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PRESENCA, IMPLICAGAO E RESERVA Luis Claudio Figueiredo CONSIDERAGOES PRELIMINARES: AS RAZOES DA DIFICULDADE DE FALAR EM. “TECNICA” EM PSICANALISE. Varias razdes dificultam uma apresentagao da técnica em psicandlise. Trata-se, em primeiro lugar, de uma histéria que, desde © inicio do trabalho de Freud, ao longo de sua vida e depois de sua morte, comportou muitas transformagGes que nao descartaram em absoluto e definitivamente as aquisigdes his- téricas, embora as recontextualizem e qualifiquem (exemplo: a sugestao vai de uma predominancia e exclusividade no hipnotismo, passa pela “sugestao ativa” no inicio da cura pela fala e chega, ainda com Freud, ao uso do poder do ana- lista na resolugao de certos impasses nas neuroses de trans- feréncia; em seguida a Freud, vamos reencontrar um uso para algo muito proximo a sugestao, quando se pée para funcionar o poder do analista nas estratégias de manejo que criam as condigées para o trabalho psicoterépico em certos casos de pacientes narcisistas ou limitrofes). Deve-se reconhecer, em segundo lugar, uma ligagao indissoltivel entre aspectos técnicos e aspectos tedricos, sendo que esta ligagdo tem mao e contram4o, mas nao pode nunca ea ee Scanned with CamScanner 14 Emica & TECNICA EM PSICANALISE ser desfeita. Isto torna uma mera compilagéo ou mesmo historia de procedimentos técnicos, se desarticuladas das posicées tedricas, algo completamente sem sentido. Finalmente, deve-se aceitar a auséncia inevitavel, melhor seria dizer, a impossibilidade, de um conjunto fechado e definitivo de procedimentos que possam ser acionados de for- ma mais ou menos mecanica (ou quasemec4nica). As técni- cas, as experiéncias de cura analitica, a pesquisa e a cons- trucdo tedrica se entrelagam dialeticamente, mantendo sempre em aberto as definigdes tanto dos procedimentos como das préprias metas da analise'. Em acréscimo a isto, deve-se ressaltar também a questao das particularidades (em termos de quadros psicopatolégicos) e das singularidades das experiéncias de cura analitica.? As intervengées de Ella Sharpe, Marjorie Brierley e Sylvia Payne nos debates sobre teoria e técnica em que se confrontaram freudianos e kleinia- nos na década de 1940, sendo elas trés representantes do cha- mado Grupo do Meio ou Independentes, realgam de forma nitida e convincente o carater eldstico, criativo, singular e nao plenamente codificdvel dos procedimentos terapéuticos da psicandlise. Devo reconhecer desde ja minha simpatia pelas posicées destas autoras e minha divida para com elas.? 1. Quanto as mudangas historicas nas formas de estabelecer metas para a andlise, ver o texto de John Steiner, “O objetivo da psicandlise na teo- ria ena pratica”. In: Livro anual de psicandlise. S40 Paulo: Escuta, 1996, . 161. 2 Para uma competente e Iticida discussao da trajetéria de mudangas na técnica, mas com uma simpatica apresentagdo da técnica de Sigmund Freud e Anna Freud, ver 0 artigo de Arthur Couch, “A técnica psicanali- tica de adultos de Anna Freud”. In: O processo analitico. Sao Paulo, Escu- ta, 1997, p. 103. Este trabalho de Couch nos sera muito titil no prosse- guimento do texto. 3.Cf. “Memorandum on her technique” by Marjorie Brierley, by Ella Freeman Sharpe and by Sylvia Payne. In: Pearl King e Riccardo Steiner (orgs.). The Freud-Klein Controversies. 1941-1945. London: Tavistock/ Routledge, 1991. O trabalho de Ella Sharpe, em particular, merece ser lido como um liicido e ponderado exame da questao da técnica em psi- canalise, com o qual concordo integralmente. Scanned with CamScanner PRESENGA, IMPLICAGAO E RESERVA 15 Contudo, todas estas razées que restringem ou mo- dulam a consideracao das técnicas em psicanalise nao impedem, antes exigem, que se conceda um maior relevo a posicao que o analista precisa sustentar para que uma psicandlise ocorra. Assim, somos deslocados das questdes das técnicas para as questées da ética. Os ARTIGOS SOBRE A TECNICA DE FREUD Dito isso, sabemos que Freud publicou um conjunto de seis trabalhos, entre 1911 e 1915, que se destinavam a discutir questées da técnica.