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ATUALIDADES PEDAGOGICAS Directo de J.B. Dasasco Penws A relagio dos livres de ATUSLIDADES PEDAGGoICAS" std. no fim déste volume ATUALIDADES PEDAGOGICAS Volume 89 FERNANDLUCIEN MUELLER “PrvaeDocene™ da Universe HISTORIA da PSICOLOGIA Da Antigitidade aos nossos dias Tradugto de Léct0 LouReNco ps Otiveira Lisnciado am Cincas Sots pale Universite de Sto Peulo ‘Manta. Apanrcioa Beanoy Lieensiade em Flowjla pela Univnidade de $i Polo J.B. Daneasco Pawns icencado em Fiovjin pela Univentdate de S80 Ponto COMPANHIA EDITORA NACIONAL EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Ko PAULO oo Do original francés Histoire de la Psychologie de Fantiquité & nos jours ubleads na “Biboeagne Seentigu PAYOr, Pai, 1950) Direitos para a tigua portuguésa adguiridos pele COMPANHIA EDITORA NACIONAL Rua dos Gusmbes, 639 Sko Pavto 2, SP ‘que se resersa a propriedade desta tradupéo 1968 Impresso mo Brant - TABUA DA MATERIA Nora pa Korda Barra Pacricio A Eoicko Brasisiea xv Parricio (da edigao francesa) xv PRIMEIRA PARTE A nosio de alma entre os gregos A Grécia primitiva « 3 1 —"0 ‘animism. 3 2 0 mundo homérico 3 3 0 eulto de Dioniso 7 40 mito defico 8 Ul — 0 nascimento da exigéncia raconal .... 10 1 "Os primeiros janicos ‘| 0 2 — Horkelto e 0 devir =: 7 nL 3 — Parménides © 0 Ser imérel 200SIIIINI 4 — Alemetio de Crotona eae § = Os cunt stementos de impo I 6 = 0 Nous de Anaxigoras «+. ieee 7 — Dibgenes de Apolonis aeremer) MI — 4 psicologia médica na Antiglidade seas. TAs origens da medicina hipocrética| 26 2 — As eaten o a cure das doongas nog 3 = A’enerpia vital e 0 papel do II 3 40 hhomom ‘no universo 30 5A sabedoria hipocrdtien 0000000000000 SL 6 — Aspectos psicoterapeutions | 3 7 — De Hipécrates a Galeno 7 35 IV — 0 ensinamento dos sofisis ¢ 0 méiodo socritico .... 37 1 "AUescaberte. da subjetvidads i EY 20 relativismo de Protégoras «0000010. 38 5 — Gergiss e 2 Unguagem TINNED ao i 4 A pesquisa socratioa 2S 2 | VA picologia de Piatto 45 | 1 ="A espirtwalidade da alma 'e'seu destino 212.1. 45 2 — 0 processo do conhecimento Seay, 3 — Uma psicofisiologia finalista 8 | 4 — As perturbagées peiquicas e os fatdres inconscientes 0 X — Historia da Psicologia VI— A pulcologia de Avistételes 1 esstteles ¢ seus predcorssores 2 — A” oposigio a Pistzo 3 = A ala como "orm" do eoip0 © proprio do: homem © primado ontoléaico © abjeto da psicoiogia ‘As sonsacBes ea percepyio +. ‘A imaginacio, a meméria, 06 sonhos © principio de perfelgio pstcologia do epicurismo e do estoleiwo aR exigéacia imancntista : ‘As candides hist6ricas Os tomos e 0 elinamen 2. va Hlitl ‘A “psicoterapia® epicurdia ... © panteismo exéico © preuna divino .-» = 0 ‘imndo, a alma, 3 Tiverdade seppepere pereey SEGUNDA PARTE 1A crise do mundo mediterriace © a idede eri VIN — A irrupedo do pensamento hebraico "0 sineretismo lexandtino Filo ea tradigio judia ‘A tlma eo aundo exterior « A Vida. cspetual ‘A rmudanga do pesspectiva ‘acine do “neoplatonisme": Plotino «. ‘Platina e seu tempo ae ‘A alana universal © dominio da rsicologia A \materialidade da alma 'e pnewna © organismo e a8 sonsagoes K— inspiragio ‘de Plotino - scologla evi ‘A. ova jintuigio do’ mundo Sto Paulo . ‘A piicologia dos apologistas’ Tertuliand «=» : 5 — Clemente de ‘Aicandsia 6 — Origones XL — Santo Agostino... T= O contento meiaiisico +. = 6 homem do pecado orig =A ovidencia