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Organizadores:

Antônio Leonardo Amorim


Francisco Quintanilha Véras Neto

CRÍTICA AO DIREITO
PENAL BRASILEIRO
Debates sobre o Sistema de Justiça Criminal

ISBN: 978-65-982514-0-6
Prisma Editorial

1ª Edição
Florianópolis/SC
2024
CRÍTICA AO DIREITO PENAL BRASILEIRO: Debates sobre o Sistema de Justiça Criminal
© 2024 by Antônio Leonardo Amorim e Francisco Quintanilha Véras Neto is licensed under
CC BY 4.0.

Esta obra é publicada em acesso aberto. O conteúdo dos capítulos, os dados apresentados, bem
como a revisão ortográfica e gramatical são de responsabilidade de seus autores, detentores de
todos os Direitos Autorais, que permitem o download e o compartilhamento, com a devida
atribuição de crédito, mas sem que seja possível alterar a obra, de nenhuma forma, ou utilizá-
la para fins comerciais.

Conselho Editorial: André Afonso Tavares; Camilla Martins dos Santos Benevides; José
Carlos Loitey Bergamini; Miriam Olivia Knopik Ferraz; Tássia Teixeira de Freitas Bianco
Erbano Cavalli.
Organizadores: Antônio Leonardo Amorim; Francisco Quintanilha Verás Neto.
Diagramação e Capa: Prisma Editorial
Contato: https://www.assessoriaprisma.com.br/

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Crítica ao processo penal brasileiro [recurso eletrônico] : debates sobre o


sistema de justiça criminal / Organização: Antônio Leonardo
Amorim, Francisco Quintanilha Véras Neto.— Florianópolis, SC : Prisma
Editorial, 2024.
1 arquivo texto (160 p.) : il. PDF ; 1,45 MB.

Modo de acesso: World Wide Web.


Disponível em formato PDF.
Título retirado da tela de abertura (visualizado em 25 jan. 2024).
eISBN 978-65-982514-0-6
Inclui bibliografias.

1. Direito penal - Brasil. 2. Processo penal - Brasil. 3. Organização


judiciária penal - Brasil. 4. Prisão preventiva. 5. Justiça restaurativa. 6.
Direito penal - Crítica e interpretação. I. Amorim, Antônio Leonardo. II.
Véras Neto, Francisco Quintanilha. III. Título.

CDDir: ed. 4 – 341.50981


CDD: ed. 23 – 364.0981
Bibliotecário: Adriano Lopes CRB-9/1429
CONSELHO EDITORIAL

André Afonso Tavares


Universidade de Santa Cruz do Sul

Camilla Martins dos Santos Benevides


Università degli Studi di Roma La Sapienza

José Carlos Loitey Bergamini


Universidade Federal de Santa Catarina

Miriam Olivia Knopik Ferraz


Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Tássia Teixeira de Freitas Bianco Erbano Cavalli


Centro Universitário Campo Real
SOBRE OS AUTORES

ANTÔNIO LEONARDO AMORIM


Professor do curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul -
UFMS, Câmpus do Pantanal - CPAN, Cidade de Corumbá/MS, Doutor em Direito na
Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CAPES (2022/2023), Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019), bolsista CAPES durante o período
do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal (2017-2018),
pesquisador vinculado ao projeto de pesquisa Cárcere e Fronteira. E-mail:
antonio.amorim@ufms.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1464-0319.

BRENDHON ANDRADE OLIVEIRA


Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT – Campus Diamantino).
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (PPGD/UFMT). Graduado em
Direito pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: andrade.brendhon@unemat.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8204-651X.

FABIANA MONTANHER GUEDES


Advogada, bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) –
Ituiutaba. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-6661-1143.

FRANCISCO QUINTANILHA VÉRAS NETO


Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (2004), Pós-
Doutor em Direito pela UFSC (2014). Professor Titular da Universidade Federal de Santa
Catarina nas disciplinas de Filosofia do Direito e Teoria do Direito II. Professor permanente no
programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina,
Líder do Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para uma Sociedade Sustentável
(CNPQ). E-mail: quintaveras@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1620-6017.

GUILHERME FILIPE ANDRADE DOS SANTOS


Doutorando em Direito, Política e Sociedade, na linha de pesquisa de Historicismo,
Conhecimento Crítico e Subjetividade, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC), bolsista CAPES desde 2020. Mestre
em Direito, área de concentração em Teoria e História do Direito, pelo mesmo programa e linha
de pesquisa. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. ORCID:
https://orcid.org/0009-0004-1596-5929.

JEFFERSON VIRGÍLIO
Antropólogo. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. E-mail
jv.ufsc@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0023-8505.

JÉSSICA TAYNÁ OLIVEIRA CAMPOS


Bacharela em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG, Pós-Graduanda
em Direito Penal e Processo Penal; Investigação Criminal e Legislação Penal; Investigação
Forense e Perícia Criminal pela FACUMINAS. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-7224-
5215.

JOICY DA SILVA SOARES


Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT) – Campus
Diamantino. ORCID: https://orcid.org/0009-0007-3177-9597.

KAROLINE BASSI HUBER


Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT) – Campus de
Diamantino. ORCID: https://orcid.org/0009-0009-2875-5.

WAGNER ENO LOPES


Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Catarina, Pós-Graduando da Pontifica
Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: wagnerenolopes@hotmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0009-0004-7190-4143.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 9

Capítulo 1
CITAÇÕES DE SUJEITOS INDÍGENAS NO PROCESSO PENAL .............................. 10

Jefferson Virgílio

Capítulo 2
USO DE TECNOLOGIAS DE COLETA E ANÁLISE DE DADOS PESSOAIS NA
PERSECUÇÃO PENAL: Controle biopolítico, impactos e violações de direitos
fundamentais........................................................................................................................... 23

Wagner Eno Lopes

Francisco Quintanilha Véras Neto

Capítulo 3
RACIONALIDADE GOVERNAMENTAL NA IMPLEMENTAÇÃO DAS UNIDADES
DE POLÍCIA PACIFICADORA: UPP, ou da razão pau de arara ................................... 39

Guilherme Filipe Andrade Dos Santos

Capítulo 4
A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA APLICAÇÃO PELO PODER
JUDICIÁRIO MINEIRO ...................................................................................................... 64

Jéssica Tayná Oliveira Campos

Antônio Leonardo Amorim


Capítulo 5
A BUSCA PELO DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIO: Quais as
contribuições da Lei n. 13.964/2019? .................................................................................... 78

Karoline Bassi Huber

Antônio Leonardo Amorim

Capítulo 6
QUE CIDADANIA AS ESTRUTURAS DE DOMINAÇÃO PERMITEM NO SUL
GLOBAL? Um estudo sobre o Brasil Império e Contemporâneo ..................................... 94

Brendhon Andrade Oliveira

Francisco Quintanilha Véras Neto

Capítulo 7
A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL: Da ofensa a reintegração – em busca do
melhor interesse para as crianças e adolescentes .............................................................. 119

Fabiana Montanher Guedes

Antônio Leonardo Amorim

Capítulo 8
A CONSTRUÇÃO DO SER “MATÁVEL”: Uma análise da influência midiática na
construção do “eliminável” ................................................................................................. 135

Joicy da Silva Soares

Capítulo 9
ENCARCERADOS PREVENTIVAMENTE: O controle do Sistema de Justiça Criminal
sobre os corpos negros ......................................................................................................... 150

Antônio Leonardo Amorim


APRESENTAÇÃO

É preciso repensar o Direito Processual Penal brasileiro, em especial, suas formas e


métodos de solução dos conflitos sociais, nos quais as minorias têm sido objeto de controle
extremado pelo Estado.
Repensar essas estruturas sociais de manutenção de poder é uma tarefa árdua, mesmo
assim, a partir de teóricos críticos, os Professores Dr. Francisco Quintanilha Véras Neto e Prof.
Dr. Antônio Leonardo Amorim, estruturaram essa obra de modo que seja possível refletir sobre
a realidade do sistema de justiça criminal.
Buscar novas perspectivas emancipadoras sociais, é uma das frentes de luta do Grupo
Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para uma Sociedade Sustentável (CNPQ), que é
responsável pelo auxílio teórico de formação dos professores organizadores desta obra, que a
partir das teorias críticas analisadas pelo grupo de pesquisa, auxiliam seus orientandos de
trabalho de conclusão de curso a elaborarem suas pesquisas.
Essa obra é fruto de pesquisas desenvolvidas pelos orientandos de trabalho de
conclusão de curso dos professores organizadores em diferentes regiões do Brasil (Sul, Sudeste
e Centro-Oeste), a obra conta com pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e da Universidade Estadual de
Minas Gerais (UEMG).
Desejamos a todos e todas uma excelente leitura!

Florianópolis/SC 17 de janeiro de 2024.

Francisco Quintanilha Véras Neto


Antônio Leonardo Amorim

9
Capítulo 1

CITAÇÕES DE SUJEITOS INDÍGENAS NO


PROCESSO PENAL
Jefferson Virgílio1

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10528452

INTRODUÇÃO

O artigo está dividido em três partes principais, para além desta introdução e de uma
conclusão ao final. As duas primeiras partes são de dimensões bastante reduzidas, pois apenas
pretextam apresentar, respetivamente, o mínimo sobre a diversidade indígena que é conhecida
no Brasil para então tecer alguns breves comentários sobre a evolução da situação de
incapacidade legal indígena no Brasil.
O terceiro e último item, de maior dimensão, é o cerne do artigo e busca discutir
algumas questões envolvendo os tipos de citação que são conhecidos e as características que
estes podem implicar se ignorarmos a diversidade indígena nacional e o fim da tutela estatal.

2. A DIVERSIDADE INDÍGENA NO BRASIL

Existem atualmente mapeados no Brasil mais de 300 povos indígenas distintos, sendo
conhecidas pelo menos 274 línguas indígenas diferentes, e estando distribuídos em um total
superior à 900 mil pessoas (IBGE, 2012, 2018). Dados que são subsídios iniciais para revelar
não apenas a dimensão populacional dos índios no Brasil, como a sua enorme diversidade.

1
Antropólogo. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. E-mail jv.ufsc@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-0023-8505.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Não se trata de uma homogênea população socialmente arremessada para periferias


em face de processos de marginalização, mas de um conjunto de populações representativas de
um complexo e heterogéneo estrato social que reside em diferentes partes do território nacional
e com características de organização e de níveis e tipos de contatos com a sociedade envolvente
bastante distintos entre si.
Apenas nos territórios reconhecidos como brasileiros são reconhecidos quinze
conglomerados linguísticos nativos (Urban, 1998; IBGE, 2012).
A enorme diversidade cultural existente entre povos indígenas no Brasil permite
afirmar que práticas e conhecimentos alimentares, religiosos, além dos domínios sobre a fauna,
flora, solo e águas também variam muito entre os povos.
Há povos predominantemente caçadores, outros coletores, ou artesãos, e ainda os
agricultores e os pescadores (Ribeiro, 1957). Há povos nômades e seminômades, povos de
contato recente, povos com contatos interrompidos e recuperados ao longo do tempo, e povos
em isolamento voluntário desde sempre (Oliveira, 1978).
Há ainda povos com contatos contínuos e realizados com não-indígenas por mais de
quatro ou cinco séculos. Conhecemos povos que estão com a língua completamente perdida, e
outros com a língua comprometida, em vias de extinção ou até em franca recuperação. Há povos
com a língua intocada e outros que são identificados como poli ou multilíngues (Ribeiro, 1957;
Urban, 1998).
No que remete as crenças e religiões, há povos animistas, povos monoteístas e
politeístas, além daqueles convertidos quase integralmente ao evangelho cristão (Wright, 1999
& 2004). Temos povos que possuem linguagens de sinais particulares e únicas e outros que se
comunicam por assobios.
Temos mais de um povo que a fala masculina é distinta da feminina (Balmori, 1967).
Há povos que desconhecem a pesca, e há povos polígamos, com a maioria conhecida sendo
composta por povos monogâmicos.
Muitos povos residem nas florestas, mas também há habitantes nas planícies, no
cerrado, há populações ribeirinhas, e outros que se escondem em cavernas ou no topo de
montanhas, entre muitos outros modelos de organização social ou de ocupação territorial
possíveis (Schmidt, 1942).
O ponto a ser destacado e que nos interessa é que não é possível falar em unidade
cultural, organizacional, linguística e principalmente, de compreensão ou domínio das
estruturas e burocracias não-indígenas por parte dos povos indígenas.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

3. A TUTELA ESTATAL SOBRE POVOS INDÍGENAS

Vários são os dispositivos prévios à república brasileira que mencionam, determinam


ou regulam algum tipo de tutela sobre os povos indígenas por parte do Estado. Ainda durante o
império português havia a figura do procurador de índios e durante mais de um século
permaneceu a estrutura do diretório de índios. Estes dispositivos permitiam desde o afastamento
de crianças de seus genitores e familiares, até a escravidão indígena pelo Estado (Virgílio,
2018).
Um dos últimos dispositivos de largo alcance e permanência no país que propôs a
manutenção da tutela é o Código Civil de 1916, que diz o seguinte em seu artigo 6º:

Art. 6º. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, I), ou à maneira de os
exercer:
[...]
IV - os silvícolas.
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis
e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação.

Geralmente estes dispositivos impedem a responsabilização dos indígenas para


determinados atos, com alcance óbvio para os dispositivos que tratam de matéria penal. Este
dispositivo de tutela perderia a sua validade apenas no final do século, com a constituição de
1988, que em seu art. 232, extingue a tutela estatal sobre os povos indígenas “art. 232 - Os
índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa
de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.
O problema é que com a promulgação da constituição em 1988, o fim da tutela e da
incapacidade indígena atinge de maneira idêntica as centenas de povos indígenas existentes no
país, que possuíam níveis de interação com a sociedade envolvente bastante diversos, como
exposto no item anterior.
Substancial parte dos povos que já estavam em um longo processo de contato com a
sociedade envolvente não dominavam ou por vezes não conheciam ou reconheciam nosso
sistema de leis, mas principalmente aquilo que compreendemos como crimes (Ribeiro, 1957;
Oliveira, 1978).
Para os povos de contato mais recente, e ainda mais grave para os povos em isolamento
voluntário, a situação é deveras mais grave, pois nem mesmo percebiam que até então eram
tutelados e que agora seriam sujeitos plenos de direito, com possibilidade de precisar recorrer
em juízo - e em língua portuguesa.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

No fim do século XX não era residual, como não é hoje, a quantidade de povos
indígenas que não dominam a língua nacional, se comunicando apenas em sua língua nativa e
em outros tantos casos tendo o domínio do português como algo restrito as lideranças, aos
homens ou para os mais jovens.
Apenas dentro da Amazônia legal são identificados 130 povos isolados que nem
mesmo sabemos a forma de organização social, o tamanho da população e muito menos a língua
que dominam, ou se esta é uma língua nova ou desconhecida (Cangussu et al., 2022).
Neste sentido, é complexo assumir que a extinção de maneira unilateral da tutela
indígena era a melhor solução. No entanto, há fortes indícios de que a solicitação pelo fim da
tutela era uma demanda de determinadas parcelas da sociedade indígena que estavam cada vez
mais dependentes das relações com a sociedade envolvente (Ramos, 1992; Munduruku, 2012).
Estas comunidades encontravam dificuldades de representação desde pelo menos a
década de 70 quando foram realizadas as primeiras assembleias indígenas de alcance nacional
para realizar pedidos de poderem realizar certos atos como sujeitos civis de plenos direitos,
como votar, trabalhar, se casar, ou decidir o nome de registo dos filhos (Oliveira, 1988;
Munduruku, 2012).
Até o final da década de 30 possuíamos dispositivos que proibiam, por exemplo,
qualquer remuneração em dinheiro para indígenas em todo o país.
A alternativa que muitos destes indígenas acabavam encontrando era abandonar a
identidade indígena e assim perdendo seus direitos tradicionais para a terra, por exemplo. Ao
mesmo tempo que estes indígenas passavam a receber novos acessos, como a possibilidade de
ter uma casa ou veículo em seu nome, além de uma carteira de trabalho ou mesmo de tirar um
passaporte, compromissos e deveres surgiram simultaneamente, e não seria mais possível alegar
desconhecimento do código penal, como era feito até então, por exemplo.
A proposta do próximo item é desenvolver alguns comentários sobre as diferentes
formas de citação possíveis justamente no processo penal brasileiro e como estas podem ser
compreendidas ou interpretadas por diferentes povos indígenas no Brasil, consoante com os
seus maiores ou menores, mais recentes ou mais prolongados, contatos com a sociedade
envolvente em uma situação que passados mais de 30 anos da promulgação da constituição não
parece estar assim tão diversa.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

4. AS POSSIBILIDADES DE CITAÇÃO DE SUJEITOS


INDÍGENAS

Este item busca comentar algumas situações que podem surgir nas transposições entre
sujeitos indígenas e a regulação existente no Código do Processo Penal de 1941, especialmente
para aquela envolvendo as denominadas citações. As informações sobre os diferentes tipos de
citação surgem comentadas na obra de Oliveira (2017).
O Código do Processo Penal (Brasil, 1941) é bastante claro sobre a necessidade de
citação para a plena possibilidade de execução dos atos do processo em seus artigos 238 e 239:

Art. 238. Citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado
para integrar a relação processual.
Parágrafo único. A citação será efetivada em até 45 (quarenta e cinco) dias a partir da
propositura da ação.
Art. 239. Para a validade do processo é indispensável a citação do réu ou do executado,
ressalvadas as hipóteses de indeferimento da petição inicial ou de improcedência
liminar do pedido.

