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Livro Críticas Ao Processo Penal Brasileiro
Livro Críticas Ao Processo Penal Brasileiro
CRÍTICA AO DIREITO
PENAL BRASILEIRO
Debates sobre o Sistema de Justiça Criminal
ISBN: 978-65-982514-0-6
Prisma Editorial
1ª Edição
Florianópolis/SC
2024
CRÍTICA AO DIREITO PENAL BRASILEIRO: Debates sobre o Sistema de Justiça Criminal
© 2024 by Antônio Leonardo Amorim e Francisco Quintanilha Véras Neto is licensed under
CC BY 4.0.
Esta obra é publicada em acesso aberto. O conteúdo dos capítulos, os dados apresentados, bem
como a revisão ortográfica e gramatical são de responsabilidade de seus autores, detentores de
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atribuição de crédito, mas sem que seja possível alterar a obra, de nenhuma forma, ou utilizá-
la para fins comerciais.
Conselho Editorial: André Afonso Tavares; Camilla Martins dos Santos Benevides; José
Carlos Loitey Bergamini; Miriam Olivia Knopik Ferraz; Tássia Teixeira de Freitas Bianco
Erbano Cavalli.
Organizadores: Antônio Leonardo Amorim; Francisco Quintanilha Verás Neto.
Diagramação e Capa: Prisma Editorial
Contato: https://www.assessoriaprisma.com.br/
JEFFERSON VIRGÍLIO
Antropólogo. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. E-mail
jv.ufsc@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0023-8505.
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 9
Capítulo 1
CITAÇÕES DE SUJEITOS INDÍGENAS NO PROCESSO PENAL .............................. 10
Jefferson Virgílio
Capítulo 2
USO DE TECNOLOGIAS DE COLETA E ANÁLISE DE DADOS PESSOAIS NA
PERSECUÇÃO PENAL: Controle biopolítico, impactos e violações de direitos
fundamentais........................................................................................................................... 23
Capítulo 3
RACIONALIDADE GOVERNAMENTAL NA IMPLEMENTAÇÃO DAS UNIDADES
DE POLÍCIA PACIFICADORA: UPP, ou da razão pau de arara ................................... 39
Capítulo 4
A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA APLICAÇÃO PELO PODER
JUDICIÁRIO MINEIRO ...................................................................................................... 64
Capítulo 6
QUE CIDADANIA AS ESTRUTURAS DE DOMINAÇÃO PERMITEM NO SUL
GLOBAL? Um estudo sobre o Brasil Império e Contemporâneo ..................................... 94
Capítulo 7
A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL: Da ofensa a reintegração – em busca do
melhor interesse para as crianças e adolescentes .............................................................. 119
Capítulo 8
A CONSTRUÇÃO DO SER “MATÁVEL”: Uma análise da influência midiática na
construção do “eliminável” ................................................................................................. 135
Capítulo 9
ENCARCERADOS PREVENTIVAMENTE: O controle do Sistema de Justiça Criminal
sobre os corpos negros ......................................................................................................... 150
9
Capítulo 1
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10528452
INTRODUÇÃO
O artigo está dividido em três partes principais, para além desta introdução e de uma
conclusão ao final. As duas primeiras partes são de dimensões bastante reduzidas, pois apenas
pretextam apresentar, respetivamente, o mínimo sobre a diversidade indígena que é conhecida
no Brasil para então tecer alguns breves comentários sobre a evolução da situação de
incapacidade legal indígena no Brasil.
O terceiro e último item, de maior dimensão, é o cerne do artigo e busca discutir
algumas questões envolvendo os tipos de citação que são conhecidos e as características que
estes podem implicar se ignorarmos a diversidade indígena nacional e o fim da tutela estatal.
Existem atualmente mapeados no Brasil mais de 300 povos indígenas distintos, sendo
conhecidas pelo menos 274 línguas indígenas diferentes, e estando distribuídos em um total
superior à 900 mil pessoas (IBGE, 2012, 2018). Dados que são subsídios iniciais para revelar
não apenas a dimensão populacional dos índios no Brasil, como a sua enorme diversidade.
1
Antropólogo. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. E-mail jv.ufsc@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-0023-8505.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Art. 6º. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, I), ou à maneira de os
exercer:
[...]
IV - os silvícolas.
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis
e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
No fim do século XX não era residual, como não é hoje, a quantidade de povos
indígenas que não dominam a língua nacional, se comunicando apenas em sua língua nativa e
em outros tantos casos tendo o domínio do português como algo restrito as lideranças, aos
homens ou para os mais jovens.
Apenas dentro da Amazônia legal são identificados 130 povos isolados que nem
mesmo sabemos a forma de organização social, o tamanho da população e muito menos a língua
que dominam, ou se esta é uma língua nova ou desconhecida (Cangussu et al., 2022).
Neste sentido, é complexo assumir que a extinção de maneira unilateral da tutela
indígena era a melhor solução. No entanto, há fortes indícios de que a solicitação pelo fim da
tutela era uma demanda de determinadas parcelas da sociedade indígena que estavam cada vez
mais dependentes das relações com a sociedade envolvente (Ramos, 1992; Munduruku, 2012).
Estas comunidades encontravam dificuldades de representação desde pelo menos a
década de 70 quando foram realizadas as primeiras assembleias indígenas de alcance nacional
para realizar pedidos de poderem realizar certos atos como sujeitos civis de plenos direitos,
como votar, trabalhar, se casar, ou decidir o nome de registo dos filhos (Oliveira, 1988;
Munduruku, 2012).
Até o final da década de 30 possuíamos dispositivos que proibiam, por exemplo,
qualquer remuneração em dinheiro para indígenas em todo o país.
A alternativa que muitos destes indígenas acabavam encontrando era abandonar a
identidade indígena e assim perdendo seus direitos tradicionais para a terra, por exemplo. Ao
mesmo tempo que estes indígenas passavam a receber novos acessos, como a possibilidade de
ter uma casa ou veículo em seu nome, além de uma carteira de trabalho ou mesmo de tirar um
passaporte, compromissos e deveres surgiram simultaneamente, e não seria mais possível alegar
desconhecimento do código penal, como era feito até então, por exemplo.
A proposta do próximo item é desenvolver alguns comentários sobre as diferentes
formas de citação possíveis justamente no processo penal brasileiro e como estas podem ser
compreendidas ou interpretadas por diferentes povos indígenas no Brasil, consoante com os
seus maiores ou menores, mais recentes ou mais prolongados, contatos com a sociedade
envolvente em uma situação que passados mais de 30 anos da promulgação da constituição não
parece estar assim tão diversa.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Este item busca comentar algumas situações que podem surgir nas transposições entre
sujeitos indígenas e a regulação existente no Código do Processo Penal de 1941, especialmente
para aquela envolvendo as denominadas citações. As informações sobre os diferentes tipos de
citação surgem comentadas na obra de Oliveira (2017).
O Código do Processo Penal (Brasil, 1941) é bastante claro sobre a necessidade de
citação para a plena possibilidade de execução dos atos do processo em seus artigos 238 e 239:
Art. 238. Citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado
para integrar a relação processual.
Parágrafo único. A citação será efetivada em até 45 (quarenta e cinco) dias a partir da
propositura da ação.
Art. 239. Para a validade do processo é indispensável a citação do réu ou do executado,
ressalvadas as hipóteses de indeferimento da petição inicial ou de improcedência
liminar do pedido.
Nos lembra Oliveira (2017) que a citação surge inicialmente na modalidade de citação
por mandado, sendo executada por oficial de justiça especialmente indicado para tal função.
Este oficial deve realizar a leitura da íntegra do mandado além de uma cópia integral do
instrumento.
Mesmo a negativa de recebimento do mandado de citação não a invalida ou impede a
continuidade dos trabalhos. Este tipo de citação é realizado quando o acusado reside na mesma
comarca ou dentro da jurisdição do magistrado que julga o processo ao qual é réu o acusado.
Para o caso de indígenas residindo em áreas indígenas conhecidas, quer sejam
demarcadas, homologadas ou que se encontrem em processo de demarcação, não deve ser
difícil confirmar a residência ou permanência do sujeito na localidade. Encontrar, fisicamente
o acusado, no entanto, já é uma situação mais complicada.
O paradeiro específico do réu pode ser impreciso, mas esta situação é contornada
facilmente com outras categorias que iremos comentar mais abaixo, ainda que com limitações
ou implicações para casos específicos.
Já para os indígenas residentes em áreas urbanas a questão é menos complicada,
podendo ser resolvida de modo idêntico ao encaminhamento que é realizado para sujeitos não-
indígenas.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
O problema pode surgir, quer seja para indígenas residentes em terras indígenas, quer
para aqueles residindo em áreas urbanas ou rurais no que remete para a plena compreensão não
apenas do conteúdo da citação, como das eventuais consequências de não comparecer, indicar
defensor ou mesmo responder a citação.
É uma questão de língua. O domínio da língua portuguesa para povos de contato mais
recente é bastante precário, quando este não é inexistente. Situação similar pode ainda ocorrer
para mulheres e para anciões pertencentes a povos mesmo com contatos mais antigos.
E se for necessária a leitura do texto ela pode ser bastante complexa mesmo para
homens jovens e adultos, pois a literacia não é um domínio regular para povos indígenas.
O desconhecimento do sistema jurídico dos brancos é outro tema recorrente, assim
como as dificuldades de acesso ou mesmo de confiança para este sistema, como nos aponta
Schmitz (2017, 2018) em seus estudos sobre o povo Laklãnõ, residente em Santa Catarina e
suas dificuldades de comparecimento as convocações.
Além disso, o povo Laklãnõ, citado por Schmitz, por exemplo, possui um território
que cruza extensões de terra que passam por quatro municípios catarinenses, que atualmente
estão em discussão pelo STF com a tese do marco temporal (Brasil, 2019; Virgílio, 2022).
Há povos indígenas que estes territórios podem cruzar mesmo as fronteiras de
diferentes unidades da federação, além de poder acontecer ainda em casos mais raros, como o
que ocorre com a população Yanomami onde a Terra Indígena cruza as fronteiras entre
diferentes países (Brasil e Venezuela).
Estas duas situações serão exploradas nas próximas duas hipóteses de citação aqui
comentadas. Os dois primeiros casos, fronteiras entre municípios e fronteiras entre unidades de
federação, podem gerar desde conflitos de competência entre diferentes comarcas, como ainda
a necessidade de citação por precatória.
A citação por precatória ocorre quando o acusado reside fora da comarca ou da área
de jurisdição do magistrado. O juiz encaminha a citação por carta para o magistrado da comarca
onde o réu reside. O funcionamento é similar para o terceiro caso, ainda que nomeado como
carta rogatória, para réus residentes em outros países.
Estes dois dispositivos poderiam resolver a questão das terras que cruzam diferentes
unidades políticas, mas ocorre que esta citação por precatória (assim como a rogatória) pode
ser encaminhada repetidas vezes para destinos que não correspondem ao local onde o acusado
reside ou mesmo se encontra.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Este tipo de situação alcança outras esferas além da jurídica, como por exemplo na
saúde, na educação e outros mecanismos de acessos a políticas públicas, onde os sujeitos
indígenas podem ter restrições para efetivamente mencionar onde vivem.
Para o caso da educação a questão foi resolvida com a criação dos territórios
etnoeducacionais (Brasil, 2009), onde toda a terra indígena é considerada como um bloco
territorial autónomo e com tratamento especial, ignorando legislações municipais ou estaduais
que sejam impeditivas ou conflituosas entre si. Essa questão não foi resolvida na saúde indígena
e não está resolvida na esfera jurídica, com conflitos de competência entre tribunais sendo
recorrentes, como visível em Brasil (2014).
Para as citações por meio de carta rogatória, podem ser necessários a utilização e o
diálogo com corpos diplomáticos, uma vez que o paradeiro do réu seja conhecido, mas estando
em território estrangeiro, e consoante o caso este movimento pode acabar novamente em
repetidas idas e vindas de cartas para lá e para cá sem nunca efetivamente cumprirem com o
seu objetivo.
Há, no entanto, dispositivo dentro do Código de Processo Penal (Brasil, 1941) que
permite trazer alguma luz para resolver esta situação, conforme se verificam nos artigos 68 e
69, que mencionam que o juiz poderá formular cooperação a qualquer tempo para a prática de
atos processuais.
Estes dois artigos, assim como os vários incisos e parágrafos, permitem que a
cooperação entre magistrados não se limite ao mero encaminhamento do processo ou a
solicitação da citação ou da intimação em outra comarca. Compreendo que este artigo é muito
mal explorado, pois seria possível aos juízes efetivamente trabalharem de maneiras simultâneas.
Além disso, não há nenhum impeditivo para que sejam feitas citações de maneiras simultâneas
em duas ou mais comarcas.
Seria proveitoso para contornar os limites da questão de sujeitos indígenas nestes
territórios que os magistrados considerassem trabalhar em conjunto e não apenas em
substituição.
Para o contexto entre dois diferentes países temos dispositivo similar que resolveria a questão
(Brasil, 1941):
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Uma categoria que surge para resolver as dificuldades da citação por mandado é a
citação por hora certa. Diz Oliveira (2017) que ocorrendo duas tentativas sem sucesso por parte
do oficial de justiça, e surgindo a possibilidade de o réu estar tentando se ocultar (e aqui
poderíamos considerar para o contexto indígena mesmo a impossibilidade de encontrar o
mesmo em um território que alcance centenas de milhares ou mesmo alguns milhões de
hectares), o oficial de justiça pode informar qualquer vizinho ou parente que retornará no
próximo dia útil, em hora que este determinar.
A citação estará feita independentemente da presença ou não do citado. Nos casos de
revelia é designado curador especial. Esta última opção é especialmente curiosa pois para o
contexto indígena a tutela, como já mencionado, foi um objeto de luta para ser removida.
A presença de escritórios da FUNAI logo nas entradas das terras indígenas, quando
existentes, podem auxiliar a encaminhar o paradeiro do indígena para populações menores,
como aquelas que possuem poucas dezenas de indivíduos, mas pode ser especialmente difícil
para territórios onde residem milhares de indígenas e nenhuma das estradas possui
nomenclatura.
Mesmo o CEP, geralmente, remete para TODA a terra indígena. Para exemplificar,
não é incomum que todas as correspondências fiquem retidas na agência dos correios, devido
as óbvias dificuldades de entrega de qualquer pacote em grandes áreas sem qualquer grande
preocupação com a identificação de ruas, parques, avenidas ou algo similar.
O Código do Processo Penal inclusive menciona nominalmente esta possibilidade
(Brasil, 1941) “Art. 247. A citação será feita por meio eletrônico ou pelo correio para qualquer
comarca do País, exceto: [...] IV - quando o citando residir em local não atendido pela entrega
domiciliar de correspondência; [...]”.
Essa talvez seja uma possibilidade, articular os esforços dos correios e da FUNAI para
citar o réu, mas essa citação não pode ser feita - por hora certa - mas sim de maneira assíncrona
ou através de definição de um representante.
Dadas as organizações sociais políticas de indígenas se organizarem geralmente no
formato de aldeias e estas possuindo os seus caciques locais e regionais, esta talvez fosse uma
hipótese possível.
As redes de comunicação internas existentes em certas terras indígenas, combinadas
com as largas faixas territoriais, podem impedir completamente a comunicação do sujeito réu
em um prazo tão curto como 24 horas.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
como na Amazônia Legal, no oeste de Santa Catarina e Paraná e na fronteira do Mato Grosso
do Sul com o Paraguai.
O caso dos funcionários públicos não é distante. Há décadas há enorme pressão por
parte das comunidades indígenas de que os cargos que lhes atendem nas áreas da saúde (agentes
de saúde, técnicos e outros profissionais) e da educação (merendeiras, professores etc.), além
de cargos vários na FUNAI (administrativos, coordenadores, motoristas etc.), na SESAI e em
outros órgãos sejam preenchidos exclusivamente por indígenas.
Então há alguns anos uma parcela não desprezível de indígenas passa a ser identificado
como funcionário público, ainda que os cargos e salários sejam precários e muitas vezes em
contratos temporários. A citação do réu preso também não apresenta maiores obstáculos, tal
qual quando ocorre com sujeitos não-indígenas. E neste sentido não são feitos maiores
comentários sobre esta modalidade de citação.
Oliveira (2017) faz referência ainda para a citação do incapaz. Se considerássemos a
situação prévia a constituição de 1988, este seria o caso para todos os sujeitos indígenas, mas
para o contexto de nossa sociedade atual, este tipo de citação acaba gerando poucas dificuldades
para além das que são compartilhadas por todas as demais, como já demonstrado ao longo deste
artigo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se percebe ao longo da análise é que a citação de sujeitos indígenas pode não
apenas demandar determinados esforços adicionais, como ainda que os seus efeitos acabam por
ser muitas vezes ainda mais deficientes que aquelas aplicadas contrassujeitos não-indígenas.
Alguns casos são dignos de atenção, como o que remete para a dimensão das terras
indígenas e para o tamanho de seu contingente populacional. Em contraste, em pelo menos três
cenários (militares, funcionários públicos e presos), não nos parece que a citação tenha
percalços adicionais, sendo muito provavelmente mais efetiva e ágil que outros modelos de
tentativa de citação.
Além disso, a questão do não domínio da língua portuguesa surge como um primeiro
obstáculo que acaba se agravando com outros dois: A dificuldade de compreensão do próprio
sistema jurídico, mas não apenas deste, como de todo o funcionamento da burocracia dos não-
indígenas e ainda dos impactos de não participar após ser formalmente citado.
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Além dos indígenas, outras partes, notadamente o oficial de justiça, e até certo ponto
os próprios magistrados, podem ter repetidas dificuldades em participar dos processos. Seja
pela dificuldade de identificar a comarca que deve ter a competência, seja por acabar por
reproduzir determinadas ações inúmeras vezes pois o sistema não está preparado para
determinados contextos, como a sobreposição de territórios indígenas sobre diferentes cidades,
estados ou mesmo países.
A limitada capacidade de literacia dificulta não apenas a compreensão do conteúdo
dos autos, como do mandado, mas também todo e qualquer tipo de comunicação ou registo
escrito que possa porventura ser necessário. É o caso, por exemplo quando é requerida a
manifestação por defesa por escrito.
Concluo este artigo refletindo que talvez ainda tenhamos um longo processo de revisão
que pode ser necessário para o nosso processo penal para atender determinadas condições
sociais. Registe-se que a imensa maioria destas situações ocorre de maneira idêntica para
comunidades quilombolas. E uma significativa parte destas dificuldades são também
perceptíveis em comunidades caiçaras, ciganas, quebradeiras de coco, entre muitas outras
populações tradicionais residentes em nosso país.
Não era o objetivo deste artigo dispor profundamente sobre o tema, ou extinguir todas
as possibilidades de discussão, mas unicamente explorar alguns casos que são mais visíveis e
que podem ser merecedores de atenção mais imediata, ou ainda que possuem alcance ou
frequência mais significativos.
Para concluir, registo que os poucos conhecimentos que foram incluídos neste artigo
referente a povos indígenas e que não foram acompanhados de informação bibliográfica ou
referência são oriundos de minha longa formação em antropologia, que foi iniciada ainda em
2011 e de informações que são obtidas ao longo do trabalho de campo que realizo com estas
populações desde 2016.
Registo que foi inclusive o contato com estas populações que me levou para o curso
de direito em primeiro lugar, e não imaginava como questões envolvendo o direito penal
poderiam ser tão recorrentes. Até então, em 2019 a minha única preocupação era com o que é
compreendido como direito constitucional.
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REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-lei nº 3.071, de 1 de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do
Brasil. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 5 de jan. 1916. Disponível em
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em 25 fev. 2023.
IBGE. Caderno temático 2016. População indígena. Atlas nacional digital do Brasil.
Disponível online em https://www.ibge.gov.br/apps/atlas_nacional/#/home. Acesso 18 mar.
2022.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. São Paulo: Gen-Atlas, 2017.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. A sociologia do Brasil indígena. Brasília: UNB, 1978.
RAMOS, Alcida Rita. The hyperreal indian. Série antropologia, v. 135, n. 1, p. 1-17, 1992.
RIBEIRO, Darcy. Brasil indígena no século XX. Culturas e línguas indígenas no Brasil. Rio
de Janeiro: CEPE, 1957. p. 5-48.
SCHMITZ, Stefan. Acesso à justiça: Estudo de caso que investiga a existência de barreiras
que limitam o acesso à justiça dos indígenas Xokleng Laklãnõ̃ no Fórum da Comarca de
Ibirama (Dissertação de mestrado profissional em direito). Florianópolis: PPGD/UFSC, 2018.
VIRGÍLIO, Jefferson. A tese do marco temporal: O caso da ACO 1100 e a Terra Indígena
Laklãnõ (Trabalho de conclusão de curso de graduação em direito) Florianópolis: CCJ/UFSC,
2022.
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Capítulo 2
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10534513
INTRODUÇÃO
O uso de dados pessoais pelo Estado no exercício de sua função persecutória tem sido
objeto de intensos debates, especialmente no que diz respeito à possibilidade de violação de
direitos fundamentais. Diante desse contexto, o problema que norteia esta pesquisa é: quais são
os impactos do uso de tecnologias de coleta e análise de dados pessoais pelo Estado na atividade
persecutória e como essas tecnologias podem violar direitos fundamentais? O objetivo geral
deste trabalho é caracterizar, expor e contextualizar o atual cenário do uso de dados pessoais
pelo Estado em sua atividade persecutória, levantando as tecnologias disponíveis e como elas
podem violar direitos fundamentais.
