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A DOCUMENTAGAO MUSEOLOGICA E OS NOVOS PARADIGMAS DA ARTE CONTEMPORANEA RESUMO: Buscaremos discutir a relacdo que a arte contemporanea — especifica- mente obras efémeras, pereciveis e relacionais, que problematizam a fungio do objeto no processo artistico — estabelece com a teo- ria ea pritica da documentagio museolégica. Inicialmente apresen- taremos os fundamentos tedricos da documentagio ¢ em seguida passaremos para sua aplicagio no tratamento de obras de arte tradi- cionais. Por Ultimo, procuraremos identificar os pontos.problemati cos trazides com as novas lingua- gens da arte contempordnea. PALAVRAS-CHAVES: Museologia. Documentacio. Docu- mento. Arte contemporanea. Ima- terialidade. Mariana Estellita Lins Silva” ABSTRACT: We seek to discuss the relation- ship that contemporary art - specifically ephemeral, perishable and relational works that ques- tion the role of the object in the artistic process - down to the theory and practice of museum documentation. Initially we pres- ent the theoretical foundations of museum documentation and then move on to its application in the treatment of tradition- al works of art. Finally, we will seek to identify problem areas brought with the new languages of contemporary art. KEY-WORDS: Museology. Documentation. Docu- ment. Contemporary art. Immate- riality. |" Musedloga pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro ~ Unirio, mestre em Histéria & CCrtica de Arte pola Escola de Belat Artes da Universidade Federal do Ro de Janeiro — UFR, 186 de 2014 MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDAD! [A Documentagio Museoléglea © 08 Novos Paradigms A A documentacao museolégica se estrutura a partir do conceito de docu- mento. Ao contrario de Jesse Shera e Louis Shores que restringem esta nocio aos registros graficos e textuais produzidos intencionalmente com tal finalidade, utilizaremos a defini¢io de Paul Otlet (Smit, 2008), que considera que um objeto também pode ser um documento, na medida em que é deslocado de sua fun¢io ordinaria e € colocado em uma colecio museolégica por ser considerado um testemunho de um tempo e lugar: Desta forma, mesmo que nao tenha sido produ- Zido com este propésito, um objeto pode desempenhar a funcdo de documento. Briet trabalha o conceito de documento vinculado 4 existéncia de uma evidéncia material.A autora sintetiza trés aspectos estruturantes para a carac- terizagio de um documento: 1) A materialidade:a nogdo de documento se aplica apenas a sinais fisicos; 2) A intencionalidade: pretende- se que 0 objeto seja tratado como evidencia: 3) O processamento: os objetos devem ter sido processados, ou seja, de- vem ter sido tornados documentos (BRIET apud LOUREIRO, 2008, p. 105). Diante desta perspectiva, podemos observar a que a materialidade é cond io fundamental para a existéncia de um documento. E a partir do suporte mate- rial que so desdobrados os potenciais simbélicos ¢ informacionais de um objeto. Partindo da perspectiva do sujeito, Le Goff (2003a; 20036) afirma que um objeto nao se constitui a priori como um documento, mas deve ser compreen- dido como tal na medida em que é langado sobre ele este olhar. De outro modo: © que faz um objeto se tornar documento é a atribuigio de valor simbélico que © destaca do universo dos objetos comuns. Nesta operagio, hd um investimento de meméria, onde the é atribuido uma capacidade de recuperagio © de comu= nicagao de informacdes de um tempo a outro. Compreendemos também, com Pomian (1984) que quando um objeto é inserido em uma colegio museolégica, é destituido de sua fungio e seu uso coriginarios para adquirir a fungao documental e comunicacional, e que seu valor de troca é ampliado, embora tenha se descontinuado seu valor de uso, precisa- mente pelo reconhecimento de sua relevincia simbélica. No entanto, percebemos as obras de arte como uma categoria especial de documento. Diferentes dos objetos histdricos, que sio criados inicialmente para urna funcao utilitaria e quando investidos de valor simbdlico so afastados desta fun¢ao ori- ginal para se tornarem documento, podemos considerar que as obras de arte nascem como objetos estéticos. O objeto de arte é criado a