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4 Brasil, Paisdo Futuro: «.. Novelas dos Anos 1970e 1980 Ez: hoje o Brasil exporte novelas para todos os continentes, até 9 final da década de 1960 importava textos, roteiristas e diretores de pafses da América Latina, como Argentina, Venezuela, Colombia e Cuba. Companhias norte-americanas de produtos sanitérios e higiénicos, como a Colgate/Palmolive e a Gessy-Lever, produziam inicialmente novelas de rddio, e depois de televisio. Sob os auspicios dessas companhias se desen- volveu uma industria de redagdo, adaptagao e producio de histérias melo- dramiticas. A produgao de novelas no continente envolveu um fluxo curioso de adaptacgées e readaptagdes dos mesmos textos. Roteiristas brasileiros es- tenderam e adaptaram novelas argentinas para o Brasil. Versées brasileiras seguiam entio para a Venezuela, onde eram readaptadas uma vez mais. As adaptagées locais visavam atender as leis, regulamentagdes e convengées de cada pats. Através desse fluxo de roteiros, o Brasil fazia parte de uma curiosa e pouco estudada rede transnacional. A primeira modificagao nesse modelo de produgo se deu quando a re- cém-inaugurada TV Globo, sob a direcdio de Walter Clark, montou um depat- tamento de produgao de novelas dentro da prépria emissora, rompendo com a organizagdio da producao que deu nome as soap operas norte-americanas € iniciando o modelo verticalizado,' até hoje em vigor. A cubana Gloria Maga- dan saiu da Colgate/Palmolive para dirigir esse departamento, cujas produ” $es teriam elevado sensivelmente a audiéncia da nova emissora.* Magadan Permaneceu na Rede Globo somente até 1969, quando os cenérios remotes eos nomes estrangeiros de seus personagens foram condenados em favor de um estilo mais “realista’, centrado no Brasil, que encontrou forte expressiio no trabalho de Janete Clair, sob diregdo de Daniel Filho. Seguindo o caminho aberto por Beto Rockfeller, a dupla consolidou um novo estilo, a novela-crénica do cotidiano, inspirada no cinema, fiel a tradigdo melodramatica do género, mas com énfase no contemporaneo, o que acentuava sua vertente folhetinesca.? As novelas Ppassaram a utilizar didlogos coloquiais e a se referir a eventos e questdes capazes de provocar debate e conversagao. O foco das novelas da Globo na expressdo da “vida como ela é” é coerente com 0 mote do Jornal Nacional, lancado pela emis- sora em 1969, ano da primeira novela contemporanea. Essa producdo local fechou o mercado as concorrentes, tidas como de qualidade inferior, ape- lativas, feitas para fazer chorar. Em contraste, o produto brasileiro incorpo- rou o humor, a ironia, o sarcasmo; apresentou figurinos da moda e maior densidade nas tramas que assimilaram a critica de costumes. Referéncias a cultura nacional foram se expandindo e se tornaram explicitas com 0 uso das cores da bandeira, entre outros simbolos nacionais. O contetido politico e ideolégico das novelas marcou o debate cultural nos anos 1970 e foi tema de intimeros trabalhos académicos. Alguns desses trabalhos Iéem as novelas da perspectiva de profissionais engajados e salien- tam sua capacidade de gerar ideologia politica critica a partir do interior da in- daistria cultural. Outros enfatizam o caréter industrial e comercial do produto para demonstrar que a intengao critica de profissionais engajados nao tem condigdes concretas de se realizar. Esses autores enfatizam o papel dos se- riados televisivos na reproducio de ideologias dominantes e na disseminagao do consumo. Trabalhos recentes especulam sobre a influéncia das novelas em comportamentos politicos imediatos, como por exemplo o resultado de eleicdes. Esse debate aparece por vezes nos termos da oposi¢ao entre o que seriam novelas “melodramaticas”, aquelas mais préximas da origem latino- americana, e o que seriam novelas “realistas”, nos termos da teoria critica. No entanto, para além dos contetidos ideolégicos, e da persisténcia do elemento musical a que a parcela opera da expresso inglesa alude, como explicar que, de produgdes promocionais de companhias de sabao, as no- velas tenham se transformado no mais popular espaco de interpretacao e teinterpretagdo da nacionalidade? Pouco se conhece da forma propriamen- te dita desses seriados. Seria possfvel sistematizar um conjunto de con- vengoes estéticas, elementos narrativos recorrentes que teriam operado a transformagio no género? Em que medida o conhecimento e a interpre- tagtio dessas caracterfsticas ajudam a compreender a forga da novela te- levisiva? Procuro responder essas perguntas através da andlise de alguns Brasil, Pais do Futuro & 0 Brasil Antenado g colhidos dentre os titulos de maior repercussao 6, es exemplos, esco! Ot Tem conta novelas urbanas e rurais, tity}, :Jo procurou : 4 pane elodrama e como realistas, de diferentes autores, como mi rte transversal que possibilite visualizar elementos col ‘. 7 ton um. Nessa andlise comparativa, as vinhetas de abert; a s revelaram-se materiais ricos em 2a €pocq. . los clas, e. . Sific, A idéia ¢ wats Ae elas pay UI e Tura © as primge™ Pistas sobre os tas ii@ncias narrativa’ “ Prin. ipais conflitos que movem as mais diversas histérias. cip Convencées Formais: Irmaos Coragem e Selva de Pedra Como exemplificam novelas de autoria de veteranos ativos j4 na 1960, como Ivani Ribeiro, Walter Durst e Benedito Ruy Barbosa, da historia e da cultura brasileira marcam o género desde os Nos anos 1970, a conjuntura do pafs tornou-se elemento & preponderante de dramas que apresentavam as tensdes do pais que se vig como “do futuro” e que parecia crer que finalmente chegara a sua ver, Ne velas conhecidas confirmam o esforco de autores engajados em extrapolar 05 limites do que classificam como “dramalhao”. Sem deixar de lado sua ve. cago melodramiética, o cardter de folhetim, ou seja, de texto que vai sendo escrito e produzido enquanto est4 no ar, prepondera. Novelas passaram ser vitrines privilegiadas do que significava ser “moderno’”, estar sintonizado com a moda e comportamentos contempor4neos. Em 1970, com Irmdos Coragem, as novelas e a rede Globo assumiram a lideranga da audiéncia de televisio.’ A primeira seqiiéncia do compacto da novela a que tivemos acesso® se passa no Maracana em um final de jogo. O vocabulério utilizado, a entonagao de voz e as imagens sugerem a transmissao de uma final de campeonato carioca, um classico Fla-Flu. Como uma locugao convencional, a narrativa descreve a emogio coletiva que enlaga torcedores e jogadores no est4dio. O locutor capta e salientao suspense em uma série de frases curtas e enxutas. E 0 minuto final de um classico. O jogo esté empatado. Os torcedores acompanham com a respi- ta¢do suspensa uma jogada perigosa. O narrador clama por atengao. Ele mesmo segura a respiracio e, entio, registra o gol e a reacdo apaixonada, 2 “explosao, a loucura, o grito da multidao”. O narrador emprega os termos técnicos adequados e utiliza os termos convencionais do futebol brasile- ro, como “torcida rubro-negra” para designar os torcedores do Flameng? ou 0 “miolo” para designar o meio do campo. Uma seqiiéncia panordmic® mostra o estédio lotado de torcedores em um domingo de classico- Lae abertos revelam a vibragao da multidao com a vit6ria do Flamengo, clube década de elementos Primérdios, le referencia 1 e 2. O Sheik de Agadir: personagens em terras e tempos distantes, trajando figurinos exéticos, caracterizavam 0 universo “fantasioso” da cubana Gloria Magadan. 3. Gloria Menezes e Tarcisio Meira protagonizaram A Rosa Rebelde, novela de Janete Clair escrita sob a supervisio de Gloria Magadan, ainda no registro de figurinos de “vestidées” em cenérios de naus fantasiosas. A concorréncia da bem- sucedida Beto Rockfeller na Tupi trouxe a narrativa das novelas para 0 tempo contemporaneo. 