Para atingir esse objetivo, serão propostos os seguintes objetivos específicos: (i) traçar
um panorama atual do uso de novas tecnologias pelo Estado, (ii) colacionar casos
1
Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Catarina, Pós-Graduando da Pontifica Universidade Católica
de Minas Gerais. E-mail: wagnerenolopes@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-7190-4143.
2
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (2004), Pós-Doutor em Direito
pela UFSC (2014). Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina nas disciplinas de Filosofia do
Direito e Teoria do Direito II. Professor permanente no programa de Mestrado e Doutorado em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina, Líder do Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para uma
Sociedade Sustentável (CNPQ). E-mail: quintaveras@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1620-6017.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Na realidade atual, o uso de dados pessoais por entidades públicas e privadas tornou-
se uma consequência do extenso desenvolvimento tecnológico advindo da globalização. O
manuseio dessas informações decorreu de uma vigilância, eletrônica e em massa, e uma
manipulação de dados realizadas por grandes grupos privados e potências militares, processo
esse chamado de surveillance.
Faz-se necessário informar, porém, que essa expressão não pode ser traduzida
literalmente somente para o termo “vigilância”, visto que sua abrangência é multifatorial e
polissêmica (Menezes Neto; Morais; Bezerra, 2017; Menezes Neto, 2016). Conforme Menezes
Neto (2016, p. 159):
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Desse modo, é possível definir a surveillance como uma vigilância caracterizada por
ser sistematizada, normalizada e concentrada. A primeira característica está relacionada ao fato
de que é deliberadamente definida (e não somente aleatória) e que segue determinados
protocolos e objetivos.
O segundo aspecto diz respeito a sua normalização no cotidiano das sociedades
contemporâneas, uma vez que sua atuação é onipresente. Por último, sua ação se concentra
especificamente sobre os indivíduos selecionados, mesmo que os dados sejam adquiridos em
massa (Amaral; Dias, 2019).
Nessa conjuntura, a expressão surveillance passou a compreender o de dataveillance,
uma junção dos nomes data e surveillance, representando o monitoramento e análise de dados
e metadados de usuários considerados de risco, com base em modelos matemáticos.
Essa vigilância retrata indícios do controle social existente na contemporaneidade e,
por isso, é possível aplicar a ideia de biopolítica a essa expressão (Amaral; Dias, 2019; Menezes
Neto, 2016). De acordo com Menezes Neto (2016, p. 184-185) “[...] as informações geradas
pelo corpo — por exemplo, identificação biométrica — ou pelo seu movimento — como é o
caso da geolocalização de pessoas — são utilizadas na tentativa de domesticar as incertezas,
especialmente aquelas relacionadas à segurança do mundo em constante medo”.
Foucault (1998) explica que o biopoder pode ser praticado por qualquer organização,
seja ela pública ou privada, que tenha capacidade de realizar a coleta e análise de informações.
Com base nisso, há o surgimento de um novo tipo de biopolítica, capaz de monitorar os
indivíduos de forma eletrônica e através de algoritmos, sendo utilizado por grandes empresas
de domínio privado e pelo Estado.
Um exemplo é a ferramenta de gerenciamento automatizado do sistema prisional nos
Estados Unidos chamada Correctional Offender Management Profiling for Alternative
Sanctions (COMPAS), que é utilizada para avaliar o risco de reincidência dos indivíduos.
Conforme explica o Ministro Gilmar Mendes na ADI 6.649/DF:
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Esta realidade é maximizada quando se introduz a figura do Big Data, que se refere a
banco de dados digitais onde se é possível processar e armazenar dados de diversas naturezas,
inclusive os pessoais.
Este processamento resulta, conforme exemplo exposto acima do COMPAS, em uma
forma do poder estatal exercer uma forma de prevenção preditiva. Esta análise preditiva nada
mais é do que uma espécie de previsão do futuro, baseada na utilização de dados históricos para
se traçar tendências futuras. Esta concepção abre espaço para a análise referente a um fenômeno
especialmente novo nas relações sociais que, segundo Lyon (1994, p. 53):
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
até a casa dessas pessoas para ter uma conversa e alertá-los de que, caso não cessassem
as atividades suspeitas, logo poderiam ser presos (Quevedo, 2020, n.p.).
Como ninguém pode prever exatamente o que algum de nós - nem sequer nós mesmos
- fará no futuro, a incerteza do futuro mantém aberto o juízo de periculosidade até o
momento em que quem decide quem é o inimigo deixa de considerá-lo como tal. Com
isso, o grau de periculosidade do inimigo - e, portanto, da necessidade de contenção -
dependerá sempre do juízo subjetivo do individualizador, que não é outro senão o de
exercer o poder.
A existência dos álbuns de suspeitos faz indagar como essas imagens foram parar nas
delegacias. É recorrente que sua origem sejam redes sociais, flagrantes ou grupos em
aplicativos de comunicação utilizados por policiais. Sem saber o porquê, essa
arbitrariedade na definição de “suspeito” pode fazer com que uma acusação inverídica
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
fundamente decisão judicial condenatória. A exibição das fotos viola não apenas o
direito constitucional à intimidade (art. 5º, X), como também a presunção de inocência
(art. 5º, LVII) – já que, se está naquele catálogo, assume-se ser um criminoso, mesmo
sem provas. Essa violação tem viés racial evidente: segundo o relatório do
CONDEGE, 80% de erros em reconhecimentos fotográficos são de pessoas negras,
dado reiterado pela Coordenação de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado
do Rio de Janeiro, com 83% de pessoas negras apontadas como suspeitas sendo
inocentadas após reconhecimento fotográfico em sede policial.
Neste ponto, remete-se ao filme Minority Report, baseado no conto de Philip K. Dick,
onde o enredo concentra-se na existência de um departamento de polícia capaz de realizar a
previsão de comportamentos criminosos e agir antes do crime em potencial ocorrer.
O filme utiliza a figura de três videntes que possuem a capacidade de realizar essas
visões. No mundo atual, é possível a analogia com o uso de Big Data para realizar essa análise
preditiva.
Na realidade brasileira, baseado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum
Anuário de Segurança Pública, 2022) e no relatório do sistema penitenciário (Brasil, 2022c),
por exemplo, é possível a extração de dados (referentes à cor/raça, gênero, faixa etária,
escolaridade e faixa de renda) do perfil dos condenados e/ou investigados em ação penal.
Baseado nestes dados, é possível elaborar um registro histórico capaz de direcionar uma análise
preditiva capaz de prever qual grupo ou qual tipo de comportamento do indivíduo poderá gerar
uma desviante capaz de resultar em um desvio criminoso. Entretanto, é óbvio que essa previsão
assume conceitos explicitamente discriminatórios e racistas.
Em Londres, a polícia metropolitana utiliza uma base de dados, nos moldes da descrita
acima, totalmente discriminatória e racializada:
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
No entanto, o uso de polícia preditiva, com aplicação de Big Data, tem chamado a
atenção de políticos e corporações. Técnicas de prevenção situacional, que é a matriz
de aplicação destes modelos, como o PredPol, já existem de certa forma no Brasil, em
versões de teste, dentro do próprio modelo do Detecta, com experiência em outras
cidades paulistanas, como em outros estados, tal como na Bahia, e nas intervenções
da cidade do Rio de Janeiro, nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). As críticas
que recaem aos sistemas de prevenção situacional no Brasil são próximas das trazidas
por críticos dos modelos implantados por softwares de Inteligência Artificial nos
Estados Unidos.
No contexto deste artigo, é evidente que o tema em questão possui uma conexão direta
com o escopo desta pesquisa, já que aborda os perigos resultantes da ausência de
regulamentação ou compreensão adequada sobre a proteção de dados pessoais.
O atual cenário de falta de controle sobre o uso de tecnologias de coleta e análise de
dados pelo Estado e por órgãos privados pode resultar em práticas discriminatórias e, portanto,
violações claras de direitos fundamentais, o que reforça a importância de se refletir criticamente
sobre as implicações dessas práticas para a proteção dos direitos fundamentais em um Estado
Democrático de Direito.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Abre-se espaço para buscar decisões que envolvam a matéria estudada e como a nossa
estrutura jurídica julga o assunto, sendo perceptível as inúmeras violações sendo cometidas na
atual conjuntura.
Em conexão com o parágrafo anterior, cita-se o Agravo Regimental no Recurso em
Mandado de Segurança n. 68.119/RJ de relatoria do Ministro Jesuíno Rissato, julgado em 28
de março de 2022. No agravo, foi estabelecido que a quebra de sigilo de dados considerados
estáticos não pode atingir um número indeterminado de pessoas, pois viola o princípio da
proporcionalidade. Porém, neste ponto, há uma demonstração lógica de possibilidade de quebra
de sigilos estáticos, já delimitada pelo próprio Superior Tribunal de Justiça.
No mais, há a decisão do Superior Tribunal de Justiça, com a seguinte ementa:
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análise de dados pessoais pelo Estado na atividade persecutória. A partir desses casos, é possível
estabelecer os limites que são utilizados pela jurisprudência, bem como explorar a relação entre
o uso dessas tecnologias e a proteção de dados e intervenções nos direitos fundamentais do
investigado e de terceiros.
A empresa também alegou que a quebra de sigilo é uma medida de caráter excepcional,
justificada somente pela existência de indícios concretos de atividade considerada ilícita e que
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
possam ser corroborados pelas decisões judiciais. Porém, o STJ negou o recurso e manteve a
decisão de fornecimento de dados dos usuários (Valença, 2020; Josino, 2021).
Conforme expõe o relator, Ministro Rogério Schietti Cruz:
Entre os votos, apenas o Ministro Sebastião Reis Júnior divergiu. Segundo o Ministro,
tal decisão, ainda que não identifique inicialmente o indivíduo, busca o reconhecimento final.
Desse modo, ele não concordou com a determinação, visto que, em seu entendimento, não havia
justificativa suficiente para a apresentação das informações pedidas.
Assim, é possível perceber que o caso de Marielle e Anderson é um exemplo da
atuação à margem das garantias individuais, ainda presente no cenário judiciário brasileiro
quanto a essa situação, uma vez que essa medida ainda não está totalmente legalizada no
ordenamento jurídico (Valença, 2020).
É possível observar que essa infiltração digital é um importante aspecto para a coleta
de provas on-line, mas que limites precisam ser estabelecidos para torná-la legal. Faz-se
necessário uma adequação desse cenário, visto que, no empenho por encontrar provas, a
privacidade de muitos usuários é violada. Além disso, muitos indivíduos podem ser
investigados criminalmente sem justo motivo por causa de suas buscas on-line ou
geolocalização.
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[...] autorizou-se a quebra de sigilo de dados telemáticos para que fosse averiguada a
existência de conexões ativas de usuários que se encontravam em determinada
localidade, em local e intervalo de data delimitados, com determinação para que os
provedores individualizassem os "IMEIs" dos aparelhos sincronizados e fornecessem,
por conseguinte, os dados do usuário da conta de e-mail, incluindo, ainda, dados
cadastrais, relações de locais salvos no Google Maps e, por fim, histórico de
localização e deslocamento dos últimos 30 dias (RMS 51.133/SP). (2016, p.2).
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ausência de uma norma precisa impossibilitar a atuação do poder persecutório estatal, ainda
mais, quando se trata de intervenção em direito fundamental.
É verdade que, posteriormente, a decisão foi reconsiderada pela magistrada limitando
as informações originalmente requeridas à dados cadastrais, localizações salvas no Google
Maps e histórico de localização e deslocamentos nos últimos 30 dias (Gleizer, 2019).
Ainda assim, estas diligências foram suspensas posteriormente pelo TJSP, que
estabeleceu uma limitação geográfica ao pedido, e que as senhas de acesso aos serviços
utilizados só poderiam ser quebradas após a identificação e individualização dos alvos da
investigação (Gleizer, 2019).
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Desse modo, o Ministério Público, na figura dos seus promotores e objetivando dar
uma resposta aos anseios da população por uma condenação, exerce suas prerrogativas nos
limites de suas competências. Entretanto, tal situação não pode ensejar quebra de direitos dos
acusados. Conforme visto no presente caso, têm-se que o julgamento foi anulado em grau de
recurso pela 1° Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por onze
nulidades.
Porém o que importa ao presente tema diz respeito ao uso, pelo MPRS, do banco de
dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (Sistema Consultas Integradas)
para analisar a vida dos possíveis jurados e impugná-los baseados em elementos subjetivos.
Entendeu o TJRS que houve uma violação ao direito fundamental à proteção de dados
pessoais, conforme se retira trecho do Acórdão:
O caso se coaduna com o conteúdo exposto nos últimos capítulos, visto que realiza
uma síntese acerca do tema. Trata-se uma forma expressa de atuação do MPRS de utilização de
um sistema de Big Data (Consultas Integradas) para estigmatizar um grupo de pessoas – no
caso os jurados –, baseada em informações algorítmicas e, por meio disso, buscando a
condenação dos acusados.
Essa conjuntura violou não só as garantias relativas ao processo penal e a paridade de
armas, mas também o direito fundamental à proteção de dados pessoais dos jurados, assim como
expõe de forma expressa a possibilidade do uso de tecnologias de coleta de dados de forma a
realizar um controle biopolítico em busca de um resultado condenatório baseado em um
discurso de segurança pública e busca da verdade real.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste estudo, foi possível traçar um panorama atual do uso de novas
tecnologias pelo Estado na atividade persecutória, com destaque para as ferramentas de coleta
e análise de dados pessoais, que podem ser utilizadas de forma abusiva e sem observância dos
limites legais e constitucionais.
Por meio da análise de casos paradigmáticos da jurisprudência brasileira, foi possível
constatar a existência de situações em que o uso dessas tecnologias resultou em violações de
direitos fundamentais, tais como a privacidade, a intimidade e a presunção de inocência.
Ainda, no contexto sociológico, foi possível perceber o surgimento de uma nova
manifestação de controle biopolítico, em que o Estado utiliza tecnologias de coleta e análise de
dados pessoais como meio de controle social e de repressão de comportamentos considerados
indesejados. Essa nova forma de controle biopolítico, aliada ao discurso da segurança pública
eficiente, pode gerar conflitos com a proteção dos direitos fundamentais, uma vez que se utiliza
da violação desses direitos como meio de atingir a eficiência do controle social.
A análise realizada permitiu avaliar os impactos do uso de tecnologias de coleta e
análise de dados pessoais pelo Estado na atividade persecutória, indicando a necessidade de se
estabelecer limites claros para a utilização dessas ferramentas, de modo a garantir a proteção
dos direitos fundamentais dos indivíduos. Esses limites devem incluir a observância do
princípio da proporcionalidade, o respeito aos direitos à privacidade, à intimidade e à presunção
de inocência, bem como a necessidade de se estabelecer mecanismos de controle e fiscalização
dessas tecnologias.
Por fim, a pesquisa realizada permitiu concluir que a hipótese apresentada no início
deste estudo é válida e que o uso de tecnologias de coleta e análise de dados pessoais pelo
Estado na atividade persecutória pode levar à violação de direitos fundamentais.
Assim, torna-se necessário que o debate sobre o uso dessas tecnologias seja
aprofundado, permitindo a reflexão crítica sobre os limites e possibilidades dessas ferramentas
na atividade persecutória e a necessidade de se garantir a proteção dos direitos fundamentais
em um Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
CANAL CIÊNCIAS CRIMINAIS. O caso Boate Kiss foi um terrível erro do judiciário.
2021. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/o-caso-daboate-kiss-foi-um-
terrivel-erro-judiciario/. Acesso em: 10 mai. 2023.
FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: Teoria del direitto e della democrazia. Bari: Laterza,
2007.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
LYON, David. The Electronic Eye: The Rise of Surveillance Society. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1994. 270p.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
QUEVEDO, Jéssica Veleda. Polícia preditiva. In: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.);
QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico.
Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2020. Disponível em:
https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/policia-preditiva/54. Acesso em: 10 mai.
2023.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan,
2011.
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Capítulo 3
RACIONALIDADE GOVERNAMENTAL NA
IMPLEMENTAÇÃO DAS UNIDADES DE
POLÍCIA PACIFICADORA:
UPP, ou da razão pau de arara
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10534854
INTRODUÇÃO
1
Doutorando em Direito, Política e Sociedade, na linha de pesquisa de Historicismo, Conhecimento Crítico e
Subjetividade, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina
(PPGD/UFSC), bolsista CAPES desde 2020. Mestre em Direito, área de concentração em Teoria e História do
Direito, pelo mesmo programa e linha de pesquisa. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-1596-5929.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Portanto, estudar o conceito elencado é significativo, seja para meditar sobre suas
consequências políticas, seja para destacar o que isso manifesta da nossa atual conjuntura
político-jurídica. Ademais, se faz necessário pensar a UPP por meio deste viés, buscando
entender como essa política pública se inclui em um projeto de nação.
Tal esforço é promovido para interpretar os processos genocidas que se instalaram na
cidade do Rio de Janeiro, tendo como principais alvos as pessoas residentes das favelas cariocas
– sendo elas, em sua grande maioria, negros e pobres. E, a partir deste lugar, buscamos entender
as motivações estatais que levam as razões biopolíticas de tortura e morte dos corpos tidos
enquanto abjetos.
Para tanto, este trabalho pretende apresentar uma digressão dos ideais acerca do
conceito de razão governamental, demonstrando que tal noção pode ser vislumbrada como
apogeu do antigo conceito de razão de Estado. Ainda propõe demonstrar as investidas violentas
do governo com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora, expondo o que são tais
Unidades de Polícia Pacificadora através de seus resultados reais, entre outros aspectos.
E por fim, propõe-se realizar uma articulação em que se discute a relação entre a
racionalidade governamental e a instituição de um estado de exceção nas favelas cariocas,
posicionando as UPPs enquanto técnica governamental biopolítica. Tal estado de exceção, uma
vez instalado, permite que o Estado possa implementar políticas que ensejam o genocídio da
população negra que reside nesses territórios.
A partir do século XVII, vai-se começar a chamar de “polícia” o conjunto dos meios
pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
a boa ordem desse Estado. Em outras palavras, a polícia vai ser o cálculo e a técnica
que possibilitarão estabelecer uma relação móvel, mas apesar de tudo estável e
controlável, entre a ordem interna do Estado e o crescimento das suas forças
(Foucault, 2008b, p. 420-421).
A visagem desta relação entre ordem interna e crescimento das forças estatais serve
para garantir o esplendor do Estado, visto como uma constatação visível da ordem e da força
brilhante que se manifesta e irradia da estatalidade. Citando Von Justi, Foucault coloca a polícia
como “o conjunto das leis e regulamentos que dizem respeito ao interior de um Estado e
procuram consolidar e aumentar o poderio desse Estado, que procuram fazer um bom uso das
suas forças” (Foucault, 2008b, p. 422). Sendo assim, o esplendor se torna o meio e a motivação
para o objeto de fato da polícia, que será o bom uso das forças do Estado (Foucault, 2008b, p.
422).
A polícia também se configura enquanto aparato elementar de inteligibilidade, ao
incorporar a estatística como um dos seus atributos. A estatística serviu como um elemento
comum entre a polícia e o equilíbrio europeu.1 Necessário para se manter este último, para que
os Estados tivessem conhecimento de suas próprias forças e conhecer a força dos outros Estados
(Foucault, 2008b, p. 424).
Salutar é o papel da estatística nos cálculos de governabilidade preceituados pela
doutrina da Razão de Estado, pois é pela estatística que se inaugura um verdadeiro Estado de
polícia,2 em que o homem, e a garantia de seu virtuosismo, figura como elemento que garante
a boa qualidade do Estado.3 Será a estatística aquela que fornecerá as informações necessárias
1 A balança europeia, segundo Foucault, seria uma limitação da força dos Estados mais fortes ante aos mais
fracos, além de uma possibilidade de combinação dos mais fracos ante aos mais fortes e de uma equalização da
força dos mais fortes. Para uma explanação mais detalhada (Foucault, 2008b, p. 400-402).
2 Turquet de Mayerne, segundo Foucault, é quem dá corpo, pelo menos do ponto de vista teórico, a um Estado de
polícia, e disserta que arte de governar e exercer a polícia é a mesma coisa. De modo geral, Mayerne diz que que,
para ter um bom governo, necessita-se de quatro grandes ofícios e quatro grandes oficiais, chamados de Birôs de
Polícia: o Chanceler para cuidar da justiça, o Condestável para cuidar do exército, o Superintendente para cuidar
das finanças e o Conservador e reformador-geral da polícia, para manter o povo, segundo ele, “uma singular
prática da modéstia, caridade, lealdade, indústria e harmonia”. Dos quatro ofícios e oficiais, o último merece
destaque, posto que o reformador geral de justiça tem uma função nitidamente moral, mas também deve se
ocupar da maneira como as pessoas conduzem as suas riquezas, à sua maneira de trabalhar e de consumir,
configurando um controle não só da moralidade, mas também do trabalho. Ademais, estes birôs de polícia têm
por encarregamento de garantir que a profissionalização dos indivíduos integrantes do Estado. Para maiores
detalhes (Foucault, 2008b, p. 428-432).
