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RENE GIRARD io, invocagdes do mesmo tipo que assimilam completamente a ia a uma criatura humana, Em suma, é evidente que a intimidade, no gado ndo parece ainda sufi ciso reforear a identificagao entre o homem e 0 com que este titimo desempenhe o papel do expulso original, tornd-lo capaz de atrair as hostilidades reciprocas, 5 membros da com! de sua metamorfose de seu ressentimento, Constatamos, assim, que a preparagio sacrificial envolve ages bastante diversas, por vezes opostas, mas todas per! 20 obj ia presciéncia saber todas as condigdes da el reproduzir a violén« dirige todo pensamento ri mas bastante diferentes da vitima original, seja por visando prov da violencia coletiva jorativo uma virtude nde & XI. A UNIDADE DE TODOS OS RITOS As andlises precedentes vdo permi geral formas rtuais freqiie raaiio de sua natureza cruel, mas que na verdade nao so nem mais rem menos indecifraveis que todas as outras na auséncia da vio- fundadora, ¢ que se tornam, 20 C0 Ihe € excessivamente estrang ‘élebre e espetacular do canibalismo ritual \.Q canibalismo tupinamba é conhecido por textos de observa- dores europeus, comentados por Alired Métraux em Religions ef atura e no pen- »s de nobreza particulares. Os ios que Montaigne encontrou em Rudo, fato mencionado célebre dos Ensaios, pertencem a este povo. E impor- te assinalar que foram Tupinambds que posaram para o mais célebre retrato, antes do século XVIII, deste bom selvagem cuja fortuna conhecemos na jé longa histéria do humanismo ocidental Insepardvel de um estado de guerra endémico entre povoagdes ‘que devoram todos os inimigos que conseguem aprisionar, 0 ca- nibalismo tupinambé assume duas formas bem diferentes. O cadé- igo morto durante uma batalha é comido no proprio ide e de suas leis $6 ocorre com os inimigos trazidos vivos para a aldeia, Estes prisioneiros vao passar longos ‘meses, por vezes anos, na intimidade daqueles que acabarao por ios. Participam de suas atividades, misturam-se a sua vida jana, desposam uma de suas mulheres; em suma, tecem com seus futturos sacrificadores — pois, como veremos, vai se tratar sem diivida de um sacrificio — vinculo quase idéntico aos que unem fimos uns aos outros. mento duplo, contradité- quase com veneracdo. Seus favores sexuais so procurados. wsulta- do, coberto de d ‘Um pouco prisioneiro é encorajada to, ele ¢ obrigado a roubar seus alimentos. Um dos autores comen- tados por Métraux afirma que ‘durante todo esse tempo, ele tina permissdo de lutar, de bater, de roubar galinhas, gansos ¢ outras coisas, ¢ fazer tudo o que de pior pudesse para vingar sua morte, ages ilegais da fu seressdo. A maioria sioneiro em ‘*bode expiat Bis como Francis Huxley resume os diversos papéis ¢ 0 desti- no do prisioneiro: meiro desempenar ¢ encarnar varios papéis 10 que se adota; ocupa 0 lugar do ho- ; a0 mesmo tempo no da morte que o espera. Assumindo todos estes papé pleno do tenm« trando as contradigoes que a sociedade suscita:situacao imp [A UNIDADE b=-T0008 05 RTOS que s6 pode conc quando o ritual confer cle setorna o representante do outro mu ‘aqui, um Janus sagrado demais para que se possa viver com ele. A definigdo é admiravelmente exata, salvo pelo fato de que a vitima — sobre a q\ fadas todas as contradigdes da so- jedade — aparece, no fim de contas, nfo como “plenitude da hu- manidade”, mas como duplo monstruoso ¢ como divindade. Huxley tem razio: sem duivida, é a verdade das relagdes humanas e da sociedade que se revela, mas ela ¢ insustentvel; por isto, € preciso livrar-se dela; uma fungao essencial da violénc! {que realmente funda a coesao da com ijeto do canibalismo ritual estivermos condenados a interpretar ca, imaginaremos que os canibais procuram uma ju ral para a violencia da qual se tornardo culpados. De fato, quanto mais maleficios o prisioneiro cometer, mais legitima serd a vingan- ga que se tirard dele. Mas nao se trata de forma alguma de apazi- guar uma neurose, ou de satisfazer um “‘sentimento de culpabili- dade” qualquer, trata-se de obter resultados altamente concretos. ‘gender 0 cardter for- de todos se menos de qualquer cul- {ura humana continu: O mecanismo da 1s planos onde ela fala; impede que os proximos lutem e que a ver~ locando-a no exterior do homem co- ‘mo incompreensivel divindade. ( prisioneiro deve atrair sobre si todas as tensdes, todos os édios ¢ rancores acumulados. Pedem-Ihe que, através de insforme toda esta violéncia maléfica em um sagrado 1e devolva o vigor a. uma ordem cultural deprimida & 26 RENE GIRARD cansada. O canibalismo ritual &, portanto, um rito semelhante a todos os que vimos precedentemente, Se os Tupinambé agem des- ‘ou melhor, porque o sis- tema ritual segue este modelo por eles. Também eles se esforgam. Por reproduzir 0 que aconteceu na primeira vez, renovando uma vez mais a unanimidade que se fez ¢ refez em torno da ppiatéria. Se o prisioneiro é objeto de um tratamento duplo, se ele € ora vilipendiado, ora honrado, isto se dé em funcfo de sua quali- dade de representante da vitima original. Odioso enquanto polari- zaa violéncia e enquanto ainda nao a metamorfoseou, ele se torna infinitamente respeitavel quando a transforma, fazendo agit, uma ‘vez mais, 0 mecanismo da - Quanto mais a vitima parecer inicialmente odiosa, mais as paixGes polarizacias por ela se- fo vigorosas, mais profundamente funcionaré o mecanismo, Em suma, acontece com 0 prisioneiro tupinamba o mesmo que com o rei africano. J4 todo aureolado por sua morte futura, ele encarna as duas faces do sagrado, nao apenas de modo sucessivo, ‘mas simulténeo. E a totalidade da violéncia que ele assume, e isto enquanto estd ainda vivo, pois na verdade é na eternidade que ele a assume, fora de qualquer temporalidade, Segundo os textos, parece que o prisionciro estaria definitiva- ente destinado a reencarnar um herdi mitico que aparece em cer- {as verses sob os tragos de um prisioneiro cestes a ser ritualmen- te executado e devorado. Portanto, aos oluos daqueles que o pra- ticam, 0 canibalismo ritual ocorre como uma repeticao de um acon- tecimento primordial. Assim como o aspeeto incestuoso na monarquia africana, 0 aspecto antropofégico pode distrair o observador, impedindo-o de econhecer no ritual tupinambé essencialmente a mesma coisa que em todos 0s outros lugares, ou seja, antes de tudo 0 sacrificio. Es- te risco é maior, no entanto, no caso do incesto que no da antro- ofagia, que ainda nao encontrou seu Freud e nao foi ainda eleva- da & posicdo de mito maior da modernidade. O cinema contempo- réneo sem diivida tentou colocar o canibalismo na moda, mas os resultados no foram sensacionais Mircea Eliade afirma com toda exatido que o sagrado ver em primeiro lugar, ¢ que talvez, no limite, a antropofagia nao exista sob uma forma natural’. Em outros termos, no € para comer a 3. The Sacred and the Profane (New York, 1961), p18 /AUNIDADE DE TODOS 0s RITOS ey ima que ela ¢ imolada, mas € importante comé-la justamente por fer sido imolada. O mesmo acontece com todas as vitimas animais {que também sio ingeridas. O elemento antropofigico nao exige ne- Inhuma explicagao particular. Sob mais de um aspecto, é ele que esclarece ritos dos mais obscuros. Toda ingestao de carne sacrifi «ial, humana eanimal, deve ser interpretada & luz do desejo mimé- verdadeiro c jumano, que sempre aca- ba tendo como objeto a violencia outra, a violencia do outro. O deseja mimético exacerbado deseja ao mesmo tempo destruir ¢ ab- sorver a violéncia encarnada do modelo-obstéculo, sempre assimi- lada ao ser ¢ & divindade. Explica-se, através deste fato, o desejo dos canibais de verem tima demonstrar, por Su é realmente a nagdo da violencia soberana. E nec ente apds i ou seja, uma vez que a violén- cia maléfica tenha sido completamente metamorfoseada em subs- ‘ancia benéfica, inteiramente convertida em fonte de paz, de boa vitalidade e de fecundidade. ‘Quando se reconhece no « como 0s outros, a adocao prévia do prisio A futura vitima vem de fora, do sagrado indiferenciado; ela G estrangeira demais & comunidade para ser imediatamente utilizé- € preciso conceder-Ihe o que Ihe certa pertinéncia 20 grupo, fazendo dela uma criatura do sem entretanto retirar-the sua qualidade de criatura do cesta exterioridade ja sagrada que a caracteriza essenci A preparagao sacrificial torna a vitima suficientemente seme- Ihanteaos alvos “naturai tos da violéncia, ou seja, aos pré- ximos, garantindo a transferéncia das tendéncias agressivas, fazendo dela, em suma, um objeto ““apetitoso””. Sem deixar de ser su temente estrangeira e diferente, para que sua morte nio arraste a comunidad num ciclo de vinganca. A unica pessoa passivel de des- posar a causa do prisioneiro e da qual, até um certo ponto, esp seisto, € sua mulher. Se ela leva este papel a sé riamente executada. Os fillios do casal, caso executadas. RENE GIRARD Aqui, observamos muito bem como a imitago do mecanismo 6 itacdo sempre escrupulosa mas necess te pela transfiguracdo desta primeira vitima — co- sm funcionamento o tipo de pratica ritual que corresponde weoessidades" da comunidade e que garante 2 “evacuacao" a violéncia, sua evaporacdo sobre vitimas nem demasiado nem suficientemente atrativas, em suma, sobre o tipo de vitima mais apto aaliviar a comunidade desta violéncia, ‘‘purificando-a” dela. Ve- mos claramente como 0 funcionamento do sistema, paracio sacrificial que contribui para melhorar 0 das vitimas, pode efetuar-se sem que o sistema seja realmente con- cebido por ninguém, sem que nunca aconteca algo além de uma imitacao do assassinato original, aquele que fez ou refez a unidade da comunidade. Portanto, & preciso considerar a ado¢do do um exemplo de preparagao sacrificial do segundo. ma. O canibalismo ritual assemelha-se muito a monarquia aftica- na pelo fato da futura vitima ser sacralizada quando va, Para compreender 0 parentesco entre os pega de Jean Genet, Alta Vigilancia, que mostra um condenado A morte cujos favores sao disputados por dois bandidos menos im- portantes, na verdade dois irmdos inimigos, fascinados pot sua pré- xima execugo, (Por mais esclarecedora que seja esta comparayio, ndo se deve concluir que a pratica ritual seja derivada de um espi rito andlogo ao da peca contemporénea.) ‘Uma das razdes que nos impecem de ver a estreita relagdo en- tre a monarquia africana ¢ 0 canibalismo tupinambé refere-se a0 recrutamento da vitima, que é tirada de ‘‘dentro”” no primeiro ca- soe de ‘fora’ no segundo, Para chegar a0 mesmo resultado em ambos os casos, a preparacao sacrificial deve ser feita em sentido contrétio. Integrando o prisi & comunidade, os Tupinamba agem da mesma forma que os Dinka quando estes retiram do re- bbanho ¢ instalam perto deles animal reservado ao sacrificio. No into, este principio é levado muito mais, tha adogdo do prisioneiro fornece um indice suple- mentar ¢ certamente notavel em favor da tese defendida aqui, que faz da vitima expiatoria um ser de dentro, um préximo daqueles que a assassinaram. O canibalismo tupinamba parece ser particu- larmente sensivel a esta ‘‘proximidade” da vitima original; para eproduzi-la nas vitimas subseqiientes sem comprometer a eficdcia A UMIDADE DETODOS OS RITOS w~ sacrificial do rito, ele recorre a um procedimento de uma implaca- ica grande demais para ndo nos desconcertar. ‘o estrangeiro, o inimigo hereditario, idade persegue com seu ddio ¢ devora, alternati- ente, O canibalismo ritual concebe a si proprio ¢ apresenta-se mo um jogo de represdlias interminaveis que ocorre em uma es: fanosa; ha aspectos essenciais da igo que ela torna indecifraveis. E facil, pelo contrario, in- corporar esta mesma leitura & explicaco que propomos. Nao so- mente ela ndo é “inedmoda’”, mas necesséria; constitu o que po- deriamos chamar a “ideologia” do canibalismo ritual, que inevi- tavelmente apresenta uma distancia em relagdo & verdade da insti- tuigdo. Como no conjunto tsimshiano estudado acima, ovorre 0 des- Jocamento da violencia intestina para o exterior; é este desloca- mento que é sacrificial, e ele ndo é somente verbal, pois as comu- nidades fazem realmente a guerra, devorando seus membros res- pectivos. Aqui ainda podemos dizer que as tribos entram em en- tendimento para nunca se entenderem; o estado de guerra perma- nente tem como fungao essencial alimentar em vitimas 0 culto ca- bal. De ambas as partes, as capturas devem ser praticamente equi lbradas, constituindo um sistema de quase-prestagdes reciprocas, aparentemente mais ou menos ligado & troca de mulheres, que tam- bém é muitas vezes marcado pela hostilidade, como no caso dos ‘Tsimshian. Trate-se de mulheres ou de prisioneiros, a troca ritualizada em conflito, 0 conflito ritualizado em troca, constituem apenas variantes de um mesmo destizamento sacrificial de dentro para fora, mut ‘mente vantajoso, pois evita que a violéncia se desencadeie ali onde no pode de maneira alguma se desencadear, no seio dos grupos elementares. As vingangas interminaveis de uma tribo a outra di vem ser interpretadas como a obscura metafora da vinganea vamente diferida no interior de cada comunidade. Esta diferenca, ow melhor, este “diferimento”, este deslocamento, nao tem é claro, w RENE GIRARD nada de fingido. E sem diivida porque a rivalidade e a inimizade entre 0s diversos grupos € real que o sistema conserva sua eficécia. Alls, é evidente que este tipo de conflito ndo se mantém sempre dentro de ual. Bla designa em um sistema de opo- sisio, 0 face-a-face hostil. A palavra aparenta-se a um verbo que designa enfrentar, estar em uma Devemos notar, a respeito de fobajara, que 0 assassinato do prisioneiro ocorre de tal maneira que se assemelha o mximo pos- sivel a um combate singular. A vitima é amarrada a uma corda; cam-Ihe espago suficiente para que possa defender-se, durante ‘um certo tempo, dos golpes com os quais seu “face-a-face” sem- pre tinico, seu robajara, esforga-se por atin Nao & surpreendente que o termo fobajara designe mais espe- cificamente a vitima do festim antropofagico. Mas esta palavra :m um tetesio sentido, o de cunhado. O cunhado subs- agonista mais natural. Em troca de uma mu iquela que serviria quase inevita- velmente de objeto a uma rivalidade propriamente fraterna, se os homens de uma mesma comunidade elementar quisessem conser- var suas mulheres para uso pessoal. O movi estrutura do sistema encontra-se implicita na tripla carga seman- ica de tobajara, F nao estamos muito longe da tragédia grega com seus irmaos ¢ seus cunhados inimigos, Etéocles ¢ Polinices, Edipo © Creonte, ete. A ideologia do canibalismo ritual assemelha-se aos mitos na- ‘ionalistas e auerreitos do mundo moderno. Evidentemente, é pos- sivel que os observadores tenham deformado as explicagées dadas pelos indigenas, Estas deformacdes, supondo-se que sejam reais, no afetaram de fo “inimigos heredita- rios”, ete. Insist sobre as diferencas entre dois mitos deste tipo € abandonar-se 20 proprio mito, pois significa desviar-se da tinica ‘A UMIDADE DE TODOS os RITES ui coisa que realmente importa, ou seja, a realidade sempre idéntica, que se encontra contida no nacionalismo moderno assim como no mito tupinambé. Em ambos 0s casos, a funcdo essencial da guerra estrangeira e dos ritos mais ou menos espetaculares que podem ‘acompanhé-la consiste em preservar 0 eq de das comunidades essenciais, afastando a necessariamente mais tida, recomendada ¢ praticada... Em seu romance de antecipacao Orwell mostra os dirigentes de duas super-tiranias cinicamente deci- didos a perpetuar seu conflito a fim de melhor garantir 0 dominio sobre populagdes mistficadas. O culto canibal, baseado na guerra permanente e destinado a perpetuar fade interna, revela que o mundo moderno nao possui on sua instalagdo nao se funda, de forma alguma, na presenga de lideres perfeitamente licidos, manipuladores cinicos de massas inocentes. Constatamos nao ser dificil ligar o canibalismo tupinambé a tima expiatéria. Esta ligacdo esclarece certos fatos tupinambés que até agora permaneciam in- decifraveis. Os fatos tupinambis, por seu lado, ressaltam certos as- pectos da teoria geral que apareciam pouco ou eram impercepti- ‘yeis nos ritos considerados precedentemente. Embora continue fragmentério, nosso panorama ritual conta a partir de agora com ritos bastante diversos tanto no plano do con- tetido e da forma como no da distribuigao geografica, Assim, jo em que poderemos considerar como defi ia 0 fundamento de todas as formas religiosas. Antes de formular tal conclusio, convém multiplicar as precaugées ¢ perguntar se ndo afastamos, sem perceber, certas categorias rituais que escapariam inteiramente do tipo de leitura elaborado nas paginas precedentes. ‘Se quiséssemos caracterizar com uma tinica palavra o conjun- to dos ritos que chamaram nossa ateneio até aqui, poderiamos di- er que todos visam perpetuar e reforgar uma certa ordem fami- liar, religiosa, etc. Seu objetivo é manter o estado das coisas. E por isso que eles recorrem constantemente ao modelo de toda fixacto ede toda estabilizacao cultural: a unanimidade violenta contra a vitima expiatéria e em torno dela Pode-se definir todos estes ritos como ritos de fixidez ou de jade. Ora, também existem ritosditos de passagem. Talver aja aqui fatos passiveis de contradizer a concluséo para a qual ten- ‘demos. Antes de proclamar gue a vitima expiatéria encontra-se na ‘origem de todos 0s ritos, é indispensdvel mostrar que ela também serve de modelo para os ritos de passagem. Os ritos de passagem ligam-se & aquisicao de um novo status, 8 iniciacdo, por exemplo, as sociedades € a tinica capaz de conferir aos adolescentes a plena pertinéncia & comuni- dade. Em nossa sociedade, pelo menos em teoria, a passagem de um status a outro s6 coloca problemas de adaptagao menores, re- servados em principio aos interessados diretos, aos que efetuam a passagem. Embora desde ha algum tempo estas crengas talver te- rtham sido um pouco abaladas, mesmo assim elas continuam a ins- Pitar nosso pensamento e todas as nossas condutas, [Nas sociedades primitivas, pelo contririo, a menor mudanga,, ‘mesmo em um individuo isolado, étratada como se pudesse provo- car uma crise maior. Um perigo literalmente apocalitico ¢ vislum- brado atras de passagens que a nossos olhos seriam as mais normais, asmais previsiveis, as mai tinuidade da sociedade, Em Ritos de Passage’, obra que legitimou a expressao entre 08 ctndlogos, Van Gennep decompde a mudanga de status em dois momentos. No decurso do primeiro, o sujeito perde o status que possuia até entdo, e no segundo, adquire um novo. Nio se deve atribuir esta andlise unicamente & mania, cartesiana e francesa, das idéias claras e distintas. O pensamento religioso distingue realmente 8 dois momentos; ela os percebe como independentes um do ou- tro, e até mesmo separados por um intervalo que pode se transfor- mar em um verdadeiro abismo, onde toda a cultura corre o risco de naufragar. __Adistincio de Van Gennep permite compreender o elemento critico na passagem, pois isola a perda de status, reconhecendo ai uma perda de diferenca, no sentido definido acima. Assim somos reconduzidos a um terreno familiar. Se toda violencia provoca uma perda de diferenca, toda perda de diferenca, reciprocamente, pro- voca uma violencia. E esta violéncia é contagiosa, Trata-se, | UMIDADE DE TODOS os RITOS rio distingue entre as diferengas naturais e culturais. Mas apesar de nem sempre poder se justificar no nivel dos objetos particulares que 0 provocam, 0 terror, em seu principio, nao é imagindrio. individuo em instancia de passagem ¢ assit a de uma epidemia, ou a um criminoso que pode esp cia a seu redor. A menor perda de diferenga, por mai que seja, pode fazer com que toda a comunidade mergulhe em uma ‘© menor rasgéo, tim tinico ponto que cede em um tecido, se ndo for cerzido a tempo, pode destruir toda a roupa. A primeira medida a ser tomada em tal situagao é evidente- mente isolar a vitima, proibindo-Ihe qualquer contato com os mem- bros sadios da comunidade. E necessério prevenir 0 contégio. Os individuos suspeitos so imediatamente excluidos e alojados nas mar- ‘gens da comunidade. Por vezes so expulsos para muito longe na floresta, na selva ou no deserto, onde domina a violencia indife- renciada, para o reino do sagrado ao qual pertencem todos os se~ res privados desta diferenca estavel e deste status determinado, que ro so 0s Gnicos capazes de manter os seres fora do sagrado. Por nao acreditar no contigio, exceto nos casos de doencas microbianas, a mentalidade moderna sempre pensa ser possivel itar a perda de status a um determinado dominio. Isto néio acon- teve nas sociedades primitivas. A indiferenciagdo se expande ¢ 0 proprio nesfito é a primeira vitima do caréter contagioso de sua afeccio, Em certas sociedades, 0 futuro iniciado nao possui mais rem nome, nem passado, nem lacos de parentesco, nem direitos de espécie alguma. Estd reduzido ao estado de coisa informe ¢ ino- mindvel, No caso de iniciagdes coletivas, quanto todo um grupo de adolescentes de mesma idade é chamado @ uma mesma passa- gem, nada mais separa os membros do grupo; no seu interior vive- se em uma igualdade e uma promiscuidade totais Sabemos que no sagrado as diferengas s6 so apagadas e abo- lidas por estarem todas presentes em um estado de mistura, sob uma forma cadtica. Pertencer ao sagrado € participar desta monstruo- sidade, Ser privado de diferencas ou possuir diferencas demais, perdé-las por completo ou incorporé-las indevidamente, é sempre ‘a mesma coisa, Compreende-se entdio que 0 ne6fito possa ser per- cebido tanto como monstro hermafrodita quanto como ser asse- xuado. Sea passagem sempre constitui uma experiéncia temivel, é por- 1 no se pode afirmar, no infeio, que se tratara simplesmente ua RENE GIRARD de uma passagem. Sabe-se o que se esta perdendo, mas néo se sabe serd encontrado. Nunca se sabe ao que esta mistura mons- it, Ea violéncia soberana que tem ima palavra nestas matérias, e nao é bom fazer negocios com cla. Em suma, a “estrutura’” nao consegue dar “seu lugar” & mu- ‘a mudanga parece, por definigao, devir submetido a leis sociais ou mesmo naturais ¢ alheia a religiéo primitiva, A palavra conservador & fraca demais para qualificar 0 espiti- to de imobilidade, o terror do movimento, que caracteriza as so- ciedades pressionadas pelo sagrado. A ordem sécio-religiosa apa- rece como um benef como uma graca inesperada que poderia ser retirada a qualquer momento dos homens pelo sa- grado..E inconcebivel fazer julgamentos de valor sobre esta ordem, rar, escolher e manipular, mesmo de forma minima, 0 para aperfeigod-lo. Todo o pensamento moderno a es- te respeito seria considerado como uma deméncia impia, que atrairia a intervengao vingativa da Violéncia. Os homens devem suspender a respiragdo. Qualquer movimento inesperaco pode provocar uma borrasca siibita, um maremoto onde toda sociedade humana desa- pareceria, Por mais terrificante que seja, a perspectiva da passagem no € entretanto desesperante. Foi através da perda generalizada das diferencas ¢ da violéncia universal, através da crise sacrificial e por seu intermédio que, outrora, a comunidade encontrou a ordem di- ferenciada. A crise € a mesma, e pode-se esperar que ela conduzira ‘40 mesmo resultado, a uma instauracdo ou a uma restaurago das diferengas, ou seja, no caso dos neéfitos, & aquisigao do novo sta- ‘us ambicionado por eles. Este desenlace favordvel depende em pri- meiro lugar da Violéncia soberana, mas a comunidade pensa que pode contribuir para ele. Tentard canalizar a energia malética pa- ra caminhos que a coletividade abriu. Para que o resultado final seja 0 mesmo que na primeira vez, para colocar todas as chances do lado da comunidade, € preciso reproduzir, a cada instante, tu- do o que se produziu naquela primeira vez, fazendo com que 0s ne6fitos percorram todas as etapas da crise sacri is como sao rememoradas, vertendo a experiéncia atual na forma da experién- cia de outrora. Se o processo ritual repetir exatamente 0 processo da crise original pode-se prever que ele ird se concluir da mesma ‘manera, ‘A UNIDADE DE-TODOS Os RITOS E este 0 projeto fundamental dos ritos de passagem; basta apreendé-lo para entender que os aspectos apa tranhos, os detal provém de uma Idgica muito simples, que o pensai simplesmente segue até o fim. Ao invés de evitar a er! gulharam. Em vez de fugir das mais penosas ¢ das, conseqiiéncias da violencia reciproca, & preciso entregar-se a cada uma delas. Por que o postulante é de alimentos, por que ¢ sobrecarregado de maus-tratos, € por ve 2es de verdadeiras torturas? Porque, na primeira vez, as ‘eceram assim. Em certos casos nao basta softer a vi bém & nevessiio exer Assim co- mo em certas festa, pelas mesmasr cas pri bidas em qualquer outra época sio ex suas simbics, ingest de a oni parte do processo de € 05 Tupinambé o assassinato do prisioneiro tem valor de iniciagdo para quem o comete. Nume- rosas s4o as sociedades onde o to iniitico por exceléncia é 0 abate de um animal ou mesmo de um ser ‘A tendéncia de um individuo pri atus para se meta- morfosear em duplo m rizada. Por vezes, é encontrar com outros homens, o futuro i bre eles e devoré-los. Como Dionisio ou o rei sagrado, elese torna touro, leo, leopardo, embora apenas durante a crise uso da palavra humana dos ou rugidos. Em c racteristicos da possessio vi elementos sucessivos dos ritos per real ou suposta desta crise, Approva de que tudo é modelado, do comego ao fim, a partir dacrise ede ua resolugdo, & que a0 lado de todos os rites que aca- bbamos de enumerar e que imitam a propria cris, figuram cer nias que, de seu lado, reproduzem a unanimidade finalmente re zada contra a vitima expiatéria; estas cerim6nias consttuem o ponto calminante de todo o processo. A intervencio de méscaras neste ‘momento supremo indica diretamente a presenga do duplo mons- i" RENE GIRARD truoso, jA que atestada pelas supostas metamorfoses dos nedfitos, Estas cerimSnias podem tomar as mais diversas formas, mas sem- pre evocam a resolugao violenta, o fim da crise, 0 retorno or~ dem, ot! seja, a aquisigao pelos ne6fitos de seu status definitivo. ‘Os ritos de passagem visam portanto estruturar, a partir do modelo da crise original, toda crise potencial ocasionada por uma perda qualquer de diferenca. Trata-se de transformar em certeza a incerteza aterrorizante que sempre acompanha o aparecimento dda violencia contagiosa. Se os ritos de passagem sempre sto bem- sucedidos, se atingem regularmente seu objetivo, tencem pouco a pouco a se transformar em uma simples prova, cada vez mais “sim- bélica’” A medida que se torna menos aleat6ria. O elemento cen- tral dos ritos, o niicleo sacrificial, também tende a desaparecer, nao se sabendo ao que se refere 0 Constata-se que ndo ha diferenga essencial entre os ritos de ppassagem ¢ 0s ritos que batizamos acima ritos de fixidez. O mode~ Jo permanece o mesmo. A agao ritual tem apenas um objetivo, a imobilidade completa ou na sua auséncia, 0 minimo de mobilida- de, Acolher a mudanga sempre significa entreabrir a porta atras dda qual vagueiam a violencia e o caos. Nao se pode, entretanto, impedir que os homens se tornem adultos, que se casem, que fi- quem doentes ou morram. Cada vez que o devir as ameaga, as 80- ciedades primitivas tentam canalizar sua forga efervescente para os limites sancionados pela ordem cultural. Isto também ocorre, em rmumerosas sociedades, em relago as mudancas sazonais. Qualquer que seja o problema, ou a proveniéncia do perigo, o remédio ¢ de ordem ritual e todos os ritos podem ser resumidos & repetigaio da resolugio. |, a.um novo parto da ordem diferenciada. O mo- delo de toda fixidez cultural é também 0 modelo de toda mudanga nndo catastrofica, No limite, nao ha distingao nitida entre os ritos de passagem e 0s outros. Entretanto, hd uma especificidade relativa de certos ritos de pas- sagem. Os elementos tomados & propria crise, em oposigdo @ seu desenlace, desempenham um papel mais importante e espetacular ros ritos de passagem que em muitos outros. Sio estes os elementos que dao aos ritos seu aspecto propriamente inicidtico. E por esta razio que eles se perpetuam nos periodos de desagrezacdo ritual, 20 passo que o resto, ou seja, o mais essencial, cai no esquecimento ¢ desaparece. JA constatamos este proceso a respeito de outros ritos. E sempre a conclusdo fundadora que tende a desaparecer DADE DE TODOS OS em primeiro lugar, ¢ est zet, corta o cordao umbi forte que suas diferengas. No caso dos ritos de p plo, mesmo q incidtica seja reservada a toda a cor volva a talhes que merecem Quanto mais passa o tempo, m original tende a se dissipar. As novas geragSes ndo tém mais as mes- ‘mas razdes que seus ancestrais para respeitar as : cexperiéncia da vi sondo aos recém-chegados os ritos de passager provas t@o semelhanies quanto possi- inal, a cultura busca reproduzir o estado de espi rito mais favordvel 4 perpetuacdo da ordem diferenciada, recrian- do a atmosfera de terror sagrado e de veneracao que reinava entre “osancestrais na época em que 0s ritos eas interdigées eram os mais escrupulosamente observados. © mecanismo da difusio ¢ da prevengao da violéncia nas sociedades humanas, tal como é revelado pelo esquema da crise sacrificial ¢ da violéncia fundadora, permite compreender que z al, pelo menos enquan- to ndo perderem seu cardter de uma prov penosa, impressio- nante, por vezes quase insuportivel. Como sempre, trata-se de " que a ignordncia dos adolescentes, sua jovem impetuosidade poderiam facilmente desencadear. 5s ritos de passagem do aos nedfitos uma amostra do que 6s espera se transgredirem as interdigées, se nesligenciarem os ri tos ese afastarem do religioso. Gracas 2o ritual, as getagdes suces- sivas sao impregnadas de respeito pelas obras terriveis do sagrado, participam fervorosamente da vida religiosa e consagram-se con todas as suas forcas & consolidacao da ordem cultural. A prova fi sica tem um poder coercitive que nenhuma compreenséi tual consegue igualar; é através dela que a ordem sécio-teligiosa ird aparecer como um extraordinatio beneficio, RENE GIRARD uer forma de calculo, de nar atris dos ipos de iniciagio — passagem a idade adulta, fracias re xamanismo — é possi- 10 esboco, pela lade ou a um espirito cujas hosas evocam 0 mecanismo da viti- icipar de seu poder, conseguindo ramorfose do maléfico em benéfico. as: elas se vinculam a alguma pers- pectiva 0 a Em culturas por vezes astante afastadas u [A UNIDADE DE 1000s 0s de um xamii consumado. Esta prova suprema assemelha-se ao di- ‘ima no diasparagmds dionisiaco e em uum grande nimero de rituais de proveniéncias diversas. Se 0 des- membramento é um signo de ressurreicdo e de conquista triunfal, € porque ele significa o préprio mecanismo da vitima expiatéria, a metamorfose do maléfico em benéfico, O xama sofre as mesmas metamorfoses que as criaturas miticas as quais ird recorrer, mais tarde, no exericio de suas funcdes; se ele pode receber seu au € porque trata-as em pé de igualdade. tral. O xama desempenhia sneamente todos os papéis, mas principalmente o de alguém que reine e domina forsas benéticas, que acabam por derrotar as forcas ma freqiientemente acompanhada de um |. cue randeiro exibe um ramo, um pedaco de algodo ou um resto qual- quer que afirma ter extraido do corpo de seu doente e que declara ser tesponsivel pela doenca. (Os gregos nomeavam katharma o objeto maléfico rejeitado du- ante operacdes rituais sem diivida bastante andlogas & do xama- nismo, como observaram os etndlogos em diversas partes do mun- do. Ora, a palavra katharma designa também e em primeiro lugar ‘uma vitima sacrificial humana, uma variante de pharmakds. Se relacionarmos a extragao do katharma xamanistico com a encenagdo conflitual, a operacao fica esclarecida. A doenca é a rilada & crise; ela pode conduzir ou a morte ou a uma cura sempre interpretada como expulsdo de ‘‘impurezas”, sejam espirituais — (os maus espiritos — sejam materiais — o objeto xamanistico. Ain- da aqui trata-se de repetir o que aconteceu na primeira vez, de aju- dar 0 doente a produzir sua propria a cura, assim como toda a co- letividade produziu, outrora, na violencia coletiva, a ordem que a rege. O katharma nao deveria ter se introduzido no organismo hu- mano; € ele que traz a desordem de fora. Constitui um verdadeiro objeto expiatério, enquanto todo 0 organismo mobilizado pelo pre- ‘tenso invasor desempenha o papel da coletividade, Se, como sem- pre se afirma, a medi tual, ela deve consistir e con- siste em uma repeticdo do processo fundador. A palavra katharsis significa em primeiro lugar o beneficio mis- terioso que a cidade retira da morte do katharma humano. E ge- ralmente traduzida por purificagdo religiosa. A operacdo & conce- bida segundo o modo de uma drenagem, de uma evacuagio. Antes de ser executado, o katharma é conduzido solenemente pelas ruas da cidade, mais ou menos do mesmo modo que uma dona-de-casa passa aspirador em todos os cantos de seu apartamento. A viti- ma deve atrair para sua pessoa todos os maus germens e evaci los, através de sua propria eliminagao. Nao é a verdade da opera- 0 que se apresenta aqui, mesmo que estejamos bem prdximos dela mitica. A violencia certamente se ra, mas nenhuma expulséo ou evactia~ Gao se produz. O essencial ¢ escamoteado: a violéncia reciproca, a arbitrariedade da resolucdo, o elemento de saciagdo ¢ nfo de ex- pulsdo que figura nesta resoluedo. Como sempre, transformar a violéncia numa espécie de ‘‘impureza”, de “‘sujeira’”, que se con- centraria de preferéncia sobre um katharma humano ou material, sobre um ser que sentiria por ela, ¢ vice-versa, uma afinidade par- ticular, significa reificar esta mesma violencia. Quando o xamé afir- ma extrair a doenca sob a forma de um objeto, ele transporta € transp0e a interpretacdo ja mitica para o corpo de seu doente ¢ pa a 0 pequeno objeto do. Existe ao lado do uso religioso ¢ do uso xamanistico, ¢ inter- medidrio entre 0s dois, um uso propriamente médico do termo ka~ tharsis. Um remédio catartico é uma droga poderosa que provoca a evacuagdo de humores ou de matérias cuja presenca é considera~ da maléfica, Imagina-se freqtientemente que 0 remédio participa da mesma natureza que 0 mal ou que ao menos € passivel de agta~ var seus sintomas, provocando, por esta ra7ao, uma crise salutar, de onde emergira a cura. Ele constitui, em suma, um suplemento do mal, que leva a crise a0 paroxismo e provoca a expulsdio dos agentes patogénicos através de sua propria expulsio. Esta é exata- mente @ mesma operacéo que a do katharma humano, na leitura que acabamos de nomear mitica, em termos de expulsio. Também, desta vez de forma alguma mitico, encontra-se aqui o principio da purgacio. O deslizamento que conduz do katharma humano a katharsis médica é paralelo a0 que conduz do pharmakds humano ao termo pharmakon, que significa ao mesmo tempo veneno e remédio. Em ambos os casos passa-se da vitima expiatéria, ou melhor, de seu representante, para a droga dupla, simultaneamente malética ¢ be- néfica, ou seja, a uma transposicdo fisica da dualidade sagrada. Plutarco emprega a expressio kathartikon pharmakon, numa re- dundancia significativa ‘\ UMIDADE DE TOPOS 05 RITOS A “‘traduc20" do processo violento em termos de expulsio, de evacuacdo, de ablacao cinirgica, aparece com uma extraordind- ria freqiiéncia nas mais diversas culturas. Assim, os resultados do Incveala swazi ex) 3 cdo signi fica literalmente © ano novo, inscrevendo-se em um conjunto semantico onde figuram todo tipo de operagdes altamente reveladoras, pois vio da consumacao do primeiro casamento real até a vitdria decisiva em um conflito ar- mado: o denominador comum parece ser 0 sofrimento agudo mas salutar, adequado pata garantir a cura de uma doenca, a resolu- 40 natural ou ar de uma crise qualquer. O mesmo conjunto designa a acdo de substincias que sdo tidas por exercer uma agio ‘erapéutica. Durante os rtos, 0 rei cospe substéncias mégicas e me- dicinais na direeao do leste e do oeste. O proprio termo Inewala parece relacionau-se i idéia de limpeza, de purificacao através de evacuacéo, Lembremos que tudo termina com uma grande foguei- a onde se consomem os restos impuros das operagées rituais e de todo o ano que passou. Max Gluckman usa 0 conceito de “catar- se aristotélica”’ Katharma, katharsis so derivados de katharos, Se reunirmos ‘0s temas que gravitam em torno desta mesma raiz, iremos nos en- contrar diante de um verdadeiro catdlogo dos temas tratados no presente ensaio, que leva 0 duplo titulo da violéncia e do sagrado. Katharma nao se refere apenas a vitima ou 20 objeto expiatorio, termo designa também a ocupaco por exceléncia do herdi mi co ou tragico, Para designar os trabalhos de Hércules, Plutarco fala de pontia katharmata, cle expulsdes que purificaram os mares. Ka- ‘thairo significa, entre outras coisas, purgar a terra de seus mons- tros. O sentido secundrio de “‘chicotear”” parece um pouco sur- preendente neste contexto, mas ele se explica se lembrarmos da prié- tica que consistia em chicotear o pharmakés nos drgiis genitas. Em um tal contexto, nao ¢ indiferente notar entre os sentidos de katharsis certas cerimOnias de purificacdo as quais eram sub- metidos, nos misirios, os candidatos & iniciacdo, Nao se deve tam- ppouco esquecer de mencionar um outro sentido de katharsis: mens- tcuagio. Se o Ieitor que chegou até aqui ndo considera mais que estariamos lidando com um conjunto heterogéneo, e se ele acredi- 1, como n6s, que a vitima expiatéria fornece a chave destas apa- 5 extravagdincias, revelando uma unidade, nossa tarefa esta ter- minada, Sempre que o processo fundador ou suas derivagdes sacri ciais so descritos em termos de expulsfo, de purgagio de pi cagho, ete., fendmenos que néo tém nada de natural, j4 que deri- ‘vam da violéncia, esto sendo interpretados com a ajuda de um mo- delo natural, Na natureza ha realmente expulsoes, evacuiagbes, pur- gagdes, etc. O modelo natural é um modelo real. Mas esta realida- de nao deve impedir que seja questionado o papel extraor no pensamento humano, do pensamento ritual ¢ da medicina xa- anistica até nossos dias. B, sem duivida, as coisas devem sor con- cebidas segundo o esquema apresentado no capitulo VIII. E 0 jo- g0 da violencia que fornece o impulso inicial para a descoberta do ‘modelo, assim como para sua at a este proprio it ser solicitado pelo milagre da unanimidade refeita que o pensamento concebe o modelo, numa observagdo conjunta do natural e do cul- tural, utilizando em seguida este mesmo modelo um pouco por to- da parte, sem que sejamos aind: es, mesmo hoje, de separar arbitrario e 0 nao-atbi fecundo do insig tolégico. Nos clisteres e sangrias do século XV! paclo de evacuar os humores maléficos, reconhece-se facilmente 2 presenga obsessiva da expulsio e da purificagao como tema mé- as a purgacdo tem uma eficdcia real. E 0 que dizer diante dos procedimentos moder nos de imunizacdo ¢ de vacinacto? Nao é um tinico ¢ mesmo mo- delo que opera em todos os casos, ¢ que fornece o enquadramento electual ¢ o instrumental tanto para a pseudo-descoberta quan- to para a descoberta verdadeira? E preciso reforgar as defesas do doente, torné-lo capaz de repelir por seus préprios meios uma agres- so microbiana. A operagdo benéfica é sempre concebida segundo o modo da invasio rechagada, do intruso maléfico expulso. Aqui ém mais pode rir, pois a operacao é ciemtificamente eficaz. é ular “um pouco” da doen incia no cOrpo social para tornd-lo capaz de resistir a violencia. Asanalogias chegam a causar vertigens, tanto so numerosas ¢ exa- De TODOS os RITOS, s. As “vacinacdes de reforgo” correspondem a rep Grificios e naturalmente também séo encontradas possi inversio catastréfica, como em todos 0s modos de protecao “sa- virulenta demais, um pharmakon excessiva- iio que deveria dominar. Para ilustrar os aspectos correspondentes do sacrificio recorremos acima a metdfora da vacinagdo, e constatamos agora que o deslo- ‘camento metaférico ndo se dstingue de uma nova substituigao sa- stitcial Descobrimos novamente no pensamento cientfico um filho do pensamento arcaico, aquele que elabora os mitos ¢ 0s rituais. Des- cobrimos em um instrumento técnico de incontestdvel efiedcia o pro- Iongamento sem diivida refinado, mas em linha direta, das mais ‘grosseiras praticas médico-rituais. Nao se deve certamente derivar estas tltimas de modos de pensamento diferentes do nosso. E cla- ro que de uma forma a outra sempre ocorrem substituigdes € no- vos deslocamentos, mas seria incorreto tratar separadamente dos dliversos resultados destas operagdes. Nao existe entre eles uma ferenca realmente decisiva, pois, desde o principio, o fendmeno con- 3s jd andlogos aos que se seguirao ou nfo, em substituigdes metaféricas, que se m intensida- de justamente por nunca conseguirem aprender um tinico mes- mo fendmeno, cuja esséncia permanece fora de aleance. Na mesma ordem de idéias, e visando completar o quadro de significagdes diversas do termo katharsis, convém voltar & tragé- sgrega. Ainda nao nos referimos explicitamente a0 uso que Aris- tteles faz deste termo em sua Poética. Isto quase nao & necessé- rio, pois a partir de agora ja estdo disponives todos os elementos necessdrios a uma leitura que prolonga as precedentes ¢ que vem se instalar por si s6 no conjunto que esta se formando. Ja sabemos que a tragédia provém de formas miticas e rituais. Nao precisamos definis a fungdo do género trigico. Aristételes jé fez isto. Ao des- crever o efeito trigico em termos de Aatharsis, ele afirma que a tra- -édia pode e deve preencher a0 menos algumas das fungdes reser- vadas ao ritual em um universo onde este desapareceu Como vimos, 0 Edipo trégico coincide com o antigo kathar- cia coletiva original nao é mais substituida por um tem- plo e um altar sobre o qual vitimas serdo imoladas, mas por um teatro e um palco, sobre o qual o destino deste karharma, imitado or um ator, purgara os espectadores de suas paixdes, provocando uma nova katharsis individual e coletiva, ela também salutar para a comunidade. Se estivermos de acordo — e como niio estar? — com os etnd Jogos que descrevem no rito sacrificial um drama, ou uma espécie de obra de arte — por exemplo Victor Turner, em The Drums of Affliction (p. 269): “The uaity ofa given ritual is a dramatic unity. It is in this sense a kind of work of art’** — a reciptoca deve set verdadeira: 0 drama representado no teatro deve constituir uma es- pécie de rito, a obscura repeticao do fendmeno religioso (0 emprego aristotético de katharsis provocou e ainda provo- ca interminéveis discussbes. Tenta-se obstinadamente encontrar 0 nndo estavam em vigéncia na época de Aristételes, de que deveriam j ser quase to obscuras quanto em nossa época. Para que a palavra katharsis tenha uma dimenséo sacrificial na Postica, mente necessério que Aristételes apreenda da, Para que a tragédia funcione como uma espécie de Zio andloga & da imolagdo sacrificial continue iramaticoe literdrio confirmado pelo fil6- se dissimulava no uso religioso e médico. E jus- andlogo ao menos sob certos aspec~ tos, a todos os outros, E ela se instala com plenos direitos no pa- mbém gravita em torno da violéncia fun- esta gravitacio. Se olharmo de perto 0 texto de Aristoteles, ‘constataremos facilmente que ele se assemelha, em certos pontos, a um verdadeiro manual de sacrificios. As qualidades que fazem © “bom” herdi da tragédia lembram as qualidades exigidas da vi origina: “A unidade d ido ele € ura esp de obra de are’ |AUNIDADE DE TODOS 0S RITOS ‘ma sacrificial, Para que esta possa polarizar e purgar as paixdes, Enecessério, como pocemos lembrar, que seja semelhante a todos 6s da comunidade e a0 mesmo tempo dessernelhante, simultanca- mente proxima e longinqua, a mesma e a ouira, 0 duplo ¢ a Dife- renca sagrada, Da mesma forma, € preciso que o herdi ndo seja nem exciusivamente ‘“bom"’, nem exclusivamente “mau”. E ne- cessario que uma certa bondade esteja presénte para garantir uma identificacao parcial do espectador. E preciso igualmente uma fra- queza qualquer, uma “falha trégica”, que acabard por tornar a “pondade” inoperante, permitindo que o espectador abandone o herdi ao horror e & morte, Foi exatamente isto que Freud viu em Totem e Tabu, mas de forma incompleta. Apés ter acompanhado « herdi por uma parte do caminho, o espectador descobre nele um ‘outro e abandona-o & ignominia eA grandeza, ambas sobre- hhumanas, de seu destino, com um estremecimento de “terror e pie- dade” sem diivida mesclado de recomhecimento pela idéia de seu proprio equilibrio, da seguranga de uma existéncia bem ordenada. Qualquer obra de arte realmente poderosa, ¢ cujo poder emocio- na, tem um efeito ao menos levemente iniciatico, pelo fato de fa- zer com que a violencia seja pressentida e suas obras temidas; ela ita & prudéncia ¢ afasta da hybris. Aristételes ¢ discretamente vago sobre as paixdes que a tragé- dia purga, mas se ela deve ser vista como um novo exemplo do fo- go combatendo 0 fogo, nenhuma duvida ¢ possivel: trata-se sem- pre de proteger de sua propria violencia aqueles que vivem juntos 0 fildsofo afirma explicitamente que somente a violéncia entre pro ximos é apropriada & acdo tragica. Se a tragédia fosse uma adaptacdo direta do rito, como afir- ‘ma uma certa teoria erudita, ela propria seria uma obra de erudi- 620; seu valor estético e kathartico nao seria superior ao dos Cam- bridge rituatists, Se a tcagédia possui em abundancia a virtude ka- thartica, ou possuiu-a durante muito tempo, isto s6 pode ser devi- do ao que ha de anti-ritual em sua inspiraedo primeira. A tragédia avanga para a verdade expondo-se & violencia reciproca mas, co- mo vimos, ela sempre acaba por recuar. A diferenga mitica e ri- tual, abalada por um instante, é restaurada sob a forma de dife~ renga “cultural” e “estética”. Portanto, a tragédia seria o equiva- Iente dos verdadciros ritos, por ter resvalado no abismo onde as diferengas se dissolvem, guardando as marcas desta prova,

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