4. Sangue e Areia, exemplo do estilo fantasia” de fazer novela: historias situadas em lugares e tempos distantes. Escrita por Janete Clair, novamente sob superviséo de Gloria Magadan, a novela marcou a estréia do casal Tarcfsio Meira © Gloria Menezes na Rede Globo. 0 Brasil Antenado mais popular do Rio de Janeiro, sobre o Fluminense, conhecidg clube da elite carioca. Em plano fechado vemos Duda (o pe em Marzo), um dos trés irmaos Coragem, que dao nome a historia, Vesti uniforme do Flamengo. Das arquibancadas, fas agitam ag suas bay tin, Ouve-se o barulho da torcida. ‘As imagens reforcam 0 tom de atualidade que o texto sugere e aj a construir o suspense. Planos abertos se alternam com Planos ah fas uniformizados e com planos de Duda avangando em dir. e680 ag ios de sltimo minuto de jogo. Duda celebra a vitéria com 0 time. O jopanee bém se dirige a torcida. Os repérteres entram em campo e assediam . ‘am. dor. Os telespectadores da novela acompanham a entrevista do personage como se estivessem assistindo as declaracdes de seu jogador fare ne O repérter faz a pergunta convencional: quais sao os planos de Duda depois dessa vitéria espetacular que o consagrou no Flamengo? 0 Perso- nagem olha para a camera, o cinegrafista o enquadra no melhor estilo da reportagem esportiva, € 0 personagem-jogador revela que vai visitar sua fy. mflia em sua cidade natal, Coroado. Ao falar ao microfone e olhando dire- tamente para o telespectador através da camera, Duda representa 0 sujeito entrevistado, bem de acordo com as convengées do género documental, O primeiro capitulo de Irmaos Coragem foi ao ar em 29 de junho de 1970; a Copa do Mundo de futebol, no México, acabara hé pouco. O Brasil se consagrara tricampeo mundial, trazendo para casa definitivamente a taca Jules Rimet, troféu disputado durante décadas pelas representagées nacionais dos diversos paises. Os jogos dessa Copa Mundial de futebol foram transmitidos pela primeira vez ao vivo para a parcela do territério nacional que entao recebia sinais de televisio. Irmaos Coragem tratou de um assunto que ocupava grande parte dos brasileiros. A referéncia ao esporte nacional funcionava como um “gancho” que conectava a narrativa do folhetim eletrénico com um assunto da con- juntura que despertava amplo interesse nacional. E importante acrescentat ainda que o futebol é um esporte que no Brasil é entendido como perten- cente ao universo masculino. Ao tratar de futebol em um espaco definido como preferencialmente feminino, a narrativa de Irmdos Coragem ampliava um pouco a problematica tratada no ambito do seriado televisivo. O futebol nao constitui tema central na histéria; compoe uma a secundéria. Ele motiva um dos trés protagonistas a deixar sua pequens Ct . de natal, no interior do Brasil, onde o cavalo ainda era o meio de transport onde a luz elétrica ainda ndio chegara ¢ onde o analfabetismo vigorava, Pir ascender socialmente longe de sua famflia na sedutora mas “imoral” Rio Janeiro. © futebol perde importancia ao longo da histéria, quando Res! do o ndeiras, Duarte € Claudio Marzo, atores que protagonizavam essa parte da trama sao transferidos para a nova novela das 19h, Minha Doce Namorada, e seus personagens, Ritinha e Duda, finalmente reconciliados ¢ com am filhe. de volta 4 metrépole, desaparecem de cena. : Irmaos Coragem tinha em comum com a novela anterior, Véu de Noiva, escrita, dirigida e estrelada pelos mesmos Profissionais, 0 gancho com um esporte no qual o Brasil se destacava no plano internacional: a Férmula 1. Com 0 advento da TV, do videotape e das primeiras transmissdes por saté- lite, competi¢6es esportivas internacionais adquiriram a aura de glamour que cerca o espeticulo global. A televisdo brasileira carrega significados que no imagindrio dos Estados Unidos e da Europa do infcio do século se expressaram no cinema. Refiro-me especialmente a utopia do progres- so tecnolégico, associada ao aumento de velocidade de deslocamento no tempo e no espago, representada especialmente por meios de transporte e comunicagao. Imagens de trens, helicépteros, avides, telefones, com fio, sem fio, celulares, computadores, internet, além de tecnologia médica reprodutiva, capaz de prolongar a vida ou de verificar paternidade, com- péem o imagindrio no qual se inserem as novelas®. Retornando & primeira seqiiéncia, a mengao de Duda em seu depoi- mento de final de jogo vitorioso, concedido & televisdo, conduz a narrativa do estddio lotado do Maracané a principal locagao de Irmaos Coragem, no interior do estado de Minas Gerais. A oposigao entre 0 pequeno vilarejo rural e a metr6pole carioca é uma das tensédes que alimenta a narrativa. Nao ha nem televisdo nem telefone na residéncia da familia Coragem. O meio de transporte principal é 0 cavalo. O trabalho duro € no garimpo, as margens de um rio nas redondezas. A referéncia documental ao futebol carioca situa a narrativa no tempo € no espaco. Coroado é definida, por contraste ao Rio de Janeiro, como lugarejo distante, no estilo de vida, nos valores e nas relagdes de poder. A ingeréncia do documentério na narrativa melodramética marca a novela de televisdo nesse perfodo. E como se essa referéncia oferecesse ao drama romantico uma Ancora histérica e geogréfica capaz de atestar a verossimi- Thanga daquelas tramas: elas se referem ao Brasil contemporaneo. A partir dessa introdugao, a narrativa situa os principais conflitos que movem a trama. A cavalgada de Jeronimo conduz a ago ao garimpo na beira do rio, onde somos apresentados a Jodo, o irmao mais velho e protagonista maior da hist6ria. A comemoragiio dos dois irmaos Coragem € interrompida pela chegada de Juca Cipé e seu bando. Os capangas do Coronel Barros, 0 Patriarca da regidio, entram em cena para ameacar os heréis, introduzindo mais uma das tensées que movem a narrativa. Jovens e impetuosos, os ho- Brasil, Pafs do Futuro 8 0 Brasil Antenado & estos e trabalhadores irmaos Coragem no se submete; n . ™ & autor; r intermediar a venda de diamantes aos orid: coronel que que! 7 ui OS Bringos, —““* do ‘A cena, gravada em locagtio externa, conclui a seqiigncia de ah ° Dertura g novela. Ainda no infcio, testermunhamos ° classico Encontro toms 2 da filha do coronel, maior inimigo de seu pai, com 0 jovem heroi Contico O trajeto do irmao cagula da vila & casa e desta 20 garimpo apresen tt gonagens e cenérios de Coroado, onde o patriarca, velho rico ¢ pe 2 busca dominar jovens pobres, mas empreendedores, que se envolvem mogas da elite local. Presenciamos também 0 enconiro da filha do sn fr da cidade, Ritinha, com seu antigo amor, o jogador Duda, que retoma ne sim o quadro de conflitos que movem a narrativa se completa, 4 ee mais geral entre a metrépole e a pequena cidade “atrasada” introduz 9 lhe do telespectador no cotidiano do vilarejo, cuja vida gira em tome de fe arquetipicas dominadas pelo coronel, como o padre, o prefeito, o dele? 0 médico, as prostitutas, os capangas. , Na época, Irmdos Coragem foi divulgada nas revistas especializadas em programagao televisiva como novela inspirada no western norte-americano, A presenga de cavalos e revélveres em cenério rural aparece como provg dessa filiagiio, que teria atrafdo o ptiblico masculino para as novelas. Mas a semelhanga com o género estrangeiro, elemento relevante na construgio do imagindrio nacional norte-americano, € superficial. O caubéi, individuo solitério, ser liminal, habitante das regides de fronteira da civilizagao, pon- ta-de-langa da ocupacao do oeste do territério norte-americano, figura a um