3 Ter ‘o homem como verdadeiro sujeito’, e o homem como verdadeiro sujeito ‘qualquer que seja a coisa a que
se dedique’, na medida em que, precisamente, ele tem uma atividade e que essa atividade deve caracterizar sua
perfeição e possibilitar, por conseguinte a perfeição do Estado, e isso, creio, que é um dos elementos
fundamentais e mais característicos do que se passou a entender por 'polícia'. É isso que é visado pela polícia, a
atividade do homem, mas atividade do homem na medida em que tem uma relação com o Estado. Digamos que a
concepção tradicional, o que interessava o soberano, o que interessava o príncipe ou a república, era o que os
homens eram, eram por seu estatuto ou eram por suas virtudes, por suas qualidades intrínsecas. Era importante
que os homens fossem virtuosos, era importante que eles fossem obedientes, era importante que não fossem
preguiçosos, que fossem trabalhadores. A boa qualidade do Estado dependia da boa qualidade dos elementos do
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Concretamente, a polícia deverá ser o que? Pois bem, ela deverá adotar como
instrumento tudo o que for necessário e suficiente para que essa atividade do homem
se integre efetivamente ao Estado, as suas forças, ao desenvolvimento das forças do
Estado, e deverá fazer de maneira que o Estado possa, por sua vez, estimular,
determinar e orientar essa atividade de uma maneira que seja efetivamente útil ao
Estado. Numa palavra, trata-se da criação da utilidade estatal, a partir de e através da
atividade dos homens. Criação da utilidade pública a partir da ocupação, da atividade,
a partir do fazer dos homens.
437).
5 Neste caso, a “bondade da vida” é garantida pela religião. A “comodidade da vida” é garantida pela
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
da polícia dito anteriormente, a saber, o viver e o melhor viver (Foucault, 2008b, p. 434-437).
Contudo, um melhor viver a partir de um modo de vida ditado pela polícia, uma forma de vida
que deve ser vivida na cidade, pois será nela que o Estado conseguirá as forças para se fortalecer
e, consequentemente, garantir o seu esplendor.
Portanto, Foucault (2008b, p. 451) argumenta que a polícia foi pensada a partir da
cidade e para a cidade, visto que os problemas abordados pela instituição são tipicamente
urbanos, ou seja, só existem na cidade e porque existe uma cidade. É sobre os problemas de
coexistência que a polícia deve atuar, como a escassez de alimentos, a presença de mendigos e
a circulação de vagabundos. Não obstante, a polícia também se ocupa dos problemas que são
inerentes ao mercado, como a troca, a fabricação e a circulação de mercadorias. Sendo assim,
a polícia é um fenômeno urbano e mercantil, pois trata do controle de circulação tanto das
pessoas que se deslocam quanto das mercadorias que são comercializadas. De um modo mais
geral, a polícia é uma instituição de mercado.
A polícia é posterior à cidade à estrada, ao mercado e à rede viária que alimenta o
mercado, o que nos leva a entender que a instituição foi pensada para ensejar a urbanização do
território, fazendo com que ele fosse organizado como uma cidade, baseado no modelo de uma
cidade e tão perfeitamente quanto uma cidade (Foucault, 2008b, p. 452). Foucault coloca a
polícia como um fator importante para a existência das organizações urbanas:
Domat diz que “é pela polícia que foram feitas as cidades e os lugares em que os
homens se reúnem e se comunicam pelo uso das ruas, das praças públicas e [...] das
estradas”. No espírito de Domat, o vínculo entre polícia e cidade é tão forte que ele
diz que é só por ter havido uma polícia, isto é, porque se regulamentou a maneira
como os homens podiam e deviam, primeiro, se reunir e, segundo, se comunicar, no
senso lato do termo "comunicar", isto é, coabitar e intercambiar, coexistir e circular,
coabitar e falar, coabitar e vender e comprar, foi por ter havido uma polícia
regulamentando essa coabitação, essa circulação e esse intercâmbio que as cidades
puderam existir. A polícia como condição de existência da urbanidade (Foucault,
2008b, p. 453).
tranquilidade, o cuidado com os edifícios, as ciências e as artes liberais o comércio, as manufaturas e as artes
mecânicas, os domésticos e os operários. O teatro e os jogos representam os “aprazimentos da vida” (Foucault,
2008b, p. 434-437).
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
século XVII. Porém, essa inserção do ser humano na representação mercadológica não é um
resultado isolado, mas sim uma ligação de elementos fundamentais, tais como:
[…] a formação de uma arte de governar, que seria ajustada ao princípio da razão de
Estado; uma política de competição na forma do equilíbrio europeu; a busca de uma
tecnologia de crescimento das forças estatais por meio de uma polícia que teria
essencialmente por finalidade a organização das relações entre uma população e uma
produção de mercadorias; e, por fim, a emergência da cidade-mercado, com todos os
problemas de coabitação, de circulação, como problemas do âmbito da vigilância de
um bom governo de acordo com os princípios da razão de Estado (Foucault, 2008b,
p. 455).
6Fazer da cidade uma espécie de quase convento e do reino uma espécie de quase cidade – é essa a espécie de
grande sonho disciplinar que se encontra por trás da polícia. Comércio, cidade, regulamentação, disciplina –
creio serem esses os elementos maís característicos da prática de polícia, tal corno era entendida nesse século
XVII e [na] primeira metade do século XVIII. Eis o que eu queria dizer a última vez, se tivesse tido tempo para
caracterizar esse grande projeto da polícia (Foucault, 2008b, p. 456).
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
um regimento que tenha como partida, e que tenha como função, o curso das próprias coisas
(Foucault, 2008b, p. 462-463).
A terceira tese encontrada nos economistas é acerca da concepção de população. Para
os economistas, a população não se estabelece como um bem em si, algo que pode ser
estabelecido autoritariamente e mediante poder regulatório, mas sim uma constante que será
regulamentada de forma espontânea, variando conforme os recursos e o “trabalho possível e
suficiente para sustentar os preços e, de modo geral, a economia” (Foucault, 2008b, p. 464).
Sendo assim, o número que compõe a população será ajustado não em função do regulamento
policial, mas sim pelas situações suscitadas, não sendo, portanto, um dado modificado
incessantemente (Foucault, 2008b, p. 464-465).
A quarta tese dos economistas trará a questão da liberdade de comércio entre os países.
Os economistas avençam para uma lógica mercantil onde os particulares, concorrendo entre si,
possam competir pelo melhor preço e tenham como objetivo o lucro máximo; desta conduta é
que o Estado e a população usufruam de preços justos, ensejando, consequentemente, uma
situação econômica mais favorável possível. Desse modo, a felicidade e o bem de tudo e de
todos não depende mais da intervenção estatal que regula, sob forma de polícia, o espaço, o
território e a população, mas sim pelo comportamento de cada um, com o Estado deixando os
mecanismos de interesses particulares agirem (Foucault, 2008b, p. 465-466).
Com essas quatro teses, fundamentalmente, se inaugura uma quebra de racionalidade
estatal. Foucault apontará para essa mudança conceitual de Estado, dizendo que:
O Estado não é, portanto, o princípio do bem de cada um. Não se trata, como era o
caso da polícia – lembrem-se do que eu lhes dizia da última vez –, de fazer de tal
modo que o melhor viver de cada um seja utilizado pelo Estado e retransmitido em
seguida como felicidade da totalidade ou bem-estar da totalidade. Trata-se agora de
fazer de tal modo que o Estado não intervenha senão para regular, ou antes, para deixar
o melhor-estar de cada um, o interesse de cada um se regular de maneira que possa de
fato servir a todos. O Estado como regulador dos interesses, e não mais como princípio
ao mesmo tempo transcendente e sintético da felicidade de cada um, a ser
transformada em felicidade de todos (Foucault, 2008b, 466).
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
criação de uma nova categoria de conhecimento científico dos processos que conectam as
variações de riquezas e as da população em três eixos, a saber: produção, circulação e consumo
– a economia política; 3) o surgimento, sob novas formas, do problema da população, sendo
que a coletividade de súditos distinguida pela polícia é substituída pela população como
conjunto de fenômenos naturais que devem ser gerenciados a partir da lei da mecânica dos
interesses que vai caracterizá-la e; 4) a limitação da governamentalidade estatal ante os
processos naturais que regem a população e a economia, não havendo justificativa e interesse
sob os sistemas regulamentares ligadas à polícia.7
A novidade que esta nova razão governamental traz é a inscrição da liberdade como
elemento indispensável à própria governamentalidade, sendo imperativo “a integração das
liberdades e dos limites próprios a essa liberdade no interior do campo da prática
governamental” (Foucault, 2008b, p. 475) como critérios de aferimento de um saber ou não
saber governar.
Com este panorama, a polícia, como poder super-regulamentar é desarticulada.8 A
partir dessa desarticulação, a nova governamentalidade se referirá ao domínio de naturalidade
7 Para uma descrição mais detalhadas dos pontos levantados, ver Foucault (2008b, p. 468-474). Há de se fazer
um destaque ao último ponto arguido pelo autor: A limitação governamental implicada pela nova racionalidade
governamental não anula o governo, mas coloca esse poder sob uma outra perspectiva funcional, com o objetivo
de garantir que os fenômenos naturais vão ter a segurança necessária para serem garantidas. São nesses termos
que Foucault leciona: “No interior do campo assim delimitado, vai aparecer todo um domínio de intervenções,
de intervenções possíveis, de intervenções necessárias, mas que não terão necessariamente, que não terão de um
modo geral e que muitas vezes não terão em absoluto a forma da intervenção regulamentar. Vai ser preciso
manipular, vai ser preciso suscitar, vai ser preciso facilitar, vai ser preciso deixar fazer, vai ser preciso, em outras
palavras, gerir e não mais regulamentar. Essa gestão terá essencialmente por objetivo, não tanto impedir as
coisas, mas fazer de modo que as regulações necessárias e naturais atuem, ou também fazer regulações que
possibilitem as regulações naturais. Vai ser preciso portanto enquadrar os fenômenos naturais de tal modo que
eles não se desviem ou que uma intervenção desastrada, arbitrária, cega, não os faça desviar. Ou seja, vai ser
preciso instituir mecanismos de segurança. Tendo os mecanismos de segurança ou a intervenção, digamos, do
Estado essencialmente corno função garantir a segurança desses fenômenos naturais que são os processos
econômicos ou os processos intrínsecos a população, é isso que vai ser o objetivo fundamental da
governamentalidade” (Foucault, 2008b, p. 474).
8 Vocês estão vendo corno se desarticula essa grande polícia super-regulamentar, digamos assim, de que eu lhes
havia falado. Essa regulamentação do território e dos súditos que ainda caracterizava a polícia do século XVII,
tudo isso deve ser evidentemente questionado, e vamos ter agora um sistema de certo modo duplo. De um lado,
vamos ter toda uma série de mecanismos que são do domínio da economia, que são do domínio da gestão da
população e que terão justamente por função fazer crescer as forças do Estado e, de outro lado, certo aparelho ou
certo número de instrumentos que vão garantir que a desordem, as irregularidades, os ilegalismos, as
delinquências sejam impedidas ou reprimidas. Ou seja, o que era o objeto da polícia, no sentido clássico do
termo, no sentido dos séculos XVII-XVIII – fazer a forca do Estado crescer respeitando a ordem geral -, esse
projeto unitário vai se desarticular, ou antes, vai tomar corpo agora em instituições ou em mecanismos
diferentes. De um lado, teremos os grandes mecanismos de incentivo-regulação dos fenômenos: vai ser a
economia, vai ser a gestão da população etc. De outro, teremos, com funções simplesmente negativas, a
instituição da polícia no sentido moderno do termo, que será simplesmente o instrumento pelo qual se impedirá
que certo número de desordens se produza. Crescimento dentro da ordem, e todas as funções positivas vão ser
asseguradas por toda uma série de instituições, de aparelhos, de mecanismos etc., e a eliminação da desordem –
será essa a função da polícia. Com isso, a noção de polícia se altera inteiramente, se marginaliza e adquire o
sentido puramente negativo que conhecemos (Foucault, 2008b, p. 475-476).
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
9Vale ressaltar que se entende a biopolítica como a gerência e a administração da vida por parte do Estado, em
que a vida se inscreve e toma a centralidade dos cálculos de poder.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
10 A relação das UPPs com o mercado é mais extensa e profunda. Mediante uma heterodoxa parceria público-
privada, um pool formado por Coca-Cola, Souza Cruz, Light, Metrô, Bradesco e outras empresas comprometeu-
se a criar um fundo destinado às UPPs como reconhecimento às garantias e salvaguardas que estas forneceram e
fornecerão aos grandes investimentos. Entusiasmado, o secretário de Segurança sublinhou a importância da
parceria para dar ‘velocidade ao projeto’ e sentenciou: ‘Não podemos ficar restritos a determinados
impedimentos que a legislação [impõe], mas principalmente a lei de licitação. Esse fundo vai suprir esse
problema’ O empresário Eike Batista, que durante o pronunciamento chamou o secretário Beltrame de o ‘grande
general’, anunciou a doação de R$20 milhões anuais até 2014, no mínimo. Além desse pool, a Confederação
Brasileira de Futebol (CBF) também prometeu doar recursos ao fundo. A Bradesco Seguros, a Coca-Cola e a
Souza Cruz comprometeram-se, respectivamente, com R$ 2 milhões, R$ 900 mil e R$ 400 mil. Contudo, a
parceria não se restringe ä criação de um fundo: na Ladeira dos Tabajaras, a Souza Cruz e a Coca-Cola estão
construindo a sede de uma UPP. A fabricante de cigarros também doou um terreno em Manguinhos para a
construção da Cidade da Polícia, local que concentrará todas as sedes de delegacias especializadas do Rio de
Janeiro. A CBF, por seu turno, está participando da construção da UPP na Cidade de Deus. No fim de outubro de
2011, Eike Batista reforçou a intenção de comprar a refinaria de Manguinhos (que, além da localização
estratégicas, obteve recentemente licenciamento ambiental), mas condicionou a compra à instalação de uma UPP
na região (Brito et al., 2013, pp. 105-106).
11 O Consulado Geral dos EUA no Rio de Janeiro, em parceria com a UPP, Secretaria Municipal de Educação do
Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Segurança, Instituto Brasil-Estados Unidos (IBEU), e a Câmara de
Comércio Americana (Amcham Rio), é responsável pela implantação de um grande programa que visa o ensino
da língua inglesa nas comunidades pacificadas, o chamado “UP with English”. O objetivo é capacitar
trabalhadores para grandes eventos esportivos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas de 2016. Os professores
do IBEU – centro bi-nacional reconhecido pela Embaixada Americana – vão até as comunidades para ensinar
inglês (Cabeleira, 2019).
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
entre o processo de pacificação que vigora sob o comando das UPPs com a “doutrina da
contrainsurgência” empregada no Iraque e no Afeganistão. Brito et al. (2013, pp. 219-220)
reproduziram o conteúdo do telegrama, a seguir:
maioria negros e residentes nestes lugares, e não os que desempenham a atividade mediante uso de helicópteros
e com envolvimento de políticos atuantes na cena política nacional.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
pretendem “derrubar” o poder estatal e estabelecer um novo Estado. Não obstante o confronto
armado com a autoridade estatal ter o estrito intuito de viabilizar as finalidades econômicas do
comércio de substâncias ilícitas (Brito et al., 2013, p. 220), o objetivo da ocupação militar não
é apenas o controle dos “insurgentes”, mas uma meta muito mais ampla.
Brito et al. (2013, p. 220-221) elucida qual é a meta a ser alcançada por estas
“operações contrainsurgentes”:
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
dormitórios, no interior da comunidade, pode custar mais de R$ 60 mil (sessenta mil reais),
aprofundando as diferenças de renda e alçando a um novo patamar o antigo e permanente
histórico problema da habitação popular (Brito et al., 2013, p. 208-209). Vale salientar que
estes dados são do ano de 2010; os valores atuais podem já ter sofrido reajustes que elevaram,
ainda mais, os preços dos imóveis nas comunidades ocupadas.
Neste processo de valorização imobiliária decorrente da pacificação repressiva,
pessoas da classe média e estrangeiros têm adquirido imóveis nas favelas da Zona Sul e da
Grande Tijuca, principalmente as que se encontram perto dos pontos turísticos da cidade do Rio
de Janeiro. Em contrapartida, a titulação fundiária e a regularização de serviços como água, luz
e TV a cabo pressionam o custo de vida, principalmente nas favelas situadas na Zona Sul. Sendo
assim, o próprio governo estadual já admite a possibilidade de ocorrer “remoções brancas” nas
favelas pacificadas o que representa, mais uma vez, a criação de um problema de habitação
popular que a própria política pacificadora pretendia resolver.
Percebe-se, também, a mudança do perfil humano dos moradores das favelas em
questão, uma vez que o aumento do custo de vida nas comunidades “pacificadas” está fazendo
com os seus moradores abandonem a comunidade cedendo, assim, espaço para detentores de
capital que veem a favela como um excelente negócio; “uma espécie de substituição de classe
de moradores” está, portanto, sendo operacionalizada (Brito et al., 2013, p. 208-209).14
O conluio entre policiais e operadores do tráfico de drogas na favela é outro tópico
crítico. Em entrevista concedida ao repórter Marcelo Pellegrini – da Revista Carta Capital –
Leonardo Souza, integrante do Coletivo Ocupa Alemão, critica as unidades pacificadoras,
argumentando que a polícia divide o espaço com os traficantes (no Complexo do Alemão).
A ocupação produz, portanto, apenas uma falsa sensação de segurança para a classe
média carioca. Ademais, esta divisão de espaço entre o poder coercitivo estatal e os varejistas
ilícitos originou um cenário paradoxal, conforme o mesmo Leonardo Souza explana: “Antes da
UPP, éramos obrigados a responder ao traficante. Hoje, se algo acontece, não posso chamar a
polícia porque o traficante vai ver. Também não posso chamar o traficante porque a polícia me
vigia. Não temos a quem reclamar”. Ou seja, a situação de abandono da população residente é
inequívoca, restando para ela apenas a vigilância constante e o medo de punição. Não é por
acaso que a matéria tem por título “Espremido entre dois senhores” (Pellegrini, 2015).15
14 Acerca da pujança do mercado imobiliário das favelas, bem como o que as melhorias proporcionadas por
programas como Favela-Bairro têm a ver com esse movimento mercadológico (BRITO et al., 2013, p. 196-198).
15 Salienta-se que a reportagem foi publicada originalmente na edição impressa n. 858 e trazia o título
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
É importante frisar que esta situação paradoxal foi patrocinada pela incursão
securitária estatal. A matéria acima referida relata a expulsão, com o advento da UPP, da facção
dominante, o Comando Vermelho que foi substituído por duas outras facções: os Amigos dos
Amigos (ADA) e o Terceiro Comando. Portanto, a polícia escolheu para atuar na comunidade
as duas facções, pois ambas atuam livremente nos territórios ocupados. Além disso, a divisão
do complexo entre duas facções criou uma situação absurda de restrição da liberdade de
locomoção, visto que, com o Complexo dividido, muitos moradores são impedidos de visitar
parentes ou transitar em áreas rivais (Pellegrini, 2015).
Não obstante os perigos trazidos à população pela entrada das UPPs no cotidiano das
favelas, a inconstitucionalidade das ocupações também deve ser analisada. Há de se ressaltar
que houve um esforço do Poder Executivo, na figura do Ministério da Defesa, de conferir
legitimidade às atividades policiais exercidas pelo Exército no Complexo do Alemão, visto que
fora decretada a Diretriz Ministerial nº 9/2014, a qual autorizou a entrada das Forças Armadas
no Complexo do Alemão alicerçada na Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Entretanto, como
já descrito, o estado de sítio não foi declarado para justificar o emprego das Forças Armadas na
ocupação das favelas do Complexo da Maré.
Nilo Batista, em entrevista concedida ao Jornal A Nova Democracia, classifica como
inconstitucional tanto a iniciativa da ocupação do Complexo do Alemão como a implementação
das UPPs, uma vez que as restrições realizadas, como ao direito de ir e vir, por exemplo, só
poderiam ser feitas se fosse decretado estado de defesa ou estado de sítio. Se não fosse pelos
interesses comerciais e propagandísticos, continua Batista, a iniciativa governamental já teria
fracassado, posto que os abusos e os vilipêndios aos direitos são evidentes. No entanto, tal
política é levada a frente por conta do apoio midiático, com verve fascista, na esperança de
auferir vultuosos lucros com os megaeventos sediados pela cidade do Rio de Janeiro (Batista,
2011).
Tal apontamento feito pelo professor Nilo Batista é pertinente, já que o artigo 144, §5º,
da Constituição Federal (CF) discrimina os órgãos que devem garantir a dita segurança
pública.16 À primeira vista, as Forças Armadas não deveriam atuar no contexto civil, dado que
são as polícias que devem cumprir a tarefa constitucional de salvaguarda da segurança nacional.