imediata da alma = Os graus'¢ as fusgies da alma. = 6s seatidos, a razio, a memoria: =A’ infludneia’ do. agostinismo. ease iat ceases aaa Muiitg Titel 4X motel, dala © 6 Corhesinenio’ ‘A imaginagio, a moméria, © conscidneia <0. xm — xu xiv — xv — xv xv — Tébua da matéria — Somto Tomés de Aquino . LA otientagao metafisca 2A alma e suas, pordnciad 3 — Os sentidos extornos + 4 — 0s sentides internos 5 =O papel das imagens 6 — 0 papel do latelecio dgente 7 = 0 dualismo tomista ‘TERCEIRA PARTE A Kade moderne A rupiura com a tradigto € @ constitute do mundo ‘moderno. a 1A grande 2 — A nova imagem do universo 3 A Reforma ¢ as sobsevivenciae do copii magico 40 hiomem como objeto de pesquisas concretas - As idfies pscoldgicas no Renascimento T "Leonardo ds. Vinet ae 2 = Baracelso Pietro. Pomponszi Bernardino Telesio . Giordano Bruno Michel de Montaigne +: Francis ‘Bacon lualismo eartesiano » “A tevolugao metodoié © dogmatisme das duas substincias” © espitito e 0 corpo As imagens e a peteepsio 4 clone consraa de Descartes ‘A peicoterapia cartesiana ‘A bova problemitica . As reqgies @ Descartes ecieeescses : 1 "A psicologia religiosa de Pascal e Maiebranche 2-— Spinoza ou 0 paralelismo de identidade 3 — Locke ‘ow @ exigéncia empirita 0... 00.2, 4S Letbaix‘ou a descoberta do inconsciente 5 — As pesguisas experimentais 7 A psicologia no Steulo das Luzes ‘© progresso das eiéncias humanas A feicologia subjetiva de Berkeley © Inecanisismo de La Metrie © hhomem dos enciclopedstas 0000200202002. A alma para Voltaire © Rousseaa i A petcologia espiritualista de Condiilac A pscofisiologia de Cabanis ...--.. ‘A Fenomenolosia de Hume ‘A psicologia racional de Chiisian’ Woitt Mouseneg vouau Hitditl HITETLtel XI vas 150 135 {303 XI — Histéria da Psicologia ‘i XVI — A peicologia no pensamento alemao do século XIX FEA Mhpomancia do pensamento germinico 3 As condigées do conhecimento em Kant 3 XA testo 2 gsicologia racional « 46 Satter pstico da picologn 220.2 TORA ficaldades de uma psicologia como cign NOTA DA EDI $A intugio da alma como atividade .---.-- § Tega oo niveral-conereto foo os <1) 8B inconscione nn flosotia ales Oe — Be Mate de i Been a r De Mei te Peet do ou © 8 pimadl dO et i ; es ah A i ts vines ue cates ste Bran 2A de ee tein conn sradueidos pelo Professor Lélio Lourenco de Oliveira 4A GBSics Ge gu pacoloais cpeuaiia <2. 329 acts, peta Profesora Maria Aperecida Bland BRaE Se ge ica ee an aaa Gomn vistas &desejavel uniformidade da terminologia, profundo™ ee coy evento fol revisio pelo Professor J. B. Daraasco 2S amtecle GS Serato. roan que também. redigit algumas notas, assinar Jadas com suas inicials. QUARTA PARTE, 4 ‘A Maeve" pstcotogia | \ XX — Origem ¢ desenvolvimento da psleologia cientifica + 10 lima. positivist eet 20 empirismo inglés ©. a 3A fuivologia experimental na Algmaahe eh — A bbra ge Théodule Ribot (1839-1916) + : \bgicas em 1900 XXI— A prigologia “das profundecas” 1 7 Grigens da picandlise eaters 2 © desenvolvimento do fieudismo «+++ 3X pricologia individual de Aired Adier’ 4A betcologia analitica de Jung »-+.-++ XM — As escolas e ot campos de investgagio PSN mulepticdade das pesquisos 2 — 0 metodo dos tstes res 3 =A ‘psicofiiologia «0 4 — A feflexolosia e 0 ‘behaviorismo 3 — A Intsncia da fenomenolosia 8 A Gestlitheorie eens 7A patcologia genética Conelustio untioorarin Suachnth ..