fim de possibilitar a experiéncia estética,e essa funcio é mantida no ambiente do museu, Uma obra de arte no contex- to museolégico nio passa a ser somente um objeto histérico ou um documento, mas continua sendo apresentada e fruida pelo piblico como objeto estético. Desta forma, © objeto artistico musealizado sobrepde duas dimensSes:a estética ¢ a documental. Uma pintura, por exemplo,é um objeto esteético, contemplative, que ao ser in corporado a colegio de um museu passa a ser legitimada nao s6 como testemunho do tempo no qual foi produzida, como por ter sido resultado de um momento tni- co de criagio do artista, e por agregar em sua materialidade a unicidade do gestual presente em sua fatura. Ela se torna, portanto um documento, um suporte material, investido de valor simbélico que faz desta pintura um potencial comunicador. Neste sentido, continuaremos com o exemplo da pintura para, agora, analisarr- ‘mos a pritica da documentacao museologica aplicada ao objeto de arte tradicional Ao ser incorporada A colecio do museu,a pintura sera identificada segundo suas carac- teristicas materiais, simbélicas e contextuais.A partir desta obra de arte, sio extraidas informacdes em dois niveis:as informagSes intrinsecas € as informagées extrinsecas. Mariana Eztllia Line Sie {As informages intrinsecas de uma pintura dizem respeito as suas dimensdes,a técnica e aos materiais aplicados em sua fatura etc. Jas informacdes extrinsecas si0 as de natureza contextual, que nao podem ser apreendidas a partir da fisicalidade do objeto, ¢, portanto, sio oriundas de pesquisas em outros documentos, que no a obra em si. Incluem-se,i,as informacdes sobre o estilo artistico,as transformacSes histori- ‘as em voga no periodo em que foi elaborada, dados importantes sobre o autor ete. Esta pratica documental estruturada a partir destas duas categorias de informagio é sustentada por Ferrez (1994, p. 2), onde: Os objetos produzidos pelo homem sio portadores de informacées intrinsecas ¢ extrinsecas que, para uma abordagem museolégica, preci- sam ser identificadas. As informacdes intrinsecas sio deduzidas do préprio objeto, através da anilise das suas qualidades fisicas.As informacdes extrinsecas denomi nadas por MENSCH (I) de informagdes documental e contextual, sio aquelas obtidas de outras fontes que nio o objeto [..] Portanto,as informagdes intrinsecas e extrinsecas identificam a obra de arte em seus aspectos singulares.Além disso, obras de arte necessitam ser localizadas dentro do contexto de uma colegio museoldgica. Por isso, o trabalho de docu mentagio ocupa-se também da classificagio das obras em categorias hierdrquicas. Sendo assim, as obras de arte tradicionais sio divididas em “pinturas”,“esculturas”, “gravuras” etc. Dentro da categoria “pintura”, as obras podem ser subdivididas pelo suporte (tela, papel, tecido etc) e pelo material (dleo, guache, aquarela, temp ra etc). Desta forma, sistema de documentagio deve ser capaz de nos remeter 3 obra que procuramos: uma pintura a éleo sobre tela, por exemplo. Nesta estrutura hierarquica, as palavras utilizadas na busca so fundamen- tals para a recuperagio da informacio, pois é através dos termos especificos que identificamos os conjuntos ¢ localizamos © objeto procurado. Podemos afirmar entio que 0 controle do vocabulario é essencial paraa sistematizagio € busca de informagées neste sistema. No entanto, no caso de uma obra de arte contemporanea, como inserir nes- te sistema de documentacio uma obra que se caracteriza por ser uma proposi- Gio imaterial, efémera e/ou relacional? Tomemos como exemplo a obra Sem Titulo, 1992, Rirkrit Tiravanija pertence a colecio do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), que consiste em uma proposi¢ao onde o artista cozinha e serve fran- go e arroz ao curry no espago expositivo. Nesta obra, o ato de cozinhar, o preen- chimento do espaco pelo aroma peculiar da receita de origem tailandesa e 0 com- partilhamento do alimento séo formas do artista trazer ao puiblico seus referenciais pessoais e memérias afetivas de sua infancia.A obra provoca um deslocamento da relagio espectador x artista, produz uma coletividade instantinea e problematiza os padres de comportamento a que estamos submetidos