trocar de roupa e em pouco tempo José chegou. A primeira parte da
noite foi a mais longa que qualquer um deles já tinha vivido.
Por volta das dez Jody Simmons chegou. Todo mundo espiou porque todo mundo estava
curioso quanto à caixa em cima da sua mesa. Jody entrou na sala e fitou a caixa como se
ela pudesse ser uma bomba-relógio. Era um homem durão e qualquer coisa inusitada no
lugar sempre despertava suas suspeitas. Por fim ele deve ter decidido que a caixa era
inofensiva porque começou a abri-la com muito cuidado. Duas dúzias de lindas rosas
caíram dela sobre sua mesa. Jody começou a manusear desajeitadamente as rosas à
procura de um cartão mas não havia cartão algum. Quando Rudy entrou na sala de Jody
para apanhar as planilhas do turno olhou para as flores e disse bem estou vendo que você
ganhou flores Jody. Jody se limitou a lançar um olhar às flores e dizer que alguém estava
querendo fazer uma gracinha. Mas ele não se importava porque as rosas eram bonitas e ele
podia levá-las para a esposa. Mandou Rudy buscar uma caneca de água para regar as flores
e mantê-las viçosas. Ao longo da noite toda vez que os rapazes olhavam para a vidraça da
sala de Jody a cabecinha careca dele lhes parecia ornada por uma grinalda de rosas.
Às duas horas começou a assadura das tortas. Pinky Carson subiu aos fornos no andar de
cima para checá-las enquanto eram colocadas nas caixas. Naquela noite havia tortas de
maçã e baunilha e mirtilo e pera. Pinky Carson sopesava uma de cada tipo e testava sua
crosta e a espessura do recheio. A equipe estava bem adiantada no serviço aquela noite de
modo que eles podiam apanhar a fornada de tortas enquanto elas ainda estavam quentes.
Pinky Carson decidiu que as tortas de mirtilo seriam as melhores para ser emborcadas.
Então com muito cuidado ele pegou uma grande bandeja das mais quentes e a trouxe para
baixo no elevador de carga para José.
José tremia feito vara verde. Todos os rapazes posicionados perto da janela de Jody
Simmons pareciam estar trabalhando mas na verdade só faziam de conta. Com muito
cuidado Pinky levou a bandeja de tortas até o ponto em frente à vidraça de Jody Simmons.
Então ele virou a cabeça para um lado e começou a fazer sinais para José. José se
aproximou com cara de cachorro que tomou uma surra. Foi até a bandeja de tortas e
colocou a mão na sua borda. Bastava uma pequena pressão para entorná-la no chão. José
ficou parado ali encostado na bandeja com uma expressão triste. Todo mundo esperava
Jody Simmons olhar pela vidraça. Parecia estar demorando horas. Por fim ele olhou e Pinky
Carson deu o sinal. José pressionou um pouco mais forte com a mão e a bandeja desabou
com um estrondo medonho. Cento e oitenta tortas de mirtilo espalharam-se por todo o
chão do galpão de carregamento.
Por um minuto Jody ficou sentado em sua cadeira só olhando fixo. Parecia não conseguir
acreditar que uma coisa daquelas pudesse acontecer com ele. Então foi como se alguém
tivesse lhe dado um choque elétrico porque em vez de empurrar primeiro a cadeira para
trás antes de se levantar ele ficou de pé de um salto como se estivesse numa chapa quente
e saiu correndo e gritando de sua sala. José só ficou parado onde estava olhando para ele.
José era bem mais alto que Jody Simmons. Olhou para Jody de cima para baixo e seus olhos
eram a coisa mais triste da terra. Jody começou a berrar com ele seu chicano nojento filho
da mãe ontem à noite eu lhe dei outra chance e hoje olha só o que você me apronta. Cento
e oitenta tortas de mirtilo destruídas. Sabe o que isso significa seu filhodaputa? Significa
que você acabou está despedido caia fora daqui. Fora daqui e não me apareça mais pela
frente seu chicaninho asqueroso fora daqui.
José ficou parado por um minuto olhando para Jody como se o perdoasse por tudo o que
tinha dito. Em seguida virou as costas e caminhou lentamente para o vestiário. Todos os
rapazes mais do que depressa foram furtivamente atrás dele. José estava quase falando
sozinho. Foi a primeira vez que eu fiz uma coisa tão desonrosa disse ele. Nunca pensei que
concordaria com uma patifaria assim. O senhor Simmons está totalmente certo. É um bom
cavalheiro que me deu um emprego quando eu estava necessitado. E eu lhe retribuí com
ingratidão. Estou arrasado. Não há mais nada a dizer ou será que há?
Escute aqui José disse Rudy talvez você saiba alguma coisa sobre aquelas flores em cima
da mesa do Jody. José confirmou com a cabeça. Sim disse ele mas é o que vocês chamam
de segredo. Comprei as flores esta tarde e as mandei para o senhor Simmons. Ora seu
idiota disse Rudy como é que ele vai saber que foi você que mandou se você não escreveu
seu nome?
José disse que aquilo não era motivo para discussão.
O importante era o senhor Simmons receber as flores. Flores são uma maravilha. O
senhor Simmons é um cavalheiro e vai apreciá-las. Que ele soubesse de onde elas vieram
não vem ao caso. Eu sei é que expressei minha gratidão com uma coisa bonita. Sei é que
tentei retribuir as coisas esplêndidas que ele fez por mim. Não é importante que o senhor
Simmons saiba. O importante é que ele recebesse as flores não é?
José vestiu seu casaco e saiu da padaria e ninguém mais voltou a vê-lo. No dia seguinte
ele não apareceu para receber seu pagamento. Em vez disso foi Jody Simmons que recebeu
pelo correio uma ordem de pagamento de José no valor de dezenove dólares e oitenta e
sete centavos que juntamente com seu salário serviria para pagar pelas tortas…
Parecia que José estava agora em pé à sua frente oscilando para a frente e para trás
numa espécie de nevoeiro. Ele estava falando com José. Estava dizendo como estão as
coisas com você José como vai? Fale alto José conte-me sobre o que anda fazendo e como
se saiu com aquela garota rica. Mais alto José porque ultimamente parece que não estou
ouvindo muito bem. Alto de verdade José. E chegue perto porque não posso me mexer
muito. Mais tarde sim mas neste momento veja estou na cama. O que me diz José o que me
diz?
José!
Espere um minuto espere um minuto José. Desculpe. Veja eu pensei que estivéssemos
todos de novo juntos na panificadora. Pensei que estivéssemos todos lá. Mas não estamos.
Devo ter dormido. Devo ter sonhado. É difícil dizer. Só um minuto José e eu já vou acordar.
Isso isso. Melhor muito melhor. Não sei onde você está José mas sei onde estou isso sim.
Eu sei onde estou.
VII

TINHA QUE DAR UM BASTA NAQUILO. Tinha que fazer as coisas pararem de ficar desaparecendo e voltando de
chofre a ele. Tinha que parar com o sufoco e com aquele contínuo afundar e emergir. Tinha
que deter o medo que o fazia querer gritar e clamar e rir e se arranhar até a morte com um
par de mãos que estavam apodrecendo em algum depósito de lixo de hospital.
Tinha que se controlar para poder pensar. Aquilo vinha acontecendo havia muito tempo.
Seus cotos já estavam cicatrizados a esta altura. As bandagens tinham sido retiradas. Isso
significava que o tempo tinha passado. Um tempão. Tempo suficiente para ele sair daquilo
e pensar. Tinha que pensar em si mesmo em Joe Bonham e no que iria fazer dali para a
frente. Tinha que destrinchar as coisas de novo bem direitinho.
Era como se um homem já crescido fosse subitamente enfiado de volta no corpo de sua
mãe. Estava deitado em total imobilidade. Estava completamente desamparado. Em algum
lugar da sua barriga estava encravado um tubo pelo qual o alimentavam. Era exatamente
como o útero só que um bebê dentro do corpo da mãe podia ter a expectativa do momento
futuro em que viria a nascer.
Ele ficaria naquele útero para todo o sempre. Precisava lembrar-se disso. Não devia
jamais ter a expectativa ou a esperança de alguma coisa diferente. Era essa a sua vida dali
em diante a cada dia a cada hora a cada minuto. Nunca mais seria capaz de dizer olá como
vai eu te amo. Nunca mais seria capaz de ouvir música ou o sussurro do vento nas
ramagens ou o murmúrio da água corrente. Nunca mais aspiraria o cheiro de um bife
fritando na cozinha de sua mãe ou a umidade da primavera no ar ou o perfume
maravilhoso da artemísia carregado pelo vento numa ampla planície aberta. Nunca mais
seria capaz de ver o rosto de gente que ele ficava contente só em ver gente como Kareen.
Nunca mais seria capaz de ver a luz do sol ou as estrelas ou as graminhas que crescem nas
encostas do Colorado.
Nunca mais caminharia com suas pernas sobre o chão. Nunca mais correria ou saltaria ou
esticaria os membros quando estivesse cansado. Nunca mais ficaria cansado.
Se o lugar em que estava deitado pegasse fogo ele simplesmente ficaria lá e deixaria
queimar. Seria incinerado sem ter sido capaz de fazer um movimento. Se sentisse um
inseto rastejando sobre o toco de corpo que restava não teria como mover um dedo para
destruí-lo. Se sentisse uma comichão não poderia fazer nada para aliviar a coceira a não ser
talvez retorcer-se um pouco contra as cobertas. E essa vida não duraria apenas hoje ou
amanhã ou até o fim da próxima semana. Estava naquele útero para sempre. Não era um
sonho. Era real.
Perguntava a si mesmo como podia ter sobrevivido àquilo tudo. A gente ouvia falar de
alguém que arranhou o dedo e de uma hora para outra estava morto. O alpinista caiu da
varanda da frente de casa fraturou o crânio e morreu na quinta-feira. Seu melhor amigo foi
ao hospital para extrair o apêndice e quatro ou cinco dias depois você estava visitando o
túmulo dele. Um germe minúsculo como o da gripe levava embora cinco ou talvez dez
milhões de vidas num único inverno. Então como é que um sujeito podia perder os braços e
as pernas e os ouvidos e os olhos e o nariz e a boca e ainda continuar vivo? Que sentido
podia fazer uma coisa dessas?
No entanto havia um montão de gente que tinha perdido só as pernas ou só os braços e
continuava vivendo. Então talvez fosse razoável pensar que um homem podia muito bem
viver tendo perdido tanto as pernas como os braços. Se uma coisa era possível
provavelmente ambas também seriam. Os médicos estavam ficando muito sabidos
especialmente agora que tinham passado três ou quatro anos no exército com matéria-
prima abundante para fazer experiências. Se eles pegavam o sujeito depressa o bastante
para não deixá-lo sangrar até a morte podiam salvá-lo de quase todo tipo de ferimento.
Evidentemente tinham conseguido pegá-lo depressa o bastante.
Era perfeitamente razoável quando a gente parava para pensar. Uma porção de gente
tinha a audição estropiada por uma pancada. Nada de inusitado nisso. Montes de sujeitos
tinham ficado cegos. De vez em quando a gente até lia nos jornais que alguém tentando
meter uma bala na cabeça tinha continuado vivo só que cego. Então a cegueira dele fazia
sentido também. Havia uma porção de sujeitos em hospitais na retaguarda que estavam
respirando por aparelhos e muitos sem queixo e muitos sem nariz. Todas essas coisas
faziam sentido. Só que ele juntara todas elas. A bomba simplesmente fizera de seu rosto
um buraco e os médicos foram rápidos em impedir que ele sangrasse até morrer. Foi só
uma lasca limpinha da bomba que por algum motivo deixou de atingir sua jugular e sua
espinha.
As coisas estiveram bastante tranquilas por um tempo pouco antes de ele receber seu
quinhão. Isso significava que os médicos na retaguarda tiveram mais tempo para brincar
com ele do que durante uma ofensiva quando chegavam feridos às bateladas do front.
Deve ter sido isso. Eles o tinham apanhado rapidinho e levado para um hospital militar e
todos eles tinham arregaçado as mangas e esfregado as mãos e dito bem rapazes temos
aqui um problema muito interessante vamos ver o que podemos fazer. Afinal até então eles
só tinham retalhado uns dez mil sujeitos para o seu aprendizado. Agora eles tinham se
deparado com algo que era um desafio e dispunham de tempo de sobra então o
consertaram como deu e o enfiaram de volta no útero.
Mas por que ele não sangrara até a morte? Seria de imaginar que com os cotos de dois
braços e duas pernas jorrando sangue um homem pudesse pelo menos morrer. Havia
algumas veias poderosas nas pernas e nos braços. Ele tinha visto sujeitos sangrarem até a
morte tendo perdido só um braço. Não parecia razoável que os médicos pudessem
trabalhar rápido o bastante para estancar todos os quatro vazamentos de uma vez antes
que um homem morresse. Então ele pensou talvez eu só tenha sido ferido um pouco nos
membros e eles tenham sido decepados depois talvez para evitar problemas ou talvez
porque estivessem infeccionados. Lembrou-se de histórias de gangrena e de soldados
encontrados com seus ferimentos cheios de larvas. Aquilo era um ótimo sinal. Se você tinha
uma bala na barriga e o buraco estava fervilhando de larvas então estava tudo bem porque
as larvas devoravam o pus e mantinham a ferida limpa. Mas se você tivesse o mesmo
buraco e nenhuma larva você simplesmente supurava por um tempo e depois tinha
gangrena.
Talvez ele não tivesse larvas. Talvez se tivesse dado um jeito de arranjar um punhado de
vermezinhos brancos pudesse agora estar ainda com braços e pernas. Só um punhado de
vermezinhos brancos. Talvez ao ser recolhido ele ainda tivesse seus braços e suas pernas
com apenas alguns ferimentos neles. Mas naquele momento eles tinham que consertar as
coisas importantes como os olhos e o nariz e os ouvidos e a boca e enquanto isso a
gangrena começou em seus braços e pernas. Então começaram a decepar. Um dedo do pé
aqui uma junta de pulso ali oh droga vamos cortar na altura do quadril. Tinha sido
provavelmente assim. Quando os médicos estão apenas decepando pedaços eles têm
meios de estancar o sangue de modo que um homem não precise necessariamente morrer
por falta dele. Se os médicos soubessem como ele acabaria ficando talvez o tivessem
deixado morrer. Mas foi acontecendo gradualmente pedaço a pedaço articulação por
articulação e assim ali estava ele vivo e eles agora não podiam matá-lo porque isso seria
assassinato.
Oh inferno uma porção de coisas estranhas aconteciam naquela guerra. Qualquer coisa
podia ser verdade. A gente ouvia a respeito delas o tempo todo. Um sujeito teve o tampo da
barriga arrancado então eles pegaram pele e carne de um morto e fizeram uma espécie de
aba para cobrir a barriga do primeiro sujeito. Podiam levantar a aba como se fosse uma
janela e observá-lo digerindo sua comida. Havia enfermarias inteiras cheias de homens que
respiravam através de tubos e outras alas onde homens se alimentavam através de tubos e
se alimentariam assim pelo resto de suas vidas. Os tubos eram importantes. Um montão de
sujeitos iria mijar através de tubos pelo resto da vida e havia uma porção que tivera o rabo
arrancado. Agora seus intestinos estavam conectados com buracos do lado da barriga. Os
buracos eram cobertos com bandagens absorventes porque eles não tinham músculos para
se controlar.
E isso não era tudo. Havia um lugar no sul da França onde eles mantinham os loucos.
Havia sujeitos que não conseguiam falar mesmo estando em perfeitas condições físicas.
Simplesmente tinham ficado apavorados e esquecido como se falava. Eram homens de
corpos saudáveis que andavam de quatro e enfiavam a cabeça em algum canto quando
estavam aterrorizados e farejavam uns aos outros e erguiam as pernas como cães e não
faziam nada senão choramingar. Havia um sujeito um mineiro de carvão que voltou para
sua esposa e seus três filhos em Cardiff. Seu rosto tinha sido queimado por uma labareda
uma noite e quando sua esposa o viu soltou um grito estridente e pegou uma machadinha
e decepou a cabeça dele e em seguida matou os três filhos. Foi encontrada na mesma noite
bebendo cerveja muito tranquilamente num bar. O único problema é que ela estava
tentando comer o copo em que a cerveja estava. Como era possível acreditar ou deixar de
acreditar em qualquer coisa? Quatro ou talvez cinco milhões de pessoas mortas e nenhuma
delas desejando morrer enquanto centenas talvez milhares resultavam loucas ou cegas ou
aleijadas e não conseguiam morrer por mais que tentassem com afinco.
Mas não havia muitos como ele. Não havia muitos sujeitos que os médicos pudessem
apontar e dizer eis aqui a última palavra eis aqui nosso triunfo eis aqui a coisa mais
grandiosa que fizemos e olhe que fizemos muitíssimas. Eis aqui um homem sem pernas
nem braços nem orelhas nem olhos nem nariz nem boca mas que respira e come e está tão
vivo quanto você e eu. A guerra era uma coisa maravilhosa para médicos e ele era o
felizardo que tirava proveito de tudo o que eles tinham aprendido. Mas havia uma coisa que
eles não conseguiam fazer. Eles podiam ser perfeitamente capazes de colocar um sujeito
de volta no útero mas não conseguiam tirá-lo de lá novamente. Ele estava ali para sempre.
Todas as partes arrancadas dele tinham partido para sempre. Era isso que ele precisava
lembrar. Era nisso que ele precisava tentar acreditar. Quando se compenetrasse disso
poderia se acalmar e pensar.
Era como ler no jornal que alguém ganhou na loteria e dizer a si mesmo eis um sujeito
que tinha uma chance em um milhão e acertou. Você nunca acreditou plenamente que um
homem pudesse triunfar contra tantas possibilidades adversas e no entanto sabia que
aquele tinha conseguido. Com certeza você nunca esperava ganhar mesmo comprando um
bilhete. Agora acontecia com ele exatamente o contrário. Era uma chance em um milhão
de perder e ele perdera. No entanto se ele lesse a respeito de si próprio num jornal não
seria capaz de acreditar mesmo sabendo ser verdade. E nunca esperaria que acontecesse
justo com ele. Ninguém esperaria. Mas de agora em diante poderia acreditar em qualquer
coisa. Um em um milhão um em dez milhões sempre havia o um. E ele era esse um. Era o
sujeito que tinha perdido.
Estava começando a se aquietar agora. Seus pensamentos vinham um pouco mais claros
e de modo mais articulado. Podia ficar deitado ali naquele lençol e concatenar as ideias.
Podia refletir sobre as pequenas coisas que estavam erradas com ele lado a lado com as
grandes. Em algum lugar perto da base da garganta havia uma casca de ferida grudada a
alguma coisa. Movendo levemente a cabeça para a direita e para a esquerda ele podia
sentir a fisgada da ferida. Podia sentir também um repuxão na testa como se um cordão
tivesse sido amarrado ali a meio caminho entre o buraco dos olhos e a linha onde começa o
cabelo. Começou a refletir sobre o enigma do cordão e do porquê este repuxou quando ele
balançou a cabeça para sentir o ferimento perto do pescoço. Na cavidade que era o meio do
seu rosto ele não sentia nada portanto isso consistia num belo problema. Lá ficou ele
deitado balançando para a direita balançando para a esquerda sentindo a pressão e
sentindo o repuxão da crosta de ferida. Até que entendeu.
Tinham coberto seu rosto com uma máscara e esta estava atada em torno do alto da
cabeça. A máscara era evidentemente de uma espécie de tecido macio e a parte inferior
dela tinha grudado no muco de seu ferimento. Isso explicava a coisa toda. A máscara não
passava de um tecido retangular atado firme e repuxado para baixo em direção a sua
garganta para que a enfermeira em suas idas e vindas não vomitasse à visão de seu
paciente. Era um arranjo muito bem pensado.
Agora que ele tinha entendido o propósito e a mecânica da máscara a casca de ferida
passou a ser uma irritação em vez de uma mera curiosidade. Mesmo quando criança ele
nunca conseguira deixar uma casquinha de machucado cair por conta própria. Estava
sempre coçando o lugar. Agora ele cutucava sua casquinha agitando a cabeça e fazendo a
máscara ficar mais apertada. Mas não tinha como afastar a máscara ou arrancar a casca do
machucado. A tarefa se tornou uma espécie de mania para ele. O lugar onde o tecido
grudava na ferida não doía. Não era isso. Mas a coisa toda era um aborrecimento e um
desafio e uma questão de força. Se conseguisse deslocar a máscara seria sinal de que não
estava completamente inerte.
Tentou esticar o pescoço de modo a desgrudar o tecido da carne. Mas não conseguiu
esticar o bastante. Viu-se concentrando toda a sua energia e sua atenção naquele
minúsculo ponto de irritação. E então arranco por arranco repuxão por repuxão ele concluiu
que jamais seria capaz de tirar a máscara do lugar. Uma coisinha tão minúscula como um
pedaço de tecido grudado na sua pele e no entanto todos os músculos de seu corpo e todo
o poder de seu cérebro não eram capazes de fazê-la se mover. Isso era pior do que estar
dentro do útero. Bebês às vezes chutavam. Às vezes se reviravam em seus abrigos escuros
silentes aquosos. Mas ele não tinha pernas com que chutar nem braços com que bracejar e
não podia se virar porque não tinha força de alavanca no corpo para fazê-lo rolar. Tentou
jogar seu peso de um lado para outro mas os músculos do que restara de suas coxas não se
dobravam adequadamente e os braços tinham sido cortados tão rente que também não
ajudavam nem um pouco.
Abandonou a ferida e a máscara e começou a maquinar um meio de virar o corpo.
Conseguia produzir um leve movimento de oscilação mas nada além disso. Talvez com o
exercício ele chegasse a aumentar a força das costas e das coxas e dos ombros. Talvez
depois de um ou cinco ou vinte anos conseguisse alcançar tanta força que o semicírculo de
sua oscilação se tornasse maior e maior e maior. E então um dia numa pirueta ele viraria o
corpo ao contrário. Se conseguisse fazer isso talvez fosse capaz de se matar porque se os
tubos que abasteciam seus pulmões e seu estômago fossem de metal quem sabe o peso de
seu corpo fizesse o metal penetrar em algum órgão vital. Ou se eles fossem moles como
borracha seu peso talvez os obstruísse e ele morresse sufocado.
Mas tudo o que conseguia obter com seus esforços mais intensos era aquele leve balanço
e mesmo para produzir só aquilo ficava ensopado de suor e atordoado de dor. Tinha vinte
anos de idade e não conseguia juntar forças nem para se virar na cama. Nunca ficara
doente sequer um dia na vida. Sempre fora forte. Era capaz de erguer uma caixa cheia até
a boca com sessenta pães de mais de meio quilo cada um. Era capaz de carregar uma caixa
assim nos ombros e colocá-la sobre uma caçamba de dois metros de altura sem se
perturbar. Tinha sido capaz de fazer isso não apenas uma mas centenas de vezes a cada
noite até seus ombros e bíceps ficarem sólidos como ferro. E agora ele só conseguia
flexionar debilmente as coxas e fazer um pequeno movimento de balanço como o de uma
criança embalando a si mesma para pegar no sono.
De repente estava muito cansado. Ficou ali deitado imóvel pensando naquele outro
pequeno ferimento que tinha começado a notar. Havia um buraco no seu flanco. Era só um
buraquinho mas evidentemente não iria sarar. Seus braços e suas pernas cicatrizaram e
isso levou um bocado de tempo. Mas durante todo aquele tempo de recuperação durante
todas aquelas semanas ou aqueles meses em que ele tinha perdido e recuperado a
consciência repetidas vezes o buraco em seu flanco permanecera aberto. Ele o foi notando
pouco a pouco durante um bom tempo e agora podia senti-lo claramente. Era uma área
úmida dentro de uma bandagem e dela essa umidade escorria por seu flanco esquerdo
num pequeno fio gosmento.
Lembrou-se de quando visitou Jim Tift no hospital militar em Lille. Jim tinha sido colocado
numa ala onde havia uma porção de sujeitos com buracos que não fechavam nunca numa
ou noutra parte do corpo. Alguns deles estavam lá sendo drenados e fedendo havia meses.
O cheiro daquela ala quando a gente entrava era como o de um cadáver em que a gente
tropeçava durante uma patrulha era o cheiro de um cadáver já bem podre que se abre com
o toque de uma bota e exala um fedor de carne morta como uma nuvem de gás.
Talvez fosse uma sorte o seu nariz ter sido arrancado. Seria muito ruim ter que ficar
sentindo o perfume de seu próprio corpo enquanto ele apodrecia. Talvez ele fosse um
sujeito de sorte afinal de contas porque com um cheiro assim o tempo todo no nariz a
pessoa não teria muito apetite. Mas isso tampouco o incomodaria de todo modo. Ele comia
regularmente. Podia sentir que enfiavam comida na sua barriga e ele sabia que estava se
alimentando direito. O sabor não importava para ele.
As coisas agora estavam ficando cada vez mais obscuras. Sabia que estava desmaiando
de novo. Estava escorregando. Parecia que o negror em seus olhos estava mudando para
uma coisa púrpura uma coisa parecida com um azul crepúsculo. Estava repousando. Estava
simplesmente deitado de costas depois de muito raciocinar e trabalhar duro e dizendo
deixa estar deixa que apodreça porque de todo modo eu não sinto cheiro mesmo. Quando
resta tão pouco a um homem por que ele iria se importar se um pedaço dele está
morrendo? Ele fica ali deitado. A escuridão passa para outra nuance de escuridão.
Crepúsculo sem estrelas e noite sem estrelas. Como em casa. Como em casa no anoitecer
com grilos e rãs e uma vaca mugindo em algum lugar e um cachorro latindo ao longe e
sons de crianças brincando. Sons lindos maravilhosos e escuridão e paz e sono. Só que sem
estrelas.
O rato veio rastejando sorrateiramente por cima dele. Veio com suas pequenas garras por
cima de sua perna esquerda. Era um grande rato pardo de trincheira como aqueles nos
quais eles costumavam tentar bater com pás. Veio rastejando e farejando e fuçando e
arrancando a bandagem do seu flanco. Ele podia sentir seus bigodes fazendo cócegas nas
beiradas da ferida que supurava. Sentia seus longos bigodes roçando no pus do buraco. E
não havia nada que pudesse fazer quanto a isso.
Lembrou-se do rosto de um oficial prussiano que eles descobriram um dia. Tinham
acabado de atacar as trincheiras avançadas das posições alemãs. Aquela era uma
trincheira que tinha sido abandonada uma ou duas semanas antes. Eles a invadiram como
um enxame uma companhia inteira em seu avanço. Foi ali que toparam com o oficial
prussiano. Era um capitão. Estava estirado com uma perna erguida no ar. A perna estava
tão inchada que o tecido da calça parecia prestes a estourar. Seu rosto também estava
inchado. Seu bigode ainda estava encerado. Sentado sobre o seu pescoço e mastigando
pedaços de seu rosto havia um rato todo satisfeito. Ao saltar para dentro da trincheira eles
avistaram a cena toda. A entrada do abrigo subterrâneo para onde o prussiano estava indo
quando foi atingido. O prussiano com a perna erguida no ar. O rato mastigando.
Alguém soltou um grito e de repente todos estavam gritando como loucos. O rato se
aprumou e olhou para eles. Então o rato começou a correr para a entrada do abrigo. Mas
correu devagar demais. Aos gritos e urros o bando todo se precipitou sobre ele. Alguém
tirou o capacete e atingiu com ele o traseiro do rato. O rato guinchou e virou-se para atacar
o capacete. Em seguida rastejou para dentro do abrigo e todos foram atrás dele.
Encurralaram-no ali na penumbra e o golpearam até transformá-lo numa geleia vermelha.
Então ficaram todos quietos por um momento. Sentiram-se meio tolos. Saíram do abrigo e
prosseguiram com a guerra.
Ele pensou naquilo depois. Não importava se o rato estava roendo um camarada ou um
maldito alemão dava na mesma. O verdadeiro inimigo era o rato e quando você o via ali
gordo e refestelado mastigando algo que poderia ser você mesmo ora você enlouquecia de
fúria.
Era ele que o rato estava comendo agora. Podia sentir seus dentinhos afiados mordendo
as beiradas da ferida e podia sentir também os rápidos movimentos de seu pequeno corpo
ao mastigar. Então o rato escavava com as patas um pouco mais de carne e isso doía e em
seguida ele voltava a mastigar.
Perguntava-se onde estaria a enfermeira. Que diabo de hospital era aquele em que
deixavam ratos entrar nas enfermarias e abocanhar pedaços dos pacientes enquanto estes
tentavam dormir um pouco? Balançou o corpo e se retorceu mas o rato continuou agarrado.
Não havia o que pudesse fazer para afugentar o bicho. Não podia socá-lo ou chutá-lo e não
podia gritar ou assobiar para amedrontá-lo. A única coisa que podia fazer era entrar
naquele movimento lento de balanço. Mas o rato decerto gostava daquilo porque
permaneceu exatamente onde estava. O rato estava comendo com muito capricho agora
escolhendo só as melhores partes e depois sentando satisfeito mastigando sem parar com
sua pequena mandíbula.
Ele começou a se dar conta de que a mastigação do rato não era uma coisa que duraria
só dez ou quinze minutos. Os ratos eram animais espertos. Sabiam se virar muito bem.
Aquele ali não ficaria contente em ir embora e não voltar mais. Voltaria dia após dia e noite
após noite para se alimentar da carcaça dele até deixá-lo maluco. Ele se via correndo pelos
corredores do hospital. Via-se abordando uma enfermeira e agarrando-a pelo pescoço e
baixando a cara dela até o buraco no seu flanco onde o rato ainda estava pendurado e
gritando com ela sua vaca preguiçosa por que você não vem espantar os ratos para longe
de seus pacientes? Estava correndo noite adentro aos gritos. Correndo ao longo de toda
uma série de noites correndo pela eternidade gritando pelo amor de Cristo alguém tire esse
rato de cima de mim não estão vendo ele pendurado aqui? Correndo por uma vida inteira
de noites e gritando e tentando afastar o rato e sentindo o rato cravar os dentes cada vez
mais fundo.
Quando ficou cansado de correr sem pernas e com a garganta doendo de tanto gritar
sem voz ele caiu de volta dentro do útero de volta à imobilidade de volta à solidão e à
escuridão e ao terrível silêncio.
VIII