*Alguns sao realmente discussdes relativamente aprofundadas de problemas técnicos em seus contextos tedrico-clinicos (por exemplo, os dois textos sobre a dinamica da transferéncia e o texto “Recordar, repetir, elaborar”); outros tém um carater mais pronunciado de regras, conselhos, dicas e adverténcias (por exemplo, 0 texto sobre 0 uso dos sonhos, os “Conselhos ao médico sobre o tratamento psicanalitico” e o texto “Sobre o inicio do tratamento”, cujo subtitulo é “Novos conselhos sobre a técnica”). Em outros trabalhos posteriores, algumas novas contribuigdes também ocorreram, embora nunca tenha vindo a luz um tratado freudiano sobre questées da técnica analitica psicoterapica. Entre estes trabalhos destacam-se as duas ultimas “Conferéncias de introdugao a psicandlise” (1917), a ultima das “Novas conferéncias de introdugdo a psicanalise” (1933)°e os trés Ultimos trabalhos de Freud: “Andlise terminavel e interminavel” (1937), “Construgdes em andlise” (1937) e “Esboco de psicandlise” (1938).” 4, Sigmund Freud (1911-1915). Obras completas. Trad. de José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu, 1978, vol. XII. 5. Id., ibid., vol. XVI. 6. Id, ibid., vol. XXII. 7. Id., ibid., vol. XIII. Convém recordar que J. Strachey na Standard Edition, volume XII, faz um completo recenseamento de todos os textos freudia- nos que incluem, mesmo que marginalmente, referéncias A técnica da psicandlise. Scanned with CamScanner 16 Erica & TECNICA EM PSICANALISE Alguns anos depois de publicar os seis artigos sobre a técnica, Freud escreveu a Ferenczi uma carta muito conhecida e freqiientemente citada. Diz ele: “RecomendagGes sobre a técnica, que escrevi ha muito tempo, era essencialmente de natureza negativa” (Freud em carta a Ferenczi, 1928). Esta passagem tem sido usada com variados propésitos mas, em geral, para reivindicar uma certa cautela e um pouco mais de liberdade diante dos conselhos freudianos de forma a nao tomé-los como definitivos e limitadores do que poderia ou deveria ser 0 desenvolvimento do pensamento psicanalitico sobre a técnica. Ha, na verdade, inimeros testemunhos de que a técni- ca de Sigmund Freud era muito mais rica e flexivel do que uma leitura “ortodoxante” dos artigos sobre a técnica pode- ria sugerir. No artigo de Couch’, por exemplo, ele evita falar na “técnica” de Anna Freud. Prefere falar em “abordagem”, dada a naturalidade, 0 bom senso e a disponibilidade que ele, como paciente, encontrou nesta analista formada estri- tamente na escola freudiana e que muito se pronunciou sobre as vantagens deste estilo de clinica sobre o estilo klei- niano, entao emergente. E por isso que Couch faz uma sugestiva distingao entre a técnica classica — a dos Freud —e a técnica ortodoxa — a dos freudianos de estrita obediéncia ao que supunham ser a clinica freudiana. Ha, também, uma mengio a flexibilidade da pratica clinica de Freud nas recor- dacoes de Walter Schmideberg, que fez supervisao com ele. Schmideberg conta ter levado para esta supervisdo um caso em que atendia a paciente na casa dela, ela sentada, olhan- do para ele e tricotando... Nada disso, comenta Schmideberg, jamais foi incluido nos artigos de Freud sobre a técnica, o que nos deve recordar a distancia que pode haver entre estes textos, lidos de uma forma rigida e talvez superficial, e a vi- vacidade da pratica clinica freudiana.” Finalmente, é indis- 8. Arthur Couch (1997). Op. cit. 9. Cf. Walter Schmideberg. “Second extraordinary meeting”. In: P, King € R. Steiner (1991). Op. cit., p. 85. Scanned with CamScanner Presenca, IMPLICAGAO & RESERVA 17 pensavel incluir a contribuigao de Beate Lohser e Peter Newton, que analisaram a técnica de Freud com base nos testemunhos de alguns pacientes, concluindo, como sugere 0 titulo do livro — O Freud nao ortodoxo —, pelo carater natu- ral, pessoal, engajado e expressivo das relagdes terapéuticas que ele estabelecia."” De qualquer forma, os textos sobre a técnica existem e podem merecer leituras menos comprometidas com o forma- lismo e com a disciplina ritualistica. Alias, uma das contri- buicdes importantes de Lohser e Newton é, exatamente, a de reler os textos sobre a técnica a luz da pratica clinica de Freud. Em acréscimo, retornando ao original alemao e neutralizando a tendéncia cientificista e ascética da tra- dugdo inglesa de Strachey, eles mostram as confluéncias entre a clinica e os textos, desfazendo a idéia de que haveria um Freud nos textos e outro Freud no consultério. Contu- do, eles também reconhecem nos textos sobre a técnica al- guns aspectos aparentemente contrarios a esta visao de um Freud mais eldstico e solto, menos ortodoxo. Enfim, os textos sobre a técnica requerem talvez uma consideragaéo mais detida que nos permita, quem sabe, uma percep¢ao mais acurada do que neles se propde. Vamos a eles. A NATUREZA NEGATIVA DAS RECOMENDAGOES SOBRE A TECNICA Minha questo, de inicio, sera a