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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FELIPE SOARES DE SOUZA

O CHORO DE AQUILES: O papel das lágrimas na construção do masculino na Ilíada

Rio de Janeiro
2023
Felipe Soares de Souza

O CHORO DE AQUILES: O papel das lágrimas na construção do masculino na Ilíada

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Instituto de História da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do grau de
Bacharelado e Licenciatura em História

Orientadora: Profa. Dra. Lorena Lopes da Costa

Rio de Janeiro
2023
Felipe Soares de Souza

O CHORO DE AQUILES: O papel das lágrimas na construção do masculino na Ilíada

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Instituto de História da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do grau de
Bacharelado e Licenciatura em História

Aprovada em:

____________________________________
Profa. Doutora Lorena Lopes da Costa - UFRJ

____________________________________
Prof. Doutor Fábio de Souza Lessa - UFRJ

____________________________________
Prof. Doutor Pedro Vieira da Silva Peixoto - UFRJ
RESUMO

Souza, Felipe Soares de. O choro de Aquiles: o papel das lágrimas na construção do
masculino na Ilíada. Rio de Janeiro, 2023. Monografia (Bacharelado e Licenciatura em
História) - Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.

O presente projeto de pesquisa pretende concentrar-se na análise das cenas de choro na


Ilíada, poema épico atribuído a Homero. Seu principal objetivo é investigar como o poeta
constrói a masculinidade dos heróis através da expressão das emoções, notadamente o ato de
chorar. Para tal análise, considera-se a diversidade de manifestações do choro presentes na
obra e examina-se a possibilidade de hierarquia entre essas expressões com base no status
social dos personagens retratados. Além disso, a pesquisa explora a diferenciação das
manifestações do choro entre homens e mulheres na narrativa e como isso influencia a
construção das identidades de gênero masculinas e femininas. É essencial observar que a
Ilíada se desenvolve no contexto da Guerra de Troia, um cenário que apresenta desafios
emocionais para os personagens principais. A partir dessas observações, o estudo pretende
compreender como a virilidade heroica se desenvolve à medida que os heróis enfrentam os
desafios e adversidades impostos pelo conflito.

Palavras-chave: Homero; Aquiles; Choro; Masculinidade


ABSTRACT

The present research project aims to focus on the analysis of weeping scenes in the
Iliad, an epic poem attributed to Homer. Its main objective is to investigate how the poet
constructs the masculinity of the heroes through the expression of emotions, notably the act of
crying. For such analysis, the diversity of weeping manifestations in the work is considered,
and the possibility of hierarchy among these expressions is examined based on the social
status of the characters portrayed. Additionally, the research explores the differentiation of
weeping manifestations between men and women in the narrative and how this influences the
construction of male and female gender identities. It is essential to note that the Iliad unfolds
in the context of the Trojan War, a scenario that presents emotional challenges for the main
characters. From these observations, the study aims to understand how heroic virility develops
as the heroes face the challenges and adversities imposed by the conflict.

Key-words: Homer; Achilles; Cry; Masculinity


SUMÁRIO

Introdução 8
1 O choro e suas expressões 15
2 O choro e as mulheres 24
3 O choro de Aquiles 35
Conclusão 46
Referências bibliográficas 50
8

INTRODUÇÃO

A Ilíada, poema épico atribuído ao poeta Homero, ocupa uma posição preeminente na
literatura da Antiguidade e exerceu uma influência substancial nos aspectos culturais, éticos e
literários da sociedade grega antiga. Composta por volta do século VIII a.C., a epopeia é uma
narrativa centrada nos eventos da Guerra de Troia, destacando-se por sua visão idealizada da
virtude heroica, abordando temas como coragem, honra e excelência. A presente monografia
tem justamente como foco a análise da construção desses valores, em conformidade com a
formação de uma virilidade heroica. Entretanto, nossa abordagem almeja explorar esses
valores mediante uma investigação dos significados subjacentes às emoções expressas no ato
de chorar.
Meu primeiro contato com os poemas homéricos e o tema do choro ocorreu durante o
segundo período da graduação, quando cursei a disciplina de História Antiga I. Ao iniciar a
leitura de cantos da Odisseia, o segundo poema épico atribuído a Homero, Chamou-me a
atenção o fato de Odisseu, protagonista da narrativa e um dos principais heróis da antiguidade
grega, chorar copiosamente ao sentir-se triste. Imagino que a razão pela qual tal fato tenha me
chamado tanto a atenção reside na relação que nós, homens contemporâneos temos com o
choro. Desde a infância, somos instruídos a evitar o choro, sendo-lhe atribuída uma conotação
feminina. Na perspectiva da masculinidade contemporânea, expressar emoções é
frequentemente interpretado como sinal de fraqueza, resultando na imposição de uma
repressão emocional.
A narrativa da Ilíada se inicia já no décimo ano da guerra, no momento em que
Aquiles, movido por cólera provocada por uma ofensa à sua honra desferida por Agamêmnon,
se retira do campo de batalha, deixando os gregos em uma situação de extrema dificuldade.
Após anos de conflito, encontram-se à beira da derrota devido aos equívocos e fragilidades
humanas, justo quando estavam prestes a alcançar seu objetivo almejado. A retirada do herói
mais destacado impulsiona outros guerreiros gregos a empreender um esforço supremo,
demonstrando todo o esplendor de sua valentia. Os oponentes, encorajados pela ausência de
Aquiles, desferem seus ataques com toda a intensidade, levando o campo de batalha ao ápice
da tensão. Nesse contexto, o iminente perigo aos gregos motiva a intervenção de Pátroclo.
Sua morte pelas mãos de Heitor alcança o que as súplicas e tentativas de reconciliação dos
gregos não haviam conseguido: Aquiles retorna ao combate para vingar a morte do amigo,
matando Heitor e salvando os gregos da iminente ruína. Aquiles lamenta a perda de Pátroclo
9

de maneira intensa, enterrando-o com expressões de pesar profundo e confrontando,


inevitavelmente, o desenrolar de seu próprio destino.
Durante o período homérico, em que a oralidade desempenhou um papel crucial na
preservação e transmissão da cultura, a poesia épica destacou-se como um dos principais
meios narrativos. Ela não só abrangia relatos de batalhas, mas também incorporava mitos e
costumes da sociedade helênica, que já estavam enraizados na tradição coletiva. Diante de
uma conjuntura de mudanças, obras como a Ilíada e a Odisseia, de Homero, bem como a
Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo, assumiram a tarefa de compilar os
conhecimentos e costumes da tradição, reestruturando-os em uma forma compacta e
disseminando-os de maneira ampla. Segundo Jean-Pierre Vernant, a poesia épica na Grécia
Antiga desempenhava um papel crucial como memória social e meio de comunicação do
saber. Ela unificava a cultura comum da Hélade, transmitindo representações religiosas e
lendas através de formas verbais fáceis de memorizar (VERNANT, 2006, p. 16).
Segundo Werner Jaeger, Homero desempenhou um papel fundamental na formação da
mentalidade e educação dos gregos antigos, o estudo de Homero era considerado crucial para
o desenvolvimento intelectual e moral dos jovens. Jaeger argumenta que a influência
educadora de Homero é ampla e abrangente. Ele ressalta que não se limita apenas à
apresentação direta de problemas pedagógicos ou a passagens específicas que busquem
alcançar um efeito moral específico. A poesia homérica é considerada por Jaeger como uma
obra vasta e complexa do espírito, resistente a uma simplificação em uma única fórmula
educacional. O classicista observa que, em certas passagens, a intenção educacional de
Homero é claramente evidente. Nestes trechos, o poeta demonstra uma vontade decidida de
criar um efeito consciente, aproximando-se, em certa medida, do gênero literário da elegia,
que geralmente possui um tom mais reflexivo e educacional. No entanto, Jaeger destaca que
ao lado dessas passagens mais claramente educativas, há outros fragmentos nos quais o
interesse estético ou descritivo afasta a possibilidade de inferir uma intenção moral específica
do poeta. Ele argumenta que, em alguns momentos, a própria essência do canto épico revela
uma forma de educação objetiva que não está necessariamente alinhada com os propósitos
educacionais conscientes do poeta, mas que emerge da riqueza e complexidade da narrativa
épica em si (JAEGER, 1995, p. 66).
O argumento de Jaeger se confirma em passagens de fontes antigas que nos contam
sobre a importância de Homero na formação educativa de jovens helenos, exemplificado pelo
trecho a seguir de Heráclito:
10

Desde a mais tenra infância, jovens crianças são nutridas em seu aprendizado por
Homero e, mergulhados em seus versos, nós molhamos nossas almas com eles como
se fossem leite materno. Ele permanece ao lado de cada um de nós enquanto
começamos a gradualmente nos transformar em homens, ele floresce enquanto
florescemos, e até a mais avançada idade nós nunca nos cansamos dele, pois assim
que o colocamos de lado, sentimos avidez por ele novamente; poderíamos dizer que
o mesmo limite nos é imposto tanto por Homero quanto pela vida. (HERÁCLITO,
Problemas Homéricos, I, vv. 5-7).

De acordo com Jaeger, ao contrário do que inicialmente se poderia supor, a palavra


paidéia1 não serve como um guia confiável para estudar a origem da educação grega, pois ela
só aparece no século V a.C. Isso é considerado uma lacuna na tradição, e mesmo que existam
usos anteriores, eles não oferecem insights significativos, pois, nos exemplos mais antigos, a
palavra tinha simplesmente o sentido de "criação de meninos", divergindo consideravelmente
do significado mais elevado que adquiriu posteriormente. O cerne da história da formação
grega reside no conceito de areté, que remonta aos tempos mais antigos. Embora não haja um
equivalente preciso em português, a palavra "virtude" pode, em certa medida, expressar o
significado de areté, unindo ideais elevados de cavalaria, conduta cortês, distinção e heroísmo
guerreiro. A raiz desse conceito remonta às noções fundamentais da nobreza cavaleiresca,
concentrando-se no ideal de educação do período arcaico (JAEGER, 1995, p. 25).
Nossa leitura da Ilíada contabilizou trinta e duas cenas distintas de choro masculino,
das quais o nosso herói central, Aquiles, protagoniza dezesseis, o que significa que a Ilíada,
dividida em vinte e quatro cantos, apresenta uma média de mais de uma cena de choro
masculino por canto. Com base nesses dados, seria possível afirmar que o choro se configura
como uma característica comum entre os heróis homéricos. Conhecendo a importância de
Homero como um dos pilares no processo de formação do indivíduo grego, portanto, o choro,
enquanto traço proeminente nos personagens homéricos, não poderia ser negligenciado como
elemento intrínseco desse processo. Assim, as lágrimas exerceriam papel importante na
construção do herói e de sua virilidade.
Segundo Maurice Sartre (2011, p. 19-20. apud AMBRA, 2015, p. 102-103), o que os
gregos entendiam por virilidade, ou seja, o conjunto de traços e comportamentos associados
ao que significa ser homem, é resultado de uma construção ideológica. Portanto, é
fundamental abordar as representações da virilidade deixadas pelos gregos com prudência,
pois uma análise mais aprofundada revela as ambiguidades presentes nesse conceito, que pode

1
Paideia é a expressão grega que alude ao processo de educação e formação abrangente do indivíduo na Grécia
Antiga, engloba um conceito amplo que ultrapassa a mera instrução acadêmica, envolvendo igualmente o
desenvolvimento moral, ético, físico e estético. Seu propósito primordial consistia na moldagem do cidadão
ideal, capacitado a exercer seus direitos e deveres virtuosamente na pólis, contribuindo para o bem coletivo.
11

ser interpretado como um modelo tanto coerente quanto instável. O que entendemos hoje
como masculinidade tem suas raízes na ideia grega de andréia, que passou a representar a
expressão mais pura e completa do que é ser homem na cultura ocidental. Embora, nos dias de
hoje, a palavra “virilidade” seja frequentemente associada diretamente ao corpo masculino e a
uma postura masculina quase inseparável de sua forma física, a noção de andréia entre os
gregos era uma apreciação de certas virtudes como valentia, espírito guerreiro e força, e não
estava restrita ao sexo masculino. Por exemplo, mulheres também podiam demonstrar tais
qualidades.
O choro em Homero se manifesta tanto em homens quanto em mulheres. No poema,
as lágrimas são frequentemente ligadas a sentimentos de desonra, saudades de casa, medo e,
sobretudo, o luto. Em meio à guerra, em que os personagens experimentam a dor de perder
uma batalha, de ver seus companheiros morrendo, de ter sua honra guerreira ferida, o luto é
esperado, e o poeta não nega aos seus personagens sentirem e expressarem tais emoções,
portanto, o choro vem com naturalidade, e o que poderia ser considerado fraqueza e
vulnerabilidade, em tal contexto, fazem parte da construção de sua virilidade.
As ideias de Aristóteles acerca da ética e da moral revelam-se de suma importância
para ilustrar a posição da obra de Homero no princípio fundamental da formulação de um
pensamento ético sobre a formação do indivíduo enquanto cidadão. A excelência moral,
segundo Aristóteles, caracteriza-se pela justa medida, isto é, o ponto intermediário entre os
extremos dos excessos e dos vícios. Tomemos, por exemplo, a coragem, que representa o
equilíbrio entre a temeridade desmedida e a covardia. O covarde abstém-se de agir e de
ponderar sobre possíveis ações, enquanto o temerário age impulsivamente, sem considerar as
consequências de seus atos. Já a coragem manifesta-se como uma ação dotada de reflexão e
razão, conferindo-lhe, assim, a condição de virtude. A excelência moral aristotélica não é uma
característica inerente aos homens, é uma prática, adquirida através do hábito, na repetição
(ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, 1103a15-1104b3). Portanto, a vulnerabilidade
mostrada diante da trágica perda de um companheiro caracteriza essa virtude, pois somente
alguém desprovido de reflexão não seria capaz de sentir o peso emocional das consequências
de uma guerra.
Compreendemos que a concepção de andréia e os conceitos éticos e morais propostos
por Aristóteles pertencem a um período posterior à composição da Ilíada. Todavia,
reconhecemos que essas noções não se originam instantaneamente, mas são o resultado do
acúmulo de experiências e práticas sociais ao longo do tempo, até que, em algum momento,
sejam formalizadas e nomeadas por pensadores intelectuais, como é o caso de Aristóteles.
12

O luto, como já afirmado, tem proeminência ao longo do poema. Ainda no primeiro


canto, a deusa Tétis, dirigindo a palavra a seu filho Aquiles, lhe diz:

Ah, meu filho! Por que te dei à luz, amaldiçoada, e te criei?


Quem dera que junto às naus estivesses sentado sem lágrimas
e sem sofrimento, visto que curta é a tua vida, sem duração!
Agora será rápido o teu destino e mais do que todos os outros
sofrerás. Para um fado cruel te dei à luz no nosso palácio.
(HOMERO, Ilíada, I, vv. 414-418).