-- Inpice Ovoisrico aso XI — Historia da Psicologia XVIM — 4 psicologia no pensamento alemto do séeulo XIX... 307 1 "A importincia do. pensamento. germlaico .....) 307 2 — As condiesee do eonkecimento em Kent 308 3 — A ilusio' da psicologia racional 309 $0 catéter pritico da peicologia «11. Bu 5 — As difieuldades de uma. psicolouia’ como cigscia 312 6 — A'inuisio da alma ‘como atividede a3 7 = opel eo unlversal-conereto sv.ue-l0000lo000. 34 8 = 0 Inconsciente na filosofia alemd 319 XIX — De Maine de Biran a Bergson .. 321 15-0 '"tata primitive” do ew © a primazia do esttego voluntéeio oe 32 2—A tatefa de psicoogia 2000000000. Ti 3a 3 =A liberdade e'a vida steiiva 326 44 cxipincia de uma psicologia espiritvalista.:.1 329 so 330 665 di 'comctnca'¢ 9 "ea recente BL 1 a SIT 333 8 — A influtncia do. bergsonisina 336 QUARTA PARTE A Mnova” pateologie XX = Origem «,desenvohimento da picologiacenifon »... 344 * 10 cima postivista DU 3a 2 — 0 empirismo ingles I 3a 3 — A pwicologia experimectal na ‘Alemanha’1220'°. 345. o4 — A obra de Théodule Ribot (1839-1916) 0.01.11 351 °5 — ‘As cituias picolgicas ean 1900 358 XX = A psicologia “das profundesas” ...ceccseceseeveoe 357 1 = Origens da psicandlise «0.0. Sei arasT, 2 — O'derenvoivimento do feeudismo’ * 362 3 Dumont, em Le formes sementtes de a vie rena, ttn da ttt gus se ewes bie as cage to en ‘Se ntrpetnto solcdnea Wk ae Spemmene Se eet gana, eves naltea da ‘ima hoanas So ‘sees cults que os macacot aatropsides iesoram. Berea eee A Grécia primitiva — 9 © tepudia os prazeres do corpo ¢ as atragdes da vida terrena pode conhecer semelhante libertaciio. Ap6s a morte, purificada, a alma participa de um banquete em que se embriaga; depois, ‘vou para os astros a fim de af desfrutar vida eterna. arece que o ensinamento dos pitagsricos teré devido mui- to 20 dos drficos, mas que déste se distingue por preocupagies cientifico-racionais ligadas aguela ascese que deve assegurar a ppurificagdo da alma, Sabe-se que o pitagorismo constituiu um ‘movimento tanto religioso, moral e politico, quanto intelectual. ‘A documentagio referente a isso é duvidosa, € ncla se encontra sempre a lenda de mistura com uma histéria que nos foi trans- mitida indirctamente. Essa hist6ria se refere a duas époces di- ferentes. A primeira, que vai da fundaco da escola, de Crotona (cérca de 540 a.C.)’ até porto da morte de Plato (350 a.C.)3 a segunda, neopitag6rica, iniciada no primeiro século de nossa era, As doutrinas atribuidas aos pitagéricos do primeiro periodo, cujo conhecimento exige freqlientemente a utilizacdio de textos do neopitagorismo, s80 muita vez contraditérias, © € imposst- vol atribui-las a tOdas apenas a Pitégoras. Por outra parte, se € considerdvel a bibliogratia de obras © artigos consagrados ‘acs mistérios érficos, nfo é menos certo que nada sabcmos de seguro quanto a seu surgimento ¢ organizaclo; tOdas as infor- macoes a éste respeito so duvidosas. No que se refere aos mistérios de Eléusis, dados mais sdlidos nfo deixam diividy quanto A organizacao & éles relacionada, © nem por isso € me-* ‘nos dificil representarem-nos com certeza as ceriménias que presidiam &s iniciagSes. Parece, contudo, que nessa cidade, onde as grandes familias partilhavam as principais fungoes re- Higiosas, 08 iniciados exam mergulhados nas trevas, aterroriza- dos por visées de morte, depois sibitamente inundados de luz ofuscante; em suma, a ceriménia de iniciacdo