Nos lembra Oliveira (2017) que a citação surge inicialmente na modalidade de citação
por mandado, sendo executada por oficial de justiça especialmente indicado para tal função.
Este oficial deve realizar a leitura da íntegra do mandado além de uma cópia integral do
instrumento.
Mesmo a negativa de recebimento do mandado de citação não a invalida ou impede a
continuidade dos trabalhos. Este tipo de citação é realizado quando o acusado reside na mesma
comarca ou dentro da jurisdição do magistrado que julga o processo ao qual é réu o acusado.
Para o caso de indígenas residindo em áreas indígenas conhecidas, quer sejam
demarcadas, homologadas ou que se encontrem em processo de demarcação, não deve ser
difícil confirmar a residência ou permanência do sujeito na localidade. Encontrar, fisicamente
o acusado, no entanto, já é uma situação mais complicada.
O paradeiro específico do réu pode ser impreciso, mas esta situação é contornada
facilmente com outras categorias que iremos comentar mais abaixo, ainda que com limitações
ou implicações para casos específicos.
Já para os indígenas residentes em áreas urbanas a questão é menos complicada,
podendo ser resolvida de modo idêntico ao encaminhamento que é realizado para sujeitos não-
indígenas.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

O problema pode surgir, quer seja para indígenas residentes em terras indígenas, quer
para aqueles residindo em áreas urbanas ou rurais no que remete para a plena compreensão não
apenas do conteúdo da citação, como das eventuais consequências de não comparecer, indicar
defensor ou mesmo responder a citação.
É uma questão de língua. O domínio da língua portuguesa para povos de contato mais
recente é bastante precário, quando este não é inexistente. Situação similar pode ainda ocorrer
para mulheres e para anciões pertencentes a povos mesmo com contatos mais antigos.
E se for necessária a leitura do texto ela pode ser bastante complexa mesmo para
homens jovens e adultos, pois a literacia não é um domínio regular para povos indígenas.
O desconhecimento do sistema jurídico dos brancos é outro tema recorrente, assim
como as dificuldades de acesso ou mesmo de confiança para este sistema, como nos aponta
Schmitz (2017, 2018) em seus estudos sobre o povo Laklãnõ, residente em Santa Catarina e
suas dificuldades de comparecimento as convocações.
Além disso, o povo Laklãnõ, citado por Schmitz, por exemplo, possui um território
que cruza extensões de terra que passam por quatro municípios catarinenses, que atualmente
estão em discussão pelo STF com a tese do marco temporal (Brasil, 2019; Virgílio, 2022).
Há povos indígenas que estes territórios podem cruzar mesmo as fronteiras de
diferentes unidades da federação, além de poder acontecer ainda em casos mais raros, como o
que ocorre com a população Yanomami onde a Terra Indígena cruza as fronteiras entre
diferentes países (Brasil e Venezuela).
Estas duas situações serão exploradas nas próximas duas hipóteses de citação aqui
comentadas. Os dois primeiros casos, fronteiras entre municípios e fronteiras entre unidades de
federação, podem gerar desde conflitos de competência entre diferentes comarcas, como ainda
a necessidade de citação por precatória.
A citação por precatória ocorre quando o acusado reside fora da comarca ou da área
de jurisdição do magistrado. O juiz encaminha a citação por carta para o magistrado da comarca
onde o réu reside. O funcionamento é similar para o terceiro caso, ainda que nomeado como
carta rogatória, para réus residentes em outros países.
Estes dois dispositivos poderiam resolver a questão das terras que cruzam diferentes
unidades políticas, mas ocorre que esta citação por precatória (assim como a rogatória) pode
ser encaminhada repetidas vezes para destinos que não correspondem ao local onde o acusado
reside ou mesmo se encontra.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Este tipo de situação alcança outras esferas além da jurídica, como por exemplo na
saúde, na educação e outros mecanismos de acessos a políticas públicas, onde os sujeitos
indígenas podem ter restrições para efetivamente mencionar onde vivem.
Para o caso da educação a questão foi resolvida com a criação dos territórios
etnoeducacionais (Brasil, 2009), onde toda a terra indígena é considerada como um bloco
territorial autónomo e com tratamento especial, ignorando legislações municipais ou estaduais
que sejam impeditivas ou conflituosas entre si. Essa questão não foi resolvida na saúde indígena
e não está resolvida na esfera jurídica, com conflitos de competência entre tribunais sendo
recorrentes, como visível em Brasil (2014).
Para as citações por meio de carta rogatória, podem ser necessários a utilização e o
diálogo com corpos diplomáticos, uma vez que o paradeiro do réu seja conhecido, mas estando
em território estrangeiro, e consoante o caso este movimento pode acabar novamente em
repetidas idas e vindas de cartas para lá e para cá sem nunca efetivamente cumprirem com o
seu objetivo.
Há, no entanto, dispositivo dentro do Código de Processo Penal (Brasil, 1941) que
permite trazer alguma luz para resolver esta situação, conforme se verificam nos artigos 68 e
69, que mencionam que o juiz poderá formular cooperação a qualquer tempo para a prática de
atos processuais.
Estes dois artigos, assim como os vários incisos e parágrafos, permitem que a
cooperação entre magistrados não se limite ao mero encaminhamento do processo ou a
solicitação da citação ou da intimação em outra comarca. Compreendo que este artigo é muito
mal explorado, pois seria possível aos juízes efetivamente trabalharem de maneiras simultâneas.
Além disso, não há nenhum impeditivo para que sejam feitas citações de maneiras simultâneas
em duas ou mais comarcas.
Seria proveitoso para contornar os limites da questão de sujeitos indígenas nestes
territórios que os magistrados considerassem trabalhar em conjunto e não apenas em
substituição.
Para o contexto entre dois diferentes países temos dispositivo similar que resolveria a questão
(Brasil, 1941):

Art. 27. A cooperação jurídica internacional terá por objeto:


I - citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial;
II - colheita de provas e obtenção de informações;
III - homologação e cumprimento de decisão;
IV - concessão de medida judicial de urgência;
V - assistência jurídica internacional;
VI - qualquer outra medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Uma categoria que surge para resolver as dificuldades da citação por mandado é a
citação por hora certa. Diz Oliveira (2017) que ocorrendo duas tentativas sem sucesso por parte
do oficial de justiça, e surgindo a possibilidade de o réu estar tentando se ocultar (e aqui
poderíamos considerar para o contexto indígena mesmo a impossibilidade de encontrar o
mesmo em um território que alcance centenas de milhares ou mesmo alguns milhões de
hectares), o oficial de justiça pode informar qualquer vizinho ou parente que retornará no
próximo dia útil, em hora que este determinar.
A citação estará feita independentemente da presença ou não do citado. Nos casos de
revelia é designado curador especial. Esta última opção é especialmente curiosa pois para o
contexto indígena a tutela, como já mencionado, foi um objeto de luta para ser removida.
A presença de escritórios da FUNAI logo nas entradas das terras indígenas, quando
existentes, podem auxiliar a encaminhar o paradeiro do indígena para populações menores,
como aquelas que possuem poucas dezenas de indivíduos, mas pode ser especialmente difícil
para territórios onde residem milhares de indígenas e nenhuma das estradas possui
nomenclatura.
Mesmo o CEP, geralmente, remete para TODA a terra indígena. Para exemplificar,
não é incomum que todas as correspondências fiquem retidas na agência dos correios, devido
as óbvias dificuldades de entrega de qualquer pacote em grandes áreas sem qualquer grande
preocupação com a identificação de ruas, parques, avenidas ou algo similar.
O Código do Processo Penal inclusive menciona nominalmente esta possibilidade
(Brasil, 1941) “Art. 247. A citação será feita por meio eletrônico ou pelo correio para qualquer
comarca do País, exceto: [...] IV - quando o citando residir em local não atendido pela entrega
domiciliar de correspondência; [...]”.
Essa talvez seja uma possibilidade, articular os esforços dos correios e da FUNAI para
citar o réu, mas essa citação não pode ser feita - por hora certa - mas sim de maneira assíncrona
ou através de definição de um representante.
Dadas as organizações sociais políticas de indígenas se organizarem geralmente no
formato de aldeias e estas possuindo os seus caciques locais e regionais, esta talvez fosse uma
hipótese possível.
As redes de comunicação internas existentes em certas terras indígenas, combinadas
com as largas faixas territoriais, podem impedir completamente a comunicação do sujeito réu
em um prazo tão curto como 24 horas.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Há comunidades onde a única possibilidade de transporte se resume para rios e para


picadas abertas no mato, muitas vezes merecendo dias de viagem a pé. Não vislumbro a
possibilidade de grande sucesso para a citação por hora certa para territórios indígenas que
sejam de dimensões significativas e tampouco para aqueles com pouca ou nenhuma estrutura
de telecomunicações.
Há povos que a saída para a caça ou cerimoniais na mata demandam mais de duas
semanas de retiro para dentro da floresta mais densa. Registe-se que as citações e intimações
por meio de cartas de ordem se encaixam perfeitamente nas limitações que alcançam as cartas
rogatórias e precatórias.
Outro método de citação mencionado por Oliveira (2017) é a citação por edital. O
autor recupera as duas principais características da citação por edital: A primeira delas é a sua
baixa capacidade de cumprir com o seu objetivo, mesmo para sujeitos não-indígenas.
Se entre não-indígenas a chance de trazer o acusado para participação ativa no
julgamento é rara, para o contexto indígena é virtualmente impossível. Primeiramente as
publicações onde estes são publicados não são nem mesmo conhecidos, imagine então
consultados. Em segundo lugar, agrega-se a questão do idioma, já mencionado.
E por fim vale mencionar a possibilidade de suspensão dos prazos do processo,
notadamente no que refere para a prescrição, talvez a única justificativa razoável para a sua
utilização.
A citação por edital ocorre quando se mostram infrutíferas outras tentativas de
localizar o réu, o que é recorrente dentro de territórios indígenas. Eventuais consultas para bases
de dados de órgãos do governo produzem pouco retorno quanto a informações de endereço de
sujeitos indígenas, geralmente apontando para um território de centenas ou milhares de hectares
que possuem apenas um CEP e nenhum logradouro distinto dos demais. Tudo é “Terra Indígena
Nome da Terra”.
Curiosamente, os casos menos problemáticos envolvendo sujeitos indígenas são as
citações do militar e do funcionário público. Como nos dois casos envolvem contatos com
superiores hierárquicos, e esses indígenas, geralmente, estão muito mais acostumados com a
burocracia e o funcionamento do sistema jurídico dos não-indígenas, estas citações não revelam
maiores problemas de efetivamente cumprir o seu objetivo.
É digno de nota a enorme quantidade de indígenas que ocupam cargos, postos e
posições dentro da estrutura de polícias militares estaduais, mas principalmente como
integrantes das forças armadas, nas regiões de fronteira onde se predominam matas fechadas,

18
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

como na Amazônia Legal, no oeste de Santa Catarina e Paraná e na fronteira do Mato Grosso
do Sul com o Paraguai.
O caso dos funcionários públicos não é distante. Há décadas há enorme pressão por
parte das comunidades indígenas de que os cargos que lhes atendem nas áreas da saúde (agentes
de saúde, técnicos e outros profissionais) e da educação (merendeiras, professores etc.), além
de cargos vários na FUNAI (administrativos, coordenadores, motoristas etc.), na SESAI e em
outros órgãos sejam preenchidos exclusivamente por indígenas.
Então há alguns anos uma parcela não desprezível de indígenas passa a ser identificado
como funcionário público, ainda que os cargos e salários sejam precários e muitas vezes em
contratos temporários. A citação do réu preso também não apresenta maiores obstáculos, tal
qual quando ocorre com sujeitos não-indígenas. E neste sentido não são feitos maiores
comentários sobre esta modalidade de citação.
Oliveira (2017) faz referência ainda para a citação do incapaz. Se considerássemos a
situação prévia a constituição de 1988, este seria o caso para todos os sujeitos indígenas, mas
para o contexto de nossa sociedade atual, este tipo de citação acaba gerando poucas dificuldades
para além das que são compartilhadas por todas as demais, como já demonstrado ao longo deste
artigo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se percebe ao longo da análise é que a citação de sujeitos indígenas pode não
apenas demandar determinados esforços adicionais, como ainda que os seus efeitos acabam por
ser muitas vezes ainda mais deficientes que aquelas aplicadas contrassujeitos não-indígenas.
Alguns casos são dignos de atenção, como o que remete para a dimensão das terras
indígenas e para o tamanho de seu contingente populacional. Em contraste, em pelo menos três
cenários (militares, funcionários públicos e presos), não nos parece que a citação tenha
percalços adicionais, sendo muito provavelmente mais efetiva e ágil que outros modelos de
tentativa de citação.
Além disso, a questão do não domínio da língua portuguesa surge como um primeiro
obstáculo que acaba se agravando com outros dois: A dificuldade de compreensão do próprio
sistema jurídico, mas não apenas deste, como de todo o funcionamento da burocracia dos não-
indígenas e ainda dos impactos de não participar após ser formalmente citado.

19
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Além dos indígenas, outras partes, notadamente o oficial de justiça, e até certo ponto
os próprios magistrados, podem ter repetidas dificuldades em participar dos processos. Seja
pela dificuldade de identificar a comarca que deve ter a competência, seja por acabar por
reproduzir determinadas ações inúmeras vezes pois o sistema não está preparado para
determinados contextos, como a sobreposição de territórios indígenas sobre diferentes cidades,
estados ou mesmo países.
A limitada capacidade de literacia dificulta não apenas a compreensão do conteúdo
dos autos, como do mandado, mas também todo e qualquer tipo de comunicação ou registo
escrito que possa porventura ser necessário. É o caso, por exemplo quando é requerida a
manifestação por defesa por escrito.
Concluo este artigo refletindo que talvez ainda tenhamos um longo processo de revisão
que pode ser necessário para o nosso processo penal para atender determinadas condições
sociais. Registe-se que a imensa maioria destas situações ocorre de maneira idêntica para
comunidades quilombolas. E uma significativa parte destas dificuldades são também
perceptíveis em comunidades caiçaras, ciganas, quebradeiras de coco, entre muitas outras
populações tradicionais residentes em nosso país.
Não era o objetivo deste artigo dispor profundamente sobre o tema, ou extinguir todas
as possibilidades de discussão, mas unicamente explorar alguns casos que são mais visíveis e
que podem ser merecedores de atenção mais imediata, ou ainda que possuem alcance ou
frequência mais significativos.
Para concluir, registo que os poucos conhecimentos que foram incluídos neste artigo
referente a povos indígenas e que não foram acompanhados de informação bibliográfica ou
referência são oriundos de minha longa formação em antropologia, que foi iniciada ainda em
2011 e de informações que são obtidas ao longo do trabalho de campo que realizo com estas
populações desde 2016.
Registo que foi inclusive o contato com estas populações que me levou para o curso
de direito em primeiro lugar, e não imaginava como questões envolvendo o direito penal
poderiam ser tão recorrentes. Até então, em 2019 a minha única preocupação era com o que é
compreendido como direito constitucional.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

REFERÊNCIAS

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Unicamp, 2004.

22
Capítulo 2

USO DE TECNOLOGIAS DE COLETA E


ANÁLISE DE DADOS PESSOAIS NA
PERSECUÇÃO PENAL:
Controle biopolítico, impactos e violações de direitos
fundamentais

Wagner Eno Lopes1


Francisco Quintanilha Véras Neto2

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10534513

INTRODUÇÃO

O uso de dados pessoais pelo Estado no exercício de sua função persecutória tem sido
objeto de intensos debates, especialmente no que diz respeito à possibilidade de violação de
direitos fundamentais. Diante desse contexto, o problema que norteia esta pesquisa é: quais são
os impactos do uso de tecnologias de coleta e análise de dados pessoais pelo Estado na atividade
persecutória e como essas tecnologias podem violar direitos fundamentais? O objetivo geral
deste trabalho é caracterizar, expor e contextualizar o atual cenário do uso de dados pessoais
pelo Estado em sua atividade persecutória, levantando as tecnologias disponíveis e como elas
podem violar direitos fundamentais.
Para atingir esse objetivo, serão propostos os seguintes objetivos específicos: (i) traçar
um panorama atual do uso de novas tecnologias pelo Estado, (ii) colacionar casos

1
Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Catarina, Pós-Graduando da Pontifica Universidade Católica
de Minas Gerais. E-mail: wagnerenolopes@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-7190-4143.
2
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (2004), Pós-Doutor em Direito
pela UFSC (2014). Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina nas disciplinas de Filosofia do
Direito e Teoria do Direito II. Professor permanente no programa de Mestrado e Doutorado em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina, Líder do Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para uma
Sociedade Sustentável (CNPQ). E-mail: quintaveras@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1620-6017.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

paradigmáticos na jurisprudência brasileira, (iii) elencar no contexto sociológico o surgimento


de uma nova manifestação de controle biopolítico, (iv) analisar o controle tecnológico e o
controle biopolítico como meio de justificação em nome da segurança pública e (v) avaliar os
impactos do uso de tecnologias de coleta e análise de dados pessoais pelo Estado na atividade
persecutória e os possíveis conflitos com direitos fundamentais.
A hipótese que orienta este estudo é a de que o uso de tecnologias de coleta e análise
de dados pessoais pelo Estado na atividade persecutória pode levar à violação de direitos
fundamentais, uma vez que essas ferramentas podem ser utilizadas de forma abusiva, sem
observância dos limites legais e constitucionais. Além disso, o discurso da segurança pública
eficiente é frequentemente utilizado para justificar o uso dessas tecnologias, o que pode gerar
conflitos com a proteção dos direitos fundamentais.
O artigo baseia-se em uma análise jurisprudencial e doutrinária, utilizando como
método a pesquisa bibliográfica e a análise de casos paradigmáticos da jurisprudência brasileira.
Acredita-se que essa pesquisa poderá contribuir para o debate sobre o uso de tecnologias de
coleta e análise de dados pessoais pelo Estado, permitindo uma reflexão crítica sobre os limites
e possibilidades dessas ferramentas na atividade persecutória, bem como sobre a necessidade
de se garantir a proteção dos direitos fundamentais em um Estado Democrático de Direito.