AS MÃOS DA ENFERMEIRA ESTAVAM SOBRE ELE. Podia senti-la lavando seu corpo e manipulando sua carne e
trocando o curativo de sua ferida lateral. Ela usava algo morno e oleoso para dissolver a
crosta que fazia a máscara grudar naquele ponto de irritação perto da sua garganta. Ele se
sentia como uma criança que tivesse acordado chorando de um pesadelo e se visse seguro
e aconchegado nos braços da mãe. A enfermeira era uma companhia ainda que ele não
pudesse vê-la ou ouvi-la. Era alguém e era sua amiga. Ele não estava mais sozinho. Com ela
por ali ele não precisava se preocupar não precisava lutar não precisava pensar. A
responsabilidade era toda dela e ele não tinha o que temer contanto que ela estivesse
perto dele. Em vez do rato roendo o seu flanco ele sentia agora os dedos refrescantes dela e
a limpeza de novas ataduras e o frescor de lençóis limpos.
Agora sabia que o rato não passara de um sonho ruim. Ficou tão aliviado ao descobrir isso
que durante alguns minutos quase esqueceu o próprio medo. E então ali relaxado sob os
cuidados da enfermeira ele de repente gelou ao dar-se conta de que o sonho do rato
poderia voltar. Sabia que o sonho todo tinha sido desencadeado por sua cisma com o
ferimento no seu flanco. Estar pensando na ferida quando adormeceu trouxe o sonho do
rato alimentando-se dela. Já que o machucado permanecia aberto parecia quase certo que
a mesma sequência de ideias traria o rato de volta em seu sonho. Cada vez que caísse no
sono o rato voltaria e o sono em vez de significar esquecimento seria tão ruim quanto estar
acordado. Um sujeito pode aguentar um bocado quando está acordado. Mas quando vinha
o sono ele merecia esquecer tudo. O sono deveria ser como a morte.
Sabia que o rato era um sonho. Tinha certeza disso. Tudo o que precisava fazer era
encontrar um jeito de sair do sonho quando ele viesse. Lembrou que costumava ter
pesadelos quando criança. O engraçado em relação a eles é que não eram particularmente
horríveis. O pior deles era um em que ele era como uma formiguinha tentando atravessar
uma calçada e a calçada era tão grande e ele tão pequeno que às vezes acordava gritando
de pavor. Era esse o modo de interromper pesadelos gritando tanto que acordava a si
mesmo. Mas que diabo aquilo não era possível para ele agora. Em primeiro lugar ele não
podia gritar e em segundo lugar ele estava tão surdo que de todo modo não conseguiria
ouvir coisa alguma. Aquilo não servia. Teria que encontrar outro jeito.
Lembrou que quando cresceu e pesadelos diferentes apareceram ele costumava ser
capaz de sair deles por meio do pensamento. No momento em que a coisa ruim que o
perseguia parecia prestes a alcançá-lo ele conseguia pensar dormindo ei Joe é apenas um
sonho. Não passa de um sonho Joe está entendendo? E então num átimo ele abria os olhos
e encarava a escuridão à sua volta e o sonho desaparecia. Esse sistema talvez funcionasse
com o rato. Em vez de imaginar-se correndo e gritando por socorro na próxima vez que o
rato aparecesse ele simplesmente pensaria consigo mesmo é só um sonho. E então abriria
os…
Mas isso não ia dar certo. Ele não podia abrir os olhos. Em seu sono no meio do sonho do
rato ele talvez pudesse escapar pelo pensamento mas como seria capaz de comprovar que
estava acordado se não podia abrir os olhos e contemplar a escuridão ao redor?
Pensou Deus do céu Joe deve haver outra saída. Pensou é pedir muito pouco de um
homem querer simplesmente que ele seja capaz de provar que está acordado. Pensou
vamos Joe esse é o único jeito de vencer o rato e você tem que conseguir então trate de
imaginar depressa algum meio de constatar se você está acordado ou dormindo.
Talvez o melhor fosse começar do começo. Agora estava acordado. Tinha certeza disso.
Acabara de sentir as mãos da enfermeira e as mãos da enfermeira eram reais. Então
quando ele as sentia era porque estava acordado. Embora a enfermeira agora não estivesse
mais ali ele ainda estava acordado porque estava pensando no sonho do rato. Se você está
pensando num sonho isso é uma prova de que está acordado. Isso está bastante claro Joe.
Você está acordado. E está tentando se livrar de um sonho que virá quando você dormir.
Você não pode despertar a si mesmo gritando porque não é capaz de gritar. Não pode sair
do sonho por meio do pensamento e comprovar isso abrindo os olhos porque não tem mais
olhos. Melhor começar antes de cair no sono Joe esse é o negócio comece agora mesmo.
No momento em que você se sentir sonolento e a ponto de capotar ora trate de
endurecer e dizer a si mesmo que não vai ter sonho nenhum com ratos. Então talvez você
fique tão preparado para enfrentá-lo que ele nem venha. Porque se ele vier vai te dominar
até você acordar e você só terá certeza de estar acordado quando sentir as mãos da
enfermeira. Antes disso não poderá ter certeza absoluta. Então quando sentir que está
ficando com sono basta você pensar com firmeza que não vai sonhar com o…
Ei espere aí. Como é que você vai saber que está ficando com sono Joe? O que vai te
mostrar que está sonolento? Como se sente exatamente um sujeito antes de capotar no
sono? Bom talvez ele esteja exausto de trabalhar e simplesmente relaxe na cama e quando
veja está dormindo. Mas isso não serve para você Joe porque você nunca fica assim cansado
e está na cama o tempo todo. Não adianta. Bem talvez então os olhos do sujeito ardam um
pouco e ele boceje e se espreguice e finalmente suas pálpebras se fechem. Mas isso
também não serve. Seus olhos nunca ardem e você não pode bocejar nem se espreguiçar e
não tem pálpebra nenhuma. Você nunca se cansa Joe. Não precisa de sono nenhum porque
está praticamente dormindo o tempo todo. Sendo assim como pode ficar com sono? Se não
fica com sono não tem nenhum aviso. E se não tem aviso não pode se preparar de antemão
contra o rato.
Deus do céu ele estava numa encrenca terrível. Estava numa encrenca terrível se não era
capaz sequer de saber se estava acordado ou dormindo. Mas não conseguia pensar num
meio de saber. Quando você vai dormir você está cansado e se deita e fecha os olhos e os
sons vão sumindo e aí você adormece. Talvez até mesmo um sujeito normal com olhos para
fechar e ouvidos para ouvir não seja capaz de dizer em que exato minuto cai no sono.
Talvez ninguém seja. Há um pequeno espaço entre estar acordado e estar dormindo que
não é nenhuma das duas coisas. As duas coisas simplesmente se fundem de tal maneira
que sem perceber você já está dormindo. E então sem perceber você vai acordando e de
repente está acordado.
Era um inferno. Se até mesmo um sujeito normal não seria capaz de distinguir a
passagem entre sono e vigília então como é que ele poderia já que tudo em seu estado era
parecido com dormir o tempo todo vinte e quatro horas por dia? Até onde sabia ele podia
estar caindo no sono e despertando a cada cinco minutos. Sua vida toda era tão parecida
com dormir que ele não tinha como saber exatamente em que estado se encontrava. Claro
que era lógico pensar que estava desperto uma boa parte do tempo. Mas o único momento
em que podia ter certeza de estar acordado era quando sentia as mãos da enfermeira. E
agora que sabia que o rato era um sonho ruim e uma vez que era o único sonho que ele
podia dominar por completo então o único momento em que podia ter certeza de estar
dormindo era quando o rato estava roendo seu flanco. Claro que talvez ele tivesse outros
sonhos além do rato assim como podia estar acordado um montão de vezes quando as
mãos da enfermeira não o estavam tocando. Mas como é que ele iria distinguir?
Por exemplo quando criança ele costumava divagar acordado. Costumava sentar e ficar
pensando em coisas que um dia faria. Ou então pensar em coisas que fizera na semana
anterior. Mas o tempo todo estava acordado. Sabia disso. No entanto com ele deitado ali na
cama na escuridão e no silêncio era diferente. Ao pensar em algo acontecido muito tempo
antes o que parecia um devaneio diurno talvez se tornasse um sonho verdadeiro pois
enquanto pensava no passado podia cair no sono e sonhar com aquilo.
Talvez não houvesse solução. Talvez pelo resto de seus dias ele tivesse que simplesmente
conjecturar se estava acordado ou dormindo. Como é que um dia poderia ser capaz de
dizer bom acho que vou dormir agora ou acabei de acordar? E uma pessoa precisava saber.
Era importante. Era a coisa mais importante que restava. Tudo o que ele possuía era uma
mente e gostaria de sentir que ela estava raciocinando com clareza. Mas como poderia
fazê-lo exceto quando havia uma enfermeira por perto ou um rato roendo seu corpo?
Tinha que fazê-lo e pronto. As pessoas supostamente desenvolvem poderes
suplementares quando perdem partes de si mesmas. Se ele se concentrasse em pensar
talvez soubesse que estava acordado exatamente como sabia que estava agora. Então
quando parasse de se concentrar saberia que estava caindo no sono. Isso significava parar
de devanear sobre o passado. Isso significava não pensar mais em alguma coisa mas
apenas pensar pensar pensar. Então ele ficaria tão cansado de pensar que ficaria sonolento
e acabaria dormindo. Deus lhe deixara uma mente e isso era tudo. Era a única coisa que
podia usar então devia usá-la durante todos os minutos de vigília. Precisava pensar até ficar
mais cansado do que jamais ficara antes. Precisava pensar o tempo todo e depois precisava
dormir.
Percebeu que era isso que precisava fazer. Porque se não conseguisse distinguir entre
estar acordado e estar dormindo ora bolas então não poderia sequer considerar-se uma
pessoa adulta. Já era ruim o bastante ter sido despachado de volta ao útero. Era ruim o
bastante pensar em permanecer por anos e anos na solidão e no silêncio e na escuridão.
Mas essa última coisa essa incapacidade de distinguir sonhos de pensamentos era a
aniquilação total. Fazia dele um nada ou menos que um nada. Roubava-lhe a única coisa
que diferencia uma pessoa normal de um maluco. Significava que ele podia ficar deitado
pensando muito solenemente em alguma coisa quando o tempo todo talvez estivesse na
verdade dormindo e sonhando os sonhos idiotas de um garoto de dois anos. Despojava-o de
qualquer respeito por seus próprios pensamentos e essa era a pior coisa que poderia
acontecer a alguém. Estava tão confuso que nem sabia ao certo se o que era real era a
enfermeira ou o rato. Talvez nenhum dos dois. Talvez ambos. Talvez nada fosse real nem
mesmo ele próprio oh deus e isso não seria maravilhoso?
IX

A FOGUEIRA DO ACAMPAMENTO FOI ARMADA diante de uma barraca e a barraca ficava embaixo de um enorme
pinheiro. Quando a gente dormia dentro da barraca parecia sempre que estava chovendo
do lado de fora porque as agulhas do pinheiro caíam o tempo todo. Sentado à sua frente e
encarando o fogo estava seu pai. A cada verão eles iam àquele lugar que ficava a três mil
metros de altitude e era coberto de pinheiros e salpicado de lagos. Eles pescavam nos lagos
e quando iam dormir à noite o rumor da água dos córregos que conectavam os lagos soava
em seus ouvidos a noite toda.
Costumavam ir àquele lugar desde que ele tinha sete anos. Agora ele estava com quinze
e Bill Harper chegaria no dia seguinte. Ele sentou diante da fogueira e olhou para seu pai
sentado do outro lado e ficou se perguntando como iria contar a ele. Era uma coisa muito
séria. No dia seguinte pela primeira vez em suas viagens juntos ele queria pescar com
outra pessoa além de seu pai. Em excursões anteriores a ideia nunca lhe ocorrera. Seu pai
sempre preferira sua companhia à de outros adultos e ele sempre preferira a companhia do
pai à de outros rapazes. Mas agora Bill Harper ia chegar no dia seguinte e ele queria ir
pescar com ele. Sabia que era uma coisa que teria de acontecer em algum momento. No
entanto sabia também que era o fim de alguma coisa. Era um fim e um começo e ele não
sabia como deveria contar a seu pai.
Então contou de um jeito muito casual. Disse o Bill Harper chega amanhã e pensei que
talvez eu possa sair com ele. Disse o Bill Harper não sabe muito sobre pesca e eu sei então
acho que se o senhor não se importar eu vou acordar cedo e encontrar o Harper e ele e eu
vamos sair pra pescar.
Por um momento seu pai não disse uma palavra. Então falou ora claro Joe vá em frente. E
então um pouco depois seu pai disse o Bill Harper tem um caniço? Ele respondeu ao seu
pai não o Bill não tem caniço. Bom disse seu pai por que você não fica com o meu e deixa o
Bill usar o seu? De todo modo eu não queria mesmo ir pescar amanhã. Estou cansado e
acho que vou descansar o dia inteiro. Então você pode usar o meu caniço e deixar o Bill
usar o seu.
Foi simples assim e no entanto ele sabia que era uma coisa grandiosa. A vara de pesca de
seu pai era muito valiosa. Era talvez a única extravagância que seu pai se permitira em
toda a sua vida. Tinha guias de âmbar e lindas torceduras de seda. A cada primavera seu
pai a enviava a um homem de Colorado Springs que era especialista em varas de pesca. O
homem de Colorado Springs descascava cuidadosamente o verniz do caniço e o
reencordoava e o envernizava de novo e ele voltava brilhando a cada ano. Não havia nada
que seu pai estimasse mais. Joe sentiu um nó na garganta ao pensar que mesmo ele
trocando seu pai por Bill Harper seu pai lhe emprestava de bom grado sua vara de pesca.
Foram dormir naquela noite na cama estendida num chão de agulhas de pinheiro.
Tinham afastado as agulhas para abrir um pequeno espaço livre para seus quadris. Ele
ficou deitado desperto por um bom tempo pensando no dia seguinte e no pai que dormia a
seu lado. Então adormeceu. Às seis da manhã Bill Harper chamou-o com um sussurro da
entrada da barraca. Ele se levantou e deu a Bill seu caniço e apanhou o do seu pai para si e
os dois saíram sem acordar seu pai.
Já estava escurecendo quando aconteceu a coisa terrível. Estavam num bote pescando
com carretilhas móveis. Os anzóis dos dois estavam dentro d’água. Joe remava e Bill Harper
estava sentado na popa de frente para ele segurando um caniço em cada lado do barco.
Estava tudo muito calmo e o lago era um espelho. Estavam ambos meio aéreos porque
tinham se divertido muito o dia todo. Então ouviram um zumbido agudo quando o peixe
puxou o anzol. A vara saltou da mão de Bill Harper e desapareceu dentro d’água. Os dois
tentaram recuperá-la mas era tarde demais. Era o caniço do seu pai. Por mais de uma hora
eles tentaram ainda pescá-lo com o outro caniço e com os remos mas sabiam o tempo todo
que não havia chance alguma. A maravilhosa vara de pesca de seu pai estava perdida e
eles nunca voltariam a vê-la.
Atracaram o bote e limparam os peixes que tinham pescado e em seguida foram ao
mercadinho tomar um refrigerante. Beberam e conversaram à meia voz sobre o caniço.
Então ele se despediu de Bill Harper.
Ao longo de todo o caminho até a barraca andando sob os pinheiros e sobre tapetes
macios de agulhas e ouvindo o rumor dos regatos que desciam a montanha e
contemplando as estrelas no céu ele pensava em seu pai. Seu pai e sua mãe nunca tiveram
muito dinheiro mas pareciam se virar muito bem. Tinham uma casinha situada bem longe
num amplo terreno nas bordas da cidade. Em frente à casa havia um trecho de grama e
entre a grama e a calçada seu pai contava com um bom espaço para sua horta. As pessoas
vinham da cidade toda para admirar a horta de seu pai. Seu pai acordava às cinco ou cinco
e meia da manhã para regar sua horta. Chegava do trabalho ao anoitecer ansioso para
voltar a cuidar dela. A horta de certo modo era um meio de seu pai escapar das contas e
das histórias de sucesso e do trabalho no armazém. Era o seu meio de criar alguma coisa.
Era o meio que seu pai tinha de ser um artista.
De início eles cultivaram alfaces feijões ervilhas cenouras cebolas beterrabas e rabanetes.
Então seu pai conseguiu autorização do dono do terreno vizinho para usá-lo também como
horta. O homem ficou contente com o uso do terreno por seu pai porque lhe pouparia a
despesa de queimar o mato no outono. Então no terreno vizinho seu pai passou a plantar
milho verde e abobrinha e melão-cantalupo e melancia e pepino. Tinha uma cerca viva de
girassóis em torno do terreno. O miolo dos girassóis chegava a ter trinta centímetros de
diâmetro. As sementes eram um ótimo alimento para as galinhas. Num pedaço de terra
que ficava metade do dia na sombra seu pai plantou morangos de modo que eles tinham
frutas frescas da primavera até o final do inverno.
Nos fundos da casa em Shale City eles criavam galinhas e coelhos e ele tinha algumas
galinhas garnisés de estimação. Duas talvez três vezes por semana comiam frango frito no
jantar e isso não tinha ares de luxo. No inverno tinham galinha ensopada com bolinhos e
batatas de sua própria produção. Durante o verão quando as galinhas botavam muitos ovos
e o preço deles no armazém era muito baixo sua mãe pegava os ovos excedentes no
galinheiro e os colocava em grandes vasilhas cheias de um líquido preparado para
conservá-los. Então quando chegava o inverno e os ovos estavam caros e as galinhas não
estavam botando ela simplesmente descia até o porão e pegava os ovos de graça. Tinham
uma vaca leiteira e sua mãe batia a própria manteiga e fazia o próprio leite desnatado. O
leite repousava em panelas no telheiro dos fundos e de manhã o leite da noite anterior
estava coberto por uma nata amarela quase tão espessa como couro. Nos domingos
quentes de verão faziam sorvete usando sua própria nata e seus próprios morangos e
praticamente tudo mais deles próprios exceto o gelo.
Na outra ponta do terreno vizinho seu pai mantinha seis melgueiras de modo que a cada
outono eles tinham mel em abundância. Seu pai ia até as melgueiras e puxava as gavetas
das colmeias e checava os favos e se a melgueira estivesse fraca ele destruía os alvéolos da
abelha rainha e talvez até cortasse as asas da rainha para que ela não formasse outro
enxame e dividisse a colmeia.
Logo que o clima baixava a temperaturas negativas seu pai ia até alguma fazenda nas
redondezas e comprava carne fresca. Havia um quarto de novilho e talvez metade de um
porco pendurados no frio congelante do telheiro dos fundos e sempre frescos. Quando se
queria um bife bastava pegar uma serra e talhar um pedaço e além de ser melhor isso não
custava nada em comparação com o que os açougues cobravam.
No outono sua mãe passava semanas fazendo compotas de frutas. No final da estação o
porão estava abarrotado. A gente descia lá e ao lado das grandes vasilhas onde os ovos
estavam mergulhados havia potes de vidro com todo tipo de fruta que se desejasse. Havia
compotas de damasco e geleias de laranja e de framboesa e de mirtilo e gelatinas de maçã.
Havia ovos duros conservados em caldo de beterraba e pão e manteiga e picles e cerejas
salgadas e molho de pimenta. Quem descesse ao porão em outubro encontraria três ou
quatro grandes bolos de frutas pretos e úmidos e recheados de cidra e nozes. Estariam no
canto mais fresco do porão cuidadosamente envolvidos em panos úmidos para se preservar
até a época natalina.
Tinham todas essas coisas e mesmo assim seu pai era um fracasso. Não conseguia
ganhar dinheiro de jeito nenhum. Às vezes seu pai e sua mãe conversavam sobre isso à
noite. Fulano tinha ido para a Califórnia e ganhado um dinheirão com imóveis. Sicrano
tinha ido e ganhado um dinheirão só trabalhando numa cadeia de lojas de sapatos até
chegar a gerente. Todo mundo que ia para a Califórnia ganhava dinheiro e vencia na vida.
Mas seu pai em Shale City era um fracasso.
Era difícil entender como seu pai podia ser tão fracassado quando parava para pensar no
assunto. Era um homem bom e honesto. Mantinha os filhos juntos e todos comiam boa
comida ótima comida farta comida uma comida muito melhor do que a que as pessoas
comiam nas grandes cidades. Mesmo os ricos das grandes cidades não comiam verduras
tão frescas e viçosas. Não comiam carne tão bem conservada. Não havia dinheiro que
comprasse aquilo. Coisas assim você tinha que produzir por conta própria. Seu pai tinha
conseguido produzir até mesmo o mel que eles usavam nos biscoitos quentes assados por
sua mãe. Seu pai conseguira produzir todas as coisas em dois terrenos urbanos e mesmo
assim seu pai era um fracasso.
Viu a barraca que se erguia à sua frente no flanco da montanha como uma pequena
nuvem branca na escuridão. Pensou de novo na vara de pesca e foi então que se deu conta
de que seu pai era um fracasso. Não é que seu pai não suprisse a família de roupas e
alimento e prazeres. Estava tudo muito claro agora. Seu pai não tinha dinheiro suficiente
para comprar outro caniço. Embora o caniço fosse a propriedade mais preciosa do pai agora
que ele estava perdido ele não tinha dinheiro suficiente para comprar outro e portanto era
um fracasso.
Quando chegou à barraca seu pai estava na cama dormindo. Ficou um tempo ali parado
contemplando o pai de cima para baixo. Então saiu e pendurou os peixes. Voltou à barraca
e despiu-se com rapidez e ajeitou-se na cama ao lado do pai. Seu pai tinha o sono agitado.
Ele sabia que não era uma boa ideia esperar até a manhã seguinte. Tinha que contar agora
mesmo. Sua voz não sairia firme quando ele começasse a falar. Não era por estar com
medo do que seu pai pudesse dizer. Era porque ele sabia que seu pai nunca mais seria
capaz de ter uma vara de pescar tão boa como a que tinha sido perdida.
Pai disse ele perdi seu caniço. Houve um puxão brusco e antes que pudéssemos perceber
a vara estava na água. Vasculhamos ao redor em busca dela com os remos mas não
achamos nada então ela se foi.
Pareceu que se passaram uns cinco minutos até seu pai finalmente emitir um som. Então
ele se virou levemente na cama. Ele sentiu de repente o braço do pai sobre seu peito.
Sentiu sua pressão morna e reconfortante. Bom disse seu pai não acho que a gente deva
deixar uma coisa pequena como um caniço estragar nossa última excursão juntos não é
mesmo?
Não havia o que dizer então ele ficou deitado em silêncio. Seu pai soubera o tempo todo
que aquela de fato seria a última excursão deles. Dali em diante nos verões ele iria
acampar com rapazes como Bill Harper e Glen Hogan e o resto da turma. E seu pai iria
fazer pescarias com outros adultos. Simplesmente era assim que acontecia. Tinha que
acontecer desse jeito. Mas ficou lá deitado ao lado do pai os dois encolhidos que era como
sempre dormiam melhor quando juntos e o braço do pai em torno dele e pestanejou para
reter as lágrimas. Ele e seu pai tinham perdido tudo. Eles próprios e a vara de pescar.
Acordou pensando em seu pai e perguntando-se onde estaria a enfermeira. Acordou
sentindo-se mais solitário do que nunca. Sentia falta de Shale City e seus prazeres. Sentia
falta de um olhar de um cheiro de um gosto de uma palavra que pudesse lhe trazer de
volta Shale City e seu pai e sua mãe e suas irmãs. Mas estava tão apartado deles todos que
mesmo se estivessem ali em pé ao lado da cama seria como se estivessem a milhares de
quilômetros de distância.
X

FICAR DEITADO DE COSTAS SEM NADA PARA fazer e nenhum lugar aonde ir era meio como estar no alto de uma
montanha longe do barulho e das pessoas. Era como estar acampando totalmente sozinho.
Você tinha tempo de sobra para pensar. Tinha tempo para destrinchar as coisas. Coisas em
que nunca tinha pensado antes. Coisas como por exemplo ir para a guerra. Você estava tão
sozinho em sua montanha que os ruídos e as pessoas nem entravam na sua reflexão. Você
pensava exclusivamente por conta própria sem levar em consideração coisa alguma além
de você mesmo. Parecia que assim pensava mais claro e que suas respostas faziam mais
sentido. E mesmo que não fizessem sentido não importava porque de todo modo você não
poderia fazer nada a respeito.
Pensou aqui está você Joe Bonham deitado como um pedaço de carne pelo resto da vida
e para quê? Alguém lhe deu um tapinha no ombro e disse venha comigo garoto você vai
para a guerra. E você foi. Mas por quê? Em qualquer outra negociação mesmo na compra
de um carro ou na realização de uma tarefa você tinha o direito de perguntar o que eu
ganho com isso? Caso contrário você iria comprar carros ruins por muito dinheiro ou
cumprir tarefas estúpidas de graça e morrer de fome. Era um dever consigo mesmo que
quando alguém dissesse venha aqui garoto faça isso ou faça aquilo você se aprumasse e
perguntasse olhe aqui senhor por que devo fazer isso para quem vou fazer isso e o que vou
ganhar no final? Mas quando um sujeito chega e diz venha comigo e arrisque sua vida e
talvez morra ou fique aleijado ora bolas então você não tem direito algum. Não tem sequer
o direito de dizer sim ou não ou vou pensar. Há uma porção de leis para proteger o dinheiro
das pessoas mesmo em tempo de guerra mas não há nada na legislação dizendo que a
vida de um homem pertence a ele e a mais ninguém.
Claro que muitos sujeitos ficaram desconcertados. Alguém dizia vamos lá lutar pela
liberdade e então eles iam e eram mortos sem ter pensado sequer uma vez na liberdade. E
por que tipo de liberdade eles estavam lutando afinal? Quanta liberdade e na concepção de
quem? Estavam lutando pela liberdade de tomar sorvetes de graça por toda a vida ou pela
liberdade de roubar qualquer pessoa sempre que quisessem ou o quê? Você diz a um
homem que ele não pode roubar e com isso tira um pouco da sua liberdade. Precisa fazer
isso. Que diabo significa a liberdade afinal? É só uma palavra como casa ou mesa ou
qualquer outra palavra. Só que é uma palavra de tipo especial. Um sujeito diz casa e pode
apontar uma casa para provar. Mas um sujeito diz vamos lá lutar pela liberdade e não pode
mostrar a liberdade pra gente. Não pode comprovar o que está dizendo então como é que
ele pode mandar a gente lutar por aquilo?
Não senhor qualquer um que tivesse ido para as trincheiras do front para lutar pela
liberdade era um tremendo idiota e o sujeito que o convencera a ir para lá era um
mentiroso. Na próxima vez que alguém viesse com aquela lenga-lenga sobre liberdade –
como assim na próxima vez? Não haveria próxima vez para ele. Mas que se dane. Se
pudesse haver uma próxima vez e alguém dissesse vamos lutar pela liberdade ele
responderia senhor minha vida é importante. Não sou um idiota e se for para trocar minha
vida pela liberdade eu preciso saber de antemão que liberdade é essa e de quem é essa
concepção de liberdade de que estamos falando e quanto dessa liberdade ficará para nós.
E tem mais será que o senhor está tão interessado nessa liberdade quanto quer que eu
esteja? E talvez liberdade demais seja tão ruim quanto liberdade de menos e acho que o
senhor é um tremendo de um embusteiro que só fala bobagem e já decidi que gosto da
liberdade que tenho aqui mesmo a liberdade de andar e ver e ouvir e falar e comer e
dormir com minha garota. Acho que gosto mais dessa liberdade do que de combater por
uma porção de coisas que afinal não ficam com a gente e terminar sem liberdade
nenhuma. Terminar morto e apodrecendo antes que a minha vida tenha sequer começado
ou terminar como um pedaço de carne. Não obrigado senhor. O senhor que lute pela
liberdade. Eu fico como estou.
Que diabos sempre houve pessoas lutando pela liberdade. A América combateu pela
liberdade em 1776. Um monte de gente morreu. E no final das contas será que a América
tem mais liberdade que o Canadá ou a Austrália que não lutaram nem um pouco? Talvez
tenha não estou discutindo estou só perguntando. Será que a gente pode olhar para um
sujeito e dizer eis um americano que lutou por sua liberdade e qualquer pessoa pode ver
que ele é muito diferente de um canadense que não lutou? Não por deus a gente não tem
como dizer isso e essa é que é a verdade. Então talvez uma porção de sujeitos com esposas
e filhos tenha morrido em 1776 sem necessidade alguma. Estariam mortos de todo modo
agora. Claro mas isso não resolve a questão. Um sujeito pode pensar que estará morto
daqui a cem anos e não se importar. Mas pensar que estará morto amanhã de manhã e
continuará morto para todo o sempre e não passará de pó e ficará fedendo na terra isso lá é
liberdade?
Estavam sempre lutando por alguma coisa os filhos da mãe e se alguém ousasse dizer
dane-se a luta é tudo a mesma coisa cada guerra é como todas as outras e ninguém tira
nada de bom dela esse alguém seria chamado de covarde. Quando não estavam lutando
pela liberdade estavam lutando pela independência ou pela democracia ou pela autonomia
ou pela decência ou pela honra ou por sua terra natal ou por qualquer outra coisa sem o
menor sentido. A guerra era para salvar o mundo era pela democracia era pelos países
pequenos era por todo mundo. Se a guerra terminasse agora então a democracia estaria
salva em todo o mundo. Era isso? E que tipo de democracia? Quanta democracia? E para
quem?
Então havia aquela liberdade pela qual quem morria eram sempre os de baixo. Era
liberdade em relação a outro país? Liberdade em relação ao trabalho ou à doença ou à
morte? Liberdade em relação à sogra? Por favor meu senhor nos dê um recibo de venda
dessa liberdade antes que a gente vá lá morrer. Dê-nos um recibo de venda com tudo
escrito direitinho para que saibamos de antemão por que vamos ser mortos e nos dê
também uma hipoteca que nos garanta que depois de vencer essa guerra aí de vocês
teremos o mesmo tipo de liberdade que nos contrataram para defender.
E também tem a decência. Todo mundo dizia que a América estava lutando uma guerra
pelo triunfo da decência. Mas decência de acordo com quem? E decência para quem? Fale
claro e nos diga que decência é essa. Diga-nos se um homem decente morto se sente
muito melhor que um homem indecente vivo. Faça uma comparação usando fatos como
casas e mesas. Mas em palavras que a gente possa entender. E não venha falar de honra. A
honra de um chinês ou de um inglês ou de um negro africano ou de um americano ou de
um mexicano? Por favor todos vocês rapazes que querem lutar para preservar nossa honra
nos digam que raio de honra é essa. É pela honra americana para o mundo todo que
estamos lutando? Talvez o mundo não goste da ideia. Talvez os habitantes das Ilhas do Sul
prefiram a honra deles.
Pelo amor de Cristo dê-nos coisas pelas quais lutar coisas que podemos ver e sentir e
apalpar e entender. Chega de palavras pomposas que nada significam como terra natal.
Pátria berço terra natal. É tudo a mesma coisa. Que raio lhe interessa sua pátria depois que
você está morto? É terra natal de quem quando você já morreu? Morrer lutando pela pátria
é como comprar um pacote sem verificar o que tem dentro. E você paga por uma coisa que
não vai poder usufruir.
E quando não conseguiam fisgar os homens pobres para lutar pela liberdade ou pela
independência ou pela democracia ou pela decência ou pela honra eles apelavam para as
mulheres. Vejam os sórdidos hunos10 eles diziam vejam como eles estupram as lindas
garotas francesas e belgas. Alguém tinha que dar um basta a todos aqueles estupros.
Portanto venha rapaz junte-se ao exército e salve as lindas garotas francesas e belgas.
Então o rapaz ficava desconcertado e se alistava e em pouco tempo uma bomba o atingia e
seu corpo virava do avesso virava uma posta vermelha de carne e sangue e ele estava
morto. Morto por outra palavra e todas as velhas caquéticas da D.A.R.11 iam bradar discursos
até ficar roucas sobre seu túmulo porque ele tinha morrido pelas mulheres.
Pode até ser que um sujeito se arriscasse a ser morto se suas mulheres estivessem sendo
violadas. Mas se fizesse isso ora bolas estaria apenas cumprindo um contrato. Estaria
simplesmente dizendo que de acordo com seu modo de sentir naquele momento a
segurança de suas mulheres valia mais do que sua própria vida. Mas não haveria nada de
particularmente nobre ou heroico nisso. Era um acordo claro uma troca de sua vida por
algo que ele valorizava mais. Era mais ou menos como qualquer outra negociação que um
homem pudesse fazer. Mas quando você muda de suas mulheres para todas as mulheres do
mundo ora então você passa a defender as mulheres no atacado. Para fazer isso você tem
que combater no atacado. E quando isso acontece você está de novo lutando por uma
palavra.
Quando exércitos começam a se mobilizar e bandeiras a se agitar e os slogans a pulular
fique atento meu rapaz porque são os outros que você vai livrar de apuros não você
mesmo. É por palavras que você está lutando e você não está fazendo uma troca honesta
de sua vida por alguma coisa melhor. Você está sendo nobre e depois de ser morto a coisa
pela qual você trocou a vida não vai lhe servir para nada e o mais provável é que tampouco
sirva para qualquer outra pessoa.
Talvez esse seja um jeito ruim de ver as coisas. Há uma porção de idealistas por aí que
dirão será que descemos tão baixo que não restou nada mais importante do que a vida?
Claro que há ideais pelos quais vale a pena lutar e até mesmo morrer. Caso contrário
seríamos piores que feras selvagens e estaríamos imersos na barbárie. Então você diz tudo
bem sejamos bárbaros então desde que não tenhamos uma guerra. Fique com seus ideais
desde que eles não me custem a vida. E eles dizem mas a vida não é tão importante
quanto os princípios. Então você retruca ah não? Talvez não a sua mas a minha sim. Que
diabo é um princípio? Se você souber explicar pode ficar com ele.
Volta e meia a gente ouve sujeitos que estão dispostos a sacrificar a vida dos outros. Eles
são muito enfáticos e falam o tempo todo. A gente os encontra em igrejas e escolas e
jornais e câmaras e congressos. É o ofício deles. Soa lindo o que dizem. Antes a morte que
a desonra. Este chão santificado pelo sangue. Estes homens que morreram gloriosamente.
Sua morte não terá sido em vão. Nossos nobres mortos.
Ãhan.
Mas o que dizem os mortos?
Alguém já voltou do reino dos mortos unzinho que seja dos milhões que foram mortos um
deles alguma vez voltou e disse deus do céu estou contente de estar morto porque a morte
é sempre melhor que a desonra? Alguém disse que bom que morri para tornar o mundo um
lugar mais seguro para a democracia? Disse prefiro a morte a perder a liberdade? Um deles
alguma vez disse gosto de pensar que tive minhas vísceras explodidas pela honra do meu
país? Um deles alguma vez disse olhe para mim estou morto mas morri pela decência e
isso é melhor do que estar vivo? Um deles alguma vez disse aqui estou eu apodrecendo há
dois anos numa cova estrangeira mas é maravilhoso morrer pela pátria da gente? Algum
deles já exclamou viva morri pelas mulheres todas e estou feliz veja como eu canto embora
minha boca esteja entupida de vermes?
Ninguém a não ser os mortos sabe se vale mesmo a pena morrer por todas essas coisas
que as pessoas falam. E os mortos não falam. Portanto todas essas palavras sobre os nobres
defuntos e o sangue sagrado e a honra e assim por diante são colocadas em lábios mortos
por violadores de sepulturas que não têm direito nenhum de falar em nome dos mortos. Se
um homem diz antes a morte que a desonra ou ele é um idiota ou um mentiroso porque
não sabe o que é a morte. Não está em condições de julgar. Só sabe a respeito da vida. Não
sabe coisa alguma sobre morrer. Se ele é um idiota e acredita mesmo que a morte é melhor
que a desonra então que vá em frente e morra. Mas todos os zés-ninguém que estão
ocupados demais para combater deveriam ser deixados em paz. E todos os sujeitos que
dizem antes a morte que a desonra deveriam ser deixados em paz também. Porque os que
dizem que a vida não vale a pena se não tiver algum princípio tão importante que você
esteja disposto a morrer por ele estão todos malucos. Estão falando como idiotas. Estão
dizendo que dois mais dois é igual a zero. Estão dizendo que um homem terá que morrer
para proteger sua vida. Se você concorda em lutar também concorda em morrer. Agora se
você morre para proteger sua vida você já não está vivo mesmo portanto que raio de
sentido existe numa coisa dessas? Um homem não diz vou morrer de fome para evitar
passar fome. Não diz vou gastar todo o meu dinheiro para economizar meu dinheiro. Não
diz vou incendiar minha casa para protegê-la de um incêndio. Então por que ele estaria
disposto a morrer pelo privilégio de viver? Deveria haver no mínimo tanto bom senso no
que diz respeito a viver e morrer quanto existe em relação a ir à mercearia e comprar um
pão.
E todos os sujeitos que morreram todos os cinco milhões ou sete milhões ou dez milhões
que foram para o front e morreram para tornar o mundo seguro para a democracia para
tornar o mundo seguro para palavras sem sentido como será que se sentiram quanto a isso
um instante antes de morrer? Como se sentiram ao ver seu sangue se misturar com a
lama? Como se sentiram quando o gás atingiu seus pulmões e começou a consumi-los por
dentro? Como se sentiram quando estavam deitados enlouquecidos nos hospitais e
encararam a morte nos olhos e a viram chegar para levá-los embora? Se a coisa pela qual
lutavam era importante o bastante para que se morresse por ela então também era
importante o bastante para que pensassem nela nos últimos minutos de suas vidas. Isso
era lógico. A vida é tremendamente importante portanto se você abriu mão dela supõe-se
que nos seus últimos momentos deva pensar com toda a concentração na coisa pela qual
você a trocou. Sendo assim será que todos aqueles garotos morreram pensando na
democracia e na liberdade e na independência e na honra e na segurança da pátria e nas
estrelas e listras para sempre?
Acertou em cheio se respondeu que não.
Eles morreram chorando por dentro como bebês. Esqueceram a coisa pela qual estavam
lutando a coisa pela qual estavam morrendo. Pensavam apenas em coisas que um homem
é capaz de compreender. Morreram sentindo falta do rosto de um amigo. Morreram
choramingando pela voz de uma mãe um pai uma esposa um filho. Morreram com o
coração doendo de vontade de ver mais uma vez o lugar onde tinham nascido por favor
meu deus só mais uma vez. Morreram gemendo e suspirando pela vida. Sabiam o que era
importante. Sabiam que a vida era tudo e morreram com gritos e soluços. Morreram com
um único pensamento na cabeça e este era quero viver quero viver quero viver.
Ele tinha que saber.
Era o que havia de mais parecido com um homem morto sobre a terra.
Era um homem morto com uma mente ainda capaz de pensar. Sabia todas as respostas
que os mortos sabiam mas sobre as quais não podiam pensar. Podia falar pelos mortos
porque era um deles. Era o primeiro de todos os soldados desde o início dos tempos que
ainda tinha um cérebro com o qual podia pensar. Ninguém poderia competir com ele.
Ninguém poderia provar que estava errado. Porque ninguém sabia exceto ele.
Ele podia dizer a todos aqueles assassinos falastrões filhosdaputa que clamavam por
sangue o quanto eles estavam errados. Podia dizer a eles ei mister não existe coisa alguma
pela qual valha a pena morrer eu sei disso porque estou morto. Nenhuma palavra vale a
vida da gente. Eu preferiria trabalhar numa mina bem no fundo da terra e nunca ver a luz
do sol e comer crostas de pão e tomar só água e trabalhar vinte horas por dia. Preferiria isso
de bom grado a estar morto. Trocaria a democracia pela vida. Trocaria independência e
honra e liberdade e decência pela vida. Eu daria ao senhor todas essas coisas e o senhor
me daria o poder de andar e ver e ouvir e respirar o ar e saborear minha comida. O senhor
fica com as palavras. E me devolve minha vida. Não estou nem pedindo uma vida feliz. Não
estou pedindo uma vida decente ou uma vida honrosa ou uma vida livre. Já passei desse
ponto. Estou morto portanto estou simplesmente pedindo para viver. Viver. Sentir. Ser uma
coisa que se move sobre o chão e não está morta. Eu sei o que é a morte e vocês que falam
sobre morrer por palavras não sabem sequer o que é a vida.
Morrer não tem nada de nobre. Mesmo que você morra pela honra. Mesmo que você
morra como o maior herói que o mundo conheceu. Mesmo que você seja tão grandioso que
seu nome jamais venha a ser esquecido mas quem é assim tão grandioso? A coisa mais
importante é a vida de vocês seus zés-ninguém. Mortos vocês não valem nada a não ser nos
discursos. Não deixem mais que eles os enganem. Não deem atenção quando lhes derem
tapinhas nas costas e disserem venham precisamos lutar pela liberdade ou qualquer outra
palavra porque sempre tem uma palavra.
Digam apenas desculpe mister mas não tenho tempo para morrer estou ocupado demais
e então virem as costas e saiam correndo. Se chamarem vocês de covardes ora bolas não
liguem porque a tarefa de vocês é viver e não morrer. Se eles falarem sobre morrer por
princípios maiores que a vida digam mister o senhor é um mentiroso. Nada é maior do que
a vida. Não há nada de nobre na morte. O que há de nobre em ficar estendido no chão
apodrecendo? O que há de nobre em nunca mais voltar a ver o brilho do sol? O que há de
nobre em ter as pernas e os braços arrancados por uma explosão? O que há de nobre em
ser um idiota? O que há de nobre em ficar cego e surdo e mudo? O que há de nobre em
estar morto? Porque quando se está morto mister está tudo acabado. É o fim. O sujeito é
menos que um cão menos que um rato menos que uma abelha ou uma formiga menos que
uma larva rastejando num monte de esterco. O sujeito está morto mister e morreu a troco
de nada.
Está morto mister.
Morto.
LIVRO II
Os vivos
XI