s6 tempo justiceira e solidéria que constitui o elemento central na narrativa daquele género cinematogréfico; esta ausente de Irmdos Coragem. A figura do caubéi nao desempenha no imaginério brasileiro o mesmo papel que no repertério americano. Aqui, como o préprio titulo da novela sugere, a famflia, e ndo o individuo, permanece no centro. E o coronel, em vez do bandido sem rafzes, aparece como antagonista principal. Irméos Coragem, e muitas novelas que se seguiram, faz referéncia a uma figura paradigmatica da histéria social brasileira. O livro Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal,” permanece 0 estudo classico das relagées Pe culiares entre teias locais e o emergente poder nacional, que teve na figura do coronel um mediador privilegiado. No trabalho de Nunes Leal, 0 com nel aparece como figura intrinsecamente transitéria, tfpica do momento de expansdo do poder central do Estado, e de decréscimo do poder dos patti" cas locais. A beleza da anélise de Nunes Leal esté na identificacao de 0? Compromisso transitério entre o poder local e o poder crescente do bes ; nacional, no qual o coronel realiza a mediacao privilegiada entre a pli? Politica, a economia local e a capital, A posigéio centralizadora priviles com de que goza 0 coronel seria ameagada pela extensiio de hierarquias especf- ficas com sede na capital da Reptiblica. Mas enquanto isso, o coronel atua como mediador tinico das relagdes dos camponeses com o is exterior. A relacdo entre camponeses e coronel é baseada em uma rede intrincada que mistura relagdes pessoais, profissionais e polfticas. Camponeses trabalham em troca nao de dinheiro, mas de comida, casa ¢ protecao. Votam nos candidatos oligérquicos. Esse amélgama de relagées puiblicas e privadas constituiu a base do poder local, a forga de bar- ganha do coronel, na politica estadual e federal De novo, para Nunes Leal, eles sao figuras transitorias, cuja base de legitimidade tende a ser abalada pelo aumento do controle estatal sobre instituigdes locais como a policia. A um s6 tempo padrinhos e patroes, amantes ardorosos e pais de famflia, proprietérios rurais e controladores da delegacia, do tribunal de justiga da prefeitura, a figura do coronel é recorrente nas ciéncias so- ciais, na literatura brasileira, no teatro, no cinema e na cultura popular. Ao tratar desse universo a novela alude na televisdo a outros coronéis, personagens de Jorge Amado ou de José Candido de Carvalho. Coronéis so figuras paradigmaticas na primeira fase do cinema novo, especialmen- te no trabalho de Glauber Rocha, ao qual Roque Santeiro faz referéncia explfcita. Essas obras classicas do repertério nacional abordam o Brasil patriarcal, discutem o atraso a que o programa de “modernizagao” que galvanizou o pafs em diversas frentes, culturais, econdmicas e politicas, nos anos 1950 e 1960 se opunha. Nunes Leal enfatiza a transitoriedade das relagdes coronelistas. José Murilo de Carvalho, retomando o tema décadas depois, reconhece a lon- gevidade das relagdes que se pensava transitéria. Jorge Amado realga a am- bigiiidade pessoal de personagens amadas e odiadas por seus concidadaos, 6tica que aparece em Irmaos Coragem e é reiterada em intimeras novelas que abordaram o assunto posteriormente. O coronel retorna ao universo da ficgdo televisiva em novelas pro- duzidas para o horério das 22h, dedicado a projetos mais experimentais. O Bem Amado (1974), primeira novela a cores da televisio brasileira, e Saramandaia (1976), com seus personagens que voam e explodem, ambas de Dias Gomes, sao exemplos de folhetins eletrénicos que trataram do assunto fazendo alusdo ao realismo fantéstico, estilo presente na litera- tura latino-americana do perfodo, também povoada por esses patriarcas latinos. Gabriela (1975), adaptada por Walter Durst do romance homé- nimo de Jorge Amado, considerada por muitos como a melhor novela da histéria, constitui um bom exemplo do tratamento critico, mas sempre ambivalente, que o coronel merece. 3s i. 1. Claudio Marzo no papel de Duda Coragem, jogador que vem do interior e se consagra no Flamengo: gancho como tricampeonato mundial de 1970 2. Regina Duarte representava a ingénua menina do interior, sem preparo para enfrentar a malandragem da cidade grande. O sucesso do par roméntico com Claudio Marzo levou a duplaa sair de cena antes do final par estrelar Minha Doce Namorats- 3. Zilka Slaberry no papel da mie de irmaos Coragem- Embora a novela tenha sido divulgada ae um aoa brasileiro, a familia, ¢ ™ cowboy, individuo heréi dost Classico permanece 90 Cor, narrativa do folhetim © let 1. Na época de sua veiculagao, “jrmaos Coragem foi divulgada nas revistas especializadas em programacao televisiva como inspirada no western norte- americano. Cavalos e revélveres em cenério rural apareciam como prova dessa filiagao, que teria atrafdo o ptiblico masculino para as novelas. ‘Mas a semelhanga com 0 género estrangeiro € plastica. (Os significados associados & novela aqui sao diferentes. 2. Os irmaos Coragem discutem sob 0 olhar paternal do padre. O figurino rural de Joao e Jerénimo, os dois irmaos que trabalham no campo, contrasta com a aparéncia de Duda, que ascendeu na cidade grande gracas ao futebol. 3 € 4. Gloria Menezes tepresenta as personalidades opostas da protagonista: Lara, frégil, discreta, fiel e em comportada, e Diana, extrovertida, provocativa © sensual. O classico tema ered? Pla personalidade Tepresentado literalmente em cada figurino. 1, Joo Coragem, vivide por Tarcfsio Meira, trabalha no garimpo. Parcialmente gravadas em locagses, as novelas buscam autenticidade em seqiiéncias externas, embora sejam majoritariamente feitas em esttidio. 2. Outro exemplo de cena gravada em locagao: no final de Irméos Coragem, o casal de heréis radicais sucumbe ao cerco policial. O amor semi-incestuoso de Potira, india encarnada por Liicia Alves, e seu irmio de criagdo, Jeronimo interpretado por Claudio Cavaleant foi condenado a morte tragica. 1. Seqtiéncia antolégica em que Joao Coragem encontra o diamante gigante que mudaria a sua vida. 2. Emiliano Queiroz (a direita, sem chapéu) no papel de Juca Cip6, chefe dos jaguncos. Seu figurino lembra trajes regionais do norte de Minas. E alude também a bandidos célebres na histéria do cinema, como Cheyenne no entéo recém lancado Era uma vez no Oeste, de Sérgio Leone, ou a capa de Antonio das Mortes em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. 3. Milton Gongalves como Brés, © garimpeiro amigo e braco direito do Protagonista. O ator se consagrou como tum dos poucos atores negros a aparecer no universo da ficgdo televisiva. 