2. DATAVEILLENCE E CONTROLE BIOPOLÍTICO

Na realidade atual, o uso de dados pessoais por entidades públicas e privadas tornou-
se uma consequência do extenso desenvolvimento tecnológico advindo da globalização. O
manuseio dessas informações decorreu de uma vigilância, eletrônica e em massa, e uma
manipulação de dados realizadas por grandes grupos privados e potências militares, processo
esse chamado de surveillance.
Faz-se necessário informar, porém, que essa expressão não pode ser traduzida
literalmente somente para o termo “vigilância”, visto que sua abrangência é multifatorial e
polissêmica (Menezes Neto; Morais; Bezerra, 2017; Menezes Neto, 2016). Conforme Menezes
Neto (2016, p. 159):

Um dos processos-chave para caracterizar a surveillance é o atual uso de bancos de


dados indexáveis no processamento de dados para diversas finalidades. Entende-se,
portanto, que as novas infraestruturas da tecnologia da informação, ao permitirem o
processamento em tempo real e o armazenamento ilimitado de dados, não apenas
“qualificam” a vigilância, mas introduzem mudanças qualitativas que permitem um
“salto” em direção ao conceito de surveillance.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Desse modo, é possível definir a surveillance como uma vigilância caracterizada por
ser sistematizada, normalizada e concentrada. A primeira característica está relacionada ao fato
de que é deliberadamente definida (e não somente aleatória) e que segue determinados
protocolos e objetivos.
O segundo aspecto diz respeito a sua normalização no cotidiano das sociedades
contemporâneas, uma vez que sua atuação é onipresente. Por último, sua ação se concentra
especificamente sobre os indivíduos selecionados, mesmo que os dados sejam adquiridos em
massa (Amaral; Dias, 2019).
Nessa conjuntura, a expressão surveillance passou a compreender o de dataveillance,
uma junção dos nomes data e surveillance, representando o monitoramento e análise de dados
e metadados de usuários considerados de risco, com base em modelos matemáticos.
Essa vigilância retrata indícios do controle social existente na contemporaneidade e,
por isso, é possível aplicar a ideia de biopolítica a essa expressão (Amaral; Dias, 2019; Menezes
Neto, 2016). De acordo com Menezes Neto (2016, p. 184-185) “[...] as informações geradas
pelo corpo — por exemplo, identificação biométrica — ou pelo seu movimento — como é o
caso da geolocalização de pessoas — são utilizadas na tentativa de domesticar as incertezas,
especialmente aquelas relacionadas à segurança do mundo em constante medo”.
Foucault (1998) explica que o biopoder pode ser praticado por qualquer organização,
seja ela pública ou privada, que tenha capacidade de realizar a coleta e análise de informações.
Com base nisso, há o surgimento de um novo tipo de biopolítica, capaz de monitorar os
indivíduos de forma eletrônica e através de algoritmos, sendo utilizado por grandes empresas
de domínio privado e pelo Estado.
Um exemplo é a ferramenta de gerenciamento automatizado do sistema prisional nos
Estados Unidos chamada Correctional Offender Management Profiling for Alternative
Sanctions (COMPAS), que é utilizada para avaliar o risco de reincidência dos indivíduos.
Conforme explica o Ministro Gilmar Mendes na ADI 6.649/DF:

Essa ferramenta funciona a partir de árvore decisória, que classifica os detentos em


um espectro de risco que varia de um a nove, sendo nove o mais alto e um o mais
baixo. Em 2017, a Suprema Corte de Wisconsin manteve a condenação de um réu que
foi acusado de fugir da polícia ao dirigir um carro anteriormente utilizado em um
tiroteio. Ele havia sido condenado previamente por agressão sexual e, após uma
avaliação do algoritmo, considerou-se que havia alto risco de cometer outro crime,
tendo sido condenado, assim, a uma sentença de seis anos (BRASIL, 2022b, p.18).

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Esta realidade é maximizada quando se introduz a figura do Big Data, que se refere a
banco de dados digitais onde se é possível processar e armazenar dados de diversas naturezas,
inclusive os pessoais.
Este processamento resulta, conforme exemplo exposto acima do COMPAS, em uma
forma do poder estatal exercer uma forma de prevenção preditiva. Esta análise preditiva nada
mais é do que uma espécie de previsão do futuro, baseada na utilização de dados históricos para
se traçar tendências futuras. Esta concepção abre espaço para a análise referente a um fenômeno
especialmente novo nas relações sociais que, segundo Lyon (1994, p. 53):

[...] transcende a distância, a escuridão e as barreiras físicas. Transcende o tempo, o


que pode ser visto, especificamente, na capacidade de armazenamento e recuperação
que possuem os computadores; informações pessoais podem ser ‘congeladas’, para
usar a expressão de Goodwin e Humphey. Ela é de baixa visibilidade ou invisível; os
indivíduos cujos dados são coletados possuem cada vez menos ciência disso. Ela é
frequentemente involuntária, como notamos anteriormente. A prevenção é a sua maior
preocupação; pense nas bibliotecas com livros com código de barras ou nos shopping
centers com câmeras de segurança que estão lá para prevenir a perda, não para ensinar
que roubar é imoral. Ela [a surveillance] faz uso intensivo de capital, não do trabalho,
o que a torna economicamente mais atrativa. Ela envolve políticas descentralizadas
de autocontrole; mais uma vez, notamos como participamos no nosso próprio
monitoramento. Isso leva a uma mudança da identificação específica de indivíduos
em direção a uma suspeita categórica. Ela é, simultaneamente, mais intensiva e mais
extensiva. Utilizando a metáfora de Stanley Cohen, a rede é mais fina, mais maleável
e mais ampla (LYON, 1994, p. 53, tradução livre).

Há no ramo da segurança pública, especificamente no que tange a polícia, o uso do


termo denominado de polícia preditiva, assim conceituado por Quevedo (2020, n. p) como “um
modelo de polícia que utiliza dados obtidos de diferentes fontes, analisando-os através de
algoritmos e atuando de acordo com os resultados que permitem antecipar, prever e responder
ao crime futuro”.
Este termo e essa prática confluem com o tema do presente projeto, pois visualiza-
se até onde o uso de dados pode chegar, e os perigos às garantias e liberdades — coletivas e
individuais — que podem ocorrer. No mesmo artigo supracitado, há uma demonstração prática
do uso de banco de dados para esse policiamento preditivo:

No caso da cidade de Chicago, provavelmente a maior representante de uma Polícia


Preditiva mobilizada a partir de algoritmo (operado por um programa de computador
chamado CompStat), inúmeras informações, providas inclusive (mas não apenas)
pelas forças policiais, são inseridas em um sistema que realiza um cálculo matemático
capaz de prever prováveis localidades para novas ocorrências. O sistema utilizado
pela Polícia de Chicago foi capaz de emitir uma lista contendo nomes de cidadãos que
poderiam incorrer em atividade criminosa em algum momento no futuro,
representando assim o ápice do policiamento preditivo: os agentes eram capazes de ir

26
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

até a casa dessas pessoas para ter uma conversa e alertá-los de que, caso não cessassem
as atividades suspeitas, logo poderiam ser presos (Quevedo, 2020, n.p.).

Observa-se, neste ponto, a incidência de outra questão que já é possível visualizar na


prática da segurança pública pátria, assim como na própria estrutura do direito penal, reforçado
por essas novas tecnologias (uso de ferramentas para criminalização de determinados grupos e
comportamentos). Os algoritmos são pré-definidos para estabelecer parâmetros configurados
como adequados e todo comportamento que fuja deste padrão será considerado um
comportamento perigoso.
Esse é um novo passo na possibilidade de combate ao inimigo no direito penal,
conforme cita Zaffaroni (2011, p. 18):

A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o


Direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente
perigoso ou daninho. Por mais que a ideia seja matizada, quando se propõe estabelecer
a distinção entre cidadão e inimigo, faz-se referência a seres humanos que são
privados de certos direitos individuais, motivo pelo qual deixaram de ser
considerados, e esta é a primeira incompatibilidade que a aceitação do hostis, no
direito, apresenta com relação ao princípio do Estado de Direito.

E, ainda (Zaffaroni, 2011, p. 25):

Como ninguém pode prever exatamente o que algum de nós - nem sequer nós mesmos
- fará no futuro, a incerteza do futuro mantém aberto o juízo de periculosidade até o
momento em que quem decide quem é o inimigo deixa de considerá-lo como tal. Com
isso, o grau de periculosidade do inimigo - e, portanto, da necessidade de contenção -
dependerá sempre do juízo subjetivo do individualizador, que não é outro senão o de
exercer o poder.

Desta forma, a possibilidade de criminalização de determinados grupos — visto


estarmos situados em um sistema que pune majoritariamente o jovem pobre, negro e periférico
—, estabelece uma compreensão de qual seriam os parâmetros definidos como desviantes pela
segurança pública para estabelecer uma lista de possíveis suspeitos.
Neste ponto, a fim de sair do plano teórico, cita-se a existência de casos concretos de
utilização de banco de dados, principalmente os de fotografias, para identificação de possíveis
suspeitos em condutas criminosas, que acabam por gerar um falso reconhecimento. Saliba
(2022, n. p) expõe os casos:

A existência dos álbuns de suspeitos faz indagar como essas imagens foram parar nas
delegacias. É recorrente que sua origem sejam redes sociais, flagrantes ou grupos em
aplicativos de comunicação utilizados por policiais. Sem saber o porquê, essa
arbitrariedade na definição de “suspeito” pode fazer com que uma acusação inverídica

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

fundamente decisão judicial condenatória. A exibição das fotos viola não apenas o
direito constitucional à intimidade (art. 5º, X), como também a presunção de inocência
(art. 5º, LVII) – já que, se está naquele catálogo, assume-se ser um criminoso, mesmo
sem provas. Essa violação tem viés racial evidente: segundo o relatório do
CONDEGE, 80% de erros em reconhecimentos fotográficos são de pessoas negras,
dado reiterado pela Coordenação de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado
do Rio de Janeiro, com 83% de pessoas negras apontadas como suspeitas sendo
inocentadas após reconhecimento fotográfico em sede policial.

A utilização de banco de dados para este policiamento preditivo em termos de


segurança pública resulta em uma espécie de etiquetamento social — ou ainda, no biopoder,
citado por Foucault (1998), para discriminar um determinado grupo de indivíduos e
comportamentos considerados como desviantes.
Conforme cita Ferrajoli (2007, p. 335):

A formação, o acesso e a disponibilidade, pela polícia ou pelas empresas, de grandes


bancos de dados sobre qualquer indivíduo, incluindo talvez os seus dados genéticos e
de saúde, com o seu conjunto de anomalias e de prognósticos ameaçadores, é, na
verdade, destinada não somente a operar, no plano econômico e social, como um novo
fator de discriminação, colocando em risco vagas de emprego e sistemas de
previdência, mas, também, para gerar, no plano cultural e no senso comum, uma nova
antropologia da desigualdade.

Neste ponto, remete-se ao filme Minority Report, baseado no conto de Philip K. Dick,
onde o enredo concentra-se na existência de um departamento de polícia capaz de realizar a
previsão de comportamentos criminosos e agir antes do crime em potencial ocorrer.
O filme utiliza a figura de três videntes que possuem a capacidade de realizar essas
visões. No mundo atual, é possível a analogia com o uso de Big Data para realizar essa análise
preditiva.
Na realidade brasileira, baseado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum
Anuário de Segurança Pública, 2022) e no relatório do sistema penitenciário (Brasil, 2022c),
por exemplo, é possível a extração de dados (referentes à cor/raça, gênero, faixa etária,
escolaridade e faixa de renda) do perfil dos condenados e/ou investigados em ação penal.
Baseado nestes dados, é possível elaborar um registro histórico capaz de direcionar uma análise
preditiva capaz de prever qual grupo ou qual tipo de comportamento do indivíduo poderá gerar
uma desviante capaz de resultar em um desvio criminoso. Entretanto, é óbvio que essa previsão
assume conceitos explicitamente discriminatórios e racistas.
Em Londres, a polícia metropolitana utiliza uma base de dados, nos moldes da descrita
acima, totalmente discriminatória e racializada:

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

A base de dados de mapeamento de gangues da Polícia Metropolitana de Londres,


conhecida como Gangs Matrix, foi criada em 2012 integrada na resposta altamente
politizada aos motins de Londres de 2011. Nela são listadas pessoas como “gang
nominals” (membros de gangues) e a cada indivíduo é atribuída uma classificação
automática de grau de violência com as cores verde, âmbar ou vermelho. Em outubro
de 2017 estavam listadas 3 806 pessoas na Matrix. Mais de três quartos (78%) dos
identificados na Matriz são negros – número que é desproporcional aos próprios dados
da Polícia Metropolitana londrina, os quais mostram que apenas 27% dos
responsáveis por grave violência juvenil são negros. A pessoa mais nova na Matrix
tem 12 anos e 99% dos listados na base de dados são do género masculino (Anistia
Internacional, 2018, n.p).

Além disso, não faltam exemplos da utilização do dataveillance, inclusive no Brasil,


como explica Lucena (2019, p. 11):

No entanto, o uso de polícia preditiva, com aplicação de Big Data, tem chamado a
atenção de políticos e corporações. Técnicas de prevenção situacional, que é a matriz
de aplicação destes modelos, como o PredPol, já existem de certa forma no Brasil, em
versões de teste, dentro do próprio modelo do Detecta, com experiência em outras
cidades paulistanas, como em outros estados, tal como na Bahia, e nas intervenções
da cidade do Rio de Janeiro, nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). As críticas
que recaem aos sistemas de prevenção situacional no Brasil são próximas das trazidas
por críticos dos modelos implantados por softwares de Inteligência Artificial nos
Estados Unidos.

No contexto deste artigo, é evidente que o tema em questão possui uma conexão direta
com o escopo desta pesquisa, já que aborda os perigos resultantes da ausência de
regulamentação ou compreensão adequada sobre a proteção de dados pessoais.
O atual cenário de falta de controle sobre o uso de tecnologias de coleta e análise de
dados pelo Estado e por órgãos privados pode resultar em práticas discriminatórias e, portanto,
violações claras de direitos fundamentais, o que reforça a importância de se refletir criticamente
sobre as implicações dessas práticas para a proteção dos direitos fundamentais em um Estado
Democrático de Direito.

4. ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL SOBRE A


PRIVACIDADE DOS DADOS

Conforme exposto, o uso indiscriminado de dados pessoais por parte da segurança


pública pode violar diversos direitos e garantias fundamentais. Desta forma, para
desenvolvimento do trabalho é necessário pesquisar como a jurisprudência pátria vem tratando
essa questão.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Abre-se espaço para buscar decisões que envolvam a matéria estudada e como a nossa
estrutura jurídica julga o assunto, sendo perceptível as inúmeras violações sendo cometidas na
atual conjuntura.
Em conexão com o parágrafo anterior, cita-se o Agravo Regimental no Recurso em
Mandado de Segurança n. 68.119/RJ de relatoria do Ministro Jesuíno Rissato, julgado em 28
de março de 2022. No agravo, foi estabelecido que a quebra de sigilo de dados considerados
estáticos não pode atingir um número indeterminado de pessoas, pois viola o princípio da
proporcionalidade. Porém, neste ponto, há uma demonstração lógica de possibilidade de quebra
de sigilos estáticos, já delimitada pelo próprio Superior Tribunal de Justiça.
No mais, há a decisão do Superior Tribunal de Justiça, com a seguinte ementa:

Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Mandado de Segurança 61.302/RJ – Rio de


Janeiro. Recurso em mandado de segurança. Direito à privacidade e à intimidade.
Identificação de usuários em determinada localização geográfica. Imposição que não
indica pessoa individualizada. Ausência de ilegalidade ou de violação dos princípios
e garantias constitucionais. Fundamentação da medida. Ocorrência.
Proporcionalidade. Recurso em mandado de segurança não provido. Relator: Min.
Rogerio Schietti Cruz, 26 de agosto de 2020 (STJ, 2020, ementa).

