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Museus e Patrimonio imaterial agentes | fronteiras | identidades ‘Museus e Patriménio Imateral agentes, fronteias,identidades Inet dor tire Conse ago Pau Ferre ds Cosa cand Grosono Ort Crometina 1020 empires Depasto ews 3166109 Museu PING TERA, Muses avanénio mata aertes ona Medades cod, al era Cos Usb Instute des iseus eds Conearno; Smits 208,00 ps oso) risea2 asus selon / Atop Pardno Ctl natal MC 8 9 sorrumrs O Patrimonio Imaterial e a Antropolog Portuguesa: uma perspectiva historica Joao Leal Depatamenia de anpoloiads Faculdade de Cenc Soc Huroner/Unvnidode Nwece Lsto Conroe Ree de esiggao er arvopoleia So «da UNESCO, o Patriménio Cultural material abrange: + as tradigdes¢ expresses ors incluindo a Lingua como vector do patriménio cultural, material, + asartes do expecticul + as prticas soci, ius eacontecimentosestivos, + 0s conhecimentosepritics qu dizer respeto&natureae a univers; + os saberes fazer igados ao atesanato, [No mesmo dacuento em que prope esa definio de patriménioimatrial. a UNESCO define da seguinte forma a salvaguarda dese patriménio:"mevdas que visi assegurat 1 viabilidade do patriménio cultural material, ncluindo a Wentifieagio, a documenta ‘Ho, 2 protecgio, a promogio, a valorizacio, a transmissio,essenclalmente através da educaytio {formal e io formal, e ainda a revitalizacio dos diferentes aspects desse patrimenio a pesquisa a preserva Partindo destas definigdes, gostara neste brove comentirio de mostrar, em primeiro lugar, 0 ‘modo como a antropologia portuguesa nascee se desenvolve historicamente ex larga medida ‘em torno da tematizagio avant la letre daguilo a que a UNESCO convencioxou camar de patrimnio cultural material Bgostarla, em segundo lugar, de sugericalgumas das vies que antropologia portuguesa actual deve seguir no seu didlogo com este reconhecimento en ‘mos de palticas cultural, de um dos seus marcadores genéicos mais fortes. ‘Comteso enti pelo primeiro tema: © modo como a antropologia portuguesa nasce ese desen- volve hstoricamente em totno da tematizasao avant la lettre do patvinnio cultural imatera (0 que ex queto dizer é que, embora 0 concelto nto exstise estavam lias dreas que ele abatca E porla 2 questdo antes do mais, de modo radical: se &possivel hoje far com toda a natuali- dade de patrimeinio cultural imate iso deve-se 8 antropologiae&etnografia, no apenas ems Portugal mas em muitos outros pases na Europa e no Mundo. Foi no émbito destasdisciplinas «que se constr historicamente um camp dseiplinar onde tradigBes orais, artes do especté- «ul, rituas, priticassocais,conbecimentos, mitelogia, “saberesfanee"‘éenieos ~ que entdo nio se chamavam assim ~ se constitucam come campos fandamentas de "dentifcagio, documen: ‘ago, pesquisa, preservagio, protec, promogio, valorizagdo" Os antropOlogos devern ser categércos aver mesmo corporativs cringio da etnografa da anttopologa este respeito:opatriméniocultural material uma ‘Mas no basta ser radical, ¢ também preciso, de forma mals detalhada, mostrar como € que sso acontecee, Iso equivalea dizer, no caso de Portugal que o percuso de antropologia portuguesa desde 1870 at actalidade pode se visto como um percurso~ dvidido em virias etapas ~ de _gradual ampliagioe aprofundamento da identificagio ede etude do eenco de formas culturais do patriméno imaterial de que fala a UNESCO, A primeira etapa desse percursa desenrola-se entre L870 e 180 tem em Tedfilo Braga, Adolfo Coelho, Consigieri Pedroso e Leite de Vasconcelos as suas figuras centras. Nese period, agullo que emerge come campo fundamental de documentacio e pesquisa sio dois terrenos principas: a literatura tradicional - 0 romancelro, os contos populates, a poesla papular, as adivinhas ~ eas tadicdes popalares ~ crencas, superstcdes, estas cilcas. O exforgo de docu ‘mentacdo ¢ impresionante: as grandes recolhas de literatura e tradicbes populares sio entio publicadas. Aparecern também os primeiros estudos sobre o tema, em que questesrelatvas 3 origem istdriea dessa formas de twadigdo oral ~frequentemente tratdas deforma especula- tive ~sfo predominantes. deias de revitalizagio desse patriménio si também importantes: 0 projecto de muitos destes etndgrafes & contribuir para a renovago da literatura portuguesa erudite ~ enquanto literatura nacional ~ através do recurso a essasfontes de inspiragéo tradi- clonal, A lingua ~ enquanto vector do patriménio imaterial -& tambén objecto das primeiras (Bega sigs ge ce bm deviate suse Teneo organo gue faery anvepon? indagades de inclinsdo etogréfica, que se prolongario pelo século XX adentr, gragas sobre tudo a0 trabalho de Leite de Vasconcelos, A segunda etapa deste percurso tem lugar na viragem do século XIX para o século XX, Alm ‘de Adolfo Coelho, ocupa nele um papel de grande relevo Rocha Peixoto, A tradicio oral deixa de ser tho insistentementetratada, Mas, em contrapartda, hi um alargamesto decisivo do campo de trabalho da antropologia portaguesa: Adolfo Coelho escreve sobre teatro popular sobre “saberes fazer” ténicos. Mas é sobretudo em Rocha Peixoto que esta stima tematca passe a ser mis exaustivamente dactmentads, embora Rocha Peixoto tivesse sobre as tecno- logias tradicionsis uma imagem nada abonatéria:via-as como expressio da flta de cat dade popular, onde se reflectcia a decadéncia de Portugal. Apesa do facto técaicas e objectos associados, por exemplo,& ola sio por ele exaustvamente documentados, Simultaneamente, Rocha Peixoto inclul também { iluminagée popula, 4 ourivesaria popular, aos ex-votos, ‘outros temas, como o comunitarisme, na agenda de pesquse da antropologia portuguesa. ‘A tereira etapa no desenvolvimento histrico da antropologia portuguesa correponde aos anos do I Repablicae tem no regresado Leite de Vasconcelos, em Vergilio Correia em Luis Chaves © ‘nos Pires de Lima at suns figuras mals conhecides. Asiste-e ento a um retorno ~ embora sem grande chama ~ dos estudes sobre literatura popular. Mas tema central de pesquisa pass a ser arte popula ito &, uma parte daguilo que hoje tendemes a desgnar pela expressio de ares rato Aart pastri a olaria, 0 txts, ete, passam a ser ndo s6 estudados, mas coleccionades, exposts, clebrados¢ tomate sobretudoalva de processs vrios de revitalizasao. Confront clos como declnio de alguns desss “saberes faze" de fact, os etndgrafos portugueses da Epoca ‘envolveram-se em campanhas de defesa erevitalzagio de algunas desss artes amaisconhectda ‘das quais a campanba em defesa dos tapete de Atrios. As primeirs coleegdes museologeas _etnogrificas constuem-se também nest periodo,embora de wma forma ainda limita ‘Uma parte importante das prefréneias da etnografa da 1 Republica transeriuse, a partie dos anos 1930, para a etnografia do Estado Novo, Muitos dos protagonists slo os mesmnas da T Replica ea énfase na arte popular também a mesma, Mas aguilo que ea até ent o produto Ae acgo eda reflexio de etn gatos islados, tomma-se~ sob batuta de Antiaio Ferro ~ uma orientaglo central de politica cultural do Estado Novo, A promogio. a valorizagio ea revitall- zasio do “patriménio cultural imatrial” ganham por isso relevo signiicativo amo o testemu tha toda a actvidede do SPN/SNI a Exposicio do Mundo Portugués, a clagio do Museu de ‘Ante Populas,o desenvolvimento do movimento flcloric, et Mas 0 periado que se estende entre 1930 ¢ 1970 & marcado também por discurss alternativos esta etnogratia comemorativa do Estado Novo. A esquerda, nasce wma arte popular a2 ‘ia, coleecionads eestudada, por exemplo, por Emesto de Sous. © teatro popular & revisitado Por dramaturgos ¢cineasts alterativos, como Manuel de Oliveira, Eoutros exemplos pode. iam ser dados. Fm todos estes casos, cultura popular € encarada cemo a expressio de uma ‘vanguarda que nio sabe que o &¢ do povo é dado uma imagem que em tudo se diferencia da imagem amavel e bem disposta que dele era dada pela etnografia do Estado Novo, Mae nosees ance aguilo que avulta ésobretide o tabatho de pesquis de Jowge Dias © da sus ‘quia do Museu Nacional de Finologia, Como se sabe, neste trabalho patriménio propria ‘mente material acupa um lugar de maior rlevo, expresso em monografias sobre arados, laias _agricolas,arquitectara popula spigu ‘materalidade sio aqui uma tuo de 6ptica:verdadeiramente o que ests em causa sie mais spanha do sargago, ete, Mas os objectos a saa uma vez os “saberes fazer” de que fila a UNESCO e sobre os quis reponsava a vida rural de um pais em que 40% da populacio viva da agricultura, Esses“saberes fazer” slo minuciosamente descritos por forge Dias ¢ pelos seus colaboradores em devenas de mnografias.Simultanea mente esta equipa fez seus