A utilização das Forças Armadas só seria justificável em caso de perigo iminente de ruptura da
unidade estatal e na garantia da lei e da ordem. O perigo que justificaria o emprego das Forças
16
Art. 144, §5º, da CF. Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos
corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de
defesa civil.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Armadas nas ocupações das favelas e, de modo indireto, permitiria a militarização da polícia
carioca, foi mencionado apenas de forma superficial pelo discurso oficial. Isso não quer dizer
que se esteja virando as costas para os problemas estruturais vividos pela população que reside
nas favelas, nem uma amenização da violência sofrida pelo tráfico varejista de drogas, mas
chamar a atenção para a conveniência de “declarar” uma guerra contra as drogas para
procedimentalizar ocupações em territórios “problemáticos”, assim como controlar a população
que nele reside e desenvolve suas atividades, absorvendo estas pessoas aos ditames ideológicos
que o mercado expressa, ou então, quando elas não são eliminadas pela própria estatalidade
(Brito et al., 2013, p. 223-224).
Esse verdadeiro paradigma de exceção proporcionou inúmeros abusos de autoridade
feitos durante a ocupação. Não são novidades as acusações de abuso de autoridade feita por
policiais do destacamento de pacificação denunciadas pelos moradores das favelas ocupadas
(Brito et al., 2013, pp. 239-271). A Utilização de mandados de segurança coletivos foi
autorizada pelo poder público e empregada de forma ostensiva nas ocupações das Forças
Armadas, nas UPPs e nas operações conjuntas, permitindo a averiguação de qualquer casa ou
estabelecimento comercial sem aviso prévio por razões de segurança (Soares, 2014). As mortes
por intervenção policial, registradas sob a forma de autos de resistência17 também figuram como
expediente excessivo que contribui para o aumento da letalidade policial.
A face mais dantesca dessa ocupação se mostra nas mortes causadas pelos aparatos de
segurança do Estado. A Anistia Internacional, em agosto de 2015, publicou um relatório
chamado “Você matou meu filho: homicídios cometidos pela polícia militar do Rio de Janeiro”,
em que expõe dados assustadores: entre 2005 e 2014, 8.466 pessoas foram mortas em
decorrência da intervenção policial no estado do Rio de Janeiro, sendo 5.132 mortes somente
na capital. A letalidade policial, apenas no ano de 2014, matou 580 pessoas, com maioria das
execuções sumárias18 cometidas nas zonas mais afastadas da cidade, tais como Bangú e Irajá
(Anistia Internacional, 2015, p. 33). O perfil dos sujeitos mortos também é revelador: 99,5%
dos indivíduos assassinados são homens, 79% negros e 75% jovens.19 A letalidade policial,
17
Autos de resistência são “registros administrativos de ocorrência realizados pela Polícia Civil, que faz uma
classificação prévia do homicídio praticado por policiais, associando-o a uma excludente de ilicitude: legítima
defesa do policial” (Anistia Internacional, 2015, p. 28).
18 Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), execuções extrajudiciais são
caracterizadas por uma privação deliberada e ilegal da vida por parte de agentes do Estado, geralmente agindo
sob ordens ou, pelo menos, com o consentimento ou aquiescência de autoridades. Portanto, as execuções
extrajudiciais são ações ilícitas cometidas por aqueles que, precisamente, estão investidos do poder
originalmente concebido para proteger e garantir a segurança e a vida das pessoas (Anistia Internacional, 2015,
p. 23).
19 Estes dados foram levantados a partir dos homicídios cometidos pela intervenção policial nos anos de 2010 a
2013, totalizando 1.275 mortes. Ou seja, não abrange a totalidade dos assassinatos expostos acima. Contudo,
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
pode-se considerar esses dados como uma amostra da realidade geral, de modo que não prejudica a análise feita
neste trabalho.
20 Na área de abrangência das UPPs, estão contidas 196 comunidades, que possuem cerca de 600 mil habitantes.
Sua implantação contribuiu para a redução de determinados índices de criminalidade em áreas específicas da
cidade, como o número de homicídios – inclusive os homicídios decorrentes de intervenção policial e o número
de policiais mortos em serviço. Houve 20 mortes decorrentes de intervenção policial em áreas de UPP em 2014,
o que equivale a uma redução de 85%, se comparado ao número registrado em 2008 (136 vítimas)” (Anistia
Internacional, 2015, p. 26).
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
ideológica de quem integra a cidade em seus espaços formais,21 assim como o controle das
populações que residem nos territórios ocupados.
Tanto a “guerra às drogas” quanto a “guerra ao terrorismo”, quando eclodem, não são
necessariamente para serem vencidas, mas, sim, para serem “tautologicamente executadas”
(Brito et al., 2013, p. 224). Os objetivos dessa verdadeira efetivação de uma zona de guerra
atendam interesses que não estão apenas no Estado, mas também em outros elementos que
merecem ser analisados:
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
É nesta esteira que devemos entender como se produz a exceção que enseja o controle
biopolítico dos que vivem nas favelas cariocas. Entendendo o que acontece na cidade do Rio
de Janeiro, pode-se ter uma perspectiva da forma que a exceção é instaurada nos outros Estados
da Federação, posto que “há mais de três décadas que a cidade do Rio de Janeiro deixou de ser
a ‘velha caixa de ressonância nacional’, em que se jogavam lances decisivos da política do país,
e tornou-se um implacável laboratório de gestão da barbárie” (Brito et al., 2013, p.12-13).
[...] a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa
multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados,
treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se
instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem
em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada
por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o
nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. Logo, depois de uma primeira tomada
de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo de individualização, temos uma
segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante mas que é
massificante [...], que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem-
espécie. Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma
anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma “biopolítica” da
espécie humana (Foucault, 2005, p. 289).
A biopolítica tem por objeto de prática um novo corpo, a população, lidando com este
como sendo um problema político, científico, biológico e de poder. A biopolítica, segundo
Foucault, “vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população
considerada em sua duração” (Foucault, 2005, p. 293), e a partir disso, vai estabelecer
mecanismos que auxiliarão nas intervenções que o biopoder soberano executará na população
governada, como as estatísticas, medições globais, entre outros (Foucault, 2005, p. 293).
Esses mecanismos têm por função gerir a população para que esta contribua na geração
de riquezas à nação e, por consequência, culmine na construção da sua grandiosidade, conforme
já discutido no primeiro capítulo deste trabalho. Nessa perspectiva, a soberania, que antes fazia
morrer e deixava viver, vai começar a governar a população através da regulamentação, do
poder contínuo e científico, que consiste em fazer viver e deixar morrer (Foucault, 2005, p.
294).
O poder, ou melhor, o biopoder, assume um caráter positivo, no sentido de que as
práticas governamentais emanadas pelo Estado começam a secundarizar a morte e priorizar a
vida, no intuito de controlar os incidentes, prolongar a existência e prever os perigos internos
que são intrínsecos à convivência coletiva (Flauzina, 2008, p. 110). Nesta lógica, Foucault
(2005, p. 297) explica que:
Temos, portanto, desde o final do século XVIII (ou em todo caso desde o fim do século
XVIII), duas tecnologias de poder que são introduzidas com certa defasagem
cronológica e são sobrepostas. Uma técnica que é, pois disciplinar: é centrada no
corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forcas que é
preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma tecnologia
que, por sua vez, é centrada não no corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os
efeitos de massa próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos
fortuitos que podem ocorrer em uma massa viva; uma tecnologia que procura
controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em
compensar os seus efeitos. É uma tecnologia que visa, portanto, não ao treinamento
individual, mas pelo equilíbrio global, algo como uma homeostase: a segurança do
conjunto em relação aos perigos internos.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
22Cumpre salientar que a normalização pode ser entendida como função de polícia, dada as atribuições que a
instituição possui atualmente, bem como desempenhou quando o termo “polícia” havia outra conotação
(Foucault, 2005, p. 302).
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
É esta estrutura de bando que devemos aprender a reconhecer nas relações políticas e
nos espaços públicos em que ainda vivemos. Mais íntimo que toda interioridade e
mais externo que toda a estraneidade é, na cidade, o banimento da vida sacra. Ela é
o nómos soberano que condiciona todas as outras normas, a espacialização originária
que torna possível e governa toda localização e toda territorialização. E se, na
modernidade, a vida se coloca sempre mais claramente no centro da política estatal
(que se tornou, nos termos de Foucault, biopolítica), se, no nosso tempo, em um
sentido particular mais realíssimo, todos os cidadãos apresentam-se virtualmente
como homines sacri, isto somente é possível porque a relação de bando constituía
desde a origem a estrutura própria do poder soberano.
Desta feita, as vidas dos que moram nas favelas cariocas estão desde sempre dispostas
23A violência soberana não é, na verdade, fundada sobre um pacto, mas sobre a inclusão exclusiva da vida nua
no Estado. E, como o referente primeiro e imediato do poder soberano é, neste sentido, aquela vida matável e
insacrificável que tem no homo sacer o seu paradigma [...] (Agamben, 2004, p. 113).
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
diante do Estado em relação de abandono, o que os tornam concretamente homines sacri. Todos
os dados referentes à população residente das favelas, composta, nunca é demais de lembrar,
majoritariamente por negros, comprovam que a vulnerabilidade a que este extrato populacional
está exposto os situam em uma condição de precariedade e exploração que os expõe à morte
das mais variadas formas.
Essa exposição se faz presente sob o patrocínio do Estado, seja nas mortes que o seu
aparato de segurança executa, seja na sua ausência em cumprir com o dever de ofertar serviços
essenciais para todas(os), ou na promoção de políticas públicas que teoricamente tinham um
caráter de ensejar a emancipação cidadã das camadas populacionais que sempre foram
esquecidas pelo poder público, mas que na realidade se revelaram o mais do mesmo vigilante
e controlador das vidas residentes dos territórios ocupados, como é o caso das UPPs.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dos primeiros argumentos que Koselleck demonstra em sua obra Crítica e crise é
que “de um ponto de vista histórico, a atual crise mundial resulta da história européia[sic]. A
história européia[sic] expandiu-se em história mundial e cumpriu-se nela, ao fazer com que o
mundo inteiro ingressasse em um estado de crise permanente” (Koselleck, 2007, p. 9). O Brasil
não passa ilesa a este processo. Ao contrário, pois desde a vinda dos europeus – isto é, desde a
colonização – que o Estado brasileiro edifica suas bases e opera mediante a lógica herdada dos
colonizadores.
A suscitação de crises por parte do Estado buscando operar sua governança sobre os
corpos e os territórios onde habitam é apenas uma das faces que a colonização europeia nos
legou. Visto que, desde o “descobrimento” do Brasil, o controle, exploração e extermínio dos
corpos não-brancos foram, foi e será o assento das práticas de governo deste país. A antiga
razão de Estado – cabe salientar, nascida na Europa – mostra que, no objetivo de dotar força à
estatalidade e protegê-la, lançou mão de expedientes mortíferos para atingir tais objetivos.
Desse modo, nesta percepção de que nada mudou, no que diz respeito à razão
governamental, mas apenas se aprimorou ao longo da história, que se colocam os desafios para
lutar contra esse contexto de vidas sitiadas e mortes anunciadas. Este trabalho pretende ser uma
denúncia acerca de tal biopolítica que está em execução na cidade do Rio de Janeiro, e que,
mais uma vez, serve de modelo para ser executado pelo Brasil afora. A tomada de consciência
crítica do contexto no qual estamos inseridos é um primeiro passo na direção de criar estratégias
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
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infindavel-como-instrumento-de-poder-uma-conversa-com-giorgio-agamben/. Acesso em: 25
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Horizonte: Editora UFMG, 2004.
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BRITO, Felipe; OLIVEIRA, Pedro Rocha (orgs.). Até o Último Homem. 1. ed. São Paulo:
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62
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FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o sistema penal e o projeto
genocida do Estado Brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
MARTINS, Felipe. Promotor diz que segurança pública no Rio de Janeiro é um problema
político. O dia. 2016. Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2016-06-
24/promotor-diz-que-seguranca-publica-no-rio-de-janeiro-e-um-problema-politico.html.
Acesso em: 24 jun. 2023.
PELLEGRINI, Marcelo. “UPP não acabou com o tráfico, só trouxe falsa sensação de
segurança.” Carta Capital. 2015. Disponível em
http://www.cartacapital.com.br/revista/858/espremidos-entre-dois-senhores-6954.html.
Acesso em: 20 jun. 2023.
63
Capítulo 4
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10534941
INTRODUÇÃO
1
Bacharela em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG, Pós-Graduanda em Direito Penal
e Processo Penal; Investigação Criminal e Legislação Penal; Investigação Forense e Perícia Criminal pela
FACUMINAS. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-7224-5215.
2
Professor do curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, Câmpus do
Pantanal - CPAN, Cidade de Corumbá/MS, Doutor em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina,
bolsista CAPES (2022/2023), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019),
bolsista CAPES durante o período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal
(2017-2018), pesquisador vinculado ao projeto de pesquisa Cárcere e Fronteira. E-mail:
antonio.amorim@ufms.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1464-0319.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
A partir de uma análise breve do sistema tradicional de justiça, é possível analisar que
as partes, vítima e ofensor, são tratados de forma processual no curso do processo, sem que as
demais necessidades sejam atendidas. Em outras palavras, as necessidades psíquicas e
emocionais são negligenciadas, de forma que o bem jurídico ali tutelado, é o tipo penal violado.
As partes, são tratadas como provas processuais, de forma que o Estado possa, a partir disso,
aplicar a sanção.
Dessa forma, a vítima é vista como mera prova no processo, afinal, teve o seu bem
lesionado, que gerou o processo penal. Por outro lado, o ofensor é visto como alguém que
deverá suportar todos os males resultantes da pena imposta, de uma forma que não almeja a
ressocialização ou um atendimento mais humanitário. A partir dessa tratativa, ao se ignorar que
os sujeitos processuais são seres humanos, dotados de sentimentos e opiniões, ignora-se
também a dignidade da pessoa humana, algo de extrema relevância constitucional, que muitas
vezes, porém, não é respeitado.
Ao longo da história, esse preceito foi tratado de diferentes formas, conforme o
momento histórico abordado. Na antiguidade clássica, por exemplo, nem todos os homens
possuíam dignidade. Isso porque, ela estava interligada com outras condições sociais, como
status, emprego, escolaridade etc. Contudo, foi no período do Renascimento que o conceito que
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Assim, sua dignidade racional está relacionada com a capacidade de criar e obedecer
a leis que irão reger a sociedade, de forma a se tornar parte do meio e não apenas um sujeito
dele.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
o que acaba acarretando uma maior estigmatização do indivíduo. Sua tutela, gira em torno da
proteção aos bens jurídicos, que protege a sociedade à medida que pune o infrator.
Assim, ocorre a aplicação de penas ineficazes e desproporcionais, em
estabelecimentos prisionais que muitas vezes violam os direitos da pessoa humana, que muitas
vezes punem aqueles mais vulneráveis, sendo, portanto, injusto. Ademais, vítima e infrator não
recebem amparo e a paz social é estabelecida sobre um cenário de tensão.
Nesse sentido, o modelo restaurativo aborda o crime e suas consequências, focando
em restaurar a relação entre as partes, por intermédio da reparação do trauma moral e
emocional, que pode ser feito através de um pedido de desculpas, pela reparação do dano e/ou
serviços à comunidade, que trabalham também na inclusão e restauração em âmbito social.
Dessa forma, tutela a responsabilização do infrator, de forma espontânea, visando os
princípios da razoabilidade e proporcionalidade nas obrigações uma vez assumidas no acordo,
que resulta na reintegração do infrator e vítima, contribuindo para uma paz social pautado na
dignidade.
No que tange os efeitos em relação à vítima, o sistema retributivo considera essa como
sendo parte do processo. Isto é, não há participação ativa, proteção ou interação com o processo,
de modo aos seus sentimentos passarem despercebidos pelo Estado. Isso tudo, faz com que
surja um sentimento de ineficácia, pois embora haja a punição do ofensor, seus traumas e
frustração com o sistema, continuarão ali.
Por sua vez, no sistema restaurativo, ocorre o oposto. A vítima possui um papel ativo
no processo, de forma que pode falar, participar e ter o controle da situação. Sendo assim, recebe
um amparo maior, voltado para sua dignidade e visando reparar os danos também de ordem
emocional e psíquica, suprindo, portanto, as necessidades individuais e coletivas.
Quanto aos efeitos para o ofensor, na justiça retributiva, este é considerado a partir de
seus delitos, sua participação se resume a, assim como a vítima, uma prova processual, na qual
participará em busca de sua defesa por meio de um advogado-não tem voz ativa. Não há contato
com a vítima, desconhece muitas vezes os atos processuais, não é responsabilizado, mas sim,
punido pelo fato e suas necessidades não são consideradas.
Para a justiça restaurativa, no entanto, o ofensor é visto como alguém que necessita ser
responsabilizado de forma efetiva pelas consequências do delito de sua autoria, de forma que
participa ativamente do processo, interagindo com a vítima e a comunidade, momento em que
tem a possibilidade de ficar diante do trauma causado à vítima, oportunizando as desculpas e a
reparação. Fica a todo tempo ciente das consequências dos seus atos e tem suas necessidades
também supridas.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Diante das colocações até aqui, no que se diz respeito às características de cada
modelo, e, considerando as disposições promovidas pelo conselho nacional de justiça que já
existem no país acerca da aplicação das práticas restaurativas, é possível afirmar que sua
atuação se faz necessária.
Cabe salientar que as principais referências para a aplicação do Programa justiça
restaurativa para o Século XXI são de Howard Zehr, do ponto de vista conceitual, e Kay Pranis,
dos pontos de vista conceitual e metodológico, uma vez que os círculos de construção da paz
são empregados para a maioria das situações.
Dessa maneira, a partir da Resolução 225/16 CNJ, houve, no Brasil, uma expansão dos
projetos restaurativos. Contudo, cabe ressaltar que antes da elaboração desse documento,
haviam sido instaurados 03 projetos pilotos no Brasil: um em São Caetano do Sul – SP, entre a
vara de infância e juventude e as escolas, outro no Rio Grande do Sul e o último no Núcleo
Bandeirante, em Brasília.
Desde então, analisando o resultado positivo da implementação, mais Comarcas
começaram a instaurar essas práticas, a fim de amenizar problemas como a morosidade e alta
quantidade de processos judiciais.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Dentre os tribunais que adotam as práticas restaurativas, 88,6%, consideram que essas
práticas contribuem para o fortalecimento do trabalho em rede de promoção e garantia de
direitos e 9,1% entendem que não há algum tipo de contribuição. Dentre as iniciativas em que
há fortalecimento da rede proteção, 75% delas ocorrem na temática da criança e do adolescente;
48% na área de violência contra a mulher; e 27% em outras redes de proteção, tais como sistema
penitenciário, justiça criminal, ambiente escolar, dentre outros.
Quanto à metodologia dos procedimentos utilizados nas práticas restaurativas, 93%
dos programas utilizam os círculos de construção de paz, baseados em Kay Pranis. Outras
metodologias bastante difundidas são o processo circular, em 54% dos programas; e os círculos
restaurativos baseados na comunicação não violenta, em 45% dos casos.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
justiça restaurativa, além de alcançar uma resolução de conflito mais eficaz, também haverá
respeito à dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: UNIC, 2009 [1948].
Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.
Acesso em: 13 de jun. 2023.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
ZEHR, Howard. Justiça restaurativa. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas
Athena, 2012.
77
Capítulo 5
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10535352
INTRODUÇÃO
1
Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT) – Campus de Diamantino.
ORCID: https://orcid.org/0009-0009-2875-5.
2
Professor do curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, Câmpus do
Pantanal - CPAN, Cidade de Corumbá/MS, Doutor em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina,
bolsista CAPES (2022/2023), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019),
bolsista CAPES durante o período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal
(2017-2018), pesquisador vinculado ao projeto de pesquisa Cárcere e Fronteira. E-mail:
antonio.amorim@ufms.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1464-0319.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Na subseção anterior foi possível perceber que a evolução das penas e o surgimento
das prisões estão intimamente relacionados com o advento do processo penal, uma vez que
conforme salienta Aury Lopes Junior (2020a, p. 43) o processo penal “é um caminho necessário
para alcançar-se a pena e, principalmente, um caminho que condiciona o exercício do poder de
penar”, limitado por um arcabouço de regras que compõem o devido processo penal como o
conhecemos hoje.
Antes de aprofundar nesse assunto, é importante lembrar que o crime é algo que foi
muito modificado nos últimos séculos, visto que antigamente era levado muito em conta a
questão da imposição religiosa e da classe social. Essa mudança deu espaço para a análise dos
objetos constitutivos do crime em si, a partir daí todo o aparelho judicial se fez presente além
das penas. Sendo assim, conforme salienta Foucault (1987, p. 26), “um saber, técnicas,
discursos científicos se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir”.
Além disso, houve uma maior preocupação com relação aos direitos humanos e,
consequentemente, a severidade penal começou a ser abrandada. Nesse cenário, Michel
Foucault (1987, p. 20) apresenta o surgimento de uma nova forma de punição:
No mesmo sentido, Aury Lopes Junior (2020a, p. 54) afirma que a natureza do
processo penal variou ao longo do tempo de acordo com a ideologia predominante em cada
época, servindo como um “termômetro dos elementos democráticos ou autoritários” da
Constituição de cada Estado. Em outras palavras, ao longo da evolução histórica da sociedade,
do Estado e do Direito ocorreram várias mudanças na política processual penal. Diante disso,
deve-se ter em mente os três modelos de sistemas processuais penais utilizados até então: o
acusatório, o inquisitivo e o misto, os quais serão estudados, cronologicamente, a seguir.