À vista disso, já há o estabelecimento de uma regulação por parte do tribunal citado,


em que estabelece conceitos de possibilidade e de impossibilidade do uso de alguma gama
desses dados. O que se pretende conceituar é se, dentro dos conceitos de direitos fundamentais,
de proteção a esses direitos, de dados pessoais como direitos fundamentais, sob uma perspectiva
garantista de estrita legalidade, há uma validade na regulação jurisprudencial.
No âmbito da Corte Suprema, dentro do HC 168.052/SP de relatoria do Ministro
Gilmar Mendes, publicado em 02 de dezembro de 2020, há o reconhecimento do Direito
Fundamental à vida privada, com a garantia do sigilo das comunicações e da proteção de dados.
No caso concreto, reconheceu-se a violação ao acesso aos dados do celular do apreendido, visto
a inexistência de autorização judicial e a não demonstração de um consentimento válido,
declarando todas as provas obtidas como ilícitas, assim como todas derivadas delas.
No mesmo sentido, em caso mais recente, a afetação desta questão em regime de
repercussão geral pelo STF (Tema 977) foi discutida, colacionando-se a licitude da prova
produzida durante o inquérito policial subsistente no acesso, sem autorização judicial, de
registros e informações contidas em aparelho de telefonia celular relacionado à conduta delitiva,
hábeis a identificar o agente do crime.
Neste artigo, foram selecionados alguns casos paradigmáticos sobre o tema proposto,
com o objetivo de analisar como o ordenamento jurídico trata o uso de tecnologias de coleta e

30
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

análise de dados pessoais pelo Estado na atividade persecutória. A partir desses casos, é possível
estabelecer os limites que são utilizados pela jurisprudência, bem como explorar a relação entre
o uso dessas tecnologias e a proteção de dados e intervenções nos direitos fundamentais do
investigado e de terceiros.

4.1 CASO MARIELLE FRANCO

A análise de dados é um instrumento eficaz nas investigações criminais, visto que


auxilia no monitoramento de risco e na identificação de informações relevantes para a retidão
do processo. Entretanto, esse acesso informatizado deve respeitar os direitos fundamentais e as
liberdades individuais. Conforme Josino (2021, p.28), “a disponibilidade da tecnologia não
autoriza seu uso indiscriminado pelo Estado, sem antes passar pelo crivo dos direitos
fundamentais”.
Este tópico foi abordado no caso da vereadora Marielle Franco e de seu motorista,
Anderson Gomes, executados em março de 2018 no bairro da Lapa, no centro do Rio de
Janeiro/RJ. O acontecimento teve grande repercussão midiática e foi considerada de cunho
político, visto que a vereadora vinha denunciando a atuação agressiva da polícia nas favelas
(Valença, 2020).
Durante a investigação do crime, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça em
2020 decidiu pela quebra do sigilo telemático de dispositivos determinados pela geolocalização,
com o intuito de identificar as pessoas envolvidas. Pretendia-se obter dados de todos os usuários
que estavam nas imediações de onde foi visto o automóvel dos atiradores nos 15 minutos que
sucederam o crime, bem como verificar as buscas realizadas no Google que procuravam termos
específicos, como “Marielle Franco” e “agenda vereadora Marielle” (Josino, 2021).
A decisão de fornecer essas informações foi questionada pela empresa Google, que
alegou:

(...) no ordenamento jurídico brasileiro, não se admitem quebras de sigilo e


interceptações genéricas, sem a individualização das pessoas afetadas. A provedora
alegou ainda que a medida, determinada de forma genérica, é desproporcional. A
empresa defende que a questão em jogo é que fornecer esses dados à investigação
viola a privacidade de milhões de usuários que nada tinham a ver com o crime para
poder chegar aos culpados (Josino, 2021, p. 28).

A empresa também alegou que a quebra de sigilo é uma medida de caráter excepcional,
justificada somente pela existência de indícios concretos de atividade considerada ilícita e que

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

possam ser corroborados pelas decisões judiciais. Porém, o STJ negou o recurso e manteve a
decisão de fornecimento de dados dos usuários (Valença, 2020; Josino, 2021).
Conforme expõe o relator, Ministro Rogério Schietti Cruz:

Para a quebra do sigilo de dados armazenados, de forma autônoma ou associada a


outras informações pessoais, a autoridade judiciária não é obrigada a indicar
previamente as pessoas que estão sendo investigadas, mesmo porque o objetivo da
medida é justamente proporcionar a identificação de usuários do serviço ou de
terminais utilizados (STJ, 2020, Ementa).

Outras justificativas foram evocadas para a negação, como a de que o sigilo é um


Direito Fundamental, porém não um direito absoluto e, dessa forma, pode ser restrito quando
cabível ao interesse público. Outrossim, Cruz também declarou que a quebra era relativa aos
dados informáticos, e não havia relação com interceptações das comunicações. De acordo com
Valença (2020, p. 16):

A justificativa é no sentido de que não há como dar interpretação extensiva aos


dispositivos da Lei de Interceptação Telemática porque a ordem é dirigida a um
provedor de serviço de conexão ou aplicações de internet, cuja relação é prevista no
Marco Civil da Internet, o qual não prevê, entre os requisitos que estabelece para a
quebra do sigilo, que a ordem judicial especifique previamente as pessoas objeto da
investigação ou que a prova da infração (ou da autoria) possa ser realizada por outros
meios.

Entre os votos, apenas o Ministro Sebastião Reis Júnior divergiu. Segundo o Ministro,
tal decisão, ainda que não identifique inicialmente o indivíduo, busca o reconhecimento final.
Desse modo, ele não concordou com a determinação, visto que, em seu entendimento, não havia
justificativa suficiente para a apresentação das informações pedidas.
Assim, é possível perceber que o caso de Marielle e Anderson é um exemplo da
atuação à margem das garantias individuais, ainda presente no cenário judiciário brasileiro
quanto a essa situação, uma vez que essa medida ainda não está totalmente legalizada no
ordenamento jurídico (Valença, 2020).
É possível observar que essa infiltração digital é um importante aspecto para a coleta
de provas on-line, mas que limites precisam ser estabelecidos para torná-la legal. Faz-se
necessário uma adequação desse cenário, visto que, no empenho por encontrar provas, a
privacidade de muitos usuários é violada. Além disso, muitos indivíduos podem ser
investigados criminalmente sem justo motivo por causa de suas buscas on-line ou
geolocalização.

32
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

4.2 O CASO PROSEGUR

O segundo caso escolhido para análise é o relacionado ao assalto a uma empresa de


segurança e transporte de valores (PROSEGUR), em Ribeirão Preto/SP, no ano de 2016.
A magistrada responsável pelo processo, durante a investigação, deferiu o pedido
formulado pela autoridade policial para levantamento de dados individuais armazenados por
parte de empresas de tecnologia (Google, Apple e Microsoft), referentes a existência de
conexões ativas nos aparelhos celulares presentes em um raio de 500 metros do local do fato
criminoso. Além disso, a determinação judicial também permitiu outros pedidos:

[...] autorizou-se a quebra de sigilo de dados telemáticos para que fosse averiguada a
existência de conexões ativas de usuários que se encontravam em determinada
localidade, em local e intervalo de data delimitados, com determinação para que os
provedores individualizassem os "IMEIs" dos aparelhos sincronizados e fornecessem,
por conseguinte, os dados do usuário da conta de e-mail, incluindo, ainda, dados
cadastrais, relações de locais salvos no Google Maps e, por fim, histórico de
localização e deslocamento dos últimos 30 dias (RMS 51.133/SP). (2016, p.2).

O que justifica a escolha do presente caso é o fato da fundamentação da magistrada ter


se dado no escopo da Lei de Interceptações Telefônicas (LIT) e ela ter relativizado a adoção da
medida baseada no princípio da ponderação e do interesse público. Assim como, segundo a
própria juíza, existe dificuldade para obter a prova de outro modo, sendo desta forma, na sua
visão, possível intervir nos direitos fundamentais dos indivíduos e terceiros ora afetados.
Porém, a LIT não possui essa autorização. Conforme exposto no parágrafo único do
art. 1°, a referida legislação regula a interceptação de um fluxo de comunicação, sendo claro
que dados armazenados não se referem ao fluxo de comunicação entre indivíduos. Nas palavras
de Gleizer (2019, n.p):

A LIT não contém autorização para acesso a dados (telemáticos) armazenados em


dispositivos digitais. Dados telemáticos não são necessariamente provenientes de um
processo de telecomunicação, que pressupõe uma troca de informações entre ao
menos duas pessoas naturais (communis) à distância (tele); o acesso a dados pela
internet não se dá obrigatoriamente por troca de conteúdo entre duas pessoas naturais,
sendo possível que se dê entre uma pessoa e um sistema informático; digitar um
endereço virtual, como “www.a.com”, estabelece uma conexão com o servidor
endereçado, que confere acesso a seus dados e informações.

No mais, inexiste qualquer legislação no ordenamento jurídico nacional que


regulamente e possibilite de forma clara e determinada a intervenção por parte do poder público
nesses dados. Conforme exposto, sendo o princípio da legalidade regente do processo penal, a

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

ausência de uma norma precisa impossibilitar a atuação do poder persecutório estatal, ainda
mais, quando se trata de intervenção em direito fundamental.
É verdade que, posteriormente, a decisão foi reconsiderada pela magistrada limitando
as informações originalmente requeridas à dados cadastrais, localizações salvas no Google
Maps e histórico de localização e deslocamentos nos últimos 30 dias (Gleizer, 2019).
Ainda assim, estas diligências foram suspensas posteriormente pelo TJSP, que
estabeleceu uma limitação geográfica ao pedido, e que as senhas de acesso aos serviços
utilizados só poderiam ser quebradas após a identificação e individualização dos alvos da
investigação (Gleizer, 2019).

4.3 O CASO DA BOATE KISS

Em termos de jurisprudência recente, o caso da Boate Kiss é um dos mais importantes


e paradigmáticos sobre o tema pesquisado. Apesar dessa lei não nortear e nem se aplicar ao
processo penal, revela, em uma ótica social, grande preocupação do legislador no uso dos dados
pessoais.
Assim, teve ainda os recursos de apelações dos réus julgados já sobre a existência da
positivação do direito fundamental à proteção de dados pessoais. Isso deu ao julgador, conforme
será demonstrado, a necessidade de se adentrar nesse mérito, tornando imprescindível a análise
do caso para consolidar um entendimento de como o Judiciário lidou com o tema.
O contexto situa-se no julgamento de apelação referente ao julgamento pelo tribunal
do júri da Comarca de Santa Maria, que condenou os acusados pela responsabilidade das mortes
ocorridas em um incêndio em uma boate no município de Santa Maria no Rio Grande do Sul.
O caso teve enorme repercussão nacional pelo grande número de vítimas da tragédia,
tendo uma extensa cobertura midiática desde o fato até o julgamento do recurso de apelação.
Os processos que envolvem uma cobertura midiática possuem uma tendência maior para a
condenação, e que essa visibilidade coloca um peso maior nas partes do processo, tanto para
advogados quanto para os promotores (Bastos, 1999).
Conforme observa Bastos (1999, p. 117):

[...] se a pressão e a influência da mídia tendem a produzir efeitos sobre os juízes


togados, muito maiores são esses efeitos sobre o júri popular, mais sintonizado com a
opinião pública, de que deve ser a expressão. [...]. Com os jurados é pior: envolvidos
pela opinião pública, construída massivamente por campanhas da mídia orquestradas
e frenéticas, é difícil exigir deles conduta que não seguir a corrente.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Desse modo, o Ministério Público, na figura dos seus promotores e objetivando dar
uma resposta aos anseios da população por uma condenação, exerce suas prerrogativas nos
limites de suas competências. Entretanto, tal situação não pode ensejar quebra de direitos dos
acusados. Conforme visto no presente caso, têm-se que o julgamento foi anulado em grau de
recurso pela 1° Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por onze
nulidades.
Porém o que importa ao presente tema diz respeito ao uso, pelo MPRS, do banco de
dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (Sistema Consultas Integradas)
para analisar a vida dos possíveis jurados e impugná-los baseados em elementos subjetivos.
Entendeu o TJRS que houve uma violação ao direito fundamental à proteção de dados
pessoais, conforme se retira trecho do Acórdão:

FORMAÇÃO DO CONSELHO DE SENTENÇA. UTILIZAÇÃO DO SISTEMA


CONSULTAS INTEGRADAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, COM PROJEÇÃO
PARA A PRESENTE SESSÃO, A REFORÇAR A DISPARIDADE DE ARMAS,
PERFILAMENTO DISCRIMINATÓRIO.
O Ministério Público utilizou-se das informações sobre os jurados que obteve, via
compartilhamento, no sistema Consultas Integradas, tendo escrutinado integralmente
a lista geral para 2021, clara a disparidade de armas no preparo do júri da Kiss, a par
do perfilamento discriminatório (97 pessoas foram expurgadas porque, mercê de
relações familiares e afetivas, visitaram detentos, algumas há duas décadas), a ferir
inclusive o direito fundamental à proteção de dados pessoais e regras da Lei Geral de
Proteção de Dados Pessoais (Constituição Federal, Art.5°, LXXIX, e Lei n°
13.709/2018), com reflexos na pluralidade institucional do Tribunal do Júri e na
efetiva possibilidade de exercer a função de jurado (Arts. 436, § 1°, 439 e 440 do
Código de Processo Penal) (TJRS, 2022, ementa, grifos nossos).

O caso se coaduna com o conteúdo exposto nos últimos capítulos, visto que realiza
uma síntese acerca do tema. Trata-se uma forma expressa de atuação do MPRS de utilização de
um sistema de Big Data (Consultas Integradas) para estigmatizar um grupo de pessoas – no
caso os jurados –, baseada em informações algorítmicas e, por meio disso, buscando a
condenação dos acusados.
Essa conjuntura violou não só as garantias relativas ao processo penal e a paridade de
armas, mas também o direito fundamental à proteção de dados pessoais dos jurados, assim como
expõe de forma expressa a possibilidade do uso de tecnologias de coleta de dados de forma a
realizar um controle biopolítico em busca de um resultado condenatório baseado em um
discurso de segurança pública e busca da verdade real.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste estudo, foi possível traçar um panorama atual do uso de novas
tecnologias pelo Estado na atividade persecutória, com destaque para as ferramentas de coleta
e análise de dados pessoais, que podem ser utilizadas de forma abusiva e sem observância dos
limites legais e constitucionais.
Por meio da análise de casos paradigmáticos da jurisprudência brasileira, foi possível
constatar a existência de situações em que o uso dessas tecnologias resultou em violações de
direitos fundamentais, tais como a privacidade, a intimidade e a presunção de inocência.
Ainda, no contexto sociológico, foi possível perceber o surgimento de uma nova
manifestação de controle biopolítico, em que o Estado utiliza tecnologias de coleta e análise de
dados pessoais como meio de controle social e de repressão de comportamentos considerados
indesejados. Essa nova forma de controle biopolítico, aliada ao discurso da segurança pública
eficiente, pode gerar conflitos com a proteção dos direitos fundamentais, uma vez que se utiliza
da violação desses direitos como meio de atingir a eficiência do controle social.
A análise realizada permitiu avaliar os impactos do uso de tecnologias de coleta e
análise de dados pessoais pelo Estado na atividade persecutória, indicando a necessidade de se
estabelecer limites claros para a utilização dessas ferramentas, de modo a garantir a proteção
dos direitos fundamentais dos indivíduos. Esses limites devem incluir a observância do
princípio da proporcionalidade, o respeito aos direitos à privacidade, à intimidade e à presunção
de inocência, bem como a necessidade de se estabelecer mecanismos de controle e fiscalização
dessas tecnologias.
Por fim, a pesquisa realizada permitiu concluir que a hipótese apresentada no início
deste estudo é válida e que o uso de tecnologias de coleta e análise de dados pessoais pelo
Estado na atividade persecutória pode levar à violação de direitos fundamentais.
Assim, torna-se necessário que o debate sobre o uso dessas tecnologias seja
aprofundado, permitindo a reflexão crítica sobre os limites e possibilidades dessas ferramentas
na atividade persecutória e a necessidade de se garantir a proteção dos direitos fundamentais
em um Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

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DF: Presidência da República.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

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Relator: ROSA WEBER. Data de Julgamento: 07/05/2020. Tribunal Pleno. Data de
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Dias Toffoli. Brasília, 04 de dezembro de 2019. Disponível em:
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37
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan,
2011.

38
Capítulo 3

RACIONALIDADE GOVERNAMENTAL NA
IMPLEMENTAÇÃO DAS UNIDADES DE
POLÍCIA PACIFICADORA:
UPP, ou da razão pau de arara

Guilherme Filipe Andrade Dos Santos1

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10534854

INTRODUÇÃO

O Estado se configura, mesmo em tempos de desmantelamento promovido pela


doutrina neoliberal, como ente político máximo que confere aos cidadãos deste os direitos
fundamentais que foram convencionados como democráticos, com a finalidade de ensejar um
projeto de país.
Entretanto, não é muito difícil observar que o Estado, mesmo possuindo tal
prerrogativa emancipatória, também é autor de políticas públicas securitárias que ensejam o
controle social, alicerçadas no discurso da segurança da sociedade, conquanto que para isso seja
necessário suspender a ordem vigente pela via da legalidade. As Unidades de Polícia
Pacificadora (UPP) são paradigmáticas para entender como se opera essa lógica de suspensão
da lei sob o pretexto de proteger o Estado e a sociedade que nela se insere.
Nesse sentido, o conceito de Razão Governamental é salutar para entendermos por
qual racionalidade o governo se utiliza para calcular suas intervenções no corpo social.

1
Doutorando em Direito, Política e Sociedade, na linha de pesquisa de Historicismo, Conhecimento Crítico e
Subjetividade, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina
(PPGD/UFSC), bolsista CAPES desde 2020. Mestre em Direito, área de concentração em Teoria e História do
Direito, pelo mesmo programa e linha de pesquisa. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-1596-5929.