cotidianamente. Retomando nossa pergunta, indagariamos: quais seriam, nesta obra, as informa- es intrinsecas? Como preencheriamos os campos “dimensdes” e “técnicalmate- riais"? Neste caso como nao ha um objeto material identificavel como obra, os cam pos"“dimensées”,"técnica/materiais” sequer poderiam ser distinguiveis e mensurados. Através deste exemplo, podemos sintetizar algumas questdes para a docu- mentagio aplicada arte contempordnea. A obra de Tiravanija, ao contratio da 2 Para © MoMA. obra parece ser eratada como uma esculuura, ou come uma instalagio.As especieagSes #0 Modium: Refrigerator, table, chairs, wood, drywall. food and other materials / Dimensions: Dimensions ‘variable ou [TécricaMaterials:geladera, mesa, cadeiras, madeira, drywall. comida @ outros materia / Die ‘menses: Dimensoes varadas |. Disponivel em: ,Acesto ein. 15 ago. 2012 188 de 2014 MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDAD! A Documentagio Museoléca e 08 Novos Paradis pintura sobre tela do exemplo anterior, no se enquadra nas caracteristicas reco- nhecidas de um documento ~ materialidade, intencionalidade © processamento. Embora seja uma obra de arte em uma colegio museolégica,e, portanto se enqua~ dra nas categorias de intencionalidade e processamento, esta obra de arte prescin- de da materialidade e neste sentido, ndio poderia ser considerada um documento. As informagSes intrinsecas, ou observaveis a partir da materialidade da obra, neste caso viriam dos pratos ¢ talheres utilizados na agio, pois eles sio a materialidade possivel para esta agio.No entanto esta materialidade nao constitui eno comunica nenhum valor sobre o trabalho artistico. Nesta proposi¢io incor poral, onde os elementos materiais presentes (loucas e panelas sujas), no coinci dem com a obra, nao caberia manter a dicotomia entre informacées intrinsecas € extrinsecas. Acabariamos concluindo, que as informagées extrinsecas adquirem uma conotagio muito mais ampla do que a contextualizagio da obra. Relatos do Piiblico, entrevistas com o artista, € outros elementos que poderiam ser conside- rados contextuais em uma obra tradicional, seriam os responsiveis por permitir a compreensio da obra de arte, sua possivel remontagem, ou, de maneira mais abrangente, seriam os elementos determinantes para a sua preservacio. De outro modo: Se para um objeto material ou em uma obra de arte tradicional as infor mages extrinsecas permitem a ampliagao da condigio informacional do objeto como documento, no caso das obras contemporiineas imateriais ou relacionais essas informagdes e suas respectivas estruturagdes dentro de um sistema de do- cumentagio, sio imprescindiveis para a existéncia da obra.A preservacio dessa tipologia de acervo depende fundamentalmente dessa estrutura documental Outro aspecto se refere ao trafego funcional de informagdes que permeia as instincias e os departamentos do museu. Mais do que uma ferramenta para a execucdo do projeto institucional, a base de dados é fundamental para a ma- nutengio das obras de suporte complexo. As linguagens efémeras, imateriais ou relacionais, por prescindir da fisicalidade, dependem de mecanismos estratégicos de materialidade temporaria. Essa condicdo de existéncia — que também se aplica as obras materiais, se utilizarem suportes néo-convencionais — faz com que elas precisem ser desmembradas, seja porque seu suporte material exige controles cli miticos diferenciados, ou porque a informagio documental da obra (arquivos, fo- tos, videos, documentos, projetos de montagem, entrevistas com os artistas, etc.) precisa ser alocada nos respectivos setores do museu. No modelo institucional que conhecemos hoje,a fotografia precisa ser encaminhada ao setor iconografico, © projeto ao arquivo, etc. Nesse ponte, é fundamental que haja eficiéncia na recu- peracio da informacio e na reuniio destes elementos que foram estrategicamen- te separados entre os respectivos setores. Eles precisam ser reagrupados sem nenhuma perda informacional. Do contrario, o ruido na informacao ou a impos- sibilidade de recuperagio desse trajeto feito pelas partes componentes da obra pelos setores da institui¢io, inviabiliza a recuperacio da informagio € provoca a destruicdo da obra, como