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Nicole Brenez CONTRA-ATAQUES Sobressaltos de imagens na histéria da luta de classes ie e a A principal aposta do cinema engajado é na sua eficdcia histérica, e “isso ocorre em relacao a trés pontos, dos quais cada filme organiza a sobreimpressao, segundo os imperativos do combate. No fogo da aco, René Vautier definiu como “cinema de intervengao social” um trabalho de instantaneidade performativa que visa 0 sucesso de uma lutae a transformacao concreta de uma situacao de conflito declarado ou injustica estrutural. A médio prazo, o trabalho consiste em divulgar uma contrainformacdo e levantar as energias: por exemplo, Déclaration de. guerre mondiale FetP/ars (1971), de Masao Adachi, que a partir da “Palestina ocupada mostra o cotidiano dos combatentes clandestinos clama pela criacéo de um Exército Vermelho anti-imperialista. Allongo prazo, tratou-se de filmar e, assim, conservar fatos para a historia, constituir documentos, legar um arquivo e transmuitir a memoria das lutas as gerac6es futuras. F essa dimensao que determina ‘a existéncia, em 1970, de Douglas Bravo, la guerre de guerilla au Venezuela, de Georges Mathieu Mattéi e Jean-Michel Humeau: o filme se esforca nao sé em sustentar a luta de libertacdo travada pelas Fuerzas ‘Armadas de Libéracion Nacional (FALN), mas também em conservar, com a maior fidelidede possivel, a palavra e a presenca de Douglas Bravo, ameacado em sua selva tanto quanto Ernesto Che Guevara na dele,na Bolivia. A mesma dimensao de conservacao irradia do filme de ‘Tobias Engel, No Pincha!, documentério de longa-metragem em preto e branco rodado em 1972 na Guiné portuguesa, com unidades da Frente de Libertacao e Independéncia Nacional da Guiné (FLING). O filme acompanha 0 cotidiano dos combatentes, porém, depois do exemplo ‘trdgico do assassinato de Patrice Lumumba, procura conservar também. a imagem de seu Ifder Amilcar Cabral. De maneira mais intima, mas igualmente eficaz, Angela Davis: Portrait of a Revolutionary (1971), de Yolande du Luart - que nao tinha de inicio a inten¢ao de ajudar Angela como prisioneira, jé que ela havia sido presa antes da montagem do filme -, quis de infcio descrever a imagem, a palavra e 0 cotidiano de uma Jovem professo-a de filosofia, militante entao desconhecida fora de seu circulo e ameacada pela direcao da universidade. O cinema engajado concede tanto direitos quanto deveres as suas representacdes, pois sabe do preco ético e politico que pode custar uma imagem (por oposicéo ao Seco inure pe aes Sacer sacrificio da vida, como no caso de Raymundo Gleyzer, membro do. Partido Popular dos Trabalhadores, assassinado em 1976 pela ditadura argentina. Em 1974, Raymundo Gleyzer assim comentou Los Traidores (4973), filme sobre a corrup¢ao sindical: “O artista é um trabalhador intelectual que, por pertencer ao povo, deve escolher. Ou ele se coloca a servigo do povo para apoiar as lutas e o desenvolvimento dos processos revoluciondrios, ou do lado das classes dominantes para transmitir e * reproduzir os valores da burguesia [...]. Temos que nos tornar tio titeis quanto a pedra que quebra o siléncio ou a bala que inicia a batalha™. Ao longo da histéria e em todos os paises, cineastas, sozinhos ou en’ grupo, se dedicam a iniciativas revolucionérias, acompanham os combates de camponeses, de operarios, de populacées colonizadas, de minorias oprimidas, de individuos revoltados. Na energia das obras de Joris Ivens, Fernando Solanas e O¢tavio Getino, Chris Marker, Jean-Luc Godard, Ousmane Sembéne, Masao Adachi, Safi Faye, Jang Sun-woo, Ken Jacobs e tantos coletivos no mundo, podemos elaborar um. florilégio de filmes eventualmente menos famosos ou até descomhecidos, mas sempre notaveis por sua forga critica. Seguindo o modelo ativista de A greve, de Eisenstein (1925), e de Molotov-Cocktail, de Holger Meins (1968), temos aqui um percurso em forma de manual pratico sem esperanca, mas nao sem alegria,em homenagem a dois pilares da eficiéncia, O que todo revoluciondrio deve saber sobre a repressGo (1921-1926), de Victor Serge, e Manual do guerrilheiro urbano (1969), de Carlos Marighella. 