39
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Portanto, estudar o conceito elencado é significativo, seja para meditar sobre suas
consequências políticas, seja para destacar o que isso manifesta da nossa atual conjuntura
político-jurídica. Ademais, se faz necessário pensar a UPP por meio deste viés, buscando
entender como essa política pública se inclui em um projeto de nação.
Tal esforço é promovido para interpretar os processos genocidas que se instalaram na
cidade do Rio de Janeiro, tendo como principais alvos as pessoas residentes das favelas cariocas
– sendo elas, em sua grande maioria, negros e pobres. E, a partir deste lugar, buscamos entender
as motivações estatais que levam as razões biopolíticas de tortura e morte dos corpos tidos
enquanto abjetos.
Para tanto, este trabalho pretende apresentar uma digressão dos ideais acerca do
conceito de razão governamental, demonstrando que tal noção pode ser vislumbrada como
apogeu do antigo conceito de razão de Estado. Ainda propõe demonstrar as investidas violentas
do governo com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora, expondo o que são tais
Unidades de Polícia Pacificadora através de seus resultados reais, entre outros aspectos.
E por fim, propõe-se realizar uma articulação em que se discute a relação entre a
racionalidade governamental e a instituição de um estado de exceção nas favelas cariocas,
posicionando as UPPs enquanto técnica governamental biopolítica. Tal estado de exceção, uma
vez instalado, permite que o Estado possa implementar políticas que ensejam o genocídio da
população negra que reside nesses territórios.

2. A POLÍCIA COMO TECNOLOGIA DE GOVERNO

O Estado, para garantir a sua viabilidade funcional, necessita de instrumentos que


permitem desempenhar funções pelas quais é reconhecido. A doutrina da Razão de Estado, em
sua evolução conceitual, caracterizou um conjunto tecnológico que merece destaque para este
trabalho, ligado à arte de governar segundo a doutrina referida: a polícia. Foucault (2008b, p.
420-421) falará da polícia não no sentido de instituição, como iria ser conhecida a partir do
século XVIII, mas de uma sociedade humana regida por uma autoridade pública através de atos,
sendo que este entendimento ainda pode ser percebido na atualidade.
A partir do século XVII, a palavra “polícia” toma outro significado. Foucault leciona
que:

A partir do século XVII, vai-se começar a chamar de “polícia” o conjunto dos meios
pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo

40
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

a boa ordem desse Estado. Em outras palavras, a polícia vai ser o cálculo e a técnica
que possibilitarão estabelecer uma relação móvel, mas apesar de tudo estável e
controlável, entre a ordem interna do Estado e o crescimento das suas forças
(Foucault, 2008b, p. 420-421).

A visagem desta relação entre ordem interna e crescimento das forças estatais serve
para garantir o esplendor do Estado, visto como uma constatação visível da ordem e da força
brilhante que se manifesta e irradia da estatalidade. Citando Von Justi, Foucault coloca a polícia
como “o conjunto das leis e regulamentos que dizem respeito ao interior de um Estado e
procuram consolidar e aumentar o poderio desse Estado, que procuram fazer um bom uso das
suas forças” (Foucault, 2008b, p. 422). Sendo assim, o esplendor se torna o meio e a motivação
para o objeto de fato da polícia, que será o bom uso das forças do Estado (Foucault, 2008b, p.
422).
A polícia também se configura enquanto aparato elementar de inteligibilidade, ao
incorporar a estatística como um dos seus atributos. A estatística serviu como um elemento
comum entre a polícia e o equilíbrio europeu.1 Necessário para se manter este último, para que
os Estados tivessem conhecimento de suas próprias forças e conhecer a força dos outros Estados
(Foucault, 2008b, p. 424).
Salutar é o papel da estatística nos cálculos de governabilidade preceituados pela
doutrina da Razão de Estado, pois é pela estatística que se inaugura um verdadeiro Estado de
polícia,2 em que o homem, e a garantia de seu virtuosismo, figura como elemento que garante
a boa qualidade do Estado.3 Será a estatística aquela que fornecerá as informações necessárias

1 A balança europeia, segundo Foucault, seria uma limitação da força dos Estados mais fortes ante aos mais
fracos, além de uma possibilidade de combinação dos mais fracos ante aos mais fortes e de uma equalização da
força dos mais fortes. Para uma explanação mais detalhada (Foucault, 2008b, p. 400-402).
2 Turquet de Mayerne, segundo Foucault, é quem dá corpo, pelo menos do ponto de vista teórico, a um Estado de

polícia, e disserta que arte de governar e exercer a polícia é a mesma coisa. De modo geral, Mayerne diz que que,
para ter um bom governo, necessita-se de quatro grandes ofícios e quatro grandes oficiais, chamados de Birôs de
Polícia: o Chanceler para cuidar da justiça, o Condestável para cuidar do exército, o Superintendente para cuidar
das finanças e o Conservador e reformador-geral da polícia, para manter o povo, segundo ele, “uma singular
prática da modéstia, caridade, lealdade, indústria e harmonia”. Dos quatro ofícios e oficiais, o último merece
destaque, posto que o reformador geral de justiça tem uma função nitidamente moral, mas também deve se
ocupar da maneira como as pessoas conduzem as suas riquezas, à sua maneira de trabalhar e de consumir,
configurando um controle não só da moralidade, mas também do trabalho. Ademais, estes birôs de polícia têm
por encarregamento de garantir que a profissionalização dos indivíduos integrantes do Estado. Para maiores
detalhes (Foucault, 2008b, p. 428-432).
3 Ter ‘o homem como verdadeiro sujeito’, e o homem como verdadeiro sujeito ‘qualquer que seja a coisa a que

se dedique’, na medida em que, precisamente, ele tem uma atividade e que essa atividade deve caracterizar sua
perfeição e possibilitar, por conseguinte a perfeição do Estado, e isso, creio, que é um dos elementos
fundamentais e mais característicos do que se passou a entender por 'polícia'. É isso que é visado pela polícia, a
atividade do homem, mas atividade do homem na medida em que tem uma relação com o Estado. Digamos que a
concepção tradicional, o que interessava o soberano, o que interessava o príncipe ou a república, era o que os
homens eram, eram por seu estatuto ou eram por suas virtudes, por suas qualidades intrínsecas. Era importante
que os homens fossem virtuosos, era importante que eles fossem obedientes, era importante que não fossem
preguiçosos, que fossem trabalhadores. A boa qualidade do Estado dependia da boa qualidade dos elementos do

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

sobre os domínios estatais, possibilitando que os cálculos governamentais sejam


implementados, através da polícia.
Posto dessa forma, a polícia terá enquanto alçada a integração do homem ao Estado,
conforme explana Foucault (2008b, p. 433-434):

Concretamente, a polícia deverá ser o que? Pois bem, ela deverá adotar como
instrumento tudo o que for necessário e suficiente para que essa atividade do homem
se integre efetivamente ao Estado, as suas forças, ao desenvolvimento das forças do
Estado, e deverá fazer de maneira que o Estado possa, por sua vez, estimular,
determinar e orientar essa atividade de uma maneira que seja efetivamente útil ao
Estado. Numa palavra, trata-se da criação da utilidade estatal, a partir de e através da
atividade dos homens. Criação da utilidade pública a partir da ocupação, da atividade,
a partir do fazer dos homens.

O homem, através da doutrina da Razão de Estado, e por força da polícia, se transforma


em peça-chave para o movimento do Estado, bem como também um elemento fundamental
para que os objetivos da polícia – como o esplendor e o aumento das forças estatais – sejam
atingidos. A polícia adotará, então, medidas para que esta integração homem-Estado seja
garantida. Foucault4 destaca quatro principais fatores para o sucesso dessas medidas: l) o
número de cidadãos; 2) as necessidades da vida; 3) a saúde; 4) a coexistência e a circulação dos
homens. Todas essas medidas têm como objetivo o viver dos homens que suplanta a mera
subsistência, a partir do qual os frutos da atividade humana vão ser, de fato, produzidos,
distribuídos, repartidos e postos em circulação de tal forma que o Estado possa tirar desta
dinâmica as suas forças (Foucault, 2008b, p. 438).
Foucault aponta vários domínios com os quais a polícia deve ocupar-se: a religião, os
costumes, a saúde e os meios de subsistência, a tranquilidade pública, o cuidado com os
edifícios, as praças e os caminhos, as ciências e as artes liberais, o comércio, as manufaturas e
as artes mecânicas, os empregados domésticos e os operários, o teatro e os jogos e, por último,
o cuidado e a disciplina dos pobres (Foucault, 2008b, p. 450).
A disciplina e o controle dos pobres é um ponto que merece ser frisado, pois esta
função policial tem como determinante “a exclusão dos que não podem trabalhar e a obrigação,
para os que efetivamente podem, de trabalhar” (Foucault, 2008b, p. 450). Com essa prerrogativa
excludente, onde o trabalho se torna a condição geral para que a vida seja conservada de acordo
com a sua bondade, a sua comodidade e o seu aprazimento, 5 confirma-se o objetivo principal

Estado (Foucault, 2008b, p. 424).


4 O autor pormenorizará esses objetivos em sua obra Segurança, Território, População (Foucault, 2008b, p. 434-

437).
5 Neste caso, a “bondade da vida” é garantida pela religião. A “comodidade da vida” é garantida pela

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

da polícia dito anteriormente, a saber, o viver e o melhor viver (Foucault, 2008b, p. 434-437).
Contudo, um melhor viver a partir de um modo de vida ditado pela polícia, uma forma de vida
que deve ser vivida na cidade, pois será nela que o Estado conseguirá as forças para se fortalecer
e, consequentemente, garantir o seu esplendor.
Portanto, Foucault (2008b, p. 451) argumenta que a polícia foi pensada a partir da
cidade e para a cidade, visto que os problemas abordados pela instituição são tipicamente
urbanos, ou seja, só existem na cidade e porque existe uma cidade. É sobre os problemas de
coexistência que a polícia deve atuar, como a escassez de alimentos, a presença de mendigos e
a circulação de vagabundos. Não obstante, a polícia também se ocupa dos problemas que são
inerentes ao mercado, como a troca, a fabricação e a circulação de mercadorias. Sendo assim,
a polícia é um fenômeno urbano e mercantil, pois trata do controle de circulação tanto das
pessoas que se deslocam quanto das mercadorias que são comercializadas. De um modo mais
geral, a polícia é uma instituição de mercado.
A polícia é posterior à cidade à estrada, ao mercado e à rede viária que alimenta o
mercado, o que nos leva a entender que a instituição foi pensada para ensejar a urbanização do
território, fazendo com que ele fosse organizado como uma cidade, baseado no modelo de uma
cidade e tão perfeitamente quanto uma cidade (Foucault, 2008b, p. 452). Foucault coloca a
polícia como um fator importante para a existência das organizações urbanas:

Domat diz que “é pela polícia que foram feitas as cidades e os lugares em que os
homens se reúnem e se comunicam pelo uso das ruas, das praças públicas e [...] das
estradas”. No espírito de Domat, o vínculo entre polícia e cidade é tão forte que ele
diz que é só por ter havido uma polícia, isto é, porque se regulamentou a maneira
como os homens podiam e deviam, primeiro, se reunir e, segundo, se comunicar, no
senso lato do termo "comunicar", isto é, coabitar e intercambiar, coexistir e circular,
coabitar e falar, coabitar e vender e comprar, foi por ter havido uma polícia
regulamentando essa coabitação, essa circulação e esse intercâmbio que as cidades
puderam existir. A polícia como condição de existência da urbanidade (Foucault,
2008b, p. 453).

Policiar e urbanizar, no contexto apresentado, e levando em consideração todos os


deslocamentos e atenuações de sentidos que as palavras sofreram durante o século XVIII,
significam a mesma coisa (Foucault, 2008b, p. 453). Com o desenvolvimento da economia de
mercado, a multiplicação e a intensificação dos intercâmbios a partir do século XVI, a entrada
da existência humana no mundo abstrato da mercadoria e do valor de troca se manifesta no

tranquilidade, o cuidado com os edifícios, as ciências e as artes liberais o comércio, as manufaturas e as artes
mecânicas, os domésticos e os operários. O teatro e os jogos representam os “aprazimentos da vida” (Foucault,
2008b, p. 434-437).

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

século XVII. Porém, essa inserção do ser humano na representação mercadológica não é um
resultado isolado, mas sim uma ligação de elementos fundamentais, tais como:

[…] a formação de uma arte de governar, que seria ajustada ao princípio da razão de
Estado; uma política de competição na forma do equilíbrio europeu; a busca de uma
tecnologia de crescimento das forças estatais por meio de uma polícia que teria
essencialmente por finalidade a organização das relações entre uma população e uma
produção de mercadorias; e, por fim, a emergência da cidade-mercado, com todos os
problemas de coabitação, de circulação, como problemas do âmbito da vigilância de
um bom governo de acordo com os princípios da razão de Estado (Foucault, 2008b,
p. 455).

A cidade-mercado se torna o novo modelo de como a estatalidade conseguirá intervir6


na vida dos homens, e o que, mais uma vez, possibilitará o nascimento da polícia no século
XVII. O vínculo entre polícia e mercadoria, bem como o objetivo do viver e o melhor que viver
dos víveres que compõe o Estado, tornam-se interesse para a governamentalidade estatal devido
ao fato que o comércio é pensado, no momento histórico já citado, como instrumento principal
da força do Estado e, consequentemente, o objeto privilegiado de uma polícia que tem o
crescimento das forças do Estado como resultado a ser buscado (Foucault, 2008b, 456).
Entretanto, o estado de polícia, tão bem construído a partir do século XVII, começa a
se esgotar e, consequentemente, se desarticular, na segunda metade do século XVIII, em função
de problemas econômicos (Foucault, 2008b, 460).
Os economistas capitaneiam a crítica ao estado de polícia vigente, se apoiando em,
pelo menos, quatro teses. Na primeira tese, estes vão retomar a problemática da circulação dos
cereais para criticar a polícia, apontando para os limites que haviam sido estabelecidos pelo
privilégio urbano e instalando, portanto, a problemática do campo e da agricultura. Nesse
sentido, seria preciso, então, organizar uma governamentalidade que levasse em conta a terra e,
não obstante, não concentrar as preocupações no mercado, mas antes de tudo na produção
(Foucault, 2008b, p. 461).
A segunda tese se trata da questão da regulamentação dos preços. De certo modo, os
economistas criticam a regulação dos preços que a polícia implementa, visto que há um curso
das coisas que não pode ser modificado, podendo agravar a situação caso a intervenção policial
seja feita. É preciso, portanto, substituir a regulamentação mediante a autoridade de polícia por

6Fazer da cidade uma espécie de quase convento e do reino uma espécie de quase cidade – é essa a espécie de
grande sonho disciplinar que se encontra por trás da polícia. Comércio, cidade, regulamentação, disciplina –
creio serem esses os elementos maís característicos da prática de polícia, tal corno era entendida nesse século
XVII e [na] primeira metade do século XVIII. Eis o que eu queria dizer a última vez, se tivesse tido tempo para
caracterizar esse grande projeto da polícia (Foucault, 2008b, p. 456).

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

um regimento que tenha como partida, e que tenha como função, o curso das próprias coisas
(Foucault, 2008b, p. 462-463).
A terceira tese encontrada nos economistas é acerca da concepção de população. Para
os economistas, a população não se estabelece como um bem em si, algo que pode ser
estabelecido autoritariamente e mediante poder regulatório, mas sim uma constante que será
regulamentada de forma espontânea, variando conforme os recursos e o “trabalho possível e
suficiente para sustentar os preços e, de modo geral, a economia” (Foucault, 2008b, p. 464).
Sendo assim, o número que compõe a população será ajustado não em função do regulamento
policial, mas sim pelas situações suscitadas, não sendo, portanto, um dado modificado
incessantemente (Foucault, 2008b, p. 464-465).
A quarta tese dos economistas trará a questão da liberdade de comércio entre os países.
Os economistas avençam para uma lógica mercantil onde os particulares, concorrendo entre si,
possam competir pelo melhor preço e tenham como objetivo o lucro máximo; desta conduta é
que o Estado e a população usufruam de preços justos, ensejando, consequentemente, uma
situação econômica mais favorável possível. Desse modo, a felicidade e o bem de tudo e de
todos não depende mais da intervenção estatal que regula, sob forma de polícia, o espaço, o
território e a população, mas sim pelo comportamento de cada um, com o Estado deixando os
mecanismos de interesses particulares agirem (Foucault, 2008b, p. 465-466).
Com essas quatro teses, fundamentalmente, se inaugura uma quebra de racionalidade
estatal. Foucault apontará para essa mudança conceitual de Estado, dizendo que:

O Estado não é, portanto, o princípio do bem de cada um. Não se trata, como era o
caso da polícia – lembrem-se do que eu lhes dizia da última vez –, de fazer de tal
modo que o melhor viver de cada um seja utilizado pelo Estado e retransmitido em
seguida como felicidade da totalidade ou bem-estar da totalidade. Trata-se agora de
fazer de tal modo que o Estado não intervenha senão para regular, ou antes, para deixar
o melhor-estar de cada um, o interesse de cada um se regular de maneira que possa de
fato servir a todos. O Estado como regulador dos interesses, e não mais como princípio
ao mesmo tempo transcendente e sintético da felicidade de cada um, a ser
transformada em felicidade de todos (Foucault, 2008b, 466).