no caso descrito por Freire (1999, p. 45-46): Joseph Kosuth (EUA, 1945), um dos mais importantes artistas conceituais nor- ‘te-americanos,apresentou no MoMA de Nova York o trabalho ‘One andThree Chairs’ (1965), onde justapés a cadeira real as suas representagdes (definicio de cadeira do diciondtio e fotografia de cadeira).Apesar de ter sido adquirida pelo MoMA, essa obra foi destruida ao ser incorporada 4 colegio do museu, uma vez que a cadeira foi encaminhada ao Departamento de Design,a foto,ao Departamento de Fotografie fotocépia da definicio de cadeira, a biblioteca. Por fim, é preciso destacar ainda,a problemitica do vocabulirio controlado a hierarquia de categorias, elementos estruturais da documentagio das obras Mariana Eztllia Line Sie tradicionais. Na arte contemporanea, essas divisdes so expandidas, questionadas ¢ dilatadas pelos préprios artistas. Novas categorias de obras foram criadas - happenings, body art, performance, instalacio, site specific, etc — e para cada uma delas ha um conceito especifico que a caracteriza como linguagem. Pensemos nas distingSes feitas por Renato Cohen, onde os happenings sio um desenvolvimen- to da body art, mas se desprendem do corpo como suporte e se concentram na obra como um acontecimento circunscrito em um tempo. Ainda segundo © autor,na medida em que estabelecem relagio mais estreita com as artes cénicas, os happenings vio dar surgimento as performances, no entanto, enquanto os ha- penings tém como caracteristica fundamental a temporalidade, a performance se caracteriza pela relacio do tempo com o espago (COHEN, 2007). Contudo, € preciso considerar que os artistas no se adéquam a estas formatagées, € trabalham nos intersticios destas categorizacées, provocando com frequéncia situacdes de indistingdo ou de impossibilidade de classificacio das linguagens. Mais do que isso,a situagio criada pelo indiscernimento faz com que essa diferenciacao seja irrelevante. Se,como vimos,o vocabulirio controlado assegura uma uniformizagio dos dados que sao inseridos e recuperados em uma base, se as categorias se tornam muito especificas ¢ irreprodutiveis em outros contextos, 0 controle vocabular pode perder sua caracteristica de uniformizagio e se tonar cada vez mais espe- cffico dentro da poética de cada artista, fragilizando, portanto sua fungio inicial O que acabamos de observar a partir destes impasses demonstrados entre a documentagio museolégica e arte contemporanea, deu-se em funcio de uma mudanea de paradigma da arte, que alterou a concepsio de objeto artistico, de- sestruturando a légica linear que organizava as linguagens, 0s estilos ¢ as técnicas. Esta desestruturagio é lida por Belting (2006) a partir do tema do fim da histéria da arte, que, segundo ele, nao significa o fim da histdria da arte, mas ape nas 0 esgotamento de uma tradicio especifica de arte, moderna e européia. Ha entio o surgimento de diversas histérias da arte possiveis, tantas quantas lingua- gens artisticas. Com auséncia de um discurso de tendéncias totalizantes, ocor re uma proliferagao de discursos especificos, que pretendem abordar universos muito particulares.A teoria da arte se torna cada vez mais compartimentada e especifica e as teorias dos artistas substituem a idéia de uma teoria da arte unica. Houve no apenas uma mudanca no discurso, na ldgica de produsio € legitimacéo da arte, mas também uma mudanca do que pode ser considerado arte. Os antigos critérios, fundamentados em analises da imagem, da técnica ¢ da tematica, nio se aplicam As novas linguagens que esto sendo produzidas. E 0 que Belting exemplifica através da metafora da peca de teatro: [..] 