Tétis lamenta pela desgraça vindoura de seu filho; ela o trouxe à luz, mas apenas para
destiná-lo a uma vida amaldiçoada, marcada pela busca incessante pela glória. A passagem
“sem lágrimas e sem sofrimento” estabelece uma correlação direta entre o ato de chorar e o
sofrimento. A tragédia que cerca a trajetória de Aquiles reside na escolha que ele deve fazer
entre uma vida curta e gloriosa, ou uma vida longa e destituída de renome. Após ter um
símbolo material de sua glória tomado por outro homem, ele teme que, caso continue lutando,
pode acabar morrendo jovem e sem alcançar a glória, o que seria uma tragédia ainda maior.
Além disso, é perceptível que, embora a busca pela glória seja um dos temas centrais do
poema, tal conquista não se encontra ao alcance de todos, pois ela cobra um preço trágico
para ser obtida. É o próprio Aquiles quem afirma, em diálogo com o rei troiano Príamo, que
Zeus não concede benesses desacompanhadas de infortúnios (HOM. Il, XXIV, vv. 518-551).
Portanto, a glória não pode ser alcançada sem sofrimento e, por consequência, sem lágrimas.
Consideramos que os estudos de gênero e masculinidade se fazem um caminho
interessante para se pensar o choro dos homens em Homero. Pretendemos nos utilizar, mais
especificamente, do conceito de “masculinidade hegemônica” para empreender nossa
investigação. A “masculinidade hegemônica” é um conceito da teoria de gênero que descreve
o padrão culturalmente dominante de masculinidade dentro de uma sociedade específica. Esse
padrão engloba as características, comportamentos e papéis que a sociedade considera ideais e
socialmente aceitáveis para os homens em uma dada cultura. A formulação desse conceito foi
desenvolvida por estudiosos de gênero e sociólogos com o propósito de compreender como as
normas culturais influenciam e modelam as identidades de gênero masculinas.
É relevante observar que a masculinidade hegemônica não oferece uma descrição
precisa ou abrangente de todas as experiências masculinas, uma vez que os indivíduos têm
uma vasta gama de identidades e expressões de gênero. Além disso, o conceito não é estático,
mas sim dinâmico, sujeito a mudanças ao longo do tempo e em diferentes contextos. Ou seja,
a hegemonia não é imutável e pode ser contestada e questionada em várias arenas. A
13

“masculinidade hegemônica” não é vista como uma categoria fixa, mas como algo que pode
ser desafiado e transformado ao longo do tempo (CONNEL; MESSERSCHMIDT, 2013, p.
250).
Críticos do conceito de questionam quem realmente representa a “masculinidade
hegemônica”, apontando que muitos homens que detêm grande poder social não se encaixam
necessariamente no ideal de masculinidade hegemônica. Em contrapartida, há exemplos de
homens que são identificados como modelos hegemônicos, mas que não necessariamente
incorporam características tradicionalmente associadas a essa ideia. Outras críticas também
destacam a inconsistência na aplicação do conceito, variando entre referências a um tipo fixo
de masculinidade e referências a qualquer tipo que seja dominante em um contexto específico.
Isso levanta questões sobre como a conformidade à masculinidade hegemônica se manifesta
na prática e como ela é objetivada. No entanto, Connel e Messerschmidt argumentam que
essas críticas não devem levar à eliminação do conceito, mas sim a uma compreensão mais
complexa. A ambiguidade nos processos de gênero pode ser vista como um mecanismo de
hegemonia, onde modelos ideais de masculinidade hegemônica podem não corresponder à
realidade, mas ainda influenciam ideais e comportamentos amplamente aceitos. Além disso, a
masculinidade hegemônica não é uma categoria estritamente separada de outras formas de
masculinidade; há sobreposição e indefinição entre elas, e os padrões hegemônicos estão
envolvidos na construção e contestação dessas masculinidades em diferentes contextos
sociais, o que implica que a masculinidade hegemônica não é estática e pode evoluir ao longo
do tempo e em diferentes contextos sociais (Ibid, p. 252-254).
O termo “masculinidade” não representa um conceito coeso que possa ser objeto de
uma análise generalizada. Quando ampliamos nossa perspectiva, percebemos a masculinidade
não como uma entidade isolada, mas como um componente de uma estrutura mais abrangente.
Isso implica a necessidade de compreender não apenas as masculinidades em si, mas também
a estrutura em que estão integradas (CONNEL, 2005, p.67).
Dessa forma, temos a intenção de empregar o conceito de “masculinidade
hegemônica”, cientes dos potenciais anacronismos que podem surgir ao aplicá-lo a um
período em que a noção de “masculinidade” ainda não havia sido plenamente desenvolvida.
Como destacado por Connell, é importante reconhecer que, embora nem todas as sociedades
possuam um conceito definido de “masculinidade”, todas apresentam representações culturais
de gênero. Connell também ressalta que o significado da “masculinidade” emerge em
contraste com a “feminilidade”. Em culturas que não categorizam mulheres e homens em
tipos de caráter polarizados, pelo menos em teoria, o conceito “masculinidade” como o
14

entendemos hoje não está presente (Ibid, 67-68). Pois podemos verificar que os poemas
homéricos distinguem claramente a atividade dos homens e das mulheres. A guerra é
associada aos homens, enquanto tarefas como o tear e a roca são atribuídas às mulheres,
conforme exemplificado no diálogo entre Heitor e sua esposa Andrômaca (HOM., Il, VI, vv.
490-493). Dessa maneira, é perceptível que, embora os gregos do mundo homérica não
adotassem as mesmas estruturas conceituais de gênero presentes na contemporaneidade, ainda
assim demonstravam uma clara distinção entre as esferas de atividade atribuídas aos sexos
masculino e feminino.
Portanto, ao aplicar o conceito de “masculinidade hegemônica” em contextos
históricos anteriores à sua formulação, é fundamental manter uma abordagem crítica que leve
em consideração a diversidade cultural e as especificidades das representações de gênero em
cada época. Essa abordagem nos permitirá uma análise mais precisa e rica das dinâmicas de
gênero apresentadas pelo poeta na Ilíada. Ao fazer isso, podemos ganhar uma compreensão
mais profunda das complexas relações entre gênero, poder e cultura, e assim enriquecer nossa
compreensão das nuances de narrativas, como as encontradas nas obras homéricas.
Sob essa perspectiva, empreenderemos uma análise das cenas do choro, concentrando
nossa investigação principalmente no protagonista do épico, Aquiles. Nosso objetivo é
analisar as passagens que retratam cenas de choro na Ilíada, a fim de investigar como o poeta
desenvolve uma concepção de masculinidade interna à própria narrativa. Nosso propósito é
desvelar a noção do herói que expressa suas emoções através do choro e, por meio dessa
análise, aprofundar a compreensão das complexas relações entre emoções, idealização heroica
e construções de gênero que se desenrolam no contexto do poema. Exploraremos as diversas
formas de manifestação do choro e sua apresentação, quais as emoções são expressas no ato
de chorar, quais personagens choram, em que contexto, com a finalidade de entender se existe
uma hierarquia nas expressões do choro, ou seja, se a percepção do choro varia de acordo com
a situação e o status do indivíduo que chora. Também pretendemos identificar se e de que
forma o choro dos homens se diferencia do choro das mulheres, com a intenção de apreender
como esse fenômeno influencia na construção dos gêneros masculino e feminino dentro do
poema. Além de examinar o impacto emocional da guerra em heróis e não-heróis na narrativa
épica, buscando obter uma compreensão mais aprofundada das dinâmicas sociais,
psicológicas e morais que estão presentes na obra, e, por conseguinte, entender como a
construção da virilidade heroica é moldada diante dos desafios e adversidades impostos pelo
conflito.
15

1 O CHORO E SUAS EXPRESSÕES

A leitura do poema revelou a presença de dezessete personagens distintos que


derramam lágrimas, sem considerar aqueles que não são explicitamente identificados pelo
poeta, mas que também choram. Vale salientar que nossa análise não englobará as lágrimas
derramadas pelos deuses. Dos personagens identificados, treze são do sexo masculino e
quatro do sexo feminino. Dentro do grupo masculino, observa-se a presença de seis heróis,
dois anciãos e cinco não-heróis. Assim, constatamos que o ato de chorar não se limita a um
tipo específico de personagem, seja do sexo feminino ou de relevância secundária, observa-se
que até mesmo os notáveis heróis sucumbem às lágrimas quando a angústia os assola. De
acordo com Hélène Monsacré (2018, p. 160), a guerra, embora seja uma condição essencial
para que os homens demonstrem sua heroicidade através de feitos notáveis, constitui,
paradoxalmente, uma fonte intrínseca de apreensão e sofrimento, uma vez que a obtenção do
kléos, a renomeada glória heroica, é assegurada ao guerreiro que, em sua juventude, cai em
combate. Assim, a guerra representa simultaneamente o caminho para o heroísmo e a fonte
primordial de lágrimas, pois inevitavelmente culmina na morte.
Aquiles, o grande herói do poema, destaca-se como o personagem mais propenso a
derramar lágrimas. Efetivamente, é digno de nota que, em grande parte das cenas em que ele
figura, encontra-se em estado de lamento. Contudo, reservaremos uma análise mais
aprofundada sobre Aquiles para um capítulo subsequente; neste momento, nos
concentraremos na identificação de alguns personagens que choram e exemplificam as
emoções que conectam-se ao ato de chorar na épica de Homero.
Comecemos por Agamêmnon, o monarca do exército aqueu. O estatuto de
Agamêmnon como herói é incontestável; no entanto, embora o poeta não emita juízo sobre as
ações dos heróis, deixa em aberto a interpretação de que Agamêmnon possa ser percebido
como um líder fraco. No início do Canto IX, Agamêmnon chora, pois, sente-se ludibriado por
Zeus. O deus havia prometido ao rei que ele retornaria triunfante após saquear Troia, mas
agora parece conspirar para que Agamêmnon regresse a Argos sem glória, após perder muitos
de seu povo:

... Agamêmnon
levantou-se, derramando lágrimas como a fonte de água negra
que do rochedo desdenhado por cabras derrama sombrio caudal.
Gemendo profundamente, aos Argivos dirigiu estas palavras:
“Ó amigos, regentes e comandantes dos Argivos!
Grandemente me iludiu Zeus Crônica com grave desvario,
16

deus duro!, que antes me prometera inclinando a cabeça


que eu regressaria para casa depois de saquear Ílion de belas muralhas.
Mas agora congeminou um dolo maldoso e manda-me
voltar sem glória para Argos, depois de ter perdido tanto povo [...]
Mas façamos como eu digo e obedeçamos todos:
fujamos com as naus para a nossa amada terra pátria,
pois não tomaremos Troia, a cidade de amplas ruas.”
(HOMERO, Ilíada, C. IX, vv. 13-28)2.

O mesmo símile, referente à água escura que flui em sinistra corrente, é igualmente
presente nos versos 3-4 do Canto XVI, quando Pátroclo suplica para que Aquiles retorne ao
campo de batalha, preocupado com o sofrimento infligido ao exército (HOM, Il, C. XVI, vv.
1-100). Bryan Hainsworth (1993, p.60) destaca que esse símile é empregado quando a
iminência de um desastre paira sobre o exército, desencadeando uma torrente de lágrimas em
ambos os casos. No entanto, o impulso emocional que motiva as lágrimas derramadas pelos
dois heróis difere. Agamêmnon demonstra maior preocupação com sua própria honra, ao
passo que Pátroclo manifesta angústia diante do sofrimento dos camaradas.
Agamêmnon, é duramente repreendido por Diomedes nos versos seguintes:

Com dualidade te presenteou o Crônica de retorcidos conselhos:


por um lado com o cetro te concedeu seres honrado acima de todos;
mas por outro não te deu valentia, onde reside a maior força de todas.
(HOM, Il, C. IX, vv. 37-39).

A resposta incisiva de Diomedes às lágrimas individualistas de Agamêmnon evidencia


que, embora o ato de chorar em si não seja objeto de censura ou questionamento, a razão que
motiva ao pranto do rei não se alinha com as expectativas associadas à sua posição. Diante da
iminente derrota, Agamêmnon opta pela fuga em vez de enfrentar a morte em combate.
Segundo Jean-Pierre Vernant (2006), os gregos antigos valorizavam a coragem e a virtude
manifestadas no campo de batalha, considerando uma morte gloriosa como a expressão
máxima da excelência e da busca por renome e honra. Essa perspectiva está intrinsicamente
ligada à ética e aos valores da sociedade homérica. Portanto, embora Agamêmnon demonstre
preocupação com sua glória, sua atitude pode ser interpretada como excessivamente covarde e
destituída de glória, justificando as palavras severas proferidas por Diomedes, que ao proferir
críticas contundentes, não apenas expressa desaprovação pela escolha de Agamêmnon, mas
também reforça a importância da coragem e da busca pela excelência. A repreensão de

2
Optamos preferencialmente pela tradução de Frederico Lourenço; entretanto, conduziremos uma análise
comparativa com outras traduções. Em situações que as traduções apresentarem divergências significantes com
relação a palavras que expressam o ato de chorar, sinalizaremos.
17

Diomedes não se limita à simples recriminação de uma atitude covarde, mas aponta para uma
ruptura mais profunda com os valores fundamentais que sustentavam a visão heroica na
cultura grega. Assim, a atitude de Agamêmnon não apenas é percebida como indigna de um
líder, mas também como uma transgressão aos ideais éticos e heroicos que permeavam a
sociedade homérica.
Por outro lado, a motivação altruística de Pátroclo contrasta com os motivos
individualistas de Agamêmnon. Richard Janko (1994, p. 315) observa que o símile utilizado
para descrever o pranto de Agamêmnon e de Pátroclo sugere que chorar diante da ruína do
exército é uma reação tão natural quanto uma fonte derramando água. Contudo, a motivação
egoísta e covarde por trás das lágrimas de Agamêmnon é repreendida por Diomedes. Em
contraste, o altruísmo de Pátroclo, ao solicitar que Aquiles ao menos permita que ele vá para a
batalha, devido à recusa de Aquiles em lutar após ter sua honra ferida por Agamêmnon é, de
certa forma, recompensado. Em outras palavras, Pátroclo está disposto a sacrificar sua própria
vida, como explicitado pelo poeta: "Pois suplicava / a sua própria morte funesta e o seu
próprio destino" (HOM, Il, C. XVI, vv. 46-47). Embora Aquiles deboche das lágrimas de
Pátroclo em um primeiro momento, após um discurso emocionado, Pátroclo persuade Aquiles
a permiti-lo que use suas armas e entre na batalha com o intuito de afastar o exército troiano
das naus dos aqueus3.
A divergência nas motivações subjacentes ao choro de Pátroclo e Agamêmnon destaca
não apenas a complexidade das emoções humanas no contexto da narrativa épica, mas
também revela contrastes fundamentais em seus caracteres e valores. Enquanto o símile
empregado para descrever suas lágrimas sugere uma resposta inerentemente humana diante da
adversidade, a natureza e a intenção por trás dessas expressões emocionais divergem
substancialmente. Agamêmnon, em sua resposta à iminente derrota e desastre no campo de
batalha, chora como resultado de uma preocupação egoísta centrada em sua própria honra e
reputação. Sua reação revela uma falta de coragem diante da adversidade, preferindo a fuga à
morte gloriosa em combate. Por outro lado, Pátroclo manifesta um choro permeado por uma
motivação altruística e destemida. Sua preocupação não está centrada em si mesmo, mas sim
no sofrimento iminente do exército aqueu. Ao implorar a Aquiles para permitir que ele vá
para a batalha, Pátroclo demonstra um desejo de contribuir para a causa comum, mesmo que
isso signifique enfrentar o risco de sua própria morte. Seu apelo emocional ressoa com a
busca grega pela excelência e glória no campo de batalha, contrastando nitidamente com a
atitude de Agamêmnon.
3
HOM, Il, C. XVI, vv. 1-130
18

