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JOAQUIM DE VASCONCELOS E A VALORIZACAO DAS ARTES INDUSTRIAIS cin Matta Cannoso Rosas * Em 22 de Outubro de 1882 ¢ inaugurada no Paliicio de Cristal urna Exposigio de Cerimica, promovidn ¢ organizada pela Sociedade de Insteugiio do Pow, Em 38 dias, 27.000 pessoas visitaram os cerea de 1000 objectos dispostos na nave central do Pakicio, decorreu entretanto um Congresso participado pelos proprietirios de 9 fabricas de cerdimica ¢ foram atribuidos [prémios aos expositeres de trabalhos considerados de maior valia. Dos 18 ele~ -mentos que constitufam o jiri devemos destacar, pela Unica razio do nosso objecto de estudo, Aires de Gouvein Osérie, Rodrigues de Freitas © Joaquim de Vasconcelos! A Sociedade de Instrugio do Porto, lundada em 1880, com divulgugio junto do pblico utvés de uma revista mensal, nascera em plena época de debate nacional sobre a reforma do ensino. “Animar e encaminhar bem esse movimento é a missio, que pretende dlesempenhar «nossa sociedade (..) em volta dessa simpatica bandeira, a da educagfo nacional”, pretendia 0 grupo fundadador congregar as ideias “mais avoriveis wo progresso moral ¢ intelectual"?, A sociedade chamava a si a missio eiviea de debater e desenvolver os métodos pedagégicos, rever 0 método utilizado tos livros de ensino, com o objectivo de promover « instrugsio nos domitios da ciéncia da arte e da indtstria ‘© modo de realizar esta misstio assentava na “reconstituigao das tradigdies hiswricas, que determinaram as mais valosas feigdes do earicter da. nacion lidade portugues. A motivagio explicita deste movimento era ade elevaro nivel intelectual dos portgueses. a par do dos povos “mas bem dotados”® do mundo. esta miso, a pedagégica, um dos vectores radicais da Exposigio de Cerfimica, como 0 fOru igualmente da Exposigdo das Indistrias Caseiras, que & Sociedade concretizara um ano antes, em 1881, Esta missio, propulsora clo fendmeno oitocentista da proliferagtio de Museus © grandes Exposigées. decorre de uma ideia simultaneamente eltista ¢ democritica da arte ~ ¢ certamente da cultura —e € este um dos veetores do pensamento de Jouuim de Vasconcelos, alma ¢ ideélogo da Sociedade, (embora presidida Por Aires de Gouveia Osério) ineansivel © pionciro investigador da arte portuguesa, ao adoptar métodos de rigor assmsilados na cifncia alema, 29 Lin MARIA CARDOSO ROSAS Joaquim de Vasconcelos, como ox seus contemporineos, entendia dever desenpenhur um papel generoso na Felicidade dos povos, ¢ recorrentemente hia valorizagio ca arte popular e da sua especificidade nacional. A Expo- sigdin de Cerdmica pretence exactamente demonstrar que 0 povo “é 0 nosso, maior artista” © ressuscitar a arte popular. como esclarece o seu programa: iio nos admiremos depois, e a onda se voltar irada; se 0 génio popular ros fedir eonas: se nos perguntar © que fizemos para salva-lo n6s, 08 sAibios «a gerte ilustrada e providente para proteger 2 alma popular contra 0 contégio dds variagbes Fiteis do tempo%(..)"* ‘A cinein dus acudemias ¢ dus escolas nfo soube conservar as formas de ae inidicionais, de que & familia ristica (€ © povo) slo os fiéis deposi- Emerge aqui o mito jf romantica da pureza do povo, ¢ igualmente a ica das vinudes do operério que, pelo seu trabalho, prota oni e & Fautor do progress, idiais de clara ressondneia demo-ibera Progresso e instrugio sfo os principios busilares do discurso que inaugurou « Exposigho ¢ constituem o objectivo da mesma: io 6 somente a curiosidade que procura os ineidentes da evolugtio do teabilho, & & reconhecida vantagem de aproveitar da experigneia tudo pie utilise 0 progresso - &u necessidade impreseriptivel da instruegio Foi esta worigem da Exposigdo de Cerdmica (..). easina do deseno ¢ da madelagio em excolas profissionais ex faa Lins resultados pemiciosos no necessirio desenvolvimento da indistria da cerdiniea - © de outras ~ é uma das questBes mais caras a Joaquim de ‘Vasconcelos pla gual se bateu durante anos. Un eomissio nomeada em 1875 para propdr ao governa a reform do das Belas-Artes, a organizagio dos museus © da argueologia. ¢ a salvaguarda dos monumentos teve mas Observacdes sobre o estado actual do ening das artes em Portugal (..)