0 intérpretes de arte pararam de escrever a historia da arte no velho sentido, e os artistas desistiram de fazer uma historia da arte se- melhante. Soa assim o sinal de pausa para a velha peca, quando niio ha muito tempo esta sendo executada uma nova peca, que é acompanhada pelo pilblico segundo o velho programa e conseqiientemente € mal compreendida (BELTING, 2006, p. 24). Outro ponto fundamental da andlise de Belting (2006) é o entendimento da obra de arte como algo que oscila entre idéia e objeto. Segundo 0 autor, a morte da teoria clissica da arte se da quando a obra se transforma em teoria € se distancia do suporte material, que a apartava do mundo. Se uma obra de arte era reconhecida por suas propriedades técnicas e estéticas, agora 0 que diferen- cia um objeto de arte dos outros objetos cotidianos é uma questo conceitual Se a obra de arte se define, nao mais por suas propriedades materiais, mas pelo ato filoséfico de sua concepsio, hd um ponto fundamental que pos- 190 de 2014 MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDAD! A Documentagio Museoléca e 08 Novos Paradis sibilita a aproximagio da teoria sobre o fim da arte (ou da historia da arte) de Belting dos incorporais de Anne Cauquelin. (© conceito de obras incorporais, cunhado por Cauquelin (2008), propde que determinadas linguagens da arte contemporinea podem nao mais ser defi- nidas por suas propriedades materiais, mas por seu significado simbélico. A autora constréi seu argumento afirmando que o processo de comunicagio € composto por um dispositivo material a partir do qual sio comunicados os signfi- cados,e por elementos abstratos trazidos simbolicamente por quem esti recebendo a informacio. Através de um exemplo simples e cotidiano, como dizer s criangas “Nao vaio muito longe!” a autora ressalta que, © que esti sendo comunicado as criangas vai além do que as palavras carregam, Nio é necessario nem possivel dizer cexatamente © quo perto ou longe as criangas deveriam ir, porque “Elas [as criangas] rnio levam em conta as palavras em si,simples indicagdes em torne das quais se trama a significagao” (CAUQUELIN, 2008, p. 10). Ha, no processo de comunicagio vertbal, [-]um invalucro de sentido que da suporte as palavras [..] um invélucro que envolve as palavras, mas que no é a soma das palavras, um fundo que envolve os elementos da lembranga sem se confundir com eles: trata-se ali, é claro, dos incorporais familiares (CAUQUELIN, 2008, p. | 1). Do mesmo modo, toda obra de arte constréi uma narrativa,e se coloca como veiculo corporal para transmissio de significados incorporais.O que acon- tece nas obras contemporaneas é a valorizagio do exprimivel em detrimento do veiculo corporal que Ihe expressaria, Na relagio obra — espectador ha um universo ilimitavel de possibilidades de significados que surgem no momento da abordagem, e que tem a obra de arte apenas como ponto de partida. No caso de uma pintura, por exemplo,a superficie da tela é © suporte material que sustenta os subsidios responsaveis pela comunicagio. O artista combina cores ¢ formas (elementos materiais) que vio traduzir uma imagem, uma mensagem, temas e conceitos.Arranjados na superficie da tela de acordo com determinada logica, esses elementos sio como a frase dita as criancas no exemplo de Cau- quelin, sero a parte concreta da comunicagio, que revestida de um “invéluero de sentido” (CAUQUELIN, 2008, p. ||) possibilita a transmissao da informagio. Nas obras de arte incorporais, identificadas como arte contempordnea, ‘ocorre uma problematizagio desse suporte que sera revestido de significados. Hi uma alteragio do que sera considerado obra de arte, 0 foco se transfere do suporte material, para este invdlucro de significados. Vale ressaltar ainda 0 conceito de estética relacional. Esse termo é traba- thado por Bourriaud (2009a) para caracterizar a poética de artistas do final do século XX ¢ da primeira década do século XXI.O autor constréi seu argumento a partir da poética de diversos artistas entre estas a obra de Tiravanija referida anteriormente, Segundo Bourriaud (2009a), a estética relacional € marcada por um enfrentamento a sociedade do espeticulo, a padronizacio de comportamen- tos e sua relacio com 0 consumo. Constitui-se ainda como critica ao sistema de divisio do trabalho que gera sociedades de classe e a0s mecanismos de atribuicio de valores através do capital, entre diversos outros aspectos da pés-modernidade. No caso especifico da estética relacional, o que se vislumbra nao mais extrapolar os limites impostos pela arte (ou pela historia da arte), tampouco 05 limites fisicos do objeto artistico. Aqui, a obra de arte se desenvolve inde- pendentemente da materialidade, tendo as relacdes humanas como ponto de partida e como objetivo. Segundo Bourriaud (2009a, p. 43, grifo nosso): A questio