O sistema processual penal de cada período histórico sofreu influência direta do ideário
e da estrutura estatal vigente em cada época e, conforme explica Lopes Junior (2020b, p. 213),
“os sistemas não desaparecem de um dia para o outro, pois um paradigma não sofre um corte
cirúrgico, uma ruptura total do dia para noite, senão que existem longos períodos de transição”.
Por isso, se faz importante estudar as raízes históricas que deram origem a cada sistema e assim
conseguir compreender as suas características.
Em linhas gerais, o sistema acusatório originou-se no Direito Greco-Romano e
perdurou durante quase toda a Antiguidade e parte da Idade Média. Aury Lopes Junior (2020b,
p. 214) salienta que ao longo desse período a participação direta do povo e a sua atuação como
acusador e julgador se desenvolveu. O referido autor acrescenta que “vigorava o sistema de
ação popular para os delitos graves (qualquer pessoa podia acusar) e acusação privada para os
delitos menos graves, em harmonia com os princípios do direito civil”.
Esse modelo de sistema processual possui características próprias de regimes
democráticos, servindo como uma garantia de proteção dos cidadãos contra abusos estatais
(Rangel, 2020, p.40). Dentre essas particularidades, destaca-se a separação total das funções de
acusar, defender e julgar, as quais ficam sob a responsabilidade de indivíduos distintos. Além
disso, conforme salienta Norberto Avena (2020, p. 8) esse sistema foi denominado como
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
acusatório porque nele somente poderão ser levados a juízo os indivíduos que receberem uma
acusação formal que contenha toda a narração e características do fato imputado, sendo vedada
a atuação de ofício do juiz.
Ademais, esse sistema vigorou até o século XII, quando então passou a ser
gradativamente substituído pelo sistema inquisitório. Tal mudança foi impulsionada,
principalmente, porque o sistema acusatório foi se tornando insuficiente para atender às novas
exigências de repressão dos delitos, além dos acusadores serem constantemente impulsionados
por questões de vingança. Isso fez com que os juízes passassem a invadir cada vez mais as
atribuições dos acusadores e começassem a reunir em um mesmo órgão a responsabilidade de
acusar e julgar (Lopes Júnior, 2020b, p. 216).
O Sistema Inquisitório, de modo geral, é aquele em que o poder está centrado nas mãos
de uma única pessoa. Conforme explana Paulo Rangel (2020, p. 41) nesse sistema “não há
separação de funções, pois o juiz inicia a ação, defende o réu e, ao mesmo tempo, julga-o”, ou
seja, o órgão responsável por iniciar a ação e investigar é o mesmo que irá punir o indivíduo.
Além disso, Rangel (2020, p.41) acrescenta que:
Esse sistema foi muito utilizado na Idade Média, principalmente a partir do século
XIII, durante os regimes de monarquias absolutistas que, conforme explica Guilherme de Souza
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Nucci (2020, p. 26), queriam “combater os abusos cometidos pelos senhores feudais e pela
aristocracia em detrimento de vassalos e pessoas pobres”. Nessa época, aplicava-se o que o
referido autor chama de “tratar desigualmente os desiguais”.
Apesar de surgir com esse viés positivo, o sistema inquisitivo se acirrou durante o
Direito Canônico, período da história em que as leis e os regulamentos eram regidos pela Igreja
Católica e seu Tribunal da Inquisição. Conforme salienta Lopes Junior (2020a, p. 51) “no
transcurso do século XIII foi instituído o Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, para reprimir
a heresia e tudo que fosse contrário ou que pudesse criar dúvidas acerca dos Mandamentos da
Igreja Católica”.
Sobre isso, explica Nucci (2020, p. 26):
Desse modo, percebe-se que esse sistema adquiriu características próprias de regimes
totalitários e absolutistas em que houve o monopólio do poder político e a supressão de direitos
e garantias individuais intrínsecos à democracia (Rangel, 2020, p. 40).
Este cenário perdurou até meados do século XVIII, quando a Revolução Francesa, sob
influência dos ideais iluministas, possibilitou mudanças de ordem social e política, abrindo
espaço para a transição para o sistema misto, um modelo mais democrático e que se estende até
hoje (Lopes Júnior, 2020b, p. 227).
Nesse caso, continuava nas mãos do Estado a persecução penal, porém feita na fase
anterior à ação penal e levada a cabo pelo Estado-juiz. As investigações criminais
eram feitas pelo magistrado com sérios comprometimentos de sua imparcialidade,
porém a acusação passava a ser feita, agora, pelo Estado-administração: o Ministério
Público.
Ante o exposto, observa-se que apesar de o sistema processual penal misto não ter
conseguido garantir a total imparcialidade do juiz, uma vez que este continuou atuando na fase
de persecução penal e na fase de julgamento, ele apresentou vários avanços em decorrência da
junção de regras do sistema inquisitório e princípios do sistema acusatório, permitindo a
coexistência no processo penal das garantias individuais com a atuação repressiva do Estado.
O sistema processual penal, para chegar ao modelo como é conhecido hoje, vivenciou
um longo processo de evolução, passando por diversas mudanças no decorrer da história. Da
mesma forma como ocorreu a nível mundial, o processo penal brasileiro também sofreu
influência direta das diretrizes impostas pelo cenário político, econômico e social de cada
época.
Conforme explica Eugênio Pacelli (2020, p. 4), no Brasil, as primeiras disposições
processuais apareceram na Constituição Imperial de 1824, no entanto foi somente em 1832 que
surgiu a primeira legislação codificada, o Código de Processo Criminal de Primeira Instância,
ambos sob vigência das Ordenações do Reino de Portugal (séculos XVI a XIX) e,
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Importante lembrar que o Código de Processo Penal (1941) surgiu durante o cenário
político ditatorial do Estado Novo sob presidência de Getúlio Vargas (“Era Vargas”) e com o
respaldo da Constituição Autocrática de 1937, a qual, dentre outras coisas, reduziu os direitos
fundamentais e desconstitucionalizou o mandado de segurança e a ação popular (Mendes;
Branco, 2018, p. 99). Também é dessa época o Código Penal de 1940, ainda vigente atualmente.
Além disso, mundialmente estava acontecendo a Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
conflito global que envolveu as maiores nações mundiais. Tudo isso culminou para gerar um
contexto de instabilidade e autoritarismo que perdurou até 1945. Sobre isso, Diego Nunes
(2010, p. 186) destaca que:
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e da Era Vargas, a democracia começou a ser
retomada no Brasil, abrindo espaço para a promulgação da Constituição de 1946, a qual, dentre
outras disposições, buscou restabelecer os direitos e garantias individuais, disciplinando, por
exemplo, que os cidadãos só poderiam ser presos em caso de flagrante delito ou por ordem
escrita de autoridade judicial (art. 141, §20). No entanto, esse contexto de abertura democrática
foi freado pelo regime militar e pelas Constituições de 1967 e 1969 que tornaram o sistema
processual penal marcado pelo modelo inquisitório, com a limitação do contraditório e da ampla
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
defesa, bem como a permissão da pena de morte e da prática de tortura contra os réus (Mendes;
Branco, 2018, p. 100).
Nesse sentido, Luís Roberto Barroso (2019, p. 373) explica que:
Da Independência até hoje, tivemos oito Cartas constitucionais: 1824, 1891, 1934,
1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, em um melancólico estigma de instabilidade e de falta
de continuidade das instituições. A Constituição de 1988 representa o ponto
culminante dessa trajetória, catalisando o esforço de inúmeras gerações de brasileiros
contra o autoritarismo, a exclusão social e o patrimonialismo, estigmas da formação
nacional.
Diante desse cenário, percebe-se que o sistema processual penal brasileiro surgiu com
forte viés inquisitório, fruto de regimes ditatoriais. No entanto, essa situação começou a mudar
a partir do final da década de 60, em razão das alterações feitas no Código de Processo Penal
(CPP). Dentre essas mudanças, destaca-se a Lei 5.349/67 que trouxe algumas mudanças
relacionadas aos direitos individuais e a garantia de liberdade, mas foi apenas com o advento
da Constituição de 1988 que ocorreram mudanças realmente efetivas (Pacelli, 2020, p. 6):
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Além disso, apesar da Carta Magna de 1988 não demonstrar de forma expressa que o
Brasil adota o sistema processual penal acusatório, depreende-se isso do seu art. 129, inciso I,
uma vez que estabelece a acusação como função privativa do Ministério Público, sendo essa
uma das características típicas do modelo acusatório. Sobre isso, Paulo Rangel (2020, p. 44)
explica que:
Hodiernamente, no direito pátrio, vige o sistema acusatório (cf. art. 129, I, da CRFB),
pois a função de acusar foi entregue, privativamente, a um órgão distinto: o Ministério
Público, e, em casos excepcionais, ao particular. Não temos a figura do juiz instrutor,
pois a fase preliminar e informativa que temos antes da propositura da ação penal é a
do inquérito policial e este é presidido pela autoridade policial. Durante o inquérito
policial, como vamos ver mais adiante (cf. item 2.3 infra), o sigilo e a inquisitividade
imperam, porém, uma vez instaurada a ação penal, o processo torna-se público,
contraditório, e são asseguradas aos acusados todas as garantias constitucionais.
Diante desse contexto, em que coexiste uma norma constitucional democrática e uma
legislação processual penal com base inquisitorial, ainda perdura a divergência doutrinária
sobre qual sistema processual penal é utilizado atualmente no Brasil, se inquisitório, acusatório
ou misto.
Um grande avanço nesse cenário foi proporcionado pelo advento da Lei n.º
13.964/2019, denominada de “Pacote Anticrime”, que trouxe modificações significativas ao
Código de Processo Penal e que estabeleceu em seu art. 3º-A que “o processo penal terá
estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da
atuação probatória do órgão de acusação” (Brasil, 2019), tornando o processo penal mais
compatível com a Constituição Federal de 1988.
Antes das alterações trazidas pelo Pacote Anticrime, uma parte da doutrina nacional
entendia que o sistema processual penal brasileiro é misto, uma vez que predomina o modelo
inquisitório na fase pré-processual (inquérito policial - sigiloso, sem contraditório e ampla
defesa) e o modelo acusatório na fase processual (ação penal – público, contraditório, ampla
defesa e demais garantias constitucionais).
Esse, por exemplo, é o entendimento de Guilherme de Souza Nucci (2020, p. 27), que
salienta que na “Constituição Federal de 1988, foram delineados vários princípios processuais
penais, que apontam para um sistema acusatório; entretanto, como mencionado, indicam um
sistema acusatório, mas não o impõem”, além disso, ele acrescenta que mesmo após a reforma
trazida pela Lei n.º 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o processo penal brasileiro ainda não
atingiu um sistema acusatório puro.
Paulo Rangel (2020, p. 46) tem posicionamento semelhante ao afirmar que:
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
O Brasil adota um sistema acusatório que, no nosso modo de ver, não é puro em sua
essência, pois o inquérito policial regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o
indiciado como objeto de investigação, integra os autos do processo, e o juiz, muitas
vezes, pergunta, em audiência, se os fatos que constam do inquérito policial são
verdadeiros. Inclusive, ao tomar depoimento de uma testemunha, primeiro lê seu
depoimento prestado, sem o crivo do contraditório, durante a fase do inquérito, para
saber se confirma ou não, e, depois, passa a fazer as perguntas que entende
necessárias. Neste caso, observe o leitor que o procedimento meramente informativo,
inquisitivo e sigiloso dá o pontapé inicial na atividade jurisdicional à procura da
verdade processual. Assim, não podemos dizer, pelo menos assim pensamos, que o
sistema acusatório adotado entre nós é puro. Não é. Há resquícios do sistema
inquisitivo, porém já avançamos muito.
Em contrapartida, Aury Lopes Junior (2020a, p. 64-65), defende que antes do advento
do Pacote Anticrime prevalecia o sistema inquisitório ou “neoinquisitório”, uma vez que a
gestão da prova está nas mãos do juiz durante a fase processual, não concordando ele com parte
da doutrina que entendia que o modelo processual adotado no Brasil era o misto. Lopes Júnior
(2020b, p. 214) reafirma seu posicionamento no livro “Fundamentos do Processo Penal”, em
que argumenta que:
Ademais, Lopes Júnior (2020a, p. 71) salienta que depois das alterações feitas pelo
Pacote Anticrime, trazendo de forma expressa a adoção do sistema acusatório, bem como dando
nova redação a antigos dispositivos e adicionando outros com características do sistema
acusatório, não há mais motivos para se defender a existência de outro modelo. Acrescenta
ainda que para haver uma mudança realmente efetiva à luz do sistema acusatório é fundamental
afastar a vigência de dispositivos com viés inquisitório ainda presentes no Código de Processo
Penal, bem como mudar as práticas judiciárias.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
sendo vedadas as iniciativas do juiz na fase de investigação. Esse dispositivo além de definir,
literalmente, que o sistema processual penal brasileiro é o acusatório (não restando mais dúvidas
quando ao modelo de sistema processual penal adotado no Brasil), também proibiu que o juiz
invada as funções de outros atores durante a fase de investigação.
Complementando, o art. 311, do Código de Processo Penal, como visto anteriormente,
também restringe a atuação do juiz de maneira que ele não invada a função específica das partes.
Em ambos os dispositivos, vemos o emprego na íntegra de características do sistema acusatório.
Esse é um risco sempre presente no modelo brasileiro, que carrega uma tradição
inquisitória fortíssima (e com ela uma cultura inquisitória ainda mais resistente) pois
somente com a Lei n. 13.964/2019 e a inserção do art. 3º-A é que nosso CPP
consagrou expressamente a adoção do sistema acusatório e, portanto, o afastamento
do agir de ofício do juiz na busca de provas, decretação de prisão, etc. É por conta
disso que seguimos sublinhando a importância da correta compreensão dos sistemas
processuais e, por conseguinte, do lugar do juiz no processo penal. (Lopes Júnior,
2020a, p. 90)
Então, se agora o Código de Processo Penal praticamente inaugura seu texto dizendo
que o sistema processual penal no Brasil é o acusatório e que é vedada a iniciativa e a
interferência do juiz na prova, muitas outras mudanças poderão ocorrer em decorrência disso.
Para compreender melhor esse cenário, é preciso lembrar das características dos
sistemas inquisitório e acusatório. O inquérito (fase pré-processual) tem a característica de ser
inquisitório, pois se parte do conceito de “verdade real”, que é tentar provar, conjecturar, o que
realmente aconteceu, tendo como base a presunção de culpabilidade. O problema do sistema
inquisitório é que se partia de uma verdade real em que o juiz (que era acusador, interrogador,
julgador) vislumbrava o fato, chegava a uma conclusão sobre aquele fato e com base na própria
conclusão, fazia todo o procedimento. O procedimento era para provar um fato que já estava na
cabeça daquele acusador e não para se verificar exatamente o que aconteceu. Por isso que na
prática a verdade real não existe, o que existe é a verdade processual.
No atual sistema processual penal brasileiro o inquérito tem características
inquisitórias porque é um procedimento sigiloso, em que uma só pessoa tem o poder naquele
momento de investigar e formular indícios, e indícios, em regra, não são provas. Por isso alguns
autores defendem (Lopes Júnior, 2020b), inclusive, que o inquérito não deveria ir para o
processo, o certo seria o Ministério Público separar as partes investigativas que ele achasse
importante e as levasse para o processo.
Voltando para o sistema acusatório, quando o Código de Processo Penal fala que essa
é a estrutura adotada no Brasil a partir das mudanças trazidas pelo Pacote Anticrime, então caso
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
algum dispositivo posterior a Lei n. 13.964/2019 esteja contrário à essa lógica, obviamente,
deveria ocorrer a revogação tácita desses dispositivos (Lopes Júnior, 2020b, p. 118):
Em que pese entendermos que o art. 156 do CPP (e todos aqueles que permitem a
atuação de ofício do juiz na busca de provas, decretação de ofício de prisões cautelares
etc.) não foi recepcionado pela Constituição e agora está tacitamente revogado pelo
art. 3o-A do CPP, por se tratar de uma mudança recente e que será vítima de
movimentos contrarreformistas (ou do movimento de sabotagem inquisitória, como
denomina Alexandre Morais da Rosa), vamos insistir em demonstrar a necessidade
da revogação e também da mudança rumo à cultura acusatória constitucional.
[...] tudo isso cai por terra quando se atribuem poderes instrutórios (ou investigatórios)
ao juiz, pois a gestão ou iniciativa probatória é característica essencial do princípio
inquisitivo, que leva, por consequência, a fundar um sistema inquisitório. A
gestão/iniciativa probatória nas mãos do juiz conduz à figura do juiz-ator (e não
espectador), núcleo do sistema inquisitório. Logo, destrói-se a estrutura dialética do
processo penal, o contraditório, a igualdade de tratamento e oportunidades e, por
derradeiro, a imparcialidade – o princípio supremo do processo. (Lopes Júnior, 2020a,
p. 90)
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
ainda não transitou em julgado, não se pode mais antecipar o cumprimento da pena. Além disso,
não será admitida a decretação da prisão preventiva como decorrência imediata de investigação
criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia. Esse é o caso, por exemplo, do
delegado, na investigação criminal, quando ele instaura o inquérito, ou quando o Promotor de
Justiça denuncia, ou quando o juiz recebe a denúncia, pedirem a prisão preventiva só pelo fato
do sujeito supostamente ter praticado o crime. No entanto, o fato da prática do crime não
autoriza a prisão preventiva, é necessário que estejam presentes uma das hipóteses previstas
nos arts. 312 e 313 do Código de Processo Penal.
Resumindo, a prisão preventiva não pode ser decretada de forma genérica, observe o
que diz o art. 315, sobre isso:
Art. 315. A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre
motivada e fundamentada. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
§ 1º Na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar,
o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos
que justifiquem a aplicação da medida adotada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
(Vigência)
§ 2º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória,
sentença ou acórdão, que: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
I - limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar
sua relação com a causa ou a questão decidida; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
(Vigência)
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de
sua incidência no caso; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; (Incluído
pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese,
infirmar a conclusão adotada pelo julgador; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
(Vigência)
V - limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus
fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta
àqueles fundamentos; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado
pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a
superação do entendimento. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).
A palavra “fundamentada” no caput do art. 315 foi adicionada pelo Pacote Anticrime,
sob pena de nulidade caso a decisão não seja fundamentada. A Constituição Federal fala que
toda decisão judicial deve ser motivada e fundamentada sob pena de nulidade, o que tornaria a
prisão ilegal (caberia nesse caso a impetração de Habeas Corpus). Desse dispositivo também se
infere que o juiz não pode fundamentar com base na gravidade abstrata do crime ou no histórico
do réu, mas sim na conduta específica praticada pelo agente. Ademais, é imprescindível que o
juiz, além de fundamentar sua decisão, enfrente todos os argumentos apresentados pelas partes
90
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo Penal Esquematizado. IBooks. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015.
91
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
BRASIL. Lei nº 5.349 de 3 de novembro de 1967. Dá nova redação ao Capítulo III do Título
IX do Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 28
mar. 2023.
CAPEZ. Fernando. Curso de Processo Penal. 27. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva,
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LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: Volume Único. 8. ed. rev., ampl. e
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NUNES, Diego. O percurso dos crimes políticos durante a Era Vargas (1935-1945)
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Diego Nunes; orientador, Arno Dal Ri Júnior. – Florianópolis, SC, 2010. 327 p.: tabs.
PACELLI. Eugênio. Curso de Processo Penal. 24. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas,
2020.
92
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TELES, Ney Moura. Direito Penal Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
TUCCI. Rogério Lauria. Teoria do Direito Processual Penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
93
Capítulo 6
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10535388
INTRODUÇÃO
1
Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT – Campus Diamantino). Mestre em Direito
pela Universidade Federal de Mato Grosso (PPGD/UFMT). Graduado em Direito pela Universidade Federal do
Tocantins (UFT). E-mail: andrade.brendhon@unemat.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8204-651X.
2
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (2004), Pós-Doutor em Direito
pela UFSC (2014). Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina nas disciplinas de Filosofia do
Direito e Teoria do Direito II. Professor permanente no programa de Mestrado e Doutorado em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina, Líder do Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para uma
Sociedade Sustentável (CNPQ). E-mail: quintaveras@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1620-6017.
3
Este texto apresenta resultados parciais da dissertação de mestrado intitulada “Os direitos sexuais nas ruínas do
neoliberalismo e neoconservadorismo: um panorama crítico acerca da cidadania LGBTI na democracia brasileira
(1986-2020)”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMT, aprovada e defendida em
2021. As discussões traçadas no trabalho se articulam ao Projeto de Pesquisa “Liberdade, Democracia e
Cidadania”, uma vezque os objetivos se propõem a analisar as concepções e manifestações sobre liberdade,
democracia e cidadania nos poderes constituídos na realidade brasileira, além de identificar historicamente as
expressões teórico-políticas conservadoras e suas apropriações das categorias liberdade, democracia e cidadania
– tendo o trabalho amplo diálogo com os objetivos almejados na pesquisa coordenada pelo Prof. Dr. Josiley
Carrijo Rafael.