0 Brasil Antenado & Irmaos Coragem trabalha nesse registro de mancira meng ambiguidade. Enquanto novelas posteriores especulam sobre desses tipos paternais a um s6 tempo autoritdrios e carinhosos cidade carentes, no infcio dos anos 1970 o coronel aparece como vila ero S05 « E como tal € punido no final. Uma década e meia depois, o anteenteste, nhozinho Malta de Roque Santeiro, representado por Lima Dus 8 Si ritério, mandao, desonesto, antiquado, o que pode gerar identifie €% gativas. Mas também exibe suas fraquezas. Na privacidade, wn tote também antolégica Porcina, o controla. Ela é mulher decidila "8 sensual. Sua ascendéncia sobre o amado nao chega a ponto de comet, a se casar formalmente. A informalidade da relacdo permite que gee sua sensualidade de maneira ampla, que inclui escapadas. Ou et feminina, a filha de Malta, como a de seu ancestral Pedro Bares ou no Rio de Janeiro, mantém certa ascendéncia sobre o pai. Ao conan vilao de Irmaos Coragem, que termina a novela derrotado, 15 anos eons Sinhozinho Malta sai sintomaticamente vitorioso. Irmaos Coragem trouxe algumas inovagées formais que se consolidaram como modelos posteriores do género, como as tramas paralelas, convengio dramética que complexifica a narrativa e permite aos autores mais espaco para encompridar hist6rias, modificar dramas em fungao de pressées como a da censura, mudar a trajetéria de personagens que eventualmente nio caiam no gosto do publico. Inovou também ao apresentar maior variedade de cenérios. O ntimero de personagens na trama também cresceu. Esse conjunto de inovagées contribuiu para que a novela transmitisse um senso de dinamismo bem de acordo com as idéias de modernidade e contempo- raneidade, que se tornariam marca do género. Irmaos Coragem constitui um bom exemplo de novela com trés tra- mas principais, cada uma lidando com conjuntos diferentes de oposicées. Cada um dos irmaos e seus pares romanticos comandam uma linha pos sivel da hist6ria. Suas mulheres posicionam-se de maneiras diferentes no eixo que opée mulher “moderna” e liberada a mulher convencional e sub- missa. A protagonista tem a personalidade dividida entre a loura fumante liberal de figurino decotado da cidade e a morna, doce, careta, bem-com™ Portada, fragil e doentia. Uma cirurgia recompée a unidade da person gem, definindo para ela uma identidade mediana, mais normal do qué © duas identidades extremadas. Sua cunhada representa a ingénua menil 2 do interior, romantica e sem preparo para enfrentar @ malandrage” as eeu) A cunhada mais jovem, india, criada pela ee e utenticidade selvagem que a origem étnica lhe conte! “spares a de genero, entre homens e mulheres, esté presente 2 io s relagdes conjugais, ensejando intrincadas histéri eta « separacd marcadas pela paixéo, mas também pelo teste de diversos mo- {los de comportamento masculino e feminino, em que se destaca o debate gobre o que seria adequado € 0 que seria inadequado. Figurinos, cabelos, hé- pitos, como © cigarro, séo exemplos de elementos que marcam as diversas possibilidades para mulheres em uma €poca em que sexo estava associado 3 procriacao- Nossas herofnas casam e engravidam, ou engravidam e casam, inasrealizam a materidade, coisa que suas descendentes, na ddécada seaniny ip fario. Embora a oposicdo de género se mantenha come config ene tional nas novelas ao longo da década de 1980, os comportamentos aceites como legitimos para as mulheres mudam, seu escopo de atividades se amplia. A oposigdo de geragao, presente em Irméaos Coragem no embate entre ageragtio do patriarca e a de sua filha, é outro exemplo de elemento dramé- tico recorrente nas novelas. Conflito de classe, expresso nas relagdes entre personagens pertencentes a nticleos “pobres” e “ticos”, e a oposigao jé men- cionada entre a zona rural e a zona urbana, completam um rol de quatro pares de oposigdo recorrentes. A oposic¢ao entre um pélo “tradicional” e um pélo “moderno” alinhava essas tenses em torno de um eixo s6. Dois anos depois de Irmédos Coragem, em 1972, Janete Clair escreveu Selva de Pedra, uma das novelas mais populares produzidas pela Rede Globo. Devido a sua popularidade, essa novela foi a primeira a ser reexibida, em forma compacta, em 1975, quando a primeira versio de Roque Santeiro foi censurada e enquanto a emissora nao produzia um novo titulo. Selva de Pedra foi também regravada, a cores, em 1986. Tal como Irmdos Coragem e confirmando um traco do género, Selva de Pedra encontra inspiragaio no cinema. Um lugar ao sol, dirigido por George Stevens em 1951 e inspirado no romance An American Tragedy, de Theo- dore Dreiser, é referencial da novela. O filme esté relacionado de alguma forma com a construgdo da identidade nacional americana, na medida em que discute 0 conflito entre o “moderno”, urbano, industrial, rico, glamou- tos0 e laico que emerge no pés-guerra com a ascensao do pats do new deal e da indtistria do entretenimento e o “tradicional”, rural, ascético e puritano, mundo dos colonizadores anglicanos. No filme, o personagem representado por Montgomery Clift no con- Segue realizar a passagem entre os dois mundos. Na versio brasileira, os dilemas morais da personagem dilacerada pela tentagao de trair a espo- sa encontram safda positiva, Realizada 20 anos depois do filme, tal como Itmaos Coragem, Selva de Pedra tematiza o papel do patriarca. Aqui nao ha coronéis. A autoridade patriarcal é representada pelo pai religioso fandtico 0 Brasil Antenado a nte no filme. Divergindo da inspiragao cinematogr, rotagonista de Selva de Pedra ganha uma fa pleta, com pai € duas irmas, e, como em Irmaos Coragem, completa, retoma a esposa gf ‘fica notte milia Ducleay Po final fel, — figura ause americana, © P 4vida que o ama. No inicio dos anos 1970, as vinhetas de abertura das novelas aing nao contavam com a sofisticagao eletrénica que ganhariam Posteriommemsc Enquanto Irméos Coragem apresentava cartées Ppretos com desenhogs alter. nados das personagens principais nos seus intervalos comerciais, Selva de Pedra prefigura desenvolvimentos posteriores no género. Um quadro Preto recortado na forma de um ledo serve de moldura a imagens da Paisagem urbana frenética. A referéncia documental se apresenta aqui nas imagens da multidao de transeuntes em meio ao movimento dos automéveis, salien. tando a impessoalidade da vida na metr6pole, impessoalidade associada a barbérie da selva, onde reina o ledo. A vinheta de abertura e a primeira seqiiéncia da novela"® situam a narrativa no Rio de Janeiro da época, mos- trando que a novela capta e expressa ansiedades relacionadas com tensées entre universos rurais e urbanos, exacerbadas com a intensa migragio do Nordeste para cidades do Sudeste''. Selva de Pedra conta a trajet6ria de um outsider, um caipira, que vem conquistar a metrépole, uma trama que estava presente, em outros ter- mos, em Irmaos Coragem. Na primeira versao de Selva de Pedra a histéria comega apresentando o conflito entre dois irmaos; um rico e poderoso, armador carioca, 0 outro pobre pregador fanético, leva a familia a uma vida errante de dedicagaio a causa sagrada em pequenas cidades do in- terior. O conflito entre essas duas personagens € explicitamente tratado na primeira seqiiéncia da narrativa através da oposigdo entre a pregacéo fanatica em praga publica, ao som do bumbo tocado pelo filho mais velho do irmao obstinado e 0 helicéptero que sobrevoa a cena trazendo o irmio empresério, que a pedido de sua cunhada vem oferecer ajuda & familia. Os créditos e a seqiiéncia de abertura da segunda versio reforgam a refe- réncia documental & paisagem portudria carioca, aos irnensos navios, 205 guindastes que carregam e descarregam volumes grandes de mercadorias como recurso para situar a trama no Rio de Janeiro da época. Jé a sealer” cia de abertura dessa segunda verso, produzida em computador, repre- fap a arranha-céus que mimetizam o crescimento acelerne? janelas eee — de concreto. Os edificios revestidos de 2 ane to dos atores, eiettee avermelhada drida, deserta de ver i veflet do na Fachada does crencia 0 universo dos personagens, @P endo no limi: umentos arquitetonicos da urbe de Terceiro imiar do terceiro milénio, Como em Irmaos Coragem, os persona; pindrias entre ricos e pobres, pais e filhos. O nas relagdes entre pares triangulos amorosos. Fascinado com flamouroso em que vive seu tio milionério, o protagonista, Genta mundo Becposa com a herdeira da metade do estaleito do tio, make ne interessante, a um s6 tempo agressiva efrégil, epresentada por Ding gh” Uma intervengao peculiar da censura em Selua de Pedra indica ve an neiras pelas quais diversos agentes sociais atribuem papel eee yelas. A censura impediu o segundo casamento do protagonista