comportava real- mente 0 simbolismo de um chamado a wma vida nova. caPiruLo 1 © NASCIMENTO DA EXIGENCIA RACIONAL, 1 0s pimetiorsonicos % Bedetto e @ dont 2. acne 0" Sr inde emo de" craton 5. Os gusto cisentn de Hipédocts 6, "O'Nou de Anbragores 1. “Dibgnesae“Apoloa 1. Os primeiros jénicos __ No momento em que florescia na Grécia a corrente mfs- tica de que nasceriam os mistérios, uma. primeira forma de Pensamento racional apatecie na JOnia, por obra de homens ‘caja originalidade © poder espiritual cativam de névo o inte résse dos fildsofos, de Nietzsche a Heidegger. Em ver’ de partir do problema’ da alma individual, cuja individuatidade é Iisteriosamente postulada no mito érfico, de sua origem © de seu destino, os jOnicos indagam sbbre © mundo como natura listas, "Nesse periodo originétio da filosofia, o problema da sic tuagdo do homem no universo no & abordado expliitamente, como ird acontecer quando 0 pensamento humano (jé com os sofistas) tomar comsciéncia, por uma distincia interior, da complexidade do ato de conhecer. Nessa époce, tudo se passa como se 0 espltito do investigador, sobretudo’ impressionado pelos aspectos variados do universo, © tomasse por objeto, néle englobando © ser humano. Parece dever-se a Tales, o primeiro désses grandes ho- mens da Jonia, a nogio de physis, no sentido de um principio do unidade que, sob'o movimento ¢ a transformagio das qua- lidades diversas’ do zeal, produz e faz evolver as coisas. Pouco O nascimento da exigéncia racional — 11 importa, assim, que Tales tenha assimilado essa physis, esse clemento fundamental, 2 égua, talvez apés refletir sObre as enchentes do Nilo. O essencial & que tenha enunciado, pela primeica vez, a exigéncia de uma realidade natural objetiva — jsto é, existente independentemente do homem — © tenha aberto, assim, caminho a tOda investigacio cientifica. Em ‘Anaximandro, autor de um tratado Da natureza, do qual res- ta um fragmento, intervém uma realidade origindria, indeter- minada ¢ ilimitada, © apeiron, de que proviria 0 mundo por meio de uma ruptura, seguida de diferenciagSes progressivas. Teve © pressentimento de uma evolucdo das espécies vivas, a partir do limo do mar; ¢ também a idéia — caberia ver nela a expressio filosGfica das crencas Srficas? — de uma espécie de pecado ligado & ruptura da_unidade original. Quanto a Anaximenes, sea discfpulo, cré que o elemento essencial & © ar, entendido provavelmente em sentido que engloba tanto 0s ventos, os vapéres © as muvens, quanto 0 espaco ¢ 0 ar respirével. Cronoldgicamente, sua teoria € a primeira de t6- das aquelas, singularments florescentes na Antigiiidade, que atribucm papel privilegiado a ésse elemento indisponsivel a vida. Dela se originara a nocio de pneuma, sopro criador da ‘vida e animador dos organismos. Essas_priteiras filosofias so de admirar pelo cuidado ndvo de uma visio racional da realidade, pela reivindicacdo audaciosa de uma verdadeira explicagio desligada dos, mito Por esta razo, e provivelmente sem que isto fosse deliberadoy transformaram’ completamente 2 nocio homérica da alma que, de simples duplo do corpo visivel, apenas capaz de contemplat a vicissitudes da existéncia, se vé clevada 8 dignidade de. pris cipio cosmolégico, fonte ¢ motor do movimento e da vida. Tal_promoco implicava o abendono de sua individuali- dade aps a morte, embora esta consegiiéncia, a julgar por certos