horlzontes de pesquisa mais vasos eceintroduziu na etnografia Portuguesa a diversidade perdida desde a viragem do século: as festviades cilia, prticas socials como o comunitarismo agro-pastoril, voltam de nova a serestucdes, De fora da agenda de pesquisa, 86 fea a literatura ora. Mas, de resto, tuda 0 que & hoje visto como patriménio imaterialesteve sobre a mira do olhar detathado e abrangente de Jorge Dias e dos seus colabo radores, Se houve uma idade de ouro na antropologia portuguesa clissca foram estes anos em que Jonge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Beart Persia fizeram no apenas a radlogratia mas dezenas de TACs em profundidade do pats ural que Portugal era entio e do seu patrimonio material ¢ imate Resuindor a0 longo de 100 anos o prcurso da anropologia portuguesa fez dauilo a que hoje se chama de patriménio imateril uma das suas principaislinhas de desenvolvimento, Este processo¢ tanto mais importante quanto, para além do que se passava i scala central, se dese 2 locas, que replicavam Sescala da lcalidade ou da regito aguilo que os etndgrafos de Lisboa e do Porto tinham desenvolvido 8 escela volviam paralelamente as chamadasetoogea Ehoje, com esta heranga toda por de tis desi, qual arelagdo da antropdlogia portuguesa actual om patriménio material? ‘A antopologia portuguesa contemporinea vive hoje uma situagdo bem diferente daguela que prevaleceu entre 1870 e 1970, De clissca, transformou.se, logo a seguir a 1974, mm moderna, era, a partir dos anos 1990, se converter em pés-moderna. Em consequéncia (1) alteraram-se signifcativamente os objectos de estudo susceptiveis de serem considerados patiménio imate tal e (2) alerou-se signifcativamente © modo coma os anteopélogos tematizam esses abjectos (Comecemos pelo primeito aspect, Apds 1974, esobvetude no decursa dos anos 1980, oestudo de "comunidade” -e nao f 0 estudo isolado de tal ou tal objecto ou de tal ou tl manifetagdo festive ~ genoralizo-se, Rituals e “saberes fazer” passaram em consequencia a see mais fieme mente estudados como parte de contestos sociase culturais mais vastos. Depois, jf nos anos 1890, a sntropologia portuguesa passou do rural ao urbanot eo elenco de poten pattimenio imaterial passou a contemplar novos objectos, com os “Saberes fever” artesanas trbanos,ofado mas também o rap, a festa urbanas mediatizads, Finalmente, na parte fina is formes de dos anos 1990, » organizagio sub-disciplinar da antropologia portuguese complesficou-se ¢ passou a incluir um conjunto de novos objectos ¢ de novos terenos, como, For exemplo as migragdes eos imigrantes os media, o consume. transnacionalidade,o turfsmo. Em todas estas vas eas ~ numas mis, noutras mends ~ 0s antropélogos confrontatam-se com novas expres- ses da oralidade, do especticulo, da performance, om novas mundivisies, com novas priticas sociisesimblcss, ‘Simultancamenteo olhar dos antrop logos portugueses sobre este universo “imuterla” de pi liens ¢ representagesentrow em procesto de renovasia prafinda, © olhar "dacumentarst” mareado pela nostalgia do passado até entdo prevalecente fi substituide por aproximagies mais camplexas: 0 conceito pass e imvel de tradigo fol substtuido pelo eonceto - bem mais activo ~ de invengso da tradici:o velho eo novo passaram a ter nas culuuas populares ‘o mesmo estat a memiria de hits scins e outras formas de orslidade passram a ser cot- sderadas tio importantes como a literatura oral dos anos 1870/1880; a lbridezsubstituiu & autenticidade; de cultura “em si” falar passou a alas de cultura “para ss para lm das prt- 05 € 05 sujeitos, o poder, mas tarnkém a "agency cas observiveis procuram-se agora os discu «a cratvidade; a cultura jé nfo é mais vista como objecto em si, mas como un conjunta de priticasinevitavelmente toca por processus de patrimonilizagzo, mercantileago eturst Aeagdo, que fazem parte Integrante da sua hstria; passou-se a conserar © medo como local « global se misturam e dio origem a novos modos de producto de cultura, ondetradicioe ino- vagio se misturam. A consagragio do patriménio cultural material pela UNESCO fax justamente parte desses processos de patrimonializag, mercantilizagio etristficagto da cultura, que os antropdlogos portugueses tim vindo a estudar nas wkimas décadas, com este navo e mais cemplexo alhat Biss processos vio continuar 