por no- embora o personagem acreditasse estar vito, o publico sabia que tonne, Jher estava viva no exterior, onde, com falsa identidade, tornara-se escultora de renome. Na interpretacao dos censores, 0 caso configuraria bigamia, ainda que nao intencional. E interessante que a censura nao tenha cogitado impor uma solugo como a do filme Um lugar ao sol, em que o personagem infrator da lei € julgado e condenado a pena capital. Em vez da punigao exemplar, a censura brasileira proibiu a prépria infragdo no ambiente ficcio- nal, com uma eficdcia preventiva infelizmente inoperante fora da ficgao. Dupla identidade, heranga, orfandade, loucura e vinganga movem uma historia que lida com as tenses e choques enfrentados por migrantes que chegam a urbe. Recebidos como estranhos, exclufdos da rede de relagées que rege a vida dos que jé se estabeleceram, personagens migrantes penam para aprender os cédigos que podem um dia lhes garantir “um lugar ao sol”. A estrutura melodramatica basica serve de sustentdculo para uma trama que lida com fenémenos sociais contemporaneos. Selva de Pedra e Irmaos Coragem terminam com longos discursos mo- rais que afirmam a justiga e a derrota das forgas do obscurantismo que dominam, de maneiras diferentes, tanto as pequenas cidades de origem dos personagens, quanto as locagées metropolitanas. As duas novelas en- fatizam a possibilidade de a natureza ingénua dos personagens que vém do interior subjugar o meio urbano, apresentado a um sé tempo como ine- vitavel, terrivel, ameagador, mas atraente, liberal e glamouroso. A ancora de ambas narrativas no universo da conjuntura brasileira sugere que os personagens da fic¢do vivem no mesmo universo que os telespectadores, sensagdio que é reforcada pela alusdo recorrente a convengées da noticia e do documentario. Recursos melodramAticos como falsa identidade desvendada no final, amor e separagao, vinganga e puni¢do sdo sucessivamente atualizados em tramas que apelam para o relacionamento entre irmaos gémeos, filhos bas- tardos, familiares deserdados. As narrativas so movidas a base de oposi- SGes quase demogréficas entre homens e mulheres, pais € filhos, ricos € gens se debatem em tensdes Posi¢Ses de género se realizam Brasil, Pals do Futuro 0 Brasil Antenado 3 anos e provincianos. A esse eixo se sobrep6e outro, de posigges honestos e desonestos, fortes e fracos, amor e 6dio, bons ¢ de oposi¢gdes binérias é representado por uma Sétie de convengées de miisica, figurino, corte de cabelo, acess ios etc., “exter. nas” aos personagens. As duas novelas analisadas terminam com final feliz, procedimento posteriormente alterado. ea are ‘A oposigao entre 0 Brasil tradiciona € 0 Brasil “moderno” que mobi. lizou a militancia polftica e cultural brasileira nas décadas de 1950-60 estg difundida nas novelas do periodo 1970-90. A liberalizacao dos costumes advinda da “modernizagao” oferece o material basico para as diversas tramas que alimentam o desenrolar repetitivo do seriado. OF ‘desenvolvimento” & visto com ambivaléncia, mas tomado como dado inevitdvel. Nesse sentido a novela é quase didatica, procurando organizar em uma estrutura simples aavalanche de mudangas sociais e econémicas que transformaram o Brasil no periodo. Nessa linha, as novelas catalisaram significados dispares e sa- tisfizeram a agenda de uma indiistria televisiva comercial emergente, do regime militar autoritdrio, e de autores intelectualizados, sem corresponder a0 projeto isolado de nenhuma dessas forcas. A conexao da estrutura teledramética com 0 “contempor4neo” estimula um senso de interagdo porque torna possivel a apropriagao de elementos da narrativa, como roupas, cortes de cabelo, eletrodomésticos, marcas de carro etc. Em vez de figurinos de época que aludem a tempos e lugares remotos, a novela afirma, expressa e pauta o aqui e agora. Carros, trens, avides e helicép- teros expressam um senso de mobilidade relacionado & fluidez da vida con- tempordnea, disponivel na tela da tevé as hordas de populagées migrantes. ‘A novela pode ser considerada um “sistema” perfeitamente integrado economia do informe publicitério; com o género viabilizando-se como uma vitrine privilegiada, capaz inclusive de gerar selos e marcas préprias. Atores lancam grifes de roupas como forma de transformar em recursos financei- ros sua popularidade e garantir estabilidade e independéncia. Emissoras langam gravadoras de discos especializadas em produzir as trilhas sonoras que as novelas promovem diariamente meses a fio. A regra no comercial, no jornal, na ficgao, a regra do universo do espetdculo é manter-se no ar. Enquanto um produto est no ar, ele chama a atencao e pode circular mais. Referéncias cruzadas, em espagos diferentes, aumentam a credibilidade do produto, seja ele um produto audiovisual ou de outra natureza. O consumo associado & novela € carregado de significados. Trata-se de um consumo vinculado a atualizagao cotidiana do “contemporaneo”, suces- sivamente reiterada nos anos seguintes e que representou de maneira verossimil e convincente 0 sonho brasileiro de se tornar “o pats do futuro”. pobres, urbs morais entre maus. Esse complexo 1. Na primeira versio de Selva de Pedra, Mario Lago interpretou o patriarca rigido, que, convertido ao protestantismo fundamentalista, abre mao da fortuna para se dedicar a pregacao religiosa, obrigando a familia a fazer 0 mesmo. 2 e 3. A transformagio do casal de protagonistas de Selva de Pedra: antes descontraidos e ingénuos interioranos recém-chegados ao Rio de Janeiro, ascendem profissionalmente, tornando-se ricos e chiques. Tons escuros © expresses tensas sugerem 0 peso @ até mesmo a infelicidade que acompanha a transformag¢io. 4. Dina Sfat no papel de Fernanda ¢ Regina Duarte como Simone: personagens antagonistas, ambas mulheres fortes, disputam 0 mesmo homem. 1 e 2. Na segunda versio de Selva de Pedra, Sebastiaio Vasconcelos e Walmor Chages interpretaram irmaos que optaram por caminhos opostos: um abraca a biblia, 0 outro, dinheiro e poder. 3 e 4. Na mesma verso, manteve-s¢ © enredo como na primeira versao, quando # censura impediu o segundo casamento s protagonista porque, embora o personage! acreditasse estar vitivo, o ptiblico sabia que sua mulher estava viva no exterior Fernanda, a segunda esposa, € entéo abandonada no altar, € posteriormenté sai se, de preto, com o primo do amado. sane imagens da segunda versdo, com Cee Torloni e José Mayer protagonizando le 2. Como no cinema clissico, a conversa telefénica freqientemente faz a ligagdo entre personagens situados em espacos diferentes. O aparelho ajuda também a caracterizar ambientes — na pensao hd um telefone para todos, no estaleiro, cada funcionério tem 0 seu ramal. 3 e 4. Toni Ramos e José Mayer, primos rivais. 