DUAS VEZES DOIS QUATRO. Quatro vezes quatro dezesseis. Dezesseis vezes dezesseis duzentos e
cinquenta e seis. Duzentos e cinquenta e seis vezes duzentos e cinquenta e seis ah sei lá só
sei que é um número bem grande. Tudo bem então duas vezes três seis. Seis vezes seis
trinta e seis. Trinta e seis vezes trinta e seis quinhentos e setenta e seis.12 Quinhentos e
cacetada vezes ah não isso não prestava. Só conseguia chegar até ali.
Esse era o problema com os números. Eles ficavam tão grandes que a gente não
conseguia lidar com eles e mesmo que conseguisse não chegaria a lugar algum. Tente
outra coisa. Pousar e repousar. Agora eu repouso para dormir. As flores repousam sobre a
mesa. Eu as pouso na mesa. Eu pouso meu corpo na cama para dormir. Ele repousou ali por
três horas. Eu pouso este livro. Ora por que é que você não o põe simplesmente ali e
esquece o assunto? Quem está aí? Cujo está aí? Quem cujo ao qual. Entre você e eu e a
estaca do portão. Entre mim e você. Entre nós é bem melhor. Não há ninguém como ela.
Não como ela. Ninguém como ela. Ninguém é como ela. Ninguém come ela.
David Copperfield passou maus bocados e era aprendiz do sr. Micawber que achava que
tudo daria certo. Havia uma tia Dorrity ou coisa parecida. David fugiu para encontrá-la. A
mãe dele tinha grandes olhos castanhos e era amável e Barkis estava interessado. O pai
estava morto. O velho Scrooge era avarento e Tiny Tim dizia Deus nos abençoe a todos.
Havia um pudim gordo como uma bala de canhão em fogo. Tiny Tim era aleijado. O último
dos moicanos era um iroquês. Era ou não era e onde é que o Leatherstocking entra na
história?
Meia légua meia légua meia légua em frente. Para o vale da morte cavalgaram os
seiscentos. Seiscentos paladinos. A eles não cabia questionar a eles cabia apenas conseguir
ou morrer. Nada mais. Quando a geada cobre a abóbora e a forragem está no monte
quando se ouve o glu-glu-glu do pomposo peru.13 Não adianta. Tentar outra coisa quem
sabe.
Existem oito planetas. Existem Terra Vênus Júpiter Marte Mercúrio. Um dois três quatro
cinco. Tem mais três. Ele não sabia. Uma estrela tremeluz e um planeta tem luz fixa. Não
lembrava direito. Não terás outro deus além de mim. Não matarás. Honrarás pai e mãe. Não
cobiçarás o boi nem o asno nem o servo nem a serva do teu vizinho. Não roubarás. Não
cometerás adultério. Não basta. Bem-aventurados os humildes pois eles herdarão a terra.
Bem-aventurados os pobres porque eles verão a deus. Bem-aventurados os que têm fome e
sede de justiça porque terão isto ou aquilo ele não lembrava direito. O Senhor é meu pastor
e nada me faltará. Ele me conduz aos verdes pastos. Ele me conduz à água fresca. Ele unge
minha cabeça com óleo. Minha taça transborda. Sim ainda que eu caminhasse pelo vale da
morte não haveria de temer mal algum pois teu cajado e teu escudo me consolam. A
bondade e a misericórdia vão me acompanhar por todos os dias da minha vida e habitarei
para sempre a casa do Senhor. Ei isso era bem bom. O melhor até agora.
Diacho o problema com ele é que ele não sabia coisa nenhuma. Não sabia nada. Por que
não tinham lhe ensinado coisas que ele pudesse lembrar? Por que ele não dispunha de algo
em que pudesse pensar? Ali estava ele sem nada para fazer além de pensar e não tinha
nada com que pudesse se entreter. Só conseguia se lembrar de si mesmo de sua vida e isso
era ruim. Sua mente era a única coisa que lhe restara e ele precisava encontrar algum uso
para ela. Só que não conseguia usá-la porque não sabia nada. Era ignorante como um bebê
quando parava para pensar.
Se pudesse se lembrar de um livro capítulo por capítulo poderia dedicar-se a lê-lo
mentalmente de novo e de novo e de novo. Só que não conseguia se lembrar. Não se
lembrava sequer dos enredos menos ainda dos capítulos. Só um trechinho aqui outro
trechinho ali. Não é que ele tivesse esquecido como lembrar. É que nunca prestara atenção
de modo que agora não dispunha de nada que valesse a pena lembrar. Era um homem e
estava vivo e permaneceria vivo por um bom tempo e precisava ter alguma coisa para fazer
alguma coisa em que pensar. Precisava partir do começo como um bebê e aprender.
Precisava se concentrar. Precisava começar do começo. Precisava começar com uma ideia.
A ideia vinha se infiltrando em sua mente fazia tempo ele não sabia desde quando e essa
ideia era que o importante é o tempo. Lembrava que nas aulas de história antiga na décima
série ouviu que muito antigamente antes mesmo de Cristo os primeiros homens que
começaram a pensar estavam pensando no tempo. Eles estudaram as estrelas e
inventaram a semana e o mês e o ano para ter um meio de medir o tempo. Isso foi muito
inteligente da parte deles porque ele estava mais ou menos com o mesmo dilema e sabia
que o tempo era a coisa mais importante do mundo. Era a única coisa verdadeira. Era tudo.
Mantendo o contato com o tempo você consegue manter o controle sobre si mesmo e
prosseguir no mundo mas se perder esse contato você também estará perdido. A última
coisa que o liga a outras pessoas terá sumido e você estará completamente sozinho.
Lembrou-se de como o conde de Monte Cristo ao ser encerrado em sua masmorra lá no
fundo da escuridão manteve um registro da passagem do tempo. Lembrou-se de como
Robinson Crusoé teve muito cuidado em seguir medindo o tempo mesmo sem ter
compromisso algum. Não importa quão apartado você esteja de outras pessoas se você
tiver uma ideia do tempo você estará no mesmo mundo que elas você será parte delas mas
se você perder contato com o tempo os outros vão se afastar de você e você será deixado
sozinho suspenso no ar perdido para todas as coisas para todo o sempre.
Tudo o que ele sabia era que num dia de setembro de 1918 o tempo parou. Houve um
uivo em algum lugar e ele se enfiou num abrigo e tudo sumiu num apagão e ele se perdeu
do tempo. Daquele instante até o presente ele imaginava que tivesse decorrido um naco de
tempo que ele nunca poderia recuperar. Mesmo que ele descobrisse um meio de mensurar
o tempo dali em diante aquele naco que passara estaria perdido para sempre de modo que
ele estaria vivendo sempre atrasado com relação ao resto do mundo. Não conseguia se
lembrar de coisa alguma desde a explosão até o momento em que despertou e descobriu
que estava surdo. Suas lesões eram muito graves e ele talvez tivesse ficado inconsciente
por duas semanas dois meses seis meses antes de acordar quem saberia dizer? E depois
disso os desmaios e os longos períodos em que ele simplesmente flutuou entre o
pensamento e o sonho e a imaginação.
Quando se está completamente inconsciente não existe essa coisa chamada tempo pois
num piscar de olhos você está acordado e num átimo está acordado de novo sem a menor
ideia de quanto tempo passou entre um despertar e outro. Então quando você perde e
recupera seguidamente a consciência o tempo deve parecer mais curto do que para uma
pessoa normal porque você de fato está meio louco meio lúcido e o tempo se condensa em
você. Disseram que sua mãe ficou três dias em trabalho de parto quando ele nasceu e no
entanto quando tudo acabou ela pensou que tivessem transcorrido umas dez horas. Com
dor e tudo o tempo lhe parecera mais curto do que realmente era. Agora se tudo aquilo era
verdade ele provavelmente perdera mais tempo do que suspeitava. Talvez até tivesse
perdido um ano ou dois. A ideia lhe causou uma sensação estranha de formigamento. Era
uma espécie de medo mas diferente de um medo qualquer. Era mais um pânico era o pavor
de se perder até de si mesmo. Isso o deixou meio nauseado.
A ideia toda viera tomando corpo em sua mente por um bom tempo a ideia de aprisionar
o tempo e voltar para dentro do mundo mas ele não tinha sido capaz de concentrar-se nela.
Ou resvalava para os sonhos ou se via de repente pensando em alguma coisa
completamente diferente. Uma vez achou que tinha resolvido o problema graças às visitas
da enfermeira. Não sabia quantas vezes ela vinha ao seu quarto a cada vinte e quatro horas
mas devia haver uma escala. Tudo o que ele precisava fazer era contar os segundos e assim
os minutos e assim as horas entre cada visita que ela fazia até completar vinte e quatro
horas e depois disso ele seria capaz de calcular os dias simplesmente contando as visitas.
Não haveria risco de um lapso porque a vibração dos passos dela sempre o acordava. Então
só por garantia caso o espaçamento entre as visitas dela mudasse em algum momento ele
poderia computar coisas como os movimentos de seu intestino a cada dia e poderia
também computar as outras coisas que aconteciam talvez duas ou três ou quatro vezes por
semana como seus banhos e as trocas de suas roupas de cama e de sua máscara. Então se
alguma dessas coisas mudasse ele poderia cotejá-la com as outras.
Levou um bom tempo para que sua mente se agarrasse à ideia o bastante para conceber
essa fórmula porque ele não estava acostumado a pensar mas no fim ele a repassou inteira
mentalmente e começou a colocá-la em prática. No instante em que a enfermeira se
afastou ele começou a contar. Contou até sessenta o que significava um minuto com o
máximo de aproximação de que ele era capaz. Então num lado da sua mente ele registrou
o minuto que havia contado e começou de novo a contar até sessenta. Na primeira vez que
tentou ele chegou até onze minutos antes que sua mente se distraísse e ele perdesse a
conta. Aconteceu assim. Ele estava contando os segundos quando de repente pensou
talvez você esteja contando rápido demais e então pensou lembre-se de que parece levar
um tempão para um atleta de corrida percorrer cem metros no entanto ele faz isso em
apenas dez segundos. Então ele diminuiu a velocidade da contagem enquanto observava
um velocista correr cem metros e aí ele estava no meio de uma pista de atletismo do
colégio numa disputa entre Shale City e Montrose vendo Ted Smith correr os cem metros
rasos e vencer com sua cabeça bem erguida arremetendo contra a fita de chegada e todos
os rapazes de Shale City gritando a plenos pulmões e aí ele tinha perdido a conta.
Isso significava que ele tinha que esperar de novo pela enfermeira porque ela era seu
ponto de partida. Parecia que tinha havido centenas talvez milhares de tentativas nas quais
ele começara e perdera a conta e tivera que se afundar de novo irritado na escuridão da
sua mente e esperar pela vibração dos pés dela e pela percepção de suas mãos nele de
novo para que pudesse começar a contar mais uma vez. Uma vez ele chegou a cento e
catorze minutos e pensou quanto isso dá em horas e sem querer parou para fazer o cálculo
e descobriu que dava uma hora e cinquenta e quatro minutos e então lhe ocorreu a frase
cinquenta e quatro e quarenta ou guerra e quase ficou louco tentando se lembrar de onde
ela vinha e o que significava.14 Não conseguiu e quando voltou à contagem se deu conta de
que havia perdido uma porção de minutos enquanto pensava e assim embora tivesse
batido um recorde não tinha avançado nem um pouco desde que a ideia aflorara pela
primeira vez na sua mente.
Naquele dia ele percebeu que estava abordando a questão pelo ângulo errado porque
para levar aquele cálculo a cabo teria que ficar acordado por vinte e quatro horas seguidas
contando ritmadamente sem parar e sem cometer nem um erro. Em primeiro lugar era
quase impossível para uma pessoa normal permanecer acordada e contando por tanto
tempo que dirá então um sujeito que para começo de conversa tinha dois terços do corpo
adormecidos. Em segundo lugar ele não podia deixar de cometer erros porque não tinha
como separar em sua mente os números relativos aos segundos e os relativos aos minutos.
Ele ficava contando os segundos até que de repente entrava em pânico pensando quantos
minutos já se passaram mesmo? E mesmo que ele tivesse quase certeza de que eram vinte
e dois minutos ou trinta e sete ou o que fosse a sombra de dúvida que o levara a fazer a
pergunta seguia pairando e então ele tinha certeza de que estava errado e a essa altura
perdia a conta de novo.
Nunca chegou a contar todo o tempo entre uma visita e outra mas começou a perceber
que mesmo que o tivesse feito ele teria que manter três conjuntos de números o dos
segundos o dos minutos e o das visitas da enfermeira até completar as vinte e quatro
horas. Além disso ele teria que parar de vez em quando para converter os minutos em
horas porque quando o número de minutos ficava alto demais ele se atrapalhava e não
lembrava mais nada. Então com as horas ele teria um quarto conjunto de números. Ao
contar apenas os segundos e minutos que era até onde ele tinha conseguido chegar ele
tentava fazer de conta que eram algarismos reais que ele podia ver num quadro negro.
Fazia de conta que estava numa sala com um quadro negro do lado direito e outro do lado
esquerdo. Registrava os minutos no quadro da esquerda de modo que eles estivessem lá
quando ele precisasse adicionar mais um. Mas não funcionava. Ele não era capaz de
lembrar. Cada vez que fracassava ele arfava e sentia o peito sufocar e o estômago se
contrair e sabia que estava chorando.
Decidiu abandonar de vez a contagem e prestar atenção em coisas mais simples. Não
demorou para descobrir que seu intestino funcionava uma vez a cada três visitas às vezes
quatro da enfermeira. Mas isso não queria dizer nada. Lembrou que os médicos
costumavam dizer que duas vezes por dia era saudável mas as pessoas de quem eles
falavam recebiam comida normal e a comiam com a boca e a engoliam com a garganta. A
gororoba com que o alimentavam talvez lhe desse uma média maior do que a das pessoas
normais. Por outro lado ao ficar só ali deitado ano após ano ele talvez não precisasse de
muita comida e nesse caso sua média seria bem menor que a das pessoas normais.
Descobriu também que seu banho e a troca de roupas de cama vinham mais ou menos a
cada doze visitas. Foram treze uma vez e em outra só dez portanto ele não podia contar só
com isso mas pelo menos era um número. Ficou um pouco surpreso ao descobrir que se de
início ele pensou em segundos e minutos agora estava pensando em dias e até mesmo em
séries de dias. Foi assim que ele encontrou o caminho certo.
A ideia lhe ocorreu enquanto estava deitado e sentindo com a pele do pescoço a linha
que as cobertas faziam em sua garganta. Começou a imaginá-las como uma cadeia de
montanhas ajustando-se à sua garganta. Teve um ou dois sonhos de estrangulamento com
elas mas continuou pensando. Começou a pensar que as únicas partes dele que não
estavam cobertas isto é que estavam livres eram justamente a pele do pescoço que ia da
linha das cobertas até seus ouvidos e a metade de sua testa acima da máscara. Essa pele e
seu cabelo. Disse a si mesmo talvez haja uma maneira de usar esses trechos de pele que
estão livres no ar e saudáveis afinal um sujeito com tão poucas partes saudáveis tem que
colocá-las em uso. Começou a pensar no que um homem faz com a pele e concluiu que ela
era usada para sentir. Mas isso não parecia suficiente. Pensou um pouco mais sobre a pele e
então lembrou que a gente também podia transpirar por meio dela e que quando a gente
começava a transpirar era porque estava com calor mas depois que o suor cobria toda a
pele a gente ficava com frio por causa do ar secando a transpiração. Foi assim que ele teve
a ideia de quente e frio e foi assim que ele passou a esperar pelo nascer do sol.
A coisa toda era tão simples que seu estômago ficou tenso de excitação só de pensar a
respeito. Tudo o que ele precisava fazer era sentir com sua pele. Quando a temperatura
mudasse do frio para o calor ele saberia que era o nascer do sol e o início de um novo dia.
Então ele contaria as visitas da enfermeira até o amanhecer seguinte e com isso saberia o
número de suas visitas por dia e dali em diante seria capaz de medir o tempo.
Começou a tentar permanecer acordado até ocorrer a mudança de temperatura mas
meia dúzia de vezes seguidas ele caiu no sono antes da hora. Outras vezes ele ficou
confuso pensando consigo mesmo está quente ou está frio que tipo de mudança estou
esperando talvez eu esteja com febre talvez excitado demais e suando de excitação e isso
estragaria tudo oh por favor deus não me deixe suar não me deixe ter febre deixe-me saber
se estou com calor ou com frio agora. Dê-me alguma ideia de quando o dia está nascendo e
então terei condições de adotá-lo. E então depois de um bom tempo perdido com
tentativas frustradas ele disse a si mesmo trate de pensar seriamente nesse assunto. Neste
exato momento você está em pânico e ansioso demais e fazendo só besteira. Cada vez que
você comete um erro perde mais tempo e isso é uma coisa que não pode se dar ao luxo de
perder. Pense no que geralmente acontece de manhã num hospital e procure imaginar o
que vem a seguir. Isso é fácil ele disse a si mesmo de manhã as enfermeiras tentam
cumprir a parte mais pesada do seu trabalho. Isso significava que lhe davam banho e
trocavam a roupa de cama provavelmente pela manhã. Teria que adotar isso como seu
ponto de partida. Teria que supor algumas coisas e a primeira suposição era de que esse
raciocínio estava certo. Ele já sabia que o banho e a troca de lençóis vinham em média a
cada doze visitas.
Agora ele tinha que começar a fazer suposições de novo. Era de se supor que num
hospital como aquele a roupa de cama era trocada dia sim dia não. Talvez fosse uma vez
por dia mas ele não acreditava nisso porque à média de uma troca a cada doze visitas isso
significaria que a enfermeira o visitava a cada duas horas e havia tão pouco para ela fazer
que ele não via razão para tamanha frequência. Então ele supunha que a cada dois dias ela
lhe dava banho e trocava seus lençóis e que isso acontecia pela manhã. Se isso estava certo
então ela vinha ao seu quarto seis vezes ao longo de um dia e uma noite. O que daria uma
vez a cada quatro horas. A escala mais simples para ela cumprir seria vir às oito às doze às
quatro às oito às doze às quatro e assim por diante. Ela provavelmente trocava os lençóis o
mais cedo possível pela manhã então isso seria às oito horas.
Pois bem ele disse a si mesmo agora o que é que você quer tentar apreender primeiro o
nascer do sol ou o anoitecer? Decidiu que era o amanhecer porque quando o sol se põe o
calor do dia ainda permanece por um tempo e a mudança é tão lenta que aqueles seus dois
trechos de pele talvez não fossem capaz de detectá-la. Mas na madrugada tudo está frio e
quase o primeiro raio de sol já costuma trazer algum tipo de calor. Pelo menos a mudança
seria mais completa pela manhã do que à noite de modo que ele detectaria o nascer do sol.
Teve um minuto de pânico ao pensar e se você estiver no lado oeste do hospital e o sol
poente bater em cheio na sua cama e você se enganar achando que é o amanhecer? E se
você estiver na ala sul ou norte do hospital e jamais receber diretamente a luz do sol?
Talvez fosse mais simples assim. Então se deu conta de que mesmo que estivesse no lado
oeste e recebesse o calor do sol poente ele ainda teria as visitas da enfermeira para cotejar
e saber de que parte do dia se tratava pois agora estava convencido de que ela trocava a
roupa de cama pela manhã.
Ora seu idiota ele disse a si mesmo você está complicando tanto as coisas que nunca vai
se livrar disso se não parar. A primeira coisa a fazer é captar o nascer do sol. Na próxima vez
que a enfermeira vier ao quarto e lhe der banho e trocar a roupa de cama você vai presumir
que são oito horas da manhã. De modo que você pode pensar no que quiser sem se
preocupar ou pode até dormir porque cada vez que ela vem ela o acorda. Você vai esperar e
contar mais cinco visitas e a quinta deverá ser por volta das quatro da madrugada. Quatro
da madrugada é pouco antes do nascer do sol portanto depois da quinta visita da
enfermeira você vai ficar acordado e concentrar toda a sua mente e a sua pele na tarefa de
captar a mudança de temperatura quando ela vier. Talvez funcione e talvez não. Caso
funcione tudo o que você tem a fazer é esperar mais seis visitas e ver se há outro
amanhecer e se houver você terá o número de visitas a cada vinte e quatro horas e isso lhe
dará um meio de estabelecer um calendário em torno das visitas da enfermeira. O
importante é detectar dois amanheceres seguidos pois assim você terá capturado o tempo
para sempre e poderá começar a entrar em sintonia com o mundo.
Foi só oito visitas depois que ele sentiu as mãos da enfermeira tirando seu camisão de
dormir e começando a limpar sua pele com uma esponja embebida em água morna. Seu
coração bateu mais rápido o sangue irrigou sua pele com um ímpeto de empolgação
porque ele sentiu que estava começando de novo a capturar o tempo só que agora fazia
isso de modo mais esperto de modo mais sábio. Sentiu-se rolado de lado e mantido assim
enquanto a cama estremecia sob as mãos diligentes da enfermeira. Então ele foi rolado de
volta entre lençóis limpos e frescos. A enfermeira se movimentou perto do pé da cama por
um minuto. Ele sentia a vibração dos passos dela pelo quarto. Então as vibrações sumiram
e houve um breve e agudo tremor da porta se fechando e ele soube que estava sozinho de
novo.
Calma disse ele a si mesmo calma que você ainda não provou coisa nenhuma. Você pode
ter bolado tudo errado. Talvez suas suposições estejam erradas. Se estiverem você vai ter
que fazer toda uma nova série de suposições portanto não fique tão animadinho. Sossegue
o facho e conte mais cinco visitas. Ele cochilou um pouco e pensou numa porção de coisas
mas o tempo todo no quadro negro da sua mente ele manteve o número dois ou três ou o
que fosse até que finalmente veio a quinta visita com os pés da enfermeira vibrando contra
o chão e suas mãos nele e na cama. De acordo com suas suposições agora deviam ser
quatro da madrugada e em pouco tempo dependendo de estarem no inverno ou no verão
ou no outono ou na primavera o sol nasceria.
Quando ela saiu ele começou a se concentrar. Não se permitiria cair no sono. Não
permitiria que sua mente divagasse nem por um minuto. Não permitiria que a sufocante
excitação que o dominava por dentro e por fora interferisse no seu raciocínio e na sua
percepção enquanto esperava pelo nascer do sol. Estava no encalço de algo tão precioso e
empolgante que era quase como nascer de novo por completo para o mundo. Ficou lá
deitado pensando dentro de uma hora ou três horas ou com certeza dez horas eu sentirei
uma mudança em minha pele e então saberei se é dia ou noite.
Parecia que o tempo permanecia perfeitamente imóvel só para espicaçá-lo. Ele teve
pequenos espasmos de pânico quando se convenceu de que a mudança tinha ocorrido sem
que ele percebesse e com cada pequeno espasmo ele sentia aumentar o enjoo no
estômago. Depois veio um período de clareza durante o qual ele apurou com calma a
sensibilidade da pele e convenceu-se de que estava lúcido de que não adormecera de que
não perdera nada de que sua mente não divagara de que a mudança ainda estava por vir.
E então de repente ele se deu conta de que ela estava vindo. Os músculos de suas costas
e coxas e barriga se retesaram porque ele sabia que ela estava vindo. Podia quase sentir o
suor brotando do corpo enquanto prendia a respiração para não correr o risco de deixar
passar o evento. Os trechos de pele no pescoço e na testa pareciam formigar como se
tivessem estado paralisados e agora recebessem um suprimento extra de sangue. Era como
se os poros do seu pescoço estivessem de fato se alargando para captar e absorver a
mudança.
A coisa toda era tão lenta tão gradual que parecia impossível que estivesse de fato
acontecendo. Agora não havia perigo de sua mente divagar ou de cair no sono. Seria tão
absurdo como adormecer no meio do primeiro beijo. Seria como adormecer no meio de
uma corrida de cem metros rasos que se está vencendo. A única coisa que ele podia fazer
era esperar e apurar a sensibilidade da pele e captar cada segundo da mudança cada
movimento lento do tempo e da temperatura enquanto eles lhe propiciavam um retorno à
vida.
Teve a impressão de ter ficado ali deitado rígido e expectante e ansioso durante horas.
Houve momentos em que ele teve certeza de que os nervos de seu pescoço não tinham
sensibilidade momentos em que eles pareciam ter ficado repentinamente dormentes
momentos em que a mudança poderia ter-lhe escapado. E houve outros momentos em que
parecia que seus nervos tinham despontado tão perto da superfície que ele chegou a sentir
uma dor aguda e sutil e penetrante enquanto eles tateavam e registravam a mudança.
Então a coisa começou a acontecer rápido cada vez mais rápido e embora ele soubesse
que estava num quarto protegido de hospital tão afastado quanto possível das mudanças
de temperatura pareceu-lhe que a coisa veio numa labareda de calor. Parecia que seu
pescoço estava ardendo queimando fritando sob o calor do sol nascente. Este invadia o
quarto. Ele reconquistara o tempo – vencera sua luta. Os músculos de seu corpo relaxaram.
Em sua mente em seu coração em todas as partes que lhe restavam ele estava cantando
cantando cantando.
Era o amanhecer.
Por todo o mundo ou pelo menos por todo o país para o qual ele tinha sido trazido o sol
estava se erguendo no leste e as pessoas saíam da cama e as montanhas ficavam róseas e
os pássaros cantavam. Por toda a Europa ou por toda a América o sol se erguia. Que raio de
diferença fazia o fato de não ter nariz desde que pudesse sentir o cheiro do amanhecer?
Deitado ali sem narinas ele ainda assim aspirava. Captou o cheiro do orvalho na relva e
estremeceu porque era delicioso demais. Protegeu os olhos contra os primeiros raios do sol
matinal e mirou ao longe e viu as altas montanhas do Colorado a leste e viu o sol se
erguendo sobre elas e viu cores deslizando por suas encostas e viu mais perto colinas
ondulantes que se tornavam rosadas e cor de lavanda como o interior de uma concha. E
mais perto ainda no campo onde ele estava viu a relva verde que cintilava e chegava até
seus tornozelos e então ele caiu no choro. Agradeceu a deus por conseguir ver a aurora.
Virou as costas para o sol e olhou em direção à cidadezinha onde morava em direção à
cidadezinha onde nascera. Todos os telhados estavam rosados ao amanhecer. Mesmo as
casas desbotadas e quadradas e atarracadas e feias estavam lindas. Ele ouviu os mugidos
das vacas esperando para ser ordenhadas nos quintais pois a cidade onde ele nascera era
uma cidade muito conscienciosa e cada homem tinha sua vaca. Ouviu as portas de tela dos
fundos das casas ser batidas por moradores sonolentos que saíam para o galinheiro ou o
estábulo para cuidar de seus animais. E pôde ver o interior das casas onde homens saíam
da cama e bocejavam e espreguiçavam e coçavam vigorosamente o peito e tateavam com
os pés em busca dos chinelos e finalmente levantavam e iam até a cozinha onde suas
esposas serviam linguiça e bolinhos e café para eles.
Viu bebês se revirando em seus berços e esfregando os olhos com suas mãozinhas e
talvez sorrindo talvez chorando e talvez cheirando um pouco mal mas com uma aparência
tremendamente saudável quando saudavam o sol e saudavam a manhã e saudavam o
alvorecer. Viu todas essas coisas todas essas maravilhosas cenas domésticas ao olhar para a
cidade e tinha apenas que girar o corpo se quisesse voltar a contemplar o sol e as
montanhas.
Oh deus deus obrigado deus ele pensou agora eu tenho isso e ninguém pode tirar de
mim. Pensou vi de novo a aurora e a verei a cada manhã daqui para a frente. Pensou
obrigado deus obrigado obrigado. Pensou mesmo que eu jamais venha a ter qualquer outra
coisa eu sempre terei o nascer do sol e a luz da manhã.
XII