textos, tenha, provavelmente, escapado aos pensadores jdnicos. Pois, se 2 alma individual nfo é mais do que parcela ‘da alma universal aplicada a um corpo particular © de idént ca natureza, seu destino s6 pode ser o de a éle retornar apés a morte, como a vaga retorna ao mar. 2. Heréclito © 0 devir A filosofia jOnica atinge 0 ponto culminante com o pen- samento de Herfclito, Déle (morto talvez por volta de Re 12 — Historia da Psicologia 480 aC.) possuimos certo mimero de sentengas lapidares, al gumes das quais tém sua autenticidade posta em davide(!) Esse pensador genial, hoje considcrado 0 pai do método dia Iético, teve uma intui¢io das coisas que déle faz quase um moderno, tanto & verdade que nossa civilizago, muratis mue tandis, se inscreve sob 0 signo dessa mobilidade universal a fque seu nome permanece ligado. A visto heraclitica do mun- do, © a de Parménides, seu contemporaneo, constituem os dois polos entre os quais 0 pensamento ocidental oscilard cons- tantemente, Pode-se dizer que suas doutrinas antagonicas se nos apresentam, na perspectiva histérica em que nos. achamos, como as colunas de Hércules de thda a nossa tradi¢ao. Para Heréclito, a mobilidade, inserita no proprio cora- so do universo, engendra incessantements a multiplicidade de suas formas. A’ energia fundamental, animadora ¢ ordenadora désse eterno devir, tem sede num ‘elemento quente e séco, cconcebivel inicamente em térmos de movimento, a que se re- ferem todos os processos orgfinicos ¢ naturais, © que Herdclito chama de fogo. “Chama de “caminho para o alto” ¢ “caminho para baixo” 0 que setiam as leis das transformagdes constantes do real. Supde-se que por isso deve entender-se um process de contracdo e de dilatacio, a condensacio extrema do foo a produzir a terra, que cla ‘propria se dissolve em Agua, en- quanto as exalacoes desta titima produzem 0 ar, donde nova mente nascerd 0 fogo. Continuamente, as mudancas da tem- peratura acarretam mudangas de estado dos corpos organics e fazem passar os sélidos ao estado liquido ou gasoso, Parece, wualmente, que Heréclit, teria tido a idgia do Eterno Re- t5mno, presente nos estéicos e em Nietzsche (“O fogo, pro- agredindo, tudo julgard e arrastara”). Seus discfpulos, pelo me- nos, Ihe atribuiram a crenca de que o mundo, em datas segula- res ¢ fixadas pelo destino, inteiramente absorvido pelo fogo de que emana, para voltar a renascer, ¢ isso eternamente, muito dificil fazer idéia do que poderia ser a “‘psicalo- gia” de Heréclito, to poeta quanto fildsofo. bem veréa- de que existe, a’ tse respeito, significative’ texto de Sexto Empitico@), consagrado a uma exposigio das idéias herackti- Re ee er ‘Benon oven e»Gocziatian rect 4 Hnnteito o"tmbem a Panubnies foes Se ee ee SPEEA cn og stn a Wn O nascimento da exigéncia racional — 13 cas por Enesidemo; nfo se sabe, contado, até que ponto éste Tltimo acrescontou de si proprio. Atribui a Herdclito a idéia de quo “o que nos rodoia & dotado de consciéncia”. Seme- Thante opinido parece confirmada por outros fragmentos do proprio Heréclito, que designa o fogo universal como 0 Lo- gos. Registra, também, Enesidemo que a razio humana, se- gundo Hericlito, se deve ao fato de que “aspicamos a azo Givina pela respiragio”. Se nos esquecemos durante 0 sono, para no tornarmos de Abvo conscientes ao despertar, & porque "Quranic 0 sono, quando se fecham as aberturas dos sentidos, fo espitito que