seguinte: como entender a “natureza negativa” das recomendagées? Minha suspeita & a de que com base em uma compreensdo rigorosa da 10. Cf. Beate Lohser e Peter M. Newton. The Unorthodox Freud. The View from the Couch. New York: The Guilford Press, 1996. Ja o livro Como Freud trabalhava, de Paul Roazen (Trad. Carlos Eduardo Lins da Silva. Sao Paulo, Companhia da Letras, 1999) contém alguns dados interes- santes sobre as relagées terapéuticas que Freud estabelecia, mas no conjunto o material permanece no plano de uma colegao de “fofocas” Pouco convincentes e muito mal analisadas, bordejando a pura maledi- céncia moralista. Scanned with CamScanner aT V 8 Erica & TECNICA EM PSICANALISE “negatividade” poderiamos identificar um substrato comum as questdes das técnicas na pratica psicanalitica, para além das diferencas, variacdes e idiossincrasias que esta pratica permite e até requer? Em primeiro lugar, cabe uma observagdo: conforme ‘Lohser e Newton" apontaram, o termo alemao Ratschliige, que Freud adota para seus trabalhos sobre a técnica, mereceria ser traduzido como “pequenos conselhos” — dicas — e@ nao como “recomendagoes”. A tradugdo inglesa dé uma impostacio excessiva ao que é uma fala muito mais modesta e trivial. O proprio Freud nos informa que seu principal objetivo em alguns destes textos, aqueles que tém um carater mais pronunciado de fornecimento de dicas, codificagao de regras procedimentos, era o de interditar ou dissuadir certos procedimentos entre analistas inexperientes e afoitos. E claro que nos sera necessaério e altamente proveitoso ver exatamente quais eram os procedimentos interditados e a isso retornaremos adiante. Se considerarmos o que Freud diz em alguns destes tex- tos, bem como em outros ao longo de sua obra, veremos que ha também uma preocupacao de impedir ou dissuadir uma banalizagao tecnicista das questées técnicas. Isto poderia ocorrer de duas manciras nao exclusivas mas complemen- tares: tanto pode se dar pela uniformizagao constrangedora dos procedimentos, ou seja, com a perda de contato com as experiéncias de cura analitica na sua singularidade e especi- ficidade, como pode ocorrer por uma simplificagaéo pragma- tica, ou seja, com a perda de contato entre as questdes téc- nicas e as questdes tedricas. Um texto sobre técnica pode- ria entao ser lido como um livro de receitas, 4 disposigao do primeiro cidadao bem (ou mal) intencionado que apareces- se. Por isso Freud tanto temia que escritos sobre questédes téc- nicas ficassem acessiveis a leigos Nos textos sobre técnica 11 Beate Lohser e P eter M. Newton (1996). Op. cit. Scanned with CamScanner PRESENGA, IMPLICAGAO E RESERVA 19 e, mais ainda, na auséncia de um tratado sobre técnica, Freud estaria protegendo a psicandlise destas deterioragées. Nesta medida, seriam sempre de “natureza negativa” tanto as suas recomendagées como a falta delas na forma de um cédigo definitivo. ‘Assim sendo, entende-se por que, na seqiiéncia do texto em que fala da “natureza negativa” das recomendagoes, Freud nos afirme: “Tudo aquilo de positivo que alguém deveria fazer deixei ao tato.” Infelizmente, pondera ele, “.. o resultado foi que os analistas obedientes nao perceberam a elasticidade das regras que propus e se submeteram a elas como se fossem tabus” (Carta a Ferenczi de 1928; grifos meus)!?. O trabalho de Couch relata, exatamente, que, apesar de todas as precaucées de Freud, os famosos seis artigos sobre a técnica passaram a vigorar como uma espécie de cartilha “ortodoxante” e assim eram adotados quando ele fazia a sua formacgao nos Estados Unidos, antes de se transferir para a Inglaterra, onde, na andlise com Anna Freud, encontrou um ambiente muito mais elastico e acolhedor. Sao muito atraentes, na verdade, as lembrancas de Couch daquela boa velhinha tricotando, extremamente firme na sua escuta e na sustenta¢ao dos limites do setting analitico, mas extremamente afavel no trato, perfeitamente capaz de responder com naturalidade, oferecendo suas opinides e sua presencga viva sempre que a anilise do paciente assim exigia. Era uma ouvinte muito atenta e capaz de longos siléncios antes de arriscar uma interpretagao. No entanto, o leve ruido de seu tricotar, que ora se acelerava, ora se interrompia, deixava bem claro que ela estava muito viva na sua discreta invisibilidade. A esta conjugac¢ao delicada na 12. interessante observar que os termos que Freud utiliza nesta carta sio termos que vieram a caracterizar muito mais a clinica ferencziana do que a sua propria: “tato” e “elasticidade”. A carta mostra, contudo, que estas eram questdes psicanaliticas freudianas ou freudo-ferenczianas, de- signagao que me parece a mais apropriada. Scanned with CamScanner —— 20 Ena & TRENICA EM PSICANALISR presenca de Anna Freud, de implicacao e auséncia, retor- naremos adiante. Mas voltemos ao fio de nosso “tricé”. Uma forma mais ampla e profunda, mais inclusiva e precisa de entendermos a “natureza negativa” dos conselhos 6 ver que com cles Freud nos da pistas e nos solicita a pensar nos limites do que pode ser codificado € no aleance do campo a ser explorado criativamente pelo analista em cada cura e em cada coteso, Este campo ¢ grande ¢ extremamente variado, pois : hon, ee considerar tanto as varidveis do paciente (suas nele devem se conn |diossincrasias) como as varidveis do patologias ¢ Nan os “Conselhos...” como nos “Novos ae eee oritrs a énfase no peso destas varidveis : o” Gncontramos Sot aco por cada analista e em cada caso de um | na cons Iho. Freud diz — 9 que também se repete 4 metodo de traball® trata de defender uma pratica analitica aaa Uerole superegdico mais brando — que © método 1 que criou funciona bem para ele, mas que outros, de uma Empleicao psiquica diversa, bem poderiam trabalhar de formas diferentes. Por outro lado, se ha muitas formas Iogitimas de proceder, ha alguns erros e desvios a serem sempre evitados. S40 os “erros” que poem em risco alguma sone essencial na psicandlise. O presente trabalho destina- se a questionar: que coisa é esta? Por enquanto, cabe assinalar que quanto mais compreendemos a vastidao do que fica a cargo de cada experiéncia de cura analitica em matéria de procedimentos e regras, mais restrita e “negativa” seria a natureza dos conselhos. A NEGATIVIDADE DO NEGATIVO. NAS RECOMENDAGOES SOBRE A TECNICA Uma compreensaéo mais aguda da “negatividade” dependeré de uma especificagao do que deve ser interditado, do que os conselhos veementemente condenam. a Scanned with CamScanner PrestNca, IMPLicacao & Reserva 2 De inicio, encontramos em diversos textos a interdigdo do uso abusivo da sugestao. A psicandlise ndo ¢ uma cura pela sugestao, "do é uma construg4o mais ou menos autoritaria do psicoterapeuta, ndo é uma pedagogia, ndo ¢ uma imposigao ortopédica de novas formas para corrigir formas antigas e defeituosas, nao é, para usar a terminologia pragmatista de Jurandir Freire Costa, uma redescri¢do. A este uso abusivo — e radicalmente ineficaz — da su- gestdo, opde-se 0 seu uso moderado e estratégico para pro- piciar novos e melhores desenlaces de impasses e conflitos transferenciais. O amor de transferéncia confere ao analista um poder de intervir em momentos precisos e encaminhar certas operacées de desligamento e reinvestimento libidinal sem os quais nao se venceriam certas resisténcias inerciais do paciente. Em seguida, encontramos a critica sistematica ao furor interpretativo ou compreensivo. A interpretagao, por exemplo de um sonho, deve estar a servico do processo analitico e nunca se converter em um fim em si mesma. Da mesma forma, as interpretacdes devem ser elaboradas e ministradas com muita paciéncia, muita cautela e senso de oportunidade, pois do contraério podem levar a impasses resistenciais ou, simplesmente, nao exercerem nenhum efeito transformador, nado gerarem nenhum insight. Em oposica4o a este uso abusivo, as atividades interpretativas, das quais para Freud depende o fun- damental do processo terapéutico, devem manter-se em contato estreito com a experiéncia do paciente. Diz ele: “ para o tratamento ¢ da maxima importancia tomar noticia, sempre, da superficie psiquica do paciente” (“O uso da interpretagao dos sonhos...”). Isto é 0 que se requer sempre: contato vivido, afetivo e intelectual com o paciente, e qualquer atividade interpretativa, por mais brilhante e “profunda” que seja, que leve ao rompimento deste contato com a superficie, 6 nociva ao trabalho terapéutico. Ou seja, mesmo quando se visam as “profundezas”, é indispensavel Scanned with CamScanner —~y 2 Entcn © TRONICA EM Ptcan dries estar em contato com a superficie psiquica, vale dizer com a dimensao fenomenoldégica da experiéncia, aquela que j4 inicia seu transito no campo do sentido, mesmo que de um sentido incipiente. Tambem o furor curativo é fustigado por Freud em um sem-numero de passagens. Querer ajudar, querer curar a todo custo, a toda pressa, a todo transe, esta em oposigao ao que seria recomendavel: uma inabalavel mas discreta convicgao Ge possibilidade de cura. Nao se trata