Agora que delineamos a distinção entre o choro de Agamêmnon e Pátroclo, provocado


pela iminente desgraça para o exército, mas motivado por emoções divergentes, voltemos
nossa atenção para dois personagens periféricos no épico. Tersites, do lado dos aqueus, e
Dólon, do lado dos troianos, ambos não-heróis.
Tersites é caracterizado pelo poeta como um homem repugnante, de fala desmedida e
aparência grotesca, com pernas tortas, coxo, ombros curvados, cabeça pontiaguda e calvo
(HOM, Il, C. II, vv. 211-222). Os versos nos quais Agamêmnon alega ter sido ludibriado por
Zeus não foram inicialmente proferidos no Canto IX; esses mesmos versos (18-20) foram
previamente apresentados pelo poeta no Canto II, versos 111-113. Nessa ocasião, Aquiles
havia acabado de abandonar a guerra, e Agamêmnon não estava falando literalmente ao
sugerir a ideia de fuga, mas sim testando a coragem de seu exército. Embora muitos tenham
ameaçado desertar, Ulisses, instigado por Atena, os persuadiu a permanecer. Entretanto,
Tersites foi aquele que se insurgiu contra a postura de Agamêmnon e o repreendeu
veementemente, embora suas palavras não tenham surtido o mesmo efeito que as de
Diomedes no supracitado Canto IX (HOM, Il, C. II, vv. 50-278).
Assim que Tersites acaba seu discurso contra Agamêmnon, é Ulisses quem o
repreende e o humilha:

“Tersites de fala desbragada (embora até sejas bom orador),


controla-te! Não queiras entrar, sozinho, em conflito com reis.
Pois eu afirmo que não há criatura mortal mais abjeta que tu [...]
Por isso não devias andar com os nomes dos reis na boca,
nem proferir injúrias, nem preocupar-te com o regresso [...]
Mas uma coisa eu te direi, coisa que se cumprirá:
se eu te encontrar outra vez a disparatar como agora,
que a cabeça não permaneça sobre os ombros de Ulisses
e que eu não me chame pai de Telêmaco,
se eu não te agarro e te dispo a roupa,
a túnica e a capa com que cobres as vergonhas,
e te mando embora a chorar da assembleia para junto
das naus velozes, espancado com bordoada humilhante.”
Assim falou [Ulisses]; e com o cetro bateu-lhe nas costas e nos ombros.
Tersites agachou-se; copiosamente lhe escorriam as lágrimas.
Logo lhe apareceu nas costas um inchaço ensanguentado,
sob o cetro de ouro. Mas sentou-se, amedrontado;
e cheio de dores, com expressão desesperada, limpou as lágrimas.
(HOM, Il, C. II, vv. 246-269).

Kirk (1985, p. 138-139) aponta que Tersites destaca-se na Ilíada como o único
personagem que não possui nem um patronímico nem um local de origem. Enquanto essa
omissão geralmente sugere um soldado comum ou membro do grupo não mencionado pelo
poeta, Tersites contradiz essa suposição no verso 231. Ele afirma ter capturado prisioneiros
19

troianos, uma proeza associada aos combatentes da linha de frente ou à nobreza. O foco
principal do poeta nos aristocratas cria uma divisão vaga entre eles e os outros, e a ausência
de patronímico e origem para Tersites parece destinada a destacar sua natureza ultrajante,
diferenciando-o de seus pares nobres. Ao contrário do troiano Dólon, que também é feio e
desprezado, mas recebe um pai nomeado e é descrito como rico, Tersites, caracterizado como
sem medida na fala, é retratado como ainda mais desprezível.
Segundo Monsacré (2018, p. 60), na Ilíada, Aquiles, o herói mais prestigioso, é
distintamente caracterizado como o mais belo, refletindo a ideia de que a força é associada à
beleza. A narrativa enaltece as proezas dos heróis, destacando a inseparabilidade entre a
beleza física e as realizações heroicas. Tersites, considerado o contrário do heroísmo,
exemplifica essa concepção ao ser excluído das virtudes heroicas devido à sua covardia e
feiura. A ideologia aristocrática da obra marginaliza Tersites, o representante do povo, ao não
incluí-lo na discussão sobre as virtudes heroicas. Suas deficiências físicas, como sua
aparência debilitada e quase careca, são associadas à sua covardia, tornando-o o oposto
caricato de Aquiles nos padrões homéricos de beleza viril. Tersites é descrito como o mais
feio e fraco entre os gregos, destacando sua inadequação no mundo heroico da Ilíada.
Ainda de acordo com Monsacré (2018, p. 165), lágrimas não são exclusivas dos
guerreiros, por mais grandiosos que sejam; até os deuses choram: Zeus e Ares lamentam a
morte de seus filhos, que caem em combate. O campo de batalha emerge, assim, como o
único cenário onde é não apenas permitido, mas talvez até esperado, derramar lágrimas. Nesse
contexto, o incidente envolvendo Tersites destaca claramente a linha divisória entre lágrimas
consideradas aceitáveis e nobres, e aquelas associadas à fraqueza, sujeitas a advertências e
ridicularizações. Após um conflito com os líderes aqueus, Tersites é brutalmente agredido por
Odisseu, e suas lágrimas se tornam motivo de chacota para todos os presentes.
A ocorrência das lágrimas nobres está intrinsecamente ligada ao contexto de batalha,
seja durante o confronto em si ou em decorrência das consequências advindas da refrega,
como a perda de um companheiro querido ou a experiência de uma derrota. No entanto, o
choro de Tersites destoa desse padrão ao não manifestar-se como resultado direto de uma
batalha, mas sim como uma reação à humilhação sofrida durante uma assembleia. Tersites,
um personagem que não figura proeminentemente entre os membros destacados do exército
aqueu, desviou-se de seu papel ao proferir palavras inapropriadas contra seu líder militar
durante esse encontro. Seu choro humilhado, portanto, valida a intervenção de Ulisses ao
repreendê-lo, proporcionando, de certa forma, uma reorganização na hierarquia estabelecida.
É notável que os versos 211-277 do segundo Canto da Ilíada constituem a única aparição de
20

Tersites ao longo de todo o épico, sugerindo que sua existência talvez seja concebida para
servir como contraste e confirmação do ideal de heroísmo, destacando-se também que seu
choro serve como meio distintivo entre lágrimas nobres e aquelas consideradas indignas.
Dólon, por sua vez, em contraste com Tersites, possui uma linhagem identificada,
“filho de Eumedes, / o arauto divino, homem rico em ouro e rico em bronze” (HOM, Il, C. X,
vv. 314-315). Apesar de sua nobre ascendência, assim como Tersites, Dólon é descrito como
tendo uma aparência desagradável. A participação de Dólon na Ilíada é fugaz, comparável à
breve presença de Tersites. Sua introdução ocorre no Canto X, quando, durante a noite, Heitor
sugere que alguém se ofereça voluntariamente, mediante recompensa, para se infiltrar no
acampamento aqueu e obter informações sobre seus planos (HOM, Il, C. X, vv. 299-312).
Dólon prontamente se voluntaria, contudo, não expressa interesse em uma recompensa
comum. Ele exige que Heitor preste juramento para conceder-lhe os cavalos e a carruagem de
ninguém menos que Aquiles (HOM, Il, C. X, vv. 319-327). Heitor concorda com a condição
estabelecida, e Dólon imediatamente se dirige em direção ao acampamento aqueu. No
entanto, sua abordagem é prontamente identificada por Ulisses, que, acompanhado por
Diomedes, o captura (HOM, Il, C. X, vv. 328-369). Dominado pelo temor, Dólon entrega-se
às lágrimas e suplica por sua vida.

Por seu lado, Dólon estacou,


aterrorizado, balbuciando e com os dentes a chocalhar na boca,
pálido de medo. Arfantes, Ulisses e Diomedes apanham-no,
agarrando-o pelas mãos. Ele rompeu em lágrimas e disse:
“Tomai-me vivo e eu próprio me resgatarei. Tenho em casa
bronze e ouro e ferro muito custoso de trabalhar:
com estes tesouros meu pai vos pagaria incontável resgate,
quando ouvir que estou vivo nas naus dos Aqueus.”
(HOM, Il, C. X, vv. 374-381).

Nos versos subsequentes, Dólon, sem oferecer resistência, fornece todas as


informações solicitadas por Ulisses e Diomedes, que, após satisfeitos, o eliminam (HOM, Il,
C. X, vv. 382-459). Assim, Dólon, apesar de possuir riquezas, é caracterizado por sua feiura e
covardia. Inicialmente, ele busca adquirir os cavalos e a carruagem de Aquiles sem ter de
enfrentar o herói em combate. A guerra homérica é marcada pela natureza individualista, onde
as armas dos guerreiros simbolizam sua singularidade. A armadura é ao mesmo tempo uma
proteção e uma extensão do corpo (MONSACRÉ, 2018, p. 66). Quando um herói derrota
outro no campo de batalha, a aquisição das armas do adversário é simultaneamente a
apropriação de sua vida e também de sua identidade como um símbolo de vitória e glória.
21

Nesse contexto, observa-se que Dólon almeja alcançar a glória associada à posse dos cavalos
e da carruagem de Aquiles por meios furtivos, evitando o enfrentamento direto no campo de
batalha.
Ao contrário de Tersites, no entanto, Dólon derrama lágrimas em um contexto de
guerra. Porém, assim como Agamêmnon, suas lágrimas são um reflexo de seu temor pessoal,
de sua covardia diante da perspectiva de enfrentar seus captores e a morte. Embora o choro do
Dólon e Agamêmnon se diferenciem em uma coisa: Agamêmnon não teme a morte em si,
mas demonstra hesitação devido ao desejo de alcançar a vitória na guerra e,
consequentemente, obter glória eterna. Diante de uma derrota iminente e da impossibilidade
de atingir essa glória através da superação dos inimigos, o rei expressa o desejo de fugir. Em
contrapartida, Dólon chora devido ao medo da morte e prefere entregar seus companheiros a
morrer lutando. Portanto, Dólon revela uma dupla covardia. Assim como Tersites, sua
existência parece ser meramente instrumental para ressaltar a verdadeira nobreza guerreira,
destacando a contrastante falta de coragem e determinação presentes em sua personalidade.
O último caso que analisaremos neste capítulo é o de Diomedes. Como ressaltado por
Monsacré (2018, p. 54), Diomedes destaca-se exclusivamente por suas habilidades guerreiras.
O filho de Tídeo, completamente alinhado com os atributos da combatividade masculina, é
reconhecido como aquele que se destaca unicamente como um guerreiro e nada além, um
guerreiro absoluto, aquele que inflige ferimentos em Afrodite e a expulsa do campo de
batalha. Talvez por este motivo, suas lágrimas são de uma natureza diferente das de seus
companheiros.
Como já ressaltado, as lágrimas não se restringem apenas às famílias dos guerreiros
que perecem em combate; os próprios heróis também derramam lágrimas, especialmente os
líderes. A natureza dessas lágrimas é tal que, mesmo ao aceitarem o desfecho de uma batalha,
os líderes não são menos suscetíveis à dor pela perda de um amigo ou pelo insucesso em um
confronto. Com exceção de Diomedes, todos os grandes heróis retratados na Ilíada
experimentam o choro, sendo boa parte desses momentos testemunhada no próprio campo de
batalha (MONSACRÉ, 2018, p. 160). Diomedes é singular entre os heróis, sendo o único a
expressar lágrimas em um contexto alheio à guerra. Suas lágrimas não são provocadas nem
pelo combate cruel nem pela perda de seus companheiros. Suas lágrimas manifestam-se
durante os jogos fúnebres dedicados a Pátroclo, durante a corrida de carros, quando Apolo, no
exato momento em que Diomedes ultrapassaria Eumelo, retira o chicote de suas mãos, “dos
olhos de Diomedes brotaram lágrimas de raiva” (HOM, Il, C. XXIII, vv. 373-387).
22

Diferentemente dos demais heróis, Diomedes parece não ser atingido pelas lágrimas
de luto, como se sua natureza ambivalente, mais selvagem do que heroica, o tornasse
insensível ao espetáculo da morte (MONSACRÉ, 2018, p. 161). Não é sem razão que
Diomedes é o herói designado para abster-se de lágrimas decorrentes dos desdobramentos da
guerra. Ele personifica uma faceta mais bestial, selvagem, Ele constitui um tipo distinto de
herói, moldado unicamente para o campo de batalha; consequentemente, quando ele manifesta
choro, são lágrimas de fúria que vertem de seus olhos. Essas lágrimas encoleiradas, portanto,
podem ser interpretadas como uma expressão de seu comprometimento e agressividade no
confronto militar, evidenciando uma forma única de resposta emocional em toda a épica
homérica.
Deixamos de analisar, neste capítulo, a principal emoção subjacente ao choro, que é o
luto. Iremos abordá-la nos próximos capítulos. Entretanto, já é possível observar que, no
contexto da Guerra de Troia, diversas formas de masculinidades podem ser identificadas por
meio da expressão do choro. Agamêmnon é o herói que, frente a uma derrota imposta ao seu
exército, demonstra uma preocupação mais voltada à sua posição como líder desse exército
derrotado do que ao bem-estar de seus homens. Essa postura de Agamêmnon evidencia uma
perspectiva centrada em sua própria liderança e prestígio, destacando uma priorização da sua
imagem e posição de comando em detrimento da consideração pelos soldados sob seu
comando. Dessa maneira, a atitude de Agamêmnon oferece uma visão crítica sobre as
motivações e responsabilidades dos líderes na narrativa épica, explorando a tensão entre a
busca por glória individual e a liderança necessária para manter a coesão e a eficácia de uma
força militar.
Pátroclo, por outro lado, herói que não se encontra em posição de liderança como
Agamêmnon, diferentemente deste, preocupa-se mais com seus companheiros do que com sua
própria vida. Essa característica de Pátroclo, ao evidenciar uma maior preocupação pelo
bem-estar de seus companheiros, destaca um aspecto compassivo e altruísta em sua natureza
heroica. Sua postura contrastante com a priorização do prestígio pessoal e da liderança
hierárquica, como observado em Agamêmnon, sugere uma abordagem mais centrada na
camaradagem e no coletivo. A atitude de Pátroclo, ao colocar a segurança e o conforto de seus
camaradas acima de sua própria sobrevivência, exemplifica uma forma de heroísmo que
transcende a busca individual por glória. Essa abordagem, fundamentada na lealdade e no
cuidado para com os outros, contribui para uma representação multifacetada das
masculinidades na narrativa épica. Segundo Monsacré, Pátroclo é o único guerreiro que não
enquadra por completo no modelo puramente guerreiro de masculinidade, sem, no entanto,
23