2 merecer a atengio dos antropélogos. Mas simultaneamente os antropSlogos tm de aceitar de forma mais prtica os desatios que sio colocados pela consagrs- «fo dessa eatogora, Ese facto val acentuat a tendéncia para a multiglieagio de intervengies patrimonializadoresna rea das culturas populates ex Portugal oriundas do Estado central ou dla sutarquias. Os antropélogos deverso continuar a observ essa imervengSes ¢ a exercer 0 seu olhar rica sobre las, mas simultaneamente tim perante si o desafio de se envolverem de ‘forma mais efectva nelas. Ni se trata apenas de analisie mas de actos. E essa interven tet que fazer a diferenga. ‘Uma bos maneira deo fazer €a parti das lies que se podem sprenckr com a pasado e com. ‘© presente da dsciplina antropogica ‘Comecemos pelo passado, Ble mostra gue ha patriménio e patriméno, sea ele material ou material, distingdo dualista que vale 0 que vale (e vale pouce.... Nes anos 1870 ¢ 1880, em torno da literatura oral, a visio romantica e algo itedria dos contes populares que é possvel encontrar em Tela Braga é bem diferente das preocupagBes de Ado Coelho, que fala de lteratura popular mas também de analfabetismo, ou que vé « pedagogia popular~ of jogos Infanti, as adivinhas ~ como um conjunto de recursos alternatives « uma pedagogia oficial cristalzada ereteigrada Entre 08 anos 1930 e 1970, do mesmo modo, fram pelo menos duas as vsies do patriménio Imaterial que se defrontaram, numa espécte de guerra cultural em,surcina. De um lado a visto amivel, steeotipada, miniatura, clebratéria, promovida pela etnografia do Estado Novo, ‘onde era impossivel encontrar pessoas concretas, conilites socsis, movimento, Do outeo lado, visbes mais densas ott mais radicsis do patriménin imsteral, como as que encontramos na ‘etnogafia alternativa so Estado Novo ox na escola de Jorge Dias [Em Jorge Dias, também, de uma forma mais inovadora do que na actual aproximagio da ‘UNESCO ao tema, material eimateral tém fronteiras indefinidas,e assim como os objectos ~ adaptando uma formulagio do antropélogo Arjun Appadurai ~ vém uma vide espiritual, Snversamente, o imateral crstliza em objectos. A atengio ao precio, ao marginal ~ como ‘os saberes fazer de que dependem a construgo dos abrigos pastors, ua apana do sargago cestudados por Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjeim Pereira - contém também uma ldo para o present: o patriménio ndo & necessariamenteaquilo que “bifha” Ea estes exemplos outros poderiam ser acrescentados outros, que mstrsram como o pate sénio imateral é um terreno onde se conftontam vsies diferentes © reativamente ao qual tm que ser devidamente pesados uma conjunto de dilemas, que sio também dilemas de politica cultura, (Os antropélogos, com a experiéncia histrica da disciplina, ttm os meios necesirias para svaliar melhor e de forma historicamente mas informada o tipo de dilemas enolvidose pro por a esse respeto intervencies diferentes, mais complexas e mals ajustadas. Além das lifes do passado, hi também as lies do presente. Além de complesificar a ime pretagio,o oar que os antropélogos deitam hoje sobre a cultura e sobre as prticasculturais esinonimo de melhor e mass austada capacidade de inervengo sobre o que éagora deftnide ‘como patrimnio imaterisl. Gostaria de propor a este respeito um jogo de pabbvras que aco que resume aquilo que pode ser o contributo pritico decisvo dos antropélegos: @ agenda aterialidade num patriménio actual da pesquisa antropoligica€ a Gnice que pode injectar «que, caso contro, corte o riseo de se tornarlteralmente imaterial. A antrosologia pode € eve tornar tangivelo intangivel. Quando os antropélogos falam de invencio da tradigto, de hibrider, de “agency’ de mercantilzagio da culture, de nativos e turistas, de cultura para si, te, restituem materalidade, concrtitude, instabilidade e movimento a um ratriménio que mesmo que definide camo imaterial & isso mesmo: material, concreto, instivel,assente em processes socaiseculturas eles proprios materiais, que devem ser inscrtos ~ endo rasurados ~ no processo mesmo da sa transformasio em patriménio. Bsti nas mios des antropdlogos fazer isso, propondo intervenes diferentes sobre o patriménio imateral, Alen de dsporem do saber téenico, tém também o saber "politica" para sso.

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