de repetir ostensiva- mente esta conviccdo, mas de retirar dela a firmeza ea | a necessarias para insistir na posica@o de analis- ante procuraremos caracterizar melhor. Ha | permanentemente nos textos freudianos uma adverténcia contra querer ir ao fim do caminho da cura em uma linha seta ¢ em um ritmo regular. E preciso deixar que as coisas acontecam ¢ ter a intima conviccao de que aconteceraéo a seu tempo ¢ a seu modo. ; Finalmente, Freud condena o furor pesquisante, ou seja, a tendéncia a colocar a Clinica, com suas sinuosidades, suas jpscuridades ¢ sua complexa temporalidade nada regular, hada retilinea, sob a tutela de um querer saber e de um querer fazer ciéncia. Em que pese o extraordindrio potencial cognitivo da experiéncia clinica, de que as obras de Freud e Gos grandes psicanalistas nos dao testemunho, a pesquisa © a reflexao tedrica devem vir depois e nao estorvar ou impor seus meios e fins pratica clinica. O pesquisador tende a preferir fendmenos mais claros e identificaveis, processos mais previsiveis, sobre os quais exercer 0 controle. O clinico deve renunciar a este controle e a estas previsdes, confiando em que 0 processo anda e deve andar por si s6. Diz ele: “Esse processo, uma vez iniciado, segue seu proprio caminho e nao admite gue Ihe prescrevam nem sua diregdo, nem a seqiiéncia dos pontos que percorrera”. (“Novos conselhos...”) No conjunto, 0 que vemos € a interdigao de todas as formas de imposicao; a impaciéncia, 0 excesso de determina- sao terapéutica ou cientifica, a pressa na formulagéo e admi- consisténci ta, posicao que adi Scanned with CamScanner Peesenca, IMPtICAgAo & Reserva 23 nistracdo de interpretagdes e, muito particularmente, a extracdo a forceps de lembrancas, de historias ete.. tudo isso esta em franca oposigdo ao que seria desejavel: uma ca- pacidade de insistir, suportar ¢ sustentar um processo de cura ao longo de seu percurso e das turbuléncias deste percurso. Quando, na fase seguinte da histéria do movimento psica- nalitico, veio a imperar em certos lugares a influéncia kleiniana, que privilegia quase exclusivamente o trabalho na e com a transferéncia, coube a Anna, legitima represen- tante da tradigéo dos Freud, condenar as taticas interpreta- tivas que procuravam apressar e mesmo forcar a instalagao dos vinculos transferenciais. Ela preconizava sempre a pa- ciéncia e a discricdo, a reserva, na espera que o processo pudesse se desenvolver com naturalidade e no seu proprio ritmo. Trata-se, fundamentalmente, de sustentar-se na posi¢ao de analista e deixar que, as vezes pelo menos, o mundo, li- teralmente, Ihe caia sobre a cabega e que as coisas € acon- tecimentos Ihe venham ao encontro. Paralelamente, mas em intimo contato com as questdes acima, Freud condena todas as formas de uso/abuso narcisista e perverso do poder transferencial. Algumas destas formas saéo 6bvias, como, por exemplo, o caso do analista que obtém ganhos sexuais de suas pacientes enamoradas, tentagdo a que, por exemplo, nao pode renunciar o, sob tantos aspectos, extraordindrio analista que foi Masud Khan. (No mesmo nivel podem-se citar outros usos abusivos, narcisistas e perversos do poder exercidos por psicanalistas com vocag4o para “guru” e que muitas vezes acabam respaldados pelos grupos e sociedades de psicandlise). Mas ha outras formas de excesso que nao passam desapercebidas a Freud. Por exemplo, os furores com- preensivo, curativo ou pesquisante, ou seja, a pretensdo do analista tudo saber e tudo poder, proporcionam ganhos narcisistas inaceitaveis. E nao por razdes meramente éticas, embora, é claro, também se trate disso. Ha, porém, Scanned with CamScanner . 26 EtICA & TECNICA EM PSICANALISE De outro lado, cria-se também um espacgo e um tempo para a atencgao/desatengao flutuante, modo de escuta que comporta uma presenca intermitente do analista, ou seja, uma dose mais ou menos grande de auséncias, dado que se ten- ta escapar daquele modo de atengdo que se fixa ao encadea- mento dos eventos de forma a acompanhda-los e controlé- los exaustivamente. A atencao/desatengdo flutuante é indis- pensavel para um certo registro do irrelevante e 6 daquilo que se escuta de irrelevante — deixando-se levar “como ao aca- so” — que, na posterioridade, se poder constituir 0 novo e sur- preendente que Freud persegue (cf. “Conselhos ao médico sobre 0 tratamento psicanalitico”). Freud condena toda ten- tativa de dominar o material clinico, subjugando-o ao campo do sentido ja dado. Tomar notas, fazer registros ob- sessivos do que