NOITE DE ANO-NOVO. Neve flutuando pelo ar nuvens de neve úmida baixando sobre Shale City. Tudo
quieto com luzes brilhando dentro de casas quentinhas. Nada de confete nada de garrafas
de champanhe nada de gritos nenhum barulho. A quietude do Ano-Novo para as pessoas
comuns que trabalhavam e eram boas e só queriam paz. Feliz Ano-Novo. Seu pai beijando
sua mãe e dizendo feliz Ano-Novo minha querida somos afortunados as crianças estão bem
de saúde eu te amo feliz Ano-Novo espero que o novo seja tão bom quanto o velho.
A noite de Ano-Novo na panificadora com os rapazes dizendo que diabo estou contente
que tenha acabado pois o próximo não pode ser tão ruim feliz Ano-Novo vamos sair para o
nevoeiro e encher a cara. Saindo da panificadora na noite de Ano-Novo entre os carrinhos
de mão esparramados sem ordem e os fornos vazios e as esteiras imóveis e as máquinas de
embalar paralisadas e as cortadoras desligadas e ninguém exceto a equipe saindo de um
lugar estranhamente silencioso com suas vozes ecoando surdamente no maquinário morto.
Os rapazes da padaria saindo para celebrar o Ano-Novo.
Os sujeitos dos bares empurrando bebida grátis por cima do balcão e dizendo feliz Ano-
Novo e que venham muitos outros garoto você tem sido um bom freguês beba uma por
conta da casa feliz Ano-Novo e que se dane a lei seca esses filhos da mãe ainda vão nos dar
trabalho um dia. As garotas dos restaurantes populares e as garotas dos hotéis e os rapazes
que saíam aos montes dos apartamentinhos imundos e música e dança e fumaça de
cigarro e o sentimento de solidão que cada um traz dentro de si e gente esbarrando em
você e tome mais uma e uma garota desmaiando no balcão e uma briga feia e feliz Ano-
Novo.
Oh deus o feliz feliz Ano-Novo ele contara trezentos e sessenta e cinco dias e agora era a
noite de Ano-Novo.
Não parecia um ano. Parecia uma vida inteira quando a gente olhava para trás e pensava
numa época tão distante que não dava para lembrar com clareza o que tinha acontecido e
no entanto uma época que passara tão rápido que parecia ter começado um minuto antes.
Seis visitas da enfermeira por dia – trinta dias no mês – e agora trezentos e sessenta e cinco
dias. Tinha passado depressa porque ele estava fazendo alguma coisa ele estava medindo o
tempo como as outras pessoas ele dispunha de séries de números para lembrar ele
controlava um pequeno mundo só seu um mundo atrasado em relação ao que havia lá fora
mas ainda assim mais próximo dele do que antes. Tinha um calendário no qual o sol e a lua
e as estações não tinham lugar um calendário com trinta dias a cada mês e doze meses no
ano e agora cinco dias extras para compensar a diferença com a próxima visita da
enfermeira que marcaria a manhã do novo ano.
Tinha sido um sujeito muito aplicado e aprendera um bocado. Aprendera a verificar cada
coisa cotejando-a com outra de modo a não perder de jeito nenhum o controle que
adquirira sobre o tempo. Podia saber se era dia ou noite sem depender da percepção do
nascer do sol. Sabia exatamente em qual visita da enfermeira haveria banho e troca de
lençóis. Quando o cronograma era interrompido e a enfermeira atrasava uma visita ele
ficava desapontado e taciturno e tentava imaginar o que ela estaria fazendo mas quando
finalmente ela vinha ele sempre se animava.
Era capaz até de distinguir uma enfermeira da outra. A enfermeira do dia era fixa mas as
enfermeiras noturnas aparentemente variavam. A enfermeira do dia tinha mãos macias e
lisas e um pouco duras como as mãos de uma mulher que trabalhou por um bom tempo
então ele supunha que ela fosse de meia-idade e tivesse cabelo grisalho. Ela sempre vinha
direto da porta para a cama em passos firmes e disso ele concluiu que sua cama ficava a
uns três metros da porta. Seus passos eram mais pesados que os das enfermeiras noturnas
de modo que ele a tomava por uma mulher grandalhona. Seus passos eram quase tão
pesados quanto os do médico que vinha de quando em muito e zanzava pelo quarto por
um momento e ia embora. A enfermeira diurna tinha um jeito enérgico de fazer as coisas –
zup e ele estava virado de lado zap e o lençol deslizava para fora da cama zum e estava de
novo de costas zás e estava sendo banhado. Sabia muito bem o seu ofício aquela velha
enfermeira do dia e ele gostava dela. Muito de vez em quando ela vinha à noite no lugar da
enfermeira noturna. Ele sempre se contorcia para mostrar a ela que estava contente em vê-
la e ela lhe dava tapinhas na barriga e passava os dedos pelos ralos cabelos do seu crânio
para dizer-lhe obrigada e você como está?
As enfermeiras noturnas eram irregulares. Às vezes ele tinha duas ou três delas na
mesma semana. A maioria dava mais passos entre a porta e a cama do que a enfermeira do
dia e seu andar era mais leve. Elas fechavam a porta com mais delicadeza ou mais força e
vagavam mais pelo quarto. Em geral suas mãos eram muito macias e umedecidas apenas o
bastante para esfregar seu corpo de modo meio brusco mas não para deslizar suavemente
sobre ele. Sabia que elas eram jovens. Quando vinha uma nova enfermeira ele sempre
sabia o que ela faria primeiro. Ela puxava as cobertas de cima dele e ficava um ou dois
minutos sem fazer nenhum movimento e ele sabia então que ela o estava observando e
provavelmente sentindo um pouco de náusea. Uma delas deu meia-volta e saiu correndo
do quarto e não voltou mais. Com isso ele ficou sem seu urinol e molhou a cama mas
perdoou a moça. Outra chorou. Ele sentiu as lágrimas dela no peito de sua camisa de
pijama. Ficou um pouco alvoroçado porque a sentiu de repente muito perto dele e ficou
sofrendo durante horas depois que ela foi embora. Imaginou-a jovem e linda.
Todas essas coisas eram interessantes eram importantes mantinham-no muito ocupado.
Criara um novo universo organizara-o a seu gosto e agora vivia nele. E agora era a noite de
Ano-Novo embora lá fora talvez fosse o Quatro de Julho que importância fazia? Nomeou os
dias da semana de segunda a domingo e nomeou os meses de modo a poder comemorar os
feriados. Todo domingo à tarde ele saía para caminhar por algum bosque nas cercanias de
Paris. Uma vez na primavera quando estava de licença ele tinha passeado por lá então
agora era primavera toda tarde de domingo e ele caminhava de uniforme pelos bosques
com o peito estufado e as pernas firmes e os braços balançando em liberdade. Quando
chegava julho era época das trutas e ele ia com o pai a Grand Mesa e os dois jogavam
conversa fora. Tinham um montão de coisas para conversar tinham aprendido muito desde
a última vez que se viram. É bem melhor do que se preocupar dizia seu pai a gente se
preocupa demais e não aproveita a vida a morte é melhor só que eu queria saber como está
sua mãe.
A cada noite de verão ou de inverno semana sim outra também ele ia dormir com Kareen
sussurrando em seu ouvido deus te abençoe Kareen querida deus te abençoe. Não sei o que
faria sem você a meu lado todas as noites os outros foram todos embora e estou sozinho
exceto por você Kareen. Dormiam com o braço dele em volta dela ou o dela em volta dele e
sempre se viravam juntos na cama. Aconchegavam-se um ao outro e ele a beijava em seus
sonhos a noite toda.
Um ano – que baita tempo era um ano. Kareen tinha dezenove anos naquele dia um
minuto atrás quando ele se despediu dela na estação de trem. Ele passou quatro meses no
campo de treinamento e onze meses na França portanto ela estaria com mais de vinte. E o
tempo que ele tinha perdido por completo provavelmente acrescentaria mais um ano. E
agora outro. E outros viriam e outros e outros. Kareen devia estar com vinte e dois agora.
Tinha vinte e dois no mínimo. Três anos. E prosseguiria assim enquanto ele vivesse. Mais
dez anos e Kareen teria rugas. Um pouco mais adiante seu cabelo ficaria grisalho e então
ela seria uma velha uma velha bem velha e a garota na estação jamais teria existido.
Ele sabia que não era verdade. Kareen nunca ficaria velha. Ainda tinha dezenove anos.
Teria dezenove para sempre. Seu cabelo permaneceria castanho e seus olhos claros e sua
pele fresca como a chuva. Ele jamais deixaria uma ruga marcar o rosto dela. Isso era algo
que só ele e nenhum outro homem na terra podia fazer por ela. Ele a manteria a salvo a seu
lado jovem e linda para sempre imune ao tempo no mundo que ele construíra onde o
tempo se movia de acordo com as ordens e todo domingo era primavera. Mas onde ela
estaria – a Kareen real – a Kareen submetida ao tempo do mundo lá fora? Enquanto ele
dormia a cada noite com a Kareen de dezenove anos estaria a Kareen real com outro? Seria
acaso agora uma mulher com um filhinho? Kareen adulta e distante esquecida dele…
Quem dera estar perto dela. Não que ele pudesse chegar a vê-la nem que desejasse que
ela o visse. Mas iria gostar de sentir que estava respirando o mesmo ar que ela respirava
que estava no mesmo país. Lembrou-se da empolgação esquisita que sentia dentro de si
quando saía para ir à casa do velho Mike à casa de Kareen. Quanto mais perto chegava
mais doce parecia o ar. Costumava dizer a si mesmo embora soubesse que não era verdade
que o ar em torno da casa era diferente porque estava perto dela.
Nunca se importara muito com o lugar onde estava o lugar para onde o haviam levado –
mas agora pensando em Kareen sentiu saudades de casa. Sua mente lamuriava oh deus eu
queria estar na América eu queria estar em casa. Parecia que um americano qualquer
americano era um amigo comparado a qualquer inglês ou francês. Isso porque ele próprio
era americano a América era sua terra tinha nascido lá e qualquer pessoa de fora era um
estranho. Então ele dizia a si mesmo que importância tem isso já que você nunca mais será
capaz de ver ou falar ou caminhar você nunca vai saber a diferença dá na mesma estar na
Turquia ou na América. Mas não era verdade. Um sujeito gostava de pensar que estava em
casa. Mesmo sem poder fazer mais do que ficar deitado na escuridão seria melhor se a
escuridão fosse a escuridão de casa e se as pessoas que se moviam na escuridão fossem
sua própria gente sua própria gente americana.
Mas isso era querer demais. Em primeiro lugar uma explosão forte o bastante para
arrancar seus braços e pernas devia ter mandado para o inferno qualquer possibilidade de
identificação. Quando você só tem as costas e uma barriga e metade de uma cabeça você
provavelmente parece tão francês quanto alemão ou inglês ou americano. O único meio de
saber qual o país do sujeito era pelo lugar onde foi encontrado. E ele estava bem seguro de
ter sido encontrado entre ingleses. O regimento estava entrincheirado junto a um
regimento limey15 e quando chegou a hora de partir para a ação os americanos e os limeys
foram lado a lado. Ele lembrava claramente que os americanos desviaram para a esquerda
e se misturaram com os limeys porque havia um pequeno morro bem em frente à posição
americana. Os alemães no morro tinham sido liquidados dois dias antes portanto não havia
motivo para os americanos se esbaforirem morro acima. Foram para a esquerda à medida
que avançavam e acabaram se misturando totalmente com os limeys. Lembrava-se de ter
olhado em volta quando mergulhou naquele abrigo e visto apenas dois americanos e os
outros todos limeys. Só um flash deles só um vislumbre e em seguida a escuridão.
Então ele provavelmente estava num hospital fajuto inglês com as pessoas tomando-o
por um limey e nas notícias a seu respeito enviadas para casa não havia nada exceto
desaparecido em combate. Talvez até fosse bom que ao ser alimentado por aquele tubo ele
estivesse livre do café inglês que era tão asqueroso. Rosbife e pudim e tortas ensopadas de
óleo e café ruim. Melhor assim. Só que ele não era mais um americano era agora um inglês.
Era um limey e provavelmente um cidadão britânico. Só de pensar nisso vinha-lhe um
sentimento de solidão. Ele nunca tivera qualquer ideia definida sobre a América. Nunca
fora muito patriota. Era algo que a gente assumia sem pensar. Mas agora lhe parecia que se
estava mesmo deitado num hospital inglês ele havia perdido alguma coisa que jamais
poderia obter de volta. Pela primeira vez em toda a vida sentiu que seria um pouco
agradável um pouco confortante estar nas mãos de sua própria gente.
Aqueles limeys eram uma turma divertida. Pareciam mais estrangeiros que os franceses.
Um francês a gente podia entender mas um limey estava sempre torcendo o nariz e não
dava para entendê-lo de jeito nenhum. Depois de dois meses na trincheira perto deles a
gente começava a compreender o quanto eles eram estrangeiros. Faziam coisas
engraçadas. Havia um escocesinho no regimento limey que jogou de lado seu fuzil e
abandonou a guerra quando soube que os hunos do outro lado da terra de ninguém eram
bávaros. O escocesinho disse que os bávaros eram comandados pelo príncipe herdeiro
Rupert e que o príncipe herdeiro era o último herdeiro Stuart ao trono da Inglaterra e o rei
por direito e que nem morto ele combateria seu rei só porque algum pretendente
hanoveriano16 tinha mandado.
Ora em qualquer exército normal eles pegariam o sujeito e o fuzilariam por uma coisa
dessas. Mas é nisso que os limeys são engraçados. O sujeitinho causou uma tremenda
confusão. Dois ou três de seus oficiais tentaram convencê-lo muito educadamente em vez
de fuzilá-lo e ao ver que não conseguiam fazê-lo ver as coisas como queriam chamaram o
coronel. Então o coronel veio e teve uma longa conversa com o escocês e todo mundo se
mostrou perplexo e o escocês foi ficando cada vez mais cabeça-dura e desafiou-os a
fuzilarem-no porque segundo ele sua corte marcial traria à tona a verdade de que era tudo
uma fraude e o rei George teria que renunciar e o que Lloyd George iria achar disso? O
coronel foi embora e o escocês ficou sentado no fundo da trincheira e pouco tempo depois
chegou uma ordem do quartel-general transferindo-o para a retaguarda por seis semanas
até que os bávaros fossem embora de tal maneira que ele não precisasse atirar na direção
de tropas comandadas por seu rei. Isso para mostrar como os limeys são engraçados e
como tanto os americanos como os limeys ficaram sabendo que havia bávaros diante deles.
E teve também o Lázaro. Ele apareceu numa manhã cinzenta quando nada estava
acontecendo. De repente do meio do nevoeiro assomou aquele huno grande e gordo vindo
em direção às linhas britânicas. Mais tarde houve muita conversa a respeito do que ele
estaria fazendo ali sozinho para começar. Provavelmente estava em patrulha e se perdeu
no caminho ou então estava tentando desertar ou quem sabe tinha ficado meio louco e
estava só perambulando a esmo ali entre o arame farpado e os buracos de bombas por
mera diversão. Tinha um jeito incerto de andar meio de lado. Bateu no arame farpado e
tropeçou e tentou achar o caminho ao longo dele por um minuto. Por fim saltou a cerca
desajeitadamente como um bêbado e veio cambaleando em direção aos limeys.
Era uma manhã tediosa e os limeys estavam com frio e desconfortáveis e irritados com a
guerra então alguém deu um tiro no huno. O coitado ficou imóvel como uma estátua
espiando através do nevoeiro como se estivesse espantado com o fato de alguém querer
atirar nele. Então o regimento inteiro dos limeys desatou a mandar bala contra ele. Mesmo
enquanto seu corpo desmoronava ele manteve uma expressão de dor e surpresa. Deixaram-
no lá com um braço apoiado no arame farpado como um sentinela que estivesse apontando
o caminho para outra pessoa.
Ninguém deu muita atenção a ele por vários dias e então os americanos e os limeys
começaram a notar que dependendo do vento aquele huno mandava para eles um
tremendo fedor. Mas era só quando o vento vinha daquele lado e por isso ninguém deu
muita importância até o dia em que o coronel que mandara aquele escocesinho para a
retaguarda chegou para uma inspeção. O coronel era muito bom em manter a tropa em
forma. O cabo Timlon que vinha de Manchester sempre jurou que numa situação crítica o
coronel seria capaz de executar nove homens para manter elevado o moral do décimo.
Fosse como fosse o coronel estava passando a tropa em revista com seu bigode encerado e
seu velho nariz ossudo erguido ao vento quando de repente sentiu o cheiro do huno.
Que cheiro forte é esse perguntou ele ao cabo Timlon. É um bávaro senhor disse o cabo
Timlon são sempre eles os que cheiram pior. O coronel tossiu e assoou o nariz e disse isso é
muito ruim para o moral dos homens leve uma equipe lá esta noite para enterrá-lo. O cabo
Timlon começou a explicar que as coisas estavam bem conturbadas lá fora mesmo de noite
mas o coronel o interrompeu. E cabo ele disse enfiando o lenço de volta no bolso não se
esqueça – umas palavras de oração. O cabo Timlon disse sim senhor e então olhou feio para
os seus homens para ver quem estava rindo de modo a saber quem escolher para levar na
equipe de sepultamento.
De modo que naquela noite o cabo Timlon formou um destacamento de oito homens.
Cavaram uma cova e empurraram aquele bávaro para dentro dela e o cabo disse umas
palavras fazendo as vezes de oração como o coronel mandara e cobriram a cova e voltaram
para a trincheira. O ar ficou bem mais limpo no dia seguinte mas um dia depois os
chucrutes ficaram meio nervosos e começaram a jogar bombas nas proximidades do
regimento limey. Nenhum limey ficou ferido mas uma das bombas maiores caiu justo onde
estava o bávaro. Ele saltou no ar como num filme em câmera lenta e aterrissou de novo em
cima do arame farpado com o dedo apontado para o regimento limey exatamente como
um alcaguete. Foi então que o cabo Timlon começou a chamá-lo de Lázaro.
As coisas ficaram bem agitadas naquele dia e ao longo de toda a noite. Cada vez que os
limeys dispunham de meia hora de tempo livre eles disparavam contra Lázaro meio ao
acaso na esperança de desprendê-lo do arame farpado porque sabiam que quanto mais
próximo ele estivesse do chão seu cheiro seria menos forte e o fato é que aquele bávaro
estava ficando terrivelmente fedido. Mas ele conseguiu ficar pendurado no arame e na
manhã seguinte o coronel apareceu de novo. A primeira coisa que ele fez foi respirar fundo
e ser atingido pelo cheiro forte de Lázaro. Virou-se para o cabo Timlon e disse cabo Timlon
quando eu era um subalterno uma ordem era uma ordem e não apenas uma sugestão
interessante. Sim senhor disse o cabo Timlon. Você vai formar uma equipe de sepultamento
esta noite disse o coronel e vocês vão enterrar o cadáver a dois metros de profundidade. E
para nunca mais se meter a encarar com leviandade uma ordem superior você vai ler a
missa fúnebre completa da Igreja Anglicana sobre o corpo de nosso inimigo tombado. Mas
senhor disse o cabo Timlon as coisas andam bem feias por aqui e…
Naquela noite o cabo Timlon saiu com uma equipe completa de sepultamento. Levaram
até um lençol para envolver Lázaro. Não foi um trabalho muito agradável porque Lázaro
tinha chegado ao estágio da decomposição e do vazamento de fluidos mas o embrulharam
no lençol e o enterraram a dois metros de profundidade e ficaram todos em volta da cova
enquanto o cabo Timlon lia o texto completo da missa fúnebre talvez pulando uma ou outra
passagem mas passando bastante bem a ideia geral.
Mais ou menos no meio da missa ergueu-se um par de clarões do outro lado e bem na
hora que o cabo estava lançando o terceiro punhado de terra no rosto de Lázaro alguém fez
pontaria nele e deu-lhe um tiro bem no traseiro. O cabo Timlon bradou que deus se apiede
da sua alma amém aqueles malditos filhos da mãe me acertaram na bunda foi isso o que
eles fizeram corram para o abrigo homens. E todos saíram em disparada de volta à
trincheira.
O cabo Timlon ganhou oito semanas de licença hospitalar o que foi bom para ele porque
o regimento limey foi quase todo aniquilado três semanas depois. Uns dois dias depois que
o cabo Timlon levou seu tiro Lázaro foi atingido por outra explosão e de novo foi parar na
cerca de arame farpado com seus trapos de lençol drapejando ao vento e pedaços de seu
corpo gotejando no chão. Um dos limeys disse que aquilo era esperado porque os bávaros
nunca se conservavam muito bem depois da primeira semana. O regimento inteiro abriu
fogo contra o pobre Lázaro e conseguiu despregá-lo do arame farpado. Ainda dava para
sentir seu cheiro mas não era mais possível vê-lo e então todos tentaram tirá-lo da cabeça.
Teriam conseguido se não fosse pelo novo suboficial.
Era apenas um garoto tinha só dezoito anos cabelo louro ondulado e olhos azuis parecia
um bebê de um metro e oitenta ansioso como o diabo para ganhar a guerra sozinho. Era
primo de um capitão ou coisa que o valha e os oficiais o tomaram como uma espécie de
mascote. Ele chegou ao front dois dias depois que Lázaro foi desgrudado da cerca a tiros.
Os limeys gostavam tanto dele que o mantinham bem protegido e o garoto acabou
achando que estavam zombando dele e que os homens o julgavam um covarde. Pedia o
tempo todo para ser designado para a patrulha noturna e quando viu que não havia meio
saiu escondido por conta própria. Deram por sua falta por volta das três da madrugada e já
estava quase amanhecendo quando o encontraram. De algum modo ele tinha incursionado
além da primeira linha de arame farpado. Quando toparam com ele estava deitado de
bruços numa poça de vômito. Ao tropeçar quando tentava atravessar a cerca de arame
farpado ele tinha caído e seu braço direito afundara no ombro putrefato de Lázaro.
O destacamento que o encontrou levou-o ao abrigo dos oficiais. Ele estava balbuciando e
chorando e fedendo medonhamente. O capitão despachou-o de volta na mesma noite.
Disse que era uma punição por poluir o abrigo dos oficiais e ficava muito irritado quando
alguém indagava o que tinha acontecido com o garoto. Quando o cabo Timlon voltou com o
traseiro consertado e alguém lhe contou a história ele perguntou e como está indo o
garoto? Um sujeitinho chamado Johnston que mantinha todo mundo informado sobre esse
tipo de assunto disse ah bom ele está louco de pedra tanto que ainda não o deixam sair da
camisa de força. Bem disse o cabo Timlon quando é que ele vai ficar bom? Os médicos
dizem que ele nunca vai ficar bom disse Johnston aquele ali está na pior coitado.
Pobre inglesinho louro querendo tanto ganhar a guerra sozinho e enlouquecendo antes
mesmo de entrar em ação. Pobre garoto limey em algum hospital atrás de janelas
gradeadas berrando e chorando e matutando para sempre. Essa era uma coisa engraçada.
O jovem limey tinha pernas e braços e podia falar e ver e ouvir. Só que não sabia o que
fazer com aquilo não via graça naquilo não via sentido naquilo. E deitado em outro hospital
inglês havia um sujeito que não estava nem um pouco louco mas que preferia estar. Ele e o
jovem limey deveriam fazer uma troca de mentes. Ambos ficariam felizes.
Em algum lugar chorando e soluçando no escuro – era noite agora quase na virada do
ano – estava o jovem limey. E ali estava ele no escuro soluçando e chorando também. Na
véspera de Ano-Novo. Pobre jovem limey não chore é Ano-Novo pense só é todo um ano
novinho em folha estendido diante de nós dois. Onde quer que esteja limey – e quem sabe
está aqui mesmo neste hospital – onde quer que esteja temos um bocado de coisas em
comum somos irmãos jovem limey feliz Ano-Novo pra você. Um felicíssimo Ano-Novo…
XIII

DURANTE O SEGUNDO ANO DESSE TEMPO dele num novo mundo nada aconteceu exceto que uma vez uma
enfermeira noturna tropeçou e caiu no chão produzindo uma sutil vibração do estrado de
sua cama. Durante o terceiro ano ele foi transferido para um novo quarto. O calor do sol no
novo quarto chegava primeiro ao pé da cama e tendo como referência a hora do banho ele
concluiu que sua cabeça ficava no lado leste e o restante do corpo apontava para o oeste.
Sua nova cama tinha um colchão mais macio e suas molas eram mais firmes. Prolongavam
por mais tempo as vibrações e isso o ajudava um bocado. Levou meses para localizar a
porta e a cômoda mas foram meses ocupados com cálculos e excitação e por fim com um
sentimento de triunfo. Foram os meses mais curtos de que era capaz de se lembrar em
toda a sua vida. Tudo isso fez com que o terceiro ano passasse rápido como um sonho.
O quarto ano começou muito devagar. Ele passava um tempão tentando lembrar os livros
da Bíblia na sua sequência mas os únicos de que conseguia ter certeza eram Mateus
Marcos Lucas e João e Primeiro e Segundo Samuel e Primeiro e Segundo Livro dos Reis.
Tentou pôr em palavras a história de Davi e Golias e a de Nabucodonosor e Sadraque
Mesaque e Abedenego. Lembrou-se de como o pai costumava bocejar ruidosamente por
volta das dez horas da noite e esticar os braços se espreguiçando e levantar da cadeira e
dizer Sadraque Mesaque e pra cama vamos nós.17 Mas não conseguia recordar com clareza
as histórias que acompanhavam os personagens e assim eles não serviam muito para
preencher o tempo. Isso era ruim porque quando não conseguia preencher o tempo ele
começava a cismar. Desandava a pensar será que eu não cometi algum erro ao calcular os
dias as semanas os meses? Começou a pensar que não seria impossível deixar escapar um
ano inteiro caso se descuidasse. Então ficava exaltado e frenético. Repassava os dados
desde o começo para se certificar de que não tinha se equivocado mas voltava tanto para
trás que acabava ficando mais confuso do que antes. Antes de cair no sono ele sempre
tentava ter os números do dia e do mês e do ano plantados com firmeza na mente para que
não os esquecesse durantes os sonhos e toda vez que acordava era assaltado pelo
pensamento apavorado da terrível possibilidade de que talvez não tivesse lembrado
corretamente os números que tinha na mente ao adormecer.
E então uma coisa espantosa aconteceu. Um dia por volta do meio do ano a enfermeira
proporcionou-lhe uma troca completa de roupa de cama sendo que uma troca semelhante
já tinha sido feita no dia anterior. Isso nunca acontecera antes. A troca era feita a cada três
dias nem um dia a mais ou a menos. No entanto agora tudo virava de pernas para o ar e
por dois dias seguidos ele recebia a mudança. Sentiu um tremendo alvoroço. Teve vontade
de sair de quarto em quarto tagarelando sobre o quanto estava ocupado e sobre as coisas
grandiosas que estavam para ocorrer. Sentiu-se resplandecer de expectativa e empolgação.
Estava curioso para saber se dali em diante teria uma troca de lençóis todo dia ou se
voltariam à velha rotina. Isso para ele era tão importante quanto seria para um homem
comum com pernas e braços ser subitamente confrontado com a possibilidade de morar
numa casa nova a cada dia. Seria algo a esperar com antecipação todos os dias por anos a
fio. Seria algo que fracionaria o tempo de maneira a transformá-lo numa coisa com que um
sujeito era capaz de lidar sem precisar ficar ruminando sobre Mateus Marcos Lucas e João.
Então ele notou mais uma coisa. Além de lhe dar um banho inesperado a enfermeira
estava borrifando alguma coisa nele. Sentia o frescor da nuvem de gotículas contra sua
pele. Então ela vestiu nele um camisão de pijama e dobrou as cobertas junto à sua
garganta. Isso também era diferente. Sentiu através do lençol a mão dela passando sobre a
dobra e alisando alisando alisando. Recebeu uma máscara limpa que a enfermeira arranjou
meticulosamente de maneira a chegar até sua garganta e ali ser cuidadosamente enfiada
por baixo da dobra dos lençóis. Depois disso ela penteou cuidadosamente os cabelos dele e
saiu. Ele sentiu a vibração dos passos dela se afastando e em seguida o pequeno clique da
porta se fechando atrás dela. Então ficou sozinho.
Ficou perfeitamente imóvel porque era um sentimento voluptuoso estar refeito de modo
tão completo. Seu corpo resplandecia e seus lençóis estavam limpos e frescos e até seu
escalpo sentia-se bem. Evitava se mexer por receio de estragar uma sensação tão boa. Foi
apenas um momento pois em seguida ele sentiu as vibrações de quatro talvez cinco
pessoas entrando no seu quarto. Ficou tenso tentando captar as vibrações e se
perguntando por que aquelas pessoas estavam ali. As vibrações ficaram mais fortes e então
cessaram e ele concluiu que aquela gente estava reunida ao redor de sua cama e era mais
gente do que nunca até então em seu quarto ao mesmo tempo. Era como a primeira vez
que foi à escola e sentiu-se encabulado e aturdido com tanta gente em volta. Pequenos
tremores de expectativa percorreram seu estômago. Ficou rígido de excitação. Tinha visitas.
A primeira ideia que lhe passou pela cabeça foi que talvez fossem sua mãe e suas irmãs e
Kareen. Havia ao menos uma chance de que Kareen para sempre jovem e adorável
estivesse junto a ele olhando para ele e até naquele mesmo minuto estendendo a mão sua
mão macia e miúda sua linda linda mão para tocar a testa dele.
E então justo quando estava quase sentindo o toque da mão dela seu deleite virou
subitamente vergonha. Desejou mais que tudo no mundo que não fossem sua mãe suas
irmãs e Kareen que estivessem ali para visitá-lo. Não queria que elas o vissem. Não queria
ser visto por ninguém que o conhecesse. Percebia agora como tinha sido tolo ao ansiar por
elas como tantas vezes ansiara em sua solidão. Tudo bem pensar em tê-las por perto era
reconfortante era terno era prazeroso. Mas a ideia de que elas pudessem estar junto à sua
cama agora mesmo era terrível demais para enfrentar. Agitou convulsivamente a cabeça
em rejeição a seus visitantes. Sabia que com aquilo tirava a máscara do lugar mas já não
pensava mais em máscaras. Só queria esconder seu rosto afastar suas órbitas cegas da
vista deles impedi-los de ver o buraco carcomido que costumava ser um nariz e uma boca o
buraco que costumava ser um rosto humano vivo. Ficou tão desatinado que passou a se
agitar de um lado para outro como alguém muito doente com febre altíssima que só
consegue repetir monotonamente um gesto ou uma palavra. Caiu no seu velho movimento
de balanço jogando o peso de um ombro a outro para lá e para cá para lá e para cá para lá
e para cá.
A mão de alguém pousou na sua testa. Ele se aquietou porque era a mão pesada e
quente de um homem. Uma parte dela tocava a pele de sua testa e outra parte ele sentia
através da máscara. Ficou calmo de novo. Então outra mão começou a dobrar os lençóis
descobrindo seu pescoço. Uma dobra. Uma dobra e meia. Ele ficou muito quieto muito
alerta muito curioso. Fez um esforço mental para imaginar quem poderiam ser.
Então compreendeu. Eram médicos que tinham vindo examiná-lo. Visita de pesquisa. Ele
a esta altura era provavelmente um sujeito famoso e os médicos começavam a fazer
peregrinações. Um médico decerto estava dizendo aos outros estão vendo como
conseguimos fazer? Estão vendo o belo serviço que realizamos? Estão vendo onde o braço
foi amputado estão vendo o buraco no rosto estão vendo que ele ainda vive? Escutem só o
coração dele está batendo exatamente como o seu ou o meu. Oh fizemos um lindo serviço
desde que ele chegou a nossas mãos. Foi um tremendo sucesso e estamos todos muito
orgulhosos. Passem na minha sala antes de ir embora e eu lhes darei um dos dentes dele
como recordação. Eles têm um brilho lindo ele era jovem vocês sabem e seus dentes
estavam em boas condições. Querem um dente frontal ou preferem um dentão de trás? Os
molares ficam mais bonitos numa corrente de relógio.
Alguém estava puxando seu camisão no lado esquerdo de seu peito. Um indicador e um
polegar beliscavam um ponto dele. Permaneceu quieto mortalmente quieto com a mente
disparando em cem direções diferentes ao mesmo tempo. Pressentia que algo importante
estava para acontecer. Houve um pouco mais de apalpamento e o tecido do camisão voltou
a cobrir seu peito. O tecido estava pesado agora como se alguma coisa pesasse sobre ele.
Sentiu a súbita frieza do metal através do tecido do camisão em cima do peito em cima do
coração. Tinham posto alguma coisa sobre ele.
De repente ele fez uma coisa curiosa uma coisa que havia meses não fazia. Começou a
esticar sua mão direita para a coisa pesada que tinham colocado sobre ele e lhe pareceu
que estava quase agarrando-a com os dedos quando se deu conta de que não tinha braço
nenhum para estender e muito menos dedos com que agarrar.
Alguém estava beijando sua têmpora. Sentiu um leve roçar de pelos enquanto o beijo era
dado. Estava sendo beijado por um homem de bigode. Primeiro na têmpora esquerda
depois na direita. Então compreendeu o que lhe tinham feito. Tinham entrado no quarto
para condecorá-lo com uma medalha. Compreendeu também que devia estar na França e
não na Inglaterra porque eram os generais franceses que sempre beijavam o sujeito a
quem entregavam uma medalha. Mas podia não ser verdade. Generais americanos e
ingleses costumavam apertar a mão do condecorado mas já que ele não tinha mão para ser
apertada talvez aquele fosse um inglês ou americano que tivesse decidido seguir o
costume francês por não ter outro meio de fazer a coisa. Ainda assim parecia grande agora
a probabilidade de que estivesse na França.
Quando parou de especular sobre onde estava e de se adaptar à ideia de que talvez
estivesse na França surpreendeu-se um pouco ao constatar que estava ficando furioso.
Tinham lhe dado uma medalha. Três ou quatro marmanjos que ainda tinham braços e
pernas e podiam ver e falar e cheirar e sentir gosto tinham vindo ao seu quarto para colocar
uma medalha no seu peito. Podiam se dar a esse luxo aqueles canalhas nojentos não
podiam? Era para isso que sempre tinha servido o tempo deles para sair por aí dando
medalhas e sentindo-se importantes e satisfeitos com isso. Quantos generais foram mortos
na guerra? Houve Kitchener é verdade mas aquilo foi um acidente. Quantos outros? Aponte
um aponte qualquer um desses filhosdaputa de vida mansa e pode ficar com todos eles.
Quantos deles tinham sido destroçados a ponto de precisar viver enrolados em lençóis pelo
resto da vida? Era muita cara de pau da parte deles sair por aí distribuindo medalhas.
Ao pensar por um instante que sua mãe suas irmãs e Kareen pudessem estar junto à
cama ele tivera vontade de se esconder. Mas agora que tinha por perto generais e figurões
ele via surgir um desejo feroz de que o vissem. Assim como um pouco antes ele tentara
estender para a medalha um braço que não tinha agora ele começou a soprar a máscara
para tirá-la de cima do rosto sem ter boca e lábios para soprar. Queria que eles
simplesmente dessem uma olhada no buraco na sua cabeça. Queria que desfrutassem a
visão de um rosto que começava e terminava numa testa. Ficou lá soprando e soprando até
que se deu conta de que o ar de seus pulmões estava todo escapando pelo tubo. Começou
a se balançar de novo de um ombro a outro na esperança de tirar a máscara do lugar.
Ali deitado balançando e bufando ele sentiu uma vibração no fundo da garganta uma
vibração que poderia talvez ser uma voz. Era uma vibração curta e profunda e ele percebeu
que ela emitia um som aos ouvidos deles. Não um som muito grande não um som muito
inteligível mas que devia parecer a eles pelo menos tão interessante quanto o grunhido de
um porco. E se ele podia grunhir como um porco ora ora então estava realizando uma
grande proeza pois até então estivera em silêncio completo. Então ele seguiu sacolejando e
bufando e grunhindo como um porco na esperança de que eles vissem muito bem o quanto
ele apreciava a medalha deles. Enquanto estava no meio disso houve um alvoroço
indefinido de passos e em seguida as vibrações da partida de seus visitantes. Um momento
mais tarde ele estava completamente só na escuridão silenciosa. Estava completamente só
com sua medalha.
De repente se aquietou. Estava pensando sobre as vibrações daqueles passos. Sempre
ficara cuidadosamente atento a vibrações. Por meio delas avaliara o tamanho das
enfermeiras e as dimensões de seu quarto. Mas de repente sentir as vibrações de quatro ou
cinco pessoas andando pelo quarto levou-o a pensar. Levou-o a perceber que as vibrações
eram muito importantes. Até aquele momento tinha pensado nelas apenas como vibrações
que chegavam até ele. Agora começava a considerar que também pudesse haver vibrações
partindo dele. As vibrações que ele recebia contavam-lhe tudo – altura peso distância
tempo. Por que ele não seria capaz de dizer alguma coisa ao mundo exterior também por
meio de vibrações?
No fundo da sua mente uma centelha começou a brilhar. Se ele pudesse de algum modo
fazer uso das vibrações poderia se comunicar com aquelas pessoas. Então a centelha se
tornou uma ofuscante luz branca. Abria perspectivas tão empolgantes que ele achou que ia
sufocar de pura excitação. Vibrações eram uma parte importante da comunicação. Um pé
batendo no chão é um tipo de vibração. Uma batida na tecla de um telégrafo é
simplesmente outro tipo.
Quando garoto muito tempo atrás talvez uns quatro ou cinco anos ele tivera um jogo de
telégrafo sem fio. Ele e Bill Harper costumavam telegrafar um ao outro. Ponto traço ponto
traço. Especialmente em noites chuvosas quando seus pais não os deixavam sair e não
havia o que fazer e eles ficavam vadiando pela casa estorvando todo mundo. Em noites
assim ele e Bill Harper costumavam mandar pontos e traços um para o outro e se divertiam
à beça. Ainda se lembrava do código Morse. Tudo o que ele precisava fazer para romper a
barreira que o separava do mundo exterior era transmitir ali deitado na cama pontos e
traços à enfermeira. Então poderiam conversar. Então ele despedaçaria o silêncio e o negror
e a impotência. Então o homem-tronco sem lábios poderia falar. Ele tinha capturado o
tempo e tentado imaginar a geografia e agora faria a mais grandiosa de todas as coisas ele
conversaria. Emitiria mensagens e receberia mensagens e teria dado mais um passo à
frente em sua luta para voltar às pessoas em sua terrível e solitária ânsia por sentir pessoas
perto de si pelas coisas que estavam na cabeça delas pelos pensamentos que podiam
talvez dar a ele pois seus próprios pensamentos eram tão débeis tão toscos tão
incompletos. Ele conversaria.
Experimentou erguer a cabeça do travesseiro e deixá-la cair de novo. Em seguida fez isso
duas vezes com rapidez. Isso seria um traço e dois pontos. A letra D. Percutiu SOS no
travesseiro. Ponto-ponto-ponto traço-traço-traço ponto-ponto-ponto. SOS. Socorro. Se havia
alguém em todo o planeta que precisava de socorro esse alguém era ele e agora o estava
pedindo. Torceu para que a enfermeira voltasse logo. Começou a percutir perguntas. Que
horas são? Que dia é hoje? Onde estou? Lá fora faz sol ou está nublado? Alguém sabe
quem sou eu? Meus parentes sabem que estou internado aqui? Não lhes conte nada. Não
deixe que saibam coisa alguma a respeito. SOS. Socorro.
A porta do quarto se abriu abruptamente e os passos da enfermeira se aproximaram da
cama. Ele começou a bater a cabeça mais freneticamente. Estava no limiar do contato com
as pessoas do contato com o mundo do contato com uma grande parte da vida em si.
Toque toque toque. Estava esperando pelo toque toque toque dela em resposta. Um toque
na sua testa ou no seu peito. Mesmo que não soubesse o código ela poderia dar um toque
só para deixar claro que entendia o que ele estava fazendo. Então ela poderia sair correndo
em busca de alguém que a ajudasse a captar o que ele estava dizendo. SOS. SOS. SOS. Socorro.
Sentiu que a enfermeira estava em pé ali olhando para ele e tentando imaginar o que
estava fazendo. A mera possibilidade de que ela não estivesse entendendo depois de tudo
o que ele sofrera até descobrir aquele método causou-lhe tanta emoção e temor que ele
começou a grunhir de novo. Ficou lá grunhindo e batendo a cabeça grunhindo e batendo a
cabeça até que os músculos da nuca começaram a doer até que sua cabeça começou a
doer até sentir que seu peito ia explodir de desejo de explicar a ela aos gritos o que estava
tentando fazer. E sentia que ela continuava imóvel junto à cama olhando para ele
desconcertada.
Então sentiu a mão dela na sua testa. Por um breve momento ela a manteve ali. Ele
continuou batendo a cabeça agora ficando irritado e sem esperança e sentindo vontade de
vomitar. Ela começou a acariciar sua testa com movimentos lentos e suaves. Era a primeira
vez que o acariciava daquele jeito. Ele captou compaixão na suavidade daquele toque.
Então a mão dela subiu da testa para os cabelos e ele lembrou que Kareen costumava fazer
aquilo de vez em quando. Mas afastou Kareen da mente e continuou batendo a cabeça
porque aquilo era tão importante que ele não podia parar para desfrutar sensações
agradáveis.
A pressão da mão em sua testa estava ficando mais forte. Percebeu que ela estava
tentando com o peso da mão fazer com que ele cansasse e parasse de se agitar. Ele passou
a bater a cabeça ainda mais rápido ainda mais forte para mostrar a ela que seu plano não
iria funcionar. Podia sentir as vértebras da coluna cervical estalando pelo esforço daquele
movimento inesperado. A mão da enfermeira ficava cada vez mais pesada em sua testa.
Seu pescoço foi se cansando. Tinha sido um dia terrível um dia longo um dia emocionante.
Suas batidas foram se tornando mais lentas e a mão dela ficou ainda mais pesada e por fim
ele repousou passivamente a cabeça no travesseiro enquanto ela roçava sua testa com os
dedos.
XIV