transgredir seus limites; a gentileza de Pátroclo é mencionada tanto por Briseida4, uma
mulher, quanto por seus companheiros de batalha5 (MONSACRÉ, 2018, p. 107).
Ainda temos os casos de Tersites e Dólon, personagens cujas lágrimas são associadas à
covardia, humilhação e medo, evidenciando uma forma de masculinidade situada abaixo da
categoria dos heróis. Esses personagens, de fato, cumprem o propósito específico de
estabelecer tal distinção. Os casos de Tersites e Dólon, ao associarem suas lágrimas a
elementos como covardia, humilhação e medo, não apenas contribuem para a demarcação
entre diferentes expressões de masculinidade, mas também reforçam a construção de um ideal
heroico na narrativa épica. Ao situar esses personagens em uma posição inferior à dos heróis,
a obra sugere uma hierarquia de valores que valoriza a bravura, a dignidade e a coragem.
Dessa forma, ao explorar as lágrimas desses personagens em contextos específicos, a
narrativa não apenas delineia as nuances da expressão emocional masculina, mas também
ressalta as expectativas culturais em torno da figura do herói na sociedade épica,
enriquecendo as camadas de significado presentes na obra.
Enquanto isso, Diomedes personifica um ideal singular de heroísmo. Sua natureza
quase bestial o configura como um símbolo exemplar de guerreiro que qualquer líder militar
desejaria ter à sua disposição. Sua reprodução como herói que faz a guerra e nada mais
destaca-se por demonstrar eficácia e destemor no campo de batalha. A sua habilidade em
combate, aliada à sua abordagem incansável diante dos desafios, o torna não apenas um
guerreiro notável, mas um símbolo de excelência militar.
Ainda não abordamos o exemplo do ideal de masculinidade que se posiciona acima
dos demais, centrado na figura de Aquiles. No entanto, como destacado por Raewyn Connell
(2005, p. 76-77), é importante reconhecer a existência de múltiplas formas de masculinidades
em um mesmo contexto social, resultantes da interseção entre gênero, raça e classes. A
perspectiva de Connell destaca a relevância de uma abordagem interseccional para
compreender as diferentes formas de masculinidade presentes em um contexto social. Isso
implica reconhecer que as experiências e as expectativas associadas à masculinidade podem
variar significativamente, dependendo não apenas do gênero, mas também de outros fatores
sociais que moldam as identidades individuais. Essa análise aponta para a complexidade das
representações de masculinidade na narrativa épica, sugerindo que o ideal de masculinidade
não é monolítico, mas sim moldado por variáveis interconectadas, como gênero, e classes.

4
HOM, Il, C. XIX, v. 300
5
HOM, Il, C. XVII, vv. 670-672
24

2 O CHORO E AS MULHERES

A concepção de 'masculinidade' surge apenas em contraposição à 'feminilidade'. Em


uma cultura que não caracteriza mulheres e homens como portadores de tipos de
personalidade polarizados, pelo menos em princípio, a noção de 'masculinidade' torna-se
inexistente. Portanto, a masculinidade não existe exceto em um sistema de relações de gênero
(CONNEL, 2005, p. 68; 71). Podemos observar, na Ilíada, que as esferas masculina e
feminina são nitidamente delimitadas, embora haja intersecções. Heitor estabelece bem essas
fronteiras no Canto VI;

Agora volta para os teus aposentos e presta atenção


aos teus lavores, ao tear e à roca; e ordena às tuas servas
que façam os seus trabalhos. Pois a guerra é aos homens
todos que compete, quantos vivem em Ílion; a mim sobretudo.
(HOM, Il, C. VI, vv. 490-493).

Podemos perceber, portanto, que no mundo homérico, tecer e comandar a casa são
atividades que definem as mulheres, na mesma medida em que a guerra define os homens, em
especial, os heróis. A prática do tecer é uma atividade essencial para as mulheres, de certa
forma, configurando-se como um elemento definidor de sua identidade. De fato, as muralhas
de Troia simbolizam a fronteira entre os universos masculino e feminino, se revelando como
um local privilegiado de intersecção entre tais domínios. É nas muralhas que Hécuba suplica a
Heitor para que evite o confronto com Aquiles, Heitor e Andrômaca tem seu último momento
juntos e Helena discorre sobre os líderes aqueus a Príamo6.
Ademais, ao pretender desdenhar a falta de habilidade de um guerreiro no campo de
batalha, ele é frequentemente comparado a mulheres. Desejar voltar para casa para lamentar
como crianças e viúvas; tratar o inimigo como uma mulher ignorante da guerra; não ser mais
nada além de uma menina medrosa; arranhar um oponente com suas flechas, como uma
mulher simples faria; ser como uma menininha que corre para sua mãe e implora para ser
pega e carregada; gritar insultos a um inimigo como uma mulher enfurecida em vez de lutar
com bronze7 - todas essas manifestações são percebidas como demonstrações de fraqueza,
categorizando o guerreiro em uma posição associada ao feminino e à covardia. O contexto
simbólico que envolve as dinâmicas de poder entre os sexos consequentemente influencia as

6
Respectivamente, HOM, Il, C. XXII, vv. 79-89; C. VI, vv. 371-502; C. III, vv. 139-242
7
Respectivamente, HOM, Il, C. II, vv. 289-290; C. VII, vv. 235-236; C. VIII, vv. 162-163; C. XI, vv. 389; C.
XVI, vv. 7-8; C. XX, vv. 252-254
25

interações de insultos masculinos no campo de batalha. Ao comparar o oponente a mulheres,


tais insultos visam diminuir seu valor (MONSACRÉ, 2018, p. 99-101).
Todos esses elementos constituem meros insultos; entretanto, dentre os personagens
homéricos, aquele mais frequentemente equiparado às mulheres pelo poeta é Páris. Fugir do
campo de batalha em favor do refúgio nos braços do cônjuge como Páris faz (HOM, C. III,
vv. 369-447) significa uma falta de manifestação da masculinidade. O guerreiro que busca
segurança junto à esposa é prontamente rebaixado à estatura de uma criança buscando consolo
nos braços maternos. Este indivíduo não encontra reconhecimento no universo masculino dos
guerreiros na Ilíada, onde a única trajetória aceitável é confrontar destemidamente os
adversários no campo de batalha. Todas essas alusões a comportamentos associados ao
feminino contrastam de forma direta com a conduta masculina enaltecida e valorizada pela
ética heroica. Páris encontra-se inteiramente subjugado pelo domínio de Afrodite, visto que
ele se assemelha a uma encarnação da deusa. Sua inadequação para o campo de batalha,
atividade considerada como a essência da masculinidade e que assegura a glória eterna por
meio das conquistas que ela evoca, é evidenciada. As ações inerentes à guerra não são
compatíveis com a esfera de influência de Afrodite, conforme explicitado por Zeus quando a
deusa procura consolo para suas feridas: "A ti, querida filha, não te são dados os esforços
guerreiros" (HOM, Il, C. V, vv. 428) Nesse contexto, a feminilidade é percebida como um
atributo negativo, intrinsecamente inadequado ao domínio do guerreiro (MONSACRÉ, 2018,
p. 53; 99).
Entretanto, a utilização de termos associados ao feminino para descrever o
comportamento de um guerreiro não se restringe unicamente a uma conotação pejorativa.
Determinadas qualidades positivas tradicionalmente atribuídas às mulheres também são
reconhecidas nos homens (Ibid, p. 98). Um aspecto inegavelmente positivo associado às
mulheres, é sua natureza materna. Destaca-se, desde o início, um ponto de relevância: na
Ilíada, determinados guerreiros contam com a presença próxima de suas mães. Aquiles, por
exemplo, tem o auxílio de Tétis ao longo de todo o poema (Ibid, p. 103).
A mãe de Aquiles é uma divindade, todavia, nosso enfoque recai sobre os mortais;
portanto, direcionemos nossa atenção para Hécuba. Ao longo da narrativa, a mãe de Heitor
desempenha um papel de destaque. Quatro mulheres são notáveis por suas lágrimas, à
exceção de Helena; Briseida, Andrômaca e Hécuba lamentam em luto. Ao tentar persuadir
Príamo a se alimentar, Aquiles evoca o exemplo de Níobe, mãe de doze filhos brutalmente
mortos por Apolo e Ártemis (HOM, C. XXIV, vv. 599-620). Níobe representa, portanto, uma
mãe enlutada pela perda de todos os seus filhos, configurando-se como um exemplo de
26

resiliência, visto que não há sofrimento maior do que o de uma mãe (MONSACRÉ, 2018,
p.108-109).
Hécuba chora em três distintas ocasiões, todas em luto por Heitor. A primeira delas
ocorre quando Heitor ainda está vivo, prestes a confrontar Aquiles no campo de batalha:

Por seu lado a mãe lamentava-se lavada em lágrimas,


desapertando o vestido e com a outra mão mostrando o peito.
E vertendo lágrimas lhe dirigiu palavras aladas:
“Heitor, meu filho, respeita este peito e compadece-te de mim,
se alguma vez te apaziguei dando-te o peito para mamares.
Lembra-te disto, querido filho, e repulsa aquele inimigo
do lado de cá da muralha: não te ponhas aí para o enfrentar.
Pois ele é duro e cruel; e se ele te matar, nunca eu te porei
num leito para te chorar, ó rebento amado!, que dei à luz,
nem tua mulher prendada. Mas lá, longe de nós, junto
das naus dos Aqueus, os rápidos cães te devorarão.”
(HOM, Il, C. XXII, vv. 79-89).

Pode-se observar que, ao buscar dissuadir Heitor de enfrentar Aquiles, Hécuba apela
com suas lágrimas às emoções do filho ao evocar um dos mais significativos símbolos da
maternidade. Ao mostrar o seio e recordar ao filho que um dia lhe deu de mamar, em virtude
desse vínculo materno, ela suplica a Heitor que rechace Aquiles de dentro das muralhas.
Hécuba toca Heitor com seu discurso materno. Ela concebe a imagem do corpo insepulto de
Heitor como uma potencial presa para os cães, desprovido dos ritos funerários apropriados.
Seus pensamentos se dirigem ao lamento fúnebre que seria incumbência tanto de sua mãe
quanto de sua esposa realizar, caso ele viesse a falecer, e às próprias expressões de pesar
(RICHARDSON, 1993, p. 115). No entanto, devido ao receio de ser censurado pelas troianas
e troianos, decorrente de sua obstinação em não conduzir o exército de volta à cidade após o
retorno de Aquiles ao combate – o que resultou na destruição do exército troiano –, Heitor não
cede e permanece fora das muralhas.
A atuação de Hécuba nessa passagem destaca-se como um exemplo marcante da
atuação do papel das mães na Ilíada. Ao apelar para a conexão íntima entre mãe e filho,
simbolizada pelo ato de amamentar, Hécuba utiliza a maternidade como uma ferramenta
persuasiva, buscando dissuadir Heitor de enfrentar Aquiles. Seu discurso evoca não apenas a
vulnerabilidade emocional própria da relação mãe-filho, mas também apela ao senso de
gratidão maternal. Entretanto, a recusa de Heitor em atender aos apelos maternos destaca a
complexidade dessas relações no contexto épico. A relutância de Heitor em retornar às
muralhas, temendo a reprovação por parte dos troianos, é, além disso, motivada pelo desejo
de alcançar a glória ao matar ou ser morto por Aquiles, “E para mim teria sido muito mais
27

proveitoso / defrontar Aquiles e regressar depois de o ter matado, / ou então ser gloriosamente
morto por ele à frente da cidade” (HOM, Il, C. XXII, vv.108-110), acrescenta uma dimensão
de conflito entre as responsabilidades familiares e as expectativas sociais. Assim, a passagem
não apenas ilustra o poder emocional da maternidade na tentativa de influenciar decisões
heroicas, mas também revela as tensões entre os deveres familiares e as demandas da
comunidade.
Se faz relevante destacar a passagem em que Hécuba reage à morte de seu filho:

Deste modo toda a cabeça de Heitor estava suja de pó. Mas a mãe
arrancava os cabelos. Longe de si atirou o véu resplandecente,
fazendo soar grandes gritos ululantes ao ver o seu filho [...]
“Filho, ai de mim! Como viverei neste terrível sofrimento,
agora que tu morreste? Tu que de noite e de dia
eras a minha jactância em toda a cidadela e uma benesse
para todos os Troianos e Troianas na cidade; como um deus
te cumprimentavam. Para eles eras tu deveras a glória maior
quando eras vivo! Agora te encontraram a morte e o destino”
(HOM, Il, C. XXII, vv. 405-436).

O lamento de Hécuba é caracterizado por sua simplicidade e resignação. Sua


preocupação central reside na contraposição entre a grandiosidade passada de Heitor e seu
estado presente, uma característica comum nos lamentos fúnebres em geral. As palavras
iniciais de Hécuba, 'por que devo viver?', constituem, ademais, uma abertura típica de um
lamento, envolvendo uma pergunta ou série de perguntas (RICHARDSON, 1993, p. 151-152).
Contudo, a interrogação revela uma dimensão adicional, a saber, a intensa angústia
experimentada por Hécuba. A intensidade da dor experimentada por Hécuba é manifesta em
seu desejo por uma vingança tão feroz quanto a expressa por Aquiles em relação a Heitor
após este matar Pátroclo. “... um homem tremendo, cujo fígado eu quereria / morder para o
devorar: talvez assim houvesse retaliação / pelo meu filho” (HOM, Il, C. XXIV, vv. 212-214).
Para Hécuba, não lhe é viável participar da cena de reconciliação entre Aquiles e Príamo8,
enquanto mãe, ela se encontra incapaz de perdoar o assassino de seu filho (MONSACRÉ,
2018, p. 191-192). A dimensão adicional evidenciada pela profunda angústia de Hécuba,
manifestada em seu desejo por vingança comparável à intensidade da fúria de Aquiles por
Heitor, adiciona uma camada de complexidade à sua resposta emocional. O desejo por
retaliação não apenas ilustra a profundidade do sofrimento materno, mas também destaca as
similaridades temáticas entre personagens que, apesar de serem de sexos diferentes,
compartilham uma humanidade marcada pela perda e pela dor.
8
HOM, Il, C. XXIV, vv. 468-689
28

Heitor encontra seu fim apenas no Canto XXII; entretanto, desde sua primeira aparição
no Canto VI, sua esposa, Andrômaca, já antecipava e lamentava sua morte. Sempre evocando
sua própria perda e afirmando sua vulnerabilidade, sua falta de existência sem o marido9 (Ibid,
p. 142).