se passa ou passou, tudo isso apenas inibe a capacidade de manter-se no estado da atengao desatenta — ou da desatengdo atenciosa — estado no qual as “comuni- cagées entre inconscientes” podem ocorrer. Confiar nos po- deres obscuros e até certo ponto imprevisiveis e incontrolaveis do inconsciente do analista é exatamente o que se requer. O analista, posto em reserva, esta ele mesmo confiado as suas reservas animicas e corporais sem que se coloque para ele a ten- tagao de dominé-las e explora-las. Trata-se, antes, de deixd- las livres para suas proprias operagdes sem as censuras e con- troles que a consciéncia necessariamente impée ao psiquismo. Finalmente, ha que se oferecer um espago, um tempo e alguns recursos (interpretagdes e construgdes muito opor- tunas e se possivel breves) para elaboragdes, novas ligagdes e desligamentos. E neste contexto, e apenas nele, que algo como a sugestao pode ser um eficaz coadjuvante da andlise. No conjunto, as interdigdes, ou seja, a “natureza negativa” dos conselhos, estao a servico da criagao de um espaco e de um tempo para “comunicagées inconscientes” e, nesta medida, inesperadas e nao programaveis. Seria, talvez, mais apropriado dizer espacgo e tempo para que as produgées inconscientes do analisando e do analista e as comunicagGes Scanned with CamScanner PRESENGA, IMPLICAGAO & RESERVA 27 conscientes entre eles possam ocorrer lado a lado, cruzarem- se, deixarem-se pescar e ao mesmo tempo invadir, inter- romper e fecundar umas pelas outras, jA que o que se busca é exatamente uma maior possibilidade de transito intra- psiquico, 0 que é a condigao para os ganhos na luta contra a repressao e contra as cisdes e dissociagdes. Em termos topicos, poderiamos dizer que este seria 0 espaco pri- vilegiado para as operagées do pré-consciente (relatos oniricos, ensonhamentos, réveries), lugar de transito entre as forcas mais obscuras da mente e as figuras do sentido em processo de formacao. ImpuicacAo E RESERVA: NOVAS POSSIBILIDADES, NOVOS DESAFIOS, I Dando um pequeno salto no tempo, diria que uma nova compreensao do campo transferencial, j4 presente e insinuada nos textos de Freud — inclusive nos dois textos sobre a técnica, que tratam da dinamica transferencial —, veio propiciar um enriquecimento da clinica psicanalitica. Este enriquecimento, contudo, comportou certos riscos. A partir de Melanie Klein e de seus aguerridos seguidores ingleses e latino-americanos, 0 foco do trabalho analitico deslocou-se da considerago dos aspectos histéricos - do “inconsciente passado” — para a consideragao conjunta da transferéncia e da contratransferéncia como fenédmenos cruciais na criagéo de um “aqui e agora” sobre o qual incidiriam as mais importantes e decisivas intervengdes do analista (o “inconsciente atual”). Na verdade, este “aqui e agora” é de uma complexidade extraordindria, que nada retém do que se entende por “aqui” e por “agora”. Trata-se de um aqui e de um agora multideterminado, em que se sobrepdem, se encavalam, se interpenetram, se confundem e se ocultam tempos, lugares e personagens variados. Cada “aqui e agora” seria uma condensaca0 muito complexa da histéria no que tem de eficaz: o presente deste aqui e deste Scanned with CamScanner 28 Enrica & TECNICA EM PSICANALISE agora seria, portanto, totalmente distinto do que se entende por “presente”, ou seja, uma unidade simples e distinta formada pelo “agora” de uma sucessao de momentos e pelo o de lugares. A técnica interpretativa “aqui” de uma exten: deveria tirar o maximo partido desta confusdo, desta ambigiiidade constitutiva do “aqui e agora” analitico.'* Sem duvida, Freud jé sabia disso. Por outro lado, sabemos que ele sempre fora muito desconfiado diante das chamadas respostas contratransferenciais. A possibilidade de vé-las n3o s6 como obstaculos mas como ingredientes inevitaveis e, mais que isso, indispensdaveis na construcao do espaco analitico, a possibilidade de também delas tirar partido para levar o processo adiante, significou, no meu entender, uma ampliagdo do insight freudiano que, ao defender uma entrega do analista ao seu préprio in- consciente, ja supunha que a implicagao pessoal do analista no processo de cura — em termos afetivos e intelectuais — era uma necessidade. Esta implicagao resultava naquela relativa perda de controle sobre si € sobre 0 processo a que aludi acima. Conceber 0 “aqui e agora” em termos do imbricamento de respostas transferenciais e contra- transferenciais coloca a questao da técnica em um novo patamar e