A transformação dessa razão governamental, segundo Foucault (2008b), se encontra


no âmbito do que vai se chamar de economia. Ainda que esta ordem governamental se encontre
inscrita na ordem da Razão de Estado, esta ordem racional que domina o pensamento dos
economistas vai se modificar.
Foucault, ao salientar as modificações que possibilitaram a mudança de racionalidade,
expõe quatro modificações fundamentais: 1) a naturalização da existência da sociedade civil,
colocando esta enquanto pensamento governamental correlacionado à gestão estatal; 2) a

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

criação de uma nova categoria de conhecimento científico dos processos que conectam as
variações de riquezas e as da população em três eixos, a saber: produção, circulação e consumo
– a economia política; 3) o surgimento, sob novas formas, do problema da população, sendo
que a coletividade de súditos distinguida pela polícia é substituída pela população como
conjunto de fenômenos naturais que devem ser gerenciados a partir da lei da mecânica dos
interesses que vai caracterizá-la e; 4) a limitação da governamentalidade estatal ante os
processos naturais que regem a população e a economia, não havendo justificativa e interesse
sob os sistemas regulamentares ligadas à polícia.7
A novidade que esta nova razão governamental traz é a inscrição da liberdade como
elemento indispensável à própria governamentalidade, sendo imperativo “a integração das
liberdades e dos limites próprios a essa liberdade no interior do campo da prática
governamental” (Foucault, 2008b, p. 475) como critérios de aferimento de um saber ou não
saber governar.
Com este panorama, a polícia, como poder super-regulamentar é desarticulada.8 A
partir dessa desarticulação, a nova governamentalidade se referirá ao domínio de naturalidade

7 Para uma descrição mais detalhadas dos pontos levantados, ver Foucault (2008b, p. 468-474). Há de se fazer
um destaque ao último ponto arguido pelo autor: A limitação governamental implicada pela nova racionalidade
governamental não anula o governo, mas coloca esse poder sob uma outra perspectiva funcional, com o objetivo
de garantir que os fenômenos naturais vão ter a segurança necessária para serem garantidas. São nesses termos
que Foucault leciona: “No interior do campo assim delimitado, vai aparecer todo um domínio de intervenções,
de intervenções possíveis, de intervenções necessárias, mas que não terão necessariamente, que não terão de um
modo geral e que muitas vezes não terão em absoluto a forma da intervenção regulamentar. Vai ser preciso
manipular, vai ser preciso suscitar, vai ser preciso facilitar, vai ser preciso deixar fazer, vai ser preciso, em outras
palavras, gerir e não mais regulamentar. Essa gestão terá essencialmente por objetivo, não tanto impedir as
coisas, mas fazer de modo que as regulações necessárias e naturais atuem, ou também fazer regulações que
possibilitem as regulações naturais. Vai ser preciso portanto enquadrar os fenômenos naturais de tal modo que
eles não se desviem ou que uma intervenção desastrada, arbitrária, cega, não os faça desviar. Ou seja, vai ser
preciso instituir mecanismos de segurança. Tendo os mecanismos de segurança ou a intervenção, digamos, do
Estado essencialmente corno função garantir a segurança desses fenômenos naturais que são os processos
econômicos ou os processos intrínsecos a população, é isso que vai ser o objetivo fundamental da
governamentalidade” (Foucault, 2008b, p. 474).
8 Vocês estão vendo corno se desarticula essa grande polícia super-regulamentar, digamos assim, de que eu lhes

havia falado. Essa regulamentação do território e dos súditos que ainda caracterizava a polícia do século XVII,
tudo isso deve ser evidentemente questionado, e vamos ter agora um sistema de certo modo duplo. De um lado,
vamos ter toda uma série de mecanismos que são do domínio da economia, que são do domínio da gestão da
população e que terão justamente por função fazer crescer as forças do Estado e, de outro lado, certo aparelho ou
certo número de instrumentos que vão garantir que a desordem, as irregularidades, os ilegalismos, as
delinquências sejam impedidas ou reprimidas. Ou seja, o que era o objeto da polícia, no sentido clássico do
termo, no sentido dos séculos XVII-XVIII – fazer a forca do Estado crescer respeitando a ordem geral -, esse
projeto unitário vai se desarticular, ou antes, vai tomar corpo agora em instituições ou em mecanismos
diferentes. De um lado, teremos os grandes mecanismos de incentivo-regulação dos fenômenos: vai ser a
economia, vai ser a gestão da população etc. De outro, teremos, com funções simplesmente negativas, a
instituição da polícia no sentido moderno do termo, que será simplesmente o instrumento pelo qual se impedirá
que certo número de desordens se produza. Crescimento dentro da ordem, e todas as funções positivas vão ser
asseguradas por toda uma série de instituições, de aparelhos, de mecanismos etc., e a eliminação da desordem –
será essa a função da polícia. Com isso, a noção de polícia se altera inteiramente, se marginaliza e adquire o
sentido puramente negativo que conhecemos (Foucault, 2008b, p. 475-476).

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

da economia, procedimentalizando a administração das populações, com a finalidade de


organizar um sistema jurídico que garanta o respeito às liberdades e a formulação de
instrumentos de intervenção direta, mas negativa; à polícia como conhecemos atualmente,
caberá este papel (Foucault, 2008b, p. 476).
Com os elementos acima destacados, Foucault apresenta uma genealogia da
estatalidade:

Temos, portanto, a economia, a gestão da população, o direito, com o aparelho


judiciário, [o] respeito as liberdades, um aparelho policial, um aparelho diplomático,
um aparelho militar. Vocês estão vendo que é perfeitamente possível fazer a
genealogia do Estado moderno e dos seus aparelhos, não precisamente a partir de uma,
como eles dizem, ontologia circular" do Estado que se afirma e cresce como um
grande monstro ou uma máquina automática. Podemos fazer a genealogia do Estado
moderno e dos seus diferentes aparelhos a partir de uma história da razão
governamental. Sociedade, economia, população, segurança, liberdade: são os
elementos da nova governamentalidade, cujas formas, parece-me, ainda conhecemos
em suas modificações contemporâneas (Foucault, 2008b, p. 476).

A partir dos desdobramentos históricos das racionalidades governamentais, podemos


entender como a atual razão governamental se instala e, consequentemente, age. Uma nova
razão, legatária da antiga Razão de Estado, entrará em cena e ditará os rumos políticos das
estruturas estatais em todo o mundo, com consequências de grandes proporções também no
Brasil. E é desta razão governamental, que toma para si os paradigmas da antiga racionalidade
estatal e as ressignifica, que se obtém as legitimidades para implementar as políticas de
segurança como um todo, e as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) em particular, ensejando
práticas e concepções biopolíticas9 acerca de onde vivemos.

3. POLÍTICAS PÚBLICAS DAS UNIDADES DE POLÍCIA


PACIFICADORA

No 2016, as Unidades de Polícia Pacificadora completaram oito anos de


implementação. Um tempo considerável para se refletir sobre os resultados destas políticas
públicas. Mais do que localizar os defeitos ou as falhas deve-se analisar com cuidado aquilo
que, no programa em discussão, deu certo.
A reflexão é válida devido à quantidade de parceiros privados que se comprometeram

9Vale ressaltar que se entende a biopolítica como a gerência e a administração da vida por parte do Estado, em
que a vida se inscreve e toma a centralidade dos cálculos de poder.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

com a ocupação implementada pelas forças de segurança do Rio de Janeiro. Coca-Cola,


Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN), Odebrecht, Confederação Brasileira de
Futebol (CBF), Legião da Boa Vontade (LBV), Associação Internacional de Lions Clube,
dentre outros, são exemplos de empresas e instituições que fornecem o suporte para a
concretização da política de pacificação. Todas essas entidades têm como função declarada
oferecer serviços ligados ao empreendedorismo e à capacitação para o mercado de trabalho,
cooperando com os objetivos definidos pela UPP Social/Rio+Social. Algumas destas entidades
contribuíram efetivamente, seja monetariamente, seja na construção de unidades
pacificadoras10, caracterizando, com isso, a simbiose operacional entre poder público e
iniciativa privada. Vale ressaltar que são os objetivos, ocultos ou declarados, dessa iniciativa
privada que mantém o financiamento que elas desprendem para sustentar tal política pública
securitária.
Um órgão governamental que figura como parceiro do Estado, e que chama a atenção
por esse protagonismo, é o Consulado Geral dos EUA. Inicialmente, o Consulado Geral dos
EUA entra em cena para implementar um programa de ensino de inglês nas comunidades
pacificadas.11 Ao menos, esta foi a proposta de atuação declarada pela referida instituição.
Analisando detalhadamente a atuação do Consulado norte-americano junto as UPPs, percebe-
se, no entanto, os seus objetivos ocultos – e escusos. Em telegrama enviado pela própria
diplomacia ao governo estadunidense, e publicado pelo site WikiLeaks, lê-se as semelhanças

10 A relação das UPPs com o mercado é mais extensa e profunda. Mediante uma heterodoxa parceria público-
privada, um pool formado por Coca-Cola, Souza Cruz, Light, Metrô, Bradesco e outras empresas comprometeu-
se a criar um fundo destinado às UPPs como reconhecimento às garantias e salvaguardas que estas forneceram e
fornecerão aos grandes investimentos. Entusiasmado, o secretário de Segurança sublinhou a importância da
parceria para dar ‘velocidade ao projeto’ e sentenciou: ‘Não podemos ficar restritos a determinados
impedimentos que a legislação [impõe], mas principalmente a lei de licitação. Esse fundo vai suprir esse
problema’ O empresário Eike Batista, que durante o pronunciamento chamou o secretário Beltrame de o ‘grande
general’, anunciou a doação de R$20 milhões anuais até 2014, no mínimo. Além desse pool, a Confederação
Brasileira de Futebol (CBF) também prometeu doar recursos ao fundo. A Bradesco Seguros, a Coca-Cola e a
Souza Cruz comprometeram-se, respectivamente, com R$ 2 milhões, R$ 900 mil e R$ 400 mil. Contudo, a
parceria não se restringe ä criação de um fundo: na Ladeira dos Tabajaras, a Souza Cruz e a Coca-Cola estão
construindo a sede de uma UPP. A fabricante de cigarros também doou um terreno em Manguinhos para a
construção da Cidade da Polícia, local que concentrará todas as sedes de delegacias especializadas do Rio de
Janeiro. A CBF, por seu turno, está participando da construção da UPP na Cidade de Deus. No fim de outubro de
2011, Eike Batista reforçou a intenção de comprar a refinaria de Manguinhos (que, além da localização
estratégicas, obteve recentemente licenciamento ambiental), mas condicionou a compra à instalação de uma UPP
na região (Brito et al., 2013, pp. 105-106).
11 O Consulado Geral dos EUA no Rio de Janeiro, em parceria com a UPP, Secretaria Municipal de Educação do

Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Segurança, Instituto Brasil-Estados Unidos (IBEU), e a Câmara de
Comércio Americana (Amcham Rio), é responsável pela implantação de um grande programa que visa o ensino
da língua inglesa nas comunidades pacificadas, o chamado “UP with English”. O objetivo é capacitar
trabalhadores para grandes eventos esportivos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas de 2016. Os professores
do IBEU – centro bi-nacional reconhecido pela Embaixada Americana – vão até as comunidades para ensinar
inglês (Cabeleira, 2019).

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

entre o processo de pacificação que vigora sob o comando das UPPs com a “doutrina da
contrainsurgência” empregada no Iraque e no Afeganistão. Brito et al. (2013, pp. 219-220)
reproduziram o conteúdo do telegrama, a seguir:

O Programa de Pacificação de Favelas compartilha algumas das características da


doutrina e da estratégia de contrainsurgência dos EUA no Afeganistão e no Iraque. O
sucesso do programa dependerá, em última instância, não apenas de uma efetiva e
duradoura coordenação entre a polícia e os governos estadual/municipal, mas também
da percepção dos moradores das favelas quanto à legitimidade do Estado. [...] Outro
fator significativo para que o projeto seja bem-sucedido é o quão receptivos serão os
moradores das favelas para assumirem as suas responsabilidades cívicas, tais como
pagar por serviços e taxas legítimas. O lugar-tenente do Bope [Batalhão de Operações
Policiais Especiais], Francisco de Paula, o qual também é residente da favela do
Jardim Batan [favela controlada por “milícias” antes da Unidade de Polícia
Pacificadora – UPP], contou-nos que muitos da sua comunidade resistiam à ideia de
terem que passar a pagar taxas mais elevadas por serviços como eletricidade e água,
outrora providos por fontes piratas. Carvalho [José Vieira Carvalho Júnior] também
disse que os seus oficiais encontraram uma confusão generalizada entre os moradores
que, até agora, vinham pagando por eletricidade e TV a cabo providas por fontes
clandestinas. “É muito difícil para eles ter que pagar, de uma hora para outra, por
serviços que antes eles recebiam por menos ou até mesmo de graça”, disse ele.
Carvalho também se lamentou pela mentalidade dominante entre os moradores de
favelas que viveram por décadas sob o controle de grupos de narcotraficantes. “Esta
geração está perdida”, disse ele. “Precisamos nos concentrar nas crianças através da
promoção de programas de esporte e educação.” [...] Assim como na
contrainsurgência, a população do Rio de Janeiro é o verdadeiro centro de gravidade.
[...] Um dos principais desafios deste projeto é convencer a população favelada que
os benefícios em submeter-se à autoridade estatal (segurança, propriedade legítima da
terra, acesso à educação) superam os custos (taxas, contas, obediência civil). Assim
como para a doutrina de contrainsurgência americana, não devemos esperar por
resultados do dia para a noite. [...] Se, contudo, o programa conquistar “mentes e
corações” nas favelas e continuar a gozar do apoio genuíno do governador e do
prefeito, amparado pelas empresas privadas seduzidas pela perspectiva de reintegrar
um milhão de moradores das favelas para os mercados formais, então este programa
poderá refazer o tecido econômico e social do Rio de Janeiro. O posto [diplomático]
irá trabalhar ao lado das autoridades estatais relevantes para facilitar trocas,
seminários e parcerias institucionais visando este fim.

A analogia empregada pela diplomacia estadunidense no telegrama não é mera “livre


associação”; a estratégia – declarada – de ocupação das favelas cariocas serve para neutralizar
e tirar de circulação os “insurgentes”, a saber, os varejistas de drogas instalados nas favelas.12
A guerra às drogas e aos que operacionalizam seu tráfico13 não configura, contudo, motivação
suficiente para justificar o jugo militarizado das favelas cariocas, posto que os traficantes não

12 Se se trata de “contrainsurgência” carioca, quem desempenha o papel de “insurgente”? Levando em conta os


discursos e as práticas governamentais, além da dramatização espetacular da violência promovida pela grande
mídia, encontramos a resposta sem dificuldade: os varejistas de drogas instalados nas favelas […] (Brito et al.,
2013, p. 220).
13 É bom deixar estabelecido que aqui se fala dos que operacionalizam o tráfico nas favelas, sendo em sua grande

maioria negros e residentes nestes lugares, e não os que desempenham a atividade mediante uso de helicópteros
e com envolvimento de políticos atuantes na cena política nacional.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

pretendem “derrubar” o poder estatal e estabelecer um novo Estado. Não obstante o confronto
armado com a autoridade estatal ter o estrito intuito de viabilizar as finalidades econômicas do
comércio de substâncias ilícitas (Brito et al., 2013, p. 220), o objetivo da ocupação militar não
é apenas o controle dos “insurgentes”, mas uma meta muito mais ampla.
Brito et al. (2013, p. 220-221) elucida qual é a meta a ser alcançada por estas
“operações contrainsurgentes”:

As “operações contrainsurgentes” devem conter mecanismos de imantação social da


massa de indivíduos com pouco ou nenhum dinheiro, e esses mecanismos funcionam
sob o auspício das armas. Logo, não é fortuita a identificação da “pacificação” via
UPPs com a doutrina da contrainsurgência. As UPPs, sob o auspício da intervenção
armada, visam a população favelada e mantêm a posição iníqua e subalternalizada que
lhe foi destinada no edifício social. Paramentadas por fileiras de organização não
governamentais (ONGs, entre outras coisas, as UPPs veiculam um modelo de
cidadania mediado pelo consumo e, em meio à lentidão das políticas públicas,
preparam o caminho para a proliferação de serviços pagos e estimulam a ideologia do
“empresariamento de si mesmo”, explorando o “potencial econômico turístico” e a
imagem de “favela S.A.” para encaixá-la como mercadoria exótica em algum nicho
multiculturalista de mercado. As UPPs visam os poderosos agentes de mercado, na
medida em que turbinam a especulação imobiliária no “asfalto e no interior das
próprias favelas e asseguram mão de obra abundante e barateada. Toda essa verve
mercadológica e privatista é parte constitutiva do rebaixamento da forma a um
“departamento da grande empresa em que o mundo se transformou”.