No entanto a esposa de Heitor nada ouvira


dizer ainda. É que nenhum fiel mensageiro chegara
para lhe dar a notícia de que o marido estava fora dos portões [...]
Mas Andrômaca ouviu os gritos e o pranto vindos da muralha:
Estremeceu-lhe o corpo e a lançadeira caiu ao chão.
Depois disse assim no meio das servas de belas tranças:
“Vinde comigo, duas de vós, para que eu veja o que aconteceu.
Ouvi a voz de minha sogra veneranda: no meio peito
o coração saltou-me à boca e os joelhos por baixo de mim ficaram
dormentes. Perto está alguma desgraça para os filhos de Príamo” [...]
Mas quando chegou à muralha e à multidão de homens,
Pôs-se de pé na muralha – e depois viu Heitor
sendo arrastado à frente da cidade [...]
Sobre os seus olhos desceu a escuridão da noite;
Caiu para trás e expirou, ofegante, sinal de vida[...]
Quando Andrômaca veio a si, com o fôlego restituído ao peito,
Levantou a voz em lamentação e assim disse no meio das Troianas:
“Heitor, ai de mim! Para o mesmo destino nascemos
ambos, tu em Troia no palácio de Príamo,
e eu em Tebas sob a frondosa Placo no palácio de Eécion,
que me criou desde criança, desafortunado pai
de filha desventurada. Prouvera que nunca me tivesse gerado!
Pois agora tu partiste para a mansão de Hades nas profundezas
da terra e deixas-me em sofrimento detestável como viúva
no palácio.”
(HOM, Il, C. XXII, vv. 437-484).

Esses versos evidenciam a íntima conexão existente entre Andrômaca e Heitor. A


expressão 'Sobre seus olhos desceu a escuridão da noite' é recorrente em diversas instâncias
para descrever a morte ou situações próximas à morte de guerreiros em combate10,
evidenciando que, para Andrômaca, a morte de Heitor, simbolicamente, significa o fim de sua
existência. Ao perceber o cadáver de Heitor, Andrômaca vacila e desaba. Este colapso pode
ser interpretado como uma manifestação da estreita conexão entre ela e Heitor, cujos destinos
estão profundamente entrelaçados, transcendo a simples união conjugal. Andrômaca emerge
como uma espécie de duplicata de Heitor, conforme expresso em sua lamentação: "Heitor, ai
de mim! Para o mesmo destino nascemos" (HOM, Il, C. XXII, v.477). O sofrimento de
Andrômaca durante a morte de Heitor marca um ponto crucial, sugerindo que sua dor,
inicialmente concebida como heroica, transcende essa categorização quando o homem que
9
HOM, Il, C. VI, vv. 407-411
10
Ocasiões em que tais versos, ou variantes, como “a escuridão da noite veio cobrir-lhe os olhos” foram usados:
HOM, Il, C. V, v. 310; 659; C. XI, v. 356; C. XVI, v. 334; 344
29

servia como seu ponto de referência desaparece. Nesse momento, ela recupera sua identidade
plenamente feminina e lamenta a perda de seu esposo como uma esposa enlutada
(MONSACRÉ, 2018, p. 107-108). Essa transição evidencia a complexidade das
representações de gênero e das emoções na narrativa, sugerindo que a dor de Andrômaca é
intrinsecamente vinculada à presença e à ausência de Heitor em sua vida.
Assim como Pátroclo se integra à identidade de Aquiles11, Heitor compõe parte da
identidade de Andrômaca. De maneira análoga à maneira como a morte de Pátroclo determina
o destino de Aquiles, a morte de Heitor igualmente selou o destino de Andrômaca.
Notavelmente, da mesma forma que Hécuba compartilha com Aquiles um desejo de vingança
feroz em seu luto, as semelhanças entre Andrômaca e Aquiles no processo de luto se
manifestam nos versos mencionados anteriormente. Neles, Andrômaca pressente a morte de
seu esposo antes de ter a confirmação de seu falecimento, refletindo a experiência de Aquiles,
que antecipa a morte de Pátroclo antes de receber a notícia12. Ao considerar as paralelas entre
Andrômaca e Aquiles no processo de luto, onde ambos antecipam a morte de seus entes
queridos, a narrativa destaca as experiências compartilhadas de dor e perda,
independentemente das diferenças nas posições e perspectivas dos personagens. Isso sugere
que a dor e a aflição transcendem as distinções entre os sexos masculino e feminino,
aproximando-os em seu sofrimento.
Briseida desempenha um papel significativo no épico, pois a recusa de Aquiles em
participar da batalha é desencadeada pela tomada dela por Agamêmnon. Contudo, sua
primeira e única fala acontece apenas no Canto XIX, suas palavras são de lamento dirigidas
ao falecido Pátroclo.

Porém Briseida, cuja beleza igualava a da dourada Afrodite,


quando viu Pátroclo golpeado pelo bronze afiado,
abraçou-o com um grito ululante e com as mãos
lacerou os seus peitos e o pescoço macio e o lindo rosto.
Entre lágrimas assim disse a mulher semelhante às deusas:
“Pátroclo que sempre mais encantaste meu pobre coração!
Vivo te deixei quando parti desta tenda, mas agora
encontro-te morto, ó condutor de homens, ao meu regresso.
O marido, a quem meu pai e minha excelsa mãe me deram,
vi-o à frente da cidade, golpeado pelo bronze afiado;
e meus três irmãos, que minha mãe dera à luz,
irmãos adorados, todos eles encontraram o dia da morte.
Mas tu não me deixaste, quando Aquiles veloz matou
o meu marido e saqueou a cidade do divino Mines,
não me deixaste chorar, mas prometeste que me farias
a esposa legítima do divino Aquiles e que ele me levaria

11
Assunto que iremos abordar mais à frente
12
HOM, Il, C. XVIII, vv. 1-16
30

nas naus para a Ftia, para a festa nupcial dos Mirmidões.


Morto te choro sem cessar, tu que foste sempre tão brando.

Segundo Mark Edwards (1991, p. 268), este evento também serve para dramatizar o
retorno, a Aquiles, de seu prêmio de honra, sem, contudo, desviar a atenção de seu próprio
sofrimento em decorrência da perda de Pátroclo. A manifestação de dor de Briseida amplia
nossa compreensão acerca da extensão da perda que Aquiles experimentou. Ademais, a
representação do luto de Briseida evidencia que sua restauração ocorreu à custa da vida de
Pátroclo. Similarmente, assim como o lamento de Tétis no momento inicial da dolorosa
aflição de Aquiles13, o lamento de Briseida prefigura o luto iminente que se desencadeará com
a morte do próprio Aquiles.
Ao evocar a compaixão, benevolência e atenção de Pátroclo para com os outros em
seu lamento, Briseida não apenas destaca as virtudes humanas presentes no falecido herói,
mas também se torna, ela mesma, uma representação simbólica dessas qualidades. Sua própria
existência como um reflexo do motivo pelo qual Pátroclo perdeu a vida adiciona uma camada
de complexidade ao entendimento da tragédia. A narrativa sugere que Pátroclo, ao agir com
piedade e cuidado, intensifica a natureza injusta e devastadora de sua morte. Assim, a
lembrança das virtudes de Pátroclo, encarnadas em Briseida, aprofunda a compreensão da
perda trágica experimentada por Aquiles, revelando as intricadas conexões entre as ações
virtuosas e os destinos trágicos dos personagens na epopeia.
Outra camada que as lágrimas de Briseida nos revelam é o contraste entre o choro
masculino e o choro feminino. As lágrimas vertidas pelos heróis, que, após seus soluços,
retornam ao combate, estabelecem uma distinção com a lastimável impotência evidenciadas
nas mulheres que choram. Briseida, assim como Hécuba e Andrômaca, manifestam seu pranto
como expressão de uma sensação de desamparo diante da perda de seus protetores.
Diferentemente dos heróis do sexo masculino, que buscam vinganças enérgicas como reação a
uma tristeza avassaladora, as principais figuras femininas encontram-se limitadas à expressão
de suas lágrimas como resposta (MONSACRÉ, 2018, p. 195). Contudo, essa manifestação,
combinada ao expressivo lamento verbal, carrega um peso comunicativo significativo.
Embora as lágrimas das mulheres não possuam, estritamente falando, uma equivalência de
valor em relação às dos homens, desempenham um papel crucial na transmissão das

13
HOM, Il, C. XVIII, vv. 35-137
31

experiências emocionais e na contextualização das complexidades intrínsecas a forma como


os gêneros interagem.
Helena é a primeira e também a última mulher a falar na Ilíada, suas palavras são
cheias de significado. Ao responder às indagações de Príamo enquanto estão nas muralhas,
Helena narra episódios que enfatizam as proezas e coragem dos aqueus, apresentando assim
uma 'palavra poética' que é percebida como a verdade pelos troianos. Um momento destacado
ocorre quando Helena menciona Odisseu, suscitando a aprovação de Antenor, um ancião
troiano que havia anteriormente oferecido hospitalidade ao astuto guerreiro14. Este episódio
ressalta a proximidade entre Helena e a figura do bardo. Antes mesmo de proferir suas
palavras, Homero a retrata ocupada com a tecelagem que prenuncia as narrativas das lutas
entre troianos e aqueus, indicando sua imersão nos assuntos dos homens e heróis. Helena, ao
longo da Ilíada, fala em quatro ocasiões, expressando-se de maneira autônoma e intervindo
nos acontecimentos. Em um desses momentos, ela responde às perguntas de um homem,
assumindo o papel de poetisa de Troia, enquanto em outros três, toma a iniciativa de falar,
incluindo uma cena em que repreende Páris por sua covardia15. Ela demonstra a capacidade de
falar por si mesma sem recorrer de forma sistemática à figura de seu cônjuge. O discurso
proferido por Helena é caracterizado por sua autonomia e independência (MONSACRÉ,
2018, p. 140-141).

Em seguida entre elas foi Helena a terceira a lamentar-se:


“Heitor, de longe o mais estimado no coração de todos os cunhados!
Na verdade meu marido Alexandre semelhante aos deuses,
Quem me trouxe para Troia. Quem me dera ter morrido antes disso!
Pois na verdade este é já o vigésimo ano
Desde que saí de lá e deixei a minha pátria.
Mas de ti nunca ouvi uma palavra desagradável ou ofensiva.
Mas se alguém falava mal de mim no palácio –
dentre os teus irmãos ou irmãs ou cunhadas de belos vestidos
ou a tua mãe (mas teu pai foi sempre amável como um pai) –
tu com palavras os impedias e convencias,
graças à tua bondade e às tuas palavras.
Por isso eu choro-te a ti e a mim, desafortunada, com coração pesado;
Pois já não tenho ninguém na ampla Troia
que seja amável ou amigo, mas a todos causo repugnância.”
Assim falou chorando; e a multidão incontável gemeu.
(HOM, Il, C. XXIV, vv. 761-776).

Segundo Monsacré (2018, p. 187), Helena é uma exceção entre as mulheres, parece ser
a única cujo discurso é aceitável para os homens: ela não lamenta nem tenta impedi-los do

14
HOM, Il, C. III, vv. 200-224
15
HOM, Il, C. III, vv. 428-436
32

combate; ela não os engana nem os destrói através da sedução; ela fala sem gritar. Ela está
situada na margem do discurso masculino e da voz feminina. Diferentemente das demais
mulheres que choram pelas perdas de maridos ou filhos na narrativa épica, Helena lamenta
por si mesma, expressando pesar pela dor que sua paixão provocou. Seu lamento não se
concentra na condição pessoal, mas sim no reconhecimento de seu erro e nas consequências
dele advindas. Helena, assemelhando-se aos heróis, manifesta soluços em decorrência das
batalhas e proezas que ela mesma instigou, lamentando assim a experiência humana associada
à Guerra de Troia. Esta peculiaridade a distingue como a única personagem feminina na
epopeia que exibe tal autonomia emocional, visto que categorias psicológicas como remorso e
culpa, comumente reservadas a figuras masculinas.
No discurso fúnebre proferido por Helena, destaca-se uma diferença fundamental em
relação aos discursos de Hécuba e Andrômaca, que lamentam a morte de seus protetores.
Helena expressa pesar pela perda de seu amigo e, mais do que isso, lamenta ser a causa da
morte desse amigo, desejando ter perecido antes de sua chegada a Troia, evitado, assim, a
eclosão da trágica guerra. De modo semelhante, Aquiles também se responsabiliza pela morte
de seu amigo16, distinguindo-se pelo fato de que não se encontra impotente diante de seu luto
e culpa. Ele busca a vingança como meio de aplacar seu sofrimento, embora, ao final,
descubra que a vingança não pode colocar um ponto final em seu sofrimento. Ao contrário,
Helena, privada de qualquer ação efetiva, dispõe apenas de suas lágrimas. Enquanto Aquiles
poderia ter intervindo para evitar a morte de Pátroclo e agora busca vingá-lo, Helena, por sua
vez, não teria tido meios para alterar seu destino, nem o destino daqueles que tombaram
durante a Guerra de Troia.
Observa-se, portanto, a construção de uma dicotomia de gênero masculino e feminino
por meio das relações estabelecidas entre homens e mulheres com o ato de chorar na narrativa
homérica. Essas categorias não se desenvolvem de maneira isolada, mas sim na intersecção
que ocorre nessas relações. Especificamente no contexto do luto, homens e mulheres
compartilham semelhanças nas suas reações emocionais, destacando paralelos entre as
manifestações emocionais de Aquiles e das mulheres troianas diante do luto. A análise das
reações emocionais diante do luto revela nuances na construção das identidades de gênero na
narrativa homérica. Embora homens e mulheres compartilhem similaridades nas expressões
de tristeza e sofrimento, as ferramentas e abordagens utilizadas para enfrentar o luto
delineiam claramente os limites entre as esferas de gênero. Aquiles, representando a esfera
masculina, procura a vingança como meio de lidar com sua dor, enquanto as mulheres
16
HOM, Il, C. XVIII, vv. 70-126
33

troianas, situadas na esfera feminina, encontram-se impotentes diante de sua dor. Essa
distinção não apenas reflete as normas culturais da sociedade homérica, mas também destaca
como as respostas emocionais são moldadas e definidas por construções sociais de gênero.
34