% da autoria do Marques de Sousa Holstein, presidente da mesma comissto, um importante documento para & laboragto do Relardrio (.} que publicou em 1876. Ua vasta anise ertica dest relatéro oficial foi editada por Joaquin de Vasconcelos dois anos depois O ensino das ares aplicadas i indiseia € consideraco por Sousa Holstein {de maior importa, notando a desorganizagdo que campeava. O ensino ccontemplava principalmente o desenho de ormamento, realgando 0 autor a necessidade da aprendizagem do desenho da figura, humana e animal eda "modelaglo, assim como de contecimentos sobre hist6ra da ate, dos ests « reqras da composicto? ‘4 conhecida pericia dos antfiees portugueses no trabalho da pocra Fea tum dos Factores do desenvolvimento da exportagio de cantaria lavraca par o Basil 230 vveneragio est JORQUIM DE VASCONCELOS f A VALORIZAGAO DAS ARTIES INDUSTHIAIS ‘Sousa Holstein propunha habilitar 0s “nossos operarios no s6 a copiar com a sisa acostumada pericia, mas wambém a inventar, ensinando-os 2 ter cestylo (.) habilitando-os a perceber os admiraveis modelos da nossa arte manueina, to portugueza e tio original (..)" © ator nio deisa de veferir 0 South Kensigton Museum, que em tra- ball movdetar, eriara desde 1851 mais de 150 escolas de ensino industrial sob ‘sua inspeegio, nas principais cidades de Inglaterra, citando Ruskin e como le sublinhande as vantagens para o progresso do talento de muitos artifices, talento perdido pel inexisténcia de escolas onde poderiam encontrar-se as vocagées de cada um, Aos canteiros ¢ ourives nacionais, executores aadmitiveis de s6lida educagio técnica, Faltava a educagdo artistew. Joaquim de Vasconcelos, no texto crftico de 1878, de torrenciais releréncias ao ensino no estrangeiro, cit uma vastissima bibliografia europeia. sempre avesso 908 “cireumloquias mais ou menos poeticas” do Lexto da comissdo que “ndlo valem a detinigio breve, clara e conchudente de qualquer bom compendio de esthetica"!® © projecto enfermava de um erro de principio, ao cingir-se & modéstia de rmeios impasta pele governo, porque € sabido “que em todo o projecto de reforms ticumente, e que sé achado elle, é que se pode estabelecer a reduglo a casio especial, na practica (...). NBo existindo esse plano completamente eluborado, desde 9 principio, & impossivel completal-o depois metho~ c: poder-se-ha aerescentar isto ou aquillo, mais ou menos bem, mass cesses actescentos Mio e sero sempre remendos, © nunca a consequent! natural de um desenvolvimento organico”!!, Entre os modelos apontidos Figura a reforma da Academia Real de Berlim (1875), cujo projecto tomara 0 “ponte de vista absoluto, theoreticamente; (..)"!2, Dasadaptado da realidade portuguesa, Vasconcelos no se conformava com a falla de conhecimento ¢ capacidade tedrica que em Portugal realmente ningugm tinha, ¢ mais uma vez, ninguém o ouviu ou quis ouvir. (Cerca de 20 anos mais tarde acusaré o eansago da indiferenga oficial pelo seu trabalho: Hi 25 anos que imprimo no Pals, vigio no pats, prelecciono no pals & minha eusta, ¢ dou 9 que no me querem comprar”. © ensino induscial,evigdo em 1852 por Rodrigo da Fonseca, no Porto & ‘em Lisboa, reformado por Joa Criséstomo de Abreu e Sousa, mereceu nova reforma em 1884 dy autoria de Anténio Augusto Aguiar que criou dez. ‘encolas de Desenho, tendo os governos sequentes fundado mais dezassete. Os centros urbanos de menor dimensdo mas de alguma implantagho industrial, como Leiria © as Caldas da Rainha, receberiam nos dltimos anos ‘do séeulo um ensino ministrado por professores contratados na Alemania, Suiga e tain! se tem de tomar sempre o ponto de vista mais vasto, theore- dicamen 231 “OCIA aaa CARDOSO HOSAS Mas 0 ensino programado ¢ acompanhado de cultura artistica far-se rmargem do ensino oficial, em torno da Escola Livre das Antes do Desenhe, fundidla ¢ dirigida em Coimbra (1878) por Ant6nio Augusto Gongalves, € no