1 Ww Kee x 1895-1996. yy ore Inventar os recursos do diagnéstico visual. VS Arbeiter verlassen die Fabrik: Auguste e Louis Lumiere, Peter Tscherkassky, Harun Farocki, Siegfried Fruhauf 1. (Franca/RFA/Alemanha/Austria) “The artist is an intellectual worker, who, as part of the ‘i 4, People, must choose. Bither use ‘Uma imagem assombra 0 cinema, Em 1995, Arbeiter verlassen die Fabrik, jis skill in service of the people, de Harun Farocki, retoma trés vers6es do filme centenario dos irméos _urging-on their struggles and Lumiére e retine sequéncias tratando da classe operdria para the development of a Fs revolutionary process, or openly manifestar a perenidade ea evolucio desse tema. A porta da fabrica, side with the dominating operarios ndo s6 escapam, mas brigam, discutem,ficam encurralados, classes, serving as.a transmitter as vezes morrem. Analisando a sucessao e o detalhe dos planos | and eproducer of bourgeois Lumiere, Farocki descobre todo o programa das opressdes e resisténcias | !e0logy{...1.We must therefore : serve as the stone which breaks que vio estruturar o século xx. 0 campo em que os Lumiere foram silence or ie ERE ‘arts the battle” Terry Plane, “Three Interviews with Raymundo Gleyzer in Australia” ‘Adelaide, junho de 1974, Dispontvel em: , 72 Aaron Nikolaus Sievers, Placky et camarades, Le cheval de fer, 1978-2008. Fotograma, Ivora Cusack, Remue-ménage dans la sous-traitance, 2008, Fotograma. pioneiros de forma tao exuberante (ja em 1909, os agenciadores de ‘Albert Kahn o utilizaram para transformar o alegre grupo, sobretudo feminino, da pequena fébrica artesanal em uma considerdvel multidao industrial) se contagia com a hist6ria das lutas operdrias, se torna lugar simbdlico e sangrento nao sé da luta de classes e da sociedade de controle, mas também de conflitos sexuais. 0 compéndio elahorado por Farocki transforma o cinema em diagnéstico visual. Em 1998, Arbeiler verlassen die Fabrik, de Siegfried Frahauf, nfo reutiliza qualquer tomada dos Lumiére,e sim 0 mesmo titulo, a fim de mostrar como os operdrios nunca conseguirao deixar a fabrica: em vez de safrem para fora do campo de visdo, como no filme de 1895, seus trajetos, do fundo para a frente e da direita para a esquerda, formam uma cruz plastica que remete a prépria morte. As tomadas harmoniosas dos Lumiere, que criam um cotidiano dinamico e tranquilo, sucede uma ftnebre elegia, Arbeiter verlassen die Fabrik, de Fruhauf, forma um diptico com Motion Pidture (a saida dos operdrios da fébrica Lumiere em Lyon) (1984), de Peter Tscherkassky. Ao projetar um fotograma do filme dos Lumiere em cinquenta tiras de pelfcula virgem, Peter Tscherkassky puxa 0 conjunto do dispositivo cinematografico para suas proprias determinacées fotograficas e transforma a imagem inicial num desfile em preto e branco abstrato, que mostra o lugar concreto do trabalho filmico: a intermiténcia entre mobilidade e imobilidadte. Na colecdo reunida por Farocki nao consta uma das imagens emblematicas da condicdo operdria, o contracampo radical da saicda dos empregados Lumiére: a operaria berrando que nfo quer mais voltar a fabrica depois do fracasso da greve geral de 1968 e a traicao da classe operria pela CGT, filmada por Jacques Willemont e Pierre Bonneau em La Reprise du travail au usines Wonder. Em 1996, Hervé Le “Roux partiu desse curta-metragem, em busca de cada protagonist € cada detalhe, para montar um panorama dos ideais e desilusoes operdtios: Reprise. Un Voyage au coeur de la classe ouvriere relata tres décadas de lutas ¢ as primeiras ondas de desindustrializacdo, dando infcio ao progressivo desaparecimento do proletariado industrial nos paises do Primeiro Mundo. 