3 O CHORO DE AQUILES

O percurso delineado nos capítulos precedentes se fez fundamental para a


compreensão da manifestação do choro na Ilíada, incluindo suas expressões, os personagens
que o protagonizam, os momentos em que ocorre, bem como a relação entre o ato de chorar e
a construção dos gêneros masculino e feminino. Embasados na análise até aqui empreendida,
almejamos, neste capítulo, examinar, através do choro, a trajetória do personagem central,
Aquiles, ao longo do poema.
Werner Jaeger (1995, p. 29-30) destaca a importância da Ilíada como testemunho da
elevada consciência educadora da nobreza primitiva na Grécia Antiga. O autor ressalta que a
noção tradicional de excelência guerreira, representada pelo conceito de areté, não era mais
suficiente para os poetas da época mais jovem. Eles introduziram uma nova imagem do
Homem perfeito, que ia além da ação militar e incluía a nobreza do espírito. A união
harmoniosa desses dois elementos era considerada o verdadeiro objetivo. Jaeger destaca a
importância da palavra e da ação, salientando a ideia de que a verdadeira formação humana
envolve tanto o domínio da palavra quanto a realização de ações concretas. É o próprio
Aquiles quem afirma que ele não domina a palavra: “eu que não tenho igual entre os Aqueus
vestidos de bronze / na guerra, embora na assembleia outros sejam melhores” (HOM, Il, C.
XVIII, vv. 105-106). Estes versos sugerem que a postura de Aquiles na assembleia no início
da Ilíada não foi adequada, ou, pelo menos, a situação poderia ter sido gerida de maneira mais
apropriada. Além disso, indicam que Aquiles não possui domínio sobre a palavra, sugerindo
que ainda não alcançou a forma mais nobre de desenvolvimento humano.
Georg Simmel (2014, p. 145-147) explora a natureza da cultura ao destacar a
importância da união entre a subjetividade humana e elementos objetivos espirituais, como
arte, moral, ciência, religião, entre outros. A cultura não é apenas o desenvolvimento interno
da subjetividade, mas ocorre quando o indivíduo integra esses elementos objetivos em sua
vida. O autor ressalta a dualidade entre sujeito e objeto nas atividades humanas,
argumentando que a cultura representa uma superação desse dualismo. Nela, o sujeito
abandona parcialmente sua subjetividade para estabelecer uma relação com o objeto, criando
um sistema de relações internamente unificado. Essa dinâmica única caracteriza a cultura,
diferenciando-a de outras formas de atividade humana. Compreendemos que, ao abordar a
cultura, Simmel refere-se à formação, indicando que o desenvolvimento do indivíduo não
ocorre exclusivamente no interior de sua subjetividade. Pelo contrário, a formação ocorre em
interação com o mundo, não de forma isolada.
35

O historiador Alexandre Santos de Moraes, ao analisar a experiência da dor de Aquiles


como uma experiência pedagógica explora a natureza da experiência, considerando sua
evolução ao longo da vida e destacando a importância do tempo do ciclo vital. O autor
argumenta que a experiência não é apenas um resultado das interações sociais, mas sim a
capacidade de transformar eventos em significado. Moraes ressalta a importância do
conhecimento derivado dos eventos para a experiência (MORAES, 2015, p. 12-14). A
abordagem de Moraes vai de encontro com Georg Simmel, no sentido em que a experiência
vivida quando transformada em conhecimento torna-se um evento significativo que muda a
percepção de mundo do indivíduo.
No ideal pedagógico da nobreza em tempos primitivos, o exemplo destaca-se como
uma chave importante de aprendizado. Na ausência de leis formalizadas e ética sistematizada,
o exemplo era considerado um guia de ação eficaz. Em uma sociedade onde a transmissão de
valores era feita por meio de preceitos religiosos e tradições orais, os exemplos notáveis,
especialmente das sagas e heróis, eram fundamentais na formação ética e educacional. A
evocação desses exemplos era parte essencial da ética e educação aristocráticas, destacando a
valorização das narrativas exemplares na nobreza primitiva (JAEGER, 1995, p. 57-59). Isso
sugere que a nobreza primitiva valorizava muito a transmissão de histórias exemplares e
modelos de comportamento que encapsulavam virtudes, honra e qualidades desejáveis. O
exemplo, nesse contexto, não apenas inspirava, mas também servia como um elemento
constitutivo central na formação moral e educacional das gerações aristocráticas.
Com base nessas ideias, pretendemos defender que a narrativa de Aquiles na Ilíada
configura-se como uma jornada de formação. O herói obstinado e impulsivo no início do
poema, por meio de sua vivência com o luto, transforma-se em um herói mais equilibrado e
consciente ao término da obra. Essa transformação de Aquiles ao longo da Ilíada evidencia a
evolução do personagem, assim como também aponta para elementos mais amplos
relacionados à condição humana, à moralidade e à complexidade das relações sociais na
epopeia. A trajetória do herói não se limita apenas ao desenvolvimento individual, mas
também reflete os valores culturais da sociedade representada na obra. A experiência do luto,
que desencadeia a mudança em Aquiles, sugere uma reflexão sobre a natureza efêmera da
existência humana e a inevitabilidade do sofrimento. A superação desse sofrimento não
apenas molda o caráter do herói, mas também revela aspectos mais profundos sobre a
condição humana e a busca por significado na adversidade.
Aquiles não apenas desempenha o papel de protagonista na Ilíada, mas também se
apresenta como um personagem distintivo, como ele mesmo destaca em um verso
36

supracitado, na guerra não há outro que se equipare a ele. Talvez seja essa superioridade física
de Aquiles que contribua para sua personalidade intensa, levando-o à insensatez ao reagir de
maneira extrema a qualquer ofensa sofrida. De acordo com Jean-Pierre Vernant (1978, p.
32-33), é esse extremismo em relação à honra que coloca Aquiles à margem. Ele encontra-se
isolado em sua própria grandeza, e é precisamente por essa razão que ele personifica o ideal
de masculinidade, especificamente a masculinidade hegemônica. Mesmo sendo único em seu
tipo, Aquiles representa o modelo culturalmente exaltado de masculinidade, ainda que esse
modelo não seja adotado pelos outros homens da Ilíada.
A Ilíada é a canção sobre a fúria de Aquiles, mas também destaca-se por ser uma
narrativa de sua melancolia, o tema do luto constitui e delimita a complexidade do
personagem de Aquiles. Sua ira em relação a Agamêmnon o conduz a retirar-se do campo de
batalha, levando-o a uma contemplação solitária em proximidade às embarcações, onde ele
reflete sobre seu ressentimento e se isola de seus companheiros para lamentar à beira do mar.
As lágrimas nesse momento aparentam ser mais uma expressão de rancor e irritação do que
uma angústia genuína (MONSACRÉ, 2018, p. 162).

Mas logo Aquiles


rompeu a chorar e foi sentar-se longe dos companheiros,
na praia junto ao mar cinzento, olhando para o mar cor de vinho.
E estendendo as mãos, à mãe amada orou com afunco:
“Mãe, já que me deste à luz para uma vida tão curta,
honra deveria o Olímpio ter me concedido,
Zeus que troveja nas alturas. Mas agora em nada me honrou.
Pois o filho de Atreu, Agamêmnon de vasto poder,
desonrou-me. Tirou-me o prêmio, pela própria arrogância [...]
Mas agora, se na verdade podes, protege tu o teu filho
indo ao Olimpo para suplicar a Zeus, se é que alguma vez
lhe alegraste o coração com palavras ou com atos.
Pois muitas vezes te ouvi declarar no palácio de meu pai
que só tu entre os importais afastaste a desgraça vergonhosa
do filho de Crono da nuvem azul, no dia em que
acorrenta-lo quiseram os demais Olímpios,
Hera e Posêidon e Palas Atena [...]
Estas coisas traz-lhe agora à lembrança e agarra-lhe os joelhos,
na esperança de que ele queira favorecer os Troianos,
encurralando os Aqueus junto às popas das naus
enquanto são chacinados, para que todos tirem proveito
daquele rei, e que reconheça o Atrida, Agamêmnon de vasto poder,
a sua loucura, por em nada ter honrado o melhor dos Aqueus.”
(HOM, Il, C. I, vv. 348-412).

Aquiles chora em decorrência da afronta à sua honra, chegando ao ponto de questionar


as divindades. Tendo a certeza de que encontrará a morte prematuramente, sente que a glória
deve lhe ser concedida. Deseja que Zeus imponha infortúnios aos aqueus, a fim de que
37

reconheçam que sem ele, não podem vencer. O caráter individualista e, por vezes, egoísta de
Aquiles se evidencia quando expressa indiferença ao destino coletivo dos Aqueus, como
ilustrado em sua declaração: "Quem me dera – ó Zeus pai!, ó Atena!, ó Apolo! – / que
nenhum dos Troianos escapasse à morte, nenhum deles!, / nem nenhum dos Argivos!" (HOM,
Il, C. XVI, vv. 97-99), desde que ele próprio alcance a glória devida. Quando Crises busca a
restituição de sua filha mediante resgate, Aquiles aconselha Agamêmnon a devolver Criseida.
No entanto, sua indignação surge quando Agamêmnon sugere a devolução de Criseida
impondo a condição de que, entre os aqueus, alguém, incluindo Aquiles, ofereça um
substituto em troca, e caso neguem-se, Agamêmnon tomará à força17. O espírito competitivo
de Aquiles é tão acentuado que ele demanda de Agamêmnon uma ação que ele mesmo não
está disposto a realizar, qual seja, renunciar ao seu próprio prêmio.
Werner Jaeger destaca a estreita relação entre honra e areté na concepção da nobreza
nos tempos antigos, especialmente no contexto descrito por Homero. A honra era
intrinsecamente vinculada à habilidade e ao mérito individual. A negação da honra
representava, inversamente, a maior tragédia humana, sendo considerada uma perda
irreparável. Na sociedade representada por Homero e na cultura nobre da época, a honra não
era apenas um conceito abstrato; era um elemento fundamental na estrutura social. Os heróis e
nobres tratavam-se uns aos outros com constante respeito e honra, constituindo a base da
ordem social. A busca pela honra era insaciável nos heróis, e exigir uma honra crescente era
considerado natural e inquestionável, especialmente para aqueles de maior prestígio e poder
(JAEGER, 1995, p. 30-32). Assim, observa-se que, nesse contexto, Aquiles, apesar de sua
reação extrema, mantém sua razão, mesmo que pudesse ter conduzido a situação de maneira
diferente. Agamêmnon desconsidera o código social estabelecido entre os nobres e, diante da
perda de seu próprio prêmio, utiliza sua posição de rei para apropriar-se do prêmio de outro.
Contudo, concordamos com Alexandre de Moraes quando ele afirma que a decisão de
Aquiles de se retirar do campo de batalha após o conflito com Agamêmnon, representa uma
negação da experiência. Ao se afastar voluntariamente do conflito, ele se distancia da
oportunidade de vivenciar os eventos significativos proporcionados tanto pela guerra quanto
pelos debates nas assembleias. Nesse retiro para o acampamento dos Mirmidões,
acompanhando a guerra à distância, o herói interrompe seu processo de desenvolvimento
como adulto, recusando-se, assim, a aceitar o inevitável envelhecimento (MORAES, 2015, p.
16). Isso significa que ao retirar-se dos eventos da guerra e abstendo-se de vivenciá-la,
Aquiles interrompe temporariamente seu desenvolvimento, como evidenciado quando, no
17
HOM, Il, C. I, vv. 8- 187
38

Canto IX, Agamêmnon renuncia a sua postura e busca a reconciliação com Aquiles. A recusa
de Aquiles diante das vastas oferendas de Agamêmnon, que incluem a devolução de
Briseida18, revela um Aquiles muito mais desmedido em comparação ao Aquiles apresentado
no primeiro Canto. Isso sugere não apenas a interrupção de sua formação, mas possivelmente
uma regressão, violando o decoro da honra aristocrática.
A ausência de Aquiles é notada na narrativa, pois do Canto II ao VIII não há descrição
de nenhuma ação do personagem central, deixando a Ilíada silenciosa sobre aquele que se
propôs a cantar sobre a cólera. Aquiles reaparece somente no Canto IX, e é interessante notar
como Homero elabora esse retorno. Enquanto caminham pela praia, Ájax, Odisseu e Fênix,
encarregados de transmitir a oferta de Agamêmnon, encontram Aquiles desfrutando do som
de uma lira de prata, um espólio de guerra. Sentado e com apenas Pátroclo como sua
audiência silenciosa, Aquiles contrasta fortemente com as preocupações dos outros aqueus em
relação à iminente catástrofe nas planícies de Troia (MORAES, 2015, p. 16-17).

Chegaram às naus e às tendas dos Mirmidões


e encontraram-no a deleitar-se com a lira de límpido som,
bela e bem trabalhada, cuja armação era de prata –
lira que ele arrebatara depois de destruir a cidade de Eécion.
Com ela deleitava o seu coração, cantando os feitos gloriosos
dos homens; e só Pátroclo estava sentado à sua frente,
ouvindo em silêncio, à espera que o Eácida parasse de cantar.
(HOM, C. IX, vv. 185-191).

A atitude descompromissada de Aquiles, aparentemente indiferente ao desastre que


assolava o exército aqueu, sem expressar qualquer senso de dever ou solidariedade para com
seus companheiros, contrasta significativamente com o comportamento de Heitor. Este
último, seguindo o conselho de seu irmão Heleno, decide se retirar da batalha, adentrando a
cidade de Ílion, para solicita que sua mãe realize oferendas a Atena, buscando afastar
Diomedes das muralhas da cidade19. Lá, Heitor encontra sua mãe, Hécuba, sua esposa,
Andrômaca, e Helena, sua cunhada, além de seu irmão Páris. Segundo Monsacré (2018, p.
50), O episódio todo é marcado pela pressa e pela vergonha. Heitor está preocupado em não
se deixar envolver pela ternura dessas três mulheres e teme ser percebido como covarde ao
entrar na cidade. Como se lutasse contra um sentimento de culpa avassalador, Heitor
constantemente sente a necessidade de retornar ao seu lugar apropriado, fora da cidade, ao
lado dos homens na batalha. Notavelmente, além de Páris, as únicas pessoas que Heitor