5. Arlete Salles no papel da socialite e perua excéntrica e bem-humorada, ‘na primeira versao da novela. vivida 1 € 2. A jovem sonhadora Simone, por Fernanda Torres na segunda versio de Selva de Pedra, transforma-se n? vingativa e bem-sucedida Rosana Reis 3, 4 e 5. A conexio da estrutura dramética com 0 “contemporaine” acena com a possibilidade de interagdo através do consumo. Espectadores de poder aquisitive podem comprar elementos de ce que marcam diferengas sociais- A novela funciona como vitrine- verde, amarelo e azul: Roque Santeiro e Vale Tudo o saltar de Irmaos Coragem e Selva de Pedra, produges do inicio dos anos 1970, para a segunda versio de Roque Santeiro, novela baseada em texto teatral de Dias Gomes, e Vale Tudo, de Gilberto Braga, estamos pas- sando de tempos em que a televisdo atingia uma minoria de domicilios Jocalizados na regido Sudeste, para tempos em que os sinais televisivos atingem um némero bem maior de domicilios equipados com aparelhos de tevé, em praticamente todo o territério nacional. Saltamos também de novelas restritas ao que a indtistria define como dom{nio feminino para novelas que lidaram explicitamente com questées polfticas, afetas ao dominio masculino do espago ptiblico. A estrutura basica do melodrama mantém-se, com limites expandidos. Acomparaco entre duas novelas do inicio dos anos 1970 e dois suces- sos de ptiblico e critica dos anos 1980 — sendo cada dupla formada por uma novela rural e outra urbana, uma “realista” e outra melodramética"? — realga como as novelas tomaram parte em uma esfera publica emergente. O con- traste entre esses dois pares de narrativas sugere que certas convencées estabelecidas no inicio dos anos 1970 servem de base para seriados que expandem as fronteiras do género, fazendo referéncias explicitas 4 naco, enquanto outras séo questionadas. ‘Ao se comparar Roque Santeiro e Vale Tudo com Irmédos Coragem e Selva de Pedra, ironia e cinismo emergem como elementos draméticos ausentes nos anos 1970. E as cores nacionais usadas nas vinhetas de aber- tura das novelas nos anos 1980 tornam explicitas as referéncias ao ima- gindrio nacional, bem como a eventos da época. Novelas subseqiientes. como Roda de Fogo, O Salvador da Patria, Pantanal, Deus nos Acuda e Pa- tria Minha, multiplicaram as referéncias a simbolos nacionais. Vale notar a mencio a palavra “pdtria” em dois desses titulos. Areferéncia explicita as cores nacionais nas vinhetas de abertura, jun- tamente com a alusdo a eventos ou a praticas politicas conhecidas, situam as oposigdes convencionais entre rural e urbano, homem e mulher, pais ¢ filhos, ricos e poderosos, pobres e desprovidos de poder, em termos da nagao. Roque Santeiro e Vale Tudo compartilham a estrutura narrativa, per- sonagens arquétipos e o mesmo apelo a representar 0 contemporaneo. Am- bas novelas produzidas no perfodo de redemocratizagao, conhecido como “Nova Repdblica”, fazem referéncia a corrup¢ao que caracteriza a ordem social e politica brasileira. As referéncias intertextuais de Roque Santeiro sao miltiplas. A novela foi baseada na pega O Bergo do Heréi, escrita em 1963 por Dias Gomes"? © proibida em 1965 pelo regime militar. Em junho de 1975, 0 proprio Dias Brasil, Pais do Futuro a 0 Brasil Antenado g daptou seu texto teatral para a televisao, versio vetada pela Censura ae P ha 30 capitulos gravados. Dez anos mais tarde, em junho atta i campanha das diretas, da elei¢’o de Tancredo Neves 98s, mess0 e da posse de José Sarney, Aguinaldo Silva, autor que pode cm siderado da “segunda geracao” de telenovelistas," escreveu arc da versio televisiva do texto. No final, 0s dois autores se desenteng cere com Dias Gomes, autor do argumento inicial, retomando a novela e 72 responsdvel pelos ultimos capftulos da historia. lo Além de diversas citagées circunstanciais a diversos film sablanca na cena final ou O homem que matou o factnora na que Navalhada morre na porta da igreja, Roque alude a um d embleméticos do cinema novo, Deus e 0 diabo na terra do s Rocha, que como a novela, trata de coronelismo e misticismo no Nordeste de que ambos so oriundos. A novela pode também ser lida como ann resposta da televisdo & nostalgia com que o vefculo foi tratado em Bye, bye Brasil, filme de 1979 de Cacé Diegues. Dias Gomes € autor da pega O pagador de promessas e do roteiro do fil. me de mesmo nome que, em 1963, recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Embora seja possivel detectar afinidades estilisticas entre a pega, 0 roteiro do filme e a novela, é sintomatico que Dias Gomes faca alusdes a Deus ¢ 0 diabo de Glauber Rocha, e nao ao Pagador, de Anselmo Duarte em Roque Santeiro. S$, Como Cy. Seqiiéncia om os filmes maig ol de Glauber A novela pode ser interpretada como uma alegoria da alegoria. O pri- meiro verso da cangao de abertura é justamente “Deus e 0 diabo na terra’. O personagem do cego cantador que articula relagoes, presente no filme é imitado na novela. Atores do filme esto presentes na novela, feita quase 20 anos depois. Talvez seja possivel inferir um didlogo entre os papéis que lhes foram conferidos nas duas ocasides: Mauricio do Valle, que fez o antolégico Antonio das Mortes, o jagungo matador personagem de dois filmes de Glau- ber Rocha, aparece aqui interpretando a lei, fazendo o papel de delegado inoperante; Yoné Magalhies, a Rosa de Deus eo diabo, explosiva esposa do Protagonista Manoel, que literalmente enfrenta o tirano messianico Se- bastitio e depois se envolve com o cangaceito remanescente do bando de Lampiao, na novela faz 0 papel de Matilde, a sensual e bem-sucedida don da primeira boate da cidade, que traz dangarinas e o streap-tease para As® Branca. Deus e o diabo usa a violéncia para caracterizar a desigualdade q¥° marca as relagdes sociais no nordeste brasileiro, registro ausente tanto n° filme de Anselmo Duarte quanto na novela, ea ron ne, come pager de promenas, Roque Sai atizar a resisténcia inesperada das relagées tradic! poder, apesar da “modernizacgao”. O coronel mantém-se como mediador privilegiado entre a cidade e 0 mundo exterior, viajando em seu avitio par- ticular e se locomovendo em uma limusine. Sua autoridade inquestiondvel é confirmada pela decisdo da herofna de ficar a seu lado, renunciando A fuga com o mais jovem e moderno Roque, em uma cena de tiltimo capitulo inspirada na cléssica cena final de Casablanca. Ao contrério de novelas anteriores, em Roque Santeiro nao hé transicao Para jovens renovadores, possivelmente casados com herdeiras dos patriarcas, como em Gabriela ou em O Bem Amado. Essa novela enfatiza a forga renitente de uma “tra- dig&o” perversa, representada em cenérios rurais e paisagens naturais, em oposigao fraqueza da “modernidade”, reduzida ao mundo exterior, ironica- mente representado por um congestionamento de carros na vitoria-régia da vinheta de abertura, uma colagem de animagao e imagens fotogréficas. A vinheta salienta em tom de fabula alguns paradoxos da modermi- zagao. O trabalho humano aparece em sua pequenez, em contraste com o gigantismo da natureza. A lentidao recorrente do mundo rural contrasta com avelocidade sem sentido do mundo urbano. Sugere também a referén- cia da novela ao realismo fantdstico que marcou a literatura latino-america- na do perfodo. A letra da mtisica-tema’” cita, por exemplo, “pessoas falando com a Lua”, referéncia ao professor Astromar, personagem sdbio e solitario que em noites de lua cheia se transforma em lobisomem. O intelectual, portador do saber humanista, poeta e escritor da cidade, é ironicamente associado a figura literal de um lunético. O visual animado da vinheta de abertura contrasta com o apelo documental da primeira seqiiéncia da nar- rativa, que situa a histéria em uma pequena cidade brasileira. A primeira seqiiéncia de Roque Santeiro repete o estilo de documentério presente no inicio da seqiiéncia futebolistica de Irmaos Coragem e na vinheta da primei- ra versao de Selva de Pedra. Dois anos depois, a vinheta de Vale Tudo combi- naria a linguagem documental com elementos de animagao eletrénica que, aqui, aparecem separados. No conjunto, as tensées entre as vinhetas de abertura e primeiras seqiiéncias narrativas sao sugestivas. O contraste re- corrente entre fcones do Brasil tropical, rural, “tradicional”, com fcones do Brasil urbano, “moderno” problematiza as mudangas em curso no pats, po- pularizando 0 repertério desenvolvimentista que dominara a arena politica ecultural nos anos 1950 e 1960. A seqiiéncia de abertura de Roque Santeiro se inicia com uma tela es- cura. O som comega antes que se possam distinguir outras imagens. Ouvi- mos barulhos de animais. O canto de um péssaro introduz mais uma can¢ao temética. Amanhece, o nascer do sol ilumina a paisagem. Planos alterna- dos apresentam a cidade de Asa Branca. Planos gerais revelam a situago Brasil, Pais do Futuro 0 Brasil Antenado 3 .no aglomerado urbano cercado por Montanhas, py is proximos mostram a praca central na frente da igreja, as ruas Princip mais P cavalos e povo. Uma bandeira brasileira na varanda de ume Es oeotifics, dessa vez no interior do espago diegético © pats em que se a = narrativa. Estamos em mais uma pequena cidade tfpica da Améri a Lating As atividades que acontecem em torno da figura mitica do her6) da cidade, o santo falso, como excursées, comércio de artigos bentos e banhos curativos nas 4guas do rio, merecem aten¢ao especial. Barraquinhas onde se vendem artigos de cultura popular, como estatuetas, medalhas € litera. tura de cordel ganham vida. O conjunto construfdo na cidade cenografica lembra os mercados de rua, tao comuns nas cidades brasileiras. 