esta em nés perde o contato com 0 que nos circunds, © apenas conservamos nossa relacio com 0 meio através da respirago, como uma espécie de raiz”. Ao desper- tar, ese espirito “olha pelas aberturas dos sentidos como por janelas, retoma, reunindo-se go espirito que o circunda, a aculdade da razio”. Finda o fragmento por uma afirmaggo ‘que testemunha a indissolivel solidariedade postulada por He- réclito, entre a alma universal ¢ a alma humana: “Assia como 0 carvio que muda e se forna ardente quando 0 ‘aproximamnos do fogo, 0 so exlingue quando déle o afastamos, a parte Ab eaplrito. cizcusjacente que reside em nosso corpo. perde a. raz ‘quando. dele € desligada, ede igual maneira recupera uma natureza st smelhante ado Tode, quando 0 contato so eslabelece pelo maior ndme- ro de abertra Como a existéacia da elma humana € atribufde a uma parte da realidade universal, parece realmente que os proble- mas a ela relacionados so, para Herdclito, os mesmos que se propoem relativamente a tOda @ realidade. Se o homem & capaz de respirar, de sentir e de raciocinar, & porque existe no universo do at, das qualidades ¢ da razio. “O homem & naturalmente privado de razio”; “O homem no possui razio. Apenas 0 ambiente & provido dela”. E como as qualidades ‘esto em oposicio constants, dove-se deduzir que a oposicao 6 requerida pela propria sensacdo, lignda a certo tipo de rela so estabelecida entre contrérios. Quanto a passagem da sen- saco ao raciocinio, assinala-se, para éle, por uma distincéo entre a opinido © 0 conhecimento. (“A multidéo ndo medita sobre nada do que The acontece; e ainda, uma vez instrufda, no 0 compreende; apenas imagina.”) © homem, ésse microcosmo, combina em si os elementos que lutam no Universo e, como éles, esté sujeito ao “eaminho Ae eee 14 - Hist6ria da Psicologia para 0 alto” ¢ ao “caminho para baixo”. As comparacdes he- racliticas entre 2 vida e 0 tio slo por demais conhecidas para que seja necessirio insistir sObre elas: “No povles descer duas vézes not mesmos rios; pois novas Aguas ccorrem sempre stbre ti Descemos e m0 descemor nos memos. Hos; Ser € nifo ser, eis o incessante devir; e, nesse fluxo uni- versal, séres e coisas mudam de lugar eternamente: “E sio em nés a mesma coisa 0 gue & vivo © 0 que 6 morto, 0 aque esté desperto e 0 que dorme, o que 6 Jovem @ 0 que € velho; aque Jes mudorm de lugar ese tornam nestes, © Estes, por sta vex, mudam de lugar se tornam naqueles. © corolétio desta absoluta mobilidade & a relatividade universal: “As coisas frias se tormam quentes ¢ © que é quente se resftia, 0 aque € timido vem a seear, 0 que secou 36 faz timido. A agua do mar ‘2 mais pura e a mais impura." Os peixes podem bebéa, pare les 8 sat ‘ivel; nfo. pode ser bebide © 6 funesta para os homens.” E como os contrérios coexistem em t6da parte, transfor- mando-se uns nos outros, o préprio homem € teatro de con- tradigdes permanentes: “NEo & bom para os homens obter tudo quanto deselam. A doenga € aque torna agradavel a satide; mal, bem; fome, saciedede; fadign, reponse.” © fogo ¢ a agua nao podem equilibrar-se por muito tem- po numa alma ¢, quando um dos dois elementos af adqui demasiada predominancia, a morte sobrevé: “Para as almas é morte tomnar-se gus, © morte para a Sgue 6 tor. arse terra, Mas a gua provém da terrae 4 alma, da agua.” A morte pela agua espreita as almas que se deixam do- minar pelo prazer: “f prazer