94
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1
Miskolci (2012, p. 3) aponta que “O termo biopolítica se refere à emergência e expansãohistórica de um
conjunto de saberes e práticas que atuam sobre a vida dos corpos e populações”.
2
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos.
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populacionais racializados, para mulheres, ainda mais para as negras sempre bestializadas, e
menos ainda para pessoas hoje designadas como LGBTQI+(FRY), o crime de sodomia era
previsto na legislação Filipina sob a égide da contra-reforma. Embora a perseguição da
homosexualidade também fosse efetivada por protestantes fanáticos e depois pelo
pseucientificismo da psquiatria positivista denunciada por Focault com seu discurso acerca dos
anormais dentro de instituições de sequestro de tempo (Foucault, 2002; Foucault, 2003). A
criminalização da homosexualidade se mantém intacta até Stonewall nos anos 70 do século XX,
casos como os de Alain Touring e tantos outros demonstram a demora das aspirações do
reconhecimento dos direitos da comunidade LGBTQI+ ser minimamente considerada. Mesmo
no século XX, a internações psiquiátricas de gays e lésbicas ainda faziam parte da patologização
dos comportamentos dentro de uma concepção de heteronormatividade hegemônica, a
criminalização também ocorria em países socialistas, e em vários países capitalistas ocidentais,
homossexuais, mulheres e indígenas ingressam no cenário de reconhecimento apenas nos anos
70 do século XX (Okita, 2007).
Muito embora o estudo faz uso de dados estatísticos e numéricos, “o objeto das
Ciências Sociais [é] essencialmente qualitativo”. A pesquisa adota a pesquisa qualitativa por
compreender que “ela trabalha com o universo de significados, motivações, aspirações, crenças,
valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e
dos fenômenos [...] (Minayo, 1994, p. 22).
Enquanto procedimentos técnicos utiliza-se da pesquisa bibliográfica e pesquisa
documental. A primeira “abrange toda a bibliografia já tornada pública em relação ao tema de
estudo” (Marconi; Lakatos, 2017, p. 123), como artigos e livros. Utiliza-se de autores/as como
Wendy Brown, Alysson Mascaro, Antônio Carlos Wolkmer, Bruna Irineu, Silvio de Almeida,
Ivanete Boschetti e Judith Butler, que contribuem teoricamente no tema proposto.
Empregou-se a pesquisa documental, que toma como fonte de coleta de dados os
documentos, tendo em vista “a importância dessa estratégia como alternativa de investigação
dadas as contribuições que uma análise crítica e aprofundada de determinados documentos pode
aportar” (Prates; Prates, 2009, p. 120). Entre os documentos que foram utilizados, destaca-se a
Constituição Federal de 1824 e de 1988, o Código Penal de 1890, o Projeto de Lei 2.893/2019
e diversos outros que serão abordados no decorrer do texto.
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o autor que, embora a concepção política de nação apontasse para o futuro, os pés estavam
fincados na manutenção da ordem.
O autor buscou analisar a formação de um novo imaginário social entre 1870-1900,
que “se consolidou por meio de uma mudança política e cultural que reinscreveu a ordem social
anterior dentro da nova, pautada por valores sintetizados no modo positivista de ordem e
progresso” (Miskolci, 2012, p. 10). O desejo de ordem que “se cristalizou neste período primava
pelo autoritarismo, por um modernismo de ideais associado a um forte conservadorismo
político, um desejo de mudança sem alterar hierarquias e privilégio”. Já o progresso:
[...] é um ideal de civilização futura a ser alcançada por meio da evolução humana.
Seu culto por nossa elite modernizante do XIX mostra – ao mesmo tempo – a
avaliação negativa sobre seu próprio povo e as esperanças nutridas no futuro,
vislumbrando um olhar dirigido à Europa [...] (Miskolci, 2012, p. 1).
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Naquela época, o Império necessitava de uma codificação jurídica, e foi assim que
surgiram os primeiros cursos jurídicos do país (em São Paulo e Pernambuco), com fins a
responder aos interesses burocráticos do Estado. As nascentes Faculdades de Direito surgiram
para sistematizar e irradiar o liberalismo enquanto ideologia política-jurídica e criação de
quadro administrativo-profissional, uma elite burocrática.
Tal movimento é responsável por formar a base do pensamento jurídico nacional, ao
qual Wolkmer (2019, p. 278) nomeia de “bacharelismo liberal”, o qual é marcado por uma
“uma tradição advocatícia desvinculada de atitudes mais comprometidas com a vida cotidiana
e com uma sociedade em constante transformação”. Isso porque “A postura técnica e casuística
fecha-se ante o dinamismo dos fatos e resiste a um direcionamento criativo, não conseguindo
mais responder a novas e emergentes necessidades” (Wolkmer, 2019, p. 278). A partir dessa
reflexão, conclui o autor que:
[...] a tradição das ideias liberais no Brasil não só conviveu, de modo anômalo, com a
herança patrimonialista e com a escravidão, como ainda favoreceu a evolução retórica
de singularidade de um “liberalismo conservador, elitista, antidemocrático e
antipopular, matizado por práticas autoritárias, formalistas, ornamentais e ilusórias.
(Wolkmer, 2019, p. 254).
3
Em referências àqueles cidadãos que nasceram livres.
99
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conviver com estruturas de dominação, pois, a pergunta básica que deve ser feita é: liberalismo
para quem? A tradição liberal do Estado Mínino e das liberdades negativas visa a proteção de
um pequeno núcleo de cidadãos alçados pela renda e pela cor ao privilégio de classe e da
branquitute como imaginário do embranquecimento gerado pelo racismo estrutural, ou como
ideário fabricado no século XX dentro do mito da democracia racial construído dentro do
sociologismo antropológico de Gilberto Freyre (Carvalho, 2013).
Desde seu implemento na construção do Estado liberal na era Imperial, os princípios,
filosofias e ideias do liberalismo sempre foram aplicadas às camadas da sociedade que alocam
as elites: Liberdade para as elites! Aos negros, às mulheres, à população dissidente sexual e de
gênero, aos indígenas, aos despossuídos e aos outros: a escravidão e a legislação penal. Tanto
é verdade que, o Código Penal Imperial servia para punir as camadas populares, enquanto o
domínio da cidadania constitucional era direcionado às elites da época, como se retira das
leituras de Wolkmer (2019), Neves (2018) e dos textos normativos da época.
O Código Penal de 1890 (Brasil, 1890) previa a criminalização de mendigos e ébrios
no capítulo XII, bem como da vadiagem e capoeiras no capítulo XIII. Destaque para o crime de
vadiagem, no art. 399 “Deixar de exercitar profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe
a vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que habite, prover a
subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral ou
bons costumes” (Brasil, 1880). Já a Constituição Política do Império do Brazil de 1924, em seu
título 2 – Dos Cidadãos Brasileiros, previa em seu inciso I que são cidadãos “Os que no Brazil
tiverem nascido, quer sejam ingênuos, ou libertos [...]” (Brasil, 1924). No art. 179 desta Carta
Magna estavam previstos os direitos políticos e garantias individuais destinadas aos cidadãos,
local onde se visualizava espectros de exercício de cidadania e direitos.
Outro elemento importante que essa construção histórica do saber jurídico nacional
coloca é que os elementos conservadores e autoritários sempre fizeram parte do receituário do
projeto nacional. Conservadorismo para manutenção da ordem social, autoritarismo como
recurso de sanção e poder (Wolkmer, 2019). Mascaro (2014, p. 90) explica que em
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O autor deste trabalho, entende, em primeiro lugar, que o direito, como se conhece
hoje, é fruto do desenvolvimento do capitalismo – isso não quer dizer que a justiça e regulações
sociais por meio de normas nasça na modernidade. Em segundo, compreende o direito como
relação social, a qual “as relações que se formam a partir da estrutura social e econômica das
sociedades contemporâneas é que determinam a formação das normas jurídicas” (Almeida,
2020, p. 139).
Soma-se a esse entendimento a compreensão de que o direito é parte das relações de
poder, inspirada em Michel Foucault, tendo em vista que “A concepção do direito enquanto
manifestação do poder admite que a criação e aplicação das normas não seriam possíveis sem
uma decisão, sem um ato de poder antecedente” (Almeida, 2020, p. 134). Para essa concepção,
o direito seria um dos domínios de poder e instrumento de dominação social.
Em ambas as perspectivas, seja como poder (Foucault), seja como relação social
(Mascaro), significa que o direito é resultado de construções sociais e reflete as relações de
poder e relações sociais daquele momento histórico, numa posição expressamente contrária à
ideologia liberal de pureza do direito, ou de separação do direito e da sociedade, ou como se o
direito fosse algo vivo per si, anterior às relações humanas e não resultado das relações sociais.
As abordagens positivistas dentro de uma miragem de neutralidade cientificista positivista, ou
de um direito organicista importado por formas jurídicas derivadas do fascismo italiano ou o
direito como encarnação de um ideal caricato de justiça dentro de uma visão do bacharelismo
caracterizando a ambiguidade de uma visão ornamental do fenômeno jurídico; seja pelo
cientificismo ou pelo ecletismo liberal afastando da definição do direito o seu caráter classista
derivadas da forma mercantil, sempre brotando da necessidade de impor a força diante de
desigualdades sociais produzida pela fratura escravista colonial, pelo mercado de trabalho
excludente do capitalista mitigada por alguns setores que conseguem a conquista de direitos
sociais ou de afirmação de conquistas dentro das dinâmica da intersecionalidade envolvendo
classe, raça, gênero fornecendo visibilidade para os corpos invisibilizados pela sexualidade,
raça ou direitos ecológicos com a perspectiva contemporânea da natureza como sujeito de
direitos dentro do biocentrismo da Pashamama (Zaffaroni, 2017) advindo sempre da luta de
movimentos sociais, dos povos originários, do movimento negro, LGBTQI+, dos povos
originários, de quilombolas, de trabalhadores, do MST.
A busca de agroecologia, da segurança alimentar, de direitos de crianças e
adolescentes, a conquista da liberdade sexual, intelectual dependem de lutas conjunturais
alicerçadas nestes sujeitos coletivos de direito constituidores de direito e de uma perspectiva de
alteridade dentro de uma comunidade de vítimas invisibilizada pela totalidade de uma
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Para Lyra Filho (1982, p. 3), “a lei emana do Estado e permanece, em última análise,
ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade
politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico”.
Essa posição juspositivista-liberal que orientou a formação do pensamento jurídico nacional
deixou seus resultados, expressados nos termos de Mascaro (2019, p. 12):
[...] o jurista tecnicista, que em geral quer esconder a relação do direito com o todo
[...] identifica o direito apenas com a norma jurídica. Pinça um fenômeno isolado do
direito e quer fazer dele a razão de ser da explicação jurídica, sem relacionar a norma
com os demais fenômenos. Estes são os juristas limitadores, que procedem a um
reducionismo na explicação do direito, escondendo os liames do direito com a
sociedade para não explicitarem os seus reais vínculos.
4
O jusnaturalismo entende que o direito está incluído numa ideia de justiça e que para a validade das normas
estatais elas devem estar em conformidade com o direito natural. Falha essa concepçãoem permitir que sob seu
domínio se justifique a exploração de pessoas, como o foi à época da escravidão e reiterar a ideia de justificações
metafísicas para o direito, das ciências naturais e expressões religiosas, que, historicamente, tem fundamentado
opressões sobre mulheres, LGBTI e populações negra (Almeida, 2020).
5
Utiliza-se o termo neoliberalismo inspirado em Brown (2019) que mescla a corrente foucaltiana e neomarxista.
Em termos foucaultianos, Brown (2019, p. 32) aponta que este “revela como governos, sujeitos e subjetividades
são transformadas pela remodelação neoliberal darazão neoliberal, considera o neoliberalismo como revelador
de como o capitalismo [...] é sempre organizado pelas formas de racionalidade política”. Nos termos
neomarxistas, se “concebe o neoliberalismo como um ataque oportunista dos capitalistas e seus lacaios políticos
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mulheres e população negra, é comum ver análises jurídicas juspositivistas que ignoram o
contexto social dessasparcelas sociais, o veto de participação política e apontam que o Supremo
está invadindo competência ao “legislar” – ainda que um dos desdobramentos do pós-guerra
tenha sido o surgimento do controle de constitucionalidade como instrumento de efetivação de
direitos fundamentais. Apontam esses autores que a competência de legislar é do Legislativo,
ao passo que ignoram que os projetos de lei voltados ao reconhecimento de direitos da
comunidade LGBTI, por exemplo, estão em debate desde 1995 sem êxitos (Irineu, Oliveira,
Freitas, 2021).
Moreira (2019, p. 88) aponta que o “regime liberal não elimina relações assimétricas
e arbitrárias”. Pois, ainda que se “possa fazer parte de regimes supostamente democráticos, sua
inserção social será sempre de marginalização porque o projeto de dominação social opera em
quaisquer regimes políticos, mesmo aqueles baseados no princípio da igualdade de direitos”.
Para o autor,
É nesse sentido que Almeida (2018, p. 29) entende a legalidade como reivindicação
conservadora, embora dela eventualmente há que se recorrer.
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(Almeida, 2020 p. 140). Ou seja, o direito não só convive com as estruturas sociais da opressão,
como as legitima histórica e atualmente, obviamente alterando suas tecnologias.
Por exemplo, a escravidão na história que se traduz hoje em prisões superlotadas de
pessoas negras e mercado de trabalho em piores condições para essa parcela da população.
Ambas têm a mesma estrutura: o racismo. Isso vale para outras estruturas de poder e dominação,
como o sexismo e LGBTIfobia, e, também, de exploração da classe trabalhadora, que, como
aponta Mascaro (2013, p. 87).
Mascaro (2013, p. 60) compreende que a forma jurídica e a forma política do Estado
capitalista foram conformadas, embora sejam diferentes. Para o autor, “A dinâmica das lutas de
entre as classes, grupos e indivíduos se apresenta politicamente, no capitalismo, perpassada
sempre pela forma estatal”. O Estado não representa a extinção das lutas em favor de uma
classe, pelo contrário, é a manutenção da contradição entre classes, considerando que “Sua
forma política não é resolutória das contradições internas do tecido social capitalista, sendo,
antes, a própria forma de sua manifestação” (Mascaro, 2013, p. 60).
Assim, parte-se da consciência de que o direito materializado no Sul Global serve ao
domínio do capital e às relações sociais hierarquizadas. Nos termos de Mascaro (2019, p. 14),
o fim do capitalismo impõe o fim desse direito notadamente técnico, impessoal e abstrato, essa
forma social-jurídica que ao tornar todos juridicamente iguais legitima o domínio das classes
que detém do domínio do capital, “porque somente numa sociedade socialista que se preocupe
com cada qual e com todos, um outro tipo de manifestação poderá então ser a medida justa das
coisas, das pessoas, dos fatos e das situações, deixando se ser uma estrutura mecânica que
chancela a exploração do capital”.
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6
O conservadorismo acredita que sua base moral serve de base para a regulação da vida social e reprodutiva da
sociedade (Birolli; Machado; Vaggione, 2020). O neoconservadorismo denomina as novas configurações do
conservadorismo clássico. Para Almeida (2018, p. 28), “o neoconservadorismo estrutura-se como reação ao
Welfare State [Estado de bem-estar social], à contracultura e à nova esquerda, fenômenos atrelados ao pós-
Segunda Guerra Mundial e ao advento do regime de acumulação fordista”.
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Ocorre que, do ponto de vista histórico, também se elegeu um governo que, no espectro
político tradicional, se aloca no campo das esquerdas, que foi o Partido dos Trabalhadores (PT),
com a eleição do Presidente Lula em 2002. Conforme Ricci (2010, p. 9), o PT optou por um
pacto social pelo desenvolvimento pautado na conciliação de classes e interesses, utilizando-se
daquilo que o autor nomeou de “modernização conservadora”, que é um movimento que
fragmenta as demandas da sociedade civil e promove a inclusão social pelo consumo,
culminando num conservadorismo de classe média individualista, fundamentalista religioso e
avesso aos movimentos populares e agenda de direitos.
Nesse cenário dos governos petistas e desde a promulgação da CF/88, os grupos que
antes estavam solapados na base da sociedade conseguiram alguns avanços. Leis raciais foram
aprovadas como a de cotas para o ensino superior (Brasil, 2012), o Estatuto da Igualdade Racial
(Brasil, 2010) e a lei de que define os crimes de racismo (Brasil, 1989).
As mulheres também conseguiram alguns avanços como a Lei Maria da Penha (Brasil,
2006), Lei do Feminicídio (Brasil, 2015), Lei de cotas para participação política (Brasil, 2022),
a primeira Presidenta foi eleita, além de diversas políticas públicas para mulheres. A população
LGBTI também, de forma mais restrita que as parcelas da população acima mencionadas,
conseguiu avançar no campo dos direitos e das políticas, ainda que de forma precária, e com
isso ganhou visibilidade política, social e midiática (Irineu, 2019).
A população empobrecida do país também contou com diversas políticas sociais e de
distribuição de renda que possibilitaram algum tipo de ascensão social e melhora das condições
de vida. Todos esses avanços, são carregados de limites da própria cidadania no contexto do
capitalismo – ou seja, não foram e não são capazes de alterar significativamente a vida da
população brasileira de forma emancipatória (Boschetti, 2018) – mas gerou um ressentimento
nas classes dominantes e privilegiadas. Brown (2019, p. 215) argumenta que
O ressentimento descrito por Brown (2019) faz parte do movimento do que a autora
nomeou de “ascensão da política antidemocrática no ocidente”, por articular nuances do
neoliberalismo e do neoconservadorismo, o que no Brasil restou evidente nos governos de
Michel Temer, e, sobretudo, de Jair Bolsonaro. Para Brown (2019, p. 10):
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faixa etária, deficiência, dentre outros marcadores, como é o caso do projeto de lei abaixo
ilustrado – muito embora acredita-se que é preciso ter equidade entre números, já que conforme
o IBGE (s.d.), as mulheres são maioria nacional por uma margem considerável.
A legislação penal criminaliza o aborto, salvo naqueles casos em que há risco de vida
para a gestante, gravidez resultante de estupro e por anencefalia, sendo esta última decidida por
judicialização direcionada ao Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 442, de 2018 (Brasil,
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442, DF/2018). A exemplo de
direitos reprodutivos, até mesmo aqueles abortos permitidos por lei – conhecidos como abortos
necessários: estupro, risco à vida da gestante e anencefalia – estão como objetos de discussão
no Congresso Nacional com fins a criminalizá-los, como é o caso do recente PL 2.893/2019.
Proposto pela Dep. Chris Tonietto (PSL/RJ) e Felipe Barros (PSL/RJ), o PL objetiva
revogar dispositivo que trata dos abortos necessários. Extrai-se da justificativa do projeto: “O
autor do estupro ao menos poupou a vida da mulher – senão ela não estaria grávida. Pergunta
que não quer calar: é justo que se faça com a criança o que nem sequer o agressor ousou fazer
com a mãe: matá-la?” (Brasil, Projeto de lei nº 2.893, de 2019).
Já no que diz respeito aos direitos sexuais voltados à comunidade LGBTI no
Congresso Nacional, há tentativas de inclusão de proteções jurídicas desde a Constituinte de
1986/87 e com a subsequente submissão de dois projetos de lei específicos em 1995 – o PL 70
(Brasil, Projeto de lei nº 70, de 1995), acerca de da alteração de prenome para pessoas trans –
e o PL 1.151 (Brasil, Projeto de lei nº 1.151, de 1995), que disciplinava a união civil entre
pessoas do mesmo sexo. Desde então, diversos projetos de lei foram submetidos à apreciação
tanto da Câmara de Deputados, quanto do Senado Federal, e todos, sem exceção, restaram
infrutíferos.
Todo esse cenário de neoconservadorismo legislativo levou o movimento LGBTI a
judicializar os direitos como forma de satisfação e reconhecimento, desembocando no Poder
Judiciário a tarefa de proteção jurídica dessa comunidade – isso significa que os direitos LGBTI
foram reconhecidos via judicialização, e não via legislação (Oliveira, 2021).
Irineu, Oliveira e Freitas (2021, p. 59), em estudos realizados pelo Núcleo de Estudos
sobre Relações da Mulher da Universidade Federal de Mato Grosso (NUEPOM/UFMT),
ilustram que a cruzada antigênero institucionalizada no Poder Legislativo, que faz parte de um
contexto maior de neoconservadorismo crescente no ocidente, possui três estratégias comuns:
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Além disso, tem se utilizado dos pânicos morais sob argumento de que a ideologia de
gênero tem por objetivo a destruição da família tradicional, da sociedade e das crianças, tendo
como foco os grupos de militância feministas e LGBTI. Assim,
Todo esse cenário delineado acaba por revelar que, além das opressões estruturais
como o sexismo, o racismo, a LGBTIfobia e a pobreza, em suas intersecções, a tradição jurídica
latino-americana é marcada pelo fetichismo da lei, que muitas vezes possui leis e direitos de
caráter meramente simbólico, que não garante sua efetividade. Nesse sentido,
Nas sociedades latinas, em geral, não pensamos a lei e o direito como uma espinha
dorsal do contrato social que pode e deve se transformar à medida que se transformam
os sujeitos que os produzem (e suas relações). Mas sim como um arcabouço quase
mítico (platônico, poderíamos dizer) que “determina a realidade”. Além disso, na
conjuntura atual, em face da crescente perda de capacidade indutiva e normativa dos
Estados nacionais, assistimos ao surgimento e intensificação de demandas políticas
no sentido de mais regulação e controle (Corrêa, 2006, p. 109).