faz novas exigéncias ao pensamento da técnica. Um outro aspecto das teorizagdes kleinianas que exerceu © mesmo efeito de ser, ao mesmo tempo, continuidade e perturbag3o das solugdes técnico-teéricas freudianas diz respeito 4 identificagdo projetiva e a introjetiva, entendidas como meios de comunicacao direta entre inconscientes e vias decisivas para a formacdo de um “segundo campo” dentro do “campo contratado”. Se os conteidos explosivos e téxicos, evacuados da mente do paciente, invadem e se alojam na mente do analista para ali serem vividos, devaneados e elaborados (resgatados como elementos da réverie), 14. Acerca da temporalidade deste “aqui e agora”, ver o Apéndice II, Scanned with CamScanner PRESENGA, IMPLICAGAO & RESERVA 29 interpretados, desintoxicados, destituidos de sua eficacia traumatogénica para sé entéo poderem ser devolvidos ao paciente na forma de interpretagées (modelo proposto por Wilfred Bion), entende-se que o “aqui e agora” da andlise nao sé confunde momentos e personagens da historia uns com 0s outros — 0 que tem a ver com o campo das relacgdes transferenciais e contratransferenciais — como cria situacGes muito mais dificeis de discriminar, situagées em que as autorias e origens de sentimentos, desejos e até necessidades perdem seus limites individuais. E o clima afetivo e intelectual, 6 uma dada atmosfera, que constitui a trans- feréncia como “situagao total”, segundo a feliz nomeagao de Betty Joseph'®. Em um artigo recentemente publicado, Thomas Ogden refere-se, por exemplo, aos “suprassons” que se geram quando as varias vozes de analista e analisando se combinam na produgdo de um campo transubjetivo de ecos € ressonancias no qual ambos habitam e a partir do qual ambos falam"*. Em termos técnicos, uma primeira tarefa se impde ao analista, a de suportar e sobreviver (mantendo-se em reserva) ao impacto das respostas transferenciais e, mais ainda em muitos casos mais graves, ao impacto das identificagées projetivas dos pacientes. Podem ocorrer sérios fracassos quanto a esta exigéncia, ou seja, podem aparecer muitos modos de evitar e se defender destes impactos bastante incémodos e traumaticos. Harold Searles esta entre os psicanalistas (nao se trata de um kleiniano em sentido estrito, mas de alguém que nao descarta os achados de Melanie Klein) que mais se dispuseram a enfrentar situagdes de risco psiquico e até fisico, decidido que estava a nao recuar diante 15. Betty Joseph. “Transference: the total situation”. Int. J. Psy. Anal., vol. 66, p. 447, 1985. 16. Thomas Ogden. “Uma questdo de voz na poesia e na psicanilise”. Re- vista Brasileira de Psicandlise. Sao Paulo, Orgao Oficial da Associacao Brasileira de Psicandlise, vol. 32, n. 3, p. 585-604, 1998. Scanned with CamScanner 30 0 Erica & TRONICA It PSICANATIS® destas situacdes em que 0 analista deve fazer os maiores esforcoos para manter-se cm reserva, deixando ao paciente a Gefinicao de quem 6 ¢ do que faz e pensa aquele que o atende.” Ou seja, deixando-se negar e reinventar. O que é de extremo interesse 6 que Searles descobriu a possibilidade de se “des-re-conhecer” pela via do outro introjetado, ou seja, muitas das projecdes aparentemente absurdas e violentas, lesde que suportadas, levavam Searles a reconhecer em si aspectos praprios que até entao Ihe escapavam. Em outras palavras, ao deixar-se negar c inventar pelas projegdes de seus pacientes psicaticos e borderline, Searles encontrava pela primeira vez algo de sua realidade. Realidade, portanto, que havia sido de alguma forma acessada nas projegSes mais delirantes dos pacientes. Para Searles foi se mostrando claro que nao devia nestes casos desmentir as “invengdes” ou a elas responder mediante interpretagdes da transferéncia, mas que, ao contrario, 0 processo so tinha a ganhar aceitando- as plenamente e confirmando-as para os pacientes. Sem duvida, 6 uma estratégia clinica que se enraiza nas posigdes ferenczianas acerca da mutualidade e da necessidade de superar a hipocrisia e os desmentidos traumatogénicos. Mas para meus propositos aqui, o que quero ressaltar é que esta éuma das situacdes paradoxais em que a “realidade pessoal” Go analista e sua capacidade de reservar-se em beneficio da emergéncia de conteudos do paciente, longe de se oporem, entrelagam-se de uma forma muito original. ‘A énfase na formagdo de campos afetivos e intelectuais complexos durante os processos de cura analitica trouxe, contudo, alguns riscos. A técnica kleiniana tendeu muitas vezes a contrariar a exigéncia de reserva