Cantro Anistico Portuense (1880) euja fundagio foi impulsionada por Jonguim de Vaseoncelos!S Avroximemo-nos do segundo veetor da questo, A Exposigho de Cerfimiea ¢ toda o seu programa reaizavana-se também contra a Exposigio de Arte Omamental Portuguesa ¢ Espanhola inaugurada pelos reis de Portugal e Espanha em Janeiro do mesmo ano de 1882, em Lisbua®, [Nio nos cabe agora exphinar as motivagies politica desta Exposigi - ‘que de garantirem & arte “os meios de se affirmar utilmente, de se exercer € desenvolver, de expandir as suas beneficas influencias no movi-meno socicl. quando exaetamente a arte & como a seiencia e como a industria una Forca primaria na sociedade, porque é uma faculdade geral do homem”= G patsiménio como heranga de toda a nig, o ensino como fonte de eestimulo da capacidade artistica do homem, de benéficos resultados no tecid social, ¢a conseincia pblica, s6 ela capa de obstar 20 mau gosto ¢3 24 JOAQUIN DI: VASCONCELOS I-A VALORIZAGKO DAS AKTES INDUSTRIAIS plantas daninhas, & inseitneta do mercantilisme, obliteradores da tradigi0 Arlistiew portuguese, sto os vectores fundamentals do cexto de Luciano Cordeiro, mais Feexrdo no pensamento que nas solugées upresentadus para sanar aqueles males. Na década de 90 © conceito de monumento assinala uma ruptura, & ‘marca outra época a0 incluir os objectos do presente e alguns aspectos dit cultura que excliem 0 objecto fisico, indieaglo patenteada nas exposi¢fes romovidas anteriomnente por Vasconcelos. ‘© “complexe de Noé™ de que se tem vindo a falar no nosso tempo, pelo desejo de (do elassiticar como patriménio, € uma utopia jt aqui patente, nuitatis mutandis, uma vex que aetwalmente 0 conceito de patriménio ribrange natoreza e pretende ser mundial De comtomos fositivistas, actualizado pelas novas citncias socials © hhumanas, 6 conceite de monumento e de objecto antistico persistia no final de oitocentos, em decorrer da procura das rafzes, ou seja, da produgio simbsilien da nag, ‘Segundo Ramalho Ortigho a viabilidads da conservagio do patriménio reside na erenga das vires intocadas do povo, guardizo das tradigdes e da cultura material de passado. O progresso, proprio da vida das capituis € nielas necessirio, € 0 cosmpolitisimo, desgastam ¢ desnacionalizam 0 indivi- duo, A forma de conservar consiste em representar 0 passado, cistalizando- afastando as vilas ealdeias do caminho do progresso™, (© mito da puresa do povo, incorruptivel e imune aos males da civil zagio quando isolado, assoma aqui, ¢ ele impedirs Ramalho Ortigio © ‘vires de entenderem a impossibilidade de tal projecto porque, bom eu mau ‘6 “progresso” € sempre apelativo e inevitavel, ¢ porque, superlativamente, © patriménio s6 0 &, flo quando a venerugio intelectual pretende fixi-o, mas ‘quando a “eomunidade o assume e toma consciéneia dele"®6. Nao encontimos esta necessidade de cristalizagio do passado em Joaquim de Vasconcelos, pelo contcitio, o retomar das artes tradicionais & enlendido come Forma de progresso artstico e industrial Exposigio temitica exemplar, adiantada no tempo cultural nfo s6 portugués, mas também europev, a0 eleger a cermica como tinico objecto, a Exposigao que roferimos s6 poderia ser idealizada e concretizada por Joaquim de Vasconcelos, se atendermos ao panorama da cultura arfstica ex Portugal ma décadace 80, ‘Quuiro anos antes propusera a criagdo de museus igualmente temiticos & regionais: de olaris em Coimbra, de ourivesaria em Guimaries, de rendas tem Setgbal, Peniehs, Vila do Conde e nas ilhas, de marqueteria também nas, ihas e de ouriverar, figuras de barro e azulejos no Porto”? ‘A valorizagio das industrias tradicionais e locais associa a discordancia dda existéncia de um Gnico museu em Lisboa que congregaria - como veio a as acontocer - todo 0 tipo de objectos. num gosto de bric-d-brae que se manteve no séeulo XX portugubs, estendendo-se aos museus regionai Masire dle todos nbs, assim esereveu Ramalho Ortigio a propdsito de Joaquim de Vasconcelos, justamente considerado por José-Augusto Franga ‘0 rea Tundador da