para at almas tormarem-se vimidas", enquanto 0 fogo. manifestado pela tenséo interior, hes confere valor moral singular. “A alma séca & 2 mais sibiae a melhor” O nascimento da exigéncia racional — 15 Nem por isso menos evidente que a excessiva predom nincia do fogo acarteta, igualmente, a morte. Os fragmentos relativos a ésse fim da alma so dos mais sibilinos © mal per= item conhecer-Ihe 0s caracteres especificos: “Deuses © homens honram os que tombam na butalha, Os maiores| ‘mortos ganham as maiores pores” Do fato de a alma humana ser identificada com 2 fOrca animadora do universo, velo a idéia de inferir que seu destino € voltar ao principio ordenador do universo e que o ser hu- mano nada mais ¢ quando 0 fogo, sabedoria do mundo que Ihe confere 2 razio, 0 deixon: Mais vale jovar cadéveres que extérca” Certos fragmentos, contudo, parecem infirmar essa con- sequéncia: “Os mortos tém sensagées no Hades. Apés 2 morte, cols esperam, (© homem, que éles nfo espera, nem mesmo imaging.” Se a consciéncia da complexidade dos problemas envol- vidos pelo que os modernos chamario “teoria do conhecimen- fo” esti forgosamente ausente em HerGelito, ndo se poderia atribuir-Ihe, sem risco de érro, uma visio do mundo obmubi- Jada por materialismo ingéauo, pois, se, para éle, tudo € ma- teria — embora fésse necessério saber exatamente 0 que en- tende Heréclito por Logor(#) — trata-se de matéria em movi- mento, a tal ponto que néo dissocia os dois térmos. E seu sentiment profundo, e até trégico, do mundo como sistema eterno de relagdes onde nada esté em repouso levou-o, certamen- te, a pensar que o que chamamos sensibilidade ¢ razo, como produto de uma relago, nfo pertence exclusivamente mais 20 sujelto do que a0 objeto — para dizer as coisas em linguagem moderna, Ngo podetiamos, porém, estender-nos om conjeturas sem forgar as coisas. Por outro lado, 6 licto observar que a esco- Ina do fogo como elemento primordial assinala progresso re- lativamente as especulagdes anteriores, pois, a Agua e 0 ar nfo entram em tdas as mudangas da natureza, sere cnine yma sabe "atfronictas dy alma ao posers atlncas, por mal Tonge a, por tedoe os camino te eonauaneteur fanor! to" prtiada' 6°% Blas. Que Sabha? 16 — Historia da Psicologia Conhece-se a importincia que a filosofia hegeliana eo materialismo dialético voltaram a dar a visio heraclitica do mundo, com sua preocupagio comum de ultrapassar 0 quadro, considerado por demais estreito, das evidéncias fundadss numa rigida aplicacio do principio de identidade. (*) 3. Parménides © 0 Ser imével Enguanto Heréclito fundara sua concepgio do mundo rna_verificacio das mudancas qualitativas que nos oferece a percepcdo sensivel, dissolvendo t6des as formas do real no sterno devir, Parménides é o autor de uma doutrina que cons- titui 2 primeira reivindicacgo intransigente do pensamento ra- cional, com a exigéncia da identidade como dnico fundamento ¢ critério da Verdade. Segundo éle, uma coisa é, ou no 6. Para salvaguardar 2 permanéncia, requerida pelo exerefcio do pen- samento através das variagdes dos dados sensoriais, fz do de- vir pura aparéncia, sem consisténcia possfvel nessa realidade tuna ¢ idéntica a si mesma, tomada pela sua razio como e déncia l6gica ierecusivel. Bois um objeto, a fim de mover-se, deve, ao mesmo tempo, estar e nfo estar em dado lugar. impensével, porque € contraditério; e, uma vex que € contra- Gitério, 