TINHA PERDIDO POR COMPLETO O CONTROLE do tempo. Todo o trabalho que tivera para capturá-lo e toda a sua
contagem e todos os seus cálculos reduzidos a nada. Perdera a noção de tudo exceto das
batidas. Começava a bater a cabeça no momento em que acordava e prosseguia até que a
sonolência o dominasse de novo. Mesmo prestes a cair no sono a última porção de sua
energia e de seu pensamento era canalizada para as batidas de tal modo que ele tinha a
impressão de sonhar que estava batendo. Pelo fato de bater quando estava acordado e
sonhar que estava batendo quando dormia sua velha dificuldade em distinguir sono e
vigília surgiu de novo. Nunca tinha certeza de não estar sonhando quando acordado e de
não estar batendo quando dormia. Tinha perdido tão completamente o sentido do tempo
que não tinha ideia de quanto se passara desde que começara a bater a cabeça. Talvez
apenas semanas talvez um mês talvez até um ano. O único sentido que lhe restava dos
cinco originais tinha sido completamente hipnotizado pelo ato de bater e quanto a pensar
era algo que ele nem fazia de conta mais. Não especulava sobre as novas enfermeiras
noturnas em suas idas e vindas. Não ficava atento às vibrações no chão. Não pensava no
passado e não levava em consideração o futuro. Só ficava ali deitado emitindo sua
mensagem sem parar para pessoas do mundo exterior que não compreendiam.
A enfermeira diurna tentava confortá-lo mas o fazia apenas como quem tenta acalmar
um paciente irritável. Fazia-o de tal maneira que ele sabia que nunca conseguiria romper a
barreira enquanto fosse ela a cuidar dele. Parecia nunca ter ocorrido a ela que havia uma
mente uma inteligência em ação por trás do ritmo das batidas de sua cabeça contra o
travesseiro. Ela estava simplesmente cuidando de um paciente incurável tentando tornar
sua condição a mais confortável possível. Nunca pensou que estar mudo era uma doença
para a qual ele encontrara a cura e que estava tentando lhe dizer que tudo bem agora ele
não estava mais mudo agora era um homem capaz de falar. Ela lhe dava banhos quentes.
Ela mudava a posição da sua cama. Ela ajustava o travesseiro ora mais alto ora mais baixo
sob a sua cabeça. Quando o travesseiro estava erguido a inclinação mais íngreme fazia a
cabeça dele pender para a frente. Depois de percutir um pouco nessa posição ele sentia a
dor descendo por toda a espinha dorsal. Mas continuava batendo.
Ela passou a massageá-lo e ele gostou daquele toque vívido e macio de seus dedos mas
continuou batendo a cabeça. Até que um dia ele sentiu uma mudança no toque daqueles
dedos. Não era mais macio e vívido. Sentiu a mudança na ponta dos dedos dela na ternura
do seu toque sentiu que ali havia piedade e hesitação e um grande acúmulo de amor que
não era nem dele por ela nem dela por ele mas antes um tipo de amor que envolvia todas
as coisas vivas e tentava levar a elas um pouco mais de conforto torná-las um pouco menos
infelizes um pouco mais próximas de outras de sua espécie.
Sentiu a mudança na ponta dos dedos dela e sentiu-se atravessado por uma pequena
pontada de desgosto mas a despeito do desgosto ele estava reagindo ao toque reagindo à
compaixão do coração dela que a levava a tocá-lo daquela forma. As mãos dela buscavam
as partes mais escondidas de seu corpo. Inflamavam os nervos dele com uma espécie de
ardor falso que se manifestava em pequenos tremores pela superfície da pele. Mesmo
enquanto pensava oh meu deus foi a isso que chegamos ela acha que é por isso que eu
bato a cabeça maldita seja bendita seja e o que eu faço agora? – mesmo enquanto pensava
isso ele sucumbia ao ritmo dela retesava-se ao seu toque sentia o coração bater mais
rápido e esquecia tudo no mundo exceto o movimento e a súbita pulsação de seu sangue…
Houve uma garota chamada Ruby e ela para ele foi a primeira. Foi quando ele estava na
oitava ou talvez na nona série. Ruby morava em Teller Addition na parte pobre da cidade.
Ruby era mais nova que ele estava só na sexta ou sétima série mas era uma garota
grandalhona italiana e muito gorda. Todos os rapazes da cidade de algum modo tiveram
sua iniciação com Ruby porque ela nunca os deixava sem graça. Ia direto ao ponto sem
mais delongas embora de vez em quando o sujeito precisasse lhe dizer que ela era bonita.
Mas nada de outras besteiras e se um garoto não tivesse experiência ora ora Ruby jamais
ria dele e jamais fuxicava a respeito ela simplesmente ia em frente e fazia as coisas por ele.
Os rapazes gostavam de falar sobre Ruby quando não havia assunto melhor para
conversar. Gostavam de rir dela em tais conversas e dizer ah não eu não vejo mais a Ruby
eu me viro por aí estou sempre arranjando coisa nova. Mas era tudo conversa fiada porque
eles eram de fato garotos muito novos e Ruby era a primeira e única garota que eles
conheciam pois eram tímidos demais com as outras garotas com as garotas direitas. Logo
ficaram envergonhados de Ruby e quando iam até ela sempre se sentiam meio sujos e
meio enfastiados. Saíam culpando Ruby de alguma maneira por fazer com que se
sentissem assim. Quando chegaram à décima série nenhum deles sequer falava com Ruby
e por fim ela desapareceu. Simplesmente não estava mais por ali e eles se sentiram até
contentes por não ter que topar com ela na rua.
Houve a Laurette lá do estabelecimento da Stumpy Telsa. A Stumpy Telsa tinha uma casa
de moças em Shale City. Tinha cinco ou seis garotas lá e o mais belo par de Boston terriers
da cidade. Os rapazes quando eram novinhos quando tinham talvez catorze ou quinze anos
costumavam imaginar muita coisa sobre a casa da Telsa. Para eles era a casa mais
maravilhosa mais excitante mais misteriosa de Shale City. Ouviam os sujeitos mais velhos
contar histórias do que se passava lá dentro. Nunca chegavam a decidir se eram a favor ou
contra mas estavam sempre interessados.
Uma noite três deles desceram pelo beco atrás da casa da Stumpy Telsa e esgueiraram-se
quintal adentro e tentaram espiar pela porta da cozinha. Havia uma cozinheira negra lá
fazendo sanduíches e ela os viu e soltou um berro. A Stumpy Telsa entrou mancando na
cozinha com sua perna de pau e apanhou uma faca de açougueiro e saiu para o quintal.
Todos saíram correndo como loucos com a Stumpy Telsa atrás deles gritando que sabia
quem eram e ia telefonar imediatamente para seus pais. Mas era um blefe. A Stumpy não
tinha visto a cara deles e não telefonou para ninguém.
Mais tarde quando tinham dezessete ou dezoito e estavam praticamente terminando o
colégio ele e Bill Harper decidiram parar de ficar só falando o tempo todo sobre o lugar e
foram à casa da Stumpy Telsa uma noite para verificar por conta própria. Entraram direto
no salão da frente e ninguém sacou uma faca para eles ou coisa que o valha. Eram umas
oito horas e evidentemente o movimento não era muito grande porque a Stumpy veio até o
salão e conversou com eles e não estava nem um pouco zangada. Eles estavam
envergonhados demais para dizer qualquer coisa a ela sobre o motivo de estarem ali e a
Stumpy também não disse coisa alguma a respeito então parecia ser apenas uma visita. A
Stumpy mandou chamar no andar de cima um par de garotas para que viessem sentar no
salão e mandou a cozinheira negra fazer uma travessa de sanduíches. Em seguida se
afastou. Sozinhos no salão eles ouviram as garotas descendo a escada e souberam então
que agora iriam descobrir o que era verdade e o que não era nas coisas todas que tinham
ouvido acerca daquele lugar. Alguns sujeitos diziam que as garotas entravam no salão nuas
em pelo e outros diziam que elas nunca se deixavam ver peladas que estavam sempre
vestidas de quimono ou algo do tipo. Não havia nada que elas odiassem tanto diziam esses
sujeitos quanto um homem querer vê-las sem nenhuma roupa. Então eles ficaram ali
sentados com o coração na garganta e esperaram para ver.
Mas as garotas chegaram completamente vestidas. Estavam mais bem-vestidas que a
maioria das garotas de Shale City e eram mais bonitas que a maioria também. Entraram e
sentaram e conversaram como qualquer outra pessoa faria. Uma delas pareceu gostar mais
de Bill Harper e a outra pareceu gostar dele. A que gostou dele falou sobre livros o tempo
todo. Se ele tinha lido este ou aquele e o fato é que ele não tinha lido nenhum e se sentiu
um verdadeiro pateta. Depois de uma meia hora mastigando sanduíches e falando sobre
livros a Stumpy Telsa chegou radiante e sorridente e disse-lhes que era hora de ir para casa.
Então eles se levantaram e trocaram apertos de mão com as garotas e foram embora.
Naquela noite eles fizeram uma longa caminhada pela cidade discutindo todas as coisas
que tinham ouvido sobre a casa da Stumpy Telsa e tentando decidir se eram mentiras ou se
eram eles que eram o tipo de sujeitos que as garotas não querem para aquilo. Isso era ruim
talvez eles viessem a ser um fracasso com as mulheres pela vida toda talvez lhes faltasse
alguma coisa. Decidiram não contar a ninguém sobre a visita porque se sentiam muito
mais desonrados do que se as coisas tivessem transcorrido de outra forma.
Mais tarde ele refletiu sobre a garota que falava sobre livros e depois de pensar
longamente no assunto foi procurá-la de novo. Seu nome era Laurette e ela pareceu
contente ao vê-lo. Disse a ele que se quisesse vê-la sempre era mais garantido que fosse
antes das nove porque depois dessa hora as coisas costumavam ficar muito movimentadas.
Ele de fato voltou de novo e de novo e eles sempre se sentavam no salão e sempre
conversavam. Ele deu de pensar talvez eu esteja apaixonado por Laurette só faltava essa
imagine só eu estar apaixonado por ela como é que eu iria dar a notícia a minha mãe e
meu pai? E por outro lado ele pensava ora ora se só o que a gente faz é conversar o que é
que ela pensa que eu sou? Durante todo o inverno daquele ano e primavera adentro ele foi
visitar Laurette uma vez talvez duas às vezes até três vezes ao mês. E cada vez que ia lá
antes de bater na porta ele se aprumava e dizia a si mesmo Joe Bonham seja um homem
desta vez. Mas Laurette era tão boazinha que ele não conseguia imaginar como um
camarada podia começar aquele tipo de coisa sem parecer meio depravado. De modo que
nunca começou.
Quando se formou no colégio ele recebeu pelo correio um par de abotoaduras de ouro e
tudo o que veio junto com elas foi um cartão com a inicial L escrita à mão. Teve uma
trabalheira para explicar aos pais quem lhe enviara as abotoaduras mas as estimava
tremendamente e decidiu que na noite seguinte logo após a formatura ele iria à casa da
Stumpy Telsa. Agora que Laurette lhe dissera de um jeito indireto que o amava as coisas
seriam diferentes. Sendo assim por volta das nove horas da grande noite ele foi até a casa
da Stumpy Telsa matutando um jeito alegre e educado de expressar as coisas que tinha na
cabeça. Bateu na porta e a Stumpy Telsa convidou-o a entrar e quando ele perguntou por
Laurette ela respondeu que Laurette não estava. Aonde tinha indo? Tinha ido a Estes Park.
Todos os anos disse Stumpy Telsa ela passa três meses de férias lá. Ao longo de todo o
inverno ela compra novas roupas e poupa seu dinheiro e por três meses vive no melhor
hotel de Estes Park. Ela sai com homens e dança e adora ver os homens se apaixonarem por
ela e quando eles se apaixonam ela é sempre boazinha com eles mas nunca boazinha
demais. Nunca é tão boazinha quanto eles gostariam. É uma garota esperta essa Laurette
disse a Stumpy Telsa ela mata dois coelhos com uma cajadada só. E ainda por cima
economiza dinheiro e forma um belo pé-de-meia. Por que você não arranja emprego em
outra cidade e volta no outono depois que a Laurette tiver sossegado e aí vocês têm uma
conversa? Talvez você e a Laurette possam ser muito felizes. Mas quando chegou o outono
ele estava trabalhando num panifício a mais de dois mil quilômetros dali e nunca mais
voltou a ver Laurette.
Havia uma garota chamada Bonnie. Ela lhe deu um tapinha nas costas um dia quando
ele estava sentado na lanchonete do Louie perto da panificadora tomando uma coca-cola.
Ela lhe deu uma palmadinha nas costas e disse você é o Joe Bonham não é o Joe Bonham
de Shale City? Ora eu sou a Bonnie Flannigan a gente estudava na mesma escola meu
Deus é bom encontrar alguém da terra da gente. Ele a encarou e não houve meio de se
lembrar dela. Ah sim eu me lembro de você. Ela fez que sim com a cabeça e disse você
estava adiantado em relação a mim na escola e nunca me deu bola como você está e por
que não vem me visitar um dia? Eu moro no condomínio ali bem ao lado da panificadora.
Você trabalha na panificadora que eu sei. Encontro alguns dos rapazes de vez em quando
rapazes bacanas todos eles e eles me disseram que você trabalha lá.
Ele olhou para ela e constatou que era mais jovem que ele e percebeu o que ela era.
Sentiu uma pequena pontada no estômago porque garotas daquele tipo podiam vir de
Nova York ou Chicago ou St. Louis ou Cincinnati podiam vir de Denver ou Salt Lake ou Boise
Idaho ou Seattle mas nunca vinham de Shale City porque Shale City era o lar.
Foi procurá-la. Já não era uma garotinha e nem era muito bonita mas era tremendamente
afável e estava transbordando de planos para o futuro estava transbordando de vida. Já fui
casada três vezes disse Bonnie fui casada três vezes e todos os meus maridos diziam que
eu era a cara da Evelyn Nesbitt Thaw.18 Você me acha parecida com a Evelyn Nesbitt Thaw?
Pelas manhãs por volta das cinco ou seis horas eles iam às vezes à Main Street tomar o
café da manhã nos restaurantes baratos de reluzentes ladrilhos brancos onde se podia
comer de tudo por dez centavos. Chegavam lá e o lugar estava cheio de marinheiros
sonolentos se perguntando o que fazer agora que já era de manhã e Bonnie conhecia todos
eles. Ela lhes dava palmadas nos ombros enquanto caminhava com Joe em direção à mesa
dos dois e chamava-os pelos nomes. Oi Pete ora se não é o velho Slimy olá Dick ora se não é
o velho George. Quando chegavam à mesa e pediam seu presunto com ovos ela lhe dizia
Joe se você for um cara esperto vai querer ficar comigo. Você quer ir para a faculdade não
quer? Fica comigo Joe. Vou mandar você para a faculdade. Conheço a frota toda conheço
todos esses caras e sei onde está a grana deles e sou esperta e cuidadosa nunca peguei
gonorreia fica comigo Joe a gente vai nadar em dinheiro. Está vendo aquele sujeito ali? Ele
sempre diz que pareço a Evelyn Nesbit Thaw você acha que eu pareço a Evelyn Nesbitt
Thaw querido?
Havia uma garota chamada Lucky. Ela era a Estátua da Liberdade e a Tia Jemima19 e a
garota-que-a-gente-deixou-pra-trás de meio milhão de recrutas em Paris. Havia uma Casa
Americana em Paris e quando eles estavam de licença na cidade quando estavam longe
das trincheiras e da matança todos os rapazes iam à Casa Americana e conversavam com
garotas americanas e bebiam uísque americano e eram felizes.
Lucky era a melhor da turma a mais boazinha e a mais esperta. Ela o recebia no seu
quarto nua em pelo com uma grande cicatriz vermelha onde alguém tinha lhe arrancado o
apêndice. Ele entrava no quarto dela bem cansado ao final de uma noite e talvez um pouco
bêbado e deitava na cama dela e pousava a cabeça nas mãos e ficava observando Lucky. No
minuto em que o via ela sorria e ia até a cômoda e tirava da gaveta de cima uma toalhinha
de crochê inacabada. Estava sempre fazendo crochê. Sentava ao pé da cama toda vivaz e
tagarela e amigável e conversava com ele fazendo crochê.
Lucky tinha um filho. Ele estava com seis ou sete anos e Lucky o mantinha numa escola
em Long Island. Ela queria que ele fosse um jogador de polo porque jogadores de polo
andam por aí conhecendo as melhores pessoas e nada seria bom demais para o filho de
Lucky aquele patifezinho lindo. Mesmo descontando a porcentagem da casa e as despesas
com toalhas e cuidados médicos Lucky ainda ganhava entre cento e cinquenta e duzentos
dólares por semana a dois dólares por cabeça. Mas claro que gastamos tudo temos que nos
vestir de acordo com a nossa posição e as roupas custam caro vou te contar uma garota
tem que estar sempre vistosa.
Lucky tinha estado no terremoto de San Francisco. Devia ter dezesseis ou dezessete anos
na época e portanto devia ter quase trinta agora. Quando o terremoto atingiu San Francisco
Lucky estava no quarto andar de um hotel na Market Street. Eu estava entretendo um
cavalheiro meu amigo e quando senti o primeiro abalo eu disse a mim mesma Lucky eu
disse isto é um terremoto e você não vai ser flagrada morta com um filhodaputa em cima
de você. Então empurrei o sujeito pra longe e corri direto para a rua totalmente pelada e
você devia ver os olhos arregalados dos caras.
Conversar com Lucky estar com Lucky deitar com Lucky era como encontrar a paz num
país selvagem era como respirar o ar de um lugar que você ama quando está doente e
morrendo de desejo de respirar esse ar. Ver o sorriso dela ouvir seu palavreado alegre ver
seus dedinhos ossudos moverem-se velozmente com a agulha de crochê sob os ruídos
noturnos de Paris uma cidade estrangeira do lado de fora da janela era o bastante para
fazer qualquer um se sentir melhor e menos solitário.
Paris era uma cidade estranha uma cidade estrangeira uma cidade moribunda uma
cidade vivaz. Tinha vida demais e morte demais e fantasmas demais e por trás dos balcões
dos cafés tinha soldados mortos demais. Tome um drinque. Oh Paris é uma cidade feminina
com flores no cabelo. Nenhuma dúvida de que Paris era uma cidade maravilhosa uma
cidade feminina mas também uma cidade masculina. Dez mil soldados rasos ingleses
franceses de licença dez mil cem mil deles. Só uns poucos dias rapazes uns poucos dias e
depois vocês voltam para o front e cada vez que vocês voltam as chances estão mais contra
vocês do que na vez anterior. Lembrem que existe uma lei das probabilidades portanto
venham queridos vamos dar uma rapidinha cinco francos dez francos dois dólares opa o
que é isso um sotaque americano? Essa é minha. Que diabo uma musiquinha no salão um
gole de conhaque barato e vamos nessa porque lá no leste no lugar que chamam de front
oeste tem um velhinho que mantém um caderno em que calcula as porcentagens e
probabilidades o dia inteiro a noite inteira e nunca erra. Flor-de-lis. Flor-de-lis. Deus salve o
rei. Vamos subir coração solitário quer tentar uma coisa diferente parley vous fransays? Um
garrafão de vinho tinto aguado e pão fermentado e talvez por favor deus que eu encontre
uma garota americana que não fale línguas bárbaras. Fuque-fuque diabos não é isso que eu
quero. Quero uma coisa bem ruidosa porque há uma voz que eu quero sufocar. É uma voz
que não emite som nenhum mas da qual eu não consigo me livrar.

Em algum lugar ela está sendo preparada. Em algum lugar no coração profundo da
Alemanha a bomba está sendo feita. Alguma moça alemã a está polindo agora mesmo
polindo e limpando e enfiando a carga explosiva dentro dela. Ela resplandece à luz da
fábrica e tem um número e o número é o meu. Tenho um encontro marcado com a bomba.
Em breve nos encontraremos.

Caminhões rugem pelas ruas recolhendo rapazes recolhendo os retardatários dizendo


vamos lá pessoal está na hora de descer até a estação e saltar para dentro do velho vagão
de carga. Porque vocês vão voltar. Voltar para o velho que faz cálculos por lá o sujeito que
calcula o dia inteiro e a noite inteira e nunca comete um erro. As estrelas e listras para
sempre lá-lá lá-lá-ri-lá. Experimente garoto é bom alguns rapazes dizem que tem droga
dentro mas não acredite em nada do que eles dizem. Alguns rapazes dizem que cura
ressaca outros que seca a gente por dentro. Chama-se absinto deixe que encha seu copo é
formidável. Parley vous parley vous sim senhor não senhor coração solitário cadê a voz com
sotaque americano? deus do céu como eu queria encontrá-la. Cadê o Jack cadê o Bill cadê o
John foram todos embora. Partiram para o oeste. Toque de silêncio. Dez mil dólares para os
familiares na terra natal. Dez mil pratas Deus do céu. Conheço uma casa na rue Blondel
brancas pretas de todas as nacionalidades. Americanas? Sim claro tudo o que você quiser
oh deus não é isso que eu quero o que eu quero está muito longe mas vou ficar com o que
você tem. É um longo caminho até Tipperary. Apagam-se as luzes.

Mais perto mais perto. Um caminhão alemão pesado coberto de lona avança sacolejando
em direção à França agora mesmo. Avança para o oeste pelo vale do Reno eu sempre quis
vê-la atravessando a Floresta Negra eu sempre quis vê-la atravessando a noite profunda
vindo em direção à França a bomba que eu devo encontrar. Está cada vez mais perto nada
pode detê-la nem mesmo a mão de deus pois eu tenho hora marcada ela tem hora marcada
e nós vamos nos encontrar quando chegar a hora.

A América espera que cada homem cumpra seu dever a França espera que cada homem
cumpra seu dever a Inglaterra espera que cada homem cumpra seu dever cada ianque e
limey e franchuco e como chamam mesmo os italianos? Seja como for espera-se que eles
cumpram seu dever também. Lafayette aqui estamos20 e assim nos campos de Flandres
florescem as papoulas entre as fileiras de cruzes fileiras e mais fileiras não perca a conta
das fileiras para o velhote que em seu caderno registra cifras dias e noites a fio sem nunca
cometer um erro. Oui oui parley vous fuque-fuque? Claro fuque-fuque que diabo cinco
francos dez francos quem disse dois dólares dois velhos e bons dólares americanos e um
copo de uísque de milho? Meu deus este conhaque sempre pensei que fosse uma bebida
ótima ouvi falar tanto a respeito mas é horrível me dê um uísque de milho e o que você
acha dos defensores da lei seca? Quatro milhões de nós perdidos quatro milhões de votos
suponho que eles não nos levem em conta eles vão nos liquidar vamos sair à cata de uísque
de milho do velho e bom uísque de milho americano. Queridinho amado meigo exausto
solitário quer uma amiga escolha uma mesa tome uma cadeira tome uma cama mas não
demore muito porque tem um montão de sujeitos na fila Paris está abarrotada deles então
faça o favor de não demorar.

Escondida embaixo de alguma colina roliça que parece um seio de mulher na carne sólida
da terra ali escondida sob essa colina em algum paiol de munições desconhecido está
minha bomba. Está prontinha. Corra garoto corra recruta termine logo o que tem a fazer
pois não lhe sobra muito tempo.

Cante um ragtime fuque-fuque cante um ragtime mam’selle cante que a coisa vai
esquentar na velha cidade esta noite. Cante uma Joana d’Arc e uma flor-de-lis cante uma
mademoiselle de Armentieres. Cante um Lafayette parley vous fransays. Levantem-se e
saltem saltem bem depressa façam a fumaça rodopiar no ar arrebentem as cadeiras
arrebentem as janelas ponham a casa abaixo maldita seja vamos rapaz vamos garota
despejem conhaque nas juntas e apaguem as luzes e batam tambores e saiam das
trincheiras para o Natal e vejam Paris à noite e uma rapidinha por cinco francos e oui-oui
parley vous cheio de uísque de milho na pança e um velhote com um caderno registrando
números dia e noite e ele registra mais depressa mais depressa mais depressa e mais
depressa e mais forte mais fundo depressa depressa depressa.

Vai chegar com ímpeto com rugido com tremor. Vai chegar uivando e rindo e guinchando
e gemendo. Vai chegar tão veloz que você não terá como escapar você abrirá os braços
para recebê-la. Você a sentirá antes mesmo que ela chegue e se retesará para acolhê-la e a
terra que é seu leito eterno tremerá no momento da união.

Silêncio.
O que foi isso o que é isso oh meu deus pode um homem descer tão baixo pode um
homem ser tão pouco?
Fadiga e ofegante convulsiva exaustão. Toda a vida morta toda a vida dissipada e tornada
menos que nada apenas o embrião do nada. Uma espécie de doença nascida da
degradação. Uma fraqueza igual a morrer uma fraqueza e uma frouxidão e uma oração.
Deus dai-me descanso levai-me daqui deixai-me morrer oh deus como estou cansado já
estou morto e não paro de morrer oh deus escondei-me dai-me paz.
XV

CONTINUOU BATENDO A CABEÇA.