Histéria da Arte em Portugal, entendida como ciéncia, ‘com sbjecto e método préprios. Siluemos correctamente @ pensamento de Joaquim de Vasconcelos. ‘Tamkém ele procura nas artes populares a resposta para a pergunta: exists 04 poder existir uma arte original portuguesa? Depois de procurar € lucidamente no encontrar & originalidade da ate 0 pessado, na arquiteetura manuelina ¢ na pintura de Grio Vasco, tendo esclarecido as devidas correspondéncias curopeias, onde até entio o romantismo nacional apenas vira caracteristicas portuguesas, conclu que vexise sim um estilo puro, nacional na sua expresstio, to adequado hhubitago eistiea do jornaleiro e do homem do campo, como a residencia do burgiés © ao palicio do principe. © futuro da arte porluguess esti na indisria popular, nas indistrias caseiras"™, Das ts vertentes a que Vasconcelos dedicou 0 seu estudo: a pintura, a aarquicclura © as avtes decorativas apenas ecolhemos uma para melhor real- ‘garmos a novidade das suas propostas,alicergada numa vastissima cultura artis- tiea eujas bases encontrou na Alemanha, em trabalho incansdvel e actua- Tizadn de investigagao © numa acutilincia de racioefnio que temos o dever {de sublinhar NOTAS + rosso Atlar da Puceldad de Leta a Universe de Pot, {°C Conmersia do Poa” Porto, m2 259.2 Out do 1882.1. A? 270, $e Nowe 182, ‘Aroma a tlie Fmcides por ee portico, Joauim de Vasconesin ese rer tpn no meno Jee, tilde Expoieae Cerda. Os Letom x0 publese ‘ite de Novena 69 de Dezembro de 1882 0 programa ds Exposiéo, catslogo das pesos exposes. diseurso imag, Ts de “plore epremiaden asin como os atigos qe Joaquim de Vasconcelos esre¥en ro Jer dito poraone, fram publeado ma "Revista da Sociedade de Inst30 do Pow {rede Jthe Is Dezembro do mesmo an. 2. "Nevins du Sova de trugGo Jo Porto”, Poro nde Jun a Hh an. 12 236 JOAQUIAE DE VASCONCELOS EA VALORIZACKO DAS ARTES INDUSTRIAIS Mein 9°7. He to de 1882p 349. Ion nH de Nove de 1882, p36, 6, SJaioiatcin, Marge de Sous}OBnenares sore # edo erat densi dos anes fm Portal, enveeniude des Mascus v9 servign don monnmenton Historica e da ‘reheat aferedas Combsto nemeao por Decrtn de 10 de Novembyy de 1873 pp eli mes con, Lisboa pens Nacional. 1875 an. dn p02 Yassonstos, Jonauin de A Reforma do Ein da Boles I (Anal de sega prt de Relnoia Of) Pot 187%... Hd, enn, p10, 1, “Ane, Colon p28 1 Fring, Jons-Aepua, A Ane em Morgane Sees XU, Vondn Nova, Bertrand Baio Moh vp 66 15. Cfo que exerevemos sobre 0 eiino uti em: Rosas. Lécis Maia Cardoso Mamveros Pirie A Angatenie tga medtet = postin restr, (835. 7020), Mr, 1095, dosrlngo de dutormenta polieupas epresentad ft Foculode le [and Univer do Pot, top 125, 1G Sons stn Lspoig vse: Pei, Maia da Consci Meteles« Roms, Lila Mara Colom, ne Nacionaidade = wns propasta de Yate a pripasin da Espsitn de Arte “Onuamentel Porgnea Bsmt de 1882, “Revista da Facade de Lava. Hise Pont acre 1991, Unveiled Pont, p 327-338 17, tiga citar em a | 18, “Revista d Sociale nseupe do Pot. Ponto 7,1 de tho ds 1882p. 47-8 Enno eat lta, paste neprante do programa 6 Exposiin ess assnado poe oct ‘4 Dircugio du Sociedi, np davidaoios em atibuttw sua autoria w Joaquin Je escola vedio eermente qos no psa. 19, Aen tsi cde Semper va. etre tos, Kr, Hano-Walr Mora de a ‘cor de uric, 2. Desde et sglo XIX hese estos eas, Made Ain ara 190 ag inl ey nga sm pubic 1985), p. 341-51, 20, [Cordis Laclanol Retr dire an Marine «Excelente Ser Mii & Seerturie toad daa Negcton do Rel pet Comisaevemeaa po: Deere de 10 de ovens de 1879. 9.12 22. ten, thideon Xt ca masta cxRD080 Rosas 25, Orig, Runa, Un dra «fav das nnamenns, “Distio de Noi", Lisboo 17, 2h, Alida, Carton Albects Perrica de, Patriuinin «Rien! ¢ Hale, sep da “Revie ls ‘de de tan” Hii, 2 se ¥10, Pot 1993: 41d soso avi dA Reform do Bsn das Bele uh 8 28 2. tu, Historia oe Arte em Portage. eto er Dehetre mmc, Coty, ANA LUISA RODRIGUES DE FREITAS Sanguinea de Anénio Carneiro ‘Caeceo particular do St. Dr. Artur Santos Silva Fotografia de Luis Seixas Ferrera Alves

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