nao é mais ampliar os limites da arte, e sim testar sua ca- pacidade de resisténcia dentro do campo social global. Assim, a partir Mariana Eztllia Line Sie de um mesmo conjunto de praticas vemos surgir duas problemiticas ‘totalmente diversas: ontem, a insisténcia sobre as relacGes internas do mundo artistico, numa cultura modernista que privilegiava 0 novo ¢ convidava A subversio pela linguagem; hoje a énfase sobre as relacoes ‘externas numa cultura eclética, na qual a obra de arte resiste ao rolo compressor da ‘sociedade do espetaculo’. Aqui ha uma inversiio do que poderiamos chamar obra de arte. Tradicio- nalmente, ela estava relacionada ao espaco ¢ A materialidade; a delimitagio fisica de um objeto fazia a separagio da arte e da realidade. Para a estética relacional, essa relagio é substituida, © a delimitagio da obra de arte passa a ser uma du- racio momentinea. O que se considera obra ndo € mais o espaso fisico a ser percorrido (mesmo que em alguns casos apenas com os olhos), mas se torna um tempo a ser vivenciado. Para o autor “[..] Ja ndo se pode considerar a obra contemporanea como um espaco a ser percorrido [...]. Agora ela se apresenta como uma duragio a ser experimentada, como uma abertura para a discussio ilimitada” (BOURRIAUD, 2009a, p. 20-21), Esse postulado inverte os preceitos da arte moderna. sacraliza¢ao do objeto artistico, tio discutido na era da reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1987), na estética relacional, é transformada. Ja nao ha mais objeto a ser sacra- lizado, mas ha, em contraposi¢io, a sacralizaco de um momento, de um tempo ocorrido da obra de arte Esse tipo de linguagem, frequente na arte contempordnea, depende do trabalho da documentagdo para existir, ainda que somente enquanto meméria ou informagio de uma obra definitivamente acabada. Sobre esta questio, Lima (2003) discute a auséncia do objeto material no processo artistico.A autora coloca que a efemeridade das linguagens faz com que a informagio museolégica se constitua a partir de registros. Nas palavras da autora: Tals proposigdes estio baseadas em contetidos que alcancam a pri- mazia do conceito, em detrimento das outras questdes tratadas pelos géneros artisticos tradicionais, caleados no objeto de arte e sua fatura. A inexisténcin dessas obras depois das apresentades € a ténica do processo, Em fases posteriores as apresentacdes dessas propostas ar- tisticas, a partir dessa nocio de fazer arte, elas s6 estardo aptas para discussdes ¢ estudos dos pesquisadores caso sejam documentadas ¢ gerem registros (texto, imagem, som) (LIMA, 2003, p. 134). De acordo com o argumento de Lima (2003), é possivel concluirmos portan- to, que para que os documentos gerados a partir dos registros possam ser dispo- ribilizados aos pesquisadores, ¢ fundamental que seja possivel uma recuperacio da informagio por meio do sistema de documentacio museolégica. No entanto, quan- do a arte contemporinea desloca a ldgica de producio e compreensio da obra de arte e se desvincula da materialidade, ela produz um impacto na documentacio museolégica, que esta estruturada sobre uma ldgica moderna, hierarquica e linear. E precisamente esta diferenca entre a légica moderna da documentagio - que traba- tha a nogio de documento ¢ de obra de arte a partir da materialidade do suporte - © a nova concepsio de obra trazida pela arte contemporsinea, que provoca uma desarticulagio estrutural que pode dificultar 0 acesso a informagio. Com relacio as obras tradicionais, cujo processo de comunicagao se dé através da contemplacio visual, sistema de documentacio e recuperacio da informagio é funcional e esta adequado a esta tipologia de acervo, No caso das obras de arte contemporsinea, ha demandas por novas estratégias de documentagio museolégica que viabilizem a permanéncia destas linguagens independente de sua materialidade. 192 MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDAD! [A Documentagio Museolélea © 08 Novos Paradigms a Arte Contempornes Referéncias BELTING, Hans. © fim da histéria da arte: uma revisio dez anos depois. Sio Paulo: Cosac Naify, 2006. BENJAMIN, Walter. obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. 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