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
É nesse sentido que “Não se deve ter nenhuma ilusão sobre os limites do Estado Social
na socialização da riqueza socialmente produzida”, tampouco “conceber o Estado como
mecanismo de superação da desigualdade social, ou como possibilidade de redistribuição [...],
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Sugere a autora que “As alianças que têm se formado para exercer os direitos das
minorias sexuais e de gênero devem, na minha visão, formar ligações, por mais difícil que seja,
com a diversidade da sua própria população” e mais ainda, “todas as ligações com outras
populações sujeitas a condições de condição precária induzida de nosso tempo” (Butler, 2018,
p. 77).
Inclusive, é desse ponto de vista que se reitera a tese 11 da obra “Feminismo para os
99%” de Arruza, Bhattacharya e Fraser (2019, p. 93), a qual convoca a todos movimentos
radicais a se unirem em uma insurgência anticapitalista comum. As autoras rejeitam o
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
neoliberalismo progressista, bem como o populismo reacionário, devendo “unir forças com
outros movimentos anticapitalistas mundo afora – com movimentos ambientalistas, antirracista,
anti-imperialista e LGBTQ+ e com sindicatos”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Apesar dos diversos avanços nas últimas décadas, todo esse programa se aproxima do
neoliberalismo progressista – que não visa abolir o capitalismo, mas apenas diversificar a
hierarquia social, tomando a meritocracia como princípio organizador da vida.
Conclui-se que o reconhecimento formal de direitos no Estado capitalista, embora
necessário para os grupos historicamente discriminados, explorados e oprimidos, não dispõe de
nenhuma capacidade de superação das mais diversas desigualdades. Resta aos movimentos
sociais se insurgir em torno de alianças anticapitalistas e antiopressões como forma de resistir
e demarcar outras possibilidades de viver dentro de uma territorialidade e de um direito
insurgentes sempre surgido nas fissuras e nas brechas das lutas contra o status quo conservador.
REFERÊNCIAS
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2020.
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performativa de assembleia. Editora José Olympio, 2018.
115
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
CORREA, Sonia. Cruzando a linha vermelha: questões não resolvidas no debate sobre
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FERDINAND, Malcon. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São
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HUNT, Lynn Avery. A invenção dos direitos humanos – Uma história. Tradução R.
Eichenberg. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.
IRINEU, Bruna Andrade. Nas tramas da política pública LGBT: um estudo crítico da
experiência brasileira (2003-2015). EdUFMT: Cuiabá, 2019.
116
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. São Paulo: Atlas,
2019.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial
no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
117
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito: tradição no Ocidente e no Brasil. – 11ª ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2019.
118
Capítulo 7
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10535507
INTRODUÇÃO
1
Advogada, bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) – Ituiutaba. ORCID:
https://orcid.org/0009-0004-6661-1143.
2
Professor do curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, Câmpus do
Pantanal - CPAN, Cidade de Corumbá/MS, Doutor em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina,
bolsista CAPES (2022/2023), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019),
bolsista CAPES durante o período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal
(2017-2018), pesquisador vinculado ao projeto de pesquisa Cárcere e Fronteira. E-mail:
antonio.amorim@ufms.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1464-0319.
119
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
por práticas que conduzem conflitos, estabelece pertencimento, concede fala ao ponto que
presta serviço humanitário as partes inseridas e aqueles que se pretende responsabilizar.
Observa-se que mesmo a proposta da justiça restaurativa seja dar voz aos indivíduos
envolvidos nos atos de ofensa, trazendo uma nova possibilidade de enfrentamento dos conflitos,
ela muitas vezes, depara com situações de fragilidades que os vínculos familiares,
institucionais, comunitários enfim, sociais, em modo geral resultam das relações. Ao que
confere o campo juvenil, essa relação se intensifica por fatores da própria necessidade de
transgredir que alguns demonstram.
Em um primeiro momento, aborda-se os conceitos, a questão histórica e a linha de
etária que se pretende demonstrar. Em um segundo momento, visa trabalhar teorias que abrange
a Justiça Restaurativa e seu processo, método de aplicação. Em um terceiro momento volta-se
a problemática proposta neste trabalho, para ao fim respondê-la de forma teórica e utilizando
de teorias por autores como Howard Zerh e Kay Pranis.
Trata-se de um processo de conexão harmônica entre a forma de Justiça Restaurativa
e as normas. Elenca dispositivos constitucionais e integra os poderes legislativo, executivo,
judiciário e a sociedade que necessita ser ouvida e vista por uma nova perspectiva circular de
posição do que aquelas travadas pelas litigiosidades, em posição vertical.
Ao fim, pela narrativa de exemplos de sucesso da implantação do processo restaurativo
em práticas jurídicas com o público adolescente, abrange algumas questões acerca dos possíveis
impactos que a implementação da justiça restaurativa pode ocasionar para os operadores
jurídicos e resultados positivos aos adolescentes e a sociedade.
120
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
121
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Esta visão de conexão Estado, sociedade, ofensor e vítima, o que se tem notado é um
superlotamento de processos nos tribunais e presos encarcerados. Na questão juvenil, os direitos
122
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
foram inseridos, mas a forma de condução não tem produzido o efeito esperado, a
ressocialização não tem efeito nas aplicações punitivas atuais.
Dito isso, importa resgatar o conceito de Processo Restaurativo na preleção da
Resolução 2002/12 da Organização das Nações Unidas – ONU:
Veja que a Justiça Restaurativa possibilita o uso de vários métodos dentre eles, os
círculos, esses círculos são verdadeiras ferramentas de conexão e a sua base metodológica pode
variar, todavia em todos eles a ferramenta da fala se faz presente e necessária. A comissão
organizadora do manual de Práticas Jurídicas do Paraná, conceitua os círculos como sendo “(...)
um encontro para restaurar relações; um modo de resolver conflitos por meio do diálogo, em
que as pessoas envolvidas chegam a acordos definidos em conjunto, com apoio de um
coordenador” (Manual, 2008, p. 09).
Uma visão analítica diante da questão retributiva enquanto Justiça, é aquela então que
determina o crime e penaliza, numa estrutura de Estado que processa, condena e aplica a pena,
deixando ao lado a vítima e o ofensor, se projetando como a parte ofendida, restando a vítima
e o ofensor do fato lesivo, na posição de ferramentas a provar o dano ofendido.
Outro ponto conceitual é o próprio direito, que para a Justiça Restaurativa, se alarga
em questões subjetivas de cada indivíduo dentro do processo restaurativo. Neste sentido pensar
no Direito inerentes aos atos sociais, é pensar na questão humana de dignidade básica. Assim,
123
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Como uma nova proposta de abordagem as questões que envolvam ofensas a justiça
punitiva de forma geral, a Justiça Restaurativa tem encontrado caminhos e possibilidade dentro
do ordenamento jurídico brasileiro. Assim, claramente vem à tona uma imagem de justiça mais
significativa como um todo, aquelas figuras de punição severas já não resistem ao
tempo/espaço. Os desejos da sociedade estão diferentes. A eficácia na aplicação das leis se
tornara insuficientes, assim como o modelo atual tem se tornado.
A necessidade de uma estrutura humanizada, que dê vida aos personagens renegados
do passado toma forma. A vítima, a sociedade e até o ofensor deseja serem escutados, deseja
sentar-se à frente do mecanismo judicial e poderem ganhar voz. Assim, a Justiça Restaurativa
se modifica bem como, os direitos inerentes ao homem, bem como o próprio Direito em si,
caminhando junto a modernização das mudanças no cenário universal. Nessa linha visível cabe
citar a questão da modernidade liquida, teoria implementada por Bauman (1999, p. 07), quanto
a crescente necessidade do aprimoramento, tecnologia, tudo é líquido, fugaz e passageiro.
124
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
No Projeto Justiça para o século 21, os campos de atuação são pautados no enfoque
restaurativo pela base principiológica; as práticas restaurativas enquanto metodologias;
articulação em redes em estratégias de disciplina social; a transformação pessoal e institucional
na transformação cultural das pessoas e instituição e a ambientação restaurativa na resolução
das desconexões e construção do ambiente pacífico.
A criação do Programa JR21 TJRS foi aprovado em outubro de 2014, tendo sua
formulação concluída e sua execução iniciada em março de 2015. O sucesso da implementação
do Projeto, motivou outros polos a iniciarem o mesmo trabalho, chegando a um total de 18
projetos no ano de 2015/2016 (CNJ, 2016, p. 121-126). Em relação ao percentual como métrica
apontada, cabe a observação que o objetivo é da construção da paz em um processo narrativo,
portanto dentre todos os assistidos, o sucesso se pauta na observação das histórias e nas
responsabilidades assumidas.
125
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Eu aprendi que nesse projeto agente abriu a cabeça bom pelo menos eu aprendi a
respeitar as pessoas e os dias que eu compareci aqui amei. E é sério quero “vim” aqui
muitas vezes aprendi a escutar as pessoas intende o que elas “falão” amei muito vim
aqui. Intendi que “agente” não pode fazer tudo o que vem na cabeça, pensa, refletir e
além de tudo ter respeito. É isso que eu acho! (A.C.R.S) (CNJ, 2016, p.382).
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
O Estatuto da Criança e do Adolescente Lei n°. 8.069/90, veio romper com a estrutura
normativa anteriormente existente, trouxe uma roupagem principiológica de Proteção Integral
a Criança, proteção essa que na Lei suprimida a proteção atingia somente aqueles que estavam
em determinado risco de segurança, ou seja, uma lei discriminatória, pois elencava o que seria
risco, deixando desamparado todos aqueles que estariam em condições irregulares mas que, se
não provadas essas irregularidades, as crianças não estariam cobertas por essa proteção legal,
intitulada como Doutrina da Situação Irregular.
A proteção integral da criança orientou a Constituição Federal de 1988, através do seu
art. 227, que diz:
127
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
engrenagem deve estar alinhada entre Estado, Família e sociedade, se um elo se rompe, a
medida restaurativa não se cumpre:
Não podemos mais tratar a infância e a juventude com descaso, não podemos mais
coisificá-los como meros objetos passíveis de tutela de normativa, não podemos mais
diferenciar a quem se deve proteger. Todas as crianças e adolescentes,
indistintamente, estão na condição de sujeitos de direitos e são merecedores de uma
proteção especial aos seus direitos, sem negligência, sem crueldade, sem opressão,
sem discriminação e sem desrespeito.
O SINASE instituído pela Lei 12.594/2012 que por sua vez nasceu da concepção da
Resolução 225 do CNJ, conceitua que as medidas socioeducativas estabelecidas pelo ECA têm
por objetivos:
128
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
129
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Se não vejo na criança uma criança, é porque alguém a violentou antes, e o que vejo
é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado. Essa que vejo na rua, sem pai, sem mãe, sem
casa, cama e comida, essa que vive a solidão das noites sem ninguém por perto, é um
grito, um espanto. Diante dela o mundo deveria parar para começar um novo encontro,
porque a criança é o princípio sem fim e o seu fim é o fim de todos nós.
Isto posto, resposta não há do que, sim, acreditasse na estrutura restaurativa proposta
por este novo paradigma, pelas óticas de Mayara de Carvalho e Kay Pranis, através de um
processo legal, com capacitação de seus componentes mediadores e facilitadores,
proporcionando a narrativa entre seus envolvidos, para satisfação de um Direito de
Responsabilizar voltado não somente ao dano e as penas em si, mas as necessidades do ser
humano social em comunidade, que neste trabalho tem-se na figura representativa d
adolescentes ofensores, que são pessoas reconhecidas de Direitos pelas normativas vigentes.
Não renega-se o trabalho de Howard Zerh, porém, acredita-se num processo mais
humanitário, do que simplesmente a mudança de uma ótica dentro do processo já existente,
acredita-se nas tratativas anteriores aos fatos, ou mesmo posterior todavia, por um processo que
não posiciona verticalmente as partes envolvidas em desconexão de conflitos, chamando todos
ao eixo circular e com isso, provocando a observação de segurarem sua cota de responsabilidade
na construção desse caminho pacífico, que parte do unitário subjetivo para o conjunto social.
130
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
CONSIDERAÇÕES FINAIS
131
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
132
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
CARVALHO, Mayara de; SILVA, Juliana Coelho Tavares da. Autocomposição judicial: o
meio mais rápido e barato para a MacDonaldização das decisões? Análise segundo o CPC que
ama muito tudo isso. In: FARIA, Juliana Cordeiro de; REZENDE, Ester Camila Gomes
Norato; NETO, Edgard Audomar Marx. (Orgs.). Novas tendências: diálogos entre direito
material e processo: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Júnior. Belo
Horizonte: D’Plácido, 2018.
CUPANI, Gabriela. Quando o adolescente entra em conflito com a lei. Blog Instituto
Fazendo História. São Paulo, 18 jul 2019. Disponível em:
https://www.fazendohistoria.org.br/blog-geral/2019/7/18/quando-o-adolescente-entra-em-
conflito-com-a-lei. Acesso em 19 mai. de 2023.
133
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan,
2007.
ZEHR, Howard. Justiça restaurativa. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas
Athena, 2012.
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de
Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2008.
134
Capítulo 8
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10535492
INTRODUÇÃO
1
Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT) – Campus Diamantino. ORCID:
https://orcid.org/0009-0007-3177-9597.
135
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
2. ESTERIOTIPO DE CRIMINOSO
136
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
137
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
(Foucault, 1999). Perpendicular a isso, descortina-se um sistema penal que utiliza-se de seu
poder para estabelecer os corpos a serem criminalizados, sob a influência do capitalismo e do
colonialismo que através de gerações manteve a massa controlada e vigiada, a fim de
estabelecer “corpos dóceis”, definido como “[...] corpo que pode ser submetido, que pode ser
utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (Foucault, 1999, p. 163); o referido
fenômeno se dá, senão somente, em razão dos estereótipos construídos através da
desumanização e consequente animalização do indivíduo não branco, consoante debatido na
seção anterior.
Em contraponto, no âmbito da sociologia criminológica entendiam-se que a distinção
entre o comportamento de “criminoso” e o comportamento adequado à lei, dependia mais da
definição legal do que, de fato, de atitudes boas ou más, positivas ou negativas, vez que
determinado comportamento era criminalizado seguindo parâmetros sociais, considerando que
a legitimidade dos sistemas de valores penais era implicitamente influenciada por questões
político-sociais (Baratta, 2002).
A partir de tais perspectivas, para compreender a criminalidade, em consequência as
teorias que a estudam, em especial o labeling approach, Alessandro Baratta (2002) defende que
é necessário o estudo do sistema penal como norteador para o comportamento socialmente
adequado.
Considerando que o status de delinquente atribuído ao indivíduo está estritamente
correlato às instâncias oficiais do sistema penal (polícia, judiciário e instituições penitenciárias)
e a forma como elas controlam a delinquência. Cabe ressaltar que mesmo que determinado
indivíduo tenha a mesma conduta penalmente punível não será alcançado, se este não for
previamente estigmatizado pelos agentes de controle social (Baratta, 2002).
Baratta parte da concepção de que para a investigação criminológica deve considerar
não apenas a “criminalidade” como também o “criminoso”, já que é imprescindível para
compreensão da realidade social, mediante os processos de interação (Baratta, 2002, p. 86-87).
Para as abordagens criminológicas tradicionais o exame das questões busca estudar “quem é o
criminoso?”, “como se tornou?”, “em quais condições torna-se reincidente?” e “como controlá-
los?”; enquanto, os interacionistas, adeptos do labeling approach, indagam “quais são os
indivíduos considerados desviante?”, “no que resulta esse estigma?” e por fim “quem
determinar a estigmatização?”.
Resultando-se no surgimento de duas linhas de estudo: sendo que a primeira pretendeu
descobrir quanto a formação da “identidade” desviante e o “desvio secundário”, e os efeitos
causados à pessoa etiquetada; ao passo que, a segunda linha, buscou entender a definição, a
138
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
[...] o Direito penal conhece dois pólos ou tendências em suas regulações, por um
lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta
para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro
139
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Infere-se que muito antes da violação da ordem, efetivada por meio do cometimento
do delito, o Estado, através do monopólio do poder, submete o autor como forma de combater
futura periculosidade. Em consonância a isso, Evandro Piza Duarte (2016, p. 520) entende que:
O tipo criminal não foi uma mera categorização de indivíduos, mas a construção
discursiva que delimitava, transformava e atuava sobre conflitos sociais. Da mesma
forma, o tipo racial não foi apenas um rótulo arbitrário, mas um modo de representar
e intervir sobre conflitos sociais.
Para fins de reflexão e melhor entendimento, reprisa-se que “quem ganha a guerra
determina o que é norma, e quem perde há de submeter-se a esta determinação” (Jakobs, 2007,
p. 36), cabe lembrar sob que circunstâncias o Brasil se desenvolveu, a fim de erudir sobre as
posições de poder ocupadas pelas classes sociais mais abastadas e quais indivíduos as
compõem, o que deixa os sujeitos negros - estigmatizados, a margem da sociedade e subalternos
as normas inscritas pelos estratos sociais superiores para o seu próprio privilégio.
Por fim, imperioso ressaltar a conveniência que tal sistema de etiquetamento de
condutas de certos indivíduos gera aos demais sujeitos não etiquetados, que conscientemente
ou não, utilizam-se de suas vantagens em um país onde, por vezes, ignora-se a existência do
racismo estrutural e seus efeitos, negando a voz aos que sofrem, ao passo que contribuem para
a perpetuação do fenômeno.
140
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
jornalismo em sua programação noturna (18h à 00h) de segunda à sexta, período de maior
audiência.
Esse meio de difusão de informações, aqui falando dos programas jornalísticos, com
exemplo do programa Alerta Nacional apresentado por José Siqueira Barros Júnior (Sikêra Jr.)
da emissora da RedeTV!, utiliza-se de discursos sensacionalistas para atingimento de maior
público. Como forma de exemplificar, foram analisados as edições do programa exibidas de
08/11/2021 à 12/11/2021, a partir dos vídeos contidos no site da Rede TV!, em especial, quanto
aos crimes imputados e vitimados à indivíduos manifestadamente negros.
No programa do dia 08/11/2021 noticiou-se “homem é assassinado com um tiro
durante briga”, a equipe de reportagem correspondente informou o desconhecimento do motivo
do crime, no entanto, esclareceu que a vítima se tratava de pessoa com passagens policiais com
mandado de prisão em aberto, o que foi satirizado pelo apresentador com o bordão “CPF
cancelado com sucesso”; “traficante é morto em confronto com a polícia”, tratava-se de
indivíduo com ficha criminal com morte também satirizada pelo apresentador; “policial é morto
durante tentativa de assalto”; “homem mata amigo após acusa-lo de roubar celular dele”.
Na edição do dia 09/11/2021 apresentou-se “no colo do tinhoso - bandido é morto e
dois fogem após troca de tiro com a PM”, a morte do suspeito foi comemorada e satirizada com
o bordão “CPF cancelado”; “traficante que traiu facção acabou morto por ex-comparsas”,
apresentador diz que o indivíduo acabou se tornando alvo de outros criminosos e que isso é
consequência de ter envolvimento com essas pessoas, em razão disso a morte foi comemorada
com o bordão “CPF cancelado”.
No programa do dia 10/11/2021 informou-se “bandido morre em confronto com a
polícia no Mato Grosso”, foi esclarecido que os dois suspeitos cumpriam pena em liberdade,
sendo que um suspeito fugiu e o outro faleceu, este em especial tratava-se de indivíduo branco;
“foragido do Acre é preso depois de levar surra no Mato Grosso”, acusado teve sua imagem
satirizada pelo apresentador; “Eu me apaixonei pela pessoa errada – Jovem morre no lugar do
namorado em possível acerto de contas”, vítima culpada pela violência sofrida por ter se
envolvido com “criminoso”.
Na edição do dia 11/11/2021 anunciou-se “erva daninha – homem executado tinha
dívida com o tráfico de drogas”, embora a equipe correspondente tenha sido informada que,
segundo a polícia, a vítima não tinha ficha criminal, pautando-se em informações da população,
afirmaram que o acusado tinha envolvimento com o tráfico de drogas e a vítima foi satirizada
com o bordão “CPF cancelado”; “arrastado pro inferno – fez arrastão nas ruas do Cabo e teve
CPF cancelado”, acusado de realizar arrastões teve a morte comemorada com “mais uma notícia
141
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
boa”; “Covardes e perigosos!! – ladrões atacam e ameaçam mulheres na zona Leste de SP”,
apresentador alerta quanto a periculosidade enquanto mostram a imagem dos indivíduos; “Fuga
frustrada - bandido morre após assalto e comparsa é preso na fuga”, morte satirizada com
bordão “CPF cancelado”.