6 falso, Como 0 pensamento exige isto: 0 que & (to con), & absolutamente, mister se faz afirmar que nao ha senfo uma’ realidade, incriads e indestrutivel, cuja unidade, pleaa e indivisivel, exclui todo movimento real, isto , t6da mudanca real. Fora dessa verdade absoluta, no’ pode haver senio apa- reacias, opinides sujeitas a iluséo © 20 érro. Por iss0, no se pode admitir nem gerago, nem destruigo, nem di A escassez das fontes'¢ seu cardter davidoso néo permitem saber que destino essa doutrina t6da Idgica reservava a0 do- minio da psicologie, necessariamente colocada do lado da ilu- sio propria aquela opiniéo que Parménides subordina & ver dade. Pensa éle que o homem saiu do limo da terra e que a ‘alma, enquanto principio de vida, é um composto de calor © de frio em equilibrio. A proporgio désses elementos num in- ividuo the determina o carater do pensamento, ¢ a velhice decorre de uma perda de calor. A sensacéo, enquanto é, ja 12 acm, tn nr co, ren au cr een ea oa Ses oes aes Bae O nascimento da exigéncia racional — 17 mais pode desaparccer completamente; ¢ 0 préprio cadaver experimenta 0 frio, 0 siléncio ¢ a obscuridade. Patménides patece haver atribuido a diversidade das scnsacdes a eflivios {que trazem aos poros as imagens dos objetos, © parece ter admitido que © sujeito também € de certo modo, ativo, consi- derando que o élho, por excmplo, emite raios que entram em ‘eontato com os objetos exteriores. O que parece certo é que a alma, enguanto principio motor, foi despoiada, por Parmé- rides, de t6da consisténcia ontoldgica, em proveito da alma entendida como sujeito de conhecimento. Pois sua dignidade no est na vida — que é movimento ¢ ndo-ser — ¢ sim no ppensamento, que coincide com a existéncia absotuta 4, Alemedo de Crotona (© motivo de inspiracéo em Pitigoras revestia duplo aspec- to: mfstico © cientifico. Um homem eminente, “Alemedo, desenvolveu de tal maneira 0 iltimo déles, que pode ser sau- dado como fundador da psicofisiologia experimental. Ligado a escola médica de Crotona — anterior, talvez, & confraria pi- tagdrica nossa cidade —~ ¢ discipulo de Pitdgoras, era ainda, a crer em Arist6teles, apenas um jovem bem jovem quando 0 mestre atingia idade avancada. Anatomista e fisiologista, dedi- cou-se A dissecgHo de imimeros cadéveres de animais. Pecmi- ticam-he essas experitneias descrever duas espécies de vasos no corpo lumano: as veias (phlebes), que conduzem o sangue, fe as artérias, que encontrou vazias de sangue. Essa distincio se perdeu depois, ¢ por muito tempo se confundiram todos 08 vasos. Alemefo’se entregou, igualmente, a pesquisas sdbre 0 funcionamento dos érgios sensoriais, Neste campo, parece ter-se dedicado a investigacdes sisteméticas, indagando, princi- palmente, a propésito da visio, qual o papel desempenhado pelo proprio élho © pela imagem néle refletida; e, a propésito do ouvido, que papel se poderia atribuir 20 ar. Levaram-n0 seus trabalhos a descobrir certos canais ou “passagens” (0s nervos ainda nfo se consideravam como tais) que unem os diferentes érgéos a0 cérebro, ¢ a reconhecer no cérebro uma fungio de primeira importincia, descobrindo que, por meio de Tesdes de certas “passagens”, poderia impedit-se que certas sensagées Ihe chegassem. Parece ter feito distingéo — néo se sabe, porém, como — entre as sensacdes e © pensamento, De

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