e, ao contrario, a incrementar a intrusividade do analista. Interpretagdes precoces, tendenciosas, unilateralmente centradas nos 17. Harold Searles. Mon expérience des états limites. Trad. Brigite Bost. Paris: Gallimard, 1994. Scanned with CamScanner an Presenca, Inpticacso # Res vinculos transferenciais e a imposigao impaciente destes vinculos tenderam a fazer do campo transferencial- contratransferencial um campo excessivamente fechado, um verdadeiro campo de concentracao regido pela autoridade do analista. A regra fundamental — “Diga tudo que lhe vier 2 cabeca” — acrescentava-se sub-repticiamente a adverténcia: “Tudo que o senhor disser sera a respeito de mim e sera usado ‘contra’ o senhor”, o que, alias, serve para despertar as fantasias persecut6rias de muitos pacientes. Ao mesmo tempo, ficava impossivel distinguir estas interpretagses do que seriam apenas procedimentos de sugestdo. Finalmente, a precocidade de interpretagdes “profundas” pode romper o contato com a superficie psiquica do paciente, um contato que para Freud era tao importante conservar. Ocorre que a crenca kleiniana de que a psicanalise, depois dos aportes de Melanie Klein, detinha um conhe- cimento profundo e direto das experiéncias mais precoces do ser humano, experiéncias ocorridas em uma fase pré-verbal e que sé poderiam comparecer na forma de encenacées transferenciais (mesmo quando deslocadas para outras pessoas fora do consultério, como acting out!), associada A crenga de que o analista deveria dar voz imediatamente a estas experiéncias e ir ao encontro das angustias arcaicas ai contidas, antes mesmo delas aflorarem com nitidez, justificava a precocidade das “interpretagdes profundas”. Fundamentalmente, justificava-se teoricamente um modo de operar analitico em que o analista deveria funcionar como aquela mae que, mais que o préprio filho e antes dele, sabe perfeitamente o que ele sente, adivinha o que ele necessita, o que ele deseja, o que teme e, antecipando-se com seu saber, 0 alivia dos maiores sofrimentos. E claro que esta fé na propria teoria e a seguranga absoluta quanto as proprias intuigdes como canais eficazes e indiscutiveis de conhecimento imediato do psiquismo alheio — no fundo, uma confianga inabalavel nas repostas contratransferenciais — tendia a gerar procedimentos intrusivos e autoritarios contra os quais boa Scanned with CamScanner 32 Erica & TECNICA EM PSICANALISE parte dos psicanalistas se colocava, ao menos, em uma Posic&o de suspeita."* Foi preciso que a questao do campo (ou melhor, dos campos, pois sio varios campos sobrepostos e dinamicamen- te articulados) fosse explicitada para que uma abertura comegasse a ser entrevista. Coube ao casal de psicanalistas Willy e Madeleine Baranger introduzir na década de 1960 uma teorizacao kleiniana acerca dos campos .”? Foi, ent&o, pos- sivel falar tanto da natureza intrinsecamente intersubjetiva (eu prefiro dizer “transubjetiva”) dos fenémenos que emer- gem nos processos de cura (aonde © analista esta totalmen- te implicado em um campo de ambigiiidades), como dos im- Passes que se geram quando este campo se fecha em torno de uma complementaridade malsa das respostas transferenciais e contratransferenciais. Estes lugares defensivos foram cha- mados de bastides: funcionam como fortalezas responsaveis para manter estagnado o processo, para manter sob controle os territérios trans, inter e intrasubjetivos. Sao, enfim, resisténcias compartilhadas. Para detectar e enfrentar estes bas- tides, para desaloja-los e reabrir o processo, vale dizer, para perder novamente o controle militar dos territérios permi- tindo que coisas possam voltar a acontecer, seria necessario © que os Baranger chamaram de um segundo olhar. Este é 0 olhar de fora do campo, que fala dele, que trata do campo enquanto tal. Com isso se discriminam duas taticas interpre- tativas: uma lida com as varidveis de background (o que tem 18. Cf., para uma apresentacao positiva desta técnica, 0 texto de Melanie Klein apresentado nas Controvérsias (“Memorandum on her technique by Melanie Klein”. In P. King e R. Steiner (1991). Op. cit., p. 635-638). Para uma visao critica, cf. “Memorandum on her technique by Sylvia Payne”, in id. ibid., p. 650-651. 19. Willy Baranger e Madeleine Baranger. Problemas del campo psicoar Buenos Aires: Kargieman, 1969; W. Baranger, M. Baranger e - “Process and non process in analytic work”. Int. J. Psy- Anal., vol. p. 1, 1983. Scanned with CamScanner

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