Agora continuava por outro motivo além do simples desejo de falar que o motivara a
começar. Continuava batendo porque não ousava parar não ousava pensar. Não tinha
coragem de fazer a si mesmo uma pergunta tão simples como quanto tempo vai levar para
a enfermeira entender o que estou fazendo? Porque sabia que podia levar meses podia
levar anos podia levar o resto da sua vida. O resto da vida batendo a cabeça quando um
mero sussurro – uma palavra com as sílabas mal formadas por dois lábios – era tudo o que
ele precisava para dizer o que queria.
Havia momentos em que ele sabia que estava virando um louco de pedra só que por fora
devia ter a mesma aparência de sempre. Qualquer um que olhasse para ele ali na cama
não teria meio de suspeitar que por baixo da máscara e do muco jazia uma insanidade crua
e cruel e desesperada como nenhuma outra poderia ser. Ele compreendia a insanidade
sabia tudo a respeito agora. Compreendia o impulso avassalador de matar sem ter motivo o
desejo de golpear crânios vivos até transformá-los numa pasta a paixão de estrangular a
ânsia de assassinar que era mais linda mais satisfatória mais imperativa que qualquer
ânsia que ele já conhecera. Mas ele não podia fazer isso não podia matar não podia fazer
nada que não fosse bater a cabeça.
Dentro do seu crânio havia um homem normal com braços e pernas e tudo o que os
acompanha. Era ele Joe Bonham aprisionado no escuro de seu próprio cérebro correndo
freneticamente de um ouvido a outro e aonde quer que pudesse haver uma abertura. Como
um animal selvagem ele tentava abrir a golpes uma saída para o mundo exterior. Estava
encarcerado em seu próprio cérebro emaranhado nos tecidos e na massa cefálica
esperneando e se debatendo e berrando para sair dali. E a única pessoa no mundo que
poderia ajudá-lo não tinha ideia do que ele estava fazendo.
Deu de pensar essa enfermeira está me mantendo prisioneiro. Ela me mantém prisioneiro
de modo mais seguro do que qualquer carcereiro do que qualquer corrente do que
qualquer masmorra que se pudesse construir ao meu redor. Deu de pensar em todos os
prisioneiros de que tinha lido a respeito ou ouvido falar em todos os sujeitos desde os
primórdios das coisas que tinham sido detidos e encarcerados e que tinham morrido antes
de reconquistar a liberdade. Pensou nos escravos zés-ninguém como ele que tinham sido
capturados na guerra que tinham passado o resto da vida acorrentados como animais a
remos para mover o barco de um figurão pelo mar Mediterrâneo. Pensou neles lá no fundo
daquele barco sem saber para onde iam sem jamais respirar o ar exterior sem jamais sentir
o que quer que fosse exceto o remo nas mãos e os grilhões nas pernas e o chicote que
açoitava suas costas quando eles ficavam cansados. Pensou neles em todos os pastores e
roceiros e caixeiros e balconistas que tinham sido arrancados de repente de suas vidinhas
que tinham sido jogados naqueles barcos e ficado ali longe de casa e da família e da terra
natal até desfalecer sobre os remos e morrer e ser lançados ao mar para tocar pela primeira
vez o ar fresco e a água limpa. Pensou neles e pensou eles tinham mais sorte que eu eles
podiam se mexer podiam ver uns aos outros estavam mais perto de viver do que eu e não
estavam encarcerados com tanta segurança.
Pensou nos escravos bem abaixo do nível da rua em Cartago antes de os romanos
chegarem e destruírem a cidade. Lembrou-se de ter lido em algum lugar do passado sobre
os escravos cartagineses e o que eles faziam e como eram tratados. Como os grandes
senhores cartagineses querendo alguém para proteger seus tesouros buscavam um rapaz
saudável e arrancavam seus olhos com estacas afiadas para que ele não visse para onde
era levado e assim não soubesse a localização dos tesouros. Então eles levavam o coitado
do cego pelas passagens subterrâneas até a porta do salão do tesouro. Ali eles
acorrentavam-lhe um braço e uma perna a uma porta e um braço e uma perna à parede de
maneira que para alguém entrar o selo teria que ser rompido e o selo era o corpo vivo e
respirante de um homem. Pensou nos escravos cartagineses na escuridão do subsolo cegos
e acorrentados e julgou que eram sujeitos de sorte. Eles morriam depressa não havia
ninguém ali para cuidar deles para se assegurar de que o sopro da vida persistisse em seus
corpos até quando fosse possível. Eles agonizavam mas morriam logo e mesmo em sua
agonia podiam se sustentar em duas pernas podiam forcejar contra as correntes. Podiam
ouvir e quando alguém falava quando algum nobre importante descia ao salão do tesouro
eles podiam ouvir o som abençoado de uma voz humana.
Pensou nos escravos que construíram as pirâmides milhares deles dezenas de milhares
deles gastando a vida toda para erigir um monumento morto para um rei morto. Pensou
nos escravos que lutavam uns com os outros no Coliseu em Roma para a diversão de
figurões que sentavam nos camarotes e moviam o polegar para cima ou para baixo para
dar aos escravos a vida ou a morte. Pensou nos escravos que desobedeciam – orelhas
cortadas mãos decepadas línguas clamando por misericórdia no momento mesmo em que
eram arrancadas pela raiz para que nenhum segredo fosse revelado. Zés-ninguém do
mundo todo fuzilados afogados apunhalados crucificados escaldados açoitados até a morte
queimados empalados – todas essas coisas eram a sina de escravos a sina do zé-ninguém a
sina de homens como ele. Só que os escravos sempre podiam morrer e ele não e ele estava
muito mais mutilado que qualquer escravo que já vivera. No entanto ele era um deles fazia
parte deles era também um escravo. Também ele tinha sido posto a serviço de outros sem
seu consentimento. Também ele fora enviado a um país estrangeiro distante de sua terra
natal. Também ele fora forçado a lutar contra outros escravos de sua própria espécie num
lugar estranho. Também ele tinha sido mutilado e marcado para sempre. Também ele era
por fim um prisioneiro na cela mais apertada de todas a cela de seu próprio horrível corpo à
espera apenas do alívio da morte.
Deus nos ajude pensou ele deus ajude a todos nós os escravos. Por centenas e milhares
de anos temos batido nossas cabeças nós os escravos temos batido desde as profundezas
de nossas prisões. Todos nós todos os zés-ninguém todos os escravos desde o princípio dos
tempos batendo batendo batendo…
Um homem entrara no quarto um homem com passos pesados. O homem veio até a
cama e afastou as cobertas e começou a cutucar seu corpo. Era o médico. Ele imaginou a
enfermeira procurando o médico e dizendo aquela coisa lá no quarto aquela coisa está
sempre batendo a cabeça no travesseiro. Fico nervosa achando que ele precisa de alguma
coisa. Venha dar uma olhada na coisa e tente fazê-la parar de se debater. Então o médico
veio e agora o estava cutucando. Quando as cutucadas acabaram o médico tirou o tubo da
sua garganta e ele sentiu um ligeiro sufocamento como sempre acontecia quando tiravam
o tubo para limpar. O médico pôs o tubo de volta no buraco e ficou ali quieto sem fazer
nada.
Durante esse tempo todo ele continuou batendo a cabeça e agora que o médico estava
quieto ele batia com muito mais força. Era até possível que o médico viesse a entender o
que ele estava tentando fazer. Sentiu a vibração dos passos do médico indo até a cômoda e
voltando. Sentiu uma coisa fria e úmida contra o coto de seu braço esquerdo. Em seguida
sentiu uma dorzinha aguda como a picada de uma agulha e soube que o médico estava
injetando alguma coisa em seu braço.
Antes de começar a sentir os efeitos ele já sabia que era algum tipo de narcótico.
Estavam tentando calá-lo. Tinham tentado aquilo o tempo todo sabiam perfeitamente o
que ele estava fazendo ninguém dotado de cérebro poderia deixar de perceber. E ele sabia
o que estavam fazendo também. Estavam tramando contra ele lá fora na escuridão. Tinham
tentado por todos os meios fazê-lo ficar quieto mas ele os desafiara e continuara batendo a
cabeça. Então agora eles o dopavam. Obrigavam-no a ficar em silêncio. Não queriam ouvi-
lo. Não estavam interessados em coisa alguma só em tirá-lo da consciência. Ele sacudiu a
cabeça freneticamente de um lado para outro para dizer-lhes que não queria ser dopado.
Então a agulha foi retirada e ele soube que de nada importava o que ele queria ou deixava
de querer.
Decidiu continuar se debatendo a despeito deles para tentar fortalecer sua determinação
a tal ponto que até mesmo quando a droga o dominasse até mesmo quando ele
adormecesse por completo sua força de vontade permanecesse acesa durante seu sono e
ele continuasse batendo a cabeça como quando a gente liga uma máquina e ela continua a
funcionar depois que a gente vai embora.
Mas um nevoeiro baixou sobre sua mente um torpor tomou posse de sua carne de tal
modo que a cada vez que ele erguia a cabeça do travesseiro parecia-lhe estar erguendo um
peso enorme. O peso aumentava e os movimentos ficavam mais lentos e sua carne parecia
cada vez mais a carne de um morto e sua mente parecia encolher e murchar à medida que
a sonolência a subjugava. No último momento de raciocínio ele estava dizendo a si mesmo
eles venceram de novo mas não podem vencer para sempre não podem para sempre oh
não não para sempre…
XVI

AS COISAS COMEÇARAM AOS POUCOS a mudar a entrar em círculos largos e nebulosos a dissolver-se umas nas
outras. Parecia que ele estava relaxando todos os músculos do corpo relaxando o cérebro. A
cama parecia mais macia do que nunca. O travesseiro na nuca era como uma almofada de
nuvem. As cobertas sobre sua barriga e tórax eram cobertas de seda de teia de aranha de
ar suave e morno. Não havia nada embaixo nem em cima dele nem à sua direita nem à sua
esquerda. Sua pele repousava frouxa e indolente na sua carne e mesmo seu sangue parecia
em repouso não mais bombeado pelo coração mas mantido quente e líquido e quieto em
suas veias.
E no entanto em meio a essa enorme quietude havia movimento. Aquela coisa
perfeitamente imóvel que era ele seu corpo e sua mente estava se movendo devagar por
um mundo sem vento. Só que não era o mundo. Era simplesmente espaço uma espécie de
espaço refulgente pelo qual ele se movia não sabia dizer se depressa ou devagar porque
não havia ar que se agitasse à sua passagem. Era o tipo de movimento que uma estrela
devia fazer uma estrela sem atmosfera ou vida ao perfazer seu círculo constante através do
nada.
E havia cores por toda parte. Não cores cruas nem violentas mas gradações como as que
o céu assume no crepúsculo os rosas e azuis e violáceos do interior de uma concha
subitamente crescida maior que o céu e tudo o que há dentro. As cores flutuavam em sua
direção flutuavam para dentro dele dissolviam-se através das partículas de seu corpo e
passavam para dar lugar a mais cores mais e mais e mais tão lindas tão maravilhosas tão
grandes. Havia cores refrescantes cores de aroma suave cores que produziam uma leve
música sublime ao passar por ele. Ele podia ouvir a música por toda parte e no entanto ela
não era ruidosa. Era um tipo de música tão sutil que quase nem era som algum. Era
simplesmente uma parte do espaço um som que era a mesma coisa que o espaço e a cor
um som que não era coisa alguma e ao mesmo tempo era mais real que a carne e o sangue
e o aço. A música era tão suave tão tilintante e sublime que parecia uma parte dele tanto
quanto as menores fibras de seu corpo. A música era como um fantasma branco à luz do
dia. Ele e o espaço e as cores e a música eram uma coisa só. Seu corpo deslizara para
dentro daquilo tudo como fumaça céu adentro e agora ele assim como o espaço as cores a
música era uma porção de tempo.
Então a música parou e fez-se silêncio. Não era o simples silêncio que às vezes se faz
quando a gente está no mundo o silêncio que é meramente a ausência de ruído. Não era
sequer o silêncio que existe para as pessoas surdas. Era um pouco como o silêncio que a
gente escuta quando põe uma concha junto ao ouvido o silêncio do tempo em si que é tão
grande que produz um ruído. Era um silêncio como trovão ao longe. Era um silêncio tão
denso que deixava de ser silêncio. Converteu-se de uma coisa em uma ideia e no fim era só
medo.
Ele ficou ali suspenso em silêncio esperando a coisa acontecer. Não sabia que coisa seria
essa mas sabia que iria acontecer. Era como se ele já tivesse visto a nuvem de fumaça de
uma explosão de dinamite e agora esperasse pelo som. Então o silêncio foi despedaçado
pela sua queda. Sua respiração foi empurrada de volta aos pulmões pela pressão do ar que
ele atravessou ao cair. Estava caindo um milhão de vezes mais depressa que uma estrela
cadente caindo mais depressa que a velocidade da luz caindo através de dez mil anos e
dez mil mundos com as coisas se tornando mais ruidosas e mais rápidas e mais terríveis.
Grandes globos maiores que o sol maiores que toda a Via Láctea chegavam a ele tão
depressa como cartas sendo embaralhadas no maço. Vinham até ele e o atingiam em plena
cara e explodiam como bolhas de sabão para dar lugar ao próximo e ao próximo. Seu
cérebro estava trabalhando tão rápido que ele tinha tempo de se esquivar de cada globo e
depois que este explodia de se preparar para o choque do globo seguinte.
Começou a girar mais rápido que a hélice de um avião e o giro fazia ruídos na sua
cabeça. Ouvia vozes todas as vozes do mundo vozes que tinham braços e pernas vozes que
se estendiam para agarrá-lo e vozes que chutavam enquanto ele passava a toda
velocidade. As coisas passavam tão rápido diante de seus olhos que ele não conseguia ver
nada exceto luz. Quando viu a luz ele soube que nada era real porque as coisas reais
produzem sombras e tapam a luz.
E então todos os sons pareceram concentrar-se numa voz que enchia o mundo inteiro.
Deu ouvido à voz porque ela tinha interrompido sua queda. Ela se tornara tudo – o mundo e
o universo e o nada em torno deles. Era uma voz de mulher chorando e ele já a ouvira
antes.
Onde está meu menino onde está meu menino? Ele é menor de idade será que não estão
vendo? Ele chegou de Tucson não faz mais que uma semana. Jogaram-no na prisão por
vadiagem e eu vim de longe para tirá-lo daqui. Eles só o deixam sair se ele se alistar no
exército. Ele tem só dezesseis anos só que é grande e forte para a idade sempre foi. É
novinho demais estou dizendo é só um menino. Onde está meu menininho? Ele acabou de
chegar de Tucson vejam só e eu vim para levá-lo para casa.
A voz sumiu aos poucos mas agora ele sabia de tudo. Aquele menino era Cristo. Não
havia dúvida quanto a isso. O menino era Cristo e ele viera de Tucson e agora sua mãe
vinha buscá-lo e chorava por ele. Era capaz de ver Cristo vindo de Tucson tremulando nas
ondas de calor do deserto com seu manto púrpura drapejando ao vento como numa
miragem. Cristo veio direto até a estação de trem e sentou-se com eles.
Aparentemente havia uma salinha em algum lugar junto à estação e eles estavam
jogando vinte e um esperando o trem partir. Ele não conhecia os outros sujeitos e eles não
o conheciam mas isso não parecia fazer a menor diferença. Do lado de fora as multidões
faziam o maior barulho e as bandas tocavam e ali estava ele com quatro ou cinco sujeitos
numa salinha silenciosa e eles estavam jogando vinte e um quando Cristo chegou de
Tucson e entrou e andou até eles. O sujeito de cabelo ruivo ergueu os olhos e perguntou
você joga vinte e um? e Cristo disse claro e o sujeito que parecia um sueco disse então
puxe uma cadeira. Apostas na mesa disse o ruivo e certifique-se de apresentar suas fichas
antes de virada a primeira carta. Cristo disse o.k. e vasculhou seu bolso e tirou um quarto
de dólar e o depositou sobre a mesa.
O ruivo começou a dar as cartas e todos começaram a olhar as cartas exceto o sueco que
resmungou e disse Cristo eu queria muito tomar um drinque aqui. Cristo deu um sorrisinho
e disse por que você não bebe se está querendo tanto? O sujeito que parecia sueco virou e
olhou para Cristo e então baixou os olhos para a mesa e claro que havia ali um copo de
uísque pousado bem ao lado de sua mão direita. Então todos baixaram os olhos cada um
para sua mão direita e viram que tinham cada um seu copo de uísque ali. Todos ergueram
os olhos para Cristo e o ruivo disse raios como é que você fez isso? Cristo apenas sorriu e
disse posso fazer qualquer coisa me dê a carta mas sem afobação. O sujeito da banca deu-
lhe a carta e Cristo fez uma expressão de que ela trazia más notícias. Em seguida empurrou
seu dinheiro em direção à banca. Nunca consigo fazer um doze disse ele numa voz
queixosa não entendo já que um doze não devia ser mais difícil de fazer do que um treze
não é mesmo? Não devia ser mas é disse o sujeito de cabelo ruivo. Não é nada disso isso é
besteira disse o sujeito que parecia sueco um doze é igual a qualquer outro número acima
dele só que melhor e qualquer um que disser o contrário é um tremendo supersticioso. Meu
deus disse um sujeitinho calado que vinha ganhando e agora bebericava o uísque este
troço é danado de bom experimentem. Tem mesmo que ser bom disse Cristo ainda olhando
para o seu dinheiro pousado na mesa é envelhecido dezesseis anos.
De repente o ruivo jogou suas cartas na mesa e se levantou esticando os braços e
bocejando. Bem ele disse estão chamando para o embarque lá fora tenho que ir. Todos
temos que ir. Serei morto no dia vinte e sete de junho e preciso dizer adeus a minha esposa
e meu filho. O menino tem só um ano e oito meses mas já é esperto como o diabo eu
queria vê-lo com cinco anos. Posso me ver sendo morto com toda a clareza. Acaba de
amanhecer está tudo fresco e agradável com um sol novinho em folha e o ar com um cheiro
bom. Estamos saindo da trincheira e àquela altura sou um sargento portanto saio na frente.
Justo quando ponho a cabeça por cima da beirada uma bala me atinge como um martelo.
Caio de costas na trincheira e tento dizer aos outros rapazes para seguir em frente sem
mim só que não consigo falar e eles saem assim mesmo. Fico lá estendido vendo apenas as
pernas deles a correr e escalar a trincheira e desaparecer. Esperneio e me contorço como
uma galinha por um minuto e depois me aconchego no chão de terra. Aquela bala me
acertou no pescoço portanto eu só me abraço ao chão serenamente e fico vendo o sangue
correr e em seguida estou morto. Mas minha esposa lá fora não sabe disso então preciso
dar adeus a ela como se achasse que iria voltar.
Diabos disse o sujeitinho que vinha ganhando você fala como se fosse o único. Todos nós
vamos ser mortos estamos aqui para isso. Cristo já está morto e o sueco grandão ali vai
pegar gripe e morrer no acampamento e você no esconderijo vai ser explodido lançado tão
alto pelos ares que ninguém vai ter sequer uma lembrança e quanto a mim vou ser
soterrado no desmoronamento de uma trincheira e morrer sufocado me digam se não é um
jeito infernal de morrer.
De repente todos ficaram em silêncio à escuta e o sujeito de cabelo ruivo disse o que é
isso? Em algum lugar no ar bem acima deles havia música. Era uma música elevada e sutil
como um espectro atravessando a luz do sol. Era uma música tão alva tão linda tão suave e
no entanto sonora o bastante para que todos eles a ouvissem. Era música como a de uma
brisa branda e lenta que sopra para além do lugar onde há ar onde há apenas espaço. Era
música tão suave tão vibrátil tão doce que fez todos eles tremerem ali em pé ao escutá-la.
É a música da morte disse Cristo a sublime e diáfana música da morte.
Todos ficaram imóveis por um minuto e então o sujeitinho que vinha ganhando disse que
raio esse outro sujeito está fazendo aqui ele não vai morrer. E então todos olharam para Joe.
Por um minuto ele não soube o que dizer sentia-se como alguém que foi a uma festa sem
ter convite e então pigarreou e disse talvez você tenha razão mas vou ficar como se
estivesse morto. Veja vou ter meus braços e pernas arrancados e meu rosto estraçalhado de
modo que não vou poder ver nem ouvir nem falar nem respirar e vou seguir vivendo mesmo
estando morto.
Todos olharam para ele e finalmente o sujeito que parecia sueco disse Jesus ele está
muito pior do que nós. Houve mais um pouco de silêncio e todos ficaram olhando para o
sujeito de cabelo ruivo como se ele fosse o chefe. Raios disse o ruivo depois de encará-lo
firmemente está tudo certo com ele vamos deixá-lo em paz. Então saíram todos em direção
ao trem.
Ao sair da sala rumo ao trem o sujeitinho que vinha ganhando disse a Cristo você vai com
a gente Cristo? E Cristo disse só uma parte do caminho não até muito longe pois tenho
uma porção de trens para visitar uma porção de mortos você nem imagina quantos. Então
eles embarcaram no trem e Cristo deu um salto ágil gingou o corpo e num instante estava
em cima da locomotiva. Quando o trem deu a partida todo mundo achou que era o apito do
trem que fazia aquele alarido mas não aquele barulho todo era Cristo gritando empoleirado
lá. Então o trem partiu veloz e ruidoso com Cristo empoleirado na locomotiva com as
roupas drapejando no ar e gritando a plenos pulmões. O trem ia tão rápido que tudo o que
dava para ver olhando pela janela era uma linha entre o céu e a terra e nada mais.
Em pouco tempo o trem estava no meio de um grande deserto um deserto quente
amarelo que tremulava sob o sol. Bem ao longe havia uma nuvem – uma névoa flutuando
entre o céu e a terra mas mais perto da terra. E dessa névoa saía Cristo vindo de Tucson.
Cristo flutuava lá sobre o deserto com seu manto púrpura esvoaçando e as ondas de calor
flutuando ao seu redor.
Contemplando Cristo ali sobre o deserto ele não aguentava mais permanecer no trem.
Homens mortos iam naquele trem homens mortos ou homens vivos ele não era nem uma
coisa nem outra de modo que não tinha nada que estar ali. Não tinha nada que estar em
parte alguma não havia lugar para ele estava esquecido e abandonado e deixado sozinho
para sempre. Então ele saltou do trem pela janela e começou a correr em direção a Cristo.
O trem do pesadelo prosseguiu atravessando a luz do sol com seu apito berrando e os
mortos dentro dele dando risada. Mas ele estava sozinho no deserto correndo correndo até
seus pulmões chiarem correndo em direção a Cristo que flutuava no calor com seu manto
púrpura. Correu e correu e correu e finalmente chegou a Cristo. Então atirou-se na areia
ardente aos pés de Cristo e começou a chorar.
XVII

DESPERTOU COMO UM HOMEM DESPERTA de uma bebedeira – com o cérebro anuviado e confuso nadando lenta e
dolorosamente de volta à realidade. Despertou batendo a cabeça contra o travesseiro.
Aquela percussão agora se tornara de tal maneira parte integrante do despertar que o
primeiro lampejo de consciência já o encontrava batendo a cabeça e mais tarde quando a
exaustão o dominava e sua mente começava a se apagar e o sono tomava conta de seu
corpo a cabeça ainda batia. Ficava deitado ali sem pensar em coisa alguma com o cérebro
doendo e latejando e a cabeça batendo no travesseiro. SOS. Socorro.
E então quando sua mente se aguçou e começou a pensar em vez de apenas sentir ele
parou de bater a cabeça e ficou quieto. Algo muito importante estava acontecendo. Ele
tinha uma nova enfermeira diurna.
Percebeu no momento em que a porta se abriu e ela começou a caminhar pelo quarto.
Seus passos eram leves enquanto os da enfermeira diurna habitual os da sua velha
eficiente expedita enfermeira habitual eram pesados. Foram necessários cinco passos para
trazer a novata à beira da cama. Isso significava que ela era mais baixa que a enfermeira
habitual e provavelmente mais jovem também porque a própria vibração de seus passos
parecia alegre e animada. Até onde era capaz de lembrar era a primeira vez que a
enfermeira diurna habitual não aparecia para cuidar dele.
Permaneceu quieto e muito tenso. Era como se aprendesse um novo segredo como abrir-
se a um novo mundo. Sem um segundo de hesitação a nova enfermeira afastou as
cobertas. E então como todas as anteriores ela ficou imóvel por um momento à beira da
cama. Ele sabia que ela o estava observando fixamente. Sabia que deviam ter lhe contado
o que iria encontrar. No entanto a visão dele era provavelmente tão pior do que qualquer
descrição que ela não podia fazer outra coisa naquele primeiro momento senão encará-lo
paralisada. Então em vez de jogar depressa as cobertas de volta sobre ele como algumas
faziam ou de sair correndo do quarto ou de ficar ali chorando e deixando cair as lágrimas
no seu peito ela pousou a mão na testa dele. Ninguém tinha feito isso antes daquela
maneira. Talvez ninguém tivesse sido capaz de fazê-lo. Era como colocar a mão perto de
um câncer aberto tão terrível tão nauseante que ninguém suportaria sequer a ideia quanto
mais a ação. No entanto aquela nova enfermeira aquela enfermeira com o passo leve e
alegre não tinha medo.
Ela pousou a mão em sua testa e ele sentiu que a mão dela era jovem e pequena e
úmida. Ela pousou a mão em sua testa e ele tentou encrespar a pele para lhe mostrar o
quanto gostava do jeito como ela fizera aquilo. Era como descansar depois de um longo
período de trabalho. Era quase como dormir era tão prazeroso e calmante ter a mão dela na
sua testa.
Então ele começou a pensar nas possibilidades daquela nova enfermeira. Por alguma
razão a anterior tinha ido embora. A enfermeira anterior nunca entendera o que ele estava
tentando fazer nunca entendera que ele estava tentando com cada partícula de sua força
falar com ela. Ela nunca dera atenção alguma à agitação dele exceto para tentar
interrompê-la. Mas ela se fora e em seu lugar estava agora uma nova enfermeira uma
jovem nova enfermeira que não tinha medo e era amável. Por quanto tempo ele a teria
ninguém poderia dizer. Talvez ela saísse do quarto e não voltasse nunca mais. Mas no
momento ele dispunha dela e sabia que de algum modo ela sentia o que ele sentia caso
contrário não teria pousado a mão tão depressa em sua testa. Se ele pudesse bater a
cabeça com muita firmeza com muita clareza para ela talvez ela compreendesse o que
ninguém mais tinha considerado digno ao menos de se tentar compreender. Talvez ela
entendesse que ele estava falando. A velha enfermeira talvez retornasse e ele talvez nunca
mais ouvisse de novo os passos da nova. Se aquela nova enfermeira fosse embora sua
última chance iria com ela. Ele passaria o resto da vida batendo a cabeça batendo batendo
sem que ninguém entendesse que ele estava tentando operar um milagre. A nova
enfermeira era sua chance de redenção sua única e minúscula oportunidade em todas as
horas e semanas e anos de sua vida.
Enrijeceu os músculos do pescoço e preparou-se mais uma vez para começar a bater a
cabeça contra o travesseiro. Mas outra coisa estranha estava acontecendo e o deteve. Ela
abrira a camisa de pijama dele de modo que seu peito agora estava nu exposto ao ar. Ela
passava a ponta do dedo na pele do seu peito. Por um momento ele ficou meramente
desconcertado incapaz de compreender o que ela fazia. Concentrando então toda a sua
mente na pele do peito ele começou a entender que o dedo dela não estava se movendo a
esmo. Estava traçando o mesmo desenho de novo e de novo. Ele sabia que havia algum
propósito por trás de tal repetição e ficou tenso e alerta para descobrir qual era. Como um
cão impaciente ouvindo as recomendações do dono e tentando esforçadamente ser bom e
compreender ele permaneceu rijo e concentrado no desenho que a enfermeira estava
fazendo.
A primeira coisa que notou quanto ao desenho era que ele não tinha curvas. Era todo
feito de linhas retas e ângulos. Começava com uma linha reta que subia e então descia
formando um ângulo e em seguida subia de novo formando outro ângulo e aí descia na
vertical e parava. Ela repetia o desenho uma e outra vez ora mais devagar ora mais
depressa ora devagar de novo. Às vezes ela fazia uma pausa depois de completar o
desenho e com o estranho entendimento que parecia ter brotado entre eles ele sabia que
as pausas eram pontos de interrogação sabia que ela estava olhando para ele e lhe
perguntando se tinha entendido e esperando sua resposta.
Cada vez que ela pausava ele balançava a cabeça lateralmente e então ela repetia o
desenho mais uma vez e no meio dessa paciente repetição a barreira entre eles de repente
desmoronou. Com um súbito ímpeto de compreensão ele entendeu o que ela estava
fazendo. Estava traçando a letra M na pelo do seu peito. Balançou depressa a cabeça
afirmativamente para dizer a ela que tinha entendido e ela deu tapinhas encorajadores na
sua testa como se dissesse você é notável você é maravilhoso como se esforça e como
aprende rápido. Então ela começou a traçar outras letras.
As outras vieram mais facilmente porque agora ele entendia o que ela estava fazendo.
Enrijeceu a pele do peito para poder sentir melhor a impressão do dedo dela. Algumas
letras ela precisava fazer só uma vez ele era rápido para captá-las. Veio a letra E e ele fez
que sim e a letra R e ele assentiu de novo então veio a letra Y e ele fez que sim e então
houve uma pausa mais longa. As letras restantes desaguaram em sua mente numa
corrente perfeita. Houve C e H e R e I e S e T e M e A e S e a coisa toda formou merry
christmas (feliz Natal).
Feliz Natal feliz Natal feliz Natal.
Agora ele tinha entendido. A velha enfermeira tinha partido para passar os feriados
natalinos longe dele e aquela enfermeira nova aquela jovem adorável linda compreensiva
enfermeira nova estava lhe desejando feliz Natal. Ele sinalizou freneticamente que sim em
resposta a ela e aquele seu sinal significava feliz Natal para você feliz Natal oh um
felicíssimo Natal.
Pensou consigo mesmo com uma espécie de felicidade histérica quatro anos talvez cinco
talvez seis anos não sei quantos mas estive sozinho ao longo de todos eles. Pensou todo o
meu esforço se foi todo o meu método de mensuração do tempo foi esquecido mas não
importa não estou mais sozinho. Os anos e anos e anos que ele passara sozinho e agora
pela primeira vez alguém rompia a barreira alguém conversava com ele alguém dizia feliz
Natal. Era como uma ofuscante luz branca no meio da escuridão. Era como um som grande
lindo no meio do silêncio. Era como uma enorme risada no meio da morte. Era Natal e
alguém tinha rompido a barreira e estava lhe desejando feliz Natal.
Ouviu o som de sinetas de trenó e o ruído da neve sulcada e viu velas nas janelas
brilhando sobre a neve calorosas e amarelas e havia coroas de azevinho com frutas
vermelhas aninhadas nelas como brasas vivas e havia um céu claro lá no alto com
estrelinhas branco-azuladas e havia uma sensação de paz e alegria e alívio porque era
Natal. Ele tinha sido trazido de volta ao mundo.
Feliz Natal feliz Natal feliz Natal.

Era a noite de Natal e por toda a casa nenhuma criatura se mexia nem mesmo um
camundongo. As meias penduradas com cuidado junto à chaminé na esperança de que o
Papai Noel logo estivesse ali…21

A cada Natal até onde ele se lembrava sua mãe tinha lido o poema. Mesmo depois que
ele já era crescido demais para acreditar em Papai Noel mesmo depois que já era um
homem feito de talvez dezesseis ou dezessete anos ela ainda lia o poema na noite de Natal.
No começo quando estavam todos juntos era maravilhoso ouvi-la lendo. Eles se reuniam na
sala da casa em Shale City a cada noite de Natal antes de ir dormir para ouvir sua mãe ler o
poema. Seu pai sempre trabalhava até tarde na loja atendendo os pedidos natalinos de
última hora mas às dez horas a loja fechava e seu pai voltava para casa. Estava frio e com
neve do lado de fora mas a sala era sempre muito aconchegante e o aquecedor a carvão de
ferro batido estaria refulgindo emitindo um rubor quentinho ao redor de sua base.
Elizabeth sendo muito pequena estaria na cama dormindo mas Catherine estaria ali com
seu pai e sua mãe e ele próprio. Catherine estaria de camisola e suas roupas estariam
numa pilha perto do aquecedor para que estivessem quentinhas quando ela se metesse
dentro delas na manhã de Natal. Eles não tinham lareira de modo que as costas de uma
cadeira serviam de apoio. Penduradas na cadeira estavam todas as meias deles do seu pai
da sua mãe as meiazinhas de bebê de Elizabeth as de Catherine e as dele próprio. Seu pai
estaria sentado em sua poltrona morris com Catherine aninhada em suas pernas. Sua mãe
estaria em outra cadeira com o livro aberto no colo. Por que razão sua mãe lia o poema no
livro ninguém sabia já que todos o conheciam de cor mas esse era o costume. Ele próprio
estaria no chão com os braços em torno das pernas dobradas olhando para a portinha do
aquecedor onde as chamas saltavam por trás do vidro de mica.

A lua no seio da neve recém-caída conferia um esplendor de meio-dia aos objetos cá


embaixo quando eis que diante dos meus olhos maravilhados surge um trenó em miniatura
e oito minúsculas renas…22

Nenhum deles jamais esqueceu o poema. Eram capazes de recitar a coisa toda a
qualquer momento do ano porque era o poema do Natal. Ao ouvirem o poema parecia que
um delicioso ar de mistério cobria a sala. Cada membro da família tinha um pequeno
esconderijo de presentes em algum lugar da casa longe dos outros. Era muito desonroso da
parte de um deles bisbilhotar na véspera de Natal de modo que ninguém o fazia mas não
havia problema em especular sobre onde os presentes poderiam estar escondidos.
O rosto de sua mãe ao ler parecia irradiar um cálido fulgor. Lá estava ela em sua própria
casa com sua família ao redor e estavam todos vivos e era noite de Natal e ela estava lendo
o poema que sempre lia. Era tão aconchegante tão protetor tão reconfortante estar em
casa na noite de Natal estar numa bela sala com um bom aquecedor sentir que de algum
modo havia um lugar na imensidão selvagem um lugar sempre seguro um lugar que nunca
poderia ser mudado nunca afrontado nunca invadido. E agora… pensava em sua mãe esta
noite… seu pai morto e ele longe e de novo uma noite de Natal. Ele se perguntava se em
algum lugar do mundo sua mãe naquele momento não estaria lendo o poema. Era quase
capaz de ouvir a voz dela vibrar de excitação ao chegar ao clímax.

Agora Corredora agora Dançarina agora Empinadora e Raposa – eia Cometa eia Cupido
eia Trovão e Relâmpago – rumo ao topo do alpendre ao alto da parede agora eia em
disparada corram corram corram todas…
Os olhos castanhos de Catherine se arregalavam desde seu refúgio nas pernas do pai
fitando sérios e ao mesmo tempo refulgindo com luzinhas de excitação. Uma névoa
encobria os olhos de seu pai como se ele tivesse se recolhido um pouco e imaginasse agora
a cena à sua própria maneira de adulto. O rosto da mãe estava animado sua voz triunfante
quando ela chegava à parte eletrizante em que o Papai Noel descia pela chaminé e fazia
seu trabalho balançando a pança com suas risadas. E então ele pousava um dedo ao lado
do nariz balançava a cabeça e lá ia de volta chaminé acima. Subia ao telhado onde a gente
quase podia ouvir o raspar dos pequenos cascos das renas ansiosas para partir para a
próxima casa.