Por essa tendência de linha neoliberal, as UPPs seguem operando e colhendo


resultados nada favoráveis para a população residente nos espaços ocupados. Um dos resultados
mais notáveis é o aumento do custo de vida nas favelas que receberam as unidades
pacificadoras, principalmente nos morros da Zona Sul e na Grande Tijuca (Brito et al., 2013,
p. 208).
Com a instalação das UPPs, houve uma alta geral nos preços dos imóveis, e não apenas
os imóveis situados ao redor das favelas, mas também dos imóveis regulares e irregulares das
comunidades ocupadas. Em levantamento realizado pelo governo estadual fluminense, foi
constatado que, no morro Santa Marta, o preço dos aluguéis subiu cerca de 200% (duzentos por
cento), com imóveis de duas peças (quarto e sala) chegando a custar cerca de R$ 450,00
(quatrocentos e cinquenta reais). Os preços também tiveram alta exponencial na parte baixa do
Chapéu Mangueira e no morro da Babilônia, onde lojas são alugadas por R$ 4 mil (quatro mil
reais) e residências de dois dormitórios por R$ 2 mil (dois mil reais). Na Ladeira dos Tabajaras
e no morro dos Cabritos, principalmente em sua parte mais baixa, os preços dos imóveis
também dispararam: uma loja pode ser vendida por R$ 80 mil (oitenta mil reais) e uma casa de
quatro peças (dois quartos, sala e cozinha) por R$ 70 mil (setenta mil reais). Na Cidade de Deus,
houve aumento de 400% (quatrocentos por cento) no preço dos aluguéis – uma casa de dois

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

dormitórios, no interior da comunidade, pode custar mais de R$ 60 mil (sessenta mil reais),
aprofundando as diferenças de renda e alçando a um novo patamar o antigo e permanente
histórico problema da habitação popular (Brito et al., 2013, p. 208-209). Vale salientar que
estes dados são do ano de 2010; os valores atuais podem já ter sofrido reajustes que elevaram,
ainda mais, os preços dos imóveis nas comunidades ocupadas.
Neste processo de valorização imobiliária decorrente da pacificação repressiva,
pessoas da classe média e estrangeiros têm adquirido imóveis nas favelas da Zona Sul e da
Grande Tijuca, principalmente as que se encontram perto dos pontos turísticos da cidade do Rio
de Janeiro. Em contrapartida, a titulação fundiária e a regularização de serviços como água, luz
e TV a cabo pressionam o custo de vida, principalmente nas favelas situadas na Zona Sul. Sendo
assim, o próprio governo estadual já admite a possibilidade de ocorrer “remoções brancas” nas
favelas pacificadas o que representa, mais uma vez, a criação de um problema de habitação
popular que a própria política pacificadora pretendia resolver.
Percebe-se, também, a mudança do perfil humano dos moradores das favelas em
questão, uma vez que o aumento do custo de vida nas comunidades “pacificadas” está fazendo
com os seus moradores abandonem a comunidade cedendo, assim, espaço para detentores de
capital que veem a favela como um excelente negócio; “uma espécie de substituição de classe
de moradores” está, portanto, sendo operacionalizada (Brito et al., 2013, p. 208-209).14
O conluio entre policiais e operadores do tráfico de drogas na favela é outro tópico
crítico. Em entrevista concedida ao repórter Marcelo Pellegrini – da Revista Carta Capital –
Leonardo Souza, integrante do Coletivo Ocupa Alemão, critica as unidades pacificadoras,
argumentando que a polícia divide o espaço com os traficantes (no Complexo do Alemão).
A ocupação produz, portanto, apenas uma falsa sensação de segurança para a classe
média carioca. Ademais, esta divisão de espaço entre o poder coercitivo estatal e os varejistas
ilícitos originou um cenário paradoxal, conforme o mesmo Leonardo Souza explana: “Antes da
UPP, éramos obrigados a responder ao traficante. Hoje, se algo acontece, não posso chamar a
polícia porque o traficante vai ver. Também não posso chamar o traficante porque a polícia me
vigia. Não temos a quem reclamar”. Ou seja, a situação de abandono da população residente é
inequívoca, restando para ela apenas a vigilância constante e o medo de punição. Não é por
acaso que a matéria tem por título “Espremido entre dois senhores” (Pellegrini, 2015).15

14 Acerca da pujança do mercado imobiliário das favelas, bem como o que as melhorias proporcionadas por
programas como Favela-Bairro têm a ver com esse movimento mercadológico (BRITO et al., 2013, p. 196-198).
15 Salienta-se que a reportagem foi publicada originalmente na edição impressa n. 858 e trazia o título

“Espremidos entre dois senhores” (Pellegrini, 2015).

51
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

É importante frisar que esta situação paradoxal foi patrocinada pela incursão
securitária estatal. A matéria acima referida relata a expulsão, com o advento da UPP, da facção
dominante, o Comando Vermelho que foi substituído por duas outras facções: os Amigos dos
Amigos (ADA) e o Terceiro Comando. Portanto, a polícia escolheu para atuar na comunidade
as duas facções, pois ambas atuam livremente nos territórios ocupados. Além disso, a divisão
do complexo entre duas facções criou uma situação absurda de restrição da liberdade de
locomoção, visto que, com o Complexo dividido, muitos moradores são impedidos de visitar
parentes ou transitar em áreas rivais (Pellegrini, 2015).
Não obstante os perigos trazidos à população pela entrada das UPPs no cotidiano das
favelas, a inconstitucionalidade das ocupações também deve ser analisada. Há de se ressaltar
que houve um esforço do Poder Executivo, na figura do Ministério da Defesa, de conferir
legitimidade às atividades policiais exercidas pelo Exército no Complexo do Alemão, visto que
fora decretada a Diretriz Ministerial nº 9/2014, a qual autorizou a entrada das Forças Armadas
no Complexo do Alemão alicerçada na Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Entretanto, como
já descrito, o estado de sítio não foi declarado para justificar o emprego das Forças Armadas na
ocupação das favelas do Complexo da Maré.
Nilo Batista, em entrevista concedida ao Jornal A Nova Democracia, classifica como
inconstitucional tanto a iniciativa da ocupação do Complexo do Alemão como a implementação
das UPPs, uma vez que as restrições realizadas, como ao direito de ir e vir, por exemplo, só
poderiam ser feitas se fosse decretado estado de defesa ou estado de sítio. Se não fosse pelos
interesses comerciais e propagandísticos, continua Batista, a iniciativa governamental já teria
fracassado, posto que os abusos e os vilipêndios aos direitos são evidentes. No entanto, tal
política é levada a frente por conta do apoio midiático, com verve fascista, na esperança de
auferir vultuosos lucros com os megaeventos sediados pela cidade do Rio de Janeiro (Batista,
2011).
Tal apontamento feito pelo professor Nilo Batista é pertinente, já que o artigo 144, §5º,
da Constituição Federal (CF) discrimina os órgãos que devem garantir a dita segurança
pública.16 À primeira vista, as Forças Armadas não deveriam atuar no contexto civil, dado que
são as polícias que devem cumprir a tarefa constitucional de salvaguarda da segurança nacional.
A utilização das Forças Armadas só seria justificável em caso de perigo iminente de ruptura da
unidade estatal e na garantia da lei e da ordem. O perigo que justificaria o emprego das Forças

16
Art. 144, §5º, da CF. Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos
corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de
defesa civil.

52
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Armadas nas ocupações das favelas e, de modo indireto, permitiria a militarização da polícia
carioca, foi mencionado apenas de forma superficial pelo discurso oficial. Isso não quer dizer
que se esteja virando as costas para os problemas estruturais vividos pela população que reside
nas favelas, nem uma amenização da violência sofrida pelo tráfico varejista de drogas, mas
chamar a atenção para a conveniência de “declarar” uma guerra contra as drogas para
procedimentalizar ocupações em territórios “problemáticos”, assim como controlar a população
que nele reside e desenvolve suas atividades, absorvendo estas pessoas aos ditames ideológicos
que o mercado expressa, ou então, quando elas não são eliminadas pela própria estatalidade
(Brito et al., 2013, p. 223-224).
Esse verdadeiro paradigma de exceção proporcionou inúmeros abusos de autoridade
feitos durante a ocupação. Não são novidades as acusações de abuso de autoridade feita por
policiais do destacamento de pacificação denunciadas pelos moradores das favelas ocupadas
(Brito et al., 2013, pp. 239-271). A Utilização de mandados de segurança coletivos foi
autorizada pelo poder público e empregada de forma ostensiva nas ocupações das Forças
Armadas, nas UPPs e nas operações conjuntas, permitindo a averiguação de qualquer casa ou
estabelecimento comercial sem aviso prévio por razões de segurança (Soares, 2014). As mortes
por intervenção policial, registradas sob a forma de autos de resistência17 também figuram como
expediente excessivo que contribui para o aumento da letalidade policial.
A face mais dantesca dessa ocupação se mostra nas mortes causadas pelos aparatos de
segurança do Estado. A Anistia Internacional, em agosto de 2015, publicou um relatório
chamado “Você matou meu filho: homicídios cometidos pela polícia militar do Rio de Janeiro”,
em que expõe dados assustadores: entre 2005 e 2014, 8.466 pessoas foram mortas em
decorrência da intervenção policial no estado do Rio de Janeiro, sendo 5.132 mortes somente
na capital. A letalidade policial, apenas no ano de 2014, matou 580 pessoas, com maioria das
execuções sumárias18 cometidas nas zonas mais afastadas da cidade, tais como Bangú e Irajá
(Anistia Internacional, 2015, p. 33). O perfil dos sujeitos mortos também é revelador: 99,5%
dos indivíduos assassinados são homens, 79% negros e 75% jovens.19 A letalidade policial,

17
Autos de resistência são “registros administrativos de ocorrência realizados pela Polícia Civil, que faz uma
classificação prévia do homicídio praticado por policiais, associando-o a uma excludente de ilicitude: legítima
defesa do policial” (Anistia Internacional, 2015, p. 28).
18 Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), execuções extrajudiciais são

caracterizadas por uma privação deliberada e ilegal da vida por parte de agentes do Estado, geralmente agindo
sob ordens ou, pelo menos, com o consentimento ou aquiescência de autoridades. Portanto, as execuções
extrajudiciais são ações ilícitas cometidas por aqueles que, precisamente, estão investidos do poder
originalmente concebido para proteger e garantir a segurança e a vida das pessoas (Anistia Internacional, 2015,
p. 23).
19 Estes dados foram levantados a partir dos homicídios cometidos pela intervenção policial nos anos de 2010 a

2013, totalizando 1.275 mortes. Ou seja, não abrange a totalidade dos assassinatos expostos acima. Contudo,

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

portanto, é seletiva (Brito et al., 2013, p. 216).


As execuções empreendidas pela polícia do Rio de Janeiro em territórios que
receberam Unidades de Polícia Pacificadora também estão citadas no relatório publicado pela
Anistia Internacional. O caso mais notório desses assassinatos cometidos pelos agentes estatais
foi o do pedreiro Amarildo da Silva, torturado e morto na própria sede da UPP da Rocinha em
julho de 2013, sendo que seu corpo jamais foi encontrado. As investigações indicam que mais
de vinte policiais, além do comandante da unidade pacificadora, estão envolvidos nesse
assassinato.
Esta é a grande contradição que a política policial pacificadora produziu. Por mais que
nos primeiros anos tenha havido uma diminuição significativa dos índices de violência,20 os
mesmos índices voltaram a subir progressivamente, registrando um aumento de mortes
violentas nas áreas com UPP na ordem de 55,3% no primeiro semestre de 2015 – constata-se,
inclusive, o aumento do número de policiais mortos em serviço (Antunes, 2015).
Nesse cenário controverso, a política securitária se encontra em crise, em seu pior
momento, sendo admitida até pelo comandante das UPPs a “perda da essência” no decorrer dos
anos. Os índices de violência policial, contabilizados até abril de 2016, são alarmantes: 1.715
homicídios, dos quais 238 aconteceram a partir de intervenções policiais e oito policiais mortos
em serviço, além daqueles que foram mortos fora do expediente (Martins, 2016).
É importante citar esses dados, mesmo que não estejam ligados diretamente às UPPs,
pois a presença policial nas favelas, locais tradicionalmente ligados à violência, não impediram
que os índices desta continuassem a crescer vertiginosamente na cidade do Rio de Janeiro. Por
mais que as UPPs não estejam presentes em todos os assentamentos urbanos cariocas, as
unidades encontram-se presentes nas favelas localizadas em bairros de grande densidade
populacional. Entretanto, nem mesmo no entorno destas localizações os índices de violência
diminuíram, nem mesmo a obliteração do tráfico varejista de drogas característico das favelas
foi observado. Desta forma, podemos refletir, mais uma vez, para quais finalidades as Unidades
de Polícia Pacificadora servem: agenda de política securitária reivindicada pelo mercado, a fim
de garantir os empreendimentos do próprio mercado, transformação da urbe conforme visão

pode-se considerar esses dados como uma amostra da realidade geral, de modo que não prejudica a análise feita
neste trabalho.
20 Na área de abrangência das UPPs, estão contidas 196 comunidades, que possuem cerca de 600 mil habitantes.

Sua implantação contribuiu para a redução de determinados índices de criminalidade em áreas específicas da
cidade, como o número de homicídios – inclusive os homicídios decorrentes de intervenção policial e o número
de policiais mortos em serviço. Houve 20 mortes decorrentes de intervenção policial em áreas de UPP em 2014,
o que equivale a uma redução de 85%, se comparado ao número registrado em 2008 (136 vítimas)” (Anistia
Internacional, 2015, p. 26).

54
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

ideológica de quem integra a cidade em seus espaços formais,21 assim como o controle das
populações que residem nos territórios ocupados.
Tanto a “guerra às drogas” quanto a “guerra ao terrorismo”, quando eclodem, não são
necessariamente para serem vencidas, mas, sim, para serem “tautologicamente executadas”
(Brito et al., 2013, p. 224). Os objetivos dessa verdadeira efetivação de uma zona de guerra
atendam interesses que não estão apenas no Estado, mas também em outros elementos que
merecem ser analisados:

Mais do que a “militarização da segurança pública”, portanto, podemos captar largas


doses de “militarização da vida social, expressa numa “militarização do cotidiano”.
Nesse sentido, o foco de análise deve incidir especialmente sobre o Estado, mas não
restringir a ele. O Estado coloca-se como polo catalisador da militarização em virtude
das atribuições transversais que incorporou ao longo do desenvolvimento das relações
sociais capitalistas de produção (em especial, depois do advento do capital
monopolista) e, mais especificamente, das condições e incumbências que adquiriu no
quadro global de crise do capital. Mas, quando seguimos os rastros da militarização e
das alterações do sistema convencional de coordenadas da guerra moderna e
capitalista, constatamos a importância de não fixar o foco no âmbito estatal. Esses
rastros apareceram num contexto de crise capitalista, cuja turbulência atinge
frontalmente o Estado […]. A fim de dar conta dessa demanda contraditória, haja
vigilância, coação, repressão, punição, etc. Nesse contexto, o Estado envolve-se
progressivamente com tarefas de “administração” e “gestão” desse quadro social em
processo de desmantelamento. Na medida em que o próprio Estado também é atingido
pelo redemoinho da crise, as tarefas de “gestão adquirem moldes coercitivos, com
características militarizadas. A proliferação de programas pontuais de compensação
social (baseados sobretudo em remunerações não salariais e, na maioria dos casos,
operacionalizados por intermédio do “terceiro setor”) compõe esse exercício de gestão
da crise e da barbárie social galopante, indicando um encolhimento das respostas
institucionais. Dilata-se assim a desconexão entre as exigências sociais (cada vez
maiores) e a contrapartida estatal (progressivamente reduzida e limitada à
“administração” da crise) e amplia-se a tendência da política de ser exercida em
referência primordial ao vetor “segurança” e incorporar projetos compensatórios de
atuação social, numa atmosfera de exaltação do “empreendedorismo” e da
“autossustentabilidade” (Brito et al., 2013, p. 233-235).

Nesse contexto em que Paulo Arantes (2014, p. 432) chamará de “pacificação


permanente”, o governo e prefeitura do Rio de Janeiro exercem uma administração
regulamentada segundo a razão da militarização da urbe, gerando a exceção que suspende os
direitos e, por consequência, dispõe das vidas da população residente das favelas, seja para o
mercado ou para a aniquilação desses viventes pelas mãos do Estado:

Dado o enredamento crescente da violência com os regimes democráticos, cria-se um


problema nestes tempos de “ode à democracia”: a manutenção da própria democracia
como um persistente estado de exceção sob os influxos das leis férreas da acumulação
capitalista. Ocorre um espalhamento da “exceção” (incrustada na “regra”), em nome
da defesa da própria “regra”, cuja reprodução, contudo, é cada vez mais envolvida

21 Conforme seção 1.3 e 2.1 deste artigo.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

pela “exceção” (e dependente dela). Esquisito, não? Mas os experimentos de


regulação social armada no Rio de Janeiro têm muito a revelar sobre essa esquisitice...
Assim, se ao longo do século XX o processo de militarização institucional e da
sociedade civil representou em geral um sismógrafo dos abalos do poder legalmente
instituído e um nutriente da ascensão dos regimes ditatoriais, a militarização atual
desenvolve-se associada a um fortalecimento institucional e ideológico do chamado
regime democrático. É por aí que as coisas caminham, ou melhor, correm na estilizada
“Cidade Olímpica”, autoproclamada “maravilhosa”. Com “guerra”, “pós-guerra” ou
“sem guerra”, o Rio de Janeiro oferece experimentos de regulação social armada com
intensas doses militaristas (Brito et al., 2013, p. 238).

É nesta esteira que devemos entender como se produz a exceção que enseja o controle
biopolítico dos que vivem nas favelas cariocas. Entendendo o que acontece na cidade do Rio
de Janeiro, pode-se ter uma perspectiva da forma que a exceção é instaurada nos outros Estados
da Federação, posto que “há mais de três décadas que a cidade do Rio de Janeiro deixou de ser
a ‘velha caixa de ressonância nacional’, em que se jogavam lances decisivos da política do país,
e tornou-se um implacável laboratório de gestão da barbárie” (Brito et al., 2013, p.12-13).