1913. ‘Apropriar-se dos meios de producao. ‘Le Vieux Docker, Le Cinéma. du Peuple (Franga) Em outubro de 1913, deu-se a criaco de uma cooperativa anénima chamada Le Cinéma du Peuple. No jornal Le Libertaire, ela reivindicava um cinema que pertencesse a classe operiiia [...]. Nossa meta é ade fazermos,n6s mesmos, nossos filmes, buscando na historia, na vida a Laurent Mannoni,“28 de outubro de 1913; criagao da sociedade Le Cinéma du Peuple’ in: Revue @histoire du cinéma, AFRHC, outubro de 1993, pp- 100-107. all the various social ons. The unorganized, Seal become conscious pants; the organized understand that will 2) Then all must be arranged and ed according to the the working class, film (fissha eiga) © gravest settlement of on’s accomplishment’ "Makino, “Rethinking of the Film League in 3 in: Abé Mark "Aaron Gerow (orgs.),In lim Studies: Essays in ;Makino Mamoru, diaria, nos dramas do trabalho, temas que compensem. Positivamente o lixo cinematogréfico que a cada noite é servido ao publico operirio™, Dos sete filmes produzidos pela Le Cinéma du Peuple, restam os rushes de um filme de ficgéo, Le Vieux Docker, que trata da morte por esgotamento de um trabalhador obrigado a continuar sua tarefa inumana, uma vez que o direito do trabalho néo previa qualquer aposentadoria para o proletariado. Nesses modestos planos que escaparam da destruicao, ainda mais eloquentes se vistos como resfduos do trabalho filmico, transparecem geracées inteiras de operarios sucumbindo ao esforco, explorados até a morte pelo patronato e, nesse sentido, ainda em pior situaco que os escravos dos tempos antigos, a0 menos alimentados por seus donos. 1928. \\n ie Desenvolver a polifonia. Genji Sasa (Japao) v oe Deve-se ao cineasta Genjii Sasa um dos primeiros manifestos proletarios recomendando o uso de ferramentas simples as Sooperativas de contrainformagéo de filmes. No artigo “Camera brinquedo/arma’ (revista Senki, junho de 1928), Genjii Sasa Programa as iniciativas préticas que ainda hoje caracterizam o cinema preocupado em se emancipar das légicas industriais: “A entrada do estilo proletario e camponés no cotidiano fotogréfico se da gracas as cameras amadoras [...]. Nossos filmes devem ser daqueles que despertam uma consciéncia de classe, revelam os interesses da sociedade atual e expdem suas diferentes contradi¢Ges. As massas organizadas entenderao a necessidade de lutar. As massas desorganizadas se tornarao participantes conscientes [...]. Todos os materiais deverio ser agenciados e transferidos de acordo com os desejos da classe operaria. Consequentemente, a‘montagem desses documentarios constitui o Ponto mais importante no cumprimento da nossa missao”s, Genji Sasa participa em seguida da criacdo da Prokino, liga de filmes proletarios do Japao que, até sua dissolucdo pelo poder imperial em 1934, chegou a produzir 48 filmes (ficcao, documentério, animacao), dos quais apenas seis foram até hoje descobertos. Depois da Le Cinéma du Peuple e da Kino-Pravda, de Dziga Vertov, a Prokino abre caminho para os varios coletivos revoluciondrios, sustentados nos anos 1930 pela Comintern‘ frequentemente comunistas ~ como a The Workers Film and Photo League, nos Estados Unidos -,e depois, nas décadas seguintes, marxista-leninistas ou anarquistas. 1950. Encontro marcado com a hist6ria. Afrique 50, René Vautier (Franca) v Em 1947,f0i proclamada a “doutrina Jdanov’, segundo a qual o Partido Comunista Soviético devia dar apoio a luta dos paises colonizados da Asia e da Africa, para fazer frente ao “bloco capitalista’: Jovem comunista francés dedicado a todos os combates contra a opressao, a exploracdo e o racismo, René Vautier partiu para a Africa Ocidental francesa, enviado pela Liga de Ensino, que ent&o abrigava muitos futuros quadros das lutas de libertagéo, a comecar por Ouezzin Coulibaly, responsével pela Liga em Treichville, que recebeu René. Em outubro de 1946, Coulibaly tinha sido um dos fundadores do Rassemblement Démocratique Africain (Assembleia Democratica Africana, RDA), movimento seminal de emancipacao e do qual podemos ver algumas manifestacbes no final de Afrique 50.Em 1949, a RDA organizou seus primeiros grandes eventos politicos, que mecanicamente levaram a cada vez maior repressao colonial. Entre eles, uma greve contra os impostos, violentamente reprimida pelo exército (“Indo de Bamako a Abidjan, Raymond Vogel e eu seguimos 0 trajeto dessas colunas punitivas’9) e da qual o filme realca alguns vestigios sangrentos, comparando-os aos crimes nazistas em vilarejos franceses, Enguanto a faixa sonora segue dando os mimeros exatos dos jucros das empresas francesas e ocidentais, as imagens mostram tra¢os Outros, ocasionais, da repressao militar. Em menos de vinte minutos, 0 filme nos leva da Africa imemorial (paisagens de plantcies ¢ rios, atividades artesanais e agricolas, familias e jogos) ao estudo das aixezas do colonialismo que se estabeleceu a partir de 1830, até chega a emergéncia contemporanea dos movimentos africanos de emancipacio, cujos primeiros sucessos politicos s6 aconteceriam por volta de 1956. Afrique 50 alia ent&o dimensdes de uma polémica visual: informa uma situaco de opress4o econdmica e politica; desmonta a ideologia do progresso e denuncia pressupostos racistas; e faz um chamado & luta. Assim como Une nation, TAlgérie, do mesmo Vautier, que jé em 1955 anuncia uma independéncia inelutavel, a forca coletiva que fecha Afrique 50, com seu ar de retérica otimista, marea também ‘um encontro mareado com a histéria. Tamanha pré-ciéncia, que caradteriza toda a obra de René Vautier, se fundamenta, como todos os seus filmes e atos, na andlise geopolitica e ao mesmo tempo em sua experiencia de resistencia ao nazismo, de uma conflanca inabalavel no poder revoluciondrio dos povos. 5. René Vautier, Caméra citoyenne, Rennes: Apogée, 1998, p.36. Meinhof, Arbeitsplatz und = 1965, Stan Pociello, a Science eseements. Etienne Marey Demeny (1870-1920), PLE 1999, 1965, Abandonar 0 campo do audiovisual, Trés filmes de Ulrike Meinhof (RFA) Politica, Urike Meinhof se dedicou a levantar aspetios obscuros do “milagre econdmico” alemao, Em 1965, ela escreveu tats documentarios bara a televisdo alema, Eles foram transmitidos numa série intitulada “Panorama esquecidos e depois resgatados em 2010 pelo cineasta crn van, Constatow-se que cada gesto da mio pode ser subdividide em varios movimentos de base: estender a mao, pegar, trazer, levar, Pelee unsevis largar Milhares ce tomadas do filme consegdtrann registrar os valores de tempo constantes para cada movimento. E todos foram, em Seguida, transcritos em um quadro. Péde-se entio medir a dle segundo [...).0 luero econdmico desse processo & inegavel. Por outro Jado, devemos nos perguntar se isto é humanamente aceitdvel”®. © estudo de Meinhof nos leva Jmplicitamente as origens militares- . 1974-2009. Constituir o patriménio dos deserdados. Greve sauvage, de Ratgeb (Bélgica), revisitado por Chaab Mahmoud (Franca) ~ A partir de quando o Status de cineasta deixou de indicar o privilégio social que Luc Moullet descreveu num artigo de 1967 intitulado0_, cinema € s6 reflexo da luta de classes", dizendo que os diretores vinham todos da burguesia? Hoje, a exemplo de Guillaume Massart, autor de Dragons n’existent pas (2009) (filme magistral focando os Liltimos suspiros da desindustrializagéio em Ardennes para sua venda a melhor oferta), cineastas reivindicam status de subproletarios como forca estética alias, um ponto de vista legitimo, a partir do qual podemos nos dar conta do pesadelo das pauperizacdes contemporaneas. As iniciativas de constituicao de um patriménio politico e cultural por e para os que negam qualquer valor & posse de bens se tomam entao reivindicacoes bastante ofensivas. Definindo a si mesmo como “operario da imagenr’ 0 franco-siri -malgaxe Chaab Mahmoud também procura repercutir visualmente um dos panfletos mais radicais do século XX, De la gréve sauvage & Lautogestion généralisée (1974), de Ratgeb, pseuddnimo de Raoul Vaneigem. “Jd Ihe aconteceu sentir, fora do local de trabalho, o mesmo nojo € 0 mesmo esgotamento que na fabrica? Jé sentiu vontade de destruir com fogo um local de distribuicao (supermercado, loja de departamentos, grandes depésitos)? Na primeira oportunidade, gostaria de quebrar a cara do seu chefe ou de quem quer que o trate como subalterno? Sente-se deprimido com a sistematica destruicéo do campo e da paisagem urbana?™ Em 2009, nos planos-sequéncias em preto branco dos terrenos abandonados criacios pela desindustrializacao e dos conjuntos residenciais periféricos onde se amontoam os desamparados da sociedade, Gréve sauvage (la génese) faz a leitura textual das quest6es analiticas e belicosas de Veneigem, cuja pertinéncia nao parou de crescer em tempos de capitalismo financeiro. Seus textos est4o em inglés e em francés, para repercuti-los ainda mais adiante, como arma da razo em tempo de globalizacao. 2006-2040. Desenvolver as formas conviviais. Regardez chers parents, Mory Coulibaly (Franca). Sou Hami. La crainte de la nuit, Anne-Laure de Franssu (Fran¢a-Mali) As iniciativas de Jean Rouch e do cinema direto (sobretudo canadense) orativas e participativas com os temas filmados. Mas pode-se falar agora de formas conviviais no sentido de Ivan Illich’, descobrindo obras cada vez mais numerosas que procuram pér em circulagao imagens do outro, a exemplo de Clarisse Hahn (Prisons - Notre corps est une arme, 2012, para ativistas curdos), Bijan Anquetil (La nuit remue, 2012, para refugiados afegaos) ou Pilar Arcila (Le Pendule de Costel, 2013, para uma familia cigana). Em 2006,no meio da luta dos expulsos de Cachan, que viu cerca de mil pessoas presas nas armadilhas implacaveis da politica antimigratéria do governo francés, Mory Coulibaly,refugiado politico da Costa do Marfim e delegado das familias expulsas, filmou o que estava acontecendo com a ajuda de Anne-Laure de Franssu e sua associago ‘mots en Images. 0 resultado ¢ Regardez chers parents, documentacao ¢reflexdo sobre aquela luta. No ano seguinte, Anne-Laure de Franssu ‘Mory Coulibaly viajaram juntos ao Mali, indo de vilarejo em vilarejo e exibindo Regardez chers parents a espe¢tadores muito surpresos com a violéncia do Estado policial e com reagSes as vezes mais constrangidas com a Franca contempordnea do que com eles préprios. Esse material constitui uma das mais fortes criticas até entdo feitas a biopolitica ‘europeia. O resultado dessa viagem e dos debates levantados pelos ‘evenitos de Cachan se intitula Sou Hami. Li ui. La crainte de la nuit. (2010), _espléndido ensaio sobre o papel das imagens nas lutas. 2010. Buscar na selvageria. The Silent Majority Speaks, Bani Khoshnoudi (Ira) “Cada rosto poderia ser o de um prisioneiro politico ou de um mértir explica Bani Khoshnoudi em The Silent Majority Speaks, rodado em ‘Teer em 2009 durante a Revolucdo Verde e depois divulgado dandestinamente sob o pseuddnimo “The Silent ColleGtive” até 2013, Mostrar um levante popular contra a ditadura tomando 0 cuidado de nao por em perigo os manifestantes filmados: recapitular um século de "Tevantes politicos mais ou menos insurrecionais e sempre reprimidos no sangue; refletir sobre questées letais, téxicas ou, pelo contrério, emancipadoras das imagens: 0 conjunto dessas tarefas cumpridas por The Silent Majority Speaks indica de imediato o tipo de exigéncia que move a artista plastica, cineasta e produtora Bani Khoshnoudi. Fugindo de qualquer dogmatismo, ela desenvolve o que se poderia chamar “um. ativismo da questo’, sucessivamente dedicado as manifestacdes ‘populares no Ira, & politica antimigratoria na Franca, & cultura zapoteca no México, Numa obra voltada a autoemancipacdo com o titulo Les Sauvages dans la cité ~ que ressoa com o nome escolhido por Bani Khoshnoudi para sua casa de producéo, La Pensée Sauvage (0 45. Convivial: “conjunto de relacoes auténomas e criativas entre as pessoas, de um Jado, e de relagGes entre as pessoas e seu meio ambiente, de outro, dando a0 homem a possibilidade de exercer ages mais auténomas criativas,com a ajuda de ferramentas menos controlaveis or outros" Ivan Illich, La Convivialit, Paris: Seuil,2010, pp. 2858, gn ou saviors de exemple du Creusot’ Borrell (org), Les dans la cité, Auto- jon du peuple et des profétaires au xix* ssel: Champ Vallon, 5-91-03. Pensamento selvagem), assim colocada sob os auspicios de Claude Lévi-Strauss -, 0 historiador René Parize distinguia* Submissao” (nico) e“os saberes da revolta® (muitos) Confrontado ay “censura politico-religiosa tanto quanto 8s extraiégias de autocensura,o trabalho de Bani Khoshnoudi desenvolve o saber e o know-how da Tevolta, tendo como primeiro lugar de exercicio a maneira como as Opressoes {ntimas somatizam e retomam as represses politicas, 1926-2011. Nao esperar estar em posicéo de forca. f Rien que les heures, de Alberto Cavalcanti (Franca). |(Maailich, de Thomas Jenkoe (Franca) Em 1926, para recolocar o cinema a altura das apostas contemporaneas em jogo, Alberto Cavalcanti compés a primeira das sinfonias urbanas, Rien que les heures. Tratava-se de rasgar os clichés e Tecomecar uma representacao em nome do sofrimento concreto dos excluidos: uma mendiga atravessa o filme, pequena silhueta escura em terrenos vagos desolados, fina agulha numa biissola indicando a direcdo de uma justeza figurativa, Em 2011, Madlich, de Thomas Jenkoe, *etomaria a chama acesa por Cavalcanti, sustentada em seguida por outtos poetas visuais urbanos (Kenji Mizoguchi, Peter Weiss, Masao Adachi, Lionel Rogosin, Jéréme Schlomoff..). No lugar da Paris dos anos 2920, dividida entre o centro e a periferia, Matlich se passa em Chinagora, improvavel complexo comercial numa area externa da Cidade, €m vias de privatizagio e transformada em retiro dos exclutdos da globalizacéo econdmica, No lugar dos trapos alegéricos de Cavalcanti, individuos, enfiados em buracos do conereto, assim como os Imigrados argelinos de Trois Cousins (1970), de René Vautier, estavam enterrados em grutas & beira do Sena, individualidades captadas em sua complexidade, em sua forga de isolamento, as vezes até de repulséo, que em momento algum se acha que o filme possa sgotar. Em ver. de um autor soberano que decide e faz uma triagem a Partir de uma série de imagens, temos um cineasta provavelmente mais perdido que as pessoas encontradas, mas que se lanca em: Conversas como quem se langa de um tltimo andar, preso a jucthagio de calr nos bragos de alguém. Em ver de uma €xploracéo extensiva das formas descritivas prdprias do cinema ao longo das horas do dia, Madilich impGe uma descida em apneia aos recursos Gticos que a noite ~ somente a noite — oferece, a noite amiga que nos livra do sociale leva cada um as necessidades elementares: dormin comer, amar e encontrar alguma seguranca, apesar dos pesares, Noite: figura da existéncia reduzida a um pesadelo material. { Mailich: cintilante em humanidade, brilho vacilante & porta do | sentido. r 1999-2015 Criar Ur-Informacdo, Tomorrow Tripoli, Florent Marcie (Franga-Libia) A popularizacao das ferramentas digitais de produgio e distribuicao abre aos criadores e enunciadores de todo tipo uma autonomia integral, pois contém toda a cadeia, desde a concepcio até a circulacao das imagens. A tradicional dupla desinforma¢ao-contrainformacio é preciso agora acrescentar 0 termo Ur-Informacéo, a informacdo original, na medida em que ela precede a informacao oficial, essa que explora deformagsinipificretain == No final dos anos 1990, surgiram coletivos de contrainformacio, como IndyMedia, e também ativistas solitarios, praticando um assalto visual to livremente quanto Albert Londres em relacdo a reportagem literéria. De forma exemplar, Florent Marcie, experimentado coletor de imagens, fez sua primeira viagem & Chechénia em 1996, Montado em 2007, Iichkéri Kenti resulta de dez anos de reflexes e viagens a0 coracao da resigténcia chechena, compativel com a historia de um povo em uta contra o poder central desde o final do século Xvi. Imagens do russo na Chechénia, imagens do checheno segundo os russos, filmes etnograficos do pasado, faixa videogréfica do presente simultaneamente vivido e pensado, como se Fabrice del Dongo analisasse uma batalha em plano geral e em close-up... Itchkéri Kenti, historia subjetiva de uma situacio coletiva, expde e descreve as diferentes formas de conflitos materiais, culturais e temporais que eStruturam uma luta popular, Em 2000, Florent Marcie trabalha em Safa, filme experimental rodado numa linha do front no Afeganistao. Em 2015, ele termina os dois outros segmentos de sua trilogia sobre homens em guerra (Chechénia, Libia, Afeganistao). 0 segundo, Commandant Khawanii, traca 0 retrato de um jovem comandante afegio na base de Bagram em 2001, no momento da tomada de Cabul. O terceiro, Tomorrow Tripoli, descreve a luta dos rebeldes bios durante a revolucdo. A partir da cidade de Zintan, nas montanhas do Nefussa, um grupo de simples cidadaos pouco a pouco se organiza e combate primeiro o exército de Khadafi, que os sitia, para depois descer na direcdo do mar, para alcancar Zawiya e Tripoli. Debaixo de balas e obuses de morteiros que caem noite e dia, atravessando campos minados, avanga a coluna dos zintaneses e Florent Marcie com ela. Arriscando a vida quase que em cada plano, de maneira impavida ele documenta a guerrilha ~ primeiro montanhesa, em seguida urbana, que vai ganhando as estradas e depois, uma a uma, as ruas ~¢ os encontros mais inesperados (um zintanés que tanto leu Quatrevingt- -treize [Noventa e trés], de Victor Hugo, que o estragou e cita trechos de Jean-Paul Sartre sobre a ocupacdo ale na Franca, aplicando-os & situagéo libanesa; um impressionante mercenério do Darfur a quem 0 Pai deu.o nome de Khadaf..). Ainda mais do que a tiltima tomada da fortaleza presidencial pelos zintaneses, alguns planos filmados a0 longo da autoestrada enquanto a cohuna se dirige a Tripoli por si s6 jé Justificariam a existéncia, em geral reificante, dos aparelhos contemporaneos de gravagio: nos subirbios de Tripoli, mulheres, criangas, familias inteiras de moradores saem de seus bairros e vao confraternizar com os combatentes, agitando bracos, berrando “vit6rial’ dando saltos de alegria'e entusiasmo, enquanto os rebeldes Tespondem com buzinagos, como se todos selassem um casamento com a liberdade recuperada.

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