0 guia turfstico chega pronto para mais um dia de trabalho. Enquanto © sino da igreja toca, a camera segue um caminhio que se aproxima da cidade tra. zendo uma grande carga coberta. E a estdtua de Roque que ser instalada geogréfica do peque na praca principal de Asa Branca. A apresentagao da cidade vai dando lugar a acao no centro da praca. Personagens agrupam-se em torno da estdtua, igada por um guindaste do caminhao para o pedestal onde ficard instalada. A musica é interrompida para dar lugar aos primeiros didlogos, entre o prefeito, sua mulher e sua fi- Iha e 0 vendedor de suvenires religiosos, o Zé das Medalhas, assim designa- do em referéncia a sua fungo de industrial produtor de lembrangas bentas. A conversa entre os personagens, que inaugura o didlogo na novela, foi gra- vada da perspectiva da estdtua do heréi santificado, como se ela olhasse, de cima, para os mortais aos seus pés. O dialogo entre o prefeito, sua familia e 0 comerciante Zé das Meda- Ihas em torno da estatua introduz a histéria. Ficamos sabendo que a cidade cultua a figura de um her6i morto 17 anos antes (sintomaticamente em 1968, ano de explosao de movimentos sociais no mundo, do movimento estudantil no Brasil, do AI-5 e de um parente de Roque, o “Roquefeller”). Entendemos que o prefeito e o comerciante ganham dinheiro com 0 culto. er Bisa ae a uer do Prefeito, duas mulheres re- Gravada em Angulo baixo, prov vel " on pe epee termina com um plano geral dos quatro pace ee uma Brus, a sequencia geral dos quatro personagens vistos por um olhar que poderia ser o divino. Diferey te convencé melodrama . mtemente das conveng: ° : . ‘Ses do televisivo tais como descritos na literatura,'® 1. O Salvador da Patria, novela de 1989 escrita por Lauro César Muniz, faz referéncia a Brasflia, capital de Reptiblica, onde atua o deputado corrupto (Francisco Cuoco). A novela ficou célebre pelo elogio de Sass4 Mutema, 0 jardineiro analfabeto interpretado por Lima Duarte, que se torna prefeito. 2, 3 © 4. Novelas da segunda metade dos anos 1980 e inicio dos anos 1990 explicitaram referéncias ao Brasil, reforgando o sentido de arena nacional imaginaria que 0 sénero adquiriu. As meng@es/alusdes & nagdo incluem o uso das cores nacionais e da palavra “patria”, além de referéncias a eventos da conjuntura ou a conhecidas figuras da cultura popular ¢ erudita. Na vinheta de abertura de Vale Tudo, a bandeira nacional aparece partir de diversas perspectivas: no mastro oficial, sendo feita numa maquina de costura e ‘empunhada por uma torcida em final de jogo. 1. Sénia Braga em seqiiéncia antolégica de Gabriela. A novela, adaptacao de Walter George Durst do romance de Jorge Amado e com diregao de Walter Avancini, permanece sendo uma das melhores realizagdes no gener: 2. O Bem-Amado, de Dias Gomes, # primeira novela a cores da televisao brasileira, inspirou titulos subseqiientes que também aludiam ao realismo fantastico, como Saramandaia e Roque Santeiro. ASSO como outras novelas dos anos 1970 ¢ 198°, exibiu rara qualidade de texto € produgao 3. Lidia Brondi no papel de Tania, a filha tnica do coronel Sinhozinho Malta que se apaixona pelo padre adepto da teologia da libertaga0- 1 e 2. 0 prefeito, Pombinha e Mocinha agrupam-se em torno da estétua de Roque Santeiro, que esté sendo instalada em um pedestal na praca da matriz. A novela discute 0 processo de construgao do mito do santo que néo é santo. 3, 4, 5 e 6. Mocinha, Porcina, Pombinha e Matilde: carolas versus liberadas. 1. O Beato Salu prega em frente A boate Sexus, objeto de critica dos conservadores locais. 2 e 3. Roque Santeiro também pode ser lida como uma resposta da televistio & nostalgia com que o vefculo fora tratado no filme Bye, bye Brasil, especialmente no que se refere a ironia com que a novela retrata a equipe de cinema, chefiada pelo personagem de Ewerton de Castro, diretor gago e indeciso de um filme estrelado pelo gala mulhereng® encarnado por Fabio Jr. 4. Padre Albano e padre Hipélito, 0 jovem padre moderno e liberal e 0 vigsrio tradicionalista da cidade, um de jeans e jaqueta, 6 outro de batina e bengal. 1. Aclite local: 0 heréi que no é heréi, Porcina, 0 padre, o prefeito e 0 coronel na luxuosa mansao da vitiva. 2, Professor Astromar, personagem sabio e solitério que em noites de lua cheia se transforma em lobisomem e “fala com a lua’, como sugere a miisica-tema da novela. 3. Tony Tornado no papel de décil criado da caprichosa Porcina. 4. Claudio Cavalcanti, no papel do padre progressista, atende os camponeses. 5. O antol6gico Sinhozinho Malta, de Roque Santeiro, é autoritario, mandio, desonesto e antiquado, © que poderia gerar identificagdes negativas. Mas também exibe suas fraquezas. Na privacidade, sua amante, Porcina, ou “santinha’’- mulher decidida, assertiva, sensual -— 0 controla, Mas sua ascendéncia sobre © amado nao chega a ponto de convencé-lo a se casar formalmente. 0 Brasil Antenado = A longa abertura se encerra quando o padre, saindo da igreja, dixi go narrador-cantor cego, uma citagéo de Deus eo diabo, instalado. ag is templo catdico. O nome da cidade, inscrto na janela do Onibus tury” referéncia a mtisica de Luiz Gonzaga, artista que cantou a saga da seca é “ pobreza que atingem a regiao Nordeste. Movimentos messianicos lugares mdgicos, objetos abengoados, literatura de cordel, uma Prac. dominada por uma igreja e uma cidade com prefeito corrupto sao re a objetos, praticas e lugares conhecidos. A linguagem documental e diegética conferem verossimilhanga a narrativa, convencendo-nos historia poderia mesmo ter acontecido em uma cidade nordestina. Roque Santeiro reconhece que simbolos de “modernizagao” como o avido, a imprensa, o cinema, a liberagdo dos costumes, a razio iluminista ¢ os ideais nacional-democraticos nao substituem a ordem social previa- mente estabelecida. Surge um coronel capaz de absorver essas e outras “modernidades” a seu favor. Ele continua a desempenhar papel de me- diador privilegiado entre a cidade e 0 mundo exterior. Sua autoridade é confirmada pela decisao da herofna de ficar com ele. Em Roque Santeiro, nem a sucesso finalmente consensual que acontece em outras novelas, em que jovens inimigos dos coronéis se casam com filhas ou netas tinicas dos » Santos, a central ferénciag & Miisicg de que a patriarcas, como em Irmdos Coragem ou Gabriela, ocorreu. Roque Santeiro atualiza as convengées anteriormente descritas, que marcavam um “avanco” inevitdvel rumo a um certo “pats do futuro”, para, no entanto sugerir, com certo ceticismo, conseqiiéncias nado antecipadas da modernizacgao. Essa mesma linha seré reiterada, de maneira