Saltou ao seu trenó e para sua equipe deu um assobio e assim partiram eles voando como
uma flor de cardo. Mas o escutei exclamar enquanto sumiam de vista feliz Natal a todos e a
todos uma boa noite…23

Sempre ficavam sentados em silêncio por um momento depois que a voz de sua mãe
cessava. Ninguém dizia palavra porque ainda havia algo a acontecer. Sua mãe punha de
lado o livro de poemas e alcançava outro livro. Tinha um marcador na Bíblia e ela a abria na
página marcada e começava de novo a ler. Lia a história do Cristo criança do menino Jesus
e como ele nasceu numa manjedoura e como a estrela brilhou sobre Belém e como os reis
magos viajaram até ele e como todos os anjos do céu se aproximaram da terra naquela
noite para cantar em louvor à paz e ao Cristo menino e à boa vontade entre os homens.
Ele era capaz de ouvir a voz dela lendo de modo suave e reverente com as palavras
saindo como música de seus lábios. Era engraçado que ele próprio nunca tivesse lido a
história bíblica do Natal. Somente a ouvira quando sua mãe lia para ele. Não era capaz de
se lembrar das palavras mas ainda podia ver as imagens que costumavam vir-lhe à mente
quando sua mãe lia. Sabia a história de cor.
Todas as pessoas estavam se dirigindo a Belém porque era época dos tributos e elas
tinham que aparecer na corte e registrar-se e pagar. Chegou gente durante todo o dia e
agora era de noite e a cidade estava abarrotada. Entre os recém-chegados estavam um
homem de nome José que era carpinteiro na cidade de Nazaré.
José tivera uma porção de tarefas a realizar antes de se pôr a caminho e Maria sua esposa
estava grávida e não podia ajudá-lo por isso eles estavam atrasados. Já estava escuro
quando chegaram aos arredores de Belém. José conduzia o burro do casal e Maria a pobre
moça de olhos grandes ia montada e esperava que se assentassem logo porque já estava
sentindo as pontadas e sabia que não teriam muito tempo. Era seu primeiro filho e ela não
sabia muito bem o que fazer quando chegasse a hora.
Tão logo entraram na cidade José começou a fazer a ronda das hospedarias baratas. Ele
não era muito bom em ganhar dinheiro e eles tinham apenas o bastante para pagar os
tributos e uma diária de hospedagem. Foram de uma hospedaria a outra com Maria ficando
cada vez mais assustada à medida que suas dores aumentavam mas as hospedarias
estavam todas lotadas porque havia já naquele tempo uma infinidade de pessoas pobres e
elas tinham chegado antes de José aos locais mais baratos. Finalmente eles contaram seu
dinheiro e José decidiu tentar um hotel. Podiam conseguir um quarto de fundos e talvez ele
pudesse fazer algum trabalho por ali pela manhã caso o dinheiro não fosse suficiente.
Mas o hotel também estava lotado.
Então José começou a falar sério com o gerente do hotel. Veja bem disse ele eu venho de
muito longe e estou com minha esposa e ela vai dar à luz. Olhe só para ela lá fora em cima
do burro veja é apenas uma menina e está assustada. Para começar ela não deveria ter
vindo só que eu não podia deixá-la sozinha e não consegui arranjar quem ficasse com ela
durante a noite porque está todo mundo pagando os tributos. Tenho que encontrar um
lugar para ela dormir e ponto final.
O gerente do hotel voltou os olhos para a escuridão do lado de fora e viu o rosto branco
angustiado de Maria. É uma menina bonita ele pensou e também está assustada como
disse seu marido. Vai ser uma tremenda confusão se ela tiver o bebê aqui no recinto gente
que não tem recursos nem devia ter filhos mas o que se pode fazer quanto a isso? Tudo
bem ele disse a José acho que posso encontrar um lugar para vocês. Está vendo aquela
passagem ali adiante? Então indo até o fim dela vocês chegam ao celeiro. Há uma
manjedoura na outra ponta. Vou mandar um dos rapazes jogar um pouco de feno no chão e
vai ficar confortável. Não me importo de lhe dizer que espero que ela não tenha seu bebê
esta noite porque se ela gritar vai incomodar meus hóspedes e são todos gente de alta
classe incluindo três senadores romanos. Mas vão lá.
José agradeceu e caminhou em direção a Maria. Ah eu ia me esquecendo gritou para ele
o gerente do hotel não acenda nenhum fogo lá no celeiro porque meu seguro diz que é
proibido e não posso me dar ao luxo de ter o seguro cancelado. José gritou de volta que
tomaria cuidado e o gerente entrou de novo no quentinho e ficou em pé diante da lareira e
pensou é uma lástima essas pessoas tendo filhos por aí o lugar até que é bom mas a noite
está gélida espero mesmo que ela não me arranje confusão.
Lá na manjedoura José acendeu uma lamparina e preparou uma cama macia de feno e
Maria deitou-se nela e teve seu filho. Era um menino. Embrulharam-no na manta que
tinham trazido especialmente para isso e Maria que era uma moça forte e saudável segurou
o bebê com força contra seu corpo. Eu tinha quase certeza de que seria um menino ela
disse a José. Como vamos chamá-lo? perguntou José. Acho que eu gostaria de chamá-lo de
Jesus disse ela. Baixou por um momento o olhar para o bebê e em seguida encarou José
todo o pavor tinha sumido dos olhos dela e havia um sorriso em seus lábios.
Mas José baixando os olhos para os dois não sorria. Maria notou isso e disse José qual é o
problema você não está contente é um belo menino veja suas mãos gordinhas por que você
não sorri? E José disse há uma luz em torno da cabeça de nosso bebê uma aura que é suave
como o luar. Maria concordou com a cabeça como se não estivesse nem um pouco surpresa
e disse acho que deve haver uma luz como essa ao redor da cabeça de todos os bebês
recém-nascidos pois eles acabam de vir do céu. E José disse numa espécie de voz
angustiada como se tivesse de repente perdido alguma coisa há uma luz ao redor da sua
cabeça também Maria.
Nas colinas para além de Belém um pastor de ovelhas estava tentando repousar um
pouco. As ovelhas estavam todas deitadas e tinha havido tamanho rebuliço em Belém com
toda aquela gente vindo de todas as direções que ele estava seguro de que os lobos tinham
sido afugentados para as colinas portanto elas não correriam perigo se ele tirasse uma
soneca. Lá estava ele dormindo quando despertou de súbito com uma luz brilhando em seu
rosto. Abriu os olhos e espiou em volta. Por um minuto não conseguiu ver coisa alguma
porque estava ofuscado pela luz. Quando finalmente deu por si viu uma estrela suspensa
no céu sobre Belém uma estrela tão próxima que quase dava para estender o braço e tocá-
la com a mão e tão resplandecente que iluminava a cidade toda. As paredes e os telhados
de Belém destacavam-se nítidos e brancos no sopé da colina e em torno de si ele podia ver
as ovelhas como pequenas pelotas de prata sobre a terra.
Então ouviu sons na estrada e desviou os olhos para a esquerda. Contornando a colina
onde a estrada se voltava na direção de Belém vinham três camelos com três viajantes. O
pastor de ovelhas deduziu por suas roupas que eram estrangeiros. Podia ver os adornos de
prata de suas selas refletindo a luz da estrela sobre Belém. Observou-os por um momento
pensando que eles pareciam abastados demais para ter de pagar tributos e então ouviu a
música. O ar foi tomado por anjos cantando à luz estelar. Naquela noite eles cantavam na
cidade de Belém nasceu um menino que há de salvar o mundo. Ele é o príncipe da paz e o
filho de deus e seu nome é Jesus. Paz na terra aos homens de boa vontade. Rejubilai-vos
todos e cantai com os anjos pois esta noite um salvador nasceu. Paz paz paz na terra aos
homens de boa vontade.
O pastor de ovelhas que não estava habituado a anjos cantando no céu sobre o lugar
onde ele trabalhava e portanto percebeu que devia ser algum tipo de milagre ajoelhou-se e
baixou a cabeça em oração. Não ergueu os olhos por um longo tempo mesmo temendo que
todo aquele barulho pudesse acordar suas ovelhas e o obrigasse a passar metade da noite
recolhendo-as de novo.
Bem longe em Roma um homem num palácio agitava-se em seu sono. Ele quase
despertou e em seguida caiu de novo no sono perguntando-se em seus sonhos por que
estava tão nervoso. Na manjedoura em Belém Maria ouvia os anjos e não parecia sentir-se
tão feliz como quando viu seu filho pela primeira vez. Encarou os três magos que tinham
vindo com presentes. Abraçou mais forte seu bebê. Os olhos dela estavam cheios de dor e
temor por seu menino.
XVIII

QUANDO FINALMENTE CONSEGUIU afastar da mente pensamentos sobre Natal sobre feliz Natal ele começou a
bater de novo a cabeça. Só que desta vez ele batia firmemente batia com vigor batia cheio
de esperança pois percebia que aquela enfermeira nova aquela adorável enfermeira nova
estava pensando com tanto afinco quanto ele e na mesma coisa. Ele sabia tão claramente
quanto se ela lhe tivesse dito que ela estava determinada a derrubar a barreira de silêncio
que se erguia entre ele na qualidade de homem morto e ele na qualidade de homem vivo.
Uma vez que ela já havia encontrado um meio de falar com ele ele sabia que ela prestaria
atenção quando ele tentasse falar com ela. As outras tinham estado ocupadas demais ou
cansadas demais ou não eram espertas o bastante para ver o que ele estava fazendo.
Tinham tomado suas batidas de cabeça por um hábito nervoso por uma doença por um
capricho infantil por um sintoma de insanidade por qualquer coisa menos o que de fato era
por qualquer coisa menos um grito saído da escuridão uma voz do mundo dos mortos um
apelo vindo do silêncio em busca de amizade e de alguém para conversar. Mas a nova
enfermeira o entenderia e o ajudaria.
Bateu com muito cuidado muito devagar para mostrar a ela que havia um método no que
estava fazendo. Assim como ela repetira tantas vezes o desenho da letra M no seu peito ele
agora mandava seu sinal de angústia de volta para ela. Mas devagar… bem devagar. Ponto-
ponto-ponto traço-traço-traço ponto-ponto-ponto. SOS. Socorro. Repetiu inúmeras vezes. De
vez em quando fazia uma pausa depois de completar o sinal. Aquilo era seu ponto de
interrogação exatamente como as pausas dela o tinham sido. Ele parava e tentava fazer
todas as partes visíveis dele – o cabelo e metade da testa acima da máscara – assumirem
um ar de expectativa. Então ao não obter sinal algum dela ele recomeçava. E durante o
tempo todo em que batia a cabeça estava consciente da presença dela junto a ele
observando e pensando.
Depois de um longo período esperando observando e pensando ela começou a fazer
coisas. E as fazia de modo muito cuidadoso de modo tão cuidadoso que até mesmo seus
movimentos pareciam pensativos. Primeiro ela deslizou o urinol por baixo das cobertas até
tocar o corpo dele de forma reconhecível. Ele abanou a cabeça negativamente. Ela retirou o
urinol e deslizou o penico até seu corpo. Ele voltou a abanar a cabeça. Ela retirou o penico.
Agora não havia hesitação entre um e outro movimento dela. Parecia que ela planejava
cada movimento antes de terminar o anterior. Estava trabalhando de modo hábil e
inteligente para eliminar uma a uma sem pausa entre elas todas as causas possíveis do
bater de cabeça dele. Ele sabia que durante o tempo em que esteve a seu lado observando
e pensando ela havia elaborado um plano e agora o colocava em ação com a menor
margem de erro possível.
Ela afastou o cobertor de cima dele deixando-o coberto apenas com um lençol. Ele
abanou a cabeça. Ela colocou o cobertor de volta e pôs outro por cima deixando-o mais
agasalhado do que antes. Ele voltou a fazer que não. Tinha parado de bater a cabeça e
agora esperava em estado de alerta que ela levasse a cabo seu plano. Ela tirou totalmente
as cobertas de cima dele e ajustou a posição do tubo de respiração em seu pescoço. Ele
abanou a cabeça. Ela deu um tapinha no curativo sobre o buraco no flanco do seu tronco.
Ele abanou a cabeça. Ele abanava a cabeça e ficava admirado consigo mesmo por manter a
sensatez necessária para isso mesmo estando tão tomado de excitação que mal conseguia
pensar. Ela ergueu a camisa de pijama que o cobria e começou a friccionar levemente seu
corpo. Ele abanou a cabeça. Ela o recobriu e foi até a cabeceira da cama. Roçou
suavemente sua testa. Ele abanou a cabeça. Ela afrouxou o cordão que prendia a máscara
ao seu rosto. Ele abanou a cabeça. Ela ergueu a máscara e agitou-a levemente para deixar
o ar entrar e para assegurar-se de que ela não estava grudando. Ele abanou a cabeça. Ela
recolocou as bandagens e parou tudo. Ele era capaz de senti-la em pé junto à cabeceira da
cama olhando atentamente para ele tão alerta e ansiosa quanto ele próprio. Ela fizera tudo
o que podia imaginar e agora se postava imóvel ali como se dissesse agora é sua vez por
favor faça um esforço para me dizer e eu farei um esforço para entender.
Ele começou de novo a bater a cabeça.
Parecia-lhe que tinha parado de respirar. Parecia que seu coração tinha parado e que o
sangue em seu corpo se tornara sólido. Parecia que a única coisa viva e movente em todo o
mundo era sua cabeça a bater bater bater contra o travesseiro. Ele sabia que era agora ou
nunca. Não havia como se iludir agora. Naquele minuto naquele instante tudo estava a
ponto de se decidir. Jamais voltaria a ter uma enfermeira como aquela. Ela podia virar as
costas e sair do quarto em cinco minutos e nunca mais voltar. Quando ela se afastasse
levaria junto consigo a vida dele levaria loucura e solidão e todos os seus gritos silenciosos
abandonados por deus e nunca saberia nunca escutaria os gritos. Ela simplesmente partiria
e dali em diante ele seria esquecido para sempre. Ela era solidão e amizade ela era vida e
morte e lá estava ela agora esperando imóvel que ele lhe dissesse o que queria.
Enquanto percutia estava rezando com o coração. Nunca dera muita atenção às orações
antes mas agora estava rezando estava dizendo oh por favor deus faça-a compreender o
que estou tentando lhe dizer. Estou sozinho há tanto tempo estou aqui há anos e anos
sufocando asfixiando morto-vivo como um homem que foi enterrado num caixão bem
fundo no subsolo e acorda e grita estou vivo estou vivo estou vivo deixem-me sair abram o
caixão tirem essa terra de cima por favor por misericórdia em cristo me ajudem só que não
tem ninguém para ouvi-lo então ele está morto. Sei que você está muito ocupado deus sei
que há milhões de pessoas rezando a você a cada minuto a cada hora por alguma coisa que
elas precisam sei que há uma porção de pessoas importantes que o procuram por causa de
coisas grandiosas que têm a ver com nações e continentes e talvez com o mundo inteiro.
Sei de todas essas coisas deus e não o culpo se você se atrasar com suas encomendas
afinal ninguém é perfeito mas o que eu quero é uma coisa tão pequena. Se eu estivesse lhe
pedindo uma coisa grande algo como um milhão de dólares ou um iate particular ou um
arranha-céu eu poderia entender caso não fosse atendido porque há um número limitado
de dólares de iates e de arranha-céus. Mas eu só quero que você pegue uma ideia
pequenininha na minha cabeça e a coloque na cabeça dela a um metro de distância no
máximo. É tudo o que eu quero deus. A ideia é tão pequena é tão leve que até um beija-flor
poderia carregá-la até uma mariposa uma mosquinha de luz até mesmo o ar soprado pela
boca de um bebê. Não tomaria tempo algum e nem tenho como lhe dizer o quanto
significaria para mim. Honestamente eu nem o incomodaria deus se não fosse uma coisa
tão pequena. É uma coisa tão pequena…
Sentiu o dedo dela em sua testa.
Fez que sim com a cabeça.
Sentiu o dedo bater quatro vezes na sua testa.
Essa é a letra H só que ela não sabe ela não tem ideia está apenas tamborilando para
testar se é isso que eu quero.
Ele concordou com a cabeça.
Acenou com tanta força que seu pescoço doía e sua cabeça parecia girar. Acenou com
tanta força que a cama toda balançou.
Oh obrigado deus ele pensou ela entendeu você colocou a ideia onde eu lhe pedi muito
obrigado. Então ele sentiu as vibrações decrescentes dos passos dela se afastando. Sabia
que ela estava saindo da sala para contar aos outros. A porta bateu à sua saída. O som
vibrou contra o estrado da cama como um choque elétrico. Ela se fora.
Repousou a cabeça surpreso ao perceber o quanto estava exausto. Era como se tivesse
trabalhado três noites seguidas no panifício durante o verão quando não conseguia dormir
nem um pouco durante o dia. Perdera o fôlego e a cabeça latejava e cada músculo de seu
corpo estava dolorido. No entanto por dentro ele era só confetes e flâmulas e banda de
música avançando em direção ao pleno sol. Tinha conseguido enfim a coisa estava feita e
mesmo estando perfeitamente imóvel perfeitamente exausto parecia-lhe que podia
contemplar o mundo inteiro abaixo de si. Não dava para expressar não dava para pensar
não dava sequer para imaginar o quanto estava feliz.
Era como se todas as pessoas do mundo todos os dois bilhões de habitantes tivessem
estado contra ele empurrando a tampa do caixão sobre ele jogando terra compacta sobre a
tampa colocando grandes pedras sobre a terra para mantê-lo enterrado. E no entanto ele
tinha emergido. Erguera a tampa do caixão removera a terra afastara para o lado o granito
como se fosse uma bola de neve e agora estava em cima da superfície estava em pé ao ar
livre estava saltando quilômetros a cada passo sobre a terra. Era como nenhuma outra
pessoa que já existira. Tinha realizado tanto ele era uma espécie de deus.
Os médicos que traziam os colegas para vê-lo não iriam mais dizer eis um homem que
sobreviveu sem braços pernas ouvidos olhos nariz boca isto não é incrível? Eles diriam eis
um homem capaz de pensar eis um homem deitado nesta cama com apenas um tronco de
carne e no entanto ele concebeu uma maneira de falar. Ouçam-no falar. Vejam a mente
dele não foi afetada ele fala como vocês e eu ele é uma pessoa ele tem uma identidade ele
é parte do mundo. E é parte do mundo simplesmente porque por conta própria talvez com
a única ajuda de uma oração e de um deus ele concebeu um modo de falar. Olhem para ele
e então permitam-me que lhes pergunte se isso não é ainda mais maravilhoso que todas as
esplêndidas operações que realizamos em seus cotocos?
Agora ele percebia que nunca havia sido feliz de fato em toda a sua vida. Tinha havido
momentos em que ele achava que era feliz mas nenhum deles era como aquele. Houve
uma vez em que passou o ano todo desejando um brinquedo de montar e quando chegou o
Natal ele o ganhou. Foi provavelmente seu momento de maior felicidade quando criança.
Houve a vez em que Kareen disse que o amava e essa foi sua maior alegria na vida antes de
a bomba explodir e arremessá-lo para fora do mundo. Mas aquela felicidade nova aquela
selvagem e frenética felicidade era maior do que qualquer coisa que ele pudesse imaginar.
Era uma coisa tão absoluta tão grandiosa tão estratosférica que o atingia quase como um
delírio. Suas pernas que tinham sido esmagadas e amputadas erguiam-se e dançavam.
Seus braços que tinham apodrecido ao longo daqueles cinco seis ou sete anos balançavam
fantasticamente livres dos lados de seu corpo para acompanhar o ritmo da dança. Os olhos
que tinham sido arrancados subiam ao alto do monte qualquer de entulho onde foram
parar e contemplavam todas as maravilhas do mundo. Os ouvidos que tinham sido
despedaçados e entupidos de silêncio vibravam de repente com música. A boca que fora
extirpada de seu rosto e agora estava cheia de pó voltava a cantar. Porque ele tinha
conseguido. Ele realizara o impossível. Falara a eles como deus a partir de uma nuvem a
partir de uma nuvem espessa e agora ele estava flutuando em cima da nuvem e era um
homem de novo.
E a enfermeira…
Era capaz de imaginá-la correndo pelas alas do hospital. Podia vê-la falando
atropeladamente como um fantasma ruidoso pelos corredores da morte. Podia senti-la
correndo de uma enfermaria a outra da enfermaria dos aleijados para a enfermaria dos
surdos para a enfermaria dos cegos para a enfermaria dos mudos chamando todo o povo do
hospital anunciando a todos em altos brados a maravilha que tinha acontecido. Podia ouvir
a voz dela ao contar-lhes que num quartinho distante do resto do hospital tinha sido
removida a tampa de um caixão tinha sido afastada a lápide de um túmulo e um morto
estava batendo a cabeça e falando. Nunca antes no mundo os mortos haviam falado desde
Lázaro e Lázaro não disse coisa alguma. Agora ele lhes diria tudo. Ele falaria do mundo dos
mortos. Falaria pelos mortos. Contaria todos os segredos dos mortos. E enquanto ele
pensava no que iria dizer a todos a enfermeira corria corria corria atravessando enfermarias
e corredores de andar a andar do subsolo ao sótão através de todo aquele grande edifício
do qual tinham saído tantos mortos. Ela tocava trombeta hospital afora como o anjo Gabriel
chamando a todos para vir ouvir a voz do morto.
Enquanto esperava pelas pessoas todas que ela tinha convocado a vir vê-lo ele podia
sentir a presença delas como um ator deve sentir a presença de mil pessoas naquele
momento que antecede a abertura das cortinas. Podia sentir as vibrações de seus passos
dúzias delas avançando em tropel para dentro do seu quarto. Podia pressentir sua cama
sacudindo com os empurrões das pessoas em sua afoiteza. As molas de sua cama pareciam
emitir um rangido constante à medida que seus visitantes mudavam de posição para obter
uma visão melhor do morto que estava falando. A temperatura do quarto ficava muito mais
quente ele quase podia sentir o calor dos corpos aglomerados na pele do pescoço e da
metade da testa que estava exposta acima da máscara.
Então a porta se abriu. Ele sentiu a vibração de um passo um passo leve o passo da
enfermeira. Esforçou-se para sentir o resto. Então vieram as vibrações de outro passo este
mais pesado passo de homem. Ele esperou pelos outros esperou pelo ranger das molas da
cama. Mas estava tudo quieto. Estava tudo imóvel. Não havia ninguém no quarto para
testemunhar o grande evento que estava para acontecer exceto ele próprio e sua
enfermeira e aquele estranho de passo pesado. Só eles três e ninguém mais. Sentiu uma
estranha pontada de frustração por considerarem de modo tão leviano um evento tão
grandioso. E então lembrou-se da coisa que era ainda mais importante que as multidões.
Ficou deitado ali imóvel e rijo mais igual a um morto do que jamais tinha estado antes.
Ficou lá parado esperando receber sua resposta.
Um dedo saiu da escuridão um dedo tão enorme que se chocou contra sua testa como o
golpe de um bate-estaca. Aquilo ecoou no interior de seu cérebro como um trovão dentro
de uma caverna. O dedo começou a batucar…

_ _ _ _ _._ .._ .
O Q U E
..._ _ _ _ _._. .
V O C E
_ _._ .._ . ._.
Q U E R

O que você quer?


XIX

QUANDO CAPTOU A PERGUNTA QUANDO teve a certeza de tê-la traduzido corretamente ele ficou muito quieto
por um momento. Era como estar sentado numa sala silenciosa à espera de alguém muito
importante por quem se esperou durante muito tempo e de repente ouvir uma batida na
porta. Por um minuto a gente hesita perguntando-se quem poderá ser e o que ele deseja e
por que razão veio. Por um segundo a gente se assusta porque embora tenha aguardado
durante anos não esperava de fato a batida na porta. Então a gente se levanta e vai abrir a
porta só um pouquinho no início para se preparar para o choque da decepção de talvez
descobrir que não é a pessoa que se esperava. Mas quando o sujeito descobre que o
impossível aconteceu e que o visitante por quem ele clamava chegou ele fica tão aliviado e
surpreso que não sabe exatamente o que dizer nem por onde começar.
O que ele queria?
Era como se alguém que ansiou durante muito tempo pelo mar e por um barco obtivesse
subitamente seu barco e então lhe perguntassem para onde queria ir. Ele nunca esperara
conseguir de fato o barco e passara todo o seu tempo sonhando com ele e não tivera tempo
para pensar o que faria depois de obtê-lo. Ele estava na mesma situação. Nunca tivera
esperança real de romper a barreira aquilo demorara tanto tempo e ele se esforçara tanto
para fazê-los entender. A coisa toda tinha sido apenas uma ideia tinha sido algo a que se
apegar para ter esperança e para agir e quanto mais difícil se mostrava mais importante se
tornava até que no fim ele estava quase enlouquecendo. Mas até uma hora antes nunca se
imaginara na situação de romper de verdade a barreira. Agora tinha conseguido. A coisa
estava feita e estavam perguntando o que ele queria. E ainda que tudo o que lhe restava da
vida parecesse depender da sua resposta ele não conseguia organizar os pensamentos de
modo a fazê-los ter sentido para si mesmo muito menos para os outros.
Então ele passou a pensar de outro jeito. Talvez não fosse tanto uma questão do que ele
queria mas do que eles podiam lhe dar. Era isso. E o que eles podiam lhe dar? Começou a
ficar ressentido com a pergunta em si e com o modo como a fizeram e com a ignorância
que estava por trás dela. Quem eles pensavam que eram e o que achavam que ele queria e
que eles podiam suprir? Será que achavam que ele iria pedir um sorvete de casquinha?
Achavam que pediria um bom livro e uma lareira acesa e um gato ronronando? Que pediria
para ir ao cinema e depois a uma lanchonete para tomar uma limonada geladinha?
Achavam que pediria aulas de dança ou um par de binóculos ou um curso de piano
imagine como os seus amigos ficariam surpresos?
Talvez achassem que ele queria um terno novo ou uma camisa de seda. Talvez
esperassem que ele fosse reclamar que a cama era um pouco dura e por favor tragam-me
um copo d’água. Talvez achassem que ele iria pedir uma mudança de dieta. O café que
vocês têm despejado no meu tubo ultimamente precisa de um pouco mais de açúcar o
sabor está um tanto amargo para o meu intestino portanto adicionem meia colher de
açúcar e mexam bem por favor. O cozido está aguado demais e precisa de mais tempero.
Acho que vou querer uma barra de chocolate também. Na próxima vez que vocês enfiarem
gororoba neste tubo coloquem também uma barrinha de chocolate ao leite não muito doce
não muito forte mas suave e um pouco derretido esperei todos esses anos e bati a cabeça
por todos esses meses porque gosto demais de chocolate ao leite.
Eles deviam saber o que ele queria aqueles cretinos filhos da mãe e deviam saber que
não podiam lhe dar o que queria. Ele queria as coisas que para eles eram naturais as coisas
que ninguém jamais poderia lhe dar. Queria olhos para ver. Dois olhos para ver a luz do sol
e a luz da lua e montanhas azuladas e árvores altas e formiguinhas e casas onde mora
gente e flores se abrindo ao amanhecer e neve no chão e riachos correndo e trens
chegando e partindo e gente caminhando e um filhote de cachorro brincando com um
sapato velho sacudindo-o nos dentes e recuando e fazendo cara feia e abanando o rabo e
levando o sapato muito a sério. Queria um nariz para poder sentir o cheiro da chuva e da
lenha queimando e da comida no fogão e o leve perfume que fica no ar depois que passa
uma garota. Queria uma boca para poder comer e falar e saborear e beijar. Queria braços e
pernas para poder trabalhar e caminhar e ser como um homem como uma coisa viva.
O que é que ele queria o que restava para ele querer o que restava que alguém pudesse
lhe dar?
A ideia se precipitou sobre ele rugindo e irrompendo como uma torrente de água que
arrebenta uma barragem. Ele queria sair. Podia sentir seu coração bater mais rápido e sua
carne retesar-se diante desse pensamento. Queria sair. Queria sair de modo a poder sentir o
ar fresco contra a pele e imaginar embora não tivesse olfato que esse ar vinha do mar ou
das montanhas ou das metrópoles ou das fazendas. Queria sair para poder sentir as
pessoas ao seu redor. Não tinha importância que não fosse capaz de vê-las ou ouvi-las ou
falar com elas. Se ele saísse saberia que pelo menos estava entre elas que não estava
trancado num quarto longe delas. Não era justo trancar um homem num quarto. Não era
justo fazer dele um prisioneiro para sempre. Um homem precisava estar entre outros
homens. Todo ser vivo precisava estar no meio da sua espécie. Ele era um homem uma
parte da humanidade e queria ser levado para fora de modo a poder sentir outros homens à
sua volta.
Deixem-me sair pensou é só o que eu quero. Estou deitado aqui há anos e anos num
quarto numa cama num pequeno envoltório de pele. Agora quero sair. Tenho que sair. Vocês
não podem manter um homem aqui desse jeito. Ele tem que fazer alguma coisa para ter
certeza de que ainda está vivo. Sou como um prisioneiro aqui e vocês não têm direito
algum de me manter preso porque nada fiz de errado. Um quarto uma cama como numa
cela como num hospício como numa sepultura com dois metros de terra em cima. Vocês
não percebem quão pouco um homem pode suportar disso sem enlouquecer. Estou
sufocando e não posso mais sufocar não aguento mais. Se tivesse braços eu poderia me
mover poderia empurrar poderia alargar as paredes poderia afastar as cobertas poderia
entrar num lugar maior. Se tivesse uma voz eu poderia gritar e clamar por socorro eu
poderia falar sozinho e servir de companhia para mim mesmo. Se tivesse pernas eu poderia
escapar poderia sair para o aberto onde existe ar onde existe espaço onde não estaria
sufocando num buraco. Mas não tenho nenhuma dessas coisas portanto vocês devem me
ajudar. Vocês devem me ajudar depressa porque por dentro estou enlouquecendo estou
ficando maluco estou sofrendo como vocês nem podem imaginar. Dentro de mim eu grito e
uivo e me debato e luto por espaço por ar para escapar deste sufocamento. Por isso deixem-
me sair para onde eu possa sentir o ar e perceber as pessoas. Por favor deixem-me sair para
que eu tenha espaço para respirar. Deixem-me sair daqui e levem-me de volta para o
mundo.
Estava prestes a se comunicar com eles num dilúvio de pontos e traços quando lhe
ocorreu que talvez houvesse dificuldades. Afinal de contas ele não era um sujeito comum a
ser libertado de uma prisão comum para levar uma vida comum. Era um caso muito
singular. Por toda a sua vida em qualquer lugar que estivesse teria de haver gente cuidando
dele. Isso significava dinheiro e ele não tinha dinheiro algum e portanto seria um fardo para
as pessoas. O governo ou quem quer que estivesse cuidando dele provavelmente não tinha
dinheiro para desperdiçar satisfazendo as vontades de um sujeito gastando uma fortuna
para cuidar dele só para que ele pudesse sentir o ar exterior e a presença de gente à sua
volta. Isso talvez fizesse sentido para algumas pessoas mas seria impossível fazer o governo
compreender. O governo diria que ele é doido onde já se viu um sujeito sem braços pernas
olhos ouvidos nariz boca extrair alguma diversão do fato de estar entre gente que ele não
consegue ver nem ouvir nem nada? O governo diria que a coisa toda é uma ideia maluca e
ao diabo com ela ele está melhor onde está e além disso custa muito menos grana.
E então ele se deu conta de que tinha em si mesmo o poder de gerar dinheiro um monte
de dinheiro o bastante para pagar suas próprias despesas e também as despesas das
pessoas que cuidavam dele. Ao invés de ser um fardo e um estorvo para o governo ele
poderia até mesmo render dinheiro para eles. As pessoas estavam sempre dispostas a
pagar para ver uma curiosidade estavam sempre interessadas em visões horrendas e
provavelmente em nenhum lugar na face da terra havia um ser vivo tão horrendo quanto
ele. Uma vez ele viu uma exposição de um homem que estava se transformando em pedra.
A gente batia uma moeda no braço dele e ela soava como se estivesse batendo no
mármore ela tilintava do mesmo jeito. Era bastante horrendo mas nem de perto tão
horrendo quanto ele próprio. No entanto aquele homem que se transformava em pedra
estava pagando suas despesas por seus próprios meios e além disso ganhando dinheiro
suficiente para pagar alguém para cuidar dele. Ele poderia fazer o mesmo. Se pelo menos o
deixassem sair dali ele seria capaz de cuidar de tudo.
Estaria também fazendo o bem de um modo indireto. Seria uma exposição educativa. As
pessoas não aprenderiam muito de anatomia com ele mas aprenderiam tudo o que há para
saber sobre a guerra. Seria uma grande coisa concentrar a guerra num toco de corpo e
mostrá-lo às pessoas de modo que elas pudessem ver a diferença entre uma guerra que
está nas manchetes de jornal e nas campanhas de vendas de bônus militares e uma guerra
que é combatida solitariamente na lama em algum lugar distante uma guerra entre um
homem e um projétil altamente explosivo. De repente ele se inflamou com a ideia ficou tão
empolgado com ela que esqueceu sua ânsia por ar livre e gente pois essa nova ideia era
maravilhosa demais. Faria de si mesmo uma exposição para mostrar a todos os zés-
ninguém o que aconteceria a eles e ao fazer isso ele estaria sustentando a si próprio e seria
livre. Faria um favor a todo mundo incluindo ele próprio. Ele se mostraria aos zés-ninguém
e a suas mães e seus pais e irmãos e suas irmãs e esposas e namoradas e avós e seus avôs
e haveria um letreiro em cima dele e o letreiro diria eis aqui a guerra e ele concentraria a
guerra inteira num pedaço tão pequeno de carne e osso e cabelo que eles nunca o
esqueceriam enquanto vivessem.
Começou a sinalizar que queria sair. Sua mente corria bem mais rápido que suas batidas
mas ele continuou batendo do mesmo jeito. O que ele queria? Ia dizer o que queria àqueles
malditos idiotas. Diria a eles com suas batidas diria palavra por palavra eles registrariam
cada pedacinho eles traduziriam em pontos e traços e assim ficariam sabendo. Ao bater a
cabeça ele pensava mais rápido. Foi ficando mais furioso e excitado e passou a bater cada
vez mais rápido tentando entretanto se manter em compasso com as palavras que
martelavam no interior de sua mente as palavras que poderiam usar finalmente todas as
palavras em que ele pensara em todos aqueles anos de silêncio pois agora ele estava
falando pela primeira vez agora ele tinha aprendido e estava falando com alguém do
mundo lá fora.
Deixem-me sair ele disse com suas batidas deixem-me sair daqui deixem-me sair. Não
vou lhes dar problema nenhum. Não serei um estorvo. Posso ganhar meu sustento. Posso
ter um emprego como todo mundo. Dispam meu pijama e construam uma caixa de vidro
para mim e me levem aos lugares onde as pessoas buscam se divertir onde elas estão à
procura de coisas bizarras. Levem-me dentro da minha caixa de vidro para as praias e as
feiras do interior e os bazares de paróquia e os circos e os parques de diversões itinerantes.
Vocês poderiam fazer um grande negócio comigo eu lhes pagaria pelo transtorno.
Poderiam oferecer às pessoas um belo discurso. Elas já ouviram falar do sujeito meio-
homem meio-mulher. Conhecem a mulher barbada e o esquelético e o anão. Viram as
sereias humanas e os homens selvagens de Bornéu e a menina comedora de carne crua do
Congo atire-lhe um peixe e ela o abocanhará no ar. Viram o homem que escreve com os
dedos dos pés e o homem que caminha com as mãos no chão e as gêmeas siamesas e
aquelas prateleiras de fetos não nascidos conservados em álcool.
Mas nunca viram uma coisa assim. Isso vai valer cada maldito centavo que um homem
tenha para gastar. Será uma sensação no mundo do espetáculo e quem patrocinar minha
turnê será um novo Barnum e terá notícias favoráveis em todos os jornais porque sou algo
que você pode de fato sair alardeando por aí. Sou algo que você pode bancar com a certeza
de ter seu dinheiro de volta. Sou o-morto-que-está-vivo. Sou o-vivo-que-está-morto. Se esse
cartaz não atrair as pessoas à sua barraca então eu sou algo mais que isso. Sou o homem
que fez do mundo um lugar seguro para a democracia. Se não comprarem isso também
então meu deus do céu eles não são homens. Eles que entrem no exército porque o exército
produz homens.
Levem-me pelas estradas do interior e parem junto a cada casa de fazenda junto a cada
roça e façam soar um gongo chamando os fazendeiros e suas esposas e seus filhos e seus
empregados e empregadas para me ver. Digam aos fazendeiros eis aqui uma coisa que
aposto que nunca viram antes. Eis aqui algo que vocês não podem usar para adubar a
terra. Eis aqui algo que nunca vai germinar e florescer. O esterco que vocês colocam em
suas roças é bem imundo mas aqui está algo que é menos que esterco porque não vai
morrer e se decompor e nutrir nem sequer um pé de mato. Aqui está uma coisa tão
horrenda que se tivesse sido parida por uma égua ou uma novilha ou uma porca ou uma
ovelha vocês a matariam no ato mas vocês não podem porque isto aqui é um ser humano.
Está pensando o tempo todo. Acreditem ou não esta coisa pensa e está viva e contraria
todas as regras da natureza embora a natureza não a tenha feito assim. Vocês sabem o que
a fez assim. Vejam suas medalhas são medalhas verdadeiras provavelmente de ouro
maciço. Levantem o tampo da caixa e saberão o que o fez assim. Sentirão o fedor da glória.
Levem-me para lugares onde homens trabalham e produzem coisas. Levem-me até lá e
digam rapazes eis aqui um jeito barato de levar a vida. Talvez os tempos sejam difíceis e
seus salários estejam baixos. Não se preocupem rapazes porque há sempre um meio de
curar coisas assim. Façam uma guerra e os preços irão subir e os salários também e todo
mundo ganhará um montão de dinheiro. Já vai ter mais uma muito em breve rapazes não
fiquem impacientes. Ela virá e então vocês terão sua oportunidade.
De um jeito ou de outro vocês saem ganhando. Se não tiverem que combater ora bolas
vocês ficam em casa e ganham dezesseis pratas por dia trabalhando nos estaleiros. E se
eles o convocarem ora bolas vocês têm uma grande chance de voltar sem tantas
necessidades. Talvez precisem apenas de um pé de sapato em vez de dois vejam só que
economia de dinheiro. Talvez fiquem cegos e se isso acontecer ora bolas significa que
nunca mais vão ter despesa com óculos. Talvez tenham sorte como eu. Observem-me de
perto rapazes eu não preciso de coisa alguma. Uma sopinha ou algo parecido três vezes ao
dia e pronto. Nada de sapatos nada de meias nada de cueca nada de camisa nada de luvas
nada de gravata nada de colarinho nada de colete nada de casaco nada de cinema nada de
vaudeville nada de futebol não preciso sequer fazer a barba. Olhem para mim rapazes
nenhuma despesa de espécie alguma. Vocês são otários rapazes. Entrem no trem da
alegria. Sei do que estou falando. Eu costumava precisar de todas as coisas de que vocês
precisam agora mesmo. Costumava ser um consumidor. Consumi um bocado no meu
tempo. Consumi mais estilhaço de metralha e pólvora que qualquer outro homem vivo. De
modo que não fiquem tristes rapazes vocês terão a sua chance haverá outra guerra muito
em breve e então talvez vocês sejam afortunados como eu.
Levem-me para as escolas para todas as escolas do mundo. Deixai vir a mim as
criancinhas não é assim? Elas podem berrar no início e ter pesadelos à noite mas vão se
acostumar porque precisam se acostumar e é melhor que comecem bem cedo. Juntem-nas
ao redor da minha caixa e digam venha garotinha venha garotinho venha dar uma olhada
no papai. Venham ver com seus olhos. Vocês ficarão assim quando crescerem para ser
homens e mulheres grandes e fortes. Vocês terão uma chance de morrer pelo seu país. E
pode ser que não morram pode ser que voltem como isto. Nem todo mundo morre meus
pequenos.
Cheguem mais perto por favor. Você aí encostada no quadro-negro qual o problema com
você? Pare de chorar sua bobinha venha aqui ver o bom homem que foi um jovem soldado.
Você se lembra dele não lembra? Não se lembra sua chorona de quando você agitou
bandeirolas e juntou embalagens de papel-alumínio e gastou suas economias comprando
selos de apoio ao exército? Claro que se lembra tolinha. Bem aqui está o soldado por quem
você fez tudo isso.
Venham jovens deem uma boa olhada e em seguida passamos para as cantigas de roda.
Novas cantigas de roda para novos tempos. O anel que tu me deste era vidro e se quebrou
meu pai ficou maluco com uma bomba que estourou. Batatinha quando nasce se
esparrama pelo chão como os miolos dos soldados atingidos pelo canhão. Nana nenê que a
cuca vem pegar papai foi pra guerra e de lá não vai voltar. Já é hora de dormir vou para o
abrigo à prova de bombas mas se por acaso eu for morto antes de acordar lembre-se que é
tudo para o seu bem amém.
Levem-me às faculdades e universidades e academias e conventos. Juntem as garotas
todas as jovens lindas saudáveis garotas. Apontem para mim e digam vejam meninas aqui
está o pai de vocês. Aqui está aquele rapaz que era forte até ontem à noite. Aqui está seu
filhinho seu bebê fruto do seu amor esperança do seu futuro. Olhem para ele garotas de
modo a não esquecê-lo. Estão vendo aquela ferida em carne viva com muco escorrendo
dela? Ali costumava ser o rosto dele meninas. Venham meninas podem tocar não tenham
medo. Inclinem-se para beijá-lo. Terão que limpar os lábios depois porque vão ficar com um
estranho gosto de coisa podre mas tudo bem porque um amante é um amante e este é o
seu amante.
Reúnam os rapazes e digam eis seu irmão eis seu melhor amigo eis vocês mesmos
rapazes. Este é um caso muito interessante rapazes porque sabemos que há um homem
enterrado ali dentro. Tecnicamente esta coisa é carne vivente como aquele tecido que
mantivemos vivo durante o verão passado no laboratório. Mas é um pedaço diferente de
carne porque também contém um cérebro. Agora me escutem com atenção jovens
cavalheiros. Este cérebro está pensando. Talvez esteja pensando em música. Talvez tenha
concebido toda uma sinfonia ou uma fórmula matemática que mudaria o mundo ou um
livro que tornaria as pessoas mais bondosas ou o germe de uma ideia que salvaria do
câncer centenas de milhões de pessoas. É um problema muito interessante jovens
cavalheiros porque se este cérebro de fato contiver tais segredos como é que vamos um dia
poder descobrir? Em todo caso aqui está ele jovens cavalheiros respirando e pensando e
morto como um sapo sob o efeito do clorofórmio com sua barriga aberta de tal modo que
seu batimento cardíaco pode ser visto aqui está tão quieto tão impotente e no entanto vivo.
Eis aqui o seu futuro e seus mais doces e ousados sonhos eis aquilo que suas namoradas
amavam e eis aquilo que seus líderes o obrigaram a se tornar. Pensem bem jovens
cavalheiros. Pensem com afinco jovens cavalheiros e em seguida voltaremos ao nosso
estudo sobre os bárbaros que saquearam Roma.
Levem-me para onde quer que haja parlamentos e assembleias e câmaras de
representantes. Quero estar presente quando eles falarem sobre honra e justiça e em
tornar o mundo um lugar seguro para a democracia e nos catorze pontos e na
autodeterminação dos povos. Quero estar presente para lembrá-los de que não posso dar
com a língua nos dentes porque não tenho nem uma coisa nem outra. Mas os políticos têm
línguas. Os políticos têm dentes. Coloquem minha caixa de vidro em cima da mesa do
orador e cada vez que o martelo do presidente da sessão bater deixem-me sentir sua
vibração através da minha pequena caixa de joias. Então que eles falem de diretrizes de
comércio e embargos e novas colônias e velhos rancores. Que debatam a ameaça da raça
amarela e o fardo do homem branco e o andamento do império e o porquê de eliminarmos
todo esse lixo da Alemanha ou seja lá o país que substituir a Alemanha. Eles que falem do
mercado sul-americano e de por que fulano ou beltrano está nos excluindo dele e de por
que nossa marinha mercante não consegue competir e oh que diabo vamos mandar uma
moção bem firme. Deixem que falem sobre mais armamentos e aviões e encouraçados e
tanques e gases ora é claro que precisamos ter tudo isso não podemos passar sem eles
como é que poderíamos proteger a paz se não os tivéssemos? Eles que formem blocos e
alianças e pactos de assistência mútua e garantias de neutralidade. Eles que redijam
comunicados e ultimatos e protestos e acusações.
Mas antes de votar a respeito disso tudo antes que emitam a ordem para que todos os
zés-ninguém saiam matando-se uns aos outros deixem o político maioral bater seu
martelinho de leve na minha caixa e apontar para mim dizendo eis aqui a grande questão
para esta casa a saber os senhores estão a favor desta coisa aqui ou contra ela. E se eles
estiverem contra que diabos então que se levantem como homens e votem. E se estiverem
a favor que sejam enforcados e arrastados e esquartejados e que seus pedacinhos sejam
exibidos em desfile pelas ruas e atirados nos campos onde nenhum animal sadio os toque e
que seus pedaços apodreçam lá e nenhuma planta brote no lugar.
Levem-me para suas igrejas suas imponentes catedrais que precisam ser reerguidas a
cada cinquenta anos porque são destruídas pela guerra. Carreguem-me em minha caixa de
vidro pelos corredores por onde reis e sacerdotes e noivas e crianças em primeira
comunhão passaram tantas vezes antes para beijar uma lasca de madeira de uma cruz
verdadeira na qual foi pregado o corpo de um homem que teve sorte suficiente para
morrer. Ergam-me bem alto em seus altares e clamem a deus que contemple seus filhinhos
homicidas seus tão amados filhinhos. Balancem sobre mim o incenso que não posso
cheirar. Engulam em grandes goles o vinho sacramental que não posso saborear.
Resmunguem as orações que não posso ouvir. Refaçam todos os velhos gestos sagrados
para os quais não tenho pernas nem braços. Cantem em coro as aleluias que não posso
cantar. Façam ressoar para mim as aleluias todas as suas aleluias para mim porque eu sei a
verdade e vocês não sabem seus tolos. Seus tolos seus tolos seus tolos…
XX