Por fim, na edição do dia 12/11/2021: “da cadeia para o cemitério – câmeras flagram
execução de dois criminosos”, as mortes foram comemoradas com o bordão “CPF cancelado”,
sendo que a equipe de reportagem informou que as vítimas respondiam por crimes de roubo,
tráfico e homicídio e atualmente estavam em regime semiaberto; “surtou no ônibus – homem
matou passageira e feriu duas pessoas”; “vítima de bandido cara de pau – grávida é salva por
PM à paisana em assalto em clínica no DF”; “pistoleiro executou o sargento do exército Lucas
Guimarães”, família ofereceu recompensa de R$ 40.000,00, programa divulgou imagem do
indivíduo de máscara asseverando que o executor do crime possui tatuagens e que
provavelmente já deve ter praticado outros crimes, com base em suposições; “três patetas -
polícia captura três fugitivos de penitenciária”.
Embora tenha sido selecionado determinado período, a título de exemplo, dando
ênfase aos crimes de maior ocorrência (homicídio, roubo, lesão corporal etc.) com participação
de indivíduos estereotipados, frisa-se que não foram noticiados, nesse período, nenhum dos
crimes classificados como crime de colarinho branco, denotando a preferência por crimes
violentos, com o fito de instaurar o pânico moral.
Percebe-se, ainda, que se falando em crimes que resultaram na morte de indivíduo
criminalizado, seja na qualidade de acusados ou de vítimas, apenas um indivíduo branco teve
sua morte satirizada com o bordão “CPF cancelado”, contudo, tratava-se de individuo também
estigmatizado em função da criminalidade secundária.
A prática de comemorar a morte de acusados, embora o ocorrido seja recente, já foi
corroborado por Eugenio Raúl Zaffaroni (2012, p. 311) em sua obra A Palavra dos Mortos, na
qual aduz “os mortos são um produto natural da violência deles”, e a comemoração do efeito
morte é em virtude da eliminação do inimigo.
Denota-se que, a mídia acaba vinculando a imagem do indivíduo negro, ao passo que,
ridiculariza o estereotipo, expõe rostos, divulga informações extraoficiais e dissemina o medo,
objetivando reafirmar seu discurso preconceituoso. Registra-se que tal abordagem não ocorre
apenas com os acusados e suspeitos de praticar crimes, uma vez que ocorre também com as
vítimas, em se tratando de indivíduos pertencentes ao mesmo extrato dos criminosos
identificados por semelhança a eles.
142
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Dessa forma, extrapola o cunho informativo, eis que dotado de tendenciosidade que,
embora em nenhum momento utilize-se de termos que exprimam explicitamente o racismo, tal
ocorrência se manifesta nas entrelinhas.
Compreende-se que para que haja o eles, é imprescindível que possam ser
identificados como diferentes de nós e, uma vez estigmatizado, o negro por tabela é tratado
como inimigo a ser combatido, pois haverá comparações ao semelhante dele (criminoso). Cabe
registrar que a mídia escolhe inclusive os crimes para dar enfoque, visto que não se trata de
uma seletividade penal aleatória, são escolhidos com base a legitimar a perseguição dos negros
que compõe os extratos sociais inferiores, intitulados bodes expiatórios, resultando na
143
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
minimização dos crimes cometidos por outros indivíduos não etiquetado, dado que não servem
para corroborar a imagem deles.
Os programas de TV apresentam-se como meio ideal para a difusão do medo no âmbito
social, “[...] pois joga com imagens, mostrando alguns dos poucos estereotipados que
delinquem e, de imediato, os que não delinquiram ou que só incorrem em infrações menores,
mas são parecidos” (Zaffaroni, 2013, p. 201).
Este é um dos exemplos de situação, onde a mídia dispõe de seus discursos implícitos,
já que não é necessário que declarem que se determinado indivíduo se assemelha com o
criminoso estereotipado também delinquirá em algum momento. Necessário registrar que o
único meio onde a criminalidade advinda do negro – estereotipado, não gera comoção e
compadecimento com a vítima, se trata da ocorrida contra pessoa negra, principalmente dentro
do mesmo estrato social; pois não há reconhecimento com o nós, porquanto não carecedores de
piedade, visto a naturalidade da violência entre eles, já que dotados de incivilidade - condição
própria dos inferiores.
E isso se dá em razão da seletividade existente não apenas na criminalização, mas
também na vitimização A partir da análise de todos os pontos levantados até aqui, é possível
identificar a relação entre a criminologia midiática e o racismo, dada a sua natureza estrutural,
intrínseca a sociedade brasileira, de perseguição ao negro.
Outrossim, a personificação da criminologia midiática se apresenta na pessoa do
empresário moral - “[...] comunicadores, os formadores de opinião, os intérpretes das notícias”
(Zaffaroni, 2013, p. 215) que, por óbvio, age pautado em interesses de todo um meio
empresarial. Sob esse aspecto econômico, manifesta-se a influência do capitalismo no meio
midiático, onde busca perpetuar os interesses da burguesia através da legitimação,
naturalizando a ideia de inferioridade dos acusados.
Considerando-se que “a acumulação de capital que os negócios das telecomunicações
propiciam transferiu as empresas de informação para um lugar econômico central [...]” (Batista,
2002, p. 3), oportunidade em que o foco é redirecionado para questões criminais sem considerar
o determinismo. Com a ausência do determinismo, revela-se um sistema, onde o único culpado
pelo delito é o próprio infrator, retirando de jogo questões sociais e históricas, que conforme
professado durante o desenvolvimento desta pesquisa, influem tanto na criminalização primária
quanto na secundária do individuo negro.
Veja-se que, uma vez reconhecido o poder da pecúnia nesse meio, eis que tais
programas televisivos são financiados por patrocinadores, socorrem-se a difusão de
informações da maneira mais espetacular possível em busca de audiência, tirando vantagens do
144
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
clamor social pela pena, quando, conforme diz Nilo Batista (2002, p. 4), reivindicam-se através
do “delito-notícia” pela “pena-notícia”.
Repisa-se que a criminologia midiática atua tanto por influência da estrutura social
brasileira, corroborando o racismo, quanto pelo capitalismo, como forma de preservar, garantir
e prosperar todo o capital que tal indústria lucra ao difundir o pânico moral.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Depreende-se que a mídia influencia também no sistema penal, que colhe seus
estereótipos nos meios de comunicação e, posteriormente, devolve-os através dos estereótipos
dos segregados ao meio social, como forma de orientar quanto ao tipo. A saber, conforme dados
fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN, 2021, p. 203), no ano de 2020
a população carcerária negra tratava-se de 66,3%, enquanto no ano de 2005 compunha 58,4%,
o que indica não apenas a maioria da população carcerária, como também uma crescente,
corroborando a “cara” que representa o sistema prisional e a manutenção do estereotipo do
criminoso.
Lado outro, conforme o Centro Brasileiro de Análise Planejamento (CEBRAP, 2021)
que elaborou a pesquisa com a temática “Mídia, sistema de justiça criminal e encarceramento:
narrativas compartilhadas e influências recíprocas”, na análise de sentenças, quanto ao
reconhecimento como prova, concluiu-se que:
146
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
prisão preventiva, com o menor período de permanência de 24 dias e maior período de 851 dias,
aproximadamente dois anos e 9 meses.
Para Eugenio Raúl Zaffaroni (1989, p. 134):
[...] a carga estigmática não é provocada pela condenação formal, mas pelo simples
contato com o sistema penal. Os meios de comunicação em massa contribuem para
isso em alta medida, ao difundirem fotografias e adiantarem-se às sentenças com
qualificações como “vagabundos”, “chacais”, etc.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
televisiva a utilização da imagem dos indivíduos negros como objeto de disseminação do pânico
moral, na qualidade de inimigo a ser combatido, despendendo, inclusive, de discursos
implícitos quanto a sua forma de atuação, resultando na criminalização prévia do indivíduo
racializado.
Deste modo, contribui na construção do estigma social do negro, na sua disseminação
e perpetuação, que resulta na maior atribuição de crimes a indivíduos estigmatizados, que acaba
por reverberar na definição da população carcerária. Porquanto, uma vez verificada a influência
que exerce tanto no meio social, quanto no sistema de justiça, é crível que medidas sejam
tomadas para refrear essa atuação, sem prejuízo da liberdade de expressão, através de debates
e orientações no sentido de prevenir os meios de comunicação quanto ao poder exercido e ao
sistema de justiça no que se refere as fontes utilizadas como meio de prova.
Ademais, por se tratar de um problema social intrínseco a estrutura social brasileira,
deve-se trabalhar não apenas nos meios especializados (jornalístico e jurídico), como também,
por meio da mídia, na disseminação de estudos e matérias que tragam à baila o problema
existente, que há muito tempo tem sido negligenciado.
REFERÊNCIAS
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
JAKOBS, Günther, MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas.
2. ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007.
149
Capítulo 9
ENCARCERADOS PREVENTIVAMENTE:
O controle do Sistema de Justiça Criminal sobre os corpos negros
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10535488
INTRODUÇÃO
1
Professor do curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, Câmpus do
Pantanal - CPAN, Cidade de Corumbá/MS, Doutor em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina,
bolsista CAPES (2022/2023), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019),
bolsista CAPES durante o período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal
(2017-2018), pesquisador vinculado ao projeto de pesquisa Cárcere e Fronteira. E-mail:
antonio.amorim@ufms.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1464-0319.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
por aí”, essa situação é clara demonstração de que o sistema de justiça criminal tem suas vítimas
preferidas, qual seja, o corpo negro.
Diante disso, essa pesquisa tem o seguinte problema de pesquisa: nos anos de 2020 a
2021 o sistema de justiça criminal brasileiro preferiu o encarceramento dos corpos negros pela
prisão preventiva? A resposta a esse problema de pesquisa se dará pelo método dedutivo, da
pesquisa bibliográfica, analisando as teorias de processo penal no que toca aos requisitos da
prisão preventiva, além da coleta de dados qualitativo na Plataforma Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, analisando a quantidade de presos provisórios no Brasil pelo viés racial.
O objetivo geral dessa pesquisa é analisar se o sistema de justiça criminal opera
encarcerando o corpo negro preventivamente. Como objetivo específico, essa pesquisa
descreverá os elementos necessários para decretação da prisão preventiva, analisará o racismo
no sistema de justiça criminal, por fim, apresentando resposta ao problema de pesquisa
levantado, discutirá o aprisionamento da população negra pelo sistema de justiça criminal.
Essa pesquisa está estruturada da seguinte forma, na primeira seção será discutido
aspectos críticos sobre os motivos decisionais da prisão preventiva, os quais são responsáveis
pelo aprisionamento antecipado dos investigados/acusados. Na segunda seção, será analisado o
racismo no sistema de justiça criminal, discutindo os dados apresentados pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, onde se verifica o padrão racista do Estado brasileiro, que é de encarcerar
corpos negros. Na última seção, será discutido o encarceramento da população negra pelo
sistema de justiça criminal, que opera desde seu nascimento de modo racista e com objetivo de
eliminar os vulneráveis.
A prisão preventiva, também considerada precária, por não ter em sua essência
elementos robustos de comprovação da autoria delitiva (Lopes Jr., 2022), é estruturada pelo
Código de Processo Penal de modo a ser a última alternativa preferida pelo juízo criminal.
Por isso, analisar os elementos responsáveis pela prisão preventiva se demonstra
necessário e imprescindível, para que então possa ser possível compreender os dados do sistema
prisional apresentado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O corpo preto tem sido o
preferido no processo de encarceramento em massa, estruturado pela engenharia do terror
racial.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Na teoria geral das cautelares, verifica-se que a prisão preventiva deve ser a última
medida a ser adotada, motivo pelo qual, não pode o juízo criminal preferir a prisão preventiva,
deve se utilizar de outros elementos, como medidas cautelares diversas da prisão (art. 319, do
CPP), liberdade provisória com ou sem fiança (art. 321, do CPP).
A prisão preventiva é antecedente, não analisa profundamente o mérito da ação, uma
vez que ainda não se estabeleceu o contrário e ampla defesa, já que na maioria das vezes ocorre
na fase do inquérito policial ou em audiência de custódia. Ainda que com elementares mínimas
de autoria e materialidade delitiva, é preciso instruir o processo, sob pena da prisão preventiva
se tornar cumprimento antecipado de pena, situação essa que é vedada pelo art. 313, §2º, do
CPP.
O problema é que no Brasil a exceção (prisão preventiva) tem-se tornado a regra, uma
vez que o sistema de justiça criminal está prendendo sem culpa formada, sucumbindo do
acusado o direito de contraditório e ampla defesa, além de estar desalinhado à homogeneidade.
O princípio da homogeneidade, disciplina que o juiz quando da decisão em cognição
sumária, deve fazer um juízo cognitivo sobre a futura sentença que proferirá no processo, ocorre
que, o processo ainda não foi instruído, a defesa não se manifestou e não produziu nenhuma
prova, com isso, novos elementos (prova/detalhes) que podem surgir no curso da instrução
criminal, podem influir na decisão do julgador, com isso, “no processo penal, assim como na
vida, os detalhes podem fazer toda a diferença, motivo pelo qual devem ser constantemente
monitorados” (Rosa, 2020, p. 17).
Deve ser levado em consideração que todo esse exercício de cognição sumária,
promove no julgador a antecipação do julgamento, o que faz com que o acusado já preveja que
a sentença penal proferida por esse juízo será condenatória, situação essa processual em total
desarmonia com o juízo imparcial ou pelo menos o que se espera dele (Rosa, 2020).
Vale lembrar, que em cognição sumária, o juízo criminal está decidindo apenas com
base em elementos de informação, que são extraídos dos autos do Inquérito Policial, sem
garantia nenhuma de contraditório e ampla defesa ao acusado, em total afronta ao inciso II, do
art. 282, do CPP (Lopes Jr, 2022).
Pontua Alexandre Morais da Rosa (2020, p. 17):
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A história do Brasil Colônia se inicia com a invasão das suas terras, sendo considerado
uma colônia de Portugal. A colonização nunca se desentranhou das relações sociais e jurídicas
no Brasil, pelo contrário, ainda continuam em plena operação sistêmica (Oliveira, 2021).
Assim, “a fundação de nosso país acontece tendo a escravidão baseada na
hierarquização racial como pilar (Borges, 2019, p. 57), mais que isso, as matrizes que funda o
Brasil são de ideologias racistas, operando a construção do Estado brasileiro baseado na
exclusão de raças (Oliveira, 2021).
Juliana Borges (2019, p. 19) analisando o racismo no sistema prisional, acentua que o
processo de correção utilizado no Brasil é um modelo direcionado de segregação de corpos
pretos, quando comenta que:
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são negros, representando um total de 429.255 (quatrocentos e vinte e nove mil duzentos e
cinquenta e cinco) de todo o sistema prisional (FBSP, 2022).
De acordo com o IBGE (2022), estima-se que no censo de 2022, 46,8% da população
brasileira se autodeclare parda e 9,4% preta, com isso, apenas 56,2% de toda população
brasileira será considerada preta/parda, no entanto, quando a temática é sobre presos, tem-se
um patamar muito superior (67,5%).
Presos provisórios, são aqueles que foram recolhidos no sistema prisional
preventivamente e aguardam julgamento encarcerados, esperando que o Estado julgue sua ação.
Esperam o julgamento de sua ação em uma modalidade de cumprimento de pena antecipado,
pessoas presas preventivamente, sem instrução criminal, em total desarmonia com o sistema
acusatório e garantias processuais.
O Estado de Mato Grosso do Sul em 2021 tinha 5.016 (cinco mil e dezesseis) presos
provisórios, o Estado de Mato Grosso no mesmo ano, tinha 6.588 (seis mil quinhentos e oitenta
e oito) presos provisórios (seres humanos encarcerados esperando julgamento). Nesse sentido,
“caso matenhamos esse ritmo, em 2075, uma em cada 1 em cada 10 pessoas estará em privação
de liberdade no Brasil” (Borges, 2019, p, 19), por isso, a prisão preventiva não se tornar a regra
no sistema prisional, pelo contrário, deve ser a exceção, sempre utilizada em último caso.
O fato do sujeito preto preso em flagrante delito, conduzido perante a autoridade
judicial, para audiência de custódia, tem mais chance de ter a sua prisão convertida em
preventiva do que o branco, nesse sentido, aponta Warat (2004, p. 176) que o cinismo é operado
como forma de agir das relações, transportando isso para o sistema de justiça criminal, verifica-
se que as questões de raça são preponderantes na tomada de decisões:
A maioria dos casos criminais não são ditos pelos magistrados seus pensamentos sobre
a raça, são raras as exceções em que se utiliza de fundamento racista para encarcerar o corpo
preto. Na próxima seção, será verificado um caso concreto de prisão preventiva decretada por
um magistrado criminal de Florianópolis/SC, que considerou o fator raça como justificativa
para decretação da medida assecuratória.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Os motivos que levam pessoas ao aprisionamento pela via da prisão preventiva devem
obedecer a estrita legalidade, qual seja, o padrão ético de expressões previamente estabelecidas
que justificam motivos seguros do uso da ultimada medida.
Esse modelo de sistema de justiça criminal, que se utiliza como regra do
aprisionamento da população negra, mantém em pleno funcionamento a colonização, ainda
operando o modelo de segregação de corpos.
Entende Soraia da Rosa Mendes (2021, p. 86):
Pois bem, para chegarmos ao mais próximo de padrão de garantia de direitos, para que
o motivo da raça não seja utilizado como fundamento determinante para o aprisionamento de
corpos, o cumprimento das normas de garantias de direitos fundamentais se demonstra como
imprescindíveis.
É a partir desse padrão, em que garantias de direitos fundamentais são estabelecidos,
com objetivo de promover uma atuação única dirigida pelo Estado, na qual, o motivo da raça
não pode ser levado em consideração no momento da decisão sobre o aprisionamento.
Para tanto, repensar as ciências criminais de modo crítico, compreendendo o papel do
racismo nas relações de poder, com isso, acentua Warat (2004, p. 194):
Desta forma, se verifica que a produção de um saber crítico se encontra norteado pelas
mesmas obsessões da ortodoxia epistemológica, que, a partir de uma interrogação
sobre a cientificidade da ciência, pretende impor normas e critérios em torno da
positividade do conhecimento científico. Assim, o saber crítico, adaptando certos
hábitos epistemológicos consagrados, posto ser dono de um lugar, fora do poder, de
uma verdade indiscutível, com a qual crê poder instaurar um conhecimento, apto para
uma transformação radical do Direito e da sociedade, o que não deixa de ser uma
ilusão, eticamente diferenciada.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Nesse sentido, quando se verifica pelos dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (2022) que no ano de 2020 66,3% e no ano de 2021 67,5% da população
carcerária é negra, de outro lado, representam apenas 56,2% de toda população brasileira.
Prender é uma escolha, quando o juiz decide pela prisão, o faz de modo deliberado,
até mesmo porque, “a explicação posterior, a saber, pós-decisão, é local adequado para
justificativas consonantes forçadas (viés retrospectivo), ao mesmo tempo em que pode implicar
na tendência à evitação de novos elementos dissonantes, em geral, com viés de confirmação”
(Rosa, 2020, p. 19-20).
Além disso, “o problema é que a construção das razões é de trás para frente, a saber,
do presente para o passado, autorizando que possamos justificar (retoricamente ou manipulando
premissas e fatos)” (Rosa, 2020, p. 21).
Por isso, considerando as expressões aferidas pelos dados apresentados pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (2022) de que 67,5% da população carcerária brasileira é negra,
somado as estimativas do IBGE para o ano de 2022, de que apenas 56,2% da população seja
considerada negro, é clara demonstração de que o sistema de justiça criminal opera de modo
racista, encarcerando a população negra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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demonstra que o sistema de justiça criminal tem vítimas preferidas, que o corpo negro é objeto
de controle social e de repressão pelo Estado.
Os dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, demonstram que
nos anos de 2020 e 2021, o sistema prisional brasileiro prendeu e segregou preferencialmente
corpos negros e, que no ano de 2021 teve um aumento de 1,2% com referência ao ano de 2020.
Desse modo, é de se concluir que os corpos negros têm sido vítimas do sistema de
justiça criminal, em flagrante construção social de racismo e de encarceramento em massa da
população negra.
REFERÊNCIAS
BRASIL. [CPP]. Código de Processo Penal de 1941. Brasília, DF: Presidência da República,
[1941]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del3689compilado.htm. Acesso em: 28 jun. 2023.
LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2022.
MIGALHAS. Em audiência, juiz chama presa de raça ruim: “em país decente perderia poder
do filho”. Migalhas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m0qVKs-
Pu1E&t=65s&ab_channel=Migalhas. Acesso em: 28 jun. 2023.
ROSA. Alexandre Morais da. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction.
Florianópolis: Emais, 2020.
OLIVEIRA. Dennis de. Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica. São Paulo:
Editora Dandara, 2021.
WARAT. Luís Alberto. Dilemas sobre a história das verdades jurídicas: tópicos para
refletir e discutir. Revista Sequência, n. 6, Florianópolis, p. 97-113. Disponível em:
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
WARAT. Luís Alberto. O outro lado da dogmática jurídica. In: MEZZAROBA, Orides et al.
(coords). Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação
Boitex, 2004.
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