talvez mais apelativa, na medida em que sua trama esta situada no coragao da mitica metrépole sede desse modernismo tardio, a um s6 tempo tropical e indus- trial de fim de século, em Vale Tudo, novela de Gilberto Braga, escrita em colaboragao com Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Leonor Brasséres, que nos anos de 1988-89, galvanizou 0 pafs de maneira inédita. Como em Irmaos Coragem, Selva de Pedra e Roque Santeiro, a andlise das tensées entre a vinheta de abertura e a seqiiéncia inicial de Vale Tudo, bem como o exame do papel do documentario nesse jogo, € reveladora- A vinheta de Vale Tudo, ao contrastar imagens contraditérias, mistura do- cumentérios turfsticos — de viagem, os “travelogues” — com efeitos de mon- tagem critica. J4 a seqiiéncia de abertura segue com primor as convengoes do melodrama convencional. Cada um desses fragmentos da novela, € su? tensdo miitua, sintetiza as maneiras pelas quais Vale Tudo despertou 4 ater Sao paiblica, trazendo & tona preocupagées latentes e exercendo um efeite sinergético na esfera publica brasileira. Vale Tudo extrapolou o dominio feminino das telenovelas. Embort confinada as segdes culturais dos jornais, gozou de intensa cobertur 1. A oposicao entre Odete Roitman (Beatriz Segall), a vila rica, e Raquel (Regina Duarte), a herofna pobre, que sobe na vida gragas ao trabalho esforcado, reflete-se no contraste entre o figurino e corte de cabelo masculinizado da empreséria da aviagdo e a versio cabelos longos, “naturais”, da doce e feminina especialista has artes culindrias. 2. O suspense em torno de quem matou Odete Roitman galvanizou o Brasil 0 Brasil Antenado jornalfstica, além de altos indices de audiéncia. Vale Tudo capta ¢ pressa o cardter de repertério compartilhado do género: Seu signif i ¢ valor foram debatido em diversas arenas, por diversas forgas e pers” Ao discutir quem matou Odete Roitman, a poderosa mulher de negicis, e vila, telespectadores travaram uma discussao sobre corrupgao politica « de classe no Brasil da época. v Vale Tudo conta a histéria de quem esta disposto a fazer qualquer cois, para subir na vida ~ como trair a propria mie, roubar a sogra, sonegar i.” postos, enviar dinheiro ilegal para contas secretas fora do pafs e mesmo co- mercializar o proprio filho no mercado negro de bebés ~, mas nao é Punido, Essas préticas podem ser universalmente reconhecidas como més, No Bry sil, naquele momento, elas aludiam 4 decep¢4o com a Nova Republica, A vinheta como que emoldura o ambiente claustrofébico da narrativa convencional com feones nacionais tratados de maneira irreverente. Ima- gens conhecidas como motivo de orgulho nacional — como praias, cidades hist6ricas, selva — aparecem em contraste com imagens dificilmente atraen- tes — como pessoas pobres, inundagées e explosdes. A vinheta chama a atengo para aspectos da vida brasileira e para locais, em geral, exclufdos de roteiros turfsticos. Ao mostrar 0 outro lado da moeda, insinua a falsidade dos comerciais de turismo, podendo ser, nesse sentido, interpretada como um antfidoto para a mensagem otimista da propaganda turistica, como se advertisse para o fato de que uma viagem dificilmente resolverd os proble- mas de alguém, ou ainda para a superficialidade dos antincios turisticos, que evitam abordar problemas sociais concretos, ou talvez ainda um aviso de que “nessa novela nés vamos olhar para o Brasil real com um olhar critico em vez do olhar mascarado da propaganda turistica”, Em dezembro de 1988, os tiltimos capitulos de Vale Tudo atingiram indices de audiéncia acima de 80%. A novela ocupou a primeira pagina € esteve na pauta das revistas de domingo dos principais jornais didrios. Ex- pressando o debate gerado pela novela, no dia em que o tiltimo episédio foi ao ar uma manchete da Folha de 8. Paulo tematizou o suspense: “O pats des- cobre hoje a noite quem matou Odete Roitman”. A repercussio estava fora do controle. Alguns dias antes, talvez nao se dando conta de que 0 espace 40 folhetim possivelmente se transformara na arena de problematiza¢ao 43 nagao, autores da novela manifestaram sua preocupacio com 0 fato ge que @ novela pudesse estar “desviando” a atencao popular da vida ptiblica”- Independentemente das intengées dos profissionais que fizeram 4 vL Vale Tudo mobilizou uma experiéncia emotiva de faléncia nacion®* anto afirmacao de impoténcia diante do rumo das coisas, abriu esP* S° Para a expresso coletiva de sentimentos diferentes e contraditories vela, Enqu sobre os tumos da nacdo. Alguns teles retaram, Vale Tudo como uma critica progressista do moderni: Jexo brasileiro, um instrumento poderoso capaz de tradvag oe oo alitca para o cotidiano dos telespectadores no seu eapary nese além de estimular a participacao popular. Outros telespectadores pos, civelmente viram na novela um alerta para 0 eatdter manners POS corrupto da ordem politica, que se resolveria somente com uma Es moral rigida, ou até como exaltagao do consumo fatil, mas glamour. lem Talvez a apropriagao melodramatica que Vale Tudo faz da politica susicg que, no Brasil, as coisas no mudam, Em lugar de exaltar “o pafs do fein: ro” construfdo em outras novelas, exibiu-se um Brasil enredado nas ma- Ihas repetitivas do melodrama. Ao atualizar ansiedades coletivas quanto ao futuro, levantou criticas sobre o desdobramento dos eventos, talvez sugerindo que, se a politica se tornou tao corrupta, a légica do “vale tudo” se justifica. E a popularidade dos viloes ambiciosos, mas char- mosos, estrelas de inGimeras campanhas publicitarias, inclusive de ins- tituig6es publicas como a Loteria Federal, exibidas na TV, em outdoors ena imprensa da €poca, reforga essa versio. A construgao complexa e ambfgua da nacionalidade operada pela no- vela contrasta com outro folhetim, Pantanal, veiculado pela emissora rival Rede Manchete, que, confirmando o cardter de palco privilegiado de pro- blematizacgao da nacionalidade que o género telenovela assumira, competiu por audiéncia apresentando uma reinterpretacgao do Brasil que valorizou aspectos renegados no modelo “pats do futuro”, como paisagens exéticas maravilhosas, mulheres e misticismo, aliados ao restabelecimento de com- portamentos convencionais. Contrasta também com o modelo que se afir- ma no final dos anos 1990, de “novela de intervengao”. O estilo de Panta- nal, ainda que de maneira diluida, posteriormente migraria para a Rede Globo em outras novelas de Benedito Ruy Barbosa, como Renascer, O Rei do Gado, Terra Nostra. pectadores Possivelmente inter- Novelas como espago de discussdo da nagao Nos cerca de 10 anos tratados neste capitulo, de produgées promocionais de companhias de sabdo as novelas passaram a ser reconhecidas como um espaco legitimo para a mobilizagio de diversos modelos de interpre- 'acdo e reinterpretacdo da nacionalidade, incluindo modelos de estrutura familiar e relagdes de género. Elas adquiriram esse cardter como uma Conseqiléncia nao antecipada da busca por atualidade que potencializou Brasil, Pafs do Futuro 0 Brasil Antenado rcial do meio televisivo, na medida em que ele Tealiza g “rine de Novos produtos, com direito a demonstracdeg Ua; cacao de vitrin iras de usd-los em associagdo com novos habitos gicas das mane “modernos”. E revelador que essas repreg de vida consi “ flertam com 0 documentério e com o Noticidrio naturalistas, UP mo espagos verossimeis apesar de discre sido reconhers de étnica e racial brasileira,'* a pobreza, a vee eee praticamente ausentes desse universo “ violence presentarah o Brasil como uma ampliagao do univ. ni se média alta carioca q) o valor come! a Vo. Pedage, €es los

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