SENTIU A VIBRAÇÃO DE PASSOS PESADOS deixando o quarto. O homem que entrara e formulara a pergunta com o
dedo e ficara um tempão esperando a resposta tinha ido embora. Ele estava de novo
sozinho com a enfermeira. Foi deixado ali sozinho matutando.
Começou a ter pressentimentos. Assim como sempre suspeitara que tinha cometido
algum erro em sua contagem do tempo agora ele sentia violentos frêmitos de pânico
percorrerem sua carne. Tinha sido tão afoito em sua agitação de cabeça que talvez sua
mensagem não fizesse sentido. Talvez tivesse cometido um engano ao lembrar-se do
código de tal modo que suas palavras tinham saído como uma mixórdia de letras sem
significado. Os pensamentos tinham se precipitado de forma tão tumultuosa no interior da
sua cabeça que talvez ele não tivesse conseguido ordená-los de modo claro e sensato.
Talvez milhares de outras possibilidades se houvessem interposto entre ele e a mensagem
que estava tão ansioso por comunicar. Ou talvez o homem tivesse saído simplesmente para
conversar com seu superior e logo estivesse de volta com uma resposta.
Era isso. Oh por favor deus deve ser isso tenho certeza que é isso. O homem iria voltar
logo com uma resposta. Tudo o que ele tinha a fazer era ficar ali quieto e descansar pois
estava cansado demais. Parecia-lhe que estava imerso numa espécie de estado comatoso
como um homem que dissipou todas as suas emoções numa tremenda bebedeira e depois
fica simplesmente enfastiado e nauseado e convencido de que fez o pior. Fazia agora
semanas meses talvez anos que ele batia a cabeça não sabia dizer quanto tempo porque as
batidas tinham substituído para ele a contagem do tempo e todas as suas energias tinham
sido canalizadas para elas todas as suas energias todas as suas esperanças toda a sua vida.
Ele se retesou.
As vibrações vinham de novo em sua direção. O homem estava voltando com uma
resposta. Excelso misericordioso deus obrigado aqui está aqui está a minha resposta. Aqui
está meu triunfo aqui está meu retorno do mundo dos mortos aqui está a vida vibrando no
chão cantando nas molas da minha cama cantando como os anjos no paraíso.
Um dedo começou a tamborilar em sua testa.
___
O
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Q U E
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V O C E
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R EG U L A M EN TO
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Q U E M
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..._ _ _ _ _._ .
V O C E

As batidas do dedo em sua testa prosseguiram mas ele não lhes dava mais atenção. Tudo
em sua mente ficou vazio em branco em completa inércia. Depois de um momento ele
começou a pensar na mensagem para ter certeza de que não havia engano de que ela
queria dizer exatamente o que disse. E ele sabia que sim.
Quase podia ouvir o gemido de dor que saía do seu coração. Era uma dor pessoal aguda
terrível o tipo de dor que surge apenas quando alguém a quem você nunca fez mal algum
vira-lhe as costas e diz adeus adeus para sempre sem razão nenhuma para isso. Sem
absolutamente nenhuma razão.
Não tinha feito nada para eles. Não tinha culpa do transtorno que estava causando e no
entanto eles cerravam a cortina ao seu redor enfiando-o de volta no útero de volta na
sepultura dizendo-lhe adeus não nos incomode não volte à vida os mortos devem continuar
mortos e já estamos fartos de você.
Mas por quê?
Não tinha feito mal a ninguém. Tentara lhes causar o mínimo transtorno possível.
Requeria muitos cuidados é verdade mas não tinha ficado assim por vontade própria. Não
era ladrão nem bêbado nem falsário nem assassino. Era um homem um sujeito nem melhor
nem pior que qualquer outro. Era apenas um sujeito que tivera que ir para a guerra e fora
ferido e agora estava tentando sair de sua prisão para sentir o ar fresco e puro na pele para
pressentir a cor e o movimento de gente ao seu redor. Era tudo o que queria. E para ele que
nunca fizera mal a ninguém eles estavam dizendo boa noite adeus fique onde está não nos
cause problema você está além da vida está além da morte você está até mesmo além da
esperança você já era está acabado para sempre boa noite e adeus.
Num único e terrível instante ele viu a coisa toda. Eles só queriam esquecê-lo. Ele pesava
em sua consciência então eles resolveram abandoná-lo eles haviam desistido dele. Eram as
únicas pessoas do mundo que poderiam ajudá-lo. Eram seu último tribunal de apelações.
Ele podia se rebelar e rugir e se enfurecer contra o veredito deles mas não lhe faria bem
algum. Tinham decidido. Nada podia demovê-los. Estava totalmente à mercê deles e eles
não tinham compaixão alguma. Para ele não havia esperança. Era melhor enfrentar a
verdade cara a cara.
Cada momento de sua vida desde que despertara no meio da escuridão e da mudez e do
terror cada momento tinha sido direcionado para a ocasião em que algum dia em algum
ano ele conseguisse romper a barreira que o separava deles. Agora ele conseguira.
Rompera a barreira e eles o recusavam. Antes disso mesmo em seus momentos mais
terríveis tinha havido uma vaga esperança que o fazia seguir em frente. Ela o impedira de
se tornar um louco varrido e furioso ela brilhara como um clarão à distância rumo ao qual
ele nunca parou de avançar. Agora o clarão tinha sumido e não restava nada. Não havia
mais razão para se iludir a respeito. Aquelas pessoas não o queriam. Escuridão abandono
solidão silêncio horror infinito horror – era isso a sua vida dali em diante sem um mísero
raio de esperança para iluminar seu sofrimento. Era isso o seu futuro. Foi para isso que sua
mãe o deu à luz. Maldita seja ela maldito o mundo maldita a luz do sol maldita seja cada
coisa boa sobre a terra. Deus amaldiçoe a todos deus os amaldiçoe e os torture como ele
vem sendo torturado. Deus dê a todos a escuridão e o silêncio e a mudez e o desamparo e o
horror e o medo o grande imponente terrível medo que estavam com ele agora a desolação
e a solidão que estariam com ele para sempre.
Não.
Não não não.
Não deixaria que fizessem isso.
Era impossível que um ser humano fizesse isso com outro. Ninguém podia ser tão cruel.
Eles não estavam entendendo era isso ele não deixara suficientemente claro para eles. Não
podia desistir agora precisava prosseguir até que eles entendessem porque eram boas
pessoas eram pessoas boas e amáveis e só precisavam entender.
Começou de novo a bater a cabeça.
Começou de novo a bater a cabeça e a lhes dizer de modo suplicante de modo pausado
de modo humilde que queria por favor sair dali. Queria sentir o ar contra sua pele o ar
fresco e limpo de fora de um hospital. Por favor entendam. Ele queria a sensação de
pessoas de sua própria espécie livres e felizes. Aquela história de exibi-lo numa caixa de
vidro esqueçam era só um meio de levantar dinheiro e facilitar as coisas para vocês. Só
isso. Estava se sentindo solitário. Estava apenas se sentindo solitário. Não havia mais
nenhuma razão que pudesse lhes dar. Não havia nada que pudesse fazer exceto tentar lhes
dizer que sob a pele que cobria seu corpo havia tanto terror tanta solidão que era uma
simples questão de justiça concederem-lhe algo tão pequeno como a liberdade pela qual
ele podia pagar.
Enquanto batia a cabeça em código sentiu a mão da enfermeira em sua testa num gesto
de carinho e conforto. Pensou consigo mesmo queria muito ver o rosto dela. Deve ser um
rosto lindo ela tem mãos tão bonitas. Então sentiu um súbito frescor úmido no coto de seu
braço esquerdo. O homem que tamborilara sua resposta estava passando no local um
chumaço de algodão com álcool. Oh deus ele pensou eu sei o que isso significa não faça
isso por favor não faça. Em seguida sentiu a picada aguda e mortal da agulha. Estava sendo
dopado de novo.
Oh meu deus ele pensou eles não vão nem me deixar falar. Não vão mais me ouvir. Tudo o
que eles querem é me enlouquecer de tal maneira que sempre que eu lhes transmitir
minhas mensagens eles possam dizer é só um maluco não deem atenção a ele coitado
doido de pedra. É isso que eles estão tentando fazer estão tentando me enlouquecer e eu
venho lutando tanto tenho sido tão forte que o único jeito de fazerem isso é me dopando.
Sentiu-se afundando de volta de volta ao lugar para onde queriam empurrá-lo. Sentiu o
formigamento da carne e começou a ter a visão. Viu a areia amarela e viu as ondas de calor
que subiam dela. Acima das ondas de calor ele viu Cristo com seu manto ondeante e sua
coroa de espinhos gotejando sangue. Viu Cristo tremulando no calor do deserto vindo de
Tucson. E lá longe ouviu uma voz de mulher chorando meu filho meu menino meu filho…
Tomado de um terrível desespero ele calou a voz e afastou a visão. Ainda não. Ainda não.
Ele não estava acabado. Falaria com eles continuaria batendo a cabeça. Os músculos de
seu corpo estavam se liquefazendo mas ele continuaria batendo. Não deixaria que
baixassem a tampa do seu caixão. Berraria e arranharia e lutaria como qualquer homem
deveria lutar se o estivessem enterrando vivo. Em seu último momento de consciência em
seu último momento de vida ele ainda lutaria ainda bateria a cabeça. Continuaria batendo
sem parar batendo o tempo todo até dormindo até dopado até sentindo dor batendo a
cabeça para sempre. Eles podiam não lhe responder podiam ignorá-lo mas pelo menos não
conseguiriam esquecer que enquanto ele vivesse estava ali um homem falando com eles
falando com eles o tempo todo.
Suas batidas se tornaram cada vez mais lentas e a visão flutuava em sua direção e ele a
afastava e ela vinha flutuando de novo para ele. A voz da mulher sumia e reaparecia como
uma coisa carregada pelo vento. Mas ele seguia batendo.
Estava dizendo com suas batidas por quê? por quê? por quê?
Por que não o queriam? Por que baixavam sobre ele a tampa do caixão? Por que não
queriam que falasse? Por que não queriam que fosse visto? Por que não queriam que fosse
livre? Fazia agora cinco talvez seis anos que ele tinha sido expelido do mundo por uma
explosão. A esta altura a guerra já devia ter acabado. Nenhuma guerra podia durar tanto
tempo matando gente não havia gente suficiente para ser morta. Se a guerra tinha
terminado então todos os mortos tinham sido sepultados e todos os prisioneiros libertados.
Por que ele não podia ser libertado também? A menos que o contassem como um dos
mortos e nesse caso por que não o matavam por que não punham fim ao seu sofrimento?
Por que devia ser um prisioneiro? Não tinha cometido crime nenhum. Que direito eles
tinham de retê-lo? Que motivo poderiam ter para ser tão desumanos com ele?
Por quê? por quê? por quê?
E então de repente ele viu. Teve uma visão de si próprio como uma espécie de Cristo
como um homem que carrega em seu interior todas as sementes de uma nova ordem de
coisas. Ele era o novo messias dos campos de batalha dizendo às pessoas assim como eu
sou é como vocês serão. Pois ele tinha visto o futuro tinha sentido seu gosto e agora ele o
estava vivendo. Tinha visto os aviões voando no céu tinha visto os céus do futuro repletos
deles enegrecidos por eles e agora ele via o horror embaixo deles. Via um mundo de
amantes separados para sempre de sonhos nunca realizados de planos nunca
transformados em realidade. Via um mundo de pais mortos e irmãos aleijados e filhos
ensandecidos. Via um mundo de mães sem braços segurando bebês sem cabeça junto aos
seios tentando gritar sua dor com gargantas cancerosas por causa do gás. Via cidades
esfomeadas enegrecidas e frias e paralisadas e as únicas coisas que se moviam em todo
aquele mundo morto terrível eram os aviões que escureciam o céu e lá longe no horizonte o
estrondo dos grandes canhões e as nuvens de fumaça que se erguiam da terra devastada
torturada quando as bombas explodiam.
Era isso ele agora tinha entendido tudo ele lhes contara seu segredo e eles ao rejeitá-lo
tinham lhe contado o deles.
Ele era o futuro era um retrato perfeito do futuro e eles tinham receio de deixar que
alguém visse como era o futuro. Eles já estavam olhando para a frente estavam imaginando
o futuro e em algum lugar do futuro eles viam a guerra. Para lutar aquela guerra eles
precisariam de homens e se os homens vissem o futuro eles não iriam combater. Então eles
estavam mascarando o futuro estavam mantendo o futuro como um segredo suave
silencioso e mortal. Eles sabiam que se todos os zés-ninguém da arraia-miúda vissem o
futuro iriam começar a fazer perguntas. Fariam perguntas e encontrariam respostas e
diriam aos sujeitos que queriam fazê-los guerrear seus mentirosos filhosdaputa nós não
vamos combater não vamos ser mortos nós vamos viver nós somos o futuro e não vamos
deixar vocês nos massacrarem não importa o que digam não importa que discursos vocês
façam não importa que slogans escrevam. Lembrem-se bem disso nós nós nós somos o
mundo nós somos o que o faz girar nós fazemos pão e tecido e armas nós somos o eixo da
roda e os raios e a própria roda sem nós vocês seriam vermes famintos e nus e nós não
vamos morrer. Somos imortais somos a fonte da vida somos a gentinha feia desprezível
somos a gente linda grande maravilhosa e estamos enjoados disso estamos
completamente exaustos estamos fartos disso para todo o sempre porque somos os vivos e
não seremos destruídos.
Se vocês fazem uma guerra se há armas para serem apontadas se há balas para serem
disparadas se há homens para serem mortos estes não seremos nós. Não seremos nós justo
nós que cultivamos o trigo e o transformamos em alimento nós que fazemos roupas e papel
e casas e tijolos nós que construímos represas e usinas de eletricidade e estendemos os
longos fios vibrantes de alta tensão nós que fragmentamos o petróleo bruto em uma dúzia
de partes diferentes nós que fazemos lâmpadas e máquinas de costuras e pás e
automóveis e aviões e tanques e armas ah não não seremos nós a morrer. Serão vocês.
Serão vocês – vocês que nos impelem a guerrear vocês que nos incitam contra nós
mesmos vocês que querem fazer um sapateiro matar outro sapateiro vocês que querem
fazer um trabalhador matar outro trabalhador vocês que querem fazer um ser humano que
só deseja viver matar outro ser humano que só deseja viver. Lembrem-se disso. Lembrem-
se bem disso vocês gente que se prepara para a guerra. Lembrem-se disso seus patriotas
suas feras seus semeadores de ódio seus inventores de slogans. Lembrem-se disso como
jamais se lembraram de alguma outra coisa em toda a sua vida.
Somos homens de paz somos homens que trabalham e não queremos briga. Mas se vocês
destruírem nossa paz se nos tirarem o trabalho se tentarem nos alinhar uns contra os
outros saberemos o que fazer. Se nos disserem para fazer do mundo um lugar seguro para
a democracia nós os levaremos a sério e juro por deus e por Cristo nós o faremos. Usaremos
as armas que vocês nos impingem para defender nossas próprias vidas e a ameaça a
nossas vidas não está do outro lado de uma terra de ninguém que foi dividida sem nosso
consentimento ela está dentro de nossas próprias fronteiras está aqui e agora nós a vimos e
nós a conhecemos.
Ponham as armas nas nossas mãos e nós as usaremos. Deem-nos slogans e nós os
tornaremos realidade. Cantem hinos de guerra e nós os continuaremos a partir do ponto
onde vocês pararam. Não um não dez não dez mil não um milhão não dez milhões não cem
milhões mas um bilhão dois bilhões de nós todos os povos do mundo nós tomaremos os
slogans tomaremos os hinos e tomaremos as armas e as usaremos e viveremos. Não se
enganem nós vamos viver. Estaremos vivos e caminharemos e falaremos e comeremos e
cantaremos e riremos e sentiremos e amaremos e teremos nossos filhos em tranquilidade
em segurança em decência em paz. Vocês que planejem as guerras vocês senhores de
homens planejem as guerras e apontem o caminho e nós apontaremos a arma.
1. No original em inglês, Johnny Get Your Gun [literalmente, “Johnny pegue sua arma”],
um erro em relação ao título verdadeiro, Johnny Got His Gun [“Johnny pegou sua
arma”].(ESTA E TODAS AS DEMAIS NOTAS DA PRESENTE EDIÇÃO SÃO DO TRADUTOR).

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2. Tradução livre dos versos: Now the moon shines tonight on pretty Red Wing/ The
birds are sighing, the night wind crying…, trecho da canção popular “Red Wing”, escrita
em 1907 por Kerry Mills (música) e Thurland Chattaway (letra). A Red Wing da letra é
uma jovem índia que perdeu o amado numa batalha.

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3. Grafia deliberadamente incorreta do nome do célebre pioneiro da aviação Lincoln


Beachey (1887-1915), considerado em sua época “o maior aviador do mundo”.

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4. Rooshia: maneira jocosa de grafar Rússia, a partir da sua pronúncia em inglês.

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5. Bohunk: americanismo pejorativo usado para designar imigrantes pobres da Europa


Central, em especial da Hungria e da Tchecoslováquia, no então Império Austro-
Húngaro. A palavra é uma contração de Bohemian (boêmio) e Hungarian (húngaro). Do
mesmo modo, a palavra que o personagem usa para designar a namorada é mick,
termo pejorativo ou jocoso – e no caso, carinhoso – para se referir aos imigrantes
irlandeses.

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6. IWW: Industrial Workers of the World [Operários Industriais do Mundo], federação


revolucionária internacional fundada em Chicago em 1905 e tornada ilegal nos EUA em
1949, no contexto da Guerra Fria.

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7. “It’s a Long Way to Tipperary”, canção escrita em 1912 por Jack Judge e Harry
Williams, tornou-se muito popular entre soldados britânicos na Primeira Guerra
Mundial. Tipperary é o nome de uma cidade e de um condado da Irlanda. Foi mantida
aqui a grafia incorreta (Tiperrary) usada pelo autor.
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8. Esta e as outras frases grifadas e sem ponto final até o fim desta parte III são versos da
letra de “The Star-Sapangled Banner”, o hino nacional norte-americano, em tradução
livre.

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9. Midnight Mission: organização beneficente destinada a abrigar e amparar moradores


de rua, alcoólatras e drogados. Fundada em Los Angeles em 1914, funciona
basicamente com o trabalho de voluntários.

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10. “Hunos”, no caso, era como os alemães, em especial os soldados, eram chamados
pejorativamente na época da Primeira Guerra Mundial.

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11. D. A. R.: Daughters of the American Revolution (Filhas da Revolução Americana),


sociedade patriótica fundada em 1890 por mulheres supostamente descendentes dos
norte-americanos da época das guerras de independência.

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12. A conta está errada, provavelmente de modo deliberado: 36 x 36 = 1296, e não


576.

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13. Citação ligeiramente modificada dos primeiros versos do poema “When the Frost is
on the Punkin”, do escritor norte-americano James Whitcomb Riley (1853-1916): “When
the frost is on the punkin and the fodder’s in the shock,/and you hear the kyouck and
gobble of the struttin’ turkey-cock”.

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14. A frase em questão, fifty-four forty or fight, foi um slogan usado pelo candidato
democrata à presidência dos Estados Unidos James K. Polk em 1844 e diz respeito a
uma disputa entre os EUA e a Grã-Bretanha em torno do território do Oregon. Os norte-
americanos diziam que seus direitos sobre a região iam até a latitude 54o 40’, com o
que não concordavam os britânicos.
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15. Limey: termo originalmente pejorativo usado por norte-americanos para se referir a
marinheiros ingleses. Com o tempo, passou a designar os britânicos em geral.

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16. Hanoveriano, no caso, não se refere a natural da cidade de Hanover, mas membro
da dinastia de Hanover, que governou a Grã-Bretanha de 1714 a 1901.

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17. Trata-se, no original, de um trocadilho intraduzível, com o nome Abednego sendo


transformado em to bed we go (“para cama vamos”). Nas traduções da Bíblia para o
português os nomes Sadraque, Mesaque e Abedenego aparecem geralmente como
Ananias, Misael e Azarias.

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18. A atriz, dançarina e modelo norte-americana Florence Evelyn Nesbit (1884-1967),


famosa nas primeiras décadas do século XX. Depois de rumorosos casos com o arquiteto
Stanford White e o ator John Barrymore, ela se casou com o milionário Harry Kendall
Thaw, que acabaria matando White a tiros, no que foi chamado na época de
“assassinato do século”.

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19. Aunt Jemima era a marca registrada de uma série de produtos alimentícios da
Quaker que traziam na embalagem o rosto de uma sorridente moça negra.

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20. A célebre frase “La Fayette, aqui estamos” foi proferida por militares norte-
americanos em 4 de julho de 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, no cemitério de
Picpus, em Paris, diante do túmulo do aristocrata e militar francês marquês de La
Fayette (1757-1834), que havia lutado na Guerra de Independência norte-americana.

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21. Trecho inicial, ligeiramente modificado e convertido em prosa, do poema “A Visit


From St. Nicholas”, publicado anonimamente em 1823 e atribuído depois ao professor
e escritor norte-americano Clement Clarke Moore (1779-1863).
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22. Continuação do poema citado na nota na nota 21.

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23. Continuação do poema citado na nota 21.

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DALTON TRUMBO (1905-1976) foi uma das figuras literárias mais importantes e
polêmicas do seu tempo. Perseguido por sua filiação ao Partido Comunista, recusou-se a
testemunhar sobre sua posição política ao Comitê Americano em 1947. Presente na lista
negra da indústria do cinema e acusado de desacato pelo Congresso, cumpriu onze meses
de prisão. Johnny vai à guerra, o trabalho mais aclamado de sua extraordinária carreira,
cultuado por gerações seguidas, ganhou o National Book Award em 1939 e foi adaptado
para o cinema pelo próprio autor em 1971. A ideia para o romance veio depois que Trumbo
ouviu o relato de um soldado gravemente ferido durante a Primeira Guerra Mundial.
Copyright © 1939, 1959, 1991 Dalton Trumbo
PUBLISHED BY ARRANGEMENT WITH KENSINGTON PUBLISHING CORP. NY, NY USA. All rights reserved
Copyright da tradução © 2017 by Editora Globo S.A.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de
banco de dados sem a expressa autorização da editora.

Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995).

Editora responsável: Juliana de Araujo Rodrigues


Editor assistente: Thiago Barbalho
Editora de livros digitais: Lívia Furtado
Preparação: Erika Nogueira
Diagramação: Diego Lima
Capa: Daniel Justi
Ilustração de capa: World Digital Library
Conversão para ePub: Antonio Hermida

Título original: Johnny Got His Gun.

1ª edição digital, 2017


ISBN: 978-85-250-6453-0 (digital)
ISBN: 978-85-250-6203-1 (impresso)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T79j
Trumbo, Danton
Johnny vai à guerra [recurso eletrônico] / Dalton Trumbo ; tradução José Geraldo Couto. - 1. ed. - São Paulo : Biblioteca Azul, 2017.
recurso digital

Tradução de: Johnny Got his Gun


Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN: 9788525064530 (recurso eletrônico)

1. Romance americano. 2. Livros eletrônicos. I. Couto, José Geraldo. II. Título.


17-42010 CDD: 813
CDU: 821.111(73)-3

22/05/2017 23/05/2017

Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S. A.
Av. Nove de Julho, 5229 — 01407-907 — São Paulo — SP
www.globolivros.com.br
Table of Contents
Folha de Rosto
Sumário
Introdução do autor (1959)
Adendo: 1970
Johnny vai à guerra
Livro I - Os mortos
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
Livro II - Os vivos
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
Notas
Sobre o autor
Créditos

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