4. ESTADO E BIOPODER: A VIDA NUA DAS FAVELAS E O


GENOCÍDIO NEGRO ENQUANTO PROJETO DE ESTADO

As Unidades de Polícia Pacificadora, geridas e executadas sob a égide da razão


governamental e instituidoras da exceção soberana sob a intenção declarada de integrar as
favelas à cidade legal, possibilitam para o Estado a viabilização de governo das vidas de quem
habita nessas localidades. Tal realidade configura-se, desse modo, que as UPPs são uma
modalidade biopolítica de gerência governamental, trazendo efeitos, mais uma vez, dantescos
ao serem implementadas.
Podemos entender a biopolítica como as práticas políticas que possuem a gerência e a
administração da vida por parte do Estado, em que a vida se inscreve e toma a centralidade dos
cálculos de poder. Neste sentido, Foucault leciona que:

[...] a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa
multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados,
treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se
instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem
em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada
por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o
nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. Logo, depois de uma primeira tomada
de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo de individualização, temos uma
segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante mas que é
massificante [...], que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem-
espécie. Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma
anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma “biopolítica” da
espécie humana (Foucault, 2005, p. 289).

A biopolítica tem por objeto de prática um novo corpo, a população, lidando com este
como sendo um problema político, científico, biológico e de poder. A biopolítica, segundo
Foucault, “vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população
considerada em sua duração” (Foucault, 2005, p. 293), e a partir disso, vai estabelecer
mecanismos que auxiliarão nas intervenções que o biopoder soberano executará na população
governada, como as estatísticas, medições globais, entre outros (Foucault, 2005, p. 293).
Esses mecanismos têm por função gerir a população para que esta contribua na geração
de riquezas à nação e, por consequência, culmine na construção da sua grandiosidade, conforme
já discutido no primeiro capítulo deste trabalho. Nessa perspectiva, a soberania, que antes fazia
morrer e deixava viver, vai começar a governar a população através da regulamentação, do
poder contínuo e científico, que consiste em fazer viver e deixar morrer (Foucault, 2005, p.
294).
O poder, ou melhor, o biopoder, assume um caráter positivo, no sentido de que as
práticas governamentais emanadas pelo Estado começam a secundarizar a morte e priorizar a
vida, no intuito de controlar os incidentes, prolongar a existência e prever os perigos internos
que são intrínsecos à convivência coletiva (Flauzina, 2008, p. 110). Nesta lógica, Foucault
(2005, p. 297) explica que:

Temos, portanto, desde o final do século XVIII (ou em todo caso desde o fim do século
XVIII), duas tecnologias de poder que são introduzidas com certa defasagem
cronológica e são sobrepostas. Uma técnica que é, pois disciplinar: é centrada no
corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forcas que é
preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma tecnologia
que, por sua vez, é centrada não no corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os
efeitos de massa próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos
fortuitos que podem ocorrer em uma massa viva; uma tecnologia que procura
controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em
compensar os seus efeitos. É uma tecnologia que visa, portanto, não ao treinamento
individual, mas pelo equilíbrio global, algo como uma homeostase: a segurança do
conjunto em relação aos perigos internos.

A articulação das normas disciplinares e das normas de regulamentação populacional


resulta nas sociedades de normalização, em que a regra “é o que pode tanto se aplicar a um
corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que quer se regulamentar” (Foucault,
2005, p. 302). Essa articulação que possibilitou ao poder conseguir abranger “toda superfície
que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra”.22


Ana Luiza Pinheiro Flauzina diz que a recepção da engenharia política do biopoder
teve recepção no Brasil com a superação do sistema escravista. As negras e negros libertos terão
sua inferioridade jurídica do escravismo convertida em inferioridade biológica a partir do
discurso positivista do século XIX, fato que dota esta nova configuração de poder com a ideia
de pureza e superioridade das raças, resguardadas no tecido social (Flauzina, 2008, p. 111).
Neste sentido, e em consonância com o paradigma amigo-inimigo de Schmitt,
Foucault avença para a inserção do racismo nas estruturas do Estado em virtude da emergência
posta pelo biopoder em exercer o poder de morte diante de um contexto que prioriza a vida e a
sua multiplicação. Foi nesse momento, continua Foucault, “que o racismo se inseriu como
mecanismo fundamental do poder, tal como exerce nos Estados modernos, e que faz com que
quase não haja funcionamento moderno do Estado que, em certo momento, em certo limite e
em certas condições, não passe pelo racismo” (Foucault, 2005, p. 303-304).
O racismo cumpre com a função de promover o corte de quem deve viver e quem deve
morrer, ou seja, o racismo será utilizado pelo poder para fragmentar, produzir cesuras no
interior da população, para defasar uns grupos em relação aos outros. Outro papel que o racismo
terá é o de estabelecer uma relação positiva, isto é, de permitir estabelecer, entre a vida de
alguém e a morte de outrem, uma relação do tipo biológica, em que a morte de uma pessoa que
pertença a uma “raça ruim” proporcione que a vida, em sua generalidade, fique mais sadia e
pura (Foucault, 2005, p. 304-305).
Desta forma, caso o poder de normalização queira exercer o antigo direito soberano de
matar, ele terá que passar pelo racismo. Assim como o poder soberano, que possui o direito de
vida e de morte, caso queira funcionar com os instrumentos da normalização, também passará
pelo racismo. Foucault lembra que tirar a vida não é necessariamente homicídio direto, mas
também tudo que pode ser apreendido enquanto assassínio indireto, como por exemplo, expor
à morte, multiplicar para algumas pessoas o risco de morte ou, ainda, a morte política, a
expulsão, a rejeição, dentre outros (Foucault, 2005, p. 306).
Nesta continuidade, Flauzina (2008, p. 113-114) comenta:

Assim, nas sociedades de normalização, em que o Estado opera preferencialmente na


esteira de um projeto de manutenção da vida, é o racismo que sustenta a produção da
morte. A partir das distinções de tipo biológico que atravessam a população, será
possível ao Estado recrutar os indivíduos a serem eliminados, numa perspectiva que

22Cumpre salientar que a normalização pode ser entendida como função de polícia, dada as atribuições que a
instituição possui atualmente, bem como desempenhou quando o termo “polícia” havia outra conotação
(Foucault, 2005, p. 302).

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

garante a manutenção de uma sociedade pura e saudável. No esquema assumido pela


modernidade, o racismo passa, portanto, a ser a condição para o direito de matar. Daí
a sua centralidade para o funcionamento do Estado. [...] Se, como justificativa para a
subjugação, ele era antes explicitado nos processos de disciplina dos corpos, serve
agora aos mesmos propósitos, nos calabouços de um empreendimento que investe
sobre as balizas do convívio social. Com o poder centrado na conservação da vida, “o
racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para tirar a
vida dos outros”. É assim que, numa linha de continuidade que só enxerga
sofisticações, nunca rupturas efetivas, o projeto de extermínio da população negra
encontra espaço para renovar-se nas promessas vazias da modernidade.

Flauzina, assim como Foucault em Nascimento da Biopolítica, aponta que o alçamento


neoliberal ao poder pauta uma necessidade cada vez maior de exclusão social e eliminação
física dos grupos que não se adéquam à agenda globalizante, potencializando os expedientes
que já estavam sendo aplicados desde a implantação da República para o extermínio dos negros
e negras no Brasil. Os dados estatísticos e as imagens que retratam a vida da população negra
estampam essa dinâmica (Flauzina, 2008, p. 115).
Ao dissertar acerca dos efeitos da agenda de políticas públicas que sustentam o
processo genocida tocado pelo Estado brasileiro, um tópico levantado por Flauzina merece
atenção, inclusive para o desenvolvimento do presente trabalho: a segregação espacial. Segundo
a autora, “a configuração da espacialidade urbana que lançou a população negra desde o pós-
Abolição para as periferias de todo o país dá uma boa dimensão da precariedade e dos
instrumentos de aniquilação física e simbólica que diuturnamente trabalham para extinguir o
contingente negro brasileiro” (Flauzina, 2008, p. 115-116). Isso se explica por meio da forma
de ocupar o espaço urbano e rural brasileiro, implementada por políticas truculentas que
objetivavam a manutenção dos territórios estratégicos sob o domínio das elites e inviabilizavam
as possibilidades de uma fixação territorial dos negros após o fim do regime dos trabalhos
forçados, isto é, a forma carrega um componente de base racista (Flauzina, 2008, p. 115-116).
Não é difícil traçar um paralelo entre a argumentação de Flauzina e a dinâmica das
favelas cariocas. Como conjuntos habitacionais eminentemente negros surgidos da necessidade
de moradia, as favelas sofreram vários atentados contra a sua existência até o advento da
estratégia governamental atual de tolerá-las, no melhor estilo prescrito pelo ditado popular “se
não pode contra seus inimigos, junte-se a eles”. Cabe salientar, entretanto, que esta aproximação
estatal não é benevolente.
Ao falar sobre as resultantes desta desarticulação promovida pela estatalidade da
população negra, fadada às periferias brasileiras, no geral, e às favelas cariocas, em particular,
como locais em que o genocídio dessa população ocorre, Flauzina (2008, p. 117) diz que:

59
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Assim, a existência coletiva da população negra vai sendo comprometida dentro da


conformação espacial urbana, por meio de processos que reúnem desencorajamento
pessoal aliado às poucas alternativas sociais de reprodução da vida em sociedade,
além das investidas efetivas sobre sua corporalidade. Em suma, as periferias das
cidades brasileiras são o cenário interativo em que somam práticas e omissões para a
consecução do projeto genocida de Estado.

Diante deste panorama, o gerenciamento e o controle biopolítico, bem como o


processo genocida, podem ser perfeitamente vislumbrados no interior das Unidades de Polícia
Pacificadora. A despeito da alegada redução da letalidade promovida pela política securitária,
as UPPs são aparatos que visam à gerência das vidas de quem habita as favelas, dispondo das
mesmas vidas, novamente, a relação de bando.
Neste sentido, para pensarmos a disposição por parte do poder soberano sobre a vida
de quem habita as favelas, é necessário recorrer à figura do homo sacer, da vida nua, que se
torna temerária. O homo sacer é a vida que pode ser disposta sem a necessidade de celebrar
sacrifícios e sem cometer homicídios (Castro, 2012, p. 64).
Segundo Agamben, o homo sacer apresenta a figura originária da vida presa no bando
soberano que conserva a memória da exclusão originária que constitui a dimensão política.23 O
espaço político da soberania se estabelece, desta forma, através de uma dupla exceção, uma
proeminência do profano no religioso e do religioso no profano, que configura uma zona de
indiferença entre sacrifício e homicídio. Sendo assim, “soberana é a esfera na qual se pode
matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e
insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera” (Agamben, 2004, p. 91).
Dado que a estrutura que mantém unida a estrutura do bando são a vida nua e o poder
soberano (Castro, 2012, p. 67), Agamben (2004, p. 117) explana que:

É esta estrutura de bando que devemos aprender a reconhecer nas relações políticas e
nos espaços públicos em que ainda vivemos. Mais íntimo que toda interioridade e
mais externo que toda a estraneidade é, na cidade, o banimento da vida sacra. Ela é
o nómos soberano que condiciona todas as outras normas, a espacialização originária
que torna possível e governa toda localização e toda territorialização. E se, na
modernidade, a vida se coloca sempre mais claramente no centro da política estatal
(que se tornou, nos termos de Foucault, biopolítica), se, no nosso tempo, em um
sentido particular mais realíssimo, todos os cidadãos apresentam-se virtualmente
como homines sacri, isto somente é possível porque a relação de bando constituía
desde a origem a estrutura própria do poder soberano.

Desta feita, as vidas dos que moram nas favelas cariocas estão desde sempre dispostas

23A violência soberana não é, na verdade, fundada sobre um pacto, mas sobre a inclusão exclusiva da vida nua
no Estado. E, como o referente primeiro e imediato do poder soberano é, neste sentido, aquela vida matável e
insacrificável que tem no homo sacer o seu paradigma [...] (Agamben, 2004, p. 113).

60
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

diante do Estado em relação de abandono, o que os tornam concretamente homines sacri. Todos
os dados referentes à população residente das favelas, composta, nunca é demais de lembrar,
majoritariamente por negros, comprovam que a vulnerabilidade a que este extrato populacional
está exposto os situam em uma condição de precariedade e exploração que os expõe à morte
das mais variadas formas.
Essa exposição se faz presente sob o patrocínio do Estado, seja nas mortes que o seu
aparato de segurança executa, seja na sua ausência em cumprir com o dever de ofertar serviços
essenciais para todas(os), ou na promoção de políticas públicas que teoricamente tinham um
caráter de ensejar a emancipação cidadã das camadas populacionais que sempre foram
esquecidas pelo poder público, mas que na realidade se revelaram o mais do mesmo vigilante
e controlador das vidas residentes dos territórios ocupados, como é o caso das UPPs.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos primeiros argumentos que Koselleck demonstra em sua obra Crítica e crise é
que “de um ponto de vista histórico, a atual crise mundial resulta da história européia[sic]. A
história européia[sic] expandiu-se em história mundial e cumpriu-se nela, ao fazer com que o
mundo inteiro ingressasse em um estado de crise permanente” (Koselleck, 2007, p. 9). O Brasil
não passa ilesa a este processo. Ao contrário, pois desde a vinda dos europeus – isto é, desde a
colonização – que o Estado brasileiro edifica suas bases e opera mediante a lógica herdada dos
colonizadores.
A suscitação de crises por parte do Estado buscando operar sua governança sobre os
corpos e os territórios onde habitam é apenas uma das faces que a colonização europeia nos
legou. Visto que, desde o “descobrimento” do Brasil, o controle, exploração e extermínio dos
corpos não-brancos foram, foi e será o assento das práticas de governo deste país. A antiga
razão de Estado – cabe salientar, nascida na Europa – mostra que, no objetivo de dotar força à
estatalidade e protegê-la, lançou mão de expedientes mortíferos para atingir tais objetivos.
Desse modo, nesta percepção de que nada mudou, no que diz respeito à razão
governamental, mas apenas se aprimorou ao longo da história, que se colocam os desafios para
lutar contra esse contexto de vidas sitiadas e mortes anunciadas. Este trabalho pretende ser uma
denúncia acerca de tal biopolítica que está em execução na cidade do Rio de Janeiro, e que,
mais uma vez, serve de modelo para ser executado pelo Brasil afora. A tomada de consciência
crítica do contexto no qual estamos inseridos é um primeiro passo na direção de criar estratégias

61
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

políticas que, necessariamente, forneçam condições de resistir e modificar esta nefasta


conjuntura biopolítica.
Nesse sentido, o presente trabalho não pretende esgotar a discussão em torno dos atos
governamentais e da racionalidade que as permeia, mas sim contribuir para que o debate seja
fomentado em torno do desnudamento da razão governamental brasileira, que encontra no Rio
de Janeiro um grande reprodutor.

REFERÊNCIAS

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Agamben. Entrevista realizada em 17 de julho, 2013. Blog da Boitempo. Entrevista traduzida
por Artur Renzo. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2013/07/17/a-crise-
infindavel-como-instrumento-de-poder-uma-conversa-com-giorgio-agamben/. Acesso em: 25
jul. 2023.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. 1. reimpressão. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2004.

ANISTIA INTERNACIONAL. Você matou meu filho! homicídios cometidos pela polícia
militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015.

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em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-11-16/mortes-em-favelas-com-upp-
aumentam-em-553.html. Acesso em: 20 jun. 2023.

ARANTES, Paulo. O Novo Tempo do Mundo. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

BATISTA, Nilo. Nilo Batista fala sobre as UPPs e a presença do exército no Complexo
do Alemão. [Vídeo Youtube]. 16 nov. 2011. Disponível em:
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BRASIL. Portal Brasil. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/defesa-e-


seguranca/2014/04/forcas-armadas-sao-autorizadas-a-atuar-em-operacao-no-rio. Acesso em:
20 jun. 2023.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,


DF: Senado, 1988.

BRITO, Felipe; OLIVEIRA, Pedro Rocha (orgs.). Até o Último Homem. 1. ed. São Paulo:
Boitempo, 2013.

62
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

CABELEIRA, Mayara de Martini. Política e Pacificação: segurança, pacificação e favela.


Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/19496/2/Mayara%20de%20Martini%20Cabeleira.pdf.
Acesso em: 20 jun. 2023.

CASTRO, Edgardo. Introdução à leitura de Agamben. Belo Horizonte: Autêntica Editora,


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FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o sistema penal e o projeto
genocida do Estado Brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

KOSELLECK, Reinnhart. Crítica e Crise. 1. ed. Rio de Janeiro: EDUERJ; Contraponto,


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MARTINS, Felipe. Promotor diz que segurança pública no Rio de Janeiro é um problema
político. O dia. 2016. Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2016-06-
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Acesso em: 24 jun. 2023.

PELLEGRINI, Marcelo. “UPP não acabou com o tráfico, só trouxe falsa sensação de
segurança.” Carta Capital. 2015. Disponível em
http://www.cartacapital.com.br/revista/858/espremidos-entre-dois-senhores-6954.html.
Acesso em: 20 jun. 2023.

63
Capítulo 4

A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO


INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA
APLICAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO
MINEIRO

Jéssica Tayná Oliveira Campos1


Antônio Leonardo Amorim2

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10534941

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como proposta de estudo, a aplicação da Justiça Restaurativa


como uma nova forma de lidar com os conflitos, frente aos desafios enfrentados no sistema
criminal brasileiro, visando a proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa
humana. Para tanto, utilizou-se o método qualitativo, valendo se de doutrinas, artigos e
documentos oficiais do governo federal, que versam a cerca dessa temática.
A partir disso, procurou-se fazer um estudo acerca do princípio da dignidade humana
como um princípio da justiