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N .

1 | J A N E I R O A A B R I L D E 2015
N. 1 | Janeiro a Abril de 2015

A revista de Estudos de Cultura da UFS é um periódico do Núcleo de Estudos de Cultura da UFS, Pólo autónomo internacional
do CLEPUL: HISTÓRIA, CULTURA E EDUCAÇÃO, que foi criado com o intuito de congregar pesquisadores das grandes áreas
de Ciências Humanas, de Ciências Sociais e Aplicadas e de Letras, Linguística e Artes, para que, numa relação recíproca e não
hierárquica de trocas e empréstimos, possam romper-se as limitações disciplinares que dificultam perspectivas renovadoras de
reflexão sobre a cultura moderna e contemporânea, com ênfase no estudo de seus aspectos organizacionais e representacionais.

EDITOR CHEFE
Luiz Eduardo Oliveira

CONSELHO EDITORIAL
Antonio Ponciano Bezerra (Universidade Federal de Sergipe)
Anderson Zalewski Vargas (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Celso João Carminati (Universidade do Estado de Santa Catarina)
Claudete Daflon dos Santos (Universidade Federal Fluminense)
Delmir José Valentini (Universidade Federal da Fronteira do Sul)
Dilton Cândido Santos Maynard (Universidade Federal de Sergipe)
Élsio José Corá (Universidade Federal da Fronteira Sul)
Enrique Rodrigues-Moura (Universidade de Bamberg)
Frank Nilton Marcon (Universidade Federal de Sergipe)
Francisco das Neves Alves (CLEPUL / Universidade Federal do Rio Grande/ Biblioteca Rio-Grandense)
Gladys Mary Ghizoni Teive (Universidade Federal de Santa Catarina)
Hippolyte Brice Sogbossi (Universidade Federal de Sergipe)
João Adolfo Hansen (Universidade de São Paulo)
João Carlos Relvão Caetano (CLEPUL / Universidade Aberta de Portugal)
Jonatas Silva Menezes (Universidade Federal de Sergipe)
Jorge Carvalho do Nascimento (Universidade Federal de Sergipe)
José Carlos de Araújo Silva (Universidade do Estado da Bahia)
José Eduardo Franco (CLEPUL / Universidade de Lisboa)
José Rodorval Ramalho (Universidade Federal de Sergipe)
Luiz Eduardo Oliveira (CLEPUL / Universidade Federal de Sergipe)
Maria Regina Barcelos Bettiol (CAPES/URI)
Marcus de Martini (Universidade Federal de Santa Maria)
Norberto Dallabrida (CLEPUL / Universidade do Estado de Santa Catarina)
Paulo de Assunção (CLEPUL / Universidade São Judas Tadeu)
Raquel Meister Ko. Freitag (Universidade Federal de Sergipe)
Regina Helena Pires de Brito (Universidade Presbiteriana Mackenzie)
Simone Silveira Amorim (Universidade Tiradentes)
Valmir Francisco Muraro (CLEPUL / Universidade Federal de Santa Catarina)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

REITOR
Angelo Roberto Antoniolli

VICE-REITOR
André Maurício Conceição de Souza

EQUIPE TÉCNICA
Antonio Pedro Barreto de Oliveira
Ellen dos Santos Oliveira
Émmerly Karoline Nascimento Dantas Leite
José Augusto Batista dos Santos
Luiz Eduardo Oliveira

REVISÃO E TRADUÇÃO
Português
Giselle Macedo Barboza
Fernanda Cristina da E. dos Santos
Sara Rogéria Santos Barbosa

Inglês
Ana Lúcia Simões Borges Fonseca
Elaine Maria Santos
José Augusto Batista dos Santos
Rodrigo Belfort Gomes
Thadeu Vinícus Souza Teles

Francês
Kate Constantino Pinheiro de Andrade Oliveira
Joselma Duarte Santiago Nunes

Espanhol
Anselmo Guimarães

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Adilma Menezes

Revista de Estudos de Cultura da UFS/Publicação do


Núcleo de Estudos de Cultura, Universidade Federal de Ser-
gipe. - nº 1, (jan./abr. 2015) – São Cristóvão: Universidade
Federal de Sergipe, 2015.

Quadrimestral

1. Cultura 2. Cultura brasileira 3. Periódico 3. Núcleo de


Estudos de Culgura.

CDU 008 (050)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE


Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos”
CEP 49.100-000 – São Cristóvão – SE.
SUMÁRIO

7 EDITORIAL
Luiz Eduardo Oliveira
JoséEduardo Franco

13 ANTICAPITALISMO
ANTI-CAPITALISM
ANTICAPITALISMO
Émerson Neves da Silva

19 O ANTICRISTIANISMO NO BRASIL
ANTI-CHRISTIANITY IN BRAZIL
EL ANTICRISTIANISMO EN BRASIL
Rogério Luiz de Souza
Edison Lucas Fabrício

33 ANTIFEMINISMO
ANTIFEMINISM
ANTIFEMINISMO
Maria Helena Santana Cruz
Alfrancio Ferreira Dias

43 O ANTIFRANCESISMO NO BRASIL
ANTILUSITANISM
EL ANTIFRANCESISMO EN BRASIL
Maria Regina Barcelos Bettiol

53 ANTILUSITANISMO
ANTI-LUSOPHONISM
ANTILUSITANISMO
Carolina P. Fedatto

61 ANTILUSOFONISMO
ANTI-LUSOPHONISM
ANTILUSOFONISMO
Jair de Almeida Junior
69 ANTIMANIQUEÍSMO
ANTI-MANICHAEISM
ANTIMANIQUEÍSMO
Jean Pierre Chauvin

77 O ANTIMEDIEVALISMO NO BRASIL
ANTIMEDIEVALISM IN BRAZIL
EL ANTIMEDIEVALISMO EN BRASIL
Thiago Borges de Aguiar

89 AS MÚTUAS NEGAÇÕES DO CRIACIONISMO E DO


EVOLUCIONISMO: suas origens e efeitos na cultura
contemporânea
AS MUTUAL denials CREATIONISM AND EVOLUTIONISM: its origins
and effects on contemporary culture
LAS MUTUAS NEGACIONES DEL CREACIONISMO Y EVOLUCIONISMO:
sus orígenes y efectos en la cultura contemporánea
JoséClaudio Matos
Luiz Eduardo Oliveira
JoséEduardo Franco

EDITORIAL

EM TODAS AS NAÇÕES, antigas ou modernas, centrais ou periféri-


cas, metropolitanas ou pós-coloniais, a cultura e a história conheceram
numerosos discursos e práticas que antagonizaram “Outros”. Apesar dos
diferentes veículos e impactos, todos esses discursos que designamos por
“anti” recorreram a diversas estratégias para apresentar a mundividência,
o estilo de vida, as crenças ou a ideologia de outros como uma ameaça
aos valores positivos de cada grupo ou sociedade. Na medida em que res-
pondem a debates ideológicos em curso ou a conflitos e tensões existentes
entre grupos/classes/etnias/gêneros e religiões, estes discursos se colocam
como “novos”. No entanto, eles são raramente originais e na maioria dos
casos importam argumentos de outras situações de confronto passadas.
Neste projeto, os discursos “anti” devem ser estudados através de sua his-
tória, sobretudo mediante uma história que atenda à sua “longa duração” e
aos seus aspectos genealógicos. Assim, este projeto, que é necessariamente
interdisciplinar, deve ter em conta os “arquivos”, por vezes cronologica-
mente profundos, a que os discursos “anti” recorrem.
Intentamos localizar de forma precisa esses discursos e as práticas em
que se fundam na sua espessura temporal através de um conjunto de mono-
grafias críticas de cada movimento “anti” identificado, que serão as entradas
do dicionário enciclopédico. Além do seu contributo empírico, o dicioná-
rio permitirá uma reflexão mais profunda sobre os fundamentos teóricos
das produções discursivas “anti”. O estudo metódico de uma quantidade
significativa de discursos “anti” permitirá uma reflexão profunda sobre os
limites da modernidade. A opção metodológica pela longa duração revela-
-se indispensável porque permite testar as rupturas entre modernidade, pré
e pós-modernidade.
O período pré-moderno não ignorou a produção de discursos “anti”,
os quais podem ser compreendidos no quadro da chamada “civilização de

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combate”: uma sociedade estruturada por uma ortodo- Santana Cruz e Alfrancio Ferreira Dias, reflete sobre
xia com modelos religiosos e sociais rígidos afirmados o Antifeminismo como objeto analítico na cultura
em antagonismo com outras sociedades. Todavia, esses brasileira, na tentativa de contribuir para minimi-
tipos de discurso permanecem nas sociedades abertas zar a lacuna sobre o tema existente na produção do
e estão genealogicamente ligados ao seu passado. A conhecimento. O Antifracesismo no Brasil, de Maria
modernidade, com suas oposições ideológicas e suas Regina Barcelos Bettiol, estuda as origens do Anti-
profundas divisões religiosas e políticas, foi fértil em francesismo em nosso país, defrontando-nos com um
semelhantes movimentos. Todavia, estão por serem discurso que paradoxalmente sempre coexistiu com a
estudados os seus laços com construções discursivas apologia ao francesismo em suas expressões sociais,
pós-modernas centradas num “Outro hostil” que cons- culturais, políticas e literárias. Antilusitanismo, de
tituía uma ameaça real ou imaginária a valores comu- Carolina P. Fedatto, contrapõe o aparecimento das
nitários, construções essas que foram essenciais para a palavras lusismo e lusitanismo à formação de con-
criação de identidades mais amplas. Da mesma forma, ceitos, ideias e pontos de vista sobre isso que seria
a atual “morte das ideologias” não erradicou práticas e propriamente luso na história das relações entre as lín-
discursos que demonizam ideias/grupos/comunidades guas. Antilusofoinismo, de Jair de Almeida Junior,
dentro da sociedade. Ademais, o presente desenvolveu trata do Antilusofonismo como uma resistência à Lín-
novos discursos “anti” sob forma de teorias da conspi- gua Portuguesa, sendo um fenômeno tão antigo quanto
ração que alegam denunciar a atividade de um “Outro” a própria colonização realizada por Portugal.
maligno, de riscos coletivos impessoais – antiterro- Em Antimaniqueísmo, Jean Pierre Chau-
rismo, antitabagismo etc. – e de “questões fraturantes”. vin explica que, ao se posicionar de modo Antima-
As redes sociais da Internet são uma testemunha gri- niqueísta, o homem passou a contrariar um modo
tante disso. Em todos esses casos, existe uma percepção estreito de sentir, pensar e condenar: atitudes que
em “negativo” de um Outro que deriva de uma com- caracterizam as pessoas adeptas de dogmas, ideo-
preensão positiva do “Nós”. logias e demais sistemas prévios de regramento. Em
Neste primeiro número da Revista de Estudos de O Antimedievalismo no Brasil, Thiago Borges de
Cultura, apresentamos ao público nove artigos escritos Aguiar busca construir uma análise sobre a ocor-
por especialistas de várias instituições do país sobre rência do antimedievalismo no Brasil, concebendo-o
o tema das Culturas em Negativo. O primeiro deles, como um conjunto de narrativas nas quais a Idade
Anticapitalismo, escrito por Émerson Neves da Silva, Média é vista como uma realidade histórica de um
é um estudo sobre os novos movimentos sociais que período de trevas, violência, ignorância e domínio da
atualmente são a expressão mais incisiva do anticapi- Igreja Católica. Em As mútuas negações do criacio-
talismo, pois congregam sujeitos históricos baseados nismo e do evolucionismo: suas origens e efeitos na
na democracia participativa e na desconstrução da cultura contemporânea, José Claudio Matos inves-
sociedade capitalista. O segundo, O Anticristianismo tiga a mútua oposição entre o antievolucionismo e o
no Brasil, de autoria de Rogério Luiz de Souza e Edi- anticriacionismo, na medida em que estes se consti-
son Lucas Fabrício, analisa as manifestações e práti- tuem como cosmologias, e explora as possibilidades
cas de anticristianismo na História do Brasil, do século de um diálogo ou interação profícua entre tais visões,
XVIII ao século XX. Antifeminismo, de Maria Helena amenizando o aspecto negativo de ambas atitudes.

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Luiz Eduardo Oliveira
JoséEduardo Franco

EDITORIAL

IN ALL NATIONS, ancient or modern, central or peripheral, metropolitan


or postcolonial, culture and history met numerous discussions and prac-
tices which antagonized “Others”. Despite different vehicles and impacts, all
these speeches called as “Anti” resorted to various strategies to present the
worldview, the lifestyle, beliefs or ideology which belonged to others as a
threat to positive values of each group or society. As they respond to current
ideological debates or to existing conflicts and tensions between groups /
classes / races / genders and religions, these speeches are placed as “new”.
However, they are almost never original and in most cases, take argu-
ments from other situations of past confrontation. In this project, the “anti”
speeches should be studied throughout its history, particularly through a
history that meets their “long duration” and genealogical aspects. Thus, this
project, which is necessarily interdisciplinary, must take into account the
“files”, sometimes chronologically deep, to which the “anti” speeches resort.
We intended to precisely locate these discourses and practices which
are based on temporal thickness through a series of critical monographs of
each identified “anti” movement, which will be the entries of the encyclo-
pedic dictionary. In addition to its empirical contribution, the dictionary
will allow a deeper reflection on the theoretical foundations of the discur-
sive “anti” productions. The methodical study of a significant quantity of
“anti” speeches will allow further reflection on the limits of modernity. The
methodological option for long-term is seen as necessary because it will be
possible to test the breaks between modernity, pre and postmodernity.
The pre-modern period did not ignore the production of “anti” dis-
courses, which can be understood in the context of the “civilization of com-
bat”: a society which is structured by an orthodoxy with strict religious and
social models affirmed in antagonism with other societies. However, these
types of speech remain in open societies and are genealogically linked to

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its past. Modernity, with its ideological opposition and in Brazilian culture as an attempt to reduce the gap
deep religious and political divisions, was fertile in sim- on the existing theme in knowledge production.
ilar movements. However, they will be studied for their The Antifrenchism in Brazil, by Maria Regina
ties with postmodern discursive constructions centered Barcelos Bettiol, studies the origins of Antifrenchism in
on a “hostile Other”, who was a real or imagined threat our country, confronting us with a speech that has always
to community values, such constructions which were paradoxically coexisted with the advocacy of Frenchism
essential to the creation of broader identities. Similarly, in its social, cultural, political and literary expressions.
the current “death of ideologies” did not eradicate prac- Antilusitanism, by Carolina P. Fedatto, opposes the
tices and discourses which demonize ideas / groups / appearance of the words lusism and lusitanism to the
communities within society. Moreover, the present formation of concepts, ideas and views on what would
time developed new “anti” discourses in the form of be properly luso in the history of relations between lan-
conspiracy theories that claim to report the activity of guages. Antilusophonism, by Jair de Almeida Junior,
an evil “Other”, of impersonal collective risks - anti- considers Antilusophonism as a resistance to the Portu-
terrorism, anti-smoking etc. - and “fracturing issues”. guese Language, and this phenomenon is considered as
Online social networking is a stark witness. In all these old as the colonization itself performed by Portugal.
cases, there is a perception in “negative” of an Other In Antimanichaeism, Jean Pierre Chauvin
who comes from a positive understanding of the “We”. explains that, by assuming an anti-manichaeist posi-
In this first issue of the Journal of Cultural tion, men began to contradict a narrow way of feeling,
Studies, nine articles written by experts from var- thinking and condemning: attitudes which characterize
ious institutions in the country on the subject of people who support dogmas, ideologies and other pre-
Cultures in negative are presented to the public. vious systems of ruling. In Antimedievalism in Brazil,
The first one, Anti-capitalism, written by Emerson Thiago Borges de Aguiar seeks to build an analysis on
Neves da Silva, is a study on the new social move- the occurrence of antimedievalism in Brazil, concei-
ments which are currently the most incisive expres- ving it as a phenomenon that is constituted as a set of
sion of anti-capitalism, because they congregate narratives in which the Middle Ages are seen as a histo-
historical subjects based on participative democracy rical reality of a period of darkness, violence, ignorance
and the deconstruction of the capitalist society. The and domain of the Catholic Church. In Mutual denials
second, the anti-Christianity in Brazil, written by of creationism and evolutionism: its origins and
Rogério Luiz de Souza and Edison Lucas Fabrício, effects on contemporary culture, José Claudio Matos
analyzes the anti-Christian manifestations and prac- investigates the mutual opposition between antievolu-
tices in the history of Brazil, from the eighteenth to tionism and anticriationism, as they are constituted as
the twentieth century. Anti-feminism, by Maria cosmologies, and explores the possibilities of a dialogue
Helena Santana Cruz and Alfrancio Ferreira Dias, or fruitful interaction between such visions, easing the
reflects on the anti-feminism as an analytical object negative aspect of both attitudes.

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Luiz Eduardo Oliveira
JoséEduardo Franco

EDITORIAL

EN TODAS LAS NACIONES, antiguas o modernas, centrales o periféricas,


metropolitanas o post-coloniales, la cultura y la historia conocieron nume-
rosos discursos y prácticas que antagonizaron “Otros”. A pesar de diferentes
vehículos e impactos, todos estos discursos que llamamos “Anti” recurrie-
ron a diversas estrategias para presentar la visión del mundo, el estilo de
vida, las creencias o la ideología de otros como una amenaza a los valores
positivos de cada grupo o sociedad. En la medida en que responden a deba-
tes ideológicos en curso o a los conflictos y tensiones entre grupos /clases/
razas/géneros y religiones, estos discursos se presentam como “nuevos”.
Sin embargo, rara vez son originales y en la mayoría de los casos importan
argumentos de otras situaciones de confrontación pasadas.
En este proyecto, los discursos “anti” deben ser estudiados a través de
su historia, especialmente mediante una historia que atienda a su “larga
duración” y a sus aspectos genealógicos. Por lo tanto, este proyecto, que
es necesariamente interdisciplinario, debe tener en cuenta los “archivos”, a
veces de forma cronológica profundos, a que los discursos “anti” recurren.
Intentamos localizar precisamente estos discursos y prácticas que se
basan en su espesor temporal a través de un conjunto de monografías críti-
cas de cada movimiento “anti” identificado, que serán las entradas del dic-
cionario enciclopédico. Además de su contribución empírica, el diccionario
permitirá una reflexión más profunda sobre los fundamentos teóricos de la
producciones discursivas “anti”. El estudio metódico de una cantidad sig-
nificativa de discursos “anti” permitirá una profunda reflexión sobre los
límites de la modernidad. La opción metodológica por la larga duración
resulta ser indispensable, ya que permite poner a prueba las rupturas entre
modernidad, pre y post-modernidad.
El período pre-moderno no ignoró la producción de discursos “anti”,
que pueden ser entendidos en el contexto de la denominada “civilización de

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combate”: una sociedad estructurada por una ortodo- de Brasil, desde el siglo XVIII hasta el siglo XX. Antife-
xia con modelos religiosos y sociales rígidos estableci- minismo, de Maria Helena Santana Cruz y Alfrancio
dos en antagonismo con otras sociedades. Sin embargo, Ferreira Dias, reflexiona sobre el Antifeminismo como
eses tipos de discursos se mantienen en las sociedades objeto de análisis en la cultura brasileña en un intento
abiertas y están genealógicamente relacionados con su de ayudar a reducir la brecha en el tema existente en
pasado. La modernidad, con sus oposiciones ideológi- la producción de conocimiento. El Antifracesismo en
cas y sus profundas divisiones religiosas y políticas, fue Brasil, de Maria Regina Barcelos Bettiol, investiga los
fértil en movimientos similares. Sin embargo, se están orígenes de Antifrancesismo en nuestro país, los que nos
estudiando sus relaciones con construcciones discur- estamos enfrentando con un discurso que, paradójica-
sivas post-moderna centradas en un “Otro hostil”, que mente, siempre coexistió con la apologia al francesismo
era una amenaza real o imaginaria a valores comunita- en sus expresiones sociales, culturales, políticas y litera-
rios, dichas construcciones que fueron esenciales para rias. Antilusitanismo, de Carolina P. Fedatto, se opone
la creación de identidades más amplias. Del mismo a la aparición de las palabras lusismo y lusitanismo a la
modo, la “muerte de las ideologías” no ha erradicado formación de conceptos, ideas y puntos de vista sobre lo
las prácticas y discursos que demonizan ideas/grupos/ que sería propiamente luso en la historia de las relaciones
comunidades dentro de la sociedad. Por otra parte, el entre las lenguas. Antilusofonismo, de Jair de Almeida
presente ha desarrollado nuevos discursos “anti” en Junior, trata del Antilusofonismo como una resistencia
forma de teorías conspirativas que pretenden denun- a la Lengua Portuguesa, al ser un fenómeno tan antiguo
ciar la actividad de un “otro” maligno, de riesgos colec- como la colonización realizada por Portugal. En Anti-
tivos impersonales – antiterrorismo, antitabaquismo maniqueísmo, Jean Pierre Chauvin explica que, al colo-
etc. – y de “cuestiones de ruptura”. carse de manera Antimaniqueista, el hombre comenzó a
Las redes sociales de la Internet son un testigo contrariar un modo particular de sentir, pensar y con-
patente. En todos esos casos, hay una percepción en denar: actitudes que caracterizan a las personas adep-
“negativo” de un Otro que viene de una comprensión tas de dogmas, ideologías y otros sistemas anteriores de
positiva de “Nosotros”. reglamento. En El Antimedievalismo en Brasil, Thiago
En este primer número de la Revista de Estudos de Borges de Aguiar busca construir un análisis de la ocur-
Cultura, presentamos al público nueve artículos escri- rencia del antimedievalismo en Brasil, concibiéndolo
tos por expertos de diversas instituciones del país sobre como un conjunto de relatos en los que la Edad Media
el tema de las Culturas en Negativo. El primero, Anti- es vista como una realidad histórica de un período de
capitalismo, escrito por Emerson Neves da Silva, es oscuridad, violencia, ignorancia y dominio de la Iglesia
un estudio sobre los nuevos movimientos sociales que Católica. En Las negaciones mutuas del creacionismo
se encuentran actualmente en la expresión más inci- y del evolucionismo: sus orígenes y efectos en la cul-
siva del anticapitalismo, pues congregan sujetos his- tura contemporánea, José Claudio Matos investiga la
tóricos basados en la democracia participativa y en la oposición mutua entre el antievolucionismo y el anti-
deconstrucción de la sociedad capitalista. El segundo, criacionismo, en la medida que se constituyen como
el Anticristianismo en Brasil, de autoria de Rogério cosmologías, y explora las posibilidades de un diálogo
Luiz de Souza y Edison Fabricio Lucas, analiza las o interacción fructífera entre tales visiones, suavizando
manifestaciones y prácticas anticristianas en la Historia el aspecto negativo de ambas actitudes.

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Émerson Neves da Silva

ANTICAPITALISMO

RESUMO:
O ideário anticapitalista é constituído em oposição ao capitalismo. Os valores,
ideias e práticas sociais identificadas com o anticapitalismo na América Latina são
produzidos a partir da interface com a modernização do capitalismo, sobretudo
com o advento da globalização dos mercados consumidores e produtores, o que
estreitou os laços de exploração econômica e social no hemisfério sul. Nesse con-
texto, proliferaram movimentos sociais que demandaram ampliação de direitos
sociais, econômicos e políticos. No conjunto desses atores, destaca-se a organização
indígena estabelecida ao longo das últimas quatro décadas. Os novos movimen-
tos sociais são a expressão do anticapitalismo, pois congregam sujeitos históricos
baseados na democracia participativa e na desconstrução da sociedade capitalista.
Palavras-chave: anticapitalismo; novos movimentos sociais; movimentos sociais.

* Doutor em História pela


Universidade do Vale do Rio
dos Sinos UNISINOS.
NIPEAS. E-mail: emerson.
silva@uffs.edu.br

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ANTI-CAPITALISM ANTICAPITALISMO

ABSTRACT: RESUMEN:
The anti-capitalist ideology is understood in opposition to El ideario anticapitalista es formado en oposición al capita-
capitalism. The values, ideas and social practices identified lismo. Los valores, ideas y prácticas sociales identificadas con
with anti-capitalism in Latin America are produced from el anticapitalismo en América Latina se producen desde la
the interface with modernization of capitalism, especially interfaz con la modernización del capitalismo, especialmente
with the advent of globalization of consumer and produ- con el advenimiento de la globalización de mercados consu-
cer markets, which narrowed the bonds of economic and midores y productores, que consolidó los lazos de la explota-
social exploitation in the Southern hemisphere. In this con- ción económica y social en el hemisferio sur. En ese contexto,
text, social movements that demanded expansion of social, han proliferado los movimientos sociales que exigían la
economic and political rights proliferated. Among them, expansión de los derechos sociales, económicos y políticos.
the indigenous organization established over the past four En el conjunto de estos actores, se destaca la organización
decades can be highlighted. The new social movements are indígena establecida en las últimas cuatro décadas. Los nue-
the expression of anti-capitalism, and they gather historical vos movimientos sociales son la expresión del anticapitalismo
subjects, once it is based on participatory democracy and the porque reúnen sujetos históricos basados en la democracia
deconstruction of the capitalist society. participativa y en la deconstrucción de la sociedad capitalista.
Keywords: anti-capitalism; new social movements; social Palabras clave: anticapitalismo; nuevos movimientos
movements. sociales; movimientos sociales.

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ANTICAPITALISMO | 15

O FENÔMENO do anticapitalismo está relacionado à ideia Nesse cenário, são gestados movimentos e o
de oposição ao capitalismo. A crítica ao modelo de desen- ideário anticapitalista. Para Fernando Calderón (1995),
volvimento econômico e societário baseado no capital, no em virtude da integração financeira e cultural da
século XX, é configurada a partir do processo de moderni-
América Latina no mercado mundial, do processo de
zação capitalista, sobretudo pela integração dos mercados
desindustrialização e reconversão industrial ao qual a
consumidores e produtores. Tendo como escala de análise
a América Latina, pode-se analisar o ideário anticapitalista região foi submetida, o Estado latinoamericano teve a
relacionando-o ao estudo da modernidade que se manifestou capacidade de reprodução limitada. Assim, as deman-
de forma singular na região. Nesse aspecto, Valdés (2012) res- das relativas aos movimentos sociais clássicos não
salta que a intelectualidade latino-americana vem tratando foram contempladas como, por exemplo, a questão da
essa questão não como modernidade, mas como moderniza- terra, à qual o Estado tem-se mostrado “incapaz” de
ção, em virtude da subordinação da sociedade e da economia
imprimir uma reforma agrária ou uma demarcação das
local às grandes potências capitalistas do hemisfério norte.
terras indígenas conforme as reivindicações dos atores
Com esse espírito Mignolo (1997) opõe a história moderna
europeia, e, por conseguinte o ideal da modernidade, à histó-
coletivos. Assim, os movimentos sociais clássicos ten-
ria contramoderna colonial. A modernização capitalista sig- dem a trocar sua estrutura organizativa e orientação,
nifica um ato de manutenção das relações de colonialidade originando atores coletivos autogestionários, o qual
presentes na América Latina. De outra parte, o pensamento rompe com a verticalidade diretiva comum aos movi-
moderno é perpassado pela relação de dominação epistemo- mentos de inspiração marxista ortodoxa. Pode-se des-
lógica vinculada ao pensamento eurocêntrico. tacar que o eixo central que motiva a organização dos
Para outros autores, a análise do capitalismo novos movimentos sociais latino-americanos está em
contemporâneo passa pelo exame da globalização torno das demandas da população indígena, do acesso
ocorrida a partir da segunda metade do século XX. a terra, da pobreza, do desemprego e da luta por direi-
Conforme Ianni (1996), a globalização ocorrida deter- tos socioeconômicos.
mina uma nova fase de expansão capitalista, não ape- Assim, como expoentes do anticapitalismo des-
nas enquanto modo de produção, mas, sobretudo como pontam, na América Latina, movimentos indígenas, os
processo civilizatório, envolvendo “nações e nacionali- quais ressaltam como demanda original a autonomia
dades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e política e administrativa dos povos autóctones. Rodrigo
classes sociais, economias e sociedades, culturas civili- Montoya Rojas (1998) destaca que os movimentos
zações”. Em síntese, essa fase do capitalismo representa indígenas latinoamericanos possuem demandas, tais
o surgimento da sociedade global. Conforme Ianni, a como defesa da sua cultura, de sua língua e o reconhe-
globalização possui dois dilemas: a formação do pensa- cimento de seu território, as quais não estão incluídas
mento político inspirado no neoliberalismo e no neos- nas reivindicações de organizações e partidos políti-
socialismo. Considera que toda forma de pensamento cos de esquerda ou de direita. Dessa forma, na busca
pode estar relacionada a raízes históricas no passado pela representação política e no enfrentamento com o
próximo ou remoto. Assim, a expressão anticapitalista Estado, as comunidades indígenas estabelecem ações
dialoga com a transformação ocorrida no capitalismo coletivas, querem redimensionar o sistema político
ao longo do último século, produzindo um ideário e para solucionar demandas sociais concretas. Mesmo
organização sociopolítica baseada na resistência aos sem a devida visibilidade nos meios de comunicação,
efeitos desse processo. De outra parte, o liberalismo há inúmeros conflitos no território latinoamericano. O
no formato clássico transitou para o neoliberalismo a espaço conquistado pelo movimento indígena mexi-
partir da nova divisão transnacional do trabalho e do cano Zapatista, aparentemente quase que exclusivo,
sistema produtivo, do incremento da integração dos longe de demonstrar a existência de um caso isolado,
mercados, da revolução dos meios de comunicação, que consiste na ação coletiva de um pequeno grupo
do surgimento das redes de informática, da expansão de indígenas mexicanos, demonstra a não informação,
das corporações transnacionais e da globalização do sobretudo por parte das grandes empresas de comu-
capitalismo.

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16 | Émerson Neves da Silva

nicação, das demais ações desenvolvidas nas últimas O anticapitalismo é a expressão do ideário e ações
décadas na região. efetivas que vão de encontro aos valores, ideias, nor-
Dessa forma, nas últimas décadas, a mobilização mas e organização econômica da sociedade baseada
indígena se opôs à expansão do capital sobre as suas pelo capitalismo. Está impregnado da cultura huma-
comunidades, à prática política autoritária do Estado nista, defendendo um desenvolvimento orientado para
e das elites latinoamericanas como, por exemplo, as a qualificação das condições de vida da população em
revoltas indígenas no Equador (1990-1993) e a Marcha detrimento do tratamento fundamentalista do capital.
pela Dignidade e pelo Território na Bolívia (1991). Por
outro lado, as organizações indígenas da Guatemala,
Nicarágua, Peru, Chile, Colômbia e Brasil também vêm BIBLIOGRAFIA
conquistando, gradativamente, suas reivindicações.
Cabe destacar o estabelecimento do Paradigma ADAMOVSKY, Ezequiel. Anticapitalismo para princi-
dos Novos Movimentos Sociais enquanto uma piantes. Buenos Aires/AR: Longseller, 2003.
expressão social anticapitalista. É constituído por
diversos movimentos sociais; em especial, no primeiro IANNI, Octavio. A era do globalismo. 2. ed. Rio de
momento, com maior visibilidade os da Europa, que Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
se centravam em questões de gênero e ecologia e
defesa de direitos sociais. A sistematização dessa rica CALDERÓN, Fernando. Movimientos sociales y polí-
experiência social “forma” o novo paradigma, que tem tica: la década de los ochenta emlatinoamérica. México:
como marca indenitária mais relevante a ruptura com Siglo Veintiuno, 1995.
os movimentos tradicionais. Portanto, o exame das
transformações ocorridas no capitalismo nas déca- HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terro-
das de 1960 e 1970, das formas de intervenção social rismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
corroborou com o estabelecimento do Paradigma dos
Novos Movimentos Sociais. HOUTZAGER, Peter. OS últimos cidadãos: conflitos e
No entanto, esse novo paradigma não é modernização no Brasil rural (1964-1995). São Paulo:
homogêneo, não pode ser considerado como um Editora Globo, 2004.
referencial teórico aplicável de forma indiscriminada
a qualquer experiência de movimento social. Como GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos
é uma expressão analítica de um fenômeno social, de Sociais: Paradigmas clássicos e contemporâneos. 2.ed.
uma resposta social determinada originalmente, o São Paulo: Edições Loyola, 1997.
exame das inovações ocorridas na sociedade europeia,
da sua universalização e aplicação deve ser relativizado. MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização, dependên-
Destacamos que a teoria dos Novos Movimentos cia e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boi-
Sociais surge, inicialmente, na Europa, como forma de tempo, 2011.
análise dos movimentos feministas e de preservação
do meio ambiente. Na realidade, a inovação desses MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimen-
movimentos baseava-se na busca de outra forma de tos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis/RJ:
agir no meio social europeu, o qual fora “abalado” pela Vozes, 2001.
pós-industrialização, rejeitando a práxis tradicional
“marxista” em voga naquele período. Essa discussão MIGNOLO, Walter. La razón pós-colonial: herenciasco-
toma corpo na América Latina, na década de 1980, loniales y teorias poscoloniales. In TORO, Afonso. Pos-
quando se proliferaram organizações e forças sociais de modernidad y poscoloniedad: breves reflexiones sobre
base democrática e anti-sistémica. América Latina. Vervuert: Iberoamericana, 1997.

REVISTA DE ESTUDOS DE CULTURA | Nº 01 | Jan.Abr./2015


ANTICAPITALISMO | 17

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colectiva en los conflictos agrários. Buenos Aires: Cla-
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TTI, Paulo; PERICÁS, Luiz Bernardo. (Orgs.). América
Latina: história, ideias e revolução. 2. ed. São Paulo:
Xamã, 1998.

SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos


Sociais. São Paulo: Loyola, 1996.

O AUTOR
Émerson Neves da Silva é professor Adjunto da Universidade
Federal da Fronteira Sul UFFS, campus Erechim. Doutor em
História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISI-
NOS. Autor dos livros Formação do ideário do MST, publicado
pela Editora Unisinos; O Mundo do Trabalho em Perspectiva:
Uma abordagem sócio-teológica e Palavra e Vida: Os Novos
Desafios do Mundo do Trabalho, pela Editora Oikos. É Coor-
denador da Licenciatura Interdisciplinar em Educação do
Campo e é Coordenador Adjunto do Núcleo Interdisciplinar
de Pesquisa e Estudos Agrários, Urbanos e Sociais - NIPEAS.
E-mail: emerson.silva@uffs.edu.br

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Rogério Luiz de Souza
Edison Lucas Fabrício

O ANTICRISTIANISMO NO BRASIL

RESUMO:
O objetivo deste trabalho é analisar as manifestações e práticas de anticristianismo
na História do Brasil. O ponto de partida da reflexão é a observação do impacto e da
influência da religião cristã na história do país. Sendo o cristianismo católico a religião
oficial por quase quatro séculos, o anticristianismo se manifestou de diversas formas e
em diversas circunstâncias como “a arte do fraco” (expressão de Michel de Certeau). O
cristianismo, como religião hegemônica, encontrou resistência e hostilidade em diver-
sos grupos sociais do Brasil colonial, desde os povos nativos até os negros que vinham
escravizados da África e os cristãos-novos forçados à conversão e à imigração ao Brasil.
Como prática não arquitetada e difusa, o anticristianismo assumiu uma forma silen-
ciosa e subterrânea em consumidores da literatura ilustrada no século XVIII, fossem
eles conspiradores políticos que queriam o fim da monarquia nas diversas conjurações
ou mesmo membros da elite política e econômica que estudavam em Coimbra. Assim,
o anticristianismo atravessou o século XIX e chegou ao XX como um movimento de
“descristianização interior”, em grande medida alimentado pelas forças secularizantes
oriundas de filosofias como o positivismo, o anarquismo, socialismo e modernismo.
Movimento fugidio, o anticristianismo só poderá ser compreendido em conjunto com
o processo de secularização e laicização em curso.
Palavras-chave: anticristianismo; resistência cultural; secularização; laicidade.

* É doutor em História Cultural pela


Universidade Federal do Paraná e
pós-doutorado em Ciências Sociais
pela École des Hautes Études en
Sciences Sociales, Paris, França.
E-mail: rogerklaumann@gmail.com
** Mestre em História Cultural
pela Universidade Federal
de Santa Catarina. E-mail:
edisonlucasf@hotmail.com

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20 | Rogério Luiz de Souza; Edison Lucas Fabrício

ANTI-CHRISTIANITY IN BRAZIL EL ANTICRISTIANISMO EN BRASIL

ABSTRACT: RESUMEN:
The aim of this study is to analyze the anti-Christian El objetivo de este estudio es analizar las manifestaciones y
demonstrations and practices in the history of Brazil. The prácticas anticristianas en la Historia de Brasil. El punto de
starting point of reflection is the observation of the impact partida para la reflexión es la observación del impacto y de
and influence of Christianity in history. Once Catholic Chris- la influencia de la religión cristiana en la historia del país.
tianity has been the official religion for nearly four centuries, Siendo el cristianismo católico la religión oficial por casi
anti-Christianity has been manifested in various forms and cuatro siglos, el anticristianismo se manifestó en varias for-
under various circumstances as “the art of the weak” (Michel mas y en diversas circunstancias como “el arte de los débiles”
de Certeau’s expression). Christianity, as a hegemonic reli- (expresión de Michel de Certeau). El cristianismo, como una
gion, was faced with resistance and hostility by several social religión hegemónica, encontró resistencia y hostilidad en
groups of colonial Brazil, from native peoples to blacks, who varios grupos sociales del Brasil colonial, desde los indíge-
had been enslaved in Africa, and the New Christians forced nas hasta los negros que venían esclavizados de África y los
to conversion and immigration to Brazil. As a not planned nuevos cristianos obligados a la conversión y la inmigración
and diffuse practice, the anti-Christianity took a silent and a Brasil. Como práctica no planificada y difusa, el anticris-
underground form among consumers of illustrated litera- tianismo asumió una forma silenciosa y subterránea en con-
ture in the eighteenth century, no matter if they were politi- sumidores de la literatura ilustrada en el siglo XVIII, ya sean
cal conspirators who wanted the end of the monarchy in the ellos conspiradores políticos que querían el fin de la monar-
various castes or members of the political and economic elite quía en las diferentes conjuraciones o incluso miembros de
who studied at Coimbra. Thus, the anti-Christianity crossed la élite política y económica estudiando en Coímbra. Así, el
the nineteenth century and reached the twentieth century as a anticristianismo cruzó el siglo XIX y alcanzó el XX como
movement of “inner De-Christianization” largely empowered un movimiento de “descristianización interior”, en gran
by secularizing forces which have arisen from philosophies parte impulsado por las fuerzas secularizantes originarias de
such as positivism, anarchism, socialism and modernism. filosofías como el positivismo, el anarquismo, socialismo y
As a fleeting movement, the anti-Christianity can only be modernismo. Movimiento huidizo, el anticristianismo sólo
understood in conjunction with the process of secularization puede entenderse en conjunto con el proceso de seculariza-
and laicization underway. ción y laicización en marcha.
Keywords: anti-christianity; cultural resistance; seculariza- Palabras claves: anticristianismo; resistencia cultural; secu-
tion; laicization. larización; laicidad.

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O ANTICRISTIANISMO NO BRASIL | 21

ANTICRISTIANISMO COMO RESISTÊNCIA Cristo para a recomposição da Cristandade. Anima-


CULTURAL DE ÍNDIOS, CRISTÃOS-NOVOS E dos pelo espírito do Concílio de Trento, os jesuítas
ESCRAVOS NEGROS viam nos gentios ou negros da terra possíveis conver-
tidos a engrossar as fileiras católicas. Todavia, os pro-
INICIALMENTE, é importante destacar que o cristia- cessos de conversão e inculcação do cristianismo não
nismo, desde o período colonial, foi a religião com posi- foram sempre pacíficos e bem sucedidos. Os indíge-
ção hegemônica na sociedade brasileira. O cristianismo nas resistiram em nome de sua cosmologia religiosa
foi peça importante das engrenagens de hierarquização e até assimilaram elementos ibéricos aos seus cultos,
e estruturação do mundo social. Os Reinos Ibéricos profanando-os ou atribuindo-lhes outro sentido, em
firmaram diversos acordos com a Igreja Católica que outras palavras, mestiçando-os.
instituíram o regime de Padroado Régio. No Brasil Os relatos dos primeiros cronistas que desembar-
colonial e imperial, o regime de padroado concedia caram no trópico davam conta da existência de um fer-
ao rei de Portugal, e posteriormente ao imperador do vor religioso entre os indígenas. De aldeia em aldeia
Brasil, o direito de nomear sacerdotes, criar dioceses, peregrinavam “profetas indígenas” anunciando um
entre outros. A relação estreita entre Igreja e Estado nos novo tempo, uma espécie de idade de ouro, principal-
quase quatrocentos anos da história colonial e imperial mente entre as diversas nações dos tupi-guarani que
também fez com que a religião cristã católica se cons- ocupavam grande parte da costa litorânea. Segundo
tituísse como a religião oficial do Estado. Desta forma, Ronaldo Vainfas, “a maioria dos etnólogos dedica-
em um mundo marcadamente cristão e católico, o anti- dos ao estudo dos tupi-guarani tem relacionado esse
cristianismo pode ser encarado, em grande medida, horizonte utópico da cultura nativa com a busca da
como uma atitude ou uma prática política de resistên- Terra sem Mal”. (1995:41). Valendo-se de trabalhos
cia estratégica ou mesmo difusa e não deliberada a tal produzidos ao longo do século XX, como de Maria
hegemonia. Diante de um cristianismo católico estru- Isaura Pereira de Queiróz, Kurt Nimuendaju, Alfred
turante da sociedade brasileira, que tinha como carac- Métraux, e de cronistas do século XVI, como Hans
terística a homogeneização cultural e religiosa a partir Staden, André Thevet, Manuel da Nóbrega e outros,
do empreendimento colonial, o anticristianismo tor- Vainfas assinala que esse movimento indígena tinha
nou-se uma forma de resistência. Portanto, a orienta- as características de profetismo e messianismo. A pre-
ção que guiará a noção de anticristianismo neste texto gação dos profetas índios teria provocado várias ondas
será pautada nas ideias de estratégias, táticas e astúcias migratórias entre os tupi-guarani na busca da Terra
elaboradas por Michel de Certeau, para quem a tática “é sem Mal, lugar caracterizado como um paraíso, como
a arte do fraco” (CERTEAU, 2008, p. 101). um local “onde não se morria”.
A fim de apreender os aspectos polimórficos e Carlos Rodrigues Brandão, ao retomar os escritos
polissêmicos do anticristianismo na história do Bra- do jesuíta Pe. Montoya, caracteriza a Terra Sem Mal
sil recorrer-se-á, para fins didáticos, ao recurso cro- como “o lugar do solo intacto, o espaço ainda não edi-
nológico. Desta forma, as primeiras manifestações ficado, não transformado pela mão do homem de terra
de resistência anticristã são encontradas nas práticas da natureza em local de cultura”, e avançando na lei-
culturais indígenas da sociedade colonial. Como era tura de Hélène Clastres, assegura que a pregação dos
esperado, o cristianismo católico, que veio à bordo do profetas itinerantes, ou caraíbas, anunciava um “lugar
projeto colonial ibérico, encontrou uma série de resis- da absoluta abastança num tempo de realização plena
tências entres as sociedades indígenas secularmente do desejo de um povo de caçadores: ‘o milho cresce
instaladas e estruturadas nas áreas coloniais. Vindos sozinho, as flechas alcançam espontaneamente a caça...
de uma Europa dividida pela ruptura da Reforma, Opulência e lazeres infinitos. Mas nenhum trabalho,
os religiosos, principalmente inacianos, encaravam a portanto, danças e bebedeiras podem ser as ocupações
colônia como o espaço de combate dos soldados de exclusivas’” (BRANDÃO, 1990, p. 66, 67).

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22 | Rogério Luiz de Souza; Edison Lucas Fabrício

Todavia, muitas dúvidas têm surgido na literatura mias reforçavam o poder dos pajés e a hostilidade aos
sobre o tema, uma delas diz respeito ao caráter do mito sacerdotes católicos. Ronaldo Vainfas, em Heresias dos
da Terra sem Mal, se ele permaneceu intocado ao longo Índios, afirma que “os curandeiros indígenas diziam,
dos séculos ou se ele já é permeado pela cultura ibé- então, que o ‘batismo matava’, e não deixavam de ter
rica. Por outro lado, se a pregação indígena da Terra alguma razão ao dizê-lo”. O impacto da colonização
sem Mal é algo intrínseco e anterior à expansão colo- reforçou a busca da Terra sem Mal, os massacres, as
nial ou se guarda relação com a conquista. Apesar de doenças, a escravidão e o cativeiro funcionaram como
grande parte dos etnólogos e historiadores atribuir ao elementos impulsionadores nos discursos dos profe-
profetismo tupi uma datação anterior à conquista ibé- tas índios para a busca da morada dos ancestrais. “A
rica, é inegável que os discursos ou as profecias tupi própria busca da Terra sem Mal, mensagem central na
irrompem no século XVI como formas de resistência pregação dos profetas índios, absorveria, com o passar
anticolonialista e anticristã. É Alfred Métraux, segundo do tempo, significados fracamente anticolonialistas e
Vainfas (1995, p. 45), que assinala “a mensagem anti- anticristãos”. (VAINFAS, 1995, p. 46)
cristã de diversas exortações proféticas”. (1995: 43) É neste contexto que se localizam as santidades,
Prosseguindo neste argumento, Vainfas enfatiza que movimentos messiânicos conduzidos por caraíbas ou
seria insustentável a idéia de que o profetismo tupi não homens-deuses. Estes movimentos adotavam elemen-
guardava relações diretas com a política colonial. Prova tos do próprio cristianismo, como as vestes dos padres
disso seria o próprio “conteúdo anticristão e antiescra- ou a prática da confissão, do batismo e o porte de cruz.
vista presente na exortação dos profetas”. (MÉTRAUX, 1967, p. 14). No entanto, muitos deles
O profetismo indígena, além de apontar um hori- assumiam um caráter marcadamente anticristão. Na
zonte utópico, pode ser visto como sinais ou indícios de região do Paraná surgiram diversos caraíbas pregando
hostilidade em relação à cristianização promovida pelo a observância das tradições e insuflando os nativos
colonialismo ibérico. Durante o período de implanta- contra os missionários jesuítas.
ção da base econômica da colônia com a introdução da O caráter intolerante do projeto colonial, do qual
lavoura, muitos indígenas foram submetidos ao regime o cristianismo católico era peça fundamental, não pro-
de escravidão (MONTEIRO, 1994). Os indígenas não duziu um diálogo ou tentativa de reconhecimento da
aceitaram pacificamente o domínio português. Pelo alteridade. Os inacianos, em sua maioria, foram inca-
contrário, aumentaram as hostilidades, os assaltos aos pazes de reconhecer a religiosidade indígena, seus
núcleos coloniais. No entanto, não foi apenas através do mitos, suas crenças, seus ritos e sua cultura. O trabalho
signo da violência física que o projeto colonial se efeti- de catequização foi “um esforço racionalmente feito
vou, é preciso lembrar que a inculcação do cristianismo para conquistar homens; é um esforço para acentuar a
pela catequese foi a dimensão simbólica dessa violên- semelhança e apagar as diferenças” (NEVES, 1978, p.
cia. Aos indígenas, gradualmente, foram ensinados os 45). Reduzidas as diferenças dos índios nas reduções
ofícios cristãos, os sacramentos, a disciplina em torno jesuíticas, eram os indígenas também reduzidos à con-
dos horários e do trabalho, a rejeição pelos costumes dição de trabalhadores.
tradicionais, a condenação da nudez, o constrangi- Aqueles que recusavam a catequização corriam o
mento da culpa e do pecado. risco de enfrentar a morte em guerras cada vez mais
Mas não apenas a escravidão, os massacres e constantes. A guerra era um direito para a escraviza-
o cristianismo trouxeram os portugueses, com eles ção dos indígenas. As duas formas legais eram: a guerra
também vieram as doenças, sendo a varíola a mais justa e o resgate. A guerra justa contra os índios ini-
mortífera. Não é fortuito que o discurso profético de migos era movida por alguns motivos, tais como “a
resistência anunciasse uma Terra sem Mal como lugar recusa à conversão ou o impedimento da propagação
da imortalidade. Somente na Bahia, no ano de 1562, da fé católica, a prática de hostilidades contra vassalos
a varíola dizimou cerca de 30 mil índios. As epide- e aliados dos portugueses e a quebra de pactos celebra-

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O ANTICRISTIANISMO NO BRASIL | 23

dos” (PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 123). Os próprios para enviar hereges a Lisboa. No entanto, foi somente
jesuítas, Anchieta e Nóbrega, defendiam a guerra e a em 1591 que se iniciou a série de visitações de inqui-
sujeição como meio de converter e salvar a alma. Para sidores. Diferentemente das colônias hispânicas, que
Nóbrega a escravidão indígena deveria não apenas ser tinham tribunais do Santo Oficio no México, Peru e
permitida como também desejada em alguns casos, Cartagena, o Brasil não teve um tribunal instalado e
pois “a oferta de legítimos cativos atrairia novos colo- permanente na colônia. Portanto, o que se sabe sobre
nos para o Novo Mundo” (MONTEIRO, 1994, p. 41). a inquisição no Brasil decorre das três visitações regis-
O resgate ocorria quando os índios se tornavam cativos tradas. A primeira, como já mencionado, teria ocor-
em guerras intertribais ou quando estavam correndo rido entre 1591-95 (Bahia, Pernambuco, Itamaracá e
risco de morte em rituais antropofágicos. A antropofa- Paraíba) e sido comandada por Heitor Furtado de Men-
gia, obviamente, para o pensamento católico da época donça, a segunda entre 1618-1621 (Salvador e Recôn-
representava uma “ofensa à lei natural”, e empreender cavo baiano) e a terceira entre 1763-69 (Grão-Pará).
uma guerra justa para livrar e defender os “inocentes” Os principais delitos julgados pelo Tribunal do
era muito conveniente, pois, pela legislação, os liberta- Santo Oficio estavam divididos em dois grupos prin-
dos poderiam legalmente ser escravizados como paga- cipais, de um lado se encontravam os crimes contra a
mento à libertação. fé cristã, onde se enquadravam a prática do judaísmo,
Não é difícil realizar um exercício de imaginação do maometismo, protestantismo e blasfêmias, de outro,
sobre a aversão indígena ao cristianismo. Os relatos de os crimes contra a moral, onde se encaixavam os casos
hostilidades indígenas à religião cristã católica, realiza- de sodomia, bigamia, molice e outros. Engrenagem
dos pelos cronistas do século XVI, devem ser lidos a punitiva e complexa do sistema colonialista, a Inquisi-
partir de seu contexto, do regime de padroado e da uti- ção não apenas zelava pela “pureza moral” da colônia,
lização da religião cristã como mecanismo legitimador tinha também um papel econômico de grande relevân-
do colonialismo. cia, uma vez que grande parte dos réus, entre eles cris-
Em Casa Grande & Senzala Gilberto Freyre (2004, tãos-novos, era formada por grandes proprietários de
p. 91) descreve com riqueza de estilo a maneira como engenho. Dentre os delitos a heresia era o mais visado.
eram tratados os viajantes que aportavam no Brasil Desta forma, cabe aqui registrar a devida adequa-
colonial. Num território cristão a preocupação com a ção da noção de heresia no estudo do anticristianismo.
saúde religiosa e a penetração de hereges era constante Se o cristianismo apresenta-se como a religião domi-
e profilática. Dentre os hereges, certamente uma das nante, a heresia é uma forma de resistência a esta domi-
grandes preocupações portuguesas era com os cris- nação, uma vez que o termo heresia, do grego haeretikis,
tão-novos que vinham habitar o Brasil. Esta história significa “o que escolhe”. Neste sentido pode-se seguir
tem inicio em 1496-7, quando o monarca D Manuel I, de perto a definição de heresia proposta por Anita
a exemplo do que havia ocorrido em Espanha, decre- Novinsky (1985, p. 11): “A heresia é uma ruptura com o
tou em seus territórios a conversão forçada de milhares dominante, ao mesmo tempo que é uma adesão a outra
de judeus. E para zelar pela pureza do cristianismo no mensagem. É contagiosa e em determinadas condições
reino português, D. João III, a partir de 1547, instalou o dissemina-se facilmente na sociedade. Daí o perigo que
Tribunal do Santo Oficio da Inquisição em Portugal. O representa para a ordem estabelecida, sempre preocu-
resultado deste estado de coisas é a transferência de um pada em preservar a estrutura social tradicional”.
grande número de cristãos-novos para as colônias por- Os registros deixados pela Inquisição são um lugar
tuguesas, em especial as terras brasílicas como espaço privilegiado para se observar manifestações de anti-
de fugas das perseguições. cristianismo. Isso não quer dizer que a irreligiosidade
A distância não impediu que os tentáculos da ou o ateísmo grassavam nas terras brasílicas, mas que
Inquisição chegassem à colônia. Desde 1580 o bispo blasfemar era, em grande medida, uma forma de resis-
da Bahia já havia recebido autorização do Santo Oficio tir à hegemonia cristã católica. Grande parte da histo-

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24 | Rogério Luiz de Souza; Edison Lucas Fabrício

riografia brasileira tem enfatizado a fama do Tribunal pelo leite materno” (GORENSTEIN, 2008, p. 118).
como “perseguidor de cristãos-novos”, o que deve ser No universo religioso da colônia a heresia mar-
relativizado. Todavia, salta aos olhos do pesquisador a ramana era uma das mais temidas. Vainfas (2002, p.
quantidade de denuncias e confissões de blasfêmias. A 26) assinala que os casos de heresia de cristãos-novos
partir da noção de anticristianismo como resistência, devem ser vistos com cautela. A chegada do primeiro
é possível ver neste grupo, acusado muitas vezes de inquisidor na Bahia, em 1591, abalou a estabilidade
“judaizar em segredo”, uma forma silenciosa e subter- existente entre cristãos-novos e cristãos-velhos, os
rânea de anticristianismo. laços de convivência lentamente construídos foram
Nas duas visitações ocorridas na Bahia, em 1591 e rompidos e as denuncias de “judaizar em segredo” tor-
1618, Luiz Mott (2002, p. 12) contabilizou “aproxima- naram-se constantes.
damente 500 denúncias e confissões de suspeitos e réus No entanto, as atitudes de zombaria e hostilidades
confirmados em ‘crimes contra a fé’: heresias, judaísmo, aos símbolos do cristianismo não eram exclusivida-
protestantismo, feitiçarias, irreligiosidade, assim como des cristãs-novas, elas estavam incrustadas na própria
‘crimes contra a moral sexual’: sodomia, bigamia e a cultura popular lusitana desde o medievo. Na colônia,
imoralidade sacerdotal”. Dentre os 20 réus residentes ciganos e negros também eram acusados de maltratar
no Brasil e que foram queimados pela Inquisição, sete as imagens sagradas. A partir de um caso de injúria aos
deles eram da Bahia, “com exceção do Padre Gabriel santos da “preta Rosa Gomes” podemos adentrar um
Malagrida, [...] todos os demais eram cristãos-novos, pouco no universo do anticristianismo entre os negros,
executados pela prática secreta do judaísmo”. escravos ou forros (MOTT, 1997, p. 190). A posição da
Para termos uma noção da importância do delito Igreja diante dos escravos africanos não diferia muito
de blasfêmia, seguiremos a narrativa de Anita Novinsky em relação aos indígenas. Partindo do princípio das
(1985, p. 77-79). Somente em Pernambuco, na primeira desigualdades naturais entre as raças, a Igreja buscou
visitação de Heitor Furtado de Mendonça, há o registro legitimar a escravidão como meio de conversão. Mui-
de 62 duas pessoas no livro Confissões de Pernambuco, tos padres do Brasil Colônia, entre eles Antônio Vieira,
sendo 12 cristãos-novos. Os crimes que mais aparece- viam na ação portuguesa um bem, pois os negros des-
ram foram os de blasfêmia 40, práticas judaizantes 6, terrados da África encontrariam no Brasil a salvação de
práticas luteranas 8. A autora ainda relata que o auge suas almas pelo catolicismo. O discurso católico uni-
das perseguições ocorreu na primeira metade do século formizador buscou apagar as diferenças. Só posterior-
XVIII, quando a produção aurífera era a grande riqueza mente, depois de convertidos, os negros encontraram
da colônia. “Nessa ocasião, a maior parte dos prisionei- meios de inserção nas instituições católicas. “Coube à
ros era composta de cristãos-novos do Rio de Janeiro. Igreja não só justificar a escravidão negra, mas também
Aproximadamente 500 cristãos-novos, entre homens e garantir a inserção subordinada de africanos e seus des-
mulheres, foram levados para os cárceres da Inquisição cendentes na Cristandade colonial, por meio da cate-
em Portugal acusados de serem judaizantes”. quese, [...] com destaque para a difusão devocional dos
As mulheres cristãs-novas eram muito visadas chamados ‘santos pretos’” e das diversas irmandades.
pela inquisição. Num contexto marcado pela tradição (OLIVEIRA, 2007, p. 355).
oral, onde o Index Librorum Prohibitorum era a referên- Por outro lado, apesar dos esforços da hierarquia
cia do que não devia ser lido, especialmente a Torá ou católica em forjar uma nação católica, ausente de res-
o Talmud, às mulheres cabia a transmissão da cultura quícios de outras religiosidades, não foi possível evitar
judaica através das sucessivas gerações. “Os Inquisido- a presença de uma religiosidade hibrida, com entrela-
res consideravam as mulheres como um dos maiores çamentos de várias tradições e culturas religiosas.
perigos para a sociedade católica, uma vez que acredi- No Brasil colonial, havia uma clara dicotomia
tavam que o Judaísmo era transmitido às novas gera- entre o permitido e o proibido, entre religião católica,
ções pelo sangue, pela memória feminina e até mesmo pública e autorizada, e as religiosidades marginais.

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O ANTICRISTIANISMO NO BRASIL | 25

Estas últimas, “por se tratar de crenças e rituais con- é, todavia, na insurreição de 1835, a famosa Revolta dos
denados pelos donos do poder espiritual, tiveram de Malês, que o fator religioso foi interpretado como fun-
ocultar-se no recôndito das matas, ou no secreto das damental. Os africanos muçulmanos na Bahia de 1835
casas” (MOTT, 1997, p. 220). No entanto, é no período eram simplesmente conhecidos como “malês”. Dentre
imperial onde há maiores indícios de resistência anti- as diversas explicações para o significado do termo
cristã entre os escravos negros, principalmente entre “malês”, estava a católica, que apontava para “má lei”,
negros islamizados. pois relacionava ao Islã, em oposição à “boa lei” cató-
Africanos foram trazidos para várias partes da lica. Outra explicação diz respeito à origem geográfica,
América ao longo do período colonial. Todavia, a Bahia o Mali. No entanto, na Bahia, “malês” simplesmente
da primeira metade do século XIX recebeu certamente significava o adepto do Islã. João José Reis calcula entre
o maior contingente de escravos islâmicos. João José 15 e 20% o contingente islâmico entre os africanos na
Reis (2003, p. 174) assinala que estes africanos isla- cidade de Salvador em 1835.
mizados vieram de regiões do atual Sudão e Nigéria, A revolta iniciou-se na madrugada de 25 de janeiro
lugares onde o Islã já havia se expandido. A região do de 1835 e contou com cerca de 600 homens. Havia um
Sudão Central desde o inÍcio do século XIX tornou-se planejamento prévio para o levante, mas uma denún-
cenário de vários conflitos político-religiosos, sendo a cia fez com a polícia tomasse de surpresa um grupo
jihad de 1804 a mais emblemática liderada por Usuman de rebeldes. Os combatentes tentaram invadir a cadeia
Dan Fodio. Grande parte dos escravos islâmicos que da Câmara Municipal onde se encontra um dos mais
participaram das revoltas escravas da primeira metade importantes líderes dos malês, o velho Pacifico Licu-
do século XIX na Bahia veio ao Brasil em conseqüência tan. A invasão foi malsucedida e os rebeldes saíram
dessas guerras intestinas ocorridas na África. “Desde pelas ruas acordando outros escravos para auxiliar na
pelos menos o inicio da jirad de Usuman Dan Fodio, revolta. Depois de intensos combates os malês foram
levas de escravos de diferentes grupos étnicos, com- massacrados, cerca de 70 foram mortos. Pouco se sabe
prometidos em maior ou menor grau com o Islã, vie- dos objetivos do levante, o certo é que tinha um ingre-
ram dar na Bahia”. Muitos desses escravos islamizados diente religioso importante, a revolta tinha muçulma-
empreenderam revoltas e rebeliões não apenas contra o nos como líderes principais e foi planejada para ocorrer
regime de escravidão, questão de primeira ordem, mas no final do mês sagrado do Ramadã.
também contra o regime simbólico e religioso hegemô- Este fator religioso levou Raimundo Nina Rodri-
nico, onde o cristianismo católico tinha a primazia. gues a acentuar o caráter de guerra religiosa no levante
Em 1814 eclodiria uma das mais famosas revoltas dos malês. Para o médico baiano, as outras rebeliões de
de escravos na Bahia. Liderada por João Malomi, ao escravos que ocorreram no Brasil foram eventos efê-
que tudo indica um sacerdote muçulmano, a rebelião meros, pois não tinha a coesão proporcionada por uma
mobilizou cerca de 200 homens e atacou as armações religião como o islamismo. O que não podia ser dito
de caça à baleia na capital e posteriormente incendiou das várias revoltas de huassás e nagôs islamizados que
propriedades e plantações ao longo do caminho que ocorreram na Bahia, elas tinham causas religiosas não
levava ao Recôncavo. A documentação histórica fala desprezíveis. Eram, portanto, guerras santas (RODRI-
em 14 pessoas, inclusive mulheres e crianças, vitimadas GUES, 1932, p. 65)
pelos rebeldes e entre 80 e 150 casas incendiadas. Auto- João José Reis e Eduardo Silva (1989, p. 111) assi-
res como Paul Lovejoy e João José Reis concordam que nalam que autores como Nina Rodrigues e mesmo
há uma relação estrita entre a jihad da costa ocidental Roger Bastide identificaram na Revolta dos Malês
da África e as rebeliões baianas. traços de fanatismo anticristão. Para Rodrigues e Bas-
Se é possível encontrar indícios de anticristianismo tide, “a rebelião de 1835 representou uma ‘verdadeira
nas rebeliões de escravos muçulmanos no inicio do guerra contra os cristãos’”. No entanto, asseveram Reis
século XIX, principalmente nas revoltas de 1807 e 1814, e Silva, “ainda que considerássemos certo falar de um

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fanatismo anticristão inerente à civilização islâmica, tos franceses circulavam e eram lidos na clandestini-
dificilmente poderíamos ter os africanos como repre- dade, principalmente por três grupos sociais: frações
sentantes exemplares dessa ‘civilização’”. do clero, parcela da elite econômica e estudantes egres-
À guisa de conclusão deste tópico, podemos afir- sos de Coimbra. Escritos como o Emílio de Rousseau,
mar que o cristianismo, principalmente em sua feição a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, O Espírito das
católica, encontrou nas terras brasílicas fortes oponen- Leis de Montesquieu, ou livros de Voltaire, Raynal,
tes. A força da oposição anticristã no Brasil não decorria Mably e outros, faziam parte de bibliotecas mineiras,
de sua organização calculada e estratégica. Na maioria muitas delas, inclusive, como a do cônego Luís Vieira
das vezes o anticristianismo se manifestou na miudeza da Silva – tornado célebre no livro O diabo na livra-
das práticas culturais, nas inexpressivas resistências, nas ria do cônego – mais numerosas e pujantes que muitas
táticas, como “arte do fraco”, que subterraneamente se europeias de seu tempo.
materializavam em blasfêmias, heresias, xingamentos e No entanto, vários estudiosos da história intelec-
destruição de santos, resistência marramana, revoltas de tual brasileira assinalam que o impacto da Ilustração
escravos muçulmanos, santidades de ameríndios. no Brasil foi moderado. As lutas ideológicas que grassa-
vam no Velho Mundo não se reproduziram na colônia.
O ANTICRISTIANISMO E A HISTÓRIA DAS Alfredo Bosi assinala que “a nossa vida espiritual não
IDEIAS NO BRASIL sentiu os choques violentos que abalavam a Europa,
pois não tinham amadurecido aqui os grupos de pres-
Enquanto na França a Ilustração e a Revolução são que lutavam arduamente no Velho Mundo desde
acirraram o processo de descristianização, no Brasil as primeiras crises do feudalismo. As opiniões radical-
e mesmo em Portugal, as ideias iluministas tiveram mente opostas de um Voltaire e de um Rousseau, ou
uma recepção bastante tímida. Escritos e ideias sobre de um Byron e de um Chateaubriand, caíam na rare-
a revolução francesa e americana circularam e tive- feita elite brasileira como peças de um mosaico ideal
ram impacto relativo entre os luso-brasileiros. Mesmo que um pouco de habilidade verbal poderia compor”
durante o período pombalino, considerado por muitos (BOSI, 1995, p. 90).
como ilustrado no antijesuitismo e na tentativa de limi- A circulação de livros considerados anticristãos e
tar os poderes religiosos, as ideias esclarecidas foram sediciosos fez com que a Coroa estabelecesse mecanis-
bastante limitadas. É no período pombalino que ocor- mos mais aprimorados de censura para conter os “abo-
reu um recrudescimento da Inquisição em Portugal e mináveis princípios franceses”. A partir de 1794, poucos
nas colônias. anos depois da deflagração da Revolução e da decapi-
Portanto, qualquer avaliação da existência de um tação do rei francês, o governo português, que já tinha
pensamento anticristão no Brasil deve levar em conta instituições como a Real Mesa Censória, à pedido da
a permanência, por quase três séculos, das práticas Mesa do Desembargo do Paço, estabeleceu uma junta
inquisitoriais na colônia. O simples anúncio de uma de censores reais no Brasil com o objetivo de examinar
visitação do Santo Ofício era suficiente para causar previamente todos os escritos que adentravam ao Brasil
pânico na população cristã-nova e entre a elite econô- ou que iriam ser publicados (NEVES; FERREIRA, 1989).
mica e intelectual dos centros mais abastados financei- Todavia, principalmente no século XVIII, a religião
ramente e efervescentes ideologicamente. No entanto, viu-se golpeada por todos os lados na Europa. Ainda
nem mesmo o temor da Inquisição foi capaz de deter a que distante dos ventos racionalistas que sopravam da
produção e circulação de ideias desviantes na colônia. Europa, Portugal recebeu seu quinhão de ideias ilumi-
É possível identificar a circulação de ideias e nistas. Impossibilitada pelo pacto colonial de ter sua
livros provenientes da Ilustração nas conjurações de própria universidade, a colônia enviava os jovens das
Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco. famílias mais ricas para estudar em Coimbra. Foi neste
Nos centros mais abastados economicamente os escri- ambiente de relativa liberdade que os jovens brasileiros

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O ANTICRISTIANISMO NO BRASIL | 27

“afrancesados” tiveram acesso aos escritos da Ilustração lucionismo spenceriano, o darwinismo, o anarquismo
e realizaram apropriações bastante iconoclastas. e o socialismo façam um contraponto ao cristianismo
Um destes estudantes, Antônio de Morais Silva, católico no Brasil.
teve sua trajetória analisada pelos historiadores Anita O pensamento positivista trata a religião de forma
Novinsky e Luiz Carlos Villalta. Segundo Novinsky, a ambígua. Inicialmente a religião, desde as formas ani-
Inquisição portuguesa acusou Morais Silva e seus com- mistas até o monoteísmo cristão, é algo que deve ser
panheiros de comer carne na quaresma, nunca jejuar superado, pois faz parte do estágio teológico de evo-
e ir à missa, negar o inferno e o purgatório, e ver nas lução da humanidade, representando sua fase infan-
Escrituras Sagradas nada mais que fábulas. Autor do til. No entanto, a religião não é descarta. Em tempos
famoso Dicionário da Língua Portuguesa, Morais Silva, secularizados e guiados pela razão ela deve torna-se
como mostra Villalta, também foi um inventivo leitor positiva, humanista e não teísta. Desta forma, se há
das obras de Rousseau, especialmente Émile, um dos um anticristianismo no pensamento positivista, ele é,
livros mais concorridos entre os coimbrãos. A partir antes de tudo, um discurso de superação do cristia-
do pensamento de Rousseau, Morais Silva questionou nismo. No Brasil, positivistas ilustres como Nísia Flo-
a religião revelada e o pecado original (NOVINSKY: resta, Teixeira Mendes, Miguel Lemos, Luiz Pereira
1990; VILLALTA: 1999). Barreto, em maior ou menor grau traduziram as idéias
Por mais que estes casos de rebeldia em relação à positivistas no Brasil. No entanto, é pouco plausível
religião, e especialmente ao cristianismo católico, não ver no positivismo um anticristianismo explícito, no
sejam deliberadamente ateístas e calculados, sendo campo do agir prático é identificável um anticlerica-
antes encarados como produtos de leituras libertinas e lismo e uma defesa intransigente da separação entre
defensores de um deísmo ainda com contornos pouco Igreja e Estado (CARVALHO, 1998, p. 199).
definidos, pode-se ver neste contexto claros indí- Ao lado do pensamento de Augusto Conte, o
cios de secularização da sociedade e, como descreve pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900) tam-
Novinsky (1990, p. 367), um processo de “descristia- bém encontrou eco no Brasil. Como se sabe, a filoso-
nização interior”. fia nietzscheana é uma das críticas mais radicais ao
Ao longo de todo o século XIX, a crítica religiosa cristianismo, em obras como A genealogia da moral,
no Brasil conviveu com a contradição de um país que Para além do bem e do mal ou Assim falava Zaratus-
adotava o catolicismo como religião pátria. Assim, tra, há uma condenação visceral ao que considera ser
enquanto países europeus como a França realizaram “uma religião de escravos” que por piedade conduzia
rupturas radicais com os sistemas religiosos, no Brasil ao decadentismo e anulava a vontade de potência. No
o catolicismo era não apenas um sistema simbólico de Brasil, ocorreu uma recepção de Nietzsche bastante
coesão social, mas também a estrutura administrativa criativa, principalmente por parte de intelectuais da
que sustentava em grande medida a presença do estado Primeira República, como Graça Aranha, João Ribeiro,
no território nacional. José Veríssimo, Monteiro Lobato e Lima Barreto. No
No entanto, ao longo do século XIX, vários sis- entanto, não é possível afirmar que o anticristianismo
temas explicativos tornaram-se concorrentes ao cato- foi o aspecto mais enfatizado na recepção de Nietzsche
licismo no Brasil. Ainda que o catolicismo fosse a por tais autores, mas antes sua crítica à modernidade e
religião oficial, várias outras religiões diversificavam ao racionalismo. Sobretudo a estética “irracionalista” de
o campo religioso, desde as denominações protes- Zaratustra ou do além-do-homem é a dimensão mais
tantes que vinham com os imigrantes até manifesta- valorizada. Houve ainda uma apropriação de Nietzsche
ções religiosas trazidas por africanos escravizados. que depurou seus elementos anticristãos. Em Plínio
No entanto, não há um pensamento deliberadamente Salgado, por exemplo, a obra de Nietzsche é recebida
anticristão neste período. Será preciso chegar o fim do de forma ambivalente, ao mesmo tempo em que critica
século XIX para que o positivismo comteano, o evo- o anticristianismo nietzscheano também absorve a cri-

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tica da decadência da modernidade de Zaratustra e do cica, Aníbal Vaz de Melo, Mário Ferreira dos Santos e
Super-Homem (além do homem). outros. José Oiticica, um dos mais respeitados anar-
O contexto intelectual brasileiro de fins do século quistas brasileiros, na prisão em 1925, ao redigir A dou-
XIX e inicio do século XX também recebeu o pensa- trina anarquista ao alcance de todos, assinalava que “a
mento socialista e anarquista. Até praticamente o início religião é o processo de subjugar o povo fazendo-o crer
do século XX não havia um definição precisa do que num ser onipotente, dono do universo, castigador dos
era ser socialista. As bandeiras e reivindicações eram maus e premiador dos bons”. Para Oiticica, esta religião
extensas, abrangia desde a abolição da escravidão, a crí- que subjugava as consciências assumiu a forma cristã
tica ao atraso brasileiro, as práticas coronelistas e man- no Ocidente. “No Ocidente europeu e americano, a
donistas, a defesa da instrução pública, gratuita e laica. religião dominante é a cristã, quer romana, quer pro-
O pensamento anarquista representa uma das crí- testante, quer ortodoxa”. Assim, o cristianismo, e prin-
ticas mais ácidas à religião. No entanto, no que diz res- cipalmente o catolicismo, teria assumido um caráter
peito ao cristianismo, não há uma unanimidade na sua militarista e capitalista. “[...] A Igreja, em muitos casos,
condenação. Se em escritos como Deus e o Estado de abençoa, nos templos, as espadas dos oficiais, os exér-
Mikhail Bakunin há uma reprovação do cristianismo, citos em marcha para as batalhas, e ela própria já teve
em livros como O reino de Deus está em vós de Liev exércitos para defender suas terras e bens. Demais, a
Tolstoi há uma defesa do caráter contestatório e liber- Igreja é essencialmente capitalista e seus bispos, [...]
tário presentes no cristianismo. Bakunin afirma que vivem parasitariamente, sem trabalho útil, da contri-
“durante dez séculos, o cristianismo, armado com a buição dos fiéis. Tal religião é inimiga dos trabalhado-
onipotência da Igreja e do Estado, e sem nenhuma con- res [...]” (OITICICA, 2006, p. 55).
corrência, pôde depravar, corromper e falsear o espí- O que se pode notar nos escritos anarquistas no
rito da Europa”. No entanto, também reconhece que Brasil é um recrudescimento anticlerical em maior grau
“no cristianismo também houve grandes homens, [...] e um anticristianismo em menor escala. Isto pode ser
cujos corações, transbordando de amor, estavam cheios observado também nos escritos de Maria Lacerda de
de desprezo pelos gozos e pelos bens deste mundo” Moura, feminista anarquista muito respeitada na pri-
(BAKUNIN, 2011). Tolstoi, precursor do que hoje se meira metade do século XX. Em seu livro Fascismo
conhece como anarco-cristianismo, criticava sobrema- – Filho dileto da Igreja e do Capital, de 1934, a autora
neira a relação entre Igreja e Estado. Em seus escritos, declara que “Cristo é um mito muito alto: não cabe
denunciou a corrupção do cristianismo, a forma como dentro do Cristianismo… O Cristianismo é anti-cris-
teria sido usado para alimentar o patriotismo, o serviço tão. É a negação absoluta das palavras de doçura e amor
militar, a violência, a guerra, a subordinação, a sujei- de Jesus de Nazaré. [...] Quando digo Cristianismo, eu
ção e a dominação, em detrimento da emancipação me refiro à ordem social burguesa capitalista. É a civili-
e da liberdade humana. Em consonância com o ideal zação do bezerro de ouro” (MOURA, s/d).
libertário do anarquismo, Tolstoi afirma que “o cristia- A religião, e especialmente o cristianismo, não
nismo, em seu verdadeiro significado, destrói o Estado. parece ser a preocupação primordial de anarquistas e
Isto foi assim compreendido desde o princípio e por comunistas na primeira metade do século XX. A luta
isso Cristo foi crucificado”. (TOLSTOI, 1994). pela organização dos trabalhadores, as greves, a crítica
A diversidade de vertentes de pensamento no inte- ao capitalismo e o processo revolucionário parecem ter
rior do movimento anarquista, desde o anarquismo sido os temas que mais ocuparam os intelectuais anar-
individualista, o anarco-comunismo, anarquismo quistas. Ao longo da década de 1920, muitos anarquis-
cristão, não permite afirmar que o anarquismo seja tas acabaram por aderir ao comunismo. É o caso de boa
essencialmente anticristão. No Brasil essa ambiguidade parte dos fundadores do Partido Comunista. Assim
em relação ao cristianismo pode ser encontrada em como os anarquistas, os comunistas não transpuseram
intelectuais como Maria Lacerda de Moura, José Oiti- simplesmente a crítica marxista da religião ao Brasil.

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O ANTICRISTIANISMO NO BRASIL | 29

Autores como Octávio Brandão, Astrogildo Pereira, Ilustração pela sociedade brasileira. Esta descristiani-
Luiz Carlos Prestes, primeiros líderes comunistas, esta- zação acirrou-se com a entrada e reelaboração de ideo-
vam mais preocupados com as questões industriais e logias como o positivismo, anarquismo, comunismo e
agrárias do país e com a organização dos trabalhadores modernismo. Por outro lado, a república positivista que
do que com questões religiosas. nasce no Brasil também outorga a liberdade religiosa,
Todavia, a questão religiosa reverberava em outros o que faz com que o catolicismo se reestruture e novas
campos sociais. A secularização da sociedade, que aos religiões adentrem o país. É o caso da expansão do
poucos se urbanizava e adotava valores e princípios Protestantismo, do Espiritismo, das Religiões Afro-bra-
burgueses, ficou patente na esfera da produção cul- sileiras, das denominações pentecostais e das religiões
tural, sendo o Modernismo um exemplo relevante. não-cristãs. Este segundo movimento fará com que
Neste sentido, a Semana de Arte Moderna de 1922 muitos especialistas em religião falem de um “retorno
foi um movimento intelectual que provocou signifi- da religião” ou ainda em uma “revanche de Deus” após
cativas mudanças na cultura brasileira. Artistas como sua morte declarada por filósofos do século XIX.
Anita Malfatti, Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Oswald Se durante a primeira metade do século XX o anti-
Andrade e outros, buscam empreender uma crítica cristianismo no Brasil é um movimento ambíguo, pos-
radical ao academicismo e ao conservadorismo, bem teriormente ele será cada vez mais explicito. Ao longo
como a herança européia, em especial a cristã católica. das décadas de 50, 60 e 70 há uma profunda mutação
Uma rápida leitura do Manifesto Antropófago de 1928 da sociedade brasileira. Ventos libertários e contracul-
é suficiente para perceber o grau de secularização de turais sopram sobre a Europa e os Estados Unidos e são
frações da elite letrada paulistana. reelaborados em nosso contexto ditatorial. Nos teatros,
Ao longo da década de 1920 o movimento antro- nos muros pichados e nas letras das músicas desta nova
pofágico foi a grande revolução no pensamento brasi- geração fica cada vez mais evidente a rejeição pela cha-
leiro, não apenas no campo estrito das artes e literatura, mada “cultura judaico-cristã ocidental”. Encantados
mas também na forma como as elites culturais se rela- pela literatura de Jack Kerouac, pela releitura de Marx
cionavam com o passado colonial e a herança europeia. e Freud empreendidas por Herbert Marcuse, Erich
Para o objetivo deste texto, é importante enfatizar a Fromn, Wilhelm Reich, a juventude brasileira denunciava
relação com a tradição cristã vinda com a colonização. a tecnocracia, a repressão sexual e o conservadorismo
Se o movimento modernista colocou à prova toda a como produtos de uma sociedade pautada pelos princí-
herança cultural e pregou uma volta ao primitivismo, pios cristãos. Não é fortuito que neste contexto de rejei-
o cristianismo não ficou imune a essa crítica. Segundo ção em bloco da “cultura ocidental cristã” ocorra uma
Afrânio Coutinho, o modernismo da década de 1920 busca pelo conhecimento do Oriente, por sua filosofia,
pregava um “retorno ao primitivismo, porém ao primi- pela sua medicina e práticas culturais. A cultura New Age
tivismo em estado de pureza – se assim se pode dizer é o emblema da rejeição ao cristianismo, que, simboli-
– ou seja, sem compromisso com a ordem social esta- zado na “Era de Peixes”, é engolido pela “Era de Aquário”.
belecida: religião, política, economia. É uma volta ao Neste contexto de profundas mudanças o cristia-
primitivismo antes de suas ligações com a sociedade e nismo vai paulatinamente perdendo espaço na socie-
cultura ocidental e européia (...) a antropofagia valoriza dade, sobretudo nas camadas juvenis escolarizadas. A
o homem natural, é antiliberal e anticristã” (COUTI- contracultura trouxe em seu bojo um busca por modelos
NHO, 1999, p. 23). alternativos de sociedade, uma rejeição pelas ortodoxias,
Ao longo do século XX pode-se afirmar que houve pelo individualismo burguês, uma busca por experimen-
dois processos distintos em relação ao cristianismo tar outros padrões de comportamento, de sexualidade e
no Brasil. Desde o final do século XVIII há um pro- religiosidade. A contestação foi a marca registrada da
cesso de “descristianização interior”, como afirmou contracultura. Nos Estados Unidos constatava-se o
Anita Novinsky, em partes pela recepção inventiva da american way of life e sua cultura militarista, especial-

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30 | Rogério Luiz de Souza; Edison Lucas Fabrício

mente a guerra do Vietnam. No Brasil a crítica juvenil e BIBLIOGRAFIA


contracultural eram dirigidas ao Estado ditatorial e ao
estilo de vida burguês. ALVES, L. Raul Seixas e o sonho da Sociedade Alterna-
A cultura beat, beatnik e hippie pregava um estilo tiva. São Paulo: Martin Claret, 1993.
de vida alternativo e despojado, distante dos valores
capitalistas e burgueses que eram alimentados pelo BAKUNIN, Mikhail. Deus e o Estado. São Paulo: Hedra,
“milagre econômico” que proporcionava “carro novo 2011.
e pau-de-arara”. Os Mutantes, um dos grupos musi-
cais símbolo do período, tornam patente essa visão de BRANDÃO, Carlos R. Os Guarani, índios do Sul: reli-
mundo em 1972 com a música Balada do Louco: gião, resistência e adaptação. Estudos Avançados. São
Paulo, ano 4, n. 10, p. 53-90, 1990.
Dizem que sou louco por pensar assim
Se eu sou muito louco por eu ser feliz BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira.
Mas louco é quem me diz São Paulo: Cultrix, 1995
E não é feliz, não é feliz. [...]
Eu juro que é melhor CARVALHO, José M. Pontos e bordados. Escritos de
Não ser o normal história e política. Ed. UFMG: 1998.
Se eu posso pensar que Deus sou eu. [...]
Se eles têm três carros, eu posso voar CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1,
Se eles rezam muito, eu já estou no céu.
Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008.
[...]

COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo de


Nesta proposta de sociedade alternativa, há pouco
Faria. A Literatura no Brasil.Volume 5. A Era Moder-
espaço para o cristianismo, ao qual é imputada a res-
nista. São Paulo; Global Editora, 1999.
ponsabilidade pela produção de um tipo de sociedade
de consumo, de repressão sexual e de alienação. A busca
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação
por essa sociedade alternativa ao cristianismo encon-
da família brasileira sob regime da economia patriarcal.
trou eco também nas diversas canções de Raul Seixas,
49ª ed. São Paulo: Global, 2004.
cujas letras demonstram um profundo desejo de ruptura
com os paradigmas dominantes. Raul Seixas, conside-
GORENSTEIN, Lina. O criptojudaísmo feminino no
rado o “protótipo do homem da Era de Aquário”, num de
Rio de Janeiro (séculos XVII e XVIII). Projeto História.
seus discos lançados em 1975 anuncia um “Novo Aeon”,
São Paulo, n.37, p. 115-138, dez. 2008.
mundo nascido da Era de Aquário que suplantou a Era
de Peixes, símbolo do cristianismo (ALVES, 1993).
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios
Este breve percurso sobre a história da cultura
escravos. Os princípios da legislação indigenista do
no Brasil é revelador de um cristianismo complexo e
período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA,
ambíguo. À guisa de conclusão deste tópico, é possí-
Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São
vel afirmar que o anticristianismo se afirma no Brasil
Paulo: Cia das Letras; 2000.
à medida que a sociedade passa por um processo de
profunda secularização. Se atualmente este conceito
MÉTRAUX, Alfred. A religião dos Tupinambás e suas
tem sido abandonado por não dar conta da globa-
relações com a das demais tribos tupis-guaranis. 2. ed.
lidade social, quando se trata de anticristianismo
São Paulo: Ed. Nacional; Edusp, 1979.
ele se torna operacional para explicar como certas
camadas e grupos sociais se posicionam diante da
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a
tradição cristã.
capela e o calundu. In: SOUZA, Laura de Mello e. Coti-

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O ANTICRISTIANISMO NO BRASIL | 31

diano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: REIS, João José. Há duzentos anos: a revolta escrava
Companhia das Letras, 1997. (História da vida privada de 1814 na Bahia. Topoi. Revista de Historia, v. 15, p.
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MOTT, Luiz. Bahia: Inquisição e sociedade. Salvador: RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil.
EDUFBA, 2010. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1932.
(Brasiliana ; v. 9).
MONTEIRO, John Manoel. Negros da terra: índios
e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: TOLSTOI, Leon. O reino de Deus está em vós. 2ª edição.
Companhia das Letras, 1994. São. Paulo: Editora Rosa dos Tempos, 1994.

MOURA, Maria Lacerda de. Fascismo, Filho Dileto da VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e
Igreja e do Capital. São Paulo: Editorial Paulista, [s. d]. rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das
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NEVES, Lúcia M. B. P.; BESSONE, Tânia. O medo dos
“abomináveis princípios franceses”: a censura dos livros VAINFAS, Ronaldo; SOUZA, Juliana Beatriz de. Brasil
nos inícios do século XIX no Brasil. Acervo: Revista do de todos os santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002.
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NOVINSKY, Anita W. Estudantes brasileiros “Afran- OS AUTORES


cesados” da Universidade de Coimbra. In: Osvaldo Rogério Luiz de Souza é graduado em Filosofia pela Escola
Superior de Estudos Sociais, com estudos no âmbito da gra-
Coggiola. (Org.). A Revolução Francesa e seu Impacto duação em Letras - francês e português pela Universidade
na América Latina. São Paulo: EDUSP e Editora Nova Federal de Santa Catarina, da graduação em Direito pela Uni-
versidade do Vale do Itajaí e da graduação em Teologia pelo
Stela, 1990, p. 357-371. Instituto Teológico de Santa Catarina. Fez mestrado em His-
tória do Brasil pela Universidade Federal de Santa Catarina,
doutorado em História Cultural pela Universidade Federal do
OITICICA, José. A Doutrina anarquista ao alcance de Paraná e pós-doutorado em Ciências Sociais pela École des
Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França. Foi pro-
todos. 5ªed. Rio de Janeiro: Achiamé, 2006. fessor do Departamento de História da Universidade Federal
do Rio Grande e foi pesquisador visitante no Centre dEtudes
Interdisciplinaires des Faits Religieux, Paris, França. É membro
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Igreja e escra- investigador internacional do Centro de Literaturas e Culturas
Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade
vidão africana no Brasil Colonial. Cadernos de Ciências de Lisboa (CLEPUL) e atua como professor e pesquisador no
Humanas - Especiaria. v. 10, n.18, jul. - dez. 2007. Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal de Santa Catarina e coor-
dena o Laboratório de Religiosidade e Cultura. Atualmente é o
Pró-Reitor Adjunto de Graduação da Universidade Federal de
REIS, João J. Rebelião Escrava no Brasil: A História do Santa Catarina. E-mail: rogerklaumann@gmail.com
Levante dos Malês em 1835 (Edição revista e ampliada). Edison Lucas Fabrício Graduado em História pela Fundação
2a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Universidade Regional de Blumenau (2007). Mestre em Histó-
ria Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011)
Doutorado em andamento pela Universidade Federal de Santa
Catarina (inicio 2014). E-mail: edisonlucasf@hotmail.com
REIS, João J; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito:
resistência negra no Brasil escravista. 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.

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REVISTA DE ESTUDOS DE CULTURA | Nº 01 | Jan.Abr./2015
Maria Helena Santana Cruz
Alfrancio Ferreira Dias

ANTIFEMINISMO

RESUMO:
Esse texto reflete sobre o Antifeminismo como objeto analítico na cultura brasi-
leira, na tentativa de contribuir para minimizar a lacuna sobre o tema existente na
produção do conhecimento. Na primeira parte, buscamos conceituar o Antifemi-
nismo a partir de uma leitura das Ciências Humanas. Na segunda parte, discutimos
sobre o movimento feminista e todo o seu processo de mobilização social para fazer
um paralelo ao surgimento do Antifeminismo. Na última parte, trazemos alguns
argumentos sobre o movimento Antifeminista, refletindo seu impacto na mídia
brasileira. Conclui-se que precisamos refletir mais sobre o movimento Antifemi-
nista na contemporaneidade, destacando o papel da educação como mediação no
fortalecimento da consciência crítica, do respeito à diversidade, igualdade política,
aos direitos das mulheres e de grupos socialmente discriminados.
Palavras-chave: antifeminismo; feminismo; relações de poder.

* Pós-Doutora em Sociologia
da Educação pela Universidade
Federal de Sergipe.
Email: helenacruz@uol.com.br
*Doutor em Sociologia pela
Universidade Federal de Sergipe.
E-mail: diasalfrancio@hotmail.com.

REVISTA DE ESTUDOS DE CULTURA | Nº 01 | Jan.Abr./2015


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ANTIFEMINISM ANTIFEMINISMO

ABSTRACT: RESUMEN:
This text reflects on Antifeminism as an analytical object in Este texto refleja el Antifeminismo como objeto de análisis en
Brazilian culture, in an attempt to help to reduce the gap in la cultura brasileña, en un intento de contribuir a minimizar
knowledge production. In the first part we seek to conceptu- la brecha sobre el tema existente en la producción de cono-
alize Antifeminism from a reading of Humanities. In the sec- cimiento. En la primera parte, intentamos conceptualizar el
ond part we discuss the feminist movement and all its social Antifeminismo a partir de una lectura de las Humanidades.
mobilization process for making a parallel to the appearance En la segunda parte, hablamos sobre el movimiento feminista
of Antifeminism. In the last part, we bring some arguments y el proceso de movilización social para hacer un paralelo
about the antifeminist movement, reflecting its impact on the a la subida del Antifeminismo. En la última parte, traemos
Brazilian media. We conclude that we need to reflect more algunos argumentos sobre el movimiento antifeminista,
about the antifeminist movement in contemporaneity, high- reflejando su impacto en los medios de comunicación bra-
lighting the role of education as mediation in strengthening sileños. Se concluye que es necesario reflexionar más sobre
critical awareness, diversity, political equality, the rights of el movimiento Antifeminista en la contemporaneidad, desta-
women and the socially discriminated groups. cando el papel de la educación como mediación en el fortale-
Keywords: antifeminism; feminism; power relations. cimiento de la conciencia crítica, del respeto a la diversidad,
igualdad política, a los derechos de las mujeres y de grupos
socialmente discriminados.
Palabras claves: antifeminismo; feminismo; relaciones de
poder.

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INTRODUÇÃO ralismo. Os “Fundamentalistas afirmam: só há um


modo de vida válido, e os demais têm de sair da frente”
Quem confia nos dicionários (e desconfia do que (GIDDENS, 2004, p. 8), expressando um sentimento
ali não está) talvez tenha resistências em iniciar este de insegurança e de resposta caracterizada como uma
diálogo com o tema relativo ao Antifeminismo, aqui redução cognitiva defensiva ou ofensiva. Diante do
problematizado como objeto e traçado analítico. A risco dissolvedor da dúvida, reage-se com a afirmação
abordagem desta temática não constitui uma tarefa que ortodoxa. Todo fundamentalismo vem circundado de
se pretende de certa maneira inovadora, particular- uma potencialidade de autoritarismo e de violência,
mente nas áreas, particularmente na da educação, isto mediante o fortalecimento do preconceito, uma vez
porque ainda existe uma lacuna na produção do conhe- que este pode se constituir em uma fonte de violência
cimento em relação a estes assuntos. Quando optamos (GIDDENS,2005). Conforme Lourdes Bandeira:
por utilizar o termo lacuna, não nos referimos a um
completo vazio, porém, fazemos referência a aborda- A construção do preconceito e a visi-
gens que necessariamente não seguem o caminho que bilidade das discriminações, mostram-
-se duplamente associadas à condição
será percorrido ao longo do texto.
de emergência das diferenças: seja pela
O antifeminismo em suas diversas manifestações é
afirmação e manipulação da condição
compreendido em suas diversas dimensões, como um da diferença, seja por sua insistente
retrocesso no processo de modernização da sociedade, negação ou dissimulação” (BANDEIRA,
expressão de fisionomia da tradição, ou expressão de 2002, p.119).
preconceito, relacionada à problemática do “lugar”
da mulher como parte de grupos socialmente discri- Em ambos os casos, o não-reconhecimento das
minados na sociedade brasileira. Conforme Giddens diferenças ou a falta de respeito a elas se fazem presen-
(1999), as tradições têm de explicar-se, têm de tornar- tes no antifeminismo, criando novos padrões de vio-
-se abertas à interrogação ou ao discurso. No contexto lência e recusa explícita à comunicação ou a qualquer
de uma ordem cosmopolita e globalizadora, as tradi- potenciamento dialogal. Tudo isso evidencia a centra-
ções são constantemente colocadas em contato umas lidade atual da questão do preconceito discriminativo,
com as outras e forçadas a ‘se declararem’. A tradição é sobretudo porque qualquer iniciativa de reflexão con-
portadora de uma memória, de um código de sentido tribuirá para tentar superar um dos problemas mais
e geradora de uma continuidade, tem o papel funda- importantes que o século XX deixa de herança, qual
mental de atualizar o passado no presente, de restituir, seja, o da violência, que funda e fecunda cada vez mais
no ‘mundo vivido’ de um grupo humano ou de uma as relações sociais da diferença.
sociedade, a memória viva de uma fundação que a faz Conforme Rouanet (2001), a identidade funda-
existir no presente (GIDDENS, 2001). Com a perda de mentalista é uma identidade ameaçada, amedrontada,
referência do código de sentido garantido pela tradi- cheia de incertezas e, por isso, uma identidade que reage
ção, inúmeras pessoas passam a viver uma situação de agressivamente. É uma identidade que não tem cons-
incerteza estrutural. Cria-se uma condição de incerteza ciência de si mesma, mas se define pela delimitação ou
permanente com respeito ao que se deveria crer e ao negação de inimigos reais ou supostos. No mundo cos-
modo como se deveria viver; mas a mente humana abo- mopolita e plural torna-se muito difícil a preservação
mina a incerteza, sobretudo no que diz respeito a vários de identidades isoladas e estanques. Inevitavelmente
aspectos da vida. ocorre o contato e a relação de umas pessoas com
Nessa linha de reflexão, o ‘antifeminismo’ significa outras, a percepção da diversidade plural, de formas de
para nós um tipo de ameaça dos fundamentalismos, pensamento e ação e o imperativo da reflexividade. O
um fenômeno marcadamente moderno, expressão de conceito de reflexividade é de grande importância na
uma reação às influências da globalização e do plu- obra de Anthony Giddens. Para ele, “a reflexividade da

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vida social moderna consiste no fato de que as práticas O movimento feminista contemporâneo, reflexo
sociais são constantemente examinadas e reformadas à das transformações do feminismo original-predo-
luz de informação renovada sobre estas próprias prá- minantemente intelectual, branco e de classe média -
ticas, alterando assim constitutivamente seu caráter” configura-se como um discurso múltiplo e de variadas
(GIDDENS, 1991, p. 45). tendências, embora com bases comuns. Envolve diver-
Com a mudança do papel da tradição, uma nova sos movimentos, teorias e filosofias, advogando pela
dinâmica social vem introduzida, e com ela, a exi- igualdade entre homens e mulheres, além de envolver a
gência de um modo de vida mais aberto e reflexivo. campanha pelos direitos das mulheres e seus interesses.
Para Anthony Giddens, “a reflexividade da vida social Há quem defina “feminismo” como um conjunto hete-
moderna consiste no fato de que as práticas sociais rogêneo e frequentemente não convergente de teorias
são constantemente examinadas e reformadas à luz e práticas centradas no problema da “subordinação”
de informação renovada sobre estas próprias práticas, das mulheres e das condições e meios específicos para
alterando assim constitutivamente seu caráter”.(GID- suprimir esse problema.
DENS, 1991, p. 45). As mudanças em curso na cons- O feminismo é uma filosofia que reconhece que
cientização da sociedade traduzem-se na produção homens e mulheres têm experiências diferentes e rei-
de conceitos e teorias tendentes a interpretações des- vindica que pessoas diferentes sejam tratadas não
sas realidades, preparando o caminho tortuoso de sua como iguais, mas como equivalentes (FRAISSE, 1995;
superação. A intensidade das novas demandas coloca- LOURO, 1999; SCOTT, 1986). As feministas denun-
ram à prova a intolerância reinante e estimulam nossa ciam que a experiência masculina tem sido privilegiada
diversidade criadora. ao longo da história, enquanto a feminina, negligen-
ciada e desvalorizada. Elas demonstraram, ainda, que
ENTENDENDO O FEMINISMO E o poder foi e ainda é – predominantemente masculino,
ANTIFEMINISMO e seu objetivo original foi a dominação das mulheres,
especialmente de seus corpos (BUTLER, 2003; PATE-
Trabalhar conceitos como antifeminismo, MAN, 1993). Destacam que a opressão de gênero, de
demanda em primeiro lugar clarificar o seu oposto, o etnia e de classe social perpassa as mais variadas socie-
conceito de feminismo. Requer cuidados extras, pois o dades ao longo dos tempos, sustentada em práticas
campo científico ao qual nos inserimos é, sobretudo, discriminatórias, tais como o racismo, o classismo, a
um campo movediço, e passível de interpretações errô- exclusão de grupos de homossexuais e de outros gru-
neas. O termo “feminismo”, embora seja largamente uti- pos minoritários.
lizado como se seu significado fosse auto-evidente, está Para os propósitos do presente trabalho, o femi-
longe de ser unívoco, pois varia consoante os contex- nismo é entendido como uma posição política que
tos históricos e os emissores dos discursos – a palavra parte do reconhecimento da hierarquia social entre
adquire múltiplas significações. Nas palavras de Alves homens e mulheres, que a considera historicamente
e Pitanguy (1981, p.7), “torna-se difícil traduzir todo determinada e injusta, e busca eliminá-la. De acordo
um processo que tem raízes no passado, que se cons- com Sílvia Yannoulas (2001, p.70), “feminismos” refe-
trói no cotidiano, e que não tem um ponto de chegada. rem-se aos movimentos ou conjuntos de pensamento
Como todo processo de transformação, encerra con- que defendem a igualdade de direitos entre os homens
tradições, avanços, recuos”. Nesse plano, a dimensão e as mulheres. Ocorre o questionamento do papel
política compreende a inter-relação entre o bem-estar e das mulheres na sociedade, para se obter os mesmos
as condições econômicas, sociais e culturais que possi- direitos que os homens já têm desde o início do século
bilitam às mulheres disporem integral e livremente da XIX. Historicamente, as mulheres foram consideradas
sua capacidade de agenciamento. A condição de agente juridicamente incapazes e subordinadas aos homens.
se realiza pelo respeito e fortalecimento das mulheres. Nesse sentido, é necessário que haja uma mudança

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jurídica que proporcione a igualdade de gênero. Porém, binarismo. De fato, as próprias teorias sobre a subordi-
os posicionamentos ideológicos dos grupos feministas nação da mulher, muitas vezes, apontam para o domí-
variam, produzindo resultados diferentes em relação nio do macho através do trabalho (ENGELS, 1984). O
aos direitos das mulheres. Assim, os estudos sobre as gênero “mulher” está sujeito às relações desiguais de
vidas femininas — formas de trabalho, corpo, prazer, distribuição econômica e política. Como disse Guacira
afetos, escolarização, oportunidades de expressão e de Lopes Louro (1999, p. 37), “Os estudos feministas esti-
manifestação artística, profissional e política, modos veram sempre centralmente preocupados com as rela-
de inserção na economia e no campo jurídico e, mais ções de poder”.
recentemente, os estudos sobre masculinidades — aos Dada a sua característica transformadora, o femi-
poucos vão exigir mais do que descrições minuciosas e nismo pode ser interpretado a partir de três dimensões,
passarão a ensaiar explicações. quais sejam: a política, a crítica e a da práxis-orientada.
Cabe lembrar, quando se fala de feminismo de que Cada uma baseada em pressupostos de intervenção
nem todo movimento de mulheres é feminista. Elas social: a política, como um movimento para melho-
podem se associar para lutar por uma causa em comum rar as condições e as chances de vida das mulheres; a
que nada tem a ver com mulheres, ou que não interfira crítica, no questionamento intelectual às formas domi-
nos direitos das mulheres. Por exemplo, as mulheres nantes de conhecimento; e a da práxis-orientada con-
que lutam contra a carestia/inflação (como as fiscais cretizada em ações que alteram as relações de poder
do Sarney na década de 1980) não estão lutando pelos (WEINER, 1994). Emanam daí muitas das interpreta-
direitos das mulheres. Poderiam questionar por que ções desenvolvidas pelas feministas para definir e inter-
a responsabilidade por alimentar a família é somente vir nas ações políticas, sociais e institucionais.
da mulher, mas não o fizeram: sua luta é por uma No século XIX, o contra-ataque antifeminista
mudança que interfere em seu cotidiano, sem questio- manifestou-se em várias frentes e uma destas foi a da
nar seu papel na sociedade. educação. Com base em alegadas diferenças biológicas
Feministas e acadêmicos dividiram a história profundas entre homens e mulheres começou por se
do movimento em três “ondas”. Cada uma é descrita defender a tese de que as mulheres não eram educáveis,
como preocupada com diferentes aspectos dos mesmos no sentido de se lhes ministrar formação intelectual equi-
temas feministas. A primeira onda, que teria ocorrido valente à dos homens, por que elas eram seres intelec-
no século XIX e inicio do século XX, se refere princi- tualmente inferiores. Portanto, a sua falta de capacidade
palmente ao sufrágio feminino, movimentos do século aconselhava que não perdessem tempo com tal tarefa.
XIX e início do XX preocupados principalmente com o Com o correr dos tempos, o argumento da suposta
direito da mulher ao voto. Simone de Beauvoir (1990) incapacidade intelectual das mulheres mostrou-se
representa a “primeira onda” do feminismo, pois coube insustentável e então recorreu-se a outro tipo de abor-
a ela forjar o conceito de gênero quando disse “Nin- dagem. Já não se colocava em causa que as mulheres
guém nasce mulher, torna-se mulher”. A ideia, sin- pudessem ser educadas, mas debatia-se se elas deve-
tetizada na célebre frase, indica que desde o início as riam ser educadas e concluía-se pela negativa.
feministas estiveram inclinadas a pensar o feminino Ao constatarem que as mulheres educadas ten-
como construção cultural e não determinação bio- diam a casar mais tarde e a ter um menor número
lógica. Se isso é verdade, o binômio natureza/cultura de filhos, os médicos relacionavam a educação das
logo apresentou um vencedor: a cultura. Dessa forma, mulheres com pretensos danos na sua capacidade
o desafio era retirar a mulher da natureza já que as reprodutiva e aduziam uma explicação «científica»: o
polaridades sempre consideravam o arranjo original. estudo desviava energia dos ovários para o cérebro e
Donna Haraway (2004) afirma que por trás desse binô- em última instância acabaria por tornar as mulheres
mio estaria o discurso de apropriação da natureza, pela estéreis. Nesse sentido, quando os argumentos «cientí-
cultura e, logo, daqueles que vivem nas fronteiras do ficos» se mostravam menos convincentes, havia sem-

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pre o argumento moral que os ministros das diversas constituição das subjetividades feminina e masculina.
denominações religiosas esgrimiam: o conhecimento, Alguns dizem ser esta fase pós-feministas (mas que
tal como o fruto proibido por deus no paraíso, abria o autoras (como Judith Butler, 2003) dizem que não,
mundo às mulheres mas fechava-lhes o céu; o conhe- que são sim feministas). Considera-se que o sexo/
cimento acarretava a degradação moral das mulheres; sexualidade e, principalmente, a heteronormativi-
que o mesmo pudesse acontecer com os homens, era dade, pautam-se na finalidade reprodutiva da sexua-
piedosamente ignorado. O fato de os homens com lidade, já que o gênero também é produto social. Há
formação acadêmica também tenderem a casar mais dois elementos importantes nesta última perspectiva
tarde e terem menor número de filhos não parecia que precisam ser separados um do outro.
perturbar o argumento; tampouco os incomodava Por um lado, está a infinita possibilidade de
o fato de algumas pessoas. O que acontecia era que transformação social do corpo (dispositivos e tecno-
mulheres educadas decidiam ter menos filhos. logias córporeas, tais como piercing, silicone, tatua-
De qualquer modo, o objetivo era sempre o de gem, travestimento, entram em jogo para questionar
desencorajar as mulheres a cultivarem a sua mente, a a ordem binária que exclui os corpos abjetos), por
adquirirem conhecimentos sobre o mundo e a vida e a outro está o reconhecimento de que o corpo não é
procurarem a sua afirmação e realização pessoal, con- uma matéria amorfa a espera de sua transformação,
tinuando a remetê-las para a esfera privada da famí- mas ele também guarda uma configuração específica
lia e para os papeis exclusivos de esposa e mãe. Ainda que resiste a sua transformação, mas que não existe
hoje, apesar de todos os avanços, a velha nostalgia do per se, mas sim esse corpo foi constituído performa-
regresso ao lar e a estratégia de tornar a mulher bode ticamente ao longo de uma série de ações repetidas.
expiatório de todos os desajustamentos sociais conti- Nessa fase do feminismo percebe-se um encontro
nua a funcionar, muitas vezes com sucesso. entre o feminismo caracterizado como movimento de
A segunda onda (década de 60-80 a mais famosa) luta das mulheres e o feminismo acadêmico, a partir
lidava com a desigualdade das leis, bem como as desi- do momento em que surgem nas universidades cen-
gualdades culturais, e com o papel da mulher na socie- tros de estudos sobre a mulher, gênero e feminismo.
dade. Se refere às ideias e ações associadas com os Assim, por toda parte, resguardadas as especificidades
movimentos de liberação feminina, que lutavam pela e diferentes desdobramentos desse processo no tempo
igualdade legal e social para as mulheres. As feminis- e espaços mundiais, regionais, vai se dando, nas uni-
tas da “segunda onda” detectam uma abordagem muito versidades, o agrupamento e integração de pesquisa-
pequeno-burguesa nos estudos de gênero e passaram a doras – que em maioria já trabalhavam o tema Mulher
reivindicar uma legislação específica que atendesse aos mais ou menos isoladamente – em núcleos de estudos
interesses das mulheres de todas as classe sociais (com e pesquisas (COSTA e SARDENBERG, 1994). Assim,
creches, atendimento médico adequado, política de desde a retomada do projeto feminista em meados dos
aborto etc.). Na visão dessas feministas o Estado pode- anos 60, cresce, por toda a parte e com destacado vigor,
ria ser o motor das melhorias. o interesse em estudos e pesquisas sobre mulheres e
A terceira onda, que teve inicio na década de relações de gênero, dando margem ao surgimento de
1980 a 1990, e vem até os dias atuais, seria uma con- um campo de reflexão específico que atravessa dife-
tinuação – e, segundo alguns autores, uma reação às rentes ciências e tradições disciplinares.
suas falhas. Concentra-se na análise das diferenças, da Desde a década de 1980, o movimento feminista
alteridade, da diversidade e da produção discursiva da tem se aproximado de causas sociais relacionadas a
subjetividade. Desloca o estudo sobre os sexos e sobre outros grupos e minorias, relacionando-se com movi-
as mulheres para o estudo das relações de gênero. mentos pelos direitos dos gays, dos negros e de outras
Nessa fase do feminismo, o desafio concentra-se em minorias. Há, desde então, uma clara relação, especial-
pensar a igualdade e a diferença simultaneamente na mente com os movimentos que lutam contra a homo-

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fobia, em especial, o que se deve também ao fato de OS MOVIMENTOS ANTIFEMINISTAS


muitas lideranças serem lésbicas que sofreram algum
tipo de preconceito, não só por ser mulher, mas tam- Os homens, durante muitos séculos, gozaram dos
bém por sua orientação sexual. Há hoje em dia, inclu- benefícios e de uma cultura patriarcal, colocando-os
sive, um movimento chamado de pós-feminismo, que em um ligar privilegiado em relação ao poder. Afinal,
não é propriamente dito, um movimento antifeminista, ao cabo, eles sentem medo de perder o poder e o papel
porém é um movimento que critica especialmente as de machos dominantes. Neste sentido, o patriarcado
atitudes da chamada terceira “onda” feminista. pode ser definido como um sistema sexual de poder no
O cenário do século XX e inicio do século XXI qual o homens possuem poder e privilégio econômico e
favoreceu a emergência de diversos tipos de manifes- controle sobre o corpo das mulheres através de diversas
tações políticas e registrou conjunturas traumáticas, manifestações (CRUZ, 2005).
como as originadas em mobilizações pró-autoritárias Na luta contra a exclusão social, as mulheres se
(nazismo, fascismo), até as de caráter libertário, gera- dirigiam da esfera privada ao espaço público para nele
das por movimentos em defesa da paz, do meio-am- atuarem como sujeitos e agentes das transformações
biente, dos direitos humanos e da cidadania. Nessa econômicas, políticas e socioculturais em diferentes
perspectiva, a cidadania como um princípio de direito sociedades. Tais avanços, contudo, ainda são contidos
jurídico-social dado por certo é uma ficção. Refere- por várias formas de discriminação que dificultam a
-se, antes, a sujeitos englobados no Estado-Nação. Os promoção da igualdade entre os gêneros e o fortale-
intitulamentos da cidadania têm sido conquistados cimento da cidadania feminina. Independe disso, é
tão-somente por meio de lutas e contestação. Gênero, inquestionável o fato de o século XX ser identificado
raça, etnia, identidade sexual são vetores necessários como o século das mulheres. Compreende-se que as
da cidadania social e política. Os embates e demandas formas de oposição nem sempre se manifestam de
de grupos específicos revelam que a cidadania é um forma mais direta e frontal, a ponto de negar o direito
repositório de interesses divergentes que desfazem sua à igualdade, mas que há um discurso sutil, que tenta
pretensão universalista. Esse mesmo cenário foi palco desmoralizar o movimento feminista, classificando
de mudanças profundas e aceleradas na condição suas protagonistas como puritanas ou moralistas. Essas
feminina. Com a intensificação dos processos libertá- dificuldades revelam uma indisposição para repensar,
rios (RAGO, 2002). do ponto de vista histórico e social, a estrutura e as
Como sustenta Manuel Castells (2000, p.170), o relações de dominação que definem o modo de organi-
feminismo constitui uma das mais importantes revo- zação e funcionamento de uma sociedade, sobretudo a
luções, porque remete às raízes da sociedade. “nas brasileira, e mais uma certa fixação com a preservação
últimas décadas do segundo milênio observa-se um de uma auto-imagem tradicional e conservadora que se
processo de conscientização de diferente intensidade, alimenta da ideologia dominante.
dependendo da cultura e do país, porém de rápida Apesar das conquistas femininas desde a década
difusão e de caráter irreversível: uma insurreição de 60, persiste um discurso contra o feminismo. As
maciça e global das mulheres contra sua opressão,” Se Refutações ao feminismo sinalizam que as raízes do
a avaliação de Castells refere-se ao contexto mundial, patriarcado está vivo na sociedade brasileira, revelam
em relação à América Latina tem-se argumentado que um descompasso da cultura letrada mediante a ideo-
o século vinte marca o início de uma revolução silen- logia do antifeminismo, entre nós, enraizado como
ciosa, um processo de emancipação pacífico, porém uma idéia muito própria do lugar, na medida em que
profundo, a dignificação da mulher, a defesa dos foi se consolidando no curso do próprio desenho do
direitos da mulher, que causou um impacto a mais na desenvolvimento econômico e da organização social
América Latina com o desenvolvimento da mulher e a brasileira. Esse processo emerge em decorrência das
equidade de gênero. relações materiais de produção e da consolidação de

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um pensamento patriarcal e senhorial que ancorou um exemplo, o uso de sites, blogs e outras redes sociais que
sistema social de relações de poder em que formas de podem também atuar na disseminação da intolerância
misoginia e de racismo foram instrumentais na mate- a diversidade. Nota-se que, ao mesmo tempo em que a
rialização dos interesses de classe da elite dominante. cultura digital possibilitou acesso e troca de informa-
No Brasil, pode-se afirmar que a oposição à luta ções, também acaba por disseminar a intolerância à
das mulheres e ao feminismo se alimentou e ganhou igualdade de gênero.
força justamente através da retórica da família – da Opiniões e agressões são disparadas com a mulher
grande e harmoniosa família miscigenada cristã brasi- uma velocidade que em nem sempre podemos acom-
leira, na visão idealizada de Gilberto Freyre(1987), em panhar, a partir da utilização da cultura de massa pas-
seu clássico Casa-Grande & Senzala –, uma retórica samos a observar um avanço na escolarização de outros
que, amparada pelo Estado e pela Igreja desde o pas- homens e outras mulheres, bem como de jovens da
sado, vem jogando para baixo do tapete toda a tragédia cultura da violência, da homofobia, direitos civis, e da
decorrente do autoritarismo, da violência, da luxúria e antifeminista, questionando o lugar e atuação política
da bastardia que marca nossa história. É sintomático das mulheres hoje. Para exemplificar nosso argumento,
que a literatura daquela época tenha adquirido o sta- realizamos uma pesquisa em site de busca acerta e
tus representativo de literatura nacional através do aval encontramos dezenas de sites e blogs com perspectiva
de historiadores e de críticos literários, se abstendo de antifeminista. Dessas dezenas pode-se citar o Antifemi-
contar essas histórias ou, pelo menos, silencie sobre a nismo, pois em nossa visão se destaca, na disseminação
real dimensão dos infortúnios da brasilidade. de intolerância as mulheres e ao movimento feminista.
Na contemporaneidade, emergem diferentes O blog Antifeminismo tem como missão “comba-
expressões do antifeminismo, com base em criticas, de ter e varrer da face da Terra e do Universo a ideologia
intolerância as diferenças e desigualdades sociais, arti- do Feminismo. Para tanto, nossa atuação está voltada
culados com outros “marcadores sociais” que procuram em desmascarar as mentiras do movimento feminista
restringir as reinvindicações feministas com relação a e combater todas as propostas que visam aumentar
ampliação dos direitos de grupos socialmente vulnerá- o poder do feminismo”. Como se percebe que o dis-
veis como: mulheres, negros, homossexuais, militantes curso dos seus autores é pautado no pensamento anti-
contra o aborto ou contra a prostituição entre outros. feminista, todas suas ações são de enfrentamento aos
Há os movimentos antifeministas, que procuram argumentos do movimento feminista, principalmente
restringir os direitos das mulheres, como é o caso das a igualdade de gênero. Questiona-se as conquistas das
militantes contra o aborto ou contra a prostituição. Tam- mulheres feministas na modernidade, ou mesmo, o
bém é o caso dos grupos que defendem que as mulheres processo de “estrago” que elas estão fazendo com outras
têm o direito de votar, mas que não devem se candidatar mulheres. A expectativa do blog é lutar para banir o
porque o seu papel na sociedade é ser mãe e rainha do pensamento feminista, para que se possa ter nova-
lar – e qualquer atuação política significaria a negação mente a mulher ideal (passiva, obediente, amorosa,
de sua feminilidade. É bastante comum que esses movi- cuidadosa) criada pelo patriarcado. Essa luta segundo
mentos, predominantemente vinculados a setores de os argumentos de seus autores, é para contribuir para
direita, se intitulem feministas (porque falam de direi- uma geração de mulheres mais passivas. Como prin-
tos das mulheres) ou neofeministas (porque pregam um cipais desafios, pretende fazer conexão com outros
“feminismo” de retorno aos papéis tradicionais). Mas são movimentos, como os religiosos, bem como desmas-
movimentos antifeministas porque não respeitam a von- carar os “verdadeiros objetivos nefastos do feminismo,
tade das mulheres, procurando cercear seus direitos e tais como a legalização da pedofilia, do aborto, do
sua liberdade de escolher o que é melhor para suas vidas. infanticídio e do homossexualismo, contra toda moral
Com a introdução de novas tecnologias intera- e bons costumes”, como está exposto em algumas das
tivas, ocorrem importantes “mediações”, como por matérias postadas na página: “Como definir a marcha

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das vadias, feministas, os seus protestos e a sua luta “pela PARA CONCLUIR
liberdade”; Ficar em forma ou engordar? A luta feminista
a favor da obesidade maquiada como “direito de esco- Vivemos hoje no começo do século XXI, num
lha”; O que as líderes feministas pensam sobre sexo, mundo intensamente inquietante, inundado pela
casamento e sobre o homem?; Caso de gênero e ditadura mudança, marcado por graves conflitos, tensões e divi-
feminista I: generalizando pelas minorias; Erin Pizzey: sões sociais. Ao mesmo tempo, é um mundo repleto de
mulher, trabalhadora humanitária e ameaçada de morte maiores promessas para o futuro. Temos mais possibi-
pelas feministas; Sexo e o perigo do relativismo cultural lidades de controlar melhor os nossos destinos e de dar
moderno: o desejo feminista de ser um cafajeste de pés- um outro rumo às nossas vidas do que era inimaginá-
simos valores; Entre mulheres: A guerra das feministas vel pelas gerações anteriores.
contra a depilação feminina. Nessa perspectiva, as ações Longe de esgotar o assunto, o presente trabalho ape-
do blog são pautadas na intolerância a diferença, prin- nas se interessa pelo resgate de algumas categorias, for-
cipalmente, ao controle do corpo. As matérias são de temente criticadas pelas principais teóricas feministas.
cunho sensacionalista, que apenas contribuem para a Cremos que os recortes operados pelo antifeminismo (e
intensificação do ódio, do preconceito e da expressão alguns outros movimentos recentes) nos obrigam a refle-
da violência contra a mulher, destacando a necessidade tir sobre novos rumos no processo de mudança na socie-
de enfraquecer o movimento feminista na contempo- dade. Neste ponto, destacamos a importância da educação
raneidade para um possível processo de retrocesso ao como mediação no fortalecimento da consciência crítica,
silenciamento feminino. A partir de argumentos tradi- do respeito à diversidade, igualdade política, aos direitos
cionalistas, as matérias propõem um era de incerteza das mulheres e de grupos socialmente discriminados.
causada pelas feministas, não mais de reinvindicações
de direitos, mas sim de banalização da moral. BIBLIOGRAFIA
Embora existam sites que destacam ou incentivam
o Antifeminismo, a mídia também tem contribuído ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é
muito com as pautas dos movimentos minoritários. Da feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
mesma forma, ocorre o crescimento, inserção de novas
pautas na mídia referentes a diversas questões, entre BANDEIRA, Lourdes Batista; SORIA, Análía. Precon-
as quais aquelas relacionadas à violência de gênero, ceito e discriminação como expressões de violência. Rev.
homofobia, direitos dos homossexuais, indicando não Estud. Fem [online]. 2002, vol.10, n.1, pp. 119-141.
apenas uma mudança na postura assumida pela mídia,
cedendo maior espaço para as novas temáticas, mas um BEAUVOIR, SIMONE. O segundo sexo. Rio de Janeiro:
embate social, referente às questões antes tratada no Nova Fronteira. 1990.
espaço privado. Contudo, no momento em que a mídia
oferece espaço para que essas discussões argumenta- BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e
tivas aconteçam, ela pode contribuir para a constitui- subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civili-
ção de um importante espaço democrático de debate. zação Brasileira, 2003.
Isto porque a mídia cede maior espaço para a inclu-
são de novas temáticas e pautas, referentes a diversas CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. A era
questões, entre as quais aquelas relacionadas à violên- da informação: economia, sociedade e cultura. 2ª ed.
cia de gênero, homofobia, direitos dos homossexuais, Trad. Klauss B. Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
mas que existe ainda um embate social. Neste sentido,
observa-se não apenas uma mudança na postura assu- COSTA, Ana Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília
mida pela mídia, referente às questões consideradas Maria Bacellar. Teoria e práxis feministas na academia:
tabus e antes tratadas apenas no espaço privado. os núcleos de estudos sobre a mulher nas universida-

REVISTA DE ESTUDOS DE CULTURA | Nº 01 | Jan.Abr./2015


42 | Maria Helena Santana Cruz; Alfrancio Ferreira Dias

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OS AUTORES
GIDDENS, Anthony. Caderno “Mais!”. O cisma do
Ocidente. In: Folha de São Paulo, Domingo 7/3, 2004. Maria Helena Santana Cruz Pós-Doutora em Sociologia da
Educação pela Universidade Federal de Sergipe. Doutora
e Mestra em Educação pela Universidade Federal da Bahia
-------------. As consequências da modernidade. São (UFBA), Coordenadora do Grupo de Pesquisa: “Educação,
Paulo: Unesp, 1999 Formação, Processo de Trabalho e Relações de Gênero”,
Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e
Serviço Social da UFS. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e
------------- Para além da esquerda e da direita. São Pesquisas Interdisciplinares sobre a Mulher e Relações Sociais
Paulo: Unesp, 1995. de Gênero (NEPIMG/UFS); email: helenacruz@uol.com.br
Alfrancio Ferreira Dias Doutor em Sociologia pela Univer-
sidade Federal de Sergipe. Professor do Programa de Pós-
HARAWAY, Donna. Gênero para um dicionário marxista: -graduação em Educação da UFS. Pesquisador do Grupo de
A política sexual de uma palavra. Campinas: Cadernos Pesquisa: “Educação, Formação, Processo de Trabalho e Rela-
Pagu, n. 22, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ ções de Gênero” e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Inter-
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cpa/n22/n22a09.pdf (NEPIMG/UFS). E-mail: diasalfrancio@hotmail.com.

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REVISTA DE ESTUDOS DE CULTURA | Nº 01 | Jan.Abr./2015


Maria Regina Barcelos Bettiol

O ANTIFRANCESISMO NO BRASIL

RESUMO:
Se revisitarmos a História do Brasil, os franceses estiveram conosco desde os pri-
mórdios da nossa colonização, inegavelmente marcaram presença na vida brasi-
leira, ainda que essa participação tenha sido de forma pontual, isto é, no século
XIX através da Missão Artística (1816) e no século XX através da fundação da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (1934) em São Paulo. A França
protagonizou um papel de destaque em nossas artes e em nossa formação inte-
lectual e teve, portanto, a sua participação em nossa história. Ao consultarmos os
nossos documentos históricos, percebemos nitidamente a forma ambivalente que
os brasileiros sempre reagiram em relação à cultura francesa: ora assimilando-a de
forma acrítica, tentando implementá-la em território nacional sem uma reflexão
mais profunda da nossa realidade, ora rejeitando-a de uma forma um pouco cari-
catural, ou seja, desvalorizando completamente o legado deixado pela França ao
nosso país. Esse grande debate ideológico que mobilizou políticos e intelectuais,
brasileiros e estrangeiros durante mais de um século, polarizou-se em duas corren-
tes: uma adepta ao francesismo e outra, ao antifrancesismo. Em sendo assim, ao
estudarmos as origens do antifrancesismo em nosso país, defrontamo-nos com um
discurso que paradoxalmente sempre coexistiu com a apologia ao francesismo em
suas expressões sociais, culturais, políticas e literárias, mas que, no início no século
XX, tomou outros rumos dentro de uma nova configuração internacional.
Palavras-Chave: missão artística; francesismo; cultura; Estados Unidos.

* Doutora em Letras (Literatura


Comparada) pela UFRGS.
E-mail: mrbettiol@yahoo.com.br

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44 | Maria Regina Barcelos Bettiol

ANTI-FRENCHISM EL ANTIFRANCESISMO EN BRASIL

ABSTRACT: RESUMEN:
If we revisit the history of Brazil, French people have been Al revisitar la historia de Brasil, los franceses han estado con
with us since the dawn of our colonization. They undeniably nosotros desde los albores de nuestra colonización, sin lugar a
marked presence in Brazilian life. Even though this partici- dudas marcaron presencia en la vida brasileña, aunque dicha
pation had been in a timely manner, like in the nineteenth participación ha sido tan puntual, esto es, en el siglo XIX a
century through Arts Mission (1816) and in the twentieth través de la Misión Artística (1816) y en el siglo XX a través
century by the foundation of Faculty of Philosophy, Letters de la fundación de la Facultad de Filosofía, Letras y Ciencias
and Human Sciences (1934) in São Paulo. France staged a Humanas (1934) en São Paulo. Francia protagonizó un papel
major role in our arts and our intellectual training and, there- destacado en nuestras artes y nuestra formación intelectual
fore, had their participation in our history. When we consult y tuve, por lo tanto, su participación en nuestra historia. Al
our historical documents, we clearly perceive the ambivalent consultar nuestros documentos históricos, percibimos clara-
way that Brazilians always reacted in relation to French cul- mente la forma ambivalente que los brasileños siempre reac-
ture: sometimes assimilating it uncritically, trying to imple- cionaron en relación con la cultura francesa: sea asimilándola
ment it in national territory without a deeper reflection of de manera acrítica, intentando implementarla en el territorio
our reality, sometimes rejecting that somewhat caricatured, nacional sin una reflexión más profunda de nuestra realidad,
i.e. completely devaluating the legacy left by France to our ya sea rechazándola de forma un tanto caricaturizado, es
country. This big ideological debate that mobilized politi- decir, menospreciando el legado dejado por Francia a nuestro
cians and intellectuals, Brazilians and foreigners for more país. Ese gran debate ideológico que movilizó a los políticos e
than a century, became polarized into two streams: an adept intelectuales, brasileños y extranjeros por más de un siglo, se
to Frenchism and another to Anti-Frenchism. That being so, polarizó en dos corrientes: una adepta al francesismo y otra
as we study the origins of anti-Frenchism in our country, we al antifrancesismo. De ser así, mientras estudiamos los oríge-
are faced with a speech that paradoxically always coexisted nes de la antifrancesismo en nuestro país, nos enfrentamos a
with the advocacy of Frenchness in their social, cultural, un discurso que paradójicamente siempre coexistieron con
political and literary expression, but that in the early twen- la apología al francesismo en sus expresiones sociales, cultu-
tieth century took other paths within a new international rales, políticas y literarias, pero que, al principio del siglo XX,
configuration. tomó otras direcciones dentro de una nueva configuración
Keywords: artistic mission; frenchism; culture; USA. internacional.
Palabras claves: misión artística; francesismo; cultura; Esta-
dos Unidos.

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O ANTIFRANCESISMO NO BRASIL | 45

QUANDO FALAMOS em cultura brasileira, temos pela França ao nosso país. Esse grande debate ideoló-
sempre uma tendência em falar no singular, e, de forma gico que mobilizou políticos e intelectuais, brasileiros
homogênea, de uma fenômeno que é plural, complexo e estrangeiros durante mais de um século, polarizou-se
e heterogêneo. Nas palavras de Bosi (1992, p. 308), em duas correntes: uma adepta ao francesismo e outra
“estamos acostumados a falar em cultura brasileira, ao antifrancesismo.
assim, no singular, como se existisse uma unidade pré- Ao estudarmos as origens do antifrancesismo em
via que aglutinasse todas as manifestações materiais e nosso país, defrontamo-nos com um discurso que para-
espirituais do povo brasileiro”. Nesse sentido, devemos doxalmente sempre coexistiu com a apologia ao france-
lembrar que a cultura brasileira recebeu o influxo de sismo em suas expressões sociais, culturais, políticas e
outras culturas, entre elas, a cultura francesa. literárias mas que no início no século XX tomou outros
Se revisitarmos a História do Brasil, os franceses rumos dentro de uma nova configuração internacional.
estiveram conosco desde os primórdios da nossa colo- Na história da cultura brasileira há um grande
nização. Em seu famoso livro Um engenheiro francês no debate em torno do termo francesismo, muitas vezes
Brasil, Gilberto Freyre (1960, p. 206) explica que o que usado como sinônimo de influência francesa. Para
ligou inicialmente a França ao Brasil foi o contrabando entendermos o que significou o antifrancesismo em
de madeiras: “os franceses madrugaram, sob forma de nosso país, devemos inicialmente entender o que sig-
piratas, aventureiros e negociantes nas terras descober- nificou exatamente o francesismo e diferenciá-lo do
tas por portugueses”. conceito de influência francesa.
Mesmo que a França nos séculos XVI e XVII não O conceito de francesismo desenvolvido por
tenha conseguido quebrar o domínio português, espe- Álvaro Manuel Machado em seu livro O Francesismo
cialmente se lembrarmos das tentativas fracassadas da na Literatura Portuguesa nos parece o mais pernin-
França Antártica (1555-1560) e da França Equinocial tente. Mesmo que Álvaro Manuel Machado esteja se
(1612-1614), os franceses tiveram contato com gente referindo ao fenômeno francesista em Portugal, o
índigena em terras brasileiras, como nos informou Brasil vivenciou experiência semelhante em relação à
Afonso Arinos de Mello Franco (1937) em seu célebre França primeiramente por sermos colônia de Portugal
livro sobre o índio brasileiro e a Revolução Francesa. e , depois, quando a França tornou-se uma referência
Os franceses inegavelmente marcaram presença cultural no mundo, especialmente para jovens nações
na vida brasileira, ainda que essa participação tenha como o Brasil.
sido de forma pontual isto é, no século XIX através Para Álvaro Manuel Machado (1984, p.19), há
da Missão Artística (1816) e no século XX através da uma diferença entre os termos francesismo e influência
fundação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências francesa, pois houve obviamente uma influência fran-
Humanas (1934) em São Paulo. Como nos esclarece cesa na evolução da cultura portuguesa desde a Idade
Schwarcz (2008), a França protagonizou um papel de Média, mas o que o autor classifica como francesismo
destaque em nossas artes e em nossa formação inte- representa a fixação de uma imagem da França, da sua
lectual, tendo, portanto, a sua participação na História cultura em geral e da sua literatura em particular que
do Brasil. começou a processar-se no século XVIII e que assumiu
Ao consultarmos os nossos documentos histó- a sua plenitude no século XIX.
ricos, percebemos nitidamente a forma ambivalente Em linhas gerais, Machado dividiu o fenômeno
que os brasileiros sempre reagiram em relação à cul- francesista em duas etapas: a primeira etapa corres-
tura francesa: ora assimilando-a de forma acrítica, ponde ao “francesismo” romântico em que associamos
tentando implementá-la em território nacional sem a imagem da França à cultura iluminista e ao mito da
uma reflexão mais profunda da nossa realidade, ora Revolução Francesa, e a segunda etapa corresponde
rejeitando-a de uma forma um pouco caricatural, ou a um francesismo esteticamente e ideologicamente
seja, desvalorizando completamente o legado deixado mais complexo já mais para o final do século XIX,

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46 | Maria Regina Barcelos Bettiol

em que associamos a imagem da França à moda e aos minação da cultura francesa no Brasil, principalmente
costumes sociais. entre as nossas elites.
A título de esclarecimento, devemos mencionar Como sabemos, o projeto artístico idealizado por
que Brito Broca (1960) e outros autores brasileiros ado- Joachim Lebreton foi muito importante para a urba-
taram o termo parisianismo ao invés de francesismo nização da cidade do Rio de Janeiro. Segundo Ribeiro
por entender que o imaginário dos brasileiros era mais (1996, p. 21), “a urbanização, apesar de criar muitos
focado culturalmente e ideologicamente na cidade de modos citadinos de ser, contribuiu para ainda mais
Paris. Especialmente a cidade do Rio de Janeiro, que na uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, con-
época era o centro difusor da cultura brasileira , espe- tudo, borrar suas diferenças”. Certamente, o urbanizar
lhava-se em Paris. passou a ser sinônimo de “civilizar”, e mais do que isso,
Contudo, desde o século XVI, encontramos vestí- foi uma tentativa de homogeneizar os brasileiros do
gios de um discurso antifrancesista em nosso território. ponto de vista cultural.
Podemos considerar que houve um primeiro movi- Além de permitir o estudo da língua francesa, D.
mento antifrancesista liderado pela Igreja Católica e João VI trouxe um grupo de profissionais franceses
pelos nossos representantes do poder local que seguiam de várias áreas que aportaram em nosso país: artistas,
as diretrizes de Portugal, um antifrancesismo que vigo- engenheiros, mestres, parteiras, comerciantes, cozi-
rou durante os primeiros séculos do Brasil Colônia. nheiros, pasteleiros, modistas, retratistas, propagan-
Conforme Moreira d´Azevedo (1892) em seu estudo distas de drogas, representantes de indústrias trazendo
sobre a Instrução Pública nos Tempos Coloniais, preva- sua ciência, sua literatura e sua arte para o Brasil. Em
leceu por muito tempo no Brasil Colônia o preconceito poucas palavras, D.João VI trouxe, no dizer de Freyre
contra o idioma francês, considerado como língua de (1960, p.228), “agentes de cultura mais vantojosamente
libertinos e ateus. aparelhados para impressionar o povo atrasado.”
Temos ainda notícias, através das denúncias ao Podemos rastrear a presença francesa não ape-
Santo Ofício e pelas depoimentos de viajantes, que nas através de documentos históricos, autobiográfi-
a França e os franceses que viviam entre a população cos, relatos de viajantes, mas particularmente através
portuguesa não eram bem vistos. No dizer de Freyre dos anúncios de jornais em que atestamos como a
(1960, p. 218): “Por mais que procurassem viver, ou presença francesa foi significativa no Brasil do século
simular viver, dentro da uniformidade portuguesa e XIX. Encontramos anúncios de todos esses profissio-
católica de estilos de vida, alguns terão sido elementos nais franceses ora anunciando os seus próprios servi-
de diferenciação no sentido francês”. Logo, no Brasil ços, ora respondendo aos apelos de uma elite brasileira
Colônia a língua francesa era considerada suspeita de que requisitava os seus serviços. Ao lermos esses anún-
heresia e o livro francês, pelas ideias que continha, uma cios fica mais do comprovado que os franceses soube-
ameaça à organização social e política da colônia. ram fazer propaganda do seu comércio, “vender” suas
Todavia, o antifrancesismo como discurso perdeu ideias, costumes e estilo de vida aos brasileiros.
força e legitimidade com uma série de medidas que O renomado historiador Nicolau Sevcenko, em
foram adotadas por D. João VI ao fazer a transferência seu texto a A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos
de sua corte para o Brasil. Não vamos adentrar nesse do Rio, usou como fonte de pesquisa os textos publi-
pormenor histórico pois não se sabe ao certo se a ideia cados em jornais para avaliar o alcance da presença
de trazer a Missão Artistica Francesa ao Brasil foi pro- francesa no Brasil. Como afirma o autor (SEVCENKO,
priamente uma iniciativa de D. João VI uma vez que 1998, p. 535): “as elegâncias necessariamente deveriam
alguns autores com Lilia Moritz Schwarcz (2008, p.176) ser francesas”, e menciona o “acréscimo simbólico com
questionam essa hipótese, mas o fato é que a língua que as roupas e adereços de luxo importados fariam
francesa deixou de ser uma ameaça, ganhou prestígio qualquer criatura “crescer”desproporcionalmente aos
de língua literária e diplomática o que permitiu a disse- olhos da sociedade”.

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O ANTIFRANCESISMO NO BRASIL | 47

Essa abertura política, econômica e cultural que larmente os franceses, de tirarem os empregos dos bra-
D.João VI concedeu à França, teve continuação após a sileiros: “Como empregar-se no comércio ou dedicar-se
independência do Brasil pois houve uma necessidade às artes um brasileiro se “nossas cidades superabundão
de criarmos uma imagem diferenciada que nos disso- de ourives, de alfaiates, de pedreiros, de marcineiros,
ciasse da imagem de Portugal. Dessa forma, o france- de tanoeiros, até de barbeiros de todas as partes do
sismo representou inicialmente para os brasileiros a mundo?” ( FREYRE, 1960,p. 284)
busca de um modelo de identidade nacional. Ademais, Já o jornal O Regenerador Brasileiro combatia
no século XIX, a França em termos de contexto inter- abertamente o comércio europeu fosse ele português,
nacional era considerada o centro cosmopolita por inglês ou francês. Na esteira do jornal O Regenerador
excelência, o núcleo da cultura e da civilização euro- Brasileiro, a Aurora Fluminense, em 14 de feveiro de
peia. O Brasil não foi, portanto, o único país a vivenciar 1828, queixou-se dos comerciantes franceses: “Que
esse fenômeno francesista em seu território. especie de capitães nos têm trazido os seus patrícios?
Mas retornando ao caso específico do Brasil, o Que negociantes, que especuladores, que grandes capi-
nosso panorama político pouco havia mudado em rela- talistas têm vindo aqui estabelecer-se? Serão esses que
ção ao tempo do Brasil Colônia, no parecer de Chacon enfeitam a rua do Ouvidor com os seus bonitos arma-
(1965, p. 16), “a França era festejada por reacionários e zéns de modas e nouveautés?” (FREYRE, 1960, p. 285 )
progressistas, como matriz intelectual donde importa- Essa oposição patriótica em relação aos franceses,
vam as ideias que convinham a cada grupo, embora por encontrou ressonância na famosa Revolta da Praieira
motivos diferentes”. também denominada como Insurreição Praieira
Entretanto, o avanço do comércio francês e de ou Revolução Praieira que ocorreu em Pernambuco
suas técnicas começou a ser um empecilho aos interes- entre 1848 e 1850 e foi tão bem estudada por Izabel
ses econômicos nacionais fazendo com que uma nova Andrade Marson (2009). Esse episódio bastante con-
onda ou, melhor dizendo, um segundo movimento troverso da História do Brasil não se resume apenas a
antifrancesista ressurgisse no século XIX e tivesse a um movimento antilusitanista mas antieuropeu. Por-
nossa imprensa como sua principal porta-voz. Passa- tanto, também podemos classificá-lo de antifrancesista.
remos em revista trechos de alguns desses polêmicos Mas um dos responsáveis por essa campanha anti-
artigos publicados em nossos jornais. francesista que ganhou espaço em nossos jornais foi o
Como é de conhecimento geral, em 1840, o Recife ilustre professor da Faculdade de Direito do Recife, o
abrigava muitos franceses, no Diário de Pernambuco de 16 senhor Tobias Barreto. Germanista convicto, Barreto
de novembro de 1841 um patriota mais exaltado protestou foi uma figura importante da história cultural do Bra-
contra a intervenção estrangeira em nosso país, particu- sil, o referido autor (2000, p.19) costumava dizer que
larmente a intervenção dos franceses em nossos negócios: “os pensadores alemães, em quase todos os domínios
“Qual é o ramo de industria por mais miudo que seja não da inteligência, andavam dez anos, pelo menos, adiante
tenha sido tentado pelo Estrangeiro para tirar do Brasil dos franceses”.
todo o lucro imaginável? (FREYRE,1960, p. 284) Essa corrente germanista liderada por Barreto,
Outro jornal pernambucano, O Carapuceiro, em tentou quebrar a forte influência francesa na vida coti-
1842 pronunciou-se contra o acentuado afrancesa- diana e intelectual dos brasileiros, e conquistou alguns
mento em que vivia Pernambuco: “Tudo se quer à adeptos, entre eles, Silvio Romero. Contudo, a campa-
Francesa” (FREYRE,1960, p. 230) fazendo uma severa nha de Tobias Barreto não foi forte o suficiente para
crítica ao presidente da província Francisco do Rêgo combater o discurso francesista reinante. Dito de outra
Barros que fora educado em Paris e transformara o forma, a apologia ao francesismo persistiu em nossa
Recife numa espécie de Paris nos trópicos. literatura e em nosso cotidiano, por muito tempo
O jornal O Sete de Setembro de 31 de outubro de Vimos anteriormente que principalmente a ques-
1845, acusou os “especuladores estrangeiros”, particu- tão econômica foi um dos vetores do antifrancesismo

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48 | Maria Regina Barcelos Bettiol

em nosso país mas agora vamos nos deter mais detalha- bro de 1908, declarou Euclides da Cunha: “Quem sabe
damente nas vertentes francesista e antifrancesista no se eu não poderia lecionar a História sul-americana
campo intelectual brasileiro. Sabemos que, com a inde- em Paris?(…)Queria comunicar a civilização europeia
pendência do Brasil, era preciso buscar não somente a o nosso americanismo, uma relação de troca e não
nosssa identidade política mas também cultural. Dessa subordinação”.
maneira, a fundação da Academia Brasileira de Letras Mas nem todos os escritores brasileiros estavam
em 1897 foi um dos primeiros passos para conquistar- de acordo com esse francesismo exagerado.Em seu
mos a nossa tão sonhada autonomia literária. livro intitulado Cinematógrafo, o escritor João do Rio
Criada aos moldes da Academia de Letras Fran- retomou o discurso antifrancesista em suas crônicas,
cesa, a nossa Academia Brasileira de Letras, no dizer de denunciou o que chamou de “epidemia francesa” em
Broca (1960, p. 46), “se havia constituído pelo modelo nosso país Entre muitas das suas crônicas, vale destacar
francês da Casa de Richelieu”. Ainda tentou-se fazer duas crônicas que sintetizam essa discussão.
uma réplica da Academia Goncourt que acabou fra- Em uma crônica denominada Chers Confrères,
cassando, mas todas as duas instituições foram criadas João do Rio (2009, p.162) expressa, através da voz de
tendo como referência instituições francesas. uma das suas personagens, a ganância dos franceses
Ao lermos a correspondência trocada entre sempre movidos pela cobiça e pela ambição de fazer
Machado de Assis e Joaquim Nabuco ,e que foi organi- dinheiro fácil no Brasil. Essa crônica é interessante
zada por Graça Aranha (2003), tomamos conhecimento pois desmistifica a supremacia intelectual dos france-
das preferências literárias não apenas dos dois escrito- ses, inclusive diz o quanto os franceses eram ignorantes
res em questão mas de toda uma geração. A verdade em relação à cultura de outros povos.
é que as nossas prateleiras estavam repletas de obras A segunda crônica, intitulada “Quando o Brasileiro
francesas e os autores portugueses foram sendo substi- descobrirá o Brasil”, de tom mais incisivo, João do Rio
tuídos por renomados autores franceses como Anatole criticou, desta vez, a ignorância dos brasileiros sempre
France, Paul Bourget, Guy de Maupassant ,entre vários ridiculamente afrancesados e sem o menor conheci-
outros, que representaram uma fonte de inspiração para mento das coisas nativas. João do Rio (2009, p. 197),
os nossos escritores e para os movimentos literários mais uma vez, na voz de uma personagem estrangeira,
brasileiros, especialmente o romantismo. referiu-se aos brasileiros da seguinte forma: “Todos os
A intelectualidade brasileira vivia dessa nostalgia seus compatriotas conhecem Paris como se lá tivessem
de Paris, estava totalmente intoxicada de “parisina”, estado, e ignoram por completo o caminho mais sim-
num deslumbramento em relação à Paris. Conforme ples para ir a um arrabalde.”
Broca (1960, p. 92-93), “o chique era mesmo ignorar o Dito de outra forma, o brasileiro preocupava-se
Brasil.” Mas a despeito de resistências, de oposições, em conhecer tudo sobre a França mas não sabia quase
de todo o discurso antifrancesista que circulava no nada sobre o seu próprio país, ignorava a sua própria
Brasil daquela época, a Belle Époque que se prolongou identidade. Cabe aqui fazer uma pequena observação
no ambiente intelectual brasileiro só iria ser abalada e mencionar que crítica semelhante fora feita por Eça
depois da guerra com o movimento modernista. de Queirós (1925) em seu artigo O francesismo publi-
Apesar da formação intelectual francesa, quem cado no livro Últimas Páginas, em que investe contra a
destoava de seus pares era Euclides da Cunha: um dos dominação francesa na Literatura Portuguesa.
poucos, senão o único, a interessar-se pelo Brasil. E O fato era que a Literatura Brasileira estava se
seu discurso não era nem de subordinação intelectual desnacionalizando pelo excesso de francesismo. O que
em relação à França, nem antifrancesista, mas um dis- se observou a partir daí foi uma espécie de polarização
curso que hoje podemos chamar de intercultural. no ambiente intelectual brasileiro. De um lado, os fran-
No dizer de Broca (1960, p. 100) ,em uma carta cesistas (na sua grande maioria escritores que faziam
endereçada a Alberto Rangel datada de 20 de setem- parte do romantismo), defendendo que a nossa lite-

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O ANTIFRANCESISMO NO BRASIL | 49

ratura se pautasse pelas formas literárias francesas e, cesa,” enquanto temas nacionais eram menosprezados e
de outro, uma corrente antifrancesista de base nacio- precisavam ser explorados.
nalista, representada principalmente pelos escritores Em outras palavras, Lobato (1959, p. 45) defen-
modernistas e que se posicionou claramente contra a deu a ideia de uma estética oficial, o Brasil precisava
dependência da Literatura Brasileira às formas literá- organizar o seu 7 de setembro estético, em que o estilo
rias francesas, duas correntes antagônicas que partiram deveria ser criado em função do meio e não ser uma
para um enfrentamento ideológico. cópia servil da literatura, das artes, da arquitetura e da
No século XX, o discurso antifrancesista come- moda francesa, o que acabava tornando a nossa arte
çou a ganhar maior visibilidade não apenas nos meios uma mera cópia, uma caricatura da arte francesa. Em
acadêmicos mas também fora do território brasileiro. suma, para Lobato, a arte brasileira precisava “brilhar
Candido de Figueiredo defendeu a preservação da lín- com luz própria”.
gua portuguesa como nosso maior patrimônio cultu- Na mesma linha de reflexão de Monteiro Lobato
ral. Em seu livro Estrangerismos, Figueiredo declarou o outro intelectual brasileiro, Wilson Martins, consi-
incalculável dano que as leituras francesas causaram às derou em sua análise o francesismo reinante nesse
letras portuguesas no decurso do século XIX. período como um fator de alienação desnacionaliza-
Em sua peregrinção pelas literaturas de Portugal e dora. Martins (1978,p.215) fez duras críticas ao com-
do Brasil, Figueiredo (1938,p.10) registrou o que clas- portamento dos brasileiros que chamou de aliadófilos,
sificou de “ervas daninhas”, ou seja, galicismos : “como ou seja, substancialmente afrancesados, fascinados pela
nos veio da França a maior parcela dos barbarismos língua francesa. Criticou um modelo de sociedade que
que maculam ou pretendem macular o nosso idioma.” não correspondia à nossa realidade e que, portanto,
Ainda no dizer de Figueiredo (1938, p.11), a lingua não poderia ser aplicado da forma como vinha sendo
portuguesa estava contaminada por galicismos inúteis e aplicado sem nenhuma reflexão em relação ao nosso
absurdos que deveriam ser expurgados do nosso amplo contexto histórico e social.
e rico patrimônio lexicológico, que faz um grande apelo Não resta dúvida, que a campanha antifrancesista
aos dicionaristas e escritores que evitassem o “império organizada pelos nossos escritores modernistas con-
do abat-jour” ou seja, pediu-lhes que aportuguessasem tribuiu para a perda da hegemonia francesa em nosso
as palavras, que procurassem achar palavras correspon- território. Entretanto, a perda dessa hegemonia deve-se
dentes na língua portuguesa. principalmente pela mudança do cenário internacional,
Porém, o grande arauto do antifrancesismo no mudanças de ordem global que provocaram uma nova
Brasil foi sem dúvida alguma o escritor Monteiro reordenação política e social no Brasil. Pouco a pouco,
Lobato, ainda que em sua crítica ferrenha persista o francesismo foi sendo substituído pela cultura nor-
uma atitude emocional e, às vezes, um tanto exa- te-americana com a chamada “penetração ideológica”
gerada. A crítica virulenta de Lobato sempre em embora inicialmente o nosso primeiro contato com
tom de um nacionalismo exacerbado desqualifica uma país de língua inglesa tenha sido com a Inglaterra.
totalmente a cultura francesa. O escritor (1959,p. 8) Em seu clássico Ingleses no Brasil (1977), Gilberto
denunciou o que chamava de “podridão do chique”, a Freyre afirma que a Inglaterra teve um papel essencial
invasão das palavras francesas e dos costumes fran- na transferência da corte de D. João VI para o Brasil
ceses em nosso país. da mesma maneira que houve o predomínio britânico
Na visão de Lobato (1959, p. 24), a sociedade bra- no comércio e na orientação da linha de conduta do
sileira não tinha uma fisionomia própria. A exemplo nosso governo seja através de uma interferência polí-
de João do Rio, combateu a falta de originalidade dos tica direta ou indiretamente através de investimentos
brasileiros sempre em imitar a cultura francesa. O autor econômicos feitos no Brasil, o fato é que a Inglaterra
criticou o snobismo do brasileiro em tentar copiar a rivalizou e limitou a participação econômica da França
França, atitude esta que classificou de “macaquice fran- em nosso país.

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50 | Maria Regina Barcelos Bettiol

Mas como aludimos anteriormente, a questão dominados que tentavam reproduzí-la em nosso país
preponderante que provocou o declínio econômico e sem nenhuma reflexão.
cultural da França no Brasil, quanto em outros paí- O antifrancesismo foi um discurso de combate, um
ses, foi a emergência dos Estados Unidos como uma contraponto ao francesismo exagerado, demonstrando
potência econômica o que redesenhou o mapa do que a presença da França em nosso território não se
poder no mundo. deu de forma tão pacífica, pois provocou inúmeras ten-
Nas palavras de Moura (1984, p. 8), desde 1940 sões e conflitos dividindo a opinião pública brasileira.
os Estados Unidos estabeleceu com a América Latina O antifrancesismo caracterizou-se como um discurso
e, particularmente com o Brasil, a política de boa vizi- de resistência, foi uma bandeira em busca de um Brasil
nhança, embora a sua presença fosse anterior a essa mais genuíno e que recusou a utopia de querer trans-
época pois o Estados Unidos já se fazia presente sobre- formar o Brasil em uma continuação da França em
tudo através do cinema de Hollywood, que já definia terras brasileiras, um discurso de reafirmação da nossa
valores e ampliava mercados. soberania, da nossa independência política e cultural
Portanto, essa penetração ideológica não se res- em relação à outras nações.
tringiu a relações e problemas culturais mas também Em sendo assim, a cultura francesa ligou-se de
a conquista de mercado que vem se intensificado ao maneira particular a vários aspectos, não só públicos
longo dos séculos. O resultado dessa “tão bem suce- e urbanos como íntimos e rurais, da vida brasileira. A
dida” política de penetração ideológica dos Esta- presença da cultura francesa no desenvolvimento do
dos Unidos foi que a cultura norte-americana e seu Brasil, no conjunto da civilização brasileira, e o discurso
“estilo de vida” hoje fazem parte da vida coletiva dos antifrancesista que sempre coexistiu com essa presença,
brasileiros. não podem ser ignorados pelo brasileiro interessado na
Já nos encaminando para as nossas considerações compreensão e na interpretação do Brasil.
finais, pudemos perceber nessa grande discussão entre
os adeptos do francesismo e do antifrancesismo, que
essa discussão é o reflexo de uma cisão que existia no BIBLIOGRAFIA
país, uma cisão que foi fruto de uma interpretação
diferenciada em relação à França e a aplicação de seu ARANHA,Graça (Org).Correspondência. Machado de
modelo cultural à nossa realidade Assis/ Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: ABL/Topbooks,
Podemos dizer que a análise do antifrancesismo 2003.
passa obviamente pela questão da interpretação do que
vem a ser a “autenticidade cultural brasileira”. Dito de BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Campinas:
outra forma, ao discutirmos a questão da hegemonia Bookseller, 2000.
francesa, ao tentarmos impor um certo limite à essa
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização.São Paulo:
hegemonia, estávamos procurando traçar o perfil da
Companhia das Letras, 1992.
nossa própria identidade cultural.
Mais do que ajudar a entender o impacto das rela- BRITO, Mário da Silva. História do modernismo bra-
ções entre Brasil e França, o discurso antifrancesista sileiro: antecedentes da semana de arte moderna. 4.ed.
ajuda-nos a entender a nossa própria formação cultu- Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1974.
ral. A cultura francesa foi inquestionavelmente uma
das culturas europeias que contribuíram para a forma- BROCA, Brito. A vida literária no Brasil-1900. 2.ed.Rio
ção do pensamento brasileiro. O antifrancesismo como de Janeiro: José Olympio, 1960.
discurso foi eficiente em denunciar uma relação assi-
métrica entre a cultura dominante representada pela CHACON, Vamirech. História das Ideias Socialistas no
França com pretensão à universalidade e a cultura dos Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

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O ANTIFRANCESISMO NO BRASIL | 51

D` AZEVEDO, M.D. Moreira. A instrução pública nos RIO, João do. Cinematógrafo: crônicas cariocas.Rio de
tempos coloniais. In: Revista do Instituto Histórico e Janeiro: ABL, 2009.(Coleção Afrânio Peixoto, vol.87).
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toine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na
FIGUEIREDO, Candido. Estrangeirismos. 5ed. Lisboa: corte de d. João (1816-1821). São Paulo: Companhia
Livraria Clássica Editora, 1938. vol.1. das Letras, 2008.

FRANCO, Afonso Arinos de Mello. O índio brasi- SEVCENKO,Nicolau. A capital irradiante: técnica,
leiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras ritmos e ritos do Rio In: NOVAES, Fernando (Coord.
da teoria da bondade natural. Rio de Janeiro: José Geral) e SEVCENCKO, Nicolau (Org.do vol). História
Olympio, 1937 da vida privada no Brasil. vol. 3 República: da Belle
époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das
FREYRE, Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil. Letras, 1998.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1940. (Coleção
Documentos Brasileiros, 26).
O AUTOR
FREYRE, Gilberto .Ingleses no Brasil: aspectos da Maria Regina Barcelos Bettiol Graduada em Letras pela
influência britânica sobre a vida, a paisagem e a cul- PUC-RS (1994). Mestre em Literaturas Francesa e Francófonas
pela UFRGS (1998). Doutora em Letras (Littérature Générale
tura do Brasil. 2ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1977.
et Comparée) pela Université Sorbonne Nouvelle Paris III
(Coleção Documentos Brasileiros, 58). (2008) e Doutora em Letras (Literatura Comparada) pela
UFRGS (2008). Pós-doutorada em Teoria da Literatura pela
Universidade de Coimbra(2014). É Membro integrante do
LOBATO, Monteiro. Ideias de Jéca Tatú. São Paulo:
Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias
Brasiliense, 1959. (CLEPUL) da Universidade de Lisboa e membro da ANPOLL
(GT de Literatura Comparada). Atualmente, é pesquisadora
CAPES PNPD (área de concentração Literatura Comparada)
MACHADO, Álvaro Manuel. “O francesismo” na litera-
na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
tura portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Missões (URI). E-mail: mrbettiol@yahoo.com.br
Portuguesa, Ministério da Educação, 1984.

MARSON, Izabel Andrade. Revolução praieira. Resis-


tência liberal à hegemonia conservadora em Pernam-
buco e no Império (1842-1850). São Paulo: Perseu
Abramo, 2009.

MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira.


São Paulo: Cultrix/EDUSP,1978. vol.6.

MOURA, G. Tio Sam chega ao Brasil, a penetração cul-


tural americana. São Paulo: Brasiliense, 1985.
QUEIRÓS, Eça de. O francesismo. In: Últimas páginas.
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RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o


sentido do Brasil. 2.ed.São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.

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REVISTA DE ESTUDOS DE CULTURA | Nº 01 | Jan.Abr./2015
Carolina P. Fedatto

ANTILUSITANISMO

RESUMO:
Como parte de um projeto que pretende investigar os efeitos do contrário e do
negativo na construção de posições sóciohistóricas sobre o Brasil, o verbete antilu-
sitanismo procura, num primeiro momento, contrapor o aparecimento das palavras
lusismo e lusitanismo à formação de conceitos, ideias e pontos de vista sobre isso que
seria propriamente luso na história das relações entre as línguas. A seguir, apresenta
alguns episódios da história brasileira que colocam em cena ideias antilusas tanto
em movimentos artísticos quanto, e fundamentalmente, em conflitos de natureza
socioeconômica. Por fim, analisa a gênese de certo antilusitanismo na construção
do saber metalinguístico brasileiro considerando a história da colonização e o ima-
ginário de formação das línguas nacionais.
Palavras-chave: Relações entre línguas; Colonização; Ideias linguísticas.

* Doutora em Linguística
pela Unicamp.
E-mail: carolinafedatto@gmail.com

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ANTILUSITANISM ANTILUSITANISMO

ABSTRACT: RESUMEN:
As a part of a project which intends to investigate the effects Como parte de un proyecto que pretende investigar los efec-
of the contrary and the negative in the construction of socio- tos del contrario y del negativo en la construcción de posicio-
-historical positions about Brazil, this article tries, in a first nes socio-históricas sobre Brasil, la entrada antilusitanismo
moment, to oppose the appearance of the words lusismo and demanda, al principio, oponer la aparición de las palabras
lusitanismo against the formation of concepts, ideias and lusismo y lusitanismo a formación de conceptos, ideas y opi-
viewpoints about that which would be properly “luso” in the niones sobre lo que sería propiamente luso en la historia de las
history of the relations among different languages. Then, it relaciones entre las lenguas. A continuación presenta algunos
shows some episodes of Brazilian history which display anti- episodios de la historia brasileña que ponen en escena ideas
-lusitan ideas both in artistic movements and, fundamentally, antilusas tanto en movimientos artísticos como, y sobre todo,
in conflict of socio-economic nature. Finally, it analyzes the en los conflictos de naturaleza socio-económica. Por último,
genesis of ceratin antilusitanism in the construction of the se analiza la génesis del antilusitanismo en la construcción de
Brazilian metalinguistic knowledge, considering the his- conocimiento metalingüístico brasileño al considerar la his-
tory of colonization and the myth of formation of national toria de la colonización y el imaginario de la formación de las
languages. lenguas nacionales.
Keywords: relation among languages; colonization; linguistic Palabras clave : Relaciones entre lenguas; Colonización;
ideas. Ideas lingüísticas.

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ANTILUSITANISMO | 55

A CRIAÇÃO DAS PALAVRAS E A CONSTRUÇÃO para o outro que se pode falar em lusismo (marcando
DAS COISAS uma diferença de uso ou desuso), tupinismo e africa-
nismo (evocando um passado ou uma inovação). Da
Enquanto o aparecimento dos adjetivos luso, lusi- visada africana, nada homogênea, podem vir, como
tano e lusitânico data, segundo o dicionário Houaiss, qualificações sobre o outro, lusismo, brasileirismo e
de meados do século XVI – momento de formação e crioulismo. Nos casos voltados para fora e para o outro,
exaltação de valores nacionais –, qualificações como os sentidos são de influência, interferência, emprés-
lusismo e lusitanismo são atestadas apenas no correr do timo, aparecimento, origem, proveniência, inspiração,
XIX. A primeira confirmação do termo lusismo vem do vício, propagação, introdução. Destaque-se que quando
filólogo português Candido de Figueiredo em seu Novo o foco está em si mesmo, por exemplo, quando um por-
dicionário da língua portuguesa, de 1899. Já lusitanismo tuguês diz lusismo, um brasileiro, brasileirismo ou um
aparece anteriormente, num texto poético de Antonio africano, africanismo, temos sentidos como os de primi-
Feliciano de Castilho de 1822. Três séculos separam a tivismo, particularismo, inovação, diferença, separação,
possibilidade de nomear a região ou o povo da Lusitâ- divergência, mudança (cf. CÂMARA JR. 1956,1964).
nia – topônimo que, por sua vez, deriva de Lusus, filho Do ponto de vista político-ideológico sobre a língua, o
de Liber, antigo deus itálico do vinho – da nomeação antilusitanismo caracterizar-se-ia pela recusa de vocá-
de um fato de linguagem ou modo de falar ou escre- bulos, sentidos e usos tipicamente portugueses, seja
ver próprio ao português de Portugal. Nesse ínterim, por parte dos próprios portugueses – por considerar-se
o Brasil se torna uma nação independente e começa arcaísmo ou idiotismo –, seja por parte dos brasilei-
a reivindicar legitimidade, por meio da construção ros e demais países de língua oficial portuguesa – por
de uma metalinguagem própria (gramáticas, dicioná- considerar-se alheio ao uso corrente da língua naquele
rios, literatura, leis, debates públicos etc.), para a lín- espaço nacional. Mencione-se ainda que a qualificação
gua portuguesa falada e escrita em seu território. Esse lusitanismo/lusismo pode caracterizar também a língua
acontecimento histórico certamente contribui para o portuguesa como fonte ou causa de estrangeirismo,
reconhecimento das especificidades linguísticas das neologismo ou barbarismo em outras línguas.
duas nações onde se fala, até então, a língua portuguesa
como língua nacional. Assinale-se que outros termos IDEIAS SÓCIOHISTÓRICAS ANTILUSAS
que designam singularidades e influências linguísti-
cas, como brasileirismo e africanismo, mas também As ideias antilusas começam a se configurar
latinismo, helenismo, galicismo e anglicismo, são igual- no Brasil em finais do período colonial, a partir de
mente produtos do século XIX. meados do século XVII, com a construção, pela his-
Do ponto de vista sociolinguístico, encontram-se toriografia, da noção de nativismo para designar um
nas línguas fenômenos gerais como estrangeirismos, sentimento de amor à terra visando à criação de uma
regionalismos, vulgarismos, barbarismos, arcaísmos e identidade entre os habitantes da América portuguesa
neologismos que denotam a heterogeneidade geográ- (cf. VAINFAS, 2000 “nativismo”). Considera-se que
fica, social e histórica constitutiva de uma língua em o movimento literário romântico evidenciou a con-
seu imaginário de conjunto, sistema ou unidade. No tribuição dos nativos no surgimento de uma preten-
caso da língua portuguesa, esses fenômenos podem ser são nacional na luta, por exemplo, contra as invasões
apreendidos de diversos pontos de vista. Do enfoque holandesas (Insurreição pernambucana, 1645) e nas
português e voltando-se para o exterior/outro, pode-se inconfidências do século XVIII, contando aí as diver-
falar em helenismo e latinismo para evocar o passado da sas revoltas antifiscais em que as populações coloniais,
língua; remetendo-se ao presente e/ou ao futuro, fala-se mesmo que de modo localizado e circunstancial, se
em arabismo, galicismo, anglicismo, brasileirismo, afri- insurgiram contra a exploração econômica da metró-
canismo. Por sua vez, é do ponto de vista do brasileiro pole contribuindo para a formação de um imaginário

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de resistência nativa às pressões fiscais da Coroa no Mata-bicudo, diversos portugueses e brasileiros adotivos
Brasil (cf. Vainfas, 2000, “revoltas antifiscais”). Den- foram assassinados. À parte essa manifestação extrema,
tre as revoltas antifiscais, destacam-se a Aclamação a população carioca revelava seu descontentamento com
de Amador Bueno (1641), Revolta da cachaça (1660), a alta concentração de imigrantes portugueses na corte
Conjuração de “Nosso Pai” (1666), Revolta de Beckman por meio de palavras de ordem como Mata-galegos. Tam-
(1684), Guerra dos Emboabas (1708), Revolta do sal bém um apelido pejorativo para as tropas portuguesas,
(1710), Guerra dos mascates (1710), Motins do Maneta pés-de-chumbo, contrastava com o dos brasileiros, pés-
(1711), Revolta de Filipe dos Santos (1720). Quanto aos -de-cabra, superiores em leveza por conta de diferenças
movimentos de caráter emancipatório, sublinham-se no calçado do uniforme militar. Após o 7 de setembro,
a Inconfidência mineira (1789), Conjuração carioca o sentido de pés-de-chumbo se ampliou, passando a
(1794), Conjuração baiana ou dos alfaiates (1798), designar quem não aderisse à independência ou, mais
Conspiração dos Suaçunas (1801), Revolução pernam- tarde, quem fosse favorável ao império ou inimigo de
bucana (1817). Note-se que, segundo os dicionários uma construção política independente da nação brasi-
contemporâneos, a palavra nativismo data do século leira. Esses apelidos e gritos de ordem concentraram,
XX e nativista aparece em 1899, no dicionário de Can- durante muito tempo, um sentimento antilusitano ou
dido de Figueiredo, deixando supor que a ideia de um lusófobo difuso, produzido pelos brasileiros, à falta de
movimento ou sentimento nativista foi uma constru- um critério melhor, com vistas a construir um anseio
ção historiográfica da primeira república. Além disso, nacional calcado no atraso do passado colonial que o
assinale-se que as acepções de nativismo variam entre português – outro, estrangeiro – representava.
a valorização dos indígenas, dos nativos, dos locais e a
aversão aos estrangeiros, em especial, no contexto em IDEIAS LINGUÍSTICAS ANTILUSAS
questão, aos portugueses.
De acordo com a historiografia, pode-se dizer As ideias antilusitanistas em relação à língua estão
ainda que os conflitos antilusitanos no Brasil têm cará- ligadas ao início dos estudos do português no Brasil e/
ter social e nacional. A partir do primeiro reinado, o ou por brasileiros. Segundo periodização proposta por
“português” é entendido como “o outro” que ameaça Guimarães (1994, 2004), levando em conta aspectos
a nacionalidade em construção. Mas o sentimento político-sociais, consideram-se quatro grandes marcos
antiluso não se desvincula de conflitos socioeconô- da construção de saberes metalinguísticos no Brasil: 1.
micos precisos, uma vez que os portugueses sempre De 1500 a meados do século XIX (com a polêmica José
monopolizaram setores fundamentais da economia de Alencar/Pinheiro Chagas, 1870 e Carlos de Laet/
e concorriam como mão-de-obra com os brasileiros, Camilo Castelo Branco, 1879); 2. De finais do século
muitas vezes de forma desigual, num contexto de forte XIX, com a publicação da gramática de Júlio Ribeiro
preconceito racial contra pardos e negros (Ribeiro, (1881) e a fundação da Academia Brasileira de Letras
1997). Vainfas (2002) chega a afirmar que a lusofobia (1897), ao fim dos anos 1930 (fundação das faculdades
foi um sentimento comum no período imperial e deve- de Letras no Brasil, 1937, 1939); 3. Do final dos anos
-se, mais do que à vaga demonstração de um nativismo 1930 a meados da década de 1960 com a obrigatorie-
exagerado, a uma reação contra condições materiais de dade da Linguística no currículo dos cursos de Letras e,
vida – domínio luso no comércio varejista e concorrên- finalmente, 4. De meados de 1960 aos dias atuais, com
cia no mercado de trabalho. Na elite, o horror ao portu- a Linguística implantada nos cursos de Letras e conso-
guês, identificado como responsável pelo atraso do país, lidada nas pesquisas de pós-graduação, o que estabiliza
representava uma repulsa ao passado colonial. O auge um viés científico, ao lado do olhar cultural, afetivo e
da demonstração desse sentimento antiluso ocorreu na normativo, para as questões linguísticas.
madrugada de 30 de maio de 1834, em Cuiabá, capi- Em relação às publicações, fatos políticos e even-
tal da província do Mato Grosso, quando, aos gritos de tos institucionais que promoveram debates sobre o

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ANTILUSITANISMO | 57

português no Brasil, destacam-se: o primeiro dicioná- linguístico, cientifico) no tratamento dos fatos da lín-
rio monolíngue do português, de autoria do brasileiro gua portuguesa no Brasil, com a criação de associações
Antonio de Moraes Silva, publicado em Lisboa em 1789; acadêmicas e científicas, como a ABRALIN, 1969 e a
o artigo de Visconde de Pedra Branca sobre os brasilei- ANPOLL, 1984.
rismos, publicado na introdução ao Atlas etnográfico do A possibilidade de contrapor os estudos do por-
globo, de Adrien Balbi (1824); o Compêndio da gramá- tuguês no Brasil e em Portugal marca definitivamente
tica da língua nacional, de Antonio Alves Pereira Coruja as discussões sobre a língua brasileira ou sobre um
e a fundação do Colégio Pedro II em 1837; o Vocabulá- modo específico de praticar o português no Brasil. Do
rio brasileiro para servir de complemento aos dicionários ponto de vista oficial, destacam-se alguns fatos institu-
de língua portuguesa, de Brás de Costa Rubim (1857); a cionais sobre a língua portuguesa no Brasil: em 1826,
publicação da primeira gramática brasileira da língua o deputado José Clemente apresenta ao parlamento
portuguesa por Júlio Ribeiro (1881), que busca influên- brasileiro um projeto propondo que os diplomas dos
cias teóricas diferentes das de Portugal; o aparecimento médicos fossem redigidos em “linguagem brasileira”;
dos Estudos filológicos de João Ribeiro em 1884, con- um ano depois é aprovada uma lei estabelecendo que
siderado o primeiro do gênero no Brasil; o Dicionário os professores deveriam ensinar a “gramática da língua
brasileiro da língua portuguesa, de Antonio Joaquim nacional” (cf. DIAS, 1996). Em 1870, eclode a polêmica
Macedo Soares (1888), autor que profere a célebre afir- entre o escritor brasileiro José de Alencar e o português
mação de que “já é tempo dos brasileiros escreverem Pinheiro Chagas, o primeiro defendendo nossa autono-
como se fala no Brasil e não como se escreve em Portu- mia, o segundo, referindo-se à herança que recebemos
gal”; a Gramática expositiva de Eduardo Carlos Pereira de Portugal, a língua portuguesa. Em 1879-80, o jorna-
(1907), que teve grande alcance no ensino secundário lista brasileiro Carlos de Laet rebate as críticas do escri-
brasileiro; os trabalhos descritivos de Manuel Said Ali tor português Camilo Castelo Branco sobre a poesia e
(1908) e as primeiras produções dialetológicas sobre os poetas brasileiros. Em 1913, um debate entre o gra-
a língua no Brasil com o Dialeto caipira, de Amadeu mático João Ribeiro e o jornalista Carlos de Laet sobre
Amaral (1920) e, em 1922, o Linguajar carioca, de questões gramaticais durou cerca de 3 meses e se esten-
Antenor Nascentes; o Dicionário etimológico de Ante- deu por 30 artigos, evidenciando o peso das questões
nor Nascentes de 1932; o Pequeno dicionário brasileiro linguísticas na sociedade brasileira da época. De 1902 a
da língua portuguesa, uma obra coletiva, organizada 1905, surge uma nova polêmica, de cunho classicista e
por José Baptista da Luz, Hildebrando de Lima, Gus- purista, entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro
tavo Barroso e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, sobre a redação do Código Civil (PFEIFFER, 2001). Já
em 1938; os Princípios de linguística geral, de Matoso nas décadas de 1930-40, há uma discussão na Câmara
Câmara em 1941, que marcam o desenvolvimento dos Nacional sobre o nome da língua do Brasil: língua por-
estudos científicos sobre a linguagem no Brasil; o surgi- tuguesa ou brasileira?
mento das primeiras gramáticas normativas sob a pena Na gênese de certo antilusitanismo, destaque-se o
de Francisco da Silveira Bueno em 1944; os primeiros movimento literário romântico de inspiração nacional
estudos históricos e estilísticos do português no Bra- e preocupações nacionalistas; a literatura procurava,
sil, por Serafim da Silva Neto (1952), Matoso Câmara então, a alma individual e os temas e tradições populares.
(1953) e Silveira Bueno (1955); o estabelecimento da Constrói-se assim uma tendência à criação de um estilo
Nomenclatura Gramatical Brasileira, que fixa catego- brasileiro, que culmina com a discussão em torno das
rias para a língua e limita a autoria dos gramáticos, de diferenças entre a língua portuguesa e a língua brasileira.
1959 (cf. BALDINI, 2009); a consolidação de um viés Os argumentos que predominam do lado luso evocam
normativo para o pensamento gramatical brasileiro a superioridade geográfica e demográfica portuguesa, o
por Celso Cunha (1968,1970) e, finalmente, o estabe- direito de antiguidade sobre o idioma, sua sobrepujança
lecimento de um ponto de vista descritivo (estrutural, científica, literária, econômica e técnica. Nessa querela, os

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portugueses consideram em geral com desdém os desen- brasileira da segunda metade do século XIX à primeira
volvimentos do português no Brasil, qualificando-os de metade do século XX. Finalmente, em 1946, a comis-
dialeto, erro ou degeneração (MELO, 1946). No Brasil, o são designada pelo governo brasileiro, em atendimento
pensamento romântico sobre a língua inaugura o movi- ao estabelecido na Constituição de 1946, decide que “a
mento separatista, ou dialetista, que reconhece a vigên- língua falada no Brasil é língua portuguesa”, demons-
cia de uma variante brasileira para a língua portuguesa, a trando aberta preferência pela continuidade da tradi-
qual deveria ser legitimada tanto na fala popular quanto ção letrada em detrimento de argumentos separatistas
no estabelecimento de padrões literários brasileiros, de cunho romântico, empírico ou naturalista (DIAS,
independentes das normas portuguesas. Como con- 1996, 2015). A questão da influência lusa nas línguas
traponto, as ideias legitimistas ganham força pregando de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçam-
a supremacia e o rigor da língua portuguesa europeia, bique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste permanece
verdadeira herdeira dos cânones portugueses. Des- ainda hoje em aberto sendo atualizada contempora-
taque-se que o argumento da tradição foi convocado neamente com os debates sobre a lusofonia e o Acordo
pelas duas posições: servia tanto à defesa do purismo Ortográfico de 2009 (→antilusofonismo).
linguístico, quanto mantinha legitimistas e dialetistas Pode-se afirmar, portanto, que o antilusitanismo
em acordo, já que a reprovação do desvirtuamento da nunca se configurou, ao menos no Brasil, como um
língua, sobretudo em relação aos estrangeirismos, era movimento ou proposta organizada e sistemática. Cir-
consenso nas discussões. No período pós-romântico culam, de fato, como consequência da colonização lin-
assiste-se a uma ascensão das ideias legitimistas e ao guística (MARIANI, 2004), ideias antilusistas, se se pode
surgimento da tese do bilinguismo brasileiro – a norma dizer, que buscam o reconhecimento de mudanças e
portuguesa deveria ser respeitada na escrita e a variante inovações ou a recusa de arcaísmos, além da valorização
dialetal brasileira, crioula, seria aceita na fala – ou de de singularidades histórico-linguísticas e independência
uma dupla vernaculidade para a língua portuguesa: a político-cultural, nos territórios em que o português é
europeia e a americana (cf. PINTO, 1978). praticado, decerto já como uma língua outra.
Com as discussões modernistas, ao lado da dis-
puta pela valorização literária da língua brasileira
empenhada por Mário de Andrade e outros autores BIBLIOGRAFIA
contemporâneos (cf. Buscácio, 2014), as posições em
torno da língua do Brasil continuam a oscilar. Nas BALDINI, Lauro. Nomenclatura gramatical brasileira:
décadas de 1930 a 1950, filólogos de renome, como análise discursiva do controle da língua. Campinas: RG
Cândido Jucá Filho, negavam a existência de uma lín- Editores, 2009.
gua falada tipicamente brasileira, afirmando um mero
linguajar brasileiro. Contrariamente, João Ribeiro, por BUSCÁCIO, Lívia L. B. Mário de Andrade: um arquivo
exemplo, não diferenciava oral e escrito e defendia de saberes sobre a língua do/no Brasil. Tese de Douto-
a existência da língua nacional, já Edgard Sanches e rado. Orientação: Vanise Medeiros; Coorientação: José
Herbert Parentes Fortes avançaram na defesa de uma Luis Jobim. Instituto de Letras. Niterói: UFF, 2014.
nova língua, propondo um projeto de lei ao Congresso
para estabelecer oficialmente a língua brasileira. De um CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de fatos
lado, os adversários da mudança no nome da língua se gramaticais. Ministério da Educação e Cultura/ Casa de
ancoraram numa filiação tradicional e purista à língua Rui Barbosa, 1956.
portuguesa, vendo aí uma identificação com a cultura
letrada; de outro, os defensores da alteração se funda- CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de filolo-
mentaram numa imagem romântica do país fundada gia e gramática referente à língua portuguesa, 3ª edição
no positivismo e no ufanismo que marcaram a história refundida. Rio de Janeiro/São Paulo: J. Ozon, 1964.

REVISTA DE ESTUDOS DE CULTURA | Nº 01 | Jan.Abr./2015


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O AUTOR
Carolina P. Fedatto Doutora em Linguística pela Unicamp.
Pesquisadora de pós-doutorado na UFF e na UFMG. Profes-
sora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Lingua-
gem da Univás. E-mail: carolinafedatto@gmail.com

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Jair de Almeida Junior

ANTILUSOFONISMO

RESUMO:
O antilusofonismo, entendido como a resistência à Língua Portuguesa, é tão antigo
quanto a própria colonização realizada por Portugal. Em sua origem, representou
a reação dos povos autóctones à língua trazida pelo conquistador. A maioria das
colônias portuguesas conservaram suas línguas originais, além do português. No
Brasil, até o século XVIII houve uma língua nacional, a sistematização do tupi pelos
jesuítas, que ficou conhecida como “língua geral” ou “nheengatu”, de forma que
por muito pouco não temos um país bilíngue. Hodiernamente, o antilusofonismo
carrega o ranço característico do pós-colonialismo, uma memória constante de um
passado sob dominação. De forma mais contundente, o chamado “acordo ortográ-
fico” mostrou uma outra face do fenômeno, nas acirradas disputas entre aqueles
que se julgam com mais direito à língua portuguesa, bem como nas acusações do
seu mero desdenhar.
Palavras-chave: língua portuguesa; colonialismo; acordo ortográfico.

* Mestre em Novo Testamento


pelo Centro de Pós-Graduação
Andrew Jumper e em Ciências
da Religião pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie
E-mail: almeidajr.jair@gmail.com

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62 | Jair de Almeida Junior

ANTI-LUSOPHONISM ANTILUSOFONISMO

ABSTRACT: RESUMEN:
Antilusophonism, conceived as a resistance to the Portuguese El antilusofonismo, entendido como la resistencia a la Lengua
language, is something as old as Portuguese colonization Portuguesa, es tan antiguo como la colonización que se llevó
itself. In its origin, it represented the reaction of autochtone a cabo por Portugal. En su origen, representó la reacción de
peoples to the language brought by the conqueror. The majo- los pueblos autóctonos a la lengua traída por el conquista-
rity of Portuguese colonies preserved their original language dor. La mayoría de las colonias Portuguesas conservaron sus
besides Portuguese. In Brazil, until the eighteenth century, lenguas originales, además del portugués. En Brasil, hasta el
there was a national language, the systematization of “tupi” siglo XVIII hubo una lengua nacional, la sistematización del
by the jesuits, which came to be known as “língua geral” or tupi por los jesuitas, que llegó a ser conocida como “Lengua
“nheengatu”, in such a way that we could have been a bilin- General” o “nheengatu”, así que por muy poco no tenemos un
gual country. Nowadays, antilusophonism carries the cha- país bilingüe. Hoy en día, el antilusofonismo carga el rancio
racteristic taste of postcolonialism, a constant memory of a característico del pos-colonialismo, un constante recuerdo de
past under domination. In a more incisive form, the so called un pasado bajo la dominación. De forma más contundente,
“orthographic agreement” showed the other side of the phe- el llamado “acuerdo ortográfico” mostró otra cara del fenó-
nomenon in the hard disputes between those who claim to meno, en los conflictos entre quienes creen tener más dere-
have rights over the Portuguese language, as well as the accu- cho a la lengua portuguesa, así como en las acusaciones de su
sations of mere disdain in relation to its users. mero despreciar.
Keywords: Portuguese language; colonialism; orthographic Palabras claves: lengua portuguesa; colonialismo; acuerdo
agreement. ortográfico.

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ANTILUSOFONISMO | 63

O ANTILUSOFONISMO ESTÁ LIGADO principal- o monco; por fim, em Timor-Leste falam-se o tétum,
mente ao contexto de pós-colonização. As nações que o ataurense, o baiqueno, o becais, o búnaque, o
tiveram Portugal como sua antiga metrópole viam na cauaimina, o fataluco, o galóli, o habo, o idalaca, o
língua portuguesa a fala do conquistador. Contudo, faz lovaia, o macalero, o macassai, o mambai, o quéma-
parte deste ambiente de nações independentes o senti- que e o tocodede. No Brasil a língua portuguesa pra-
mento contraditório, até mesmo paradoxal, de “amor ticamente não enfrenta qualquer concorrência, a não
e ódio” para com a língua dos portugueses. Por um ser em tribos indígenas que ainda preservam intocada
lado, o senso de independência é imbuído da utopia boa parte de sua cultura.
do expurgo de todo e qualquer elemento visto como O antilusofonismo deve ser entendido mais pro-
do colonizador, agora classificado como “estrangeiro”, priamente ligado à reação contra a ideia de padroni-
como se fosse possível aos ventos de liberdade apagar zação linguística dos países de fala portuguesa, pois
a história e os eventos da colonização que esculpiram entende que em cada país colonizado por portugueses
a nação agora emancipada. Por outro, a adoção de uma houve não apenas a imposição da língua, mas seu “enri-
língua europeia significava ascensão social e maiores quecimento” pela assimilação vernacular e simbólica
possibilidades de desenvolvimento individual e nacio- de elementos das línguas faladas pelos povos nativos,
nal. A literatura já existente e a educação, desde os seus sendo, pois, virtualmente impossível qualquer unifica-
níveis fundamentais até o que havia de academicismo, ção. Por causa disso, dificilmente alguém conseguirá tal
acontecia dentro dos limites da Língua Portuguesa. grau de comunalidade. Ao invés disso, os defensores da
Excetuando-se o Brasil, que alcançou sua indepen- lusofonia propõem “aproximações” das línguas portu-
dência no início do século XIX, as antigas colônias guesas faladas nos países que foram colônias portugue-
portuguesas, já chamadas províncias de Além Mar, só sas, na tentativa de reconhecer elementos do imaginário
assumiram autonomia política no final do século XX e e simbólicos comuns na busca de pontos de identidade
experimentam, ainda hoje, tal sentimento dual. ou de identificações entre as diversas culturas expres-
Nestas nações mais jovens, o antilusofonismo sas em Português. Todavia, há grande fobia por parte
manifesta-se também em um aspecto muito prático de muitos que temem segundas e terceiras intenções
e todo peculiar, qual seja, a concorrência entre a lín- que podem estar ocultas mesmo do diálogo lusófono
gua portuguesa e a preferência à comunicação por supostamente bem-intencionado. Não é necessário
meio das várias línguas nativas faladas. Em Angola, comparar os diferentes tipos de Português falados nas
além do Português, são falados o Kikongo, Kim- ex-colônias. Mesmo uma modalidade de língua por-
bundo, Tchokwe, Umbundo, Mbunda, Kwanyama, tuguesa está longe de ter harmonia interna. Tomando
Nhaneca, Fiote, Nganguela etc., além de inúmeros como exemplo o Português falado no Brasil, percebe-se
dialetos; em Cabo-Verde falam-se também o cabo- enorme riqueza e complexidade. Para falar de apenas
-verdiano ou crioulo; em Guiné-Bissau são falados uma ocorrência, houve a prevalência de uma língua
também o Crioulo, o Mandjaco, a Mandinga e outros; nacional, que nada mais foi que o tupi-guarani adap-
em Guiné-Equatorial falam-se o Espanhol (oficial), tado pelos jesuítas. No Brasil quinhentista, o tupi era
francês, português, inglês, fangue, combe, balen- o grupo linguístico mais representativo na costa bra-
que; em Moçambique, além do português, são fala- sileira. Devido à intervenção dos jesuítas, sistemati-
dos o cicopi, cinyanja, cinyungwe, cisenga, cishona, zando a gramática da língua, passou a ser conhecida
ciyao, echuwabo, ekoti, elomwe, gitonga, maconde como “língua geral”, também chamada de nheengatu,
(ou shimakonde), kimwani, macua (ou emakhuwa), o mais significativo canal de comunicação entre os
memane, suaíli (ou kiswahili), suazi (ou swazi), colonizadores e os povos nativos, bem como daqueles
xichanga, xironga, xitswa e zulu; em São-Tomé e para com os mestiços. Na opinião de Antonio Can-
Príncipe são falados o forro (ou são-tomense, um dido, o Brasil poderia, por causa disso, ter se tornado
crioulo de origem portuguesa), o angolar, o tonga e bilíngue, da mesma forma que ocorreu com o Para-

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64 | Jair de Almeida Junior

guai. Esta possibilidade é ainda mais plausível espe- do Maranhão. Para tanto, foram implantadas escolas
cialmente quando é levada em conta a “onipresente” em aldeias para ensinar a língua e a cultura portuguesa
catequese jesuítica. Todavia, uma língua nacional não às crianças. A “pedagogia” portuguesa incluía castigos
estava nos planos da metrópole, que via na imposição físicos. Concebidas originalmente para a parte norte da
de seu idioma um meio de domínio e de padronização colônia, quando as diretrizes foram transformadas em
cultural. Por causa disso, a “língua geral” foi proibida diretório, foram ordenadas a todo o Brasil da época.
no Século XVIII, especialmente nas regiões onde era Objetivando a total integração dos ameríndios à socie-
mais falada (CANDIDO, 2010, p. 20). dade, pretendia aniquilar as diferenças entre índios e
Uma vez que na costa brasileira predominava a brancos, não apenas as discriminações. O alvo a longo
língua geral, José de Anchieta e os demais missioná- prazo era alcançar a homogeneização da população,
rios adotavam quase sempre o tupi como vernáculo tanto na questão física, incentivando a miscigenação,
de seus poemas. No entanto, tratava-se de uma cons- como na questão comportamental. Dessa forma, os
trução híbrida, que tomava como base poética uma casamentos interétnicos eram estimulados. As aldeias
estrutura semelhante à das medidas trovadorescas perderam seu formato original e foram transformadas
ibéricas mais populares, mas utilizando palavras tupis em vilas portuguesas. O mestiço deveria ser digni-
e acentos, ritmo e pausas da língua portuguesa. Acul- ficado acima do índio, considerado até mesmo supe-
turar pode ser compreendida como sinônimo de tra- rior, cabendo-lhe a exclusividade de cargos nas antigas
duzir (BOSI, 1992, pp. 64, 65). Dessa forma, devemos aldeias recém-remodeladas em vilarejos. A comum
entender que o antilusofonismo é tão antigo quanto expressão “negro da terra” aplicada aos índios, que
a colonização portuguesa. A terra “fala”, quer “falar” pretendia equipará-los socialmente ao escravo afri-
e acaba por viabilizar isso de alguma forma. No caso cano, não poderia mais ser usada, pois foi considerada
da colônia Brasil, Elisa Frühalf Garcia argumenta depreciativa. Foi neste contexto que se deu a proibição
que não era possível estabelecer comunicação con- da utilização da Língua Geral. Acreditava-se que o uso
fiável utilizando o português até a década de 1750. O do idioma nativo estava necessariamente atrelado ao
motivo disso, explica, era a predominância da língua modelo de vida indígena, dificultando assim a acul-
geral, o idioma que se tornou peculiar da sociedade turação pretendida. De igual forma, pensava-se que a
colonial brasileira, nascida, como vimos, de acomo- assimilação do idioma dos portugueses, ainda que pela
dações entre o tupi e a língua dos colonizadores. Deve imposição, contribuiria para a civilização dos costu-
ser enfatizado que não se trata da língua falada ape- mes. Por fim, cria-se que, uma vez tornados falantes
nas pelos ameríndios, mas por vastos contingentes da da língua portuguesa, as populações assumiriam uma
população da época. Nas regiões de São Paulo e do postura política condizente, isto é, seriam súditos leais
Amazonas, a abrangência de seu uso era tamanha que da Coroa Portuguesa (GARCIA, 2007, p. 24, 25).
o governo português via-se na obrigação de utilizar Depois da almejada independência em 1822, o
intérpretes quando alguma autoridade precisava tra- nacionalismo no Brasil estava em alta, típico de uma
tar qualquer assunto oficial (GARCIA, 2007, p. 24). recém-nascida nação. A independência da língua é vista
Com o objetivo explícito de aculturar os indígenas como tão importante quanto a independência política.
formatando-os como integrantes da sociedade portu- No campo da literatura, não tardou a surgirem ten-
guesa, aquele que viria a ser o Marquês de Pombal, à dências que podem ser entendidas como, em alguma
época o ministro Sebastião José de Carvalho, prepa- medida, antilusófonas. Antonio Candido explica que
rou uma série de medidas que, após implementadas, logo passou-se a enfatizar elementos tipicamente brasi-
ficaram conhecidas como o Diretório, publicado em leiros. Segundo ele, tratava-se de uma luta contra o fato
3 de maio de 1757, depois transformado em lei em 17 inegável de que a literatura brasileira fazia parte das lite-
de agosto de 1758. O governo português ordenou sua raturas do Ocidente da Europa. Tentava-se, com todas
observância a todas as povoações indígenas do Pará e as forças, a negação do parentesco europeu, como se

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ANTILUSOFONISMO | 65

fosse possível iniciar algo inteiramente novo, quase ex presença de Deus e do rei. As suas respectivas chancelas
nihilo e “adâmico”, estado ideal de um começo absoluto. à língua resultavam sacralização e oficialização. Assim,
Aparentemente havia uma pressão auto-imposta para as cosmovisões dos povos subjugados e a possibilidade
a distinção, uma face brasileira cujas feições pudessem de sua expressão foram impedidos pelo monopólio da
ser reconhecidas pelos estrangeiros, a construção de língua (CANDIDO, 2010, p. 12). Uma vez que a reli-
uma personalidade ou identidade nacional que, não gião católica foi o grande molde da cultura portuguesa,
raro, é impulsionada pela sincera ignorância dos apai- Moisés de Lemos Martins conclui com um silogismo
xonados por uma causa. No entanto, argumenta Anto- simples: “português, logo católico”. Tal compreensão
nio Candido, diante da impossibilidade de se ocultar a não significa que todos são praticantes da religião, mas
paternidade, embora modificada pelas peculiaridades que, ainda que sejam irreligiosos ou mesmo ateus nos
do Novo Mundo, a literatura brasileira era parte inte- dias atuais, a maioria reflete conceitos advindos do
grante do conjunto de literaturas ocidentais. Assim, catolicismo. Significa dizer que o português tem um
ao contrário das literaturas portuguesa, francesa, ita- sentimento de pertença ao catolicismo como grupo
liana, que se desenvolveram e, junto com a própria cultural. Equivale dizer também, argumenta o autor,
língua, passaram por um processo de refinamento, as não apenas a pertença subjetiva, mas objetiva, delibe-
literaturas do Novo Mundo nasceram com a inegável rada adesão, ainda que em níveis diversos, ao mesmo
contribuição da implantação de “membros comple- sistema simbólico (MARTINS, 1996, p. 97). No caso
tos” no corpus cultural do Brasil. O plano de conquista do Brasil, a herança portuguesa/católica pode ser vista
do português incluía, como parte da ideia lusitana de em seu símbolo mais conhecido no mundo: o Cristo
colonização, o transplante de uma língua e uma litera- Redentor. Praticamente todo brasileiro se identifica de
tura já amadurecida, porém em um mundo totalmente alguma forma com a estátua, ainda que apenas em seu
diferente do europeu. Os povos nativos tinham mati- aspecto simbólico e secularizado.
zes culturais incompatíveis não apenas com as formas A língua é, possivelmente, o principal elemento
expressivas dos colonizadores, mas também com o seu cultural de um povo. Ela detém o imaginário consti-
modelo epistemológico (CANDIDO, 2010, pp. 11,12). tuído e acumulado pelas idas gerações. Como mani-
Lusofonia tem como significado básico a fala da festação do vivido, a língua está em constante processo
língua portuguesa especialmente como língua oficial, de mudança e adaptação. Uma língua é um “ente” vivo,
mas também em bolsões que preservam alguma fala um universo que tem que estar sempre em expansão.
portuguesa, como são os casos de Goa e Macau, e de O seu encolhimento significa morte. Por ser mutante
uma forma mais contundente, a região espanhola da e expressão cultural do vivido, é exatamente por isso
Galícia. O prefixo “luso” está ligado ao antigo nome que, ainda que seja o caso de uma língua imposta, como
dos povos que habitavam boa parte da península ibé- foi o caso de todos os países da Comunidade dos Paí-
rica, conhecidos como “lusos”, o que levou o Império ses de Língua Portuguesa (CPLP), com a óbvia exce-
Romano a estabelecer ali uma de suas províncias com ção de Portugal, pode-se dizer que a transformação
o nome de Lusitânia. A lusofonia, em sua origem, está do reino português em império ocasionou a existência
intimamente ligada ao catolicismo. Falar de cultura de vários tipos de línguas portuguesas (LOURENÇO,
portuguesa, especialmente aquela que foi implantada 2004, p. 112). No entanto, não seria certo dizer que os
nas colônias, é falar de catolicismo português. A lite- povos autóctones passaram a enxergar tudo com “len-
ratura trazida pelos portugueses anunciava uma nova tes” lusas; nem mesmo que adotaram uma lente bifocal,
forma de vida e de sociedade. Mais do que criar novas como se preservassem boa parte de sua língua origi-
formas de expressão, pregava os valores cristãos e seus nal para poder expressar-se de forma melhor e mais
conceitos éticos e morais, bem como apontava para a “pura”. Aconteceram aglutinações e misturas culturais.
vida metropolitana como o ideal social a ser alcançado Embora tenha havido a imposição da língua pelo colo-
pelos autóctones. Era dessa forma que eram afirmadas a nizador, bem como o estabelecimento de seu modelo

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66 | Jair de Almeida Junior

de vida europeu cristão como o ideal que devia mode- sofonismo acusa as nações mais desenvolvidas
lar a existência, deve-se entender que todo processo de tecnologicamente e industrializadas, principalmente o
colonização é uma relação de trocas culturais. A cultura Brasil de, por meio da lusofonia, materializar interesses
portuguesa trazida para as colônias imiscuiu-se com políticos e econômicos. De fato, a relativa identidade
aquelas dos que já lá viviam. Portanto, não é possível conferida pela língua é um grande fator explorado para
falar de um imaginário lusófono simplesmente deter- a aproximação comercial. Acaba de ser informado no
minado pela fala da língua portuguesa. O que podería- Diário Oficial da União, datado do dia 11 de novem-
mos chamar de “mundo lusófono” tem seu imaginário bro de 2014, que a marinha brasileira criou um núcleo
marcado necessariamente pela pluralidade e pela dife- de missão naval em São Tomé e Príncipe. O objetivo é
rença, espaço cultural inteiramente fragmentado. Qual- estreitar relacionamento e propor um acordo de coo-
quer unidade utópica só pode ser buscada dentro deste peração entre os dois países, especificamente na área
universo multicultural. No oceano das culturas de fala de defesa. Recentemente o Brasil doou uma lancha e
portuguesa, a identidade lusófona pode ser encontrada dois botes para aquela nação africana, visando melho-
na forma de “ilhas de identidade” pequenas e grandes, rar a capacidade de sua marinha e seus meios navais na
quiçá algum arquipélago, variando segundo a proximi- fiscalização de embarcações. O site da CPLP informou
dade ou distanciamento cultural entre os países. Toda- a realização do III Simpósio das Marinhas da Comu-
via, não se pode atribuir qualquer ilegitimidade aos nidade dos Países de Língua Portuguesa, ocorrido no
falantes da língua portuguesa dentro do universo lusó- Brasil entre os dias 8 a 10 de maio de 2012, nas insta-
fono, muito menos tomar o português falado em Portu- lações da Escola Naval, na cidade do Rio de Janeiro. O
gal e torna-lo padrão para as demais nações lusófonas. segundo simpósio foi realizado em Angola, em 2010,
“Uma língua não tem outro sujeito senão aqueles que na cidade de Luanda. Mais do que integração, há inte-
a falam, nela se falando. Ninguém é seu ‘proprietário’, resses comerciais das nações que produzem material
pois ela não é objeto, mas cada falante é seu guardião, de defesa de tornarem-se fornecedores daqueles que
podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na pers- falam a mesma língua. Recentemente foi anunciado
pectiva do tempo, a misteriosa chama de uma língua” um acordo entre os governos de Brasil e Angola para a
(LOURENÇO, 2004, p. 124). venda de sete navios-patrulha produzidos em estaleiros
É apenas pelo conhecimento do contexto sócio- brasileiros para a marinha angolana. De igual forma, a
-histórico-cultural de um povo que se torna possível venda de aviões militares de baixo custo de aquisição e
a compreensão dos usos linguísticos ali recorrentes. É operação e aeronaves comerciais para aviação civil são
incontestável que um único e mesmo idioma reveste- constantemente oferecidos. O incentivo à plantação
-se de sentidos diferentes e específicos, além de formas de cana-de-açúcar para a produção de etanol e outros
peculiares, conforme o lócus cultural que projeta, bem acordos envolvendo tecnologias de plantio também são
como as influências que recebe ou incorpora (BRITO, propostos pelo Brasil. As grandes construtoras brasilei-
2013, p. 43). No universo cultural de um país continen- ras também têm procurado oportunidades, especial-
tal como o Brasil, por exemplo, isso fica muito claro. Na mente nos países africanos.
Paulistânia estudada por Antonio Candido, percebe-se A CPLP, em seu site oficial (www.cplp.org), anun-
que a fala caipira privilegia as vogais em detrimento cia a participação dos seguintes estados-membros:
das consoantes: muié (mulher), cuié (colher), teiado Angola, Brasil, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Guiné-E-
(telhado), mío (milho) etc. Sabe-se que esta caracterís- quatorial, Moçambique, Portugal, São-Tomé e Príncipe
tica da fala caipira é reminiscência da língua tupi e, por e Timor-Leste. Certamente, são atores muito diferentes
conseguinte, da língua geral, que tem “dificuldades” no cenário global atual. Segundo pesquisas referentes
com consoantes. a 2014 (countrymeters.info), Angola possui popula-
Uma das principais “bandeiras” ferozmente des- ção de cerca de vinte e um milhões; Brasil, por volta de
fraldadas e hasteadas pelos que abraçam o antilu- duzentos milhões; Cabo-Verde, aproximadamente qui-

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ANTILUSOFONISMO | 67

nhentos e onze mil; Guiné-Bissau é estimada em um observada naqueles que diziam algo do tipo: “há coisas
milhão, setecentos e quarenta mil; Guiné-Equatorial mais importantes do que isso” ou “é uma reforma meia-
tem contingente populacional próximo de setecentos e -sola, pois não unifica de fato”, além de avacalhações e
oitenta mil; Moçambique conta com aproximadamente ironias pejorativas. No outro hemisfério, imbuídos de
vinte e seis milhões, seiscentos e oitenta mil; Portugal forte sentimento de propriedade da língua, uma atmos-
alcança dez milhões, quinhentos e sessenta mil; São- fera beligerante tomou conta de muitos portugueses.
-Tomé e Príncipe tem cerca de duzentos mil habitantes; A tentativa de se estabelecer um instrumento político
e Timor-Leste aproximadamente um milhão, duzentos de construção de uma comum identidade lusófona
e setenta mil. parece ter-se implodido. Houve grande confusão por
Percebe-se nitidamente, por esses dados, que na não se esclarecer de forma satisfatória, que não se tra-
soma das populações lusófonas o Brasil se distingue por tava de unificação da língua, mas, tão-somente, de sua
seus números: tem mais de três vezes a soma das popu- ortografia. A linguista angolana Amélia Mingas che-
lações dos outros países juntos. Quantitativamente, gou a declarar em entrevista ao jornal cabo-verdiano
a língua portuguesa em sua modalidade brasileira é a “Expresso das Ilhas”, em 2007, que o acordo ortográ-
mais falada do mundo. Além disso, quanto à expressão fico tinha como objetivo legitimar a variante da lín-
econômica no cenário global, o Brasil é hoje a sétima gua portuguesa falada no Brasil e impô-la aos demais
maior economia do mundo, e já chegou a ser a quinta. falantes lusófonos. A admissão de palavras com duplo
O gigantismo do Brasil parece intimidar as demais significado, devido a sentidos diferentes nos países da
nações lusófonas, gerando certo senso de encolhimento CPLP, gerou pesada crítica, sendo reconhecida em total
e insegurança mesmo a Portugal – aquele sentimento de incongruência com o objetivo da unificação. Todavia, é
estar perto de alguém muito grande e, por causa disso, exatamente a assimilação da diversidade o ponto mais
sentir-se pequeno. O resultado de todos esses fatores forte e viabilizador do processo de construção identitá-
é um ambiente de desconfiança por parte de muitos. ria (FIORIN, 2010, pp. 27, 28).
No campo estrito do debate da lusofonia, tal situação Em Portugal, argumenta Fiorin, foram vários os
coloca os linguistas brasileiros em condição delicada, argumentos levantados contra o acordo ortográfico.
praticamente uma “espada de dois gumes”: qualquer Alguns preconizavam o que chamavam de “manuten-
interferência pode ser percebida como imposição de ção da pureza da língua original”. Outros, apaixona-
supremacia; de igual forma, o silêncio ou a pouca par- damente, declaravam o “rechaço à brasilianização da
ticipação pode ser entendida como descaso de alguém ortografia”, aparentemente contaminados com alguma
hegemônico e autossuficiente que não precisa ou não “teoria de conspiração”. Reconhecendo, talvez, escusa
se interessa pelo outro. O antilusofonismo talvez tenha pretensão política brasileira, também foi dito que se tra-
como principais elementos a desconfiança, o ciúme, o tava de “colonialismo dos ex-colonizados” que procu-
medo da influência (linguística, econômica, política, ravam impingir “humilhação estatista a Portugal: 1,4%
etc.) daquele que se destacará no universo lusófono de alterações para Portugal contra uns míseros 0,5% do
criando novo imperialismo. Brasil”. Ainda que figuras expressivas da linguística em
Na prática, percebe-se o antilusofonismo muito Portugal, como Malaca Casteleiro, Carlos Reis e Maria
presente nas ações e reações ensejadas já no anúncio Helena da Rocha Pereira tenham avalizado o acordo,
relativamente recente da intenção da reforma ortográ- continua Fiorin, foi publicado no jornal “Público” em 8
fica. Se entendermos a implantação do acordo de unifi- de abril de 2008 matéria intitulada “Livreiros e linguis-
cação ortográfica como um início de tentativa de uma tas contra. Brasileiros, timorenses, ex-exilados e gale-
construção de identidade lusófona, concluiremos que gos, pró”. Fiorin transcreve os pontos, a seus olhos, mais
não foi muito bem-sucedida. José Luiz Fiorin explica relevantes, das palavras de Vasco da Graça Moura à
que duas reações inversamente proporcionais foram Assembleia Nacional: 1) “o acordo serve interesses geo-
vistas. No Brasil, houve quase uma total indiferença, políticos e empresariais brasileiros, em detrimento dos

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68 | Jair de Almeida Junior

interesses inalienáveis dos demais falantes de português BIBLIOGRAFIA


no mundo, em especial do nosso país”; 2) “é uma lesão
de um capital simbólico acumulado e de projecção pla- BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo:
netária”; 3) “vai homogeneizar integralmente a grafia Companhia das Letras, 1992.
portuguesa com a brasileira (...) desfigurando a escrita,
a pronúncia e a língua, que são nossas”. Na opinião de BRITO, Regina Helena Pires. Língua e Identidade no
Fiorin, realmente trata-se de questão complexa e de Universo da Lusofonia. São Paulo: Terracota, 2013.
interesses diversos. Os pontos levantados em Portugal
revelam o senso de posse da língua, de um “purismo” CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira.
linguístico, além de certa fobia e desdém pelo Brasil. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.
Todavia, em terra brasilis, não foi muito diferente, pre-
dominando explícita e total indiferença por Portugal FIORIN, José Luiz. “Língua Portuguesa, identidade
(FIORIN, 2010, p. 28). nacional e lusofonia”, in: Língua Portuguesa cultura e
Por fim, quanto à questão do antilusofonismo identidade nacional. São Paulo: Editora da PUC, 2010.
algumas questões devem ser levantadas e respondidas:
a posse da língua portuguesa é bem histórico de origem, GARCIA, Elisa Frühauf. “Guarani, a língua proibida”,
domínio de uma maioria ou pode ser também herança in: Revista de História. Set/2007.
recebida? Em outras palavras, Portugal tem preferência
por ser o portador originador da língua? Ou o Brasil, ______. “O projeto pombalino de imposição da língua
por ser, de longe, a modalidade mais falada no mundo? portuguesa aos índios e a sua aplicação na América
Ou todos os países colonizados por Portugal passaram meridional”, in: Tempo Revista Digital de História, nº
a ter direito sobre ela? É incontestável que, embora as 23, julho de 2007 – Universidade Federal Fluminense.
duas questões iniciais tenham algum peso, as antigas Disponível em: http://www.historia.uff.br/tempo/arti-
colônias formataram sua própria língua portuguesa, gos_dossie/v12n23a03.pdf. Acesso em 27/11/2014.
substancialmente diferentes, verdadeiro legado de
Portugal. Cada país colonizado por Portugal recebeu LOURENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro seguido de Ima-
a língua e a assimilou, tendo, portanto, todo o direito gem e Miragem da Lusofonia. Lisboa: Gradiva, 2004.
de “processá-la”, transformando-a em sua. De igual
modo, a língua portuguesa pode conviver com as lín- MARTINS, Moisés de Lemos. Para uma Inversa Nave-
guas nativas na grande parte dos países chamados lusó- gação. Porto: Edições Afrontamento, 1996.
fonos, sem nenhum prejuízo para ela ou para o povo
que a fala. Embora tais assertivas possam dar respostas
ao embate, não anulam sentimentos, desconfianças e O AUTOR
opiniões, especialmente aqueles arraigados em nacio- Jair de Almeida Junior é graduado em Teologia pela Univer-
nalismos das mais variadas espécies. Aparentemente, a sidade Presbiteriana Mackenzie (2007), e também pelo Semi-
nário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição
aproximação dos países lusófonos só poderá acontecer
(1993), Mestre em Novo Testamento pelo Centro de Pós-Gra-
a passos bastante lentos, à medida que se frouxarem as duação Andrew Jumper (2007) e em Ciências da Religião pela
amarras do antilusofonismo. Universidade Presbiteriana Mackenzie (2010). Doutorando
em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Douto-
rando em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela
Universidade de São Paulo. É professor de exegese de Novo
Testamento no Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José
Manoel da Conceição. E-mail: almeidajr.jair@gmail.com

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Jean Pierre Chauvin

ANTIMANIQUEÍSMO

RESUMO:
“Maniqueísmo” é um vocábulo muito empregado, ainda hoje, nos meios intelec-
tuais e de entretenimento, pelas mãos de articulistas, pensadores, cineastas, artistas
e escritores em geral. A palavra se relaciona diretamente à ordem dos maniqueus,
que conquistou severos adeptos na Europa, durante os primórdios da Idade Média.
Por essa razão, ela pode ser traduzida como postura binária, instaurada sob uma
perspectiva moral que opõe critérios e predicados assimétricos (bem e mal; belo e
feio; certo e errado). Ao se posicionar de modo antimaniqueísta, o homem passou
a contrariar um modo estreito de sentir, pensar e condenar: atitudes que caracteri-
zam as pessoas adeptas de dogmas, ideologias e demais sistemas prévios de regra-
mento. Ao aplicar o maniqueísmo em suas vidas, relações, estudos e trabalhos, boa
parte dos indivíduos tende a negar as formas da diferença e da alteridade, sob múl-
tiplos, mas velados, modos de coerção pelo crivo de virtudes elevadas ao estatuto
de verdades absolutas e imutáveis. Usualmente, sujeitos desse jaez marcham em
direção contrária ao pensamento filosófico e científico que vigora desde a chamada
Era Moderna, encampado por aqueles que, como os antimaniqueístas, desconfiam
da unidade de pensamento e das formas padronizadas de ação.
Palavras-chave: maniqueísmo, cultura, moral, religião.

* Doutor em Teoria Literária e


Literatura Comparada (USP).
E-mail: tupiano@usp.br

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70 | Jean Pierre Chauvin

ANTI-MANICHAEISM ANTIMANIQUEÍSMO

ABSTRACT: RESUMEN:
“Manichaeism” is a very common word, even today, in aca- “Maniqueísmo” es una palabra muy utilizada, incluso hoy,
demia and entertainment media, in the hands of columnists, en los medios intelectuales y entretenimiento, por las manos
thinkers, filmmakers, artists and writers in general. The word de articulistas, pensadores, cineastas, artistas y escritores
relates directly to the order of the Manicheans, which con- en general. La palabra se refiere directamente a la orden de
quered several supporters in Europe during the beginnings los maniqueos, que conquistó adeptos severos en Europa,
of the Middle Ages. For this reason, it can be translated as durante los primeros tiempos de la Edad Media. Por esta
a binary posture, assumed under a moral perspective which razón, ella puede ser traducida como postura binaria, esta-
opposes asymmetric criteria and predicates (good and evil; blecida en virtud de una perspectiva moral que opone crite-
beautiful and ugly; right and wrong). By assuming a anti-ma- rios y predicados asimétricos (bien y mal; bello y feo, cierto y
nichaeist position, men began to contradict a narrow way of errado). Al posicionar a sí mismo de modo antimaniqueísta,
feeling, thinking and condemning: attitudes which charac- el hombre pasó a frustrar un modo estrecho de sentir, pensar
terize people who supported dogmas, ideologies and other y condenar: actitudes que caracterizan el adepto de dogmas,
previous systems of ruling. Applying manichaeism in their ideologías y otros sistemas previos de reglamento. Al apli-
lives, relations, studies and work, a good part of individuals car el maniqueísmo en sus vidas, relaciones, estudios y tra-
tends to deny forms of difference and otherness, under mul- bajos, buena parte de las personas tiende a negar las formas
tiple, yet hidden, ways of coercion through the seive of vir- de la diferencia y la alteridad, bajo múltiples, pero velados,
tues elevated to the status of absolute and immutable truths. modos de coerción por el cribo de las virtudes elevadas a la
Usually, subjects of this kind march in a contrary direction to condición de verdades absolutas e inmutables. Por lo gene-
the philosophical and scientific thought which prevails since ral, sujetos de ese jaez marcharon en la dirección contraria al
the Modern Era, encompassed by those who, as anti-mani- pensamiento filosófico y científico que rige desde la llamada
chaeists, distrust unity of thought and standardized forms of Era Moderna, emprendida por aquellos que, como los anti-
action. maniqueístas, desconfían de la unidad de pensamiento y de
Keywords: manichaeism; culture; moral; religion. las formas estandarizadas de acción.
Palabras clave : maniqueísmo, cultura, moral, religión.

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ANTIMANIQUEÍSMO | 71

O ANTIMANIQUEÍSMO congrega indivíduos de os juízos emitidos pelos pensadores são preconceitos


diferentes orientações, posturas, etnias, correntes e cre- sob a forma de aparentes verdades. Ora, perseguir
dos que se mostram resistentes a uma concepção exclu- uma suposta verdade limitaria o alance do próprio
sivamente dual e moralista do mundo em que vivemos. ato de pensar; cercearia nossa concepção por entre
Religiosos, filósofos, historiadores, advogados, escri- acertos e desacertos. No início do século XX, Guior-
tores, médicos ou cientistas sociais, os adeptos dessa gui Valentinóvitch Plekhânov (1856-1918) retomou e
forma de pensar sugerem que as oposições entre bem difundiu algumas das principais hipóteses marxistas,
e mal, luz e trevas, virtude e vício, nem sempre são tão sugerindo que haveria uma contradição de fundo nos
distintas e evidentes. Avaliar, julgar ou condenar atitu- argumentos agostinianos, defendidos nas Confissões.
des e pessoas com base em critérios dualistas revelaria Para aquele revolucionário russo, em sendo deus um
uma concepção binária do próprio universo, mesmo ser insondável, o pressuposto agostiniano de desejar
porque tais pressupostos não abarcariam as idiossincra- compreendê-lo não fazia sentido. A principal contes-
sias, nem os diferentes graus, formas de sentir e pensar tação do sociólogo ao pensamento teológico contradiz
que os homens vivenciaram ao longo dos tempos, em a hipótese de a história submeter-se aos desígnios de
diferentes situações e contextos sociais, históricos e cul- deus, como sugeria Santo Agostinho (354-430 d.C.). Já
turais. Indivíduo de postura crítica e caráter relativista, o pensador estadunidesne Richard Rorty (1931-2007)
o antimaniqueísta desconfia que determinados juízos defendia, ao final da vida, a ideia de que, graças ao fato
de valor não possam ser encaixados entre as margens de a política do Ocidente ter se secularizado, a antiga
estreitas e mal ajustadas entre fazer o bem e fazer o mal. esperança transcendental de contar com um ser todo
Outra motivação para tal posicionamento envolve a poderoso foi sendo substituída pela ideia de que cabe
arbitrariedade que o antimaniqueísta percebe em outras a nós, seres humanos, levarmos as coisas adiante. Em
pessoas. Por vezes, um indivíduo adepto da concepção suma, para o filósofo, a concepção metafísica que cos-
moralista defende a sua capacidade de avaliar, julgar e tumava atribuir atos e vontades a uma deidade cede
condenar como adequada, superior e inquestionável lugar ao universo laico, ao dado concreto, à necessá-
- seja, ou não, em nome de deus, da lei ou de demais ria colaboração entre uns e outros. As polêmicas são
códigos pré-estabelecidos. É justamente por submeter cunhadas de modo polarizado, no entanto; e acompa-
as coisas a constantes revisões que o antimaniqueísta nham a marcha da humanidade. Elas provocaram a
se choca com aqueles que, alegando avaliar e salvar os cisão da filosofia na Antiguidade grega, opondo estoi-
outros, outorgam a si mesmos um estatuto tido como cos e epicuristas. Evidenciaram as divergências de pen-
mais elevado, que, em tese, permitem-lhes reafirmar, samento entre mestres e discípulos, com persistência de
com máximo empenho, o poder de julgar (tudo e todos) métodos no universo romano.
supostamente de modo benéfico, coerente e acertado. Na Alta Idade Média, revelaram-se nas diferentes
Do ponto de vista histórico, o Antimaniqueísmo é uma direções que judaicos e cristãos seguiram. No século
linha de pensamento de origem recente no mundo da VII, ganharam força diante do nascimento da religião
cultura e das ideias. Embora encontremos contestado- maometana, que interferiu definitivamente no con-
res do pensamento maniqueísta desde o Renascimento, junto de religiões e crenças, provocando nova ruptura
ele passou a ser mais difundido no século XIX. cultural e ideológica entre as duas bandas e hemisférios
Friedrich Nietzsche (1845-1900) pode ser consi- do planeta. No âmbito do maniqueísmo, pode-se dizer
derado como um representante moderno fundamen- que as polêmicas perduram há mais de dois milênios.
tal do Antimaniqueísmo. Em Além do bem e do mal, No século XVII, Baruch Spinosa (1632-1677) reforçou
cuja redação foi concluída em 1885, o pensador alemão o caráter assimilador e a unicidade de deus. Adepto
lança algumas das bases em defesa de uma nova pos- da moral cristã, ele assegurava a eternidade e imuta-
tura filosófica, que teria o papel de relativizar a con- bilidade das coisas, pois elas estariam relacionadas à
cepção moralista do universo. A seu ver, muitos dentre natureza e, portanto, consideradas imemorialmente

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como pertencentes a deus. Do ponto de vista cultural, respaldar a sua missão: a de encontrar o mal e dele isen-
o Antimaniqueísmo tanto ganha adeptos quanto adver- tar deus, em acordo com a teologia solar. Por se tratar
sários, à medida que avançamos no tempo. O sociólogo de uma religião parelela ao catolicismo, o maniqueísmo
Raymond Williams (1921-1988) foi um dos primeiros foi duramente alvejado pela igreja.
a oferecer os vários significados do vocábulo cultura. Convertido tardiamente ao catolicismo, o argelino
Em Palavras-chave, ele observava o fato de que, no Santo Agostinho, bispo de Hipona, pode ser conside-
século XVIII inglês, as pessoas cultas não costuma- rado como tendo sido a principal referência a condenar
vam enviar seus filhos à igreja. Esse é um dos tópicos essa doutrina teosófica fundada no Oriente. A partir
mais recorrentes, quando teístas e ateus trocam acu- de então, os maniqueus passaram a ser olhados com
sações, vinculando ou não o cultivo da fé ao grau de maior desconfiança, sendo aproximados dos heréticos,
cultura de cada um. inclusive. Agostinho tinha grande crédito. Ao negar os
Retomando o estudo de Williams, Terry Eagle- preceitos maniqueístas, procedeu com base em expe-
ton lembra que, a despeito de sua origem vinculada à riência de causa, já que ele mesmo comungara da dou-
natureza, a palavra cultura acumula múltiplas acepções, trina maniqueísta, quando mais jovem. Apesar de ser
especialmente o fato de ser algo que, estando sob nosso um grande adepto dos ensinamentos de Cícero, Agos-
controle (auto-cultivo), poderia ser mudada, portanto. tinho e seus seguidores passam a questionar o antigo
Algo diferente acontece quando se trata do culto à fé. orador romano. A obra agostiniana Contra os acadê-
Nesse caso, cultivar (no setindo de cultuar) envolve um micos traz diálogos entre os filósofos de suas relações.
conjunto de crenças que estão submetidas ao credo, ou Todos eles defendiam a crença em deus; buscavam a
seja, exprimem algo ligado ao nosso foro íntimo. Para verdade como índice de sabedoria e felicidade; descon-
o pensador inglês, a cultura pode favorecer a unidade fiavam dos papéis atribuídos aos sábios, tendo como
de pensamento, para além dos sectarismos da política alvo a própria academia.
e da religião. Já o historiador e antrópologo estaduni- No século XVIII, o padre francês Jean Mes-
dense Roy Wagner enfatiza o fato de que tomar cons- lier sugeriu que se revisitassem alguns pressupostos
ciência da coexistência de múltiplas culturas permite da igreja com base em uma concepção nitidamente
ao indivíduo situar-se espacial e temporalmente, em racionalista. Seu nome foi colocado à margem da his-
concomitância com a sua percepção do papel assumido tória, mas há estudos recentes a respeito de sua biobi-
pelo outro. Como se vê, abordar o Antimaniqueísmo bliografia, como aquele de Paulo Jonas de Lima Piva,
implica em empreender um conjunto de estudos que publicado em 2006. Em um misto de teologia e filo-
permitam comparar ataques e defesas à ideia da exis- sofia – a despeito de seus adversários, tanto cristãos
tência e vontades de deus, mediante diferentes crenças quanto muçulmanos –, o fato é que, com decorrer dos
e culturas. Também por esse motivo, é importante que tempos, a discussão ganhou um sentido não exclusiva-
se examine o maniqueísmo em suas origens: isso per- mente atrelado aos domínios da religião, tendo se avi-
mitirá comprender melhor o posicionamento dos anti- zinhado de uma série de temas relacionados ao nosso
maniqueístas, inclusive. cotidiano. Por isso, o termo maniqueísmo passou para
Sob a liderança de Corbicius, nascido em 216 – e o vocabulário moderno, ganhou as páginas dos jornais
que recebeu o título honorífico de Mani por seus discí- e multimeios contemporâneos, sendo hoje comumente
pulos - o maniqueísmo foi fundado na Babilônia prova- utilizado pelos indivíduos em geral, que muitas vezes
velmente em 242, data em que passou a ser disseminado ignoram a origem histórica e controversa da palavra.
após Mani afirmar ter recebido a segunda visita de um No sentido mais genérico que esse conceito adquiriu
anjo que o teria encarregado de divulgar a nova pala- em nossos dias, ele pode ser ilustrado por alguns fil-
vra. Os maniqueus tinham como missão disseminar o mes e romances, especialmente quando o cinema e
evangelho da verdade, segundo os desígnios de Mani, a literatura lançam mão de pressupostos e métodos
que interpretava o Novo Testamento como forma de moralizantes na condução e desfecho de determinados

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ANTIMANIQUEÍSMO | 73

enredos. Sob esse aspecto, o maniqueísmo comparece gráfico, assim como determinados filmes e games
nos antigos filmes de faroeste, em que o homem branco ilustram bem, no século XXI, a persistência de uma
– representante da conquista, da civilização e da ordem concepção dividida entre mocinhos e bandidos; entre
–, invariavelmente cooptava ou derrotava os índios, governos que se afirmam democráticos, frente aos regi-
maus e embrutecidos pela vida na tribo. mes que eles nomeiam como ditatoriais.
O dualismo pode ser ilustrado por alguns dese- Diante desses episódios, o Antimaniqueísta sugere
nhos animados, a começar pela escolha das cores que que relativizemos os conceitos de democracia e tota-
identificam tanto os aliados – suas armas, roupas e litarismo. Para isso, recomenda que se pesquise o uso
brasões –, quanto os seus rivais; nos seriados mono- dos termos ao longo da história, sem perder de vista o
temáticos exibidos na televisão via cabo; no discurso seu uso em diferentes culturas. Uma concepção mani-
de algumas autoridades filosóficas ou eclesiásticas, ao queísta pode favorecer a massificação de discursos e
contrapor as boas às más ações; na fala de determina- vídeos disseminados on line; conferir maior ou menor
dos políticos, quando se autodenominam homens de popularidade a jornalistas e apresentadores de telejor-
bem, como algo diferencial em relação ao seu adver- nais, justamente por se mostrarem adeptos dessa forma
sário; nas discussões científicas que envolvem pesqui- de ver (ou fingir ver). O Antimaniqueísta posiciona-se
sadores adeptos do criacionismo versus os defensores defensivamente frente a essas vozes, principalmente
do evolucionismo; nas contendas entre intelectuais em quando redundam em julgamentos apressados, levia-
geral, especialmente quando suas orientações filosófi- nos ou pouco consistentes, já que é difícil assegurar os
cas, científicas ou religiosas são diferentes. Decantado limites entre a honestidade e a ganância dos veículos de
ao longo de praticamente dois mil anos, o mani- notícia. É que o Antimanqueísta não costuma aceitar
queísmo pressupõe uma antiga e extremada oposição as coisas como dadas, tampouco julgadas ou decididas
entre homens bons e homens maus, em que os pri- previamente. Nisso, ele se aproxima da postura do cético
meiros afirmam ter o direito e o dever de corrigir ou (palavra que em seu sentido original, na Grécia antiga,
aplicar sanções aos demais. Frente a um pensamento referia-se àquele que investiga), despertando múltiplas
que almeja o estatuto de paradigma moral, é justamente reações por parte daqueles que pensam em sentido
contra essa visão dicotômica, ladeada por extremos, binário, e portanto oposto. Em uma acepção mais sim-
que o Antimaniqueísta se posiciona. Uma das princi- ples e objetiva, pode-se afirmar que o Antimaniqueísta
pais ressalvas que se poderiam fazer ao maniqueísmo desconfia dos pensamentos que revelem caráter dog-
diz respeito à aceitação do outro, o que se coloca em mático. Para o historiador estadunidense Charles Lan-
paralelo com a necessidade de matizar, relativizar desman, o indivíduo dogmático caracteriza-se por crer
determinadas formas de pensamento. Em seu sentido incondicionalmente, sem admitir questionamentos de
mais recente, com frequência o termo é evocado por critério, cor e forma. Talvez esta seja uma concepção
críticos de arte, e mesmo por comentaristas em geral, das mais proveitosas, a fim de entendermos as razões
quando uns e outros referem-se a questões polêmicas. que motivam o adepto do antimaniqueísmo.
É o que se percebe em programas televisivos ou veicu- Vale lembrar, no entanto, que o posicionamento
lados via internet, ao defender e propagar a existência refratário ao dualismo não impede que o indivíduo
de penas mais rígidas aplicáveis aos suspeitos de crimes siga a sua religião e mantenha a sua fé. Afinal, trata-se
ou infrações. O discurso maniqueísta atrai multidões mais de uma postura que de um dogmatismo visto pelo
aos cinemas, da mesma forma como eleva a audiência avesso. Por isso, adeptos do Antimaniqueísmo também
das emissoras de rádio e televisão. Mas, pelos mesmos podem ser encontrados entre praticantes de diversas
motivos, repele muitos espectadores desconfiados do religiões. Sirvam de exemplo os feitos da Teologia da
ufanismo em torno de valores duais, especialmente libertação – corrente com forte atuação, especialmente
quando tomados de empréstimo, por intermédio de na Europa e na América Latina, a partir da década de
manobras de aculturação. Artistas do mercado fono- 1960 –, que congrega um grupo católico, desde então

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74 | Jean Pierre Chauvin

aplicado ao estudo de uma economia mais solidária, ideias seria um ato incoerente. De quebra, implicaria
tendo em vista a redução das desigualdades sociais no reforçar a convicção em um único reduto de determi-
mundo. À luz do racionalismo cartesiano, a partir do nada moral – suprema e transcendente. Ancorada em
séc. XVII; do iluminismo capitaneado pelos enciclo- um discurso que pretende justificar as prerrogativas
pedistas franceses, na virada para o século XVIII; do de uns e outros, essa concepção implica a valorização
pensamento dialético, com base na filosofia hegeliana; do livre-arbítrio e defende a possibilidade de serem
e em especial, à luz do materialismo histórico, proposto estabelecidas cláusulas mais brandas; de compormos
por Karl Marx (1818-1883), essa corrente representa discursos de meias tonalidades; de considerarmos as
um sensível avanço das ideias liberais por entre os seto- nuanças percebidas nas coisas em geral. O antimani-
res mais conservadores da igreja. É o que se percebe ao queísta preferencialmente pensa e age em acordo ou a
examinar o discurso e as ações de seus adeptos, den- demonstrar tolerância para com o outro. Assim, visa
tre os quais deve-se destacar o papel de alguns grupos a respeitar diferentes graus, formas e intensidades de
libertários – combinados ao trabalho social assumido comportamento, contemplando mais de uma possibi-
pelas pastorais no interior da igreja católica –, dentre lidade de se chegar ao consenso. Sua postura envolve
os quais despontam os brasileiros Frei Betto (preso sentir, pensar e agir conforme o que os envolvidos per-
durante a ditadura no país, na segunda metade de mitem e pede cada ocasião.
1960) e Leonardo Boff (que protagonizou grave polê-
mica com o Vaticano, na década de 1980).
Em nossos dias, cultivar a descrença ou relativi- BIBLIOGRAFIA
zar a crença em deus são atitudes que costumam ser
interpretadas como uma forma inovadora e radical de ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5a ed.
conceber o universo, porque menos presa às amarras Coordenação da Tradução: Alfredo Bosi. São Paulo:
morais embasadas pelo Direito, pela ordem instituída ou Martins Fontes, 2007.
pela Religião. Sob essa perspectiva, tanto as leis quanto
os costumes e dogmas estariam sujeitos a uma cons- AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. Tradução:
tante desconfiança por parte dos Antimaniqueístas, que Enio Paulo Giachini. Petrópolis (RJ): Vozes, 2014.
defendem uma visão menos extremista e assimétrica das
coisas, em favor de um mundo dinâmico. Por outro lado, BAZÁN, Francisco García. Gnosis: la essencia del dua-
diversas reflexões a respeito da pós-modernidade reve- lismo gnóstico. Buenos Aires: Castañeda, 1978.
lam a inquietação de pensadores, psicológos e demais
intelectuais justamente por acreditar na falta de uma BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder - ensaios de
unidade moral e ética nos seres ditos humanos. eclesiologia militante. 3A ed. Petrópolis (RJ): Vozes,
Talvez a questão possa ser ampliada em outros 1982.
termos. Como o antimaniqueísta tende a relativizar
os conceitos dados e os pressupostos da moral, ele COSTA, Marcos Roberto Nunes. Maniqueísmo: Filoso-
costuma assumir uma postura (e, nesse sentido, uma fia e Religião. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 2003.
ética) diferente daquela exercida por aqueles com
que convive. Por essa razão, ética e moral merecem EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. 2a ed. Tradução:
ser estudadas com cuidado, pois se trata de conceitos Sandra Castello Branco. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
sobremodo diferentes, ainda que possam ser conside-
rados como termos complementares. De maneira geral, ESPINOSA, Baruch de. Breve tratado de Deus, do
os religisosos defendem que a dimensão temporal está homem e do seu bem-estar. Tradução: Manuel Angelo
subordinada à espiritual. Para um antimaniqueísta, no da Rocha Fragoso; Luís César Guimarães Oliva. Belo
entanto, submeter o âmbito do concreto ao plano das Horizonte: Autêntica, 2012.

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ANTIMANIQUEÍSMO | 75

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cela Coelho de Souza; Alexandre Morales. São Paulo:
Cosac Naify, 2012.

WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave [um vocabulário


de cultura e sociedade]. Tradução: Sandra Guardini Vas-
concelos. São Paulo: Boitempo, 2007.

O AUTOR
Jean Pierre Chauvin Professor de “Cultura e Literatura Bra-
sileira” junto ao Departamento de Jornalismo e Editoração
da ECA (Escola de Comunicações e Artes), USP. É Mestre
(1999-2002) e Doutor (2003-2006) em Teoria Literária e Lite-
ratura Comparada (USP); graduado em Letras (Português)
pela mesma Universidade (FFLCH, 1995-1998), onde também
concluiu a Licenciatura Plena (FE, 1999-2000). Autor de O
Alienista: a teoria dos contrastes em Machado de Assis (Reis,
2005) e O poder pelo avesso na literatura brasileira (Anna-
blume, 2013). E-mail: tupiano@usp.br

REVISTA DE ESTUDOS DE CULTURA | Nº 01 | Jan.Abr./2015


REVISTA DE ESTUDOS DE CULTURA | Nº 01 | Jan.Abr./2015
Thiago Borges de Aguiar

O ANTIMEDIEVALISMO NO BRASIL

RESUMO:
No contexto da observação de fenômenos ou movimentos culturais que se cons-
tituem em oposição a um Outro, procuramos, neste texto, construir uma análise
sobre a ocorrência do antimedievalismo no Brasil. Como fenômeno importado das
camadas intelectuais da Europa e espalhado pela escola e pela mídia, o antimedie-
valismo se constitui como um conjunto de narrativas nas quais a Idade Média é
vista como uma realidade histórica de um período de trevas, violência, ignorância
e domínio da Igreja Católica. Mesmo com o desenvolvimento de pesquisas histó-
ricas (aqui ou no exterior) que mostram, se não o oposto a esta visão, pelo menos
os diferentes matizes que envolvem a compreensão de dez séculos da história da
humanidade, ainda há forte presença do antimedievalismo no Brasil. Para explorar
alguns modos de inserção cultural e circulação de discursos antimedievalistas no
Brasil, trazemos neste texto exemplos desse fenômeno de difusão de uma inter-
pretação histórica eurocêntrica e iluminista em textos didáticos, letras de música e
artigos de jornal.
Palavras-chave: Idade Média; culturas em negativo; historiografia.

* Doutor em Educação na
área de História da Educação
e Historiografia.
E-mail: tbaguiar@unimep.br

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ANTIMEDIEVALISM IN BRAZIL EL ANTIMEDIEVALISMO EN BRASIL

ABSTRACT: RESUMEN:
In the context of observation of phenomena or cultural move- En el contexto de la observación de fenómenos o movimien-
ments which are constituted in opposition to an Other, we tos culturales que están en oposición a Otro, buscamos, en
search, in this text, to build an analysis about the occurrence este texto, construir un análisis sobre la ocurrencia del anti-
of antimedievalism in Brazil. As an imported phenomenon medievalismo en Brasil. Como fenómeno importado de
from the European intellectuals spread by the schools and capas intelectuales de Europa y esparcido por la escuela y los
media, antimedievalism is constituted as a group of narrati- medios de comunicación, el antimedievalismo es como un
ves in which the Middle Ages are seen as a historical reality conjunto de narrativas en las que la Edad Media es vista como
of a period of darkness, violence, ignorance and dominion of una realidad histórica de un período de oscuridad, violencia,
the Catholic church. Even with the development of historical ignorancia y dominación de la Iglesia Católica. Incluso con
researches (here and abroad), which show, if not the opposite el desarrollo de las investigaciones históricas (aquí o en el
to this vision, at least the different hues which involve the com- extranjero) que muestran, si no lo opuesto a esta visión, por
prehension of ten centuries of history of humanity, there is lo menos los tonos diferentes que implican comprensión de
still a strong presence of antimedievalism in Brazil. In order to diez siglos en la historia de la humanidad, aún hay una fuerte
explore some ways of cultural insertion and circulation of anti- presencia del antimedievalismo en Brasil. Para explorar algu-
medievalist discourses in Brazil, we bring in this text examples nas formas de inserción cultural y circulación de discursos
of this phenomenon of diffusion of a historical, eurocentric antimedievalistas en Brasil, traemos en este texto ejemplos
and illuminist interpretation in textbooks, lyrics and newspa- de este fenómeno de difusión de una interpretación histó-
per articles. rica eurocéntrica e iluminista en los libros de texto, letras de
Keywords: Middle Ages; cultures in negative; historiography. música y artículos periodísticos.
Palabras clave: Edad Media, culturas en negativo;
historiografía.

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PARA QUE OCORRA um fenômeno como o antime- o antimedievalismo à Europa. Isso porque referir-se
dievalismo, é necessário que primeiro exista uma Idade ao passado chinês, hindu ou ameríndio com o termo
Média, de modo que possamos construir uma oposição “Idade Média” consiste numa interpretação excessiva-
à sua existência. É preciso que saibamos da existência mente eurocêntrica da histórica, como se a história da
de um período medieval para que possamos nos dizer Europa fosse a base para a história do mundo. Dizer,
contrários a ele. Estamos hoje muito acostumados ao por exemplo, de um antimedievalismo dos colonizado-
conceito de Idade Média e, apesar desse conceito estar res da América em relação aos povos que aqui habita-
sujeito a diversas revisões e discussões historiográ- vam antes das Grandes Navegações não faz sentido.
ficas, continuamos a utilizá-lo no senso comum, em Outro aspecto importante é que o antimedieva-
nossas produções culturais, nas escolas e nas univer- lismo na Europa se desenvolve, inicialmente, nos cír-
sidades. Ela é uma categoria histórica tão fortemente culos intelectuais. Um italiano do século XV que não
enraizada em nossa cultura que temos dificuldade em fosse um intelectual, mesmo se olhasse para seus ante-
separar o período que denominamos tradicionalmente passados e os considerasse ultrapassados, místicos, ou
de Medievo da ideia de Idade Média. Acontece que nós qualquer outra crítica que pudesse levantar, este olhar
inventamos uma categoria histórica de frágil unidade só se configuraria em um antimedievalismo se ele
teórica, projetamos essa categoria para o passado (com olhasse para o passado com a categoria unificante de
os olhos do presente) e passamos a considerar que exis- Idade Média. O que estava longe de ser algo presente
tiu, efetivamente, uma Idade Média. no senso comum.
Essa consideração é fundamental para conseguir- Nesse sentido, o antimedievalismo é um fenô-
mos colocar em um limite cronológico e semântico meno tipicamente intelectual, escolarizado, que precisa
o início e o desenvolvimento do antimedievalismo. da cultura letrada para ser transmitido até ganhar força
Não existiu antimedievalismo durante a Idade Média, suficientemente grande para se fixar no senso comum.
pelo fato de que não existiu “Idade Média” durante Ainda assim, ele se fixa por meio da circulação de uma
a Idade Média. Só há antimedievalismo a partir do cultura acadêmica que o divulga.
momento em que se começa a conceber o conceito Na medida em que alguns europeus começam
de Idade Média. a questionar pressupostos que lhe pareciam mais ou
Isso ocorre entre os humanistas do Renascimento menos estáveis em seus antepassados mais próximos,
italiano no século XV, que começam a utilizar expres- em especial a primazia do sagrado no cotidiano, a cen-
sões referentes aos séculos anteriores com a ideia de tralidade das questões dos eruditos na ordem da divin-
tempo “médio”, intermediário entre a Antiguidade dade, as relações sociais baseadas em agrupamentos
Clássica e o tempo de renascimento que eles viviam. sociais de pouca mobilidade, eles começam a construir
Mas a consolidação do termo Idade Média ocorre uma nova imagem de si. Este é o processo que inicia
quando Christoph Keller (Cellarius), erudito alemão o que tradicionalmente chamamos de Modernidade
do século XVII, consolida a divisão da história em e que, na Europa, cresce, em especial, no período do
antiga, medieval e moderna e passa a tratar o segundo século XV ao XVII, como um movimento antimedie-
período como uma pausa na história, na qual declínio, valista per se.
barbárie, ignorância e intolerância foi tudo o que ocor- A modernidade rompe com o período anterior
rera naquela época (BARRACLOUGH, 1964, p. 75-76). nos campos da economia, política, cultura, mentali-
Só há, contudo, um antimedievalismo se há uma dade, estilo de vida, conscientemente contra as práxis
perspectiva de passado medievalista. Não faz sentido dos economistas, políticos e intelectuais do Medievo.
pensar em uma crítica ao medievo e às suas caracte- Período de reorganização dos saberes e dos poderes
rísticas se não houver um reconhecimento do Medievo sobre novas formas diante de uma pluralidade semân-
como tempo histórico. Nesse sentido, é necessário, em tica e de modos de viver e agir no mundo, a moder-
um primeiro momento, restringir geograficamente nidade se constrói ao longo de séculos em torno do

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indivíduo. (CAMBI, 1999, P. 38-39). É nesse cabedal lismo no Brasil ganham outro caráter. No antimedie-
semântico que construímos a ideia de Idade Média e, valismo que aqui se instala, e que assim também se
simultaneamente, demos início ao antimedievalismo. insere em um espectro mais global, há algo de “errado”
Colocar como antimedieval toda a produção da na Idade Média e esse “erro” pode ser utilizado como
Modernidade seria obscurecer justamente o caráter de argumento para se defender as mais diversas posi-
negação do outro que práticas especificamente antime- ções. A crítica ao medievo deixa de ser uma crítica aos
dievais possuem. Queremos caracterizar o antimedieva- antepassados e se torna um discurso utilizado para os
lismo apenas quando da utilização explícita dos termos fins mais diversos de crítica ao outro. Julga-se a ação
“Idade Média” ou “medieval”. Isso porque entendemos do outro como “medieval”, como modo a negar a vali-
que inúmeras formas de construção de discursos “anti” dade, legalidade, a humanidade e a contemporaneidade
poderiam aparecer associados a um antimedievalismo, daquela ação. O medievo torna-se o tempo do erro, das
como um anticlericalismo, anticristianismo, antidog- trevas, da barbárie, do misticismo, da irracionalidade.
matismo, antimonarquismo, antirracionalismo, antito- Mas não foi bem assim. O período que chamamos
mismo, antipapalismo ou antirrealismo, dependendo de Idade Média vai da conquista da Gália, por Clóvis
do modo como estes discursos se construíram. (século V) ao fim da Guerra dos Cem Anos (século
Como um movimento europeu, o antimedieva- XIV), se tomarmos a França como parâmetro principal
lismo só se expande por outras terras a partir da expan- ou da queda do Império Romano do Ocidente (476) ao
são colonizadora europeia. Se considerarmos a história saque de Constantinopla (1453), se tomarmos o Impé-
das terras brasileiras nesse período, portanto tradicio- rio Romano como parâmetro. No entanto, ele é apenas
nalmente já da Modernidade, teremos dificuldade em uma abstração. Não existe Idade Média. Nos termos de
caracterizar o fenômeno antimedievalista no período Amalvi (2006, p. 537), em relação à França, ela é:
colonial. A ação jesuítica de conversão dos índios não
se caracteriza por uma oposição a um passado medie- uma fabricação, uma construção,
val. Talvez nem seja possível dizer que a ação jesuítica, um mito, quer dizer, um conjunto
de representações e de imagens em
como um todo, contenha algum traço dessa oposição.
perpétuo movimento, amplamente
Se suas práticas, por um lado, guardavam caracterís-
difundidas na sociedade, de geração em
ticas do movimento moderno de contrarreforma, por geração, em particular pelos professores
outro lado, este movimento não se definiu em oposição do primário, os “hussardos negros”
ao passado, mas em reforma do presente. da República, para dar à comunidade
Como estamos em busca de um fenômeno de nega- nacional uma forte identidade cultural,
ção explícita da Idade Média, devemos buscar, na histó- social e política.
ria brasileira, sua ocorrência em atividades intelectuais
que tenham por base a importação de discursos euro- Essa construção possui como representações habi-
peus iluministas. É por isso que concentramos nosso tuais no senso comum os reis e os castelos, a cavala-
olhar em práticas posteriores à expulsão dos jesuítas. É ria, as festas e suas roupas, as igrejas e sua arquitetura,
somente a partir do período imperial, e, como veremos, perseguição às bruxas (mais especificamente a de Joana
mais próximo da expansão das ideias republicanas, que D’Arc), trabalho dos servos. São menos presentes ao
encontraremos as principais expressões do antimedie- grande público as mudanças causadas pelo mercanti-
valismo no Brasil. lismo, os embates políticos e religiosos da Alta Idade
Mas uma ressalva é importante: se, num primeiro Média, as instituições educativas, as tradições e debates
momento, no ambiente intelectual europeu, o antime- teológicos e filosóficos, a produção cultural que ultra-
dievalismo configurou-se num movimento de crítica passa uma caricatura transmitida pelo cinema.
aos antepassados, no Brasil essa crítica específica não Não somente essa intensa produção cultural des-
faz sentido. Por isso, as ocorrências do antimedieva- ses cerca de mil anos é pouco conhecida entre nós,

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especialmente no Brasil, como a intensa presença de mantenha-se presente em nossa cultura. Não seria dife-
características medievais em nossa cultura contempo- rente, visto que este movimento é forte na Europa até
rânea. Lauand (2007), por exemplo, propõe compreen- cerca de dois séculos atrás.
dermos expressões de indeterminação em nossa língua Considerando as construções dos humanistas
portuguesa a partir do gênero neutro do latim medieval italianos do século XV (ou até mesmo XIV se lem-
e do pensamento de Tomás de Aquino. brarmos de Petrarca) até as dos iluministas do século
As heranças medievais para nosso século são inú- XVIII, podemos afirmar que o antimedievalismo se
meras. Franco Júnior (2006, p. 157 e seguintes) traz constrói no próprio desenvolvimento do conceito
uma longa lista do patrimônio linguístico, político, de de Idade Média na Europa. Os renascentistas desen-
valores sociais, intelectual, científico, psicológico, ima- volveram seu antimedievalismo a partir da ideia de
ginário, mítico-utópico que o ocidente deve ao período interrupção no progresso humano, o século XVII
medieval. Não é à toa que ele usa a expressão “Nasci- considerou esse período como tempo de barbárie,
mento do Ocidente” para o período. O autor vai mais ignorância e superstição e o século XVIII criticava a
além ao afirmar que voltar aos estudos da Idade Média forte religiosidade medieval, o pouco racionalismo e
serve de uma reaproximação de nossas raízes, em uma o exagerado poder político da Igreja (Franco Júnior,
época na qual havia um sentido para a vida, o que nos 2006, p. 12). O antimedievalismo se transmuta em
fortalece diante de uma vida vazia da sociedade con- veneração pelo medievo no Romantismo do século
temporânea. (p. 171) XIX. “O século XVIII detesta a Idade Média que o
No que diz respeito à herança medieval no Brasil, Romantismo venera”, lembra Amalvi (2006, p. 539).
o autor (p. 168-170) lembra que o nome de nosso país Amalvi traz ainda a força da presença do medievo
vem da ideia mítica de uma “ilha afortunada” (O’Bra- no cinema Hollywoodiano da primeira metade do
zil), ideia igualmente presente em Chauí (2000). A século XX, com características como “o cenário colos-
língua portuguesa também é de origem medieval. O sal, a abundância de figurantes, a beleza e o luxo das
sistema de capitanias, o mesmo usado pelas comunas vestes e, sobretudo, a absoluta indiferença em relação
italianas medievais em suas colônias, deixou raízes na à ‘concordância dos tempos’!”. Esclarece o autor a res-
configuração da grande força dos poderes locais em peito deste último item: “Quando Hollywood se apro-
nosso país, juntando a isso, a família patriarcal e um pria da herança cultural europeia, ignora soberbamente
direito no qual a coisa pública pertence aos mais for- a verossimilhança histórica e não hesita em jogar aber-
tes e poderosos. A valorização das aventuras (originá- tamente com o anacronismo.” (p. 544).
ria de cavaleiros, cruzados, mercadores medievais) em Entendemos que, ao mesmo tempo em que
oposição ao trabalho cotidiano e rotineiro, bem como essa prática denota uma veneração pelo medieval,
a característica agrária da economia, assemelha-se à ela traz uma das mais importantes características
Europa da alta idade média. Ariano Suassuna, o músico do antimedievalismo: a repetição das mesmas
Elomar bebem, conforme o autor, de fontes medievais. representações mantendo a ignorância em relação ao
De nossos feriados oficiais, onze são de origem medie- período. Essas produções constroem uma imagem
val, bem como festas como Carnaval, Bumba meu boi fixa de Idade Média, fazendo com que se cristalizem
e a Procissão do Círio. Também nossa religiosidade, a imagens que abrem espaço para a manutenção das
constituição do cristianismo no Brasil e a sensibilidade outras mais pejorativas.
coletiva brasileira possuem fortes traços medievais. Só mais recentemente é que as produções cultu-
Nos últimos anos, a produção historiográfica dis- rais, de acordo com o autor, buscam apresentar uma
ponível sobre a Idade Média, inclusive no Brasil, já ampla erudição em relação ao período: “hoje, o autor,
permite uma releitura desse período e dessa categoria para evitar o pecado mortal do anacronismo, tornou-se
histórica. Infelizmente, boa parte circula apenas entre especialista, e a aparência dos heróis e dos figurantes
especialistas, o que faz com que o antimedievalismo das obras de ficção, sejam romanescas ou cinematográ-

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ficas, são a réplica exata daquela das personagens das histórico difundido em alguns desses manuais: a asso-
miniaturas medievais.” (p. 547) ciação direta entre Idade Média e feudalismo, como
É o que encontramos mesmo no Brasil, quando se ambos coexistissem cronologicamente. Sendo um
vemos na imprensa dos dias de hoje, por exemplo, o modelo social que vigorou entre os séculos IX e XIII,
uso do termo medieval de modo menos pejorativo e o feudalismo não pode ser tomado como base de fun-
mais especializado. No entanto, o antimedievalismo cionamento da sociedade entre os séculos V e XV.
continua presente e deve continuar por ainda algum Igualmente, a Igreja, instituição milenar, que inclusive
tempo em função de um privilegiado espaço de sua ultrapassa o período medieval, não detinha enormes
transmissão: a escola. feudos em todos os momentos da história. Um dos
Não estamos tratando a instituição escolar como erros apontados pelas autoras é considerar a Igreja
espaço homogêneo de transmissão do conhecimento. detentora de grandes feudos logo no século V, quando
Consideramos aqui a multiplicidade de nuances que não havia esse sistema econômico e social.
o processo de aprendizado possui, com suas condicio- Decorrente dessa leitura encontra-se a ideia de que
nantes curriculares, sociais, políticas e ideológicas, mas a Igreja só teve uma trajetória relevante durante o feu-
optamos por não nos aprofundarmos nesta questão dalismo, fazendo com que sua atuação na Alta Idade
aqui. O que recortamos para este espaço é que observa- Média apareça como de uma “opressora e tirana”, dei-
mos a construção de um discurso antimedievalista no xando de lado sua contribuição na organização social e
espaço escolar na medida em que o ensino de história na transmissão do conhecimento. Sem dúvida, além de
ajude a construir e a manter a noção de Idade Média uma leitura do passado com os olhos do presente, um
como fase de transição, de existência real com limites sentimento de anticlericalismo pode estar associado a
cronológicos definidos, cujo ensino deve ser rapida- essa imagem unilateral e homogeneizante da Igreja.
mente feito para chegar logo ao período histórico real- A visão dos Vikings e da Igreja presentes em
mente relevante: a Modernidade. alguns livros didáticos ajuda a preservar o sentimento
Encontramos, em pesquisas sobre o ensino de de antimedievalismo, na medida em que homogenizam
história, exemplos significativos do modo como a em estereótipos um período de cerca de mil anos, este-
Idade Média é tratada nas escolas brasileiras. Langer reótipos estes sempre carregados de conceitos negati-
(2002) aponta para a visão deturpada que os povos vos como barbárie e tirania.
escandinavos da Alta Idade Média recebem em livros É por isso que Pereira (2009, p. 123), ao analisar as
didáticos. Os Vikings são tratados como guerreiros presenças da Idade Média na cultura escolar e os con-
com chifres nos chapéus, cruéis, torturadores de suas flitos entre o aprendido pelos professores de história
vítimas, que bebem cerveja e hidromel nos crânios de em sua formação inicial e o presente na memória cole-
suas vítimas. O autor propõe que esse estereótipo cir- tiva, aponta a insistência de um ensino eurocêntrico e
cula na cultura por meio de canais como o cinema, a iluminista do conteúdo referente ao período medieval.
TV, a literatura e os quadrinhos (lembremo-nos, por Para o autor, “a história medieval é um objeto de estudo
exemplo, de Asterix e de Hagar, o horrível). Ao anali- pouco solene nas salas de aula, exceto quando encanta,
sar livros didáticos de história, Langer mostra exem- por vezes, por aquilo que nunca foi, senão na imagina-
plos desse estereótipo retratando ilustrações desses ção dos homens do presente.”
livros, bem como erros de datação e confusão entre Em sua reflexão sobre o que a cultura escolar
culturas dos povos bárbaros (usando nomes Vikings transmite sobre a Idade Média, Pereira destaca três
para referir-se a divindades germânicas). problemas. O primeiro, já apontado acima a partir
Ribeiro e Oliveira (2009) trazem exemplos de do estudo de Ribeiro e Oliveira, é a associação entre
como a Igreja é retratada erroneamente em livros didá- Medievo e Feudalismo, bem como, por decorrência
ticos. Um dos principais estereótipos desta instituição, dessa generalização, que só houve história entre os
a de “grande senhora feudal”, vem associado a um erro séculos V e XV na Europa. O que acontecia no resto

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do mundo não é considerado. O segundo problema é sociedade está o principal foco do antimedievalismo.
a caracterização da sociedade medieval como única e Adicionalmente, para observarmos expressões do
idêntica em toda a Europa e em todo o período, dividida discurso antimedieval em tempos anteriores no Brasil,
em três ordens (os que trabalham, os que lutam e os fizemos um levantamento em jornais impressos. Um
que rezam), que nunca se modificou mesmo diante das mapeamento sistemático das ocorrências de termos
inúmeras mudanças culturais, políticas e econômicas. como “medieval” e “Idade Média” na imprensa brasi-
E, por fim, com relação à cultura, tudo o que o Medievo leira, estatisticamente tratado, é um trabalho grande
produziu foram a arquitetura (românica e gótica), o demais para ser feito por uma única pessoa. Com o
trabalho dos monges copistas e a presença da Igreja na apoio da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional,
produção cultural, o que faz parecer que toda a cultura encontramos algumas impressões iniciais que podem
seja pouco criativa (afinal, é apenas cópia) e totalmente servir de norte para pesquisas posteriores.
dependente da Igreja. É para refletir sobre a constru- Como uma análise quantitativa, seja em valo-
ção histórica destes estereótipos e o modo como eles res absolutos, seja em valores relativos, exigiria outra
se ampliam para outras histórias que Pereira (2012) densidade de análise, podemos apontar, apenas, que
propõe olhar para o ensino de história a partir de um encontramos pouquíssimas referências a esses termos
“dispositivo de medievalidade”, para o qual remetemos nos periódicos anteriores a 1880. A maior parte das
o leitor ao texto desse autor. referências utiliza esses termos, especialmente o adje-
O antimedievalismo não é um movimento orga- tivo medieval, em ligação com apresentações teatrais,
nizado que se constitui em função da segregação de obras arquitetônicas ou cidades europeias.
grupos. Ele se constitui como uma oposição difusa a Mas se não conseguimos mapear estatisticamente
uma ideia. Torna-se uma tradição, um uso do senso a significância do crescimento do número absoluto de
comum em uma sociedade letrada, que aprende, pela citações desses termos, é possível observarmos, quali-
escola, que a Idade Média foi um período de trevas. É tativamente, uma presença de usos que denotam um
antimedieval a assunção, por exemplo, que tortura é antimedievalismo. Eles se tornam mais frequentes
uma prática medieval, em geral pela associação com no período republicano, especialmente na primeira
as práticas de tortura da Inquisição. Mas, não nos metade do século XX. Por que esses usos parecem se
esqueçamos, parte importante da história da violenta tornar mais intensos na República deixamos apenas
Inquisição, por exemplo, a espanhola, ocorreu no no nível da conjectura, considerando o crescimento
século XVI. Igualmente, a tortura já foi utilizada por do número de escolas no Brasil, bem como do número
inúmeros outros povos. Mas a aproximação destas duas de impressos e da maior circulação de pessoas e ideias
palavras, faz parecer que a pior tortura já realizada entre nosso país e a Europa. Não podemos nos esque-
tenha sido a medieval. cer, também, da influência do cinema Hollywoodiano
As visões sobre Idade Média por vezes vêm acom- apontada por Amalvi.
panhadas de certo culto ao passado, como as constantes A título de exemplificação, separamos cinco exem-
remissões a famosas histórias e lendas medievais, como plos em dois momentos distintos: segunda metade do
os cavaleiros da távola redonda, a Divina Comédia, século XIX e meados do século XX. Os dois primeiros
o romance de Abelardo e Heloísa, a história de Joana representam os poucos exemplos encontrados nos jor-
D’Arc. Não foram raros os registros da imprensa bra- nais do período imperial do uso da expressão medieval
sileira, por exemplo, de festas que utilizaram alguma de forma pejorativa. Os três últimos ilustram os exem-
remissão à Idade Média, especialmente roupas e cas- plos encontrados em maior quantidade nos jornais ao
telos. No entanto, esse caráter pitoresco esconde jus- longo do período republicano.
tamente uma visão de Idade Média como passado O jornal O Cearense, na primeira página da edi-
ultrapassado, distante e superado. E na superação das ção de 31/03/1874, publica um artigo no qual seu autor
supostas características medievais ainda presentes na defende ideias liberais. Escreve o autor:

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Há uma eschola politica, que desco- intitulado “Allucinação”, na qual o jornalista Renato de
nhece a lei progressiva das idéias e faz Alencar destaca seu “caracter instructivo”, visto que as
parada do immobilismo, pretendendo
pessoas que o assistirem poderão “beber interessan-
solver todas as questões sociaes por
tes ensinamentos da nova sciencia psychologica tão
meio da logica medieval do magister.
Para ella o futuro é a continuação do
difundida por Freud”, opondo-as à tese então quase
presente, senão a volta para o passado. abandonada de Lombroso sobre o “criminoso nato”. É
O seu ideal de felicidade, a sua idade de então que o resenhista afirma:
ouro lhe fica á quem da jornada (O Cea-
rense, 31/03/1874). Desde muito que os criminologistas
vêem sustentando a necessidade
Neste uso, a autoridade atribuída ao magister na de estudar-se o criminoso antes de
julgar-se o crime. A éra grosseira e
Idade Média é tomada como equivocada e ultrapas-
medieval de classificar-se e punir-se
sada. As ideias liberais surgem em oposição às ultrapas-
o delinquente pelo delicto, e não o
sadas (medievais) ideias conservadoras da monarquia. crime pelo criminoso, felizmente já
Em outro exemplo de doze anos depois, encontramos se vai sumindo no passado (Gazeta
a associação entre Idade Média e violência. O jornal de Notícias, 25/2/1940).
Diário de Notícias (RJ), de 28/09/1886, possui matéria
intitulada “Entaipado vivo”, com subtítulo “Um crime O mesmo jornal, na edição de 23/5/1940, na
misterioso” e mais um subsubtítulo “Horror medieval seção Marinheiras, possui um artigo de auto-
em pleno século XIX”. Diz o texto:
ria de Paulino Jacques comentando a aplicação
Têm sido muito frequentes em Pariz nos das leis. Afirma o autor:
ultimos tempos, os crimes mysteriosos,
alguns d’elles horriveis pelas Administrar justiça não é, unicamente,
circumstancias que os acompanham. applicar as leis aos casos ocorrentes, mas,
Comentando esses factos, especialmente sobretudo, harmonizar interesses em
num dos ultimos – o d’uma mulher cujo choque, prover necessidades, mantendo
cadaver os pedaços appareceram em o equilibrio juridico na ordem social. A
diversos pontos de Pariz – um jornal autoridade judiciaria, em vez de um frio
conta o seguinte caso, que mais parece aplicador do preceito legal, sem alma e
uma phantasia inspirada pela recordação coração, como um carrasco medieval,
das crueldades da Inquisição, do que a deve transformar-se num verdadeiro
narrativa d’um crime possivel aos nossos patricarcha, num bom pae de familia
tempos. (Diário de Notícias, 28/9/1886) nacional, que age segundo as regras
juridicas (Gazeta de Notícias, 23/5/1940).

Aqui, o emparedamento de um sujeito é associado


A Idade Média torna-se sinônimo de violência, de
às “crueldades da Inquisição”, que, durante o período
ignorância. E essa categoria pode ser usada, também,
medieval espalhava o horror. Um horror que não deveria
como referente a um período de poder exacerbado,
se repetir, visto que no século XIX já não vivemos mais
talvez pela associação com a Igreja ou com o senhor
a violência da Idade Média. O antimedievalismo em
feudal, ambos historicamente imprecisos como já
ambos os casos aparece com a ideia de superação de um
apontamos antes. É o que aparece em artigo do mesmo
período “errado” da história humana. Usos semelhantes
jornal, dez anos mais tarde, intitulado “Puro Facismo”:
continuam a aparecer ao longo do século XX. Vejamos
dois exemplos que encontramos nos anos de 1940.
Baixou o prefeito um decreto em que
Na seção variedades, o jornal Gazeta de Notícias
determina nada mais nada menos, entre
(RJ), em 25/2/1940, publica uma resenha de um filme outras coisas, que todos os servidores

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O ANTIMEDIEVALISMO NO BRASIL | 85

municipais, sem qualquer distinção, nos dias de hoje, não apenas na mídia impressa, como
façam declaração dos bens que possui- também no repertório musical, encontramos exemplos
rem no setor de cadastro. Até aí a coisa
de antimedievalismo. De certo modo, um antimedie-
vai. Mas o homem desbanda-se, fica
valismo carregado de tons menos pejorativos que os
absolutista como um soberano medieval.
Obriga que todos os servidores muni-
encontrados nos exemplos anteriores e, até mesmo,
cipais declarem o que ganham na P. D. associados a um tom pitoresco. Uma música de Cazuza
F., direito que lhe cabe, mas TAMBÉM é um excelente exemplo. De título “Medieval”, ela trata
TUDO MAIS QUE GANHAM OU de um amor muito forte entre duas pessoas. Mas esse
QUE FAZEM NA VIDA PARTICULAR! amor perde em racionalidade, outra atitude anti-
(Gazeta de Notícias, 29/10/1950, grifo em medieval, pois considera a Idade Média como um
maiúsculas no original).
período de irracionalidade e a Modernidade como
um período de racionalidade. Medieval também é
Essas ideias continuam presentes até hoje. Mas oposto a “atual” a “moderno”. Um sujeito medieval
com o aumento da quantidade e da circulação de pes- acredita em tudo (Eu acredito nas besteiras/Que eu
quisas a respeito do período, essas expressões apare- leio no jornal/Eu acredito no meu lado/Português,
cem, por vezes, com um pouco mais de “tensão”. É o que sentimental/Eu acredito em paixão e moinhos lindos),
observamos em um texto do Jornal do Brasil, publicado deixa-se levar pelos sentimentos. Há uma inocência,
em 7/3/2000, à página 8, na seção opinião. O comentá- talvez uma ignorância, pois ele acredita “Na mídia da
rio intitulado “Contravapor” trata da contemplação que novidade média”. Não deixam de estar presentes os
a mídia faz de práticas criminosas, criticando o modo castelos e mesmo o inferno.
como alguns criminosos são tratados com reverência e Três outras composições musicais possuem “Idade
outros com horror. Comentando notícias referentes a Média” no título. Duas delas, mais explicitamente,
um famoso criminoso de então, diz o trecho: fazem a relação entre o período medieval com a meia
idade da vida humana. A composição de Toquinho
Em menos de uma semana o Brasil sentiu
traz mais fortemente o caráter da meia idade em toda
na carne de novo a gravidade do problema
do tráfico. Primeiro foi na passagem a letra, que apresenta um tom saudosista do passado
da CPI do Narcotráfico, da Câmara sempre relembrado: “A idade média começando, vai se
dos Deputados, por Curitiba. Logo a salvando quem puder./Vai se levando, a bola tocando e
seguir vieram as revelações da tortura amando o mais que se der./Salve a vida, salvo enganos,
e mutilação telefônica comandadas no futuro, logo mais,/Sempre teremos os mesmos vinte
pelo traficante Fernandinho Beira-Mar, anos de vinte anos atrás.” Por mais que não haja men-
um horror a que os apressados logo
ção explícita a qualquer termo que remeta ao medievo,
aplicariam o termo “medieval”, mas que
o efeito poético da canção está justamente na associa-
vai muito além de qualquer crueldade
praticada na Idade Média (Jornal do ção que o ouvinte fará entre Idade Média e um passado
Brasil, 7/3/2000, grifo no original). muito longínquo, perdido.
A composição da banda Legião Urbana tam-
De algum modo, o editorialista parece perceber bém trata do envelhecimento (“Sei que já não sou tão
que o uso do termo medieval precise de uma melhor jovem/E não tenho a mesma idade que você”), fazendo
contextualização histórica para ser usado. Logo, porém, essa associação de que a Idade Média é algo antigo.
cai no antimedievalismo ao buscar na Idade Média o Para fortalecer o impacto da associação, dois termos de
parâmetro da crueldade. Torna-se eficiente usar essa rápida remissão ao período aparecem: guerra e espada,
palavra. É uma associação rápida para o leitor. como quando afirmam “Mas também sou capaz de
Este tipo de associação rápida encontramos, tam- vencer/Essa guerra contra o mundo inteiro/E contra
bém, em outras expressões discursivas. Circulando a mim mesmo”, e “As espadas se erguem em fúria/E o

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86 | Thiago Borges de Aguiar

sangue corre por seus ombros”. Pode-se encontrar, tam- FONTES IMPRESSAS
bém, as características de um pensamento antimedieval
na remissão à escuridão, às sombras: “Pois a sombra da Observação: Todos os jornais podem ser consultados por
maldade é tão negra”. Os compositores, ao fazerem essa meio da Hemeroteca Digital Brasileira, disponível em
associação, estão carregados desse antimedievalismo <http://hemerotecadigital.bn.br>.
que trata o período como de trevas, guerras, irraciona-
lidade e crença cega. DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro. Edição de
Já a composição do grupo 14 bis faz uma relação 28/9/1886.
entre a Idade Média e a Alquimia, como mote para poe-
tizar sobre a necessária transformação do planeta, com GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro. Edições de
remissões a expressões alquímicas (como “transmuta- 25/2/1940; 23/5/1940; 29/10/1950.
ção”, “fogo”, “ouro”). Aqui o antimedievalismo aparece
de duas formas: a primeira, a associação entre o medie- JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro. Edição de
val e o místico, ainda na esteira da irracionalidade 7/3/2000.
medieval. A segunda, no erro cronológico de associar
a alquimia exclusivamente à Idade Média, lembrando O CEARENSE. Ceará. Edição de 31/03/1874.
que sua presença mais marcante ocorre entre o final do
período medieval e o início da Modernidade, atingindo MÚSICAS
até mesmo o século XVII.
Outras composições musicais contemporâneas 14 BIS. Nova Idade Média. (Música)
(ver, por exemplo, “Outros Românticos”, de Caetano
Veloso e “Tropicália Jacta Est”, de Tom Zé) apresentam CAZUZA. Medieval. (Música)
associações desses tipos aqui apresentados, mas estes
são exemplos suficientes de como esse antimedieva- LEGIÃO URBANA. Idade Média. (Música)
lismo circula na cultura musical.
Esperamos aqui ter caracterizado modos de inser- TOQUINHO. Idade Média. (Música)
ção cultural e circulação de discursos antimedievalistas
no Brasil. Este fenômeno europeu veio para o Brasil em BIBLIOGRAFIA
função da colonização e da crescente globalização das
ideias europeias ao longo dos últimos séculos. Fenô- AMALVI. Idade Média. In: LE GOFF, Jacques;
meno construído entre os séculos XV e XVII em meios SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário Temático
intelectuais, ele aparece nas terras brasileiras como a do Ocidente Medieval. Coordenação da Tradução Hilá-
difusão de uma interpretação histórica eurocêntrica e rio Franco Júnior. Bauru, SP: Edusc, 2006.
iluminista que circula por meio da transmissão da cul-
tura escolar e de diversas mídias. Aparece, inclusive, em BARRACLOUGH, Geoffrey. Europa: uma revisão his-
letras de música escritas por brasileiros. tórica. Tradução de Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro:
Dada a grande circulação e disponibilidade de Zahar Editores, 1964.
imagens referentes à Idade Média, além de considerar
que elas não acrescentariam novos aspectos às carac- CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Edi-
terísticas principais da visão antimedievalista que aqui tora Unesp, 1999.
apresentamos, optamos por não explorar a iconogra-
fia do fenômeno. Deixamos isso ao leitor, que poderá CHAUI, Marilena de Souza. Brasil - mito fundador e
explorá-las em diálogo com a bibliografia que apresen- sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Per-
tamos ao final deste verbete. seu Abramo, 2000.

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DUBY, Georges. Europa na idade média. São Paulo: Terezinha. História da educação na Alta Idade Média: a
Martins Fontes, 1988. igreja retratada nos livros didáticos. Roteiro, Joaçaba, v.
34, n. 1, p. 21-34, jan./jun. 2009.
DUBY, Georges. Tempo das catedrais: a arte e a socie-
dade, 980-1420. Lisboa: Editora Estampa, 1979. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios
sobre a cultura visual na idade média. Bauru, SP:
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento EDUSC, 2007.
do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006.
VERGER, Jacques. Homens e saber na idade média.
HUIZINGA, Johan. O outono da idade média. Tradu- Tradução de Carlota Botto. Bauru, SP: EDUSC, 1999.
ção de Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosacnaify,
2010.
O AUTOR
LANGER, Johnni. Os Vikings e o estereótipo dos bár- Thiago Borges de Aguiar possui graduação em Pedago-
baros no ensino de História. História & Ensino (UEL), gia pela Universidade de São Paulo (2003) e Doutorado em
Educação na área de História da Educação e Historiografia
v. 08, 2002.
(2010). Realizou pós-doutorado na USP (2012). É professor
da Universidade Metodista de Piracicaba. É líder do Grupo de
LAUAND, Jean . Pensamento confundente e neutro em Estudos História da Educação e Religião (GEHER-FEUSP) e
do Grupo de Pesquisa Histórias de Vida, Narrativas e Subje-
Tomás de Aquino. Notandum (USP), v. 10, p. 15-32,
tividades (HiNaS-UNIMEP). Pesquisador do Grupo de Pes-
2007. quisa Educação e Protestantismo (GPEP-UNIMEP). E-mail:
tbaguiar@unimep.br
LAUAND, Jean (Org.). Cultura e educação na Idade
Média. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade


Média: tempo, trabalho e cultura no ocidente. Lisboa:
Editorial Estampa, 1980.

LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (coord.).


Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Coorde-
nação da Tradução Hilário Franco Júnior. Bauru, SP:
Edusc, 2006.

PEREIRA, Nilton Mullet. Imagens da Idade Média na


Cultura Escolar. Aedos: Revista do Corpo Discente do
Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS
(Online), v. 02, p. 117-127, 2009.

PEREIRA, Nilton M. . Ensino de História, medieva-


lismo e etnocentrismo. Historiae: revista de história da
Universidade Federal do Rio Grande, v. 3, p. 223-238,
2012.

RIBEIRO, Elizabete Custódio da Silva; OLIVEIRA,

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REVISTA DE ESTUDOS DE CULTURA | Nº 01 | Jan.Abr./2015
JoséClaudio Matos

AS MÚTUAS NEGAÇÕES DO
CRIACIONISMO E DO EVOLUCIONISMO:
suas origens e efeitos na cultura
contemporânea

RESUMO:
Este artigo parte do ponto de vista das culturas constituídas em negativo para
conceituar e analisar o antievolucionismo e o anticriacionismo. Segue o formato
discursivo apropriado ao modelo de verbetes de dicionário, a fim de se referir de
forma clara e genérica aos termos mencionados, visando atender a um público mais
amplo. Investiga a mútua oposição entre o antievolucionismo e o anticriacionismo
na medida em que estes se constituem como cosmologias, e explora as possibilida-
des de um diálogo ou interação profícua entre tais visões, amenizando o aspecto
negativo de ambas atitudes.
Palavras-chave: antievolucionismo; anticriacionismo; cultura; cosmologia.

* Doutor em Filosofia pela


Universidade de São Paulo.
E-mail: doutortodd@gmail.com

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90 | JoséClaudio Matos

AS MUTUAL DENIALS CREATIONISM LAS MUTUAS NEGACIONES DEL


AND EVOLUTIONISM: its origins and CREACIONISMO Y EVOLUCIONISMO:
effects on contemporary culture sus orígenes y efectos en la cultura
contemporánea
ABSTRACT:
This paper starts from the point of view of the cultures for- RESUMEN:
med in negative, to conceptualize and analyse the antievolu- Este artículo es parte del punto de vista de las culturas que se
tionism and the anticriationism. It follows the discursive form formaron en negativo para conceptualizar y analizar el antie-
appropriate to the model of dictionary entries, in order to volucionismo y el anticriacionismo. Sigue el formato discur-
refer clearly and generically to the terms mentioned, aiming sivo adecuado al modelo de entradas de diccionario, para
to attend to a wider audience. It investigates the mutual oppo- referirse clara y genéricamente a los términos mencionados,
sition between the antievolucionism and the anticriacionism con el fin de atender a un público más amplio. Investiga la
while they present itselves as cosmologies, and explores the oposición mutua entre el antievolucionismo y el anticriacio-
possibilities of a dialogue or fruitful interaction between such nismo en la medida en que se constituyen como cosmologías
visions, easing the negative aspect of both attitudes. y explora las posibilidades de un diálogo o interacción fruc-
Keywords: antievolutionism; anticriationism; culture; tífera entre tales visiones, amenizando el aspecto negativo de
cosmology. ambas actitudes.
Palabras claves: antievolucionismo; anticriacionismo; cul-
tura; cosmología.

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AS MÚTUAS NEGAÇÕES DO CRIACIONISMO E DO EVOLUCIONISMO | 91

INTRODUÇÃO linhas gerais, como um processo de transformações


acumulativas que determina as características dos
ESTE TRABALHO se situa no panorama do que vem seres a ela submetidos. O antievolucionismo, portanto,
sendo chamado de ‘culturas em negativo’: essencial- manifesta a recusa contra a ideia de que seres comple-
mente, a forma de definir crenças, valores e compor- xos tenham sido formados ao longo de linhagens que
tamentos, com base na negação ou repúdio de um acumulam sucessivas transformações. O antievolucio-
“outro”, contra o qual se constituem discursos e con- nismo define-se pela negação de que ‘evolução’ seja um
dutas. No caso específico do discurso aqui apresentado, processo real e questiona os fundamentos e evidências
o ponto de partida são duas concepções concorrentes em que a alegação da realidade da evolução se apóia.
acerca da origem e ordenação dos seres na natureza, a Define-se também, em outra vertente, pela negação de
saber: o evolucionismo e o criacionismo. Submetendo que, mesmo real, a evolução seja atribuída como causa
estas concepções ao ponto de vista cultural de sua nega- da ordem natural. Antievolucionistas desta segunda
ção, poder-se-ia formular de maneira suficientemente vertente não chegam a negar a existência de mudan-
estruturada uma conceituação que se caracteriza como ças evolutivas observáveis no mundo. Mas negam que
antievolucionismo e anticriacionismo. Por essa mútua a evolução seja um processo com poder suficiente para
oposição, a identidade cultural relacionada a cada um - sem interferência de um desígnio ou intenção especial
destes pontos de vista é resultante da tentativa de desa- - determinar as características observadas no mundo
creditar ou negar a outra, vendo-a como falsa, do ponto e seus habitantes, especialmente os seres vivos. Há
de vista do conhecimento, ou perniciosa, do ponto de um importante aspecto no antievolucionismo, que
vista dos valores. Ambos os termos são entendidos aqui diz respeito não tanto ao universo físico em geral,
como visões cosmológicas que, em grande medida, se mas aos seres vivos e especialmente o ser humano.
opõem mutuamente. Sob este aspecto, o antievolucionismo pode ser enten-
Em termos metodológicos, a composição do texto dido como a negação de que a evolução sozinha seja a
segue a orientação para os verbetes do Dicionário dos regra geral da história dos seres vivos na natureza. O
Antis – a cultura brasileira em negativo, organizado sob antievolucionista argumenta que um mundo em que
coordenação dos professores Luiz Eduardo Oliveira diversos seres se integram segundo tamanha ordem e
(CLEPUL/ Universidade Federal de Sergipe) e José complexidade não pode ter criado a si próprio, pois
Eduardo Franco (CLEPUL/ Universidade de Lisboa). a complexidade e a ordem de nível mais elevado são
Em vista disso, o leitor haverá de perceber diferenças comumente efeitos de um plano ou propósito inten-
em relação ao costumeiro modelo de estruturação de cional. Esta ideia se expressa na forma da acusação – de
um artigo acadêmico. Ao invés de citações e lista de grande força retórica – de que o evolucionista estaria
referências ao final, por exemplo, optou-se por uma propondo o contrassenso de que o universo, as leis
lista bibliográfica, e por uma redação mais objetiva e naturais e os seres vivos - incluindo o homem - seriam
direta, conveniente à forma discursiva de um dicio- produtos do acaso, e isto não faria sentido diante da
nário. As conclusões ao fim do texto discutem alguns diversidade e ordenação de cada uma de suas partes, e
aspectos da relação entre o antievolucionismo e o do todo tomado em conjunto.
anticriacionismo, procurando dar unidade ao esforço Um forte elemento da tradição teórica ociden-
explicativo aqui empreendido. tal é a ideia de que todos os seres existentes possuem
uma essência ou substância própria que constitui sua
ANTIEVOLUCIONISMO identidade mais profunda. Conhecer verdadeiramente
alguma entidade do mundo natural implicaria conhe-
Antievolucionismo é a negação da evolução como cer a sua essência ou substância, em oposição às meras
origem ou causa da existência e ordem do universo e características acidentais ou acessórias. Por meio de tal
dos seres que o habitam. Entenda-se “evolução”, em essência, então, é que uma entidade pode ser conhe-

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92 | JoséClaudio Matos

cida e incluída como membro de uma classe ou espé- conta do fato de que as espécies vivas sofrem mudan-
cie. Uma espécie (eidos), como a espécie das rãs ou das ças evolutivas, ao longo de períodos extensos de tempo.
gaivotas, é estabelecida a partir da suposição de uma Mas, como é amplamente reconhecido dentro e fora
essência comum a uma classe de seres particulares. Um dos meios acadêmicos, o principal alvo do antievolu-
aspecto importante desta crença é que tal essência é cionismo é o paradigma científico e filosófico inspirado
real. A substância de um ser – especialmente aqui de pela teoria da seleção natural formulada por Darwin no
um ser vivo – não é apenas uma forma de classificação, século XIX. Contudo, percebe-se que mesmo antes dele
ela é uma manifestação do aspecto mais fundamental a polêmica entre uma visão fixista e uma visão evolu-
de um ser, como componente do mundo que pode ser tiva do universo e do ser humano já estava instalada no
conhecido. Portanto, a substância também é fixa: se a pensamento moderno.
substância fosse mutável, ou variável, não poderia ser A partir de Darwin a evolução se estabelece como
determinada para além das características acidentais, um fato aceito por muitas comunidades intelectuais
e não se poderia dizer o que um ser realmente é. A na cultura moderna. Com o progresso das ciências
mudança e a transformação só se aplicariam às carac- biológicas e dos estudos da cultura humana no pas-
terísticas acidentais. Cada ser teria, então, dois tipos de sado remoto, chegou-se no século XX a uma síntese
características: as acidentais, que podem sofrer mudan- da teoria evolutiva, fortalecida por áreas de estudo
ças, e a sua essência, ou substância, constituinte de sua como a genética e a paleontologia. Diversos campos
natureza profunda e imutável. do conhecimento se desenvolvem a partir da admis-
A força da noção clássica de ‘espécie’ como uma são da evolução como fato, e não somente como uma
forma fixa e a ausência de um mecanismo explicativo especulação. Esta admissão passa a incluir como efeito
satisfatório das leis de mudança acumulativa inclina- da evolução o próprio ser humano e a cultura, o que
vam muitos estudiosos da tradição a negar a evolução. provocou forte reação contrária nos meios científicos
O seu argumento é o de que, se todos os seres estives- e religiosos, reunindo os antievolucionistas de diversas
sem em constante transformação, e a transição fosse o vertentes em torno de um inimigo comum: a teoria da
princípio geral do mundo natural, não haveria como seleção natural, baseada na regra da sobrevivência do
estabelecer seguramente nem identidade e nem distin- mais adaptado. A razão disso é que entre os próprios
ção no mundo, e o conhecimento dos seres organiza- defensores da evolução, a corrente predominante é a
dos seria impossível. que se agrega em torno do darwinismo, e então, ser
No século XVIII, com o desenvolvimento do antievolucionista, em grande medida, passa a significar
método experimental nas ciências, a noção especulativa uma negação do darwinismo e de seus tributários na
de espécie como algo imutável dá lugar a concepções cultura contemporânea.
transformistas da ordem natural. As realizações cien- A partir de Darwin e sua obra é que a teoria evo-
tíficas, ao substituírem a força da tradição pelo teste lutiva passa a incidir sobre o ser humano e seus tra-
experimental, deram lugar a explicações que estavam ços físicos e mentais. A adoção do antievolucionismo
mais interessadas nas regularidades e no ordenamento implica, portanto, na negação mais pontual de que o
pelo qual o universo funciona e se desenvolve do que ser humano e suas características sejam explicáveis
em definições da substância profunda de um ser. E aos como produtos do mesmo processo evolutivo que
poucos a ideia de uma linha evolutiva dos seres vivos incide sobre os outros seres vivos. Percebe-se que esta
parecia cada vez mais plausível. Alguns iluministas, negação envolve a expectativa de que o ser humano seja
como Voltaire e Diderot, já consideravam a possibili- dotado de um atributo especial, pelo qual se distingue
dade da evolução e transformação das espécies vivas. das outras criaturas, e que seja fonte de sua identidade
O trabalho de naturalistas como Cuvier e Lamarck, no e dignidade. Negar a origem evolutiva do ser humano
fim do século XVIII e começo do XIX, representa o iní- seria como atender a uma reivindicação de unicidade
cio da busca por um mecanismo explicativo que desse que distinga o ser humano, seja por sua inteligência,

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AS MÚTUAS NEGAÇÕES DO CRIACIONISMO E DO EVOLUCIONISMO | 93

seja por sua complexidade psíquica, seja por algum O antievolucionismo alega a fragilidade dos regis-
atributo sobrenatural como o espírito ou a alma. Seria tros da atuação de forças transformadoras ao longo das
como dizer que um ser tão complexo e tão diferente eras da história da vida. Algumas de suas versões mais
dos outros não pode ter como causa um processo natu- radicais chegam a negar que a idade da Terra ultra-
ral tão cego, contingente e destituído de propósito, passe alguns milhares de anos. Com base na autori-
como o processo de seleção natural. dade do saber revelado pelas escrituras, certos grupos
Em 1967 o livro Veio o homem a existir por evo- de antievolucionistas chegam a questionar a realidade
lução ou por criação?, editado pela International Bible de espécies ancestrais extintas, como os dinossauros,
Students Association, apresentou uma argumentação e desacreditam da fidedignidade dos registros fósseis.
que, mesmo hoje em dia, é reconhecida como um dos Há ainda o grupo de antievolucionistas que, baseados
principais manifestos antievolucionistas publicados em em uma interpretação literal do Antigo Testamento,
escala internacional. Este livro questiona o estabeleci- negam a evolução por ela ser incompatível com os
mento da evolução como fato e atribui sua crescente primeiros capítulos do Gênesis e com o Dilúvio, que
popularidade a uma campanha de ensino e divulgação teria despovoado o planeta, com exceção das espécies
de ideias evolucionistas nas escolas, universidades e embarcadas pelo patriarca Noé. Para o antievolucio-
meios de comunicação. Seu argumento é que a Bíblia nista de inspiração religiosa a evolução é falsa, pois
- e não as ciências - representa a descrição correta da contraria uma explicação do mundo fortalecida pela
realidade, e que a chamada ‘iniquidade’ da teoria evo- fé em uma cosmologia onde todos os seres têm forma
lutiva se fortalece na cultura pelas escolhas erradas fixa e função definida. Mas esta versão do antievolucio-
feitas pelo ser humano na vida social. A conclusão do nismo não se satisfaz somente em recusar a evolução
livro, seguida por muitos grupos sociais mais ou menos como alvo da explicação científica.
comprometidos com a leitura literal da Bíblia, é que a A necessidade de promover seu ponto de vista
ideia de evolução das espécies é falsa e provoca valores diante do escrutínio da opinião pública, com argumen-
e crenças perniciosos ao ser humano. tos e justificativas, conduz ao antievolucionismo como
Recentemente, movimentos antievolucionistas posição teórica, e não apenas religiosa. Soa inaceitável
de diversos tipos têm feito uso dos meios de comu- ao antievolucionista que estruturas complexas como um
nicação e da internet para divulgar suas ideias. Parte olho ou o cérebro humano capaz de linguagem e senti-
deste impulso contemporâneo a favor do antievolucio- mentos possam ser efeitos de um processo de acumulação
nismo vem do compromisso com uma interpretação de modificações sem qualquer propósito ou planejamento
literal de textos religiosos, principalmente da Bíblia. prévio. Também soa inaceitável, em menor intensidade,
Segundo a cosmologia apresentada nestes textos, não que este processo seja medido nas enormes escalas do
haveria evolução acontecendo no mundo. O mundo tempo geológico. Finalmente, soa ainda mais inaceitável
teria uma história na qual os seus habitantes possuem que a inteligência e a subjetividade humanas se devam,
essências fixas, definidas e imutáveis. Tais essências como todas as outras formas observadas na natureza, à
teriam sido criadas para atender a um propósito. O ação de contingências físicas e químicas.
antievolucionista, neste aspecto, nega a evolução tendo A recusa de uma ordem evolutiva no mundo
por base a evidência, que para muitos é incontestável, natural envolve a recusa do discurso em favor de tal
da existência de tais essências e de tal propósito. Além ordem evolutiva. Por isso, o antievolucionismo não
disso, contesta as supostas evidências científicas acerca é apenas um ponto de vista acerca de regularidades
da realidade observável dos processos evolutivos. É naturais: ele é a de negação de uma matriz cultural.
comum encontrar no discurso dos antievolucionistas Antievolucionistas têm publicado livros e artigos na
a alegação de que a evolução é “somente uma teoria” tentativa de refutar pesquisas científicas baseadas na
ou especulação, querendo com isso dizer que ela não evolução e, também, feito inúmeras campanhas para
possui evidência suficiente a seu favor. que a teoria evolutiva não seja ensinada em escolas da

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94 | JoséClaudio Matos

educação básica, sob a alegação de se tratar de uma e executado uma ação pela qual uma entidade, antes
visão falsa e perversa do mundo. inexistente, passa a existir. É neste sentido que se usa o
Para o anti-evolucionista mais radical, o próprio termo para falar da criação artística e intelectual, por
método científico sobre o qual a ideia de evolução exemplo. A partir de tal significado, se estabelece uma
supostamente se apóia deve ser objeto de dúvida e de importante relação: a relação entre o criador e a cria-
rejeição, quando seus resultados não condizem com tura. Esta relação apóia-se no pressuposto fundamen-
as afirmações reveladas pelas escrituras e tradições tal de que, para que alguma coisa exista, sempre deva
culturais religiosas. Neste sentido, ele se proclama na haver um sujeito anterior a ela, que a criou a partir de
defesa da tradição religiosa contra o assédio das teo- seus poderes e sua vontade.
rias científicas, que pretendem estabelecer explicações O anticriacionismo trata, no seu sentido mais
experimentais para a ordem natural e fundamentos usual, da negação da criação como origem da existên-
para a reconsideração de valores e costumes tradicio- cia e da ordem do Universo e das leis da natureza. Nesse
nais. Além do antievolucionimo se opor à cosmovisão sentido, o anticriacionismo nega a relação entre criador
da constante transformação dos seres vivos ao longo e criatura e recusa que o Universo, a natureza e o ser
do tempo, ele se opõe ao aspecto pernicioso de suas humano tenham como causa de sua existência um ato
consequências religiosas e morais. Por isso, ser antievo- de criação do tipo acima descrito. O anticriacionismo
lucionista envolve um conjunto de admissões de forte é aparentado com o ateísmo, que é a doutrina segundo
implicação ética e cultural: Se o mundo natural - e o a qual não existe Deus: um ser dotado de propósito
ser humano em particular - estivessem em constante inteligente e criador do Universo e sua história. Mas o
transformação, não haveria valores nem princípios anticriacionismo difere do ateísmo em alguns aspec-
absolutos, pois tais valores ou princípios seriam apenas tos importantes. Mesmo o ateu poderia, segundo sua
funções relativas à condição atual do mundo e do ser forma de pensar, supor a possibilidade da existência
humano. Em certo sentido, ser um antievolucionista é de um criador e negar a ele atributos divinos. O anti-
promover a afirmação de valores fundamentais que são criacionista, por sua vez, poderia admitir a existência
indiferentes às modificações de época e de contexto. de um ser com atributos divinos e negar que ele tenha
O lugar do ser humano no topo da escala dos seres sido o criador do mundo. Mitologias de algumas cultu-
vivos, o caráter sagrado da vida humana, a autoridade ras narram a origem do mundo e dos próprios deuses
suprema de um ser superior responsável pela criação e como processos de aglutinação de elementos como a
constante manutenção de todos os seres do universo, água e o fogo, ou processos de crescimento vegetativo,
bem como a correspondente autoridade de textos e ins- nos quais as coisas que existem, incluindo os próprios
tituições consideradas representantes deste ser superior deuses, vêm a existir por meio de processos que não
no mundo, são exemplos de valores derivados do antie- tiveram a pessoa de um criador como origem. Esta
volucionismo. A negação da relatividade dos valores, a hipótese seria anticriacionista sem ser ateísta.
negação da transição constante de estados do mundo é A versão mais geral e disseminada do antocriacio-
o ponto de vista que reside por trás da postura antievo- nismo tem em um extremo o ateísmo radical – oposto
lucionista, no seu aspecto ideológico ou moral. a toda admissão de seres fora da esfera do mundo da
experiência - e em outro extremo, mais brando, se
ANTICRIACIONISMO refere à causa do Universo como uma força unifica-
dora, ou energia que o formou e mantém; justamente
Anticrianionismo é a atitude de negação de que como um crescimento vegetativo e gradual, e não como
os seres existentes tenham a sua origem em um ato um ato intencional de criação. Em todos os casos, o ele-
ou processo de criação. “Criação” é aqui entendida mento em comum a todas as suas versões é a negação
como o ato ou processo empreendido por um agente de personalidade, desígnio e consciência como causas
que - intencional e propositalmente - tenha planejado do universo e seus habitantes.

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O anticriacionista critica a atribuição de um maior expressão doutrinária. O anticriacionismo pro-


criador como explicação da origem do mundo e seus cura se fortalecer por argumentos provenientes da
seres, sob um argumento do seguinte tipo: a criação investigação científica, que possam justificar a adoção
não é uma legítima explicação, pois permanecem mis- de causas inerentes à própria natureza, para explicar a
teriosos a origem e os atributos deste ser criador ori- ordenação e complexidade observada no mundo; nega
ginal. Confiar nas escrituras e tradições cosmológicas validade às tradições religiosas e mitológicas que nar-
também não é uma legítima explicação, pois elas são ram a origem do mundo a partir de um ato de cria-
construções históricas e sofrem da fragilidade de serem ção. O movimento conhecido com Teologia Natural
melhor reconhecidas como produtos da superstição e e a polêmica cosmológica em torno do conhecido
dos interesses humanos de cada contexto. Tais escritu- Argumento do Desígnio foram o grande propulsor da
ras sofrem, também, da fragilidade de serem facilmente atitude anticriacionista. Um exemplo é o ceticismo pre-
contestadas pela evidência empírica. Este argumento sente nos Diálogos sobre a religião natural, publicados
instala uma importante assimetria entre o criacionismo por David Hume no século XVIII. Hume examina a
e seu rival como explicação cosmológica na cultura questão do argumento do desígnio através de perso-
moderna – o evolucionismo. Se o argumento estiver nagens que discutem se o mundo é ou não originário
correto, o criacionismo sequer pode se sustentar como da relação criador e criatura. Ele retoma as cosmolo-
alternativa válida ao evolucionismo, pois não possui os gias da Antiguidade e se mostra fortemente inclinado a
elementos de evidência e de coerência próprios de uma optar pela opinião anticriacionista. Com Hume aparece
teoria viável da causa do universo e seus habitantes. O pela primeira vez o argumento anticriacionista de que
criacionismo se qualificaria melhor como um artigo de diversos arranjos da natureza são melhor explicados
fé inquestionado, ou como um dogma moral de certas como formas intermediárias, emendas, improvisos,
matrizes culturais. E a única alternativa viável, segundo do que como obras planejadas por um artífice inteli-
certos padrões de seleção do conhecimento válido, seria gente. A presença do mal e do sofrimento extremo no
o anticriacionismo. Isto seria equivalente a dizer que o mundo, por exemplo, desencoraja a opinião de que
criacionismo sequer chega a ser uma legítima expli- tal mundo seja resultante de um ato de criação de um
cação, no sentido rigoroso do termo. O criacionismo ser com grande inteligência e poder. Este argumento é
seria uma resposta arbitrária para a questão da origem retomado em formulações cada vez mais sofisticadas
do mundo e tiraria seu poder persuasivo da fraca ana- pelos anticriacionistas da posteridade. No século XIX,
logia entre o universo e os artefatos feitos pelo homem, a divergência instalada nos meios intelectuais entre a
e ainda de sua relativa capacidade de atender ao apelo tradição religiosa e a científica favoreceu o anticria-
emocional por um sentido para a vida humana. cionismo como uma reação ao conservadorismo reli-
As raízes deste modo de pensar remontam a con- gioso e como o ponto de vista que mais se ajustava aos
cepções cosmológicas da Antiguidade como se observa, recentes avanços no campo das ciências naturais. A
por exemplo, nos escritos de Lucrécio e Demócrito. descoberta de inúmeros processos naturais em diversos
Estes pensadores supunham uma ordem cósmica onde campos de conhecimento e sua formulação em termos
a matéria em constante movimento fosse adquirindo de teorias com forte sustentação empírica e lógica favo-
diversas formas e estruturas, sendo que as mais está- receram a crença de que não é a criação, mas a atuação
veis e harmônicas tendiam a perdurar. Por esse mesmo de forças e processos ao longo do tempo e condições
processo de movimentação e composição constante, o ambientais específicas que produzem os fenômenos e
mundo teria atingido seu estado atual, sem qualquer entidades do mundo.
processo criativo em sua origem. A teoria da evolução por seleção natural de Char-
Mas é na Modernidade, a partir do desenvolvi- les Darwin deu forte impulso ao anticriacionismo,
mento do método experimental e das modernas con- oferecendo uma base argumentativa a partir da qual
cepções científicas, que o anticriacionismo adquire se engendrou a crítica contra o desígnio inteligente do

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mundo a um ponto nunca antes atingido. Com base em Nos últimos anos, o anticriacionismo vem sendo
teorias geológicas como as de Lyell, acerca da extensão fortalecido com argumentos tirados da biologia evo-
em bilhões de anos da idade da Terra e da origem da lutiva e da filosofia. Estes argumentos propõem que
vida, Darwin, após anos de pesquisa experimental feita a causa da ordem e da complexidade no mundo não
por ele e seus correspondentes em diversas partes do se devem ao desígnio nem à intenção de um criador,
mundo, formulou um argumento que pretende expli- mas à atuação de regularidades e de forças inerentes à
car mesmo as características mais complexas dos seres própria natureza, as quais é função da ciência descre-
vivos. Seu argumento é anticriacionista, pois prescinde ver e explicar. O zoólogo Richard Dawkins e o filósofo
da ação criativa, aludindo somente à pressão ambiental, Daniel Dennett estão entre os principais representantes
exercida sobre seres dotados de variações que se trans- deste ponto de vista. No discurso destes autores aparece
mitem pela reprodução. uma importante distinção entre o anticriacionismo em
Thomas H. Huxley, ao defender o agnosticismo, sua versão cosmológica e o anticriacionismo em sua
ou seja, a impossibilidade de sustentar alguma afirma- versão cultural. A versão cosmológica seria a seguinte:
ção sobre a existência de um criador do mundo, é um O mundo e sua história, incluindo o ser humano, não
dos mais manifestos promotores do anticriacionismo foram criados. O mundo se deve a outro tipo de cau-
de inspiração darwiniana. Pode-se citar ainda as dou- sas, destituídas de intenção ou propósito, e inerentes
trinas materialistas como as de Karl Marx, entre as ao próprio mundo. A melhor formulação deste sistema
representantes de alguma versão do anticriacionismo. de causas é a que se identifica com a visão evolutiva
Em geral, a partir de qualquer cosmologia que se da natureza e com o mecanismo de seleção natural que
recuse a admitir a ação criadora e a intervenção divina explica a história dos seres vivos. Na versão cultural,
no mundo e em sua história, praticamente toda teoria a tese é assim apresentada: a crença na criação é uma
científica ou forma de discurso daí resultante irá incor- crença falsa. Tal crença se propaga, principalmente,
porar consequências anticriacionistas. Do ponto de pelo apelo sentimental e cultural de certa tradição e de
vista das ciências da natureza, teorias sobre a origem do certa mitologia. Os principais alvos dessa negação são
universo favorecem o anticriacionismo na medida em as tradições religiosas, construídas sobre a suposição
que propõem explicações segundo as quais o espaço, de um Deus criador. No Ocidente, atualmente, o prin-
os astros, os elementos químicos e o próprio tempo cipal alvo do anticriacionismo seria a criação descrita
se devem ao desenvolvimento de estados anteriores, pela cosmologia judaico-cristã. A narrativa do Gêne-
num grande processo de acumulação e desenvolvi- sis, então, é negada e tratada como uma superstição ou
mento. Apesar da pretensão medieval de que a ciência fantasia que poderia, no máximo, representar um sig-
seria o conhecimento da obra de um criador, a partir nificado moral, mas nunca uma adequada descrição da
da Modernidade o próprio método científico passa a realidade. A realidade, para o anticriacionista, se revela-
favorecer o anticriacionismo, ao recomendar que só ria de uma forma completamente oposta àquela que se
se admita uma explicação ou hipótese na medida em reproduz nas tradições culturais predominantes na his-
que ela resista ao teste experimental e à análise de sua tória do Ocidente. Não haveria argumentos legítimos
coerência lógica. No caso da origem da vida, da inte- em favor da criação, que resistam a um exame crítico,
ligência e do ser humano em especial, a atitude anti- ou ao teste da experiência. A recusa da relação entre
criacionista participa do seu mais acirrado debate. O criador e criatura também pode se referir aos próprios
anticriacionismo, neste caso, implica em supor que o produtos da mente humana, tanto quanto aos seres do
ser humano existe sem ter sido criado, e rejeita a rela- mundo natural. Finalmente, o anticriacionismo, assim
ção entre criador e criatura no caso de nossa espécie. entendido, assume a forma da negação da originalidade
Por isso o anticriacionista nega que a existência do ser ou da autoria subjetiva de qualquer artefato ou produto
humano tenha uma função ou propósito transcendente cultural. Isto equivale a negar a criação como ato de
a suas condições concretas de existência. qualquer mente individual, mesmo a mente humana.

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Todas as manifestações da cultura seriam resultantes de mente valores morais, epistemológicos e até estéticos –
processos e forças, onde diversos complexos de causas decorrente desta narrativa. E finalmente um conjunto
operam ao longo do tempo para produzir como efeito de condutas e atitudes que surgem da aplicação de tais
as ideias, crenças e objetos que constituem o universo crenças e valores às demandas da vida teórica e prática.
cultural, assim como contribuem para reunir os ele- Neste sentido, se pode supor desde o começo que
mentos que formam cada uma das mentes individuais. tanto o antievolucionismo como o anticriacionismo se
Ao desenvolver sua teoria dos ‘memes’, como definem como cosmologias. E, mais que isso, como cos-
unidades de informação que se propagam no meio mologias fortalecidas e tornadas coesas pela negação de
ambiente da cultura humana, Dawkins oferece argu- seu “outro”, de seu oposto na vida cultural. Finalmente,
mentos em favor desta modalidade extrema de ousa-se adiantar a hipótese de que, fora alguns aspec-
anticriacionismo. Finalmente, a versão cultural do anti- tos de menor relevância, em linhas gerais, estas duas
criacionismo não nega somente a descrição da causa do negações se afetam e se opõem mutuamente, ficando
mundo em termos de um desígnio, mas nega a legiti- a validade de uma dependente do descrédito da outra.
midade do conjunto de opiniões e valores baseados no Há aqui, porém, pelo menos uma discrepância sig-
pressuposto fundamental da criação inteligente. Com nificativa entre os territórios, ou fundamentos de ambas
isso, a promoção e o cultivo de valores nas culturas as atitudes. O antievolucionismo, nos anos recentes,
humanas não deveriam procurar apoio na suposição alimenta-se de um ceticismo acerca dos métodos e
dos desejos e intenções do criador. A promoção e o cul- resultados da ciência e se fortalece de interpretações e
tivo de valores dependeriam do estabelecimento razoá- compromissos com as tradições religiosas. O anticria-
vel de objetivos conforme os interesses concretos dos cionismo, por seu lado, alimenta-se de um ceticismo
agentes, e tais valores seriam relativos a cada época e acerca das explicações baseadas na tradição religiosa e
contexto. Esta relativização que o anticriacionista pro- se fortalece de uma recorrência aos métodos e resul-
põe - dos objetivos e valores morais e sociais - está em tados das ciências naturais. Culturalmente, se poderia
acordo com a situação do ser humano como resultado supor que não há genuína oposição, e sim uma inco-
da ação de forças naturais e históricas, em um universo mensurabilidade entre as duas negações, já que ambas
em constante transformação, mas desprovido de um expressam seus discursos segundo pressupostos e lin-
desígnio ou propósito superior ou transcendente. guagens distintas. Seria como se esta incomensurabili-
dade de ambas as cosmologias - mutuamente negativas
CONCLUSÃO - levasse a que os adeptos de uma dessas atitudes não
pudessem compreender os adeptos da outra, já que se
No início deste texto e ao longo de seu desenvol- situam em “mundos” diferentes. O impasse entre antie-
vimento foi empregado algumas vezes o termo “cosmo- volucionistas e anticriacionistas seria insolúvel e, uma
logia”. Esta expressão está sendo entendida aqui como vez instalado, dificilmente haveria um caminho para o
qualquer concepção acerca da origem, da ordem e consenso, o convencimento pelo argumento, ou o diá-
do funcionamento do universo natural e, consequen- logo profícuo entre seus adeptos.
temente, dos seres que o habitam. Nas cosmologias é A sugestão de reflexão que se faz, na forma de
geralmente dado destaque ao lugar ocupado pelo ser conclusão deste trabalho, é a de que se encontra em
humano e seus produtos, manifestos nesta grande jogo aqui uma versão específica da velha disputa
matriz comum a que se dá o nome muito amplo de entre a tradição e a renovação, materializada desde
“cultura”. Uma cosmologia é, portanto, composta pelo o início da modernidade na forma da disputa entre a
menos destes elementos: Uma narrativa mais ou menos ciência e a religião. Esta disputa tem como persona-
concatenada sobre a origem e as leis fundamentais do gens famosos os nomes de Galileu, Copérnico, Dar-
funcionamento do mundo e da natureza, ou seja, um win e um dos seus exemplos mais significativos foi
conjunto de crenças. Um conjunto de valores – especial- o conhecido debate entre Thomas Huxley e o Bispo

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Samuel Wilberforce. Com isso se pretende dizer que BIBLIOGRAFIA - ANTIEVOLUCIONISMO


os efeitos desta aparente incomensurabilidade não
são tão profundos quanto parecem. Os adeptos de Impressa:
um lado da disputa reconhecem o significado do
que os adeptos do outro lado pretendem expressar. FLEW, Antony. Um ateu garante: Deus existe. As pro-
Assim sendo, o diálogo entre antievolucionistas e vas incontestáveis de um filósofo que não acreditava em
anticriacionistas é em princípio possível, e até, em nada. São Paulo: Ediouro. 2008.
certa medida, desejável.
Mesmo que jamais aconteça a vitória de um dos Perguntas e respostas sobre criacionismo e evolucio-
‘partidos’ desta disputa entre cosmologias, é possível nismo (dias estruturas conceituais). São Paulo: Socie-
que a razoabilidade de uma discussão mais desapaixo- dade Criacionista Brasileira. 2014.
nada e mais tolerante promova a mútua compreensão
do outro, inicialmente negado ou repudiado. Com isso, Veio o homem a existir por evolução ou por criação?
promove-se o crescimento das possibilidades de inter- New York City: Wachover Bible and Tract Society.
comunicação e de experiências compartilhadas envol- Edição brasileira. 1968.
vendo o amadurecimento de ambos os pontos de vista.
É preciso reconhecer que esta possibilidade envolve o Digital:
gradual abandono da negação do outro e a busca pela
constituição de crenças, valores e atitudes fundadas Denton, Michael. “Criacionismo”. Disponível em:
numa relação dialógica, onde valeriam as regras da WWW. Universocriacionista.com.br/content/sec-
tolerância e do argumento racional. O aspecto “anti” tion/9/8/ acesso em 26 de janeiro de 2015.
do antievolucionismo e do anticriacionismo, pelo qual
ambos se instalam na cultura como baluartes da nega-
ção de seu outro, seria enfraquecido, dando lugar à BIBLIOGRAFIA - ANTICRIACIONISMO
comunicação. Esta é a sugestão com a qual se encerra
esta reflexão. Impressa:
Se esta sugestão procede, o que se poderia con-
cluir é que a diferença, o desacordo, a dúvida e a crí- DAWKINS, Richard. O Relojoeiro Cego – A teoria da
tica são, na cultura, motores geradores da novidade. evolução contra o desígnio divino. São Paulo: Compa-
Por isso, na medida em que a negação do “outro” evolui nhia das Letras. 2001.
para o debate aberto e imparcial das opiniões, sem com
isso gerar intolerância e violência, esta negação pode ______. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das
apresentar resultados e oportunidades relevantes, na Letras. 2007.
tentativa comum a todos os membros da comunidade
humana, de produzir um mundo melhor, mais justo e ______. Deus: um delírio. São Paulo: Cia das Letras.
mais esclarecido a cada geração. 2007.

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DENNETT, Daniel. A perigosa ideia de Darwin. Rio de


Janeiro: Rocco. 1998.

GOULD, Stephen Jay. Darwin e os grandes enigmas da


vida. São Paulo: Martins Fontes. 1999.

HUME, David. Diálogos sobre a religião natural. São


Paulo: Martins Fontes. 1992.

Digital:

Manifesto da SBG (Sociedade Brasileira de Gené-


tica) sobre a ciência e o criacionismo. Disponível em:
WWW.sbg.org.br/ManifestoCriacionismo.html, acesso
em 23 de janeiro de 2015.

O AUTOR
José Claudio Matos Possui graduação em Filosofia pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina (1996), Mestrado em
Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (1999)
e Foutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo
(2004). Atualmente é Professor Adjunto da Universidade do
Estado de Santa Catarina, na cadeira de Filosofia da Educa-
ção. Tem experiência na área de Teoria do Conhecimento e
Ética. Desenvolve projetos de pesquisa sobre a filosofia de John
Dewey. E-mail: doutortodd@gmail.com

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