18
HOM, Il, C. IX, vv. 182-429
19
HOM, Il, C. VI, vv. 73-118; 237-528
39

encontra são mulheres: as mulheres de Troia reunidas, sua mãe, sua cunhada, suas servas e,
por fim, sua esposa. Essa não é a condição usual de um guerreiro, que normalmente se
comunica apenas com seus companheiros e inimigos. Para além disso, Heitor, ao encontrar
Páris, o repreende veementemente por estar fora da batalha. Esse contraste entre a atitude de
Aquiles e a de Heitor ressalta as diferentes concepções de dever, honra e comportamento entre
os personagens.
Jaeger destaca o papel crucial do sentido do dever nos poemas homéricos como uma
característica essencial da nobreza. A nobreza, orgulhando-se da imposição de padrões
rigorosos, exerce uma influência educadora ao despertar o sentimento do dever em relação ao
ideal. O termo aidos é mencionado como o sentimento do dever, ao qual se pode sempre
apelar. A violação desse dever desperta nos outros o sentimento intimamente ligado a ele, a
nemesis, delineando a importância do cumprimento do dever e as consequências decorrentes
da sua violação na sociedade aristocrática retratada nos poemas épicos de Homero (JAEGER,
1995, p. 28). A ideia por trás de nemesis é a punição inevitável que se abate sobre aqueles que
ultrapassam limites éticos ou sociais. Na passagem mencionada, o termo nemesis é associado
ao sentimento despertado nos outros quando o dever (aidos) é violado, indicando que a
quebra das normas éticas aristocráticas resulta em consequências e represálias. No caso de
Aquiles, a consequência se materializará no Canto XVI, com a morte, engendrada por Zeus,
de seu querido Pátroclo, o único entre gregos e troianos cuja morte Aquiles não desejava.
Aquiles recusa até mesmo a intervenção do ancião Fênix, seu educador desde a
infância, quando este, juntamente com Ajax e Ulisses, forma uma embaixada enviada por
Agamêmnon para oferecer-lhe oferendas em um gesto de reconciliação. No mesmo discurso,
Fênix tenta apelar para sua relação pessoal com Aquiles, lembrando-o de que mesmo os
deuses reconsideram suas decisões. Ele destaca que não se deve recusar uma oferta tão
grandiosa quanto aquela feita por Agamêmnon e evoca a história de Maleagro como exemplo
de um herói enfurecido que retrocedeu em sua palavra, lutando para salvar sua cidade da
ruína20, na esperança de que a história tenha algum efeito pedagógico sobre Aquiles.
Jaeger destaca o discurso de Fênix como um modelo exortativo do educador para com
seu discípulo, Aquiles. O discurso de Fênix é apresentado como uma forma persuasiva de
aconselhamento. A narrativa sobre Maleagro é considerada um paradigma mítico, exemplar e
representativo de muitos encontrados nos discursos da Ilíada e da Odisseia, destinados a
transmitir lições éticas. Observa-se que o uso de paradigmas ou exemplos é comum em
discursos didáticos, sendo empregados para ilustrar princípios morais. O objetivo de Fênix é
20
HOM, Il, C. IX, vv. 432-605
40

dobrar a vontade inquebrantável de Aquiles e chamá-lo à razão. O autor sugere que a recusa
inflexível de Aquiles em participar da guerra pode resultar em um desfecho trágico, indicando
a gravidade e a inevitabilidade de consequências negativas caso Aquiles não altere sua postura
(JAEGER, 1995, p. 51).
Percebe-se uma dualidade de perspectivas em relação à educação, exemplificada por
Fênix, e ao destino de Aquiles. Inicialmente, o poeta expressa sua admiração pela elevada
educação personificada na figura de Fênix. No entanto, essa reverência coexiste com a
percepção de um dilema significativo no destino de Aquiles, mesmo considerando sua
formação exemplar na virtude humana. “Contra a poderosa força irracional do desvario, da
deusa Ate, são impotentes toda a arte da educação humana e todo o conselho razoável”
(JAEGER, 1995, p. 52). Isso sugere que a educação possui limitações, e onde a instrução
formal e o aconselhamento racional falham em alcançar resultados, a experiência,
notadamente aquela associada à dor, que inevitavelmente leva ao pranto, torna-se a única
educadora possível.
A história de Maleagro também guarda outro significado. Gregory Nagy nos aponta
que a história de Maleagro é utilizada para ilustrar o princípio ético de “philótēs” ou “ser um
phílos” na sociedade guerreira. A narrativa de Maleagro é um exemplo épico apresentado a
Aquiles na tentativa de persuadi-lo a superar sua raiva e se reunir aos seus companheiros de
armas, os hetaîroi, que são seus phíloi. O autor destaca a importância da palavra
"phílos/phíloi", que, quando usada como substantivo, é traduzida como "amigo" e, como
adjetivo, como "querido" ou "próprio". O termo carrega conotações institucionais e
sentimentais, associadas à hospitalidade, ao lar e ao comportamento emocional. A história de
Maleagro, assim como a de Aquiles, trata da retirada do herói da batalha, revelando a ira que
ambos experimentam. Uma comparação significativa é feita em relação aos hetaîroi,
companheiros de armas, que ocupam uma posição proeminente na escala de afeições sociais
de Maleagro. A análise de Nagy destaca a excepcional importância de Pátroclo na escala
afetiva de Aquiles. A mensagem distintiva para Aquiles é que, em sua escala ascendente de
afeição, Pátroclo deve ocupar o lugar mais alto, sendo o hetaîros mais phílos. Ao abordar as
tentativas das delegações de persuadir Aquiles a retornar à batalha, o autor destaca a falha
delas em comparação com o sucesso do sacrifício de Pátroclo. Mesmo que a embaixada
formada por Ajax, Ulisses e Fênix reivindique ser os mais phíloi para Aquiles, ele rejeita a
oferta de compensação deles, pois, do ponto de vista da Ilíada, Pátroclo é ainda mais phílos.
A morte de Pátroclo é fundamental para restaurar a philótēs, o estado de ser phílos, entre
41

Aquiles e os aqueus, reconhecendo sua obrigação social para com os phíloi (NAGY, 1999, p.
173-178).
Ou seja, na perspectiva de Aquiles, apenas Pátroclo teria a capacidade de persuadi-lo a
retornar ao combate. De fato, o primeiro sinal de que Aquiles começa a reavaliar sua posição
ocorre quando Pátroclo, em lágrimas, suplica que Aquiles, pelo menos, permita que ele vista
suas armas e o substitua, afastando assim o exército troiano das embarcações e
proporcionando alívio aos aqueus (HOM, C. XVI, vv. 1-100). Conforme mencionado
anteriormente, a armadura de um guerreiro não se limita simplesmente a proteger seu corpo
durante o combate. A armadura representa uma extensão da identidade do guerreiro, sendo
intrinsecamente ligada a ele. Portanto, é notável que, quando Pátroclo veste a armadura de
Aquiles, ela ajusta-se perfeitamente a ele21, Em contraste, após Heitor matar Pátroclo e tentar
vestir a armadura de Aquiles, foi necessária a intervenção de Zeus para que ela se adequasse a
seu corpo22 (MONSACRÉ, 2018, p. 67). Tal fato sugere que Pátroclo, como o companheiro
mais estimado por Aquiles, detém uma posição de notável destaque para nosso protagonista, a
ponto de integrar-se à sua identidade. Dessa forma, quando Pátroclo falece, Aquiles
experimenta sua morte como se uma parte intrínseca de si mesmo tivesse perecido. Esta foi a
reação de Aquiles a morte de Pátroclo:

... uma nuvem negra de dor se apoderou de Aquiles.


Levantando com ambas as mãos a poeira enegrecida,
atirou-a por cima da cabeça e lacerou seu belo rosto.
Sobre a sua túnica perfumada caiu a cinza negra.
E ele próprio, grandioso na sua grandiosidade, jazia
estatelado na poeira e com ambas as mãos arrancava o cabelo.
As servas que Aquiles e Pátroclo tinham arrebatado como espólio
gritaram bem alto na angústia do coração e correram porta afora
junto do fogoso Aquiles. Todas as mãos batiam
no peito e cada uma delas se enfraqueceram os joelhos.
Por seu lado Antíloco lamentava-se e chorava muitas lágrimas,
segurando nas mãos de Aquiles, que gemia no seu glorioso coração;
é que receava que com o ferro ele cortasse a própria garganta.
Medonhos foram os gritos de Aquiles. Ouviu-o a excelsa mãe,
Sentada nas profundezas do mar junto do ancião, seu pai.
(HOM, C. XVIII, vv. 22-36).

A resposta de Aquiles não é retratada em um discurso, mas por suas ações. De acordo
com Edwards, em sua agonia, Aquiles manifesta sua angústia através de gestos simbólicos,
como sujar a cabeça com poeira, rolar no chão e arrancar os cabelos. A linguagem associada
ao luto entrelaça-se com a da morte, visto que a ação de sujar a cabeça com poeira não apenas

21
HOM, C. XVI, vv. 130-139
22
HOM, C. XVII, vv. 209-210
42

denota extremo sofrimento, mas também é simbólica da morte em contexto de batalha. A


presença das mulheres lamentando reforça a sugestão de que Aquiles não está apenas em luto,
mas também em um estado que pode ser interpretado como simbólico de sua própria morte
(EDWARDS, 1991, p. 144). Pátroclo é o único capaz de provocar uma reação tão profunda e
desoladora em Aquiles, destacando a singularidade da relação entre os dois personagens. O
lamento coletivo das mulheres sublinha a magnitude do evento e sugere que, além da morte
física de Pátroclo, Aquiles está enfrentando uma morte simbólica, marcando um ponto crucial
na narrativa e na transformação do herói trágico.
Com a morte de Pátroclo, Aquiles é dominado pelas lágrimas. A partir desse
momento, sua motivação essencial passa a ser a vingança contra Heitor. Matar e chorar
tornam-se características distintivas de Aquiles. Os Cantos XVIII e XIX da Ilíada são
predominantemente dedicados à narrativa das lágrimas de Aquiles, marcando uma interrupção
nos conflitos após a morte de Pátroclo. Nesse ponto, a trama se desloca e se inverte, com as
lágrimas de Aquiles segue-se a reconciliação no acampamento aqueu e os preparativos para o
próximo combate. Aquiles cessar o pranto para retomar a batalha. Após a morte de Heitor, ele
volta ao acampamento para organizar os preparativos funerários de Pátroclo; chorar por seu
amigo torna-se a única conduta possível, coerente com a lógica de seu caráter (MONSACRÉ,
2018, p. 162-163). Assim como Helena lamenta por se considerar responsável pela morte de
Heitor, seu único amigo em Troia, Aquiles, ao chorar por Pátroclo, lamenta por si mesmo,
pois também se culpa pela morte do amigo, e de outros aqueus que também caíram no campo
de batalha. Além de compreender que, com a morte de Pátroclo, é como se ele próprio já
estivesse morto: “que eu morra logo em seguida, visto que auxílio não prestei / ao
companheiro quando foi morto [...] / agora já não regressarei à amada terra pátria, / nem serei
luz para Pátroclo nem para os outros companheiros” (HOM, C. XVIII, vv. 98-102).
De acordo com Nagy, o envolvimento pessoal é um fator decisivo para determinar se
uma situação épica suscitará sentimentos de glória ou tristeza (NAGY, 1999, p. 168). Isso
implica que, para aqueles que, tempos depois, tomam conhecimento da morte de Pátroclo na
Guerra de Troia, a narrativa se torna gloriosa, destacando-se como sua morte se equipara aos
feitos por ele no campo de batalha antes de sucumbir perante Heitor. No entanto, para aqueles
próximos de Pátroclo, notadamente seus companheiros aqueus e, acima de todos, Aquiles, a
morte de Pátroclo não pode ser gloriosa, ela demanda tristeza, dor, luto e lágrimas.
Ao se aprofundar na relação entre o luto e a glória, Nagy afirma que no universo
homérico, ákhos (dor) funciona como uma variante frasal de outro substantivo, pénthos (luto),
e ambas as palavras são usadas para descrever a tristeza de Aquiles pela perda de tīmḗ
43

(honra)23. Elas também expressam a tristeza de Aquiles pela morte de Pátroclo. O termo kléos
é utilizado na poesia para designar o prestígio público. Por outro lado, pénthos refere-se ao
ritual público de luto, formalmente conduzido com canções de lamentação24. A relação
tradicional entre pénthos e kléos é evidenciada pelo uso de epítetos fixos associados a cada
termo. O epíteto álaston (inquebrável) é aplicado a pénthos, enquanto áphthiton (inabalável25)
é o epíteto fixo de kléos. A escolha desses epítetos sugere uma conexão profunda entre o luto
público e o prestígio público. Uma vez que o significado de álaston está coordenado com o
tema mais amplo de mnēmosúnē (memória), na concepção da poesia homérica, o poder
mnemônico sagrado das Musas desempenha um papel crucial na preservação e transmissão do
kléos épico. Sendo assim, o ákhos/pénthos que Aquiles tem por Pátroclo26 é a tristeza que faz
Aquiles finalmente voltar à batalha (NAGY, 1999, p. 163; 171-172). Em outras palavras, a
obtenção da glória requer inevitavelmente a experiência do sofrimento, sendo este, um
precursor que, por sua vez, culmina na expressão de lágrimas. Monsacré (2018, p. 165-166)
também concorda com essa alegação ao afirmar que as lágrimas representam um
complemento intrínseco ao kléos; ambos são interdependentes. Sob essa perspectiva, não há
elementos no ato de chorar que diminuam ou enfraqueçam a figura do herói. Aquiles, o
modelo da coragem masculina, manifesta a inflexível lei da condição heroica, na qual glória e
sofrimento são inseparáveis.
Contudo, é importante enfatizar que Aquiles continua a exibir um comportamento
excessivo mesmo após a morte de Pátroclo, evidenciado pela transgressão de todas as normas
de honra ao negar a Heitor um funeral. Após assassinar Heitor, Aquiles transporta o corpo de
volta para seu acampamento para profana-lo27. O respeito aos ritos fúnebres é de tamanha
importância que requer a intervenção do próprio Zeus para que Aquiles devolva o corpo de
Heitor28. A cólera de Aquiles permanece, apenas se desloca de Agamêmnon para Heitor.
O temperamento selvagem e intransigente de Aquiles é uma característica persistente
até o Canto XXIV da Ilíada, ponto em que a piedade começa a despontar, sinalizando a
proximidade do ápice do refinamento heroico do protagonista ilíaco (NAGY, 1999, p. 183). É
em sua última aparição no poema, em diálogo com o rei Príamo, que contemplamos o clímax
da jornada de formação de Aquiles.
23
HOM, Il, C. I, v. 188, 362; C. XVI v. 52, 55
24
HOM, Il, C. XXIV, vv. 708-781
25
Frederico Lourenço não traduziu os termos álaston e áphthiton de forma fixa em todas as suas passagens ao
longo do poema. Por exemplo, áphthiton aparece como “indizível” em C. III, v. 373, e como “imorredouro” em
C. IX, vv. 413
26
HOM, Il, C. XVIII, v. 22
27
HOM, Il, C. XXII, vv. 330-405
28
HOM, Il, C.XXIV, vv. 22- 76
44

Suplicante lhe dirigiu então Príamo este discurso:


“Pensa no teu pai, ó Aquiles semelhante aos deuses!
Ele que tem a minha idade, na soleira da dolorosa velhice.
Decerto os que vivem à volta dele o tratam mal,
e não há ninguém que dele afaste o vexame e a humilhação.
Porém quando ouve dizer que tu estás vivo,
alegra-se no coração e todos os dias sente esperança
de ver o filho amado, regressado de Troia.
Mas eu sou totalmente amaldiçoado, que gerei filhos excelentes
na ampla Troia, mas afirmo que deles não me resta nenhum.
Eram cinquenta, quando chegaram os filhos dos Aqueus.
Dezenove nasceram do mesmo ventre materno;
os outros foram dados à luz por mulheres no palácio.
A estes, numerosos embora fossem, Ares furioso deslassou os joelhos.
E o único que me restava, ele que sozinho defendia a cidade e o povo,
Esse tu mataste quando ele lutava para defender a pátria:
Heitor. Por causa dele venho às naus dos Aqueus
para te suplicar; e trago incontáveis riquezas.
Respeita os deuses, ó Aquiles, e tem pena de mim,
lembrando-te do teu pai. Eu sou mais desgraçado que ele,
e aguentei o que nenhum outro terrestre mortal aguentou,
pois levei à boca a mão do homem que me matou o filho.”
Assim falou; e em Aquiles provocou o desejo de chorar pelo pai.
Tocando-lhe com a mão, afastou calmamente o ancião.
E ambos se recordavam: um deles de Heitor matador de homens
e chorava amargamente, rolando aos pés de Aquiles;
porém Aquiles chorava pelo pai, mas também, por outro lado,
por Pátroclo. O som do seu pranto encheu toda a casa.
Mas depois que o divino Aquiles se saciou de chorar,
e o respectivo desejo lhe saíra do coração e dos membros,
imediatamente se levantou do trono e levantou o homem
com a mão, condoído de ver a cabeça e a barba grisalhas
(HOM, Il, C. XXIV, vv. 485-516).

O discurso de Príamo ressoa em Aquiles, fazendo-lhe pensar em seu próprio pai, idoso
e destituído de qualquer perspectiva de glória. A única consolação para o seu coração repousa
na esperança de ver seu filho regressar vivo de Troia. Contudo, Aquiles está ciente de que tal
retorno não acontecerá, reconhecendo em Príamo a angústia que seu próprio pai
experimentará ao receber a notícia de sua morte. Ao mesmo tempo, Aquiles reconhece sua
própria dor pela perda de seu amado Pátroclo.
Segundo Alexandre de Moraes, é evidente que a transformação pela qual Aquiles
passa está intrinsecamente ligada à intensa dor que ele vivencia. Nesse contexto, nas
mentalidades delineadas no mundo de Homero, as diversas manifestações de dor e sofrimento
são reconhecidas como eventos significativos capazes de gerar o conhecimento essencial para
uma existência plena, como delineado na noção de experiência que o autor sustenta. Aquiles
não admira um inimigo nem um rei por suas proezas gloriosas; em vez disso, ele lança um
olhar admirativo para alguém que suportou o fardo do sofrimento. Através da figura de
Príamo, o filho de Peleu volta sua atenção para as implicações mais profundas de seus
45

próprios atos, uma reflexão que se torna possível graças à sua experiência prévia de perda
com a morte de Pátroclo. Essa mesma experiência o impulsionou a abandonar a postura
competitiva em relação a Agamêmnon, adotando, em vez disso, uma abordagem cooperativa
em relação aos aqueus. Por meio da dor, Aquiles adquire um tipo específico de sabedoria,
possibilitando a renúncia a suas atitudes juvenis, caracterizadas pela impulsividade e
precipitação. Somente através dessa experiência profunda, a glória duradoura tornou-se
alcançável para o herói (MORAES, 2015, p. 19; 24).
A formação de Aquiles atinge seu ápice quando ele se depara não apenas com a
própria dor pela perda de Pátroclo, mas também com a compreensão mais ampla das
complexidades humanas. A imagem do ancião Príamo, que, apesar de sua própria dor e
perdas, encontra coragem para buscar a reconciliação com o assassino de seus filhos, torna-se
um catalisador para a transformação de Aquiles. Ao abraçar a empatia e compreender as
dimensões mais profundas da experiência humana, Aquiles transcende as limitações de sua ira
e ego, atingindo, assim, a plenitude de sua areté e transcendendo motivações egoístas.
Conforme Monsacré, o mais destacado entre os aqueus é, portanto, aquele que com maior
frequência vivencia a tristeza, demonstrando uma inclinação mais evidente às lágrimas e ao
choro. Esta característica, longe de ser paradoxal, é, ao contrário, fundamentalmente arraigada
em sua natureza. O herói não é meramente uma máquina de destruição; ele se destaca como
herói tanto por sua coragem diante da morte quanto pela sua íntima ligação com a experiência
da dor (MONSACRÉ, 2018, p. 162-163).
Gregory Nagy afirma que após a morte de Pátroclo a ira de Aquiles o consome em
uma agonia autodestrutiva. Sua fúria intensa o mergulha nas profundezas da brutalidade,
levando-o a enxergar o inimigo como o "Outro" definitivo, a ser odiado com uma intensidade
tal que, em um momento de fúria desenfreada, Aquiles chega a expressar o mais horrendo dos
desejos: consumir a carne de Heitor, o homem que está prestes a matar29. A Ilíada narra a
história do sofrimento de um herói, culminando em uma cólera que o degrada ao nível de um
animal selvagem, às profundezas da bestialidade. Esse mesmo sofrimento, esse sentimento de
perda, no entanto, eventualmente conduzirá a selvageria da cólera a se aplacar, resultando em
um momento de autoconhecimento que eleva Aquiles ao reino mais sublime da humanidade
ou do humanismo. No fim da Ilíada, quando Aquiles começa a reconhecer a dor de seus
inimigos mais mortíferos, do "Outro", ele inicia a conquista de um verdadeiro entendimento
de si mesmo (NAGY, 2018, p. 32).

29
HOM, Il, C. XXII, vv. 345-347
46

Dessa forma, a transformação de Aquiles é uma jornada que o conecta a uma


compreensão mais profunda da natureza humana e de seu papel no tecido social. Essa
metamorfose, alimentada pela experiência da dor e pela empatia, eleva Aquiles a um patamar
de maturidade emocional e moral, marcando uma significativa evolução em sua jornada
pessoal, não apenas moldando Aquiles como indivíduo, mas também o posicionando como
uma figura simbólica que transcende as fronteiras do mito. Sua jornada, marcada por uma
busca interna por significado e entendimento, não é apenas um reflexo de sua própria
evolução, mas também uma reflexão sobre as complexidades inerentes à condição humana.
47

CONCLUSÃO

Segundo a historiadora Bruna Moraes da Silva, a sociedade homérica, associada ao


período aproximado do século VIII a.C. na Grécia Antiga, não pode ser diretamente vinculada
a uma época específica, pois possui uma coerência interna própria. Homero, ao criar suas
obras, compilou elementos de diversos contextos, tornando complexa a atribuição de um
sistema político específico às suas epopeias. Mesmo reconhecendo influências de modelos
anteriores e contemporâneos ao tempo do aedo, a caracterização precisa desse sistema político
permanece desafiadora. De acordo com a autora, ser membro da aristocracia significava
compartilhar uma cultura e valores transmitidos de geração a geração, com a genealogia
sendo um dos fatores primordiais nesse contexto. A aristocracia, entendida como um grupo
coeso e privilegiado, enfrentava desafios devido ao surgimento de um novo modelo político, a
pólis. Embora os áristoi (melhores) não tenham perdido totalmente seu poder, a autora sugere
que o contexto histórico vivido pelo aedo reflete a instabilidade da aristocracia, uma vez que
as mudanças estruturais do século VIII a.C. começavam a desafiar seus privilégios. A escolha
de personagens aristocráticos nas obras de Homero é interpretada como uma expressão
particular desse ponto de vista aristocrático, que, segundo Silva, tendia ao colapso devido às
mudanças em andamento na sociedade. Destacar a ética guerreira e elevar os heróis a uma
posição de exaltação era uma estratégia para legitimar a posição da aristocracia em meio às
transformações políticas e sociais. Assim, a autora sugere que as epopeias homéricas serviram
como uma forma de preservar e reforçar a identidade aristocrática em um período de
transição, destacando elementos que legitimavam a posição da aristocracia em um momento
em que seus privilégios estavam sendo questionados (SILVA, 2020, p. 34-35).
Além disso, Pierre Carlier destaca a consciência tanto dos aedos quanto do público em
relação às diferenças entre os costumes da idade dos heróis, retratada nas epopeias, e os
hábitos contemporâneos à época em que as obras foram criadas. Os aedos tinham o cuidado
de evitar anacronismos evidentes, ou seja, não queriam representar de maneira incoerente
costumes que fossem anacrônicos em relação à era dos heróis. Apesar disso, os aedos não
podiam se desvincular completamente da civilização material de sua própria época, pois
precisavam referenciá-la para que fossem compreendidos pelo público. O mundo descrito por
Homero é reconhecido como uma mistura de memórias de diferentes épocas, mas essa
mistura é considerada coerente e verossímil, em grande parte devido à experiência do aedo e à
compreensão de seu público (CARLIER, 2008, p. 239; 250).
48

Portanto, percebemos como o contexto social e político influenciou a representação


das relações e valores na epopeia homérica. A sociedade aristocrática de Homero, embora
permeada por ideais guerreiros e genealogias nobres, enfrentava pressões crescentes devido às
mudanças nas estruturas políticas. A emergência da pólis como uma nova forma de
organização política indicava um desafio significativo para a estabilidade e hegemonia da
aristocracia. Nesse cenário, as epopeias de Homero podem ser interpretadas como uma
resposta a essas transformações, buscando não apenas preservar a identidade aristocrática,
mas também legitimar sua posição em meio às mudanças em curso. É notável que, mesmo na
exaltação dos valores aristocráticos, já se percebe, de maneira embrionária, a presença e
influência dos ideais da pólis. A ética guerreira, embora central, coexiste com elementos que
apontam para uma conscientização crescente da importância da comunidade sobre o
indivíduo. A transformação de Aquiles, ao reconhecer a responsabilidade de representar uma
luz para seus companheiros30, sinaliza uma transição na concepção de heroísmo e liderança,
indicando a fusão incipiente entre valores aristocráticos e a crescente ênfase na coletividade
da pólis. Assim, a poesia homérica além de refletir a complexidade e a fluidez do ambiente
cultural em que foi produzida, também desempenha um papel ativo na negociação das tensões
sociais e políticas de sua época, incorporando, ainda que de forma inicial, os germes dos
valores que moldariam a futura ordem política grega.
Jaeger aponta a importância do mito como portador de um significado normativo, que
tem valor educativo mesmo quando não é explicitamente utilizado como modelo ou exemplo.
O mito, segundo o autor, contém em si um significado educativo intrínseco, derivado de sua
própria natureza. O autor ressalta que o mito não é educativo simplesmente porque se
compara um acontecimento da vida cotidiana com um evento exemplar do mito. Em vez
disso, o mito é educativo pela sua capacidade inerente de celebrar a glória, o conhecimento do
que é magnífico e nobre, destacando eventos extraordinários que, por sua própria natureza,
têm o poder de compelir a atenção. O cantor, ao narrar o mito, não se limita a relatar fatos,
mas também louva e exalta aquilo que é digno de elogio e louvor no mundo (JAEGER, 1995,
p. 67-68). Essa abordagem do mito como veículo de valores éticos e como uma fonte de
inspiração moral destaca a importância da tradição e da narrativa épica na transmissão de
ideais e princípios fundamentais. O mito, então, desempenha um papel crucial na formação
cultural e ética dos ouvintes, moldando sua compreensão do que é nobre, glorioso.
Dessa forma, compreendemos que a narrativa de Aquiles, conforme apresentada na
Ilíada, surge neste cenário como um exemplo mítico de um ideal de masculinidade que pode
30
HOM, Il, C. XVIII, v. 102
49

ser considerado "hegemônico". Sua história desempenha tanto o papel de rememorar o


passado da sociedade aristocrática em declínio quanto de apontar para o futuro, já
incorporando nos atributos do herói os ideais embrionários da nova formação social que
despontava, já em um contexto em que o culto heroico renascia.
A masculinidade hegemônica, conforme Connel e Messerschmidt expõem, não se
limita a meras expectativas de comportamento masculino, mas sim a um conjunto de práticas
que permitem a dominação dos homens sobre as mulheres. Ela se distingue de outras formas
de masculinidade e é vista como a norma idealizada de como um homem deve ser. Homens
que não adotam diretamente o modelo hegemônico também se beneficiam do patriarcado. A
hegemonia, nesse contexto, não é mantida apenas pela força, mas também pela cultura,
instituições e persuasão. Isso significa que as normas sociais e institucionais desempenham
um papel fundamental na manutenção do poder masculino. As relações de gênero são
históricas e sujeitas a mudanças, evoluindo de acordo com as mudanças e sociais (CONNEL;
MESSERSCHMIDT, 2013, p. 244-245)
Posto que, podemos observar através da análise empreendida que através das lágrimas
derramadas pelos personagens homéricos, não apenas revela suas características individuais,
mas também aponta para a construção social das masculinidades na épica de Homero. As
lágrimas, nesse contexto, são mais do que expressões de emoção; são reveladoras das
expectativas culturais em torno do heroísmo, da liderança e da coragem. Cada personagem
chora por razões distintas, refletindo as complexidades das experiências masculinas na
sociedade homérica. Além de identificarmos na narrativa homérica, a construção das
identidades de gênero na dicotomia entre masculino e feminino através das reações ao ato de
chorar, especialmente no contexto do luto. Homens e mulheres compartilham semelhanças
emocionais, notadamente nas expressões de tristeza, como observado nas reações de Aquiles
e das mulheres troianas. Contudo, as estratégias para enfrentar o luto revelam diferenças
claras entre as esferas de gênero. Essa distinção não apenas reflete as normas culturais
homéricas, mas também ilustra como as respostas emocionais são moldadas por construções
sociais de gênero. O texto evidencia a subordinação das mulheres aos homens. Os homens são
considerados senhores de seus próprios destinos, enquanto as mulheres permanecem à mercê
das escolhas masculinas, incapazes de modificar seus próprios destinos, conforme delineado
pela personagem de Andrômaca. Seu papel se resume ao de esposa que se preocupa por seu
marido, pois se ele morrer, seu destino certo será a escravidão.
Enquanto isso, Aquiles, ao ser eleito como a personificação dos ideais da aristocracia
guerreira, desempenha um papel crucial na construção de um modelo de masculinidade que
50

reflete as mudanças sociais em curso na Grécia do século VIII a.C. Sua jornada formativa,
delineada ao longo da epopeia, destaca-se como um exemplo das transformações que
ocorriam na estrutura social helenística. Através das experiências de sofrimento e expressões
emocionais, Aquiles não apenas personifica a masculinidade da sociedade aristocrática, mas
também transcende esses limites para incorporar elementos do emergente ethos políade. Sua
capacidade de se conectar com a dimensão emocional, expressando tristeza e pesar, revela
uma complexidade além do estereótipo rígido associado à masculinidade guerreira. Nesse
contexto de transição social, Aquiles não se torna apenas um exemplo isolado, mas sim um
arquétipo que simboliza a maleabilidade e adaptação da masculinidade diante das
transformações culturais. Sua influência como modelo hegemônico de masculinidade não
reside apenas na sua aceitação por outros homens, mas na sua capacidade de ilustrar e
justificar a dinâmica subjacente à dominação masculina na sociedade da época. Assim, a
figura de Aquiles transcende a mera representação de um herói épico; ele se torna um reflexo
simbólico das complexidades e evoluções na compreensão da masculinidade, encapsulando
tanto as tradições da aristocracia guerreira quanto os anseios da sociedade políade que
despontava. Sua trajetória revela-se, desse modo, como um foco para a reflexão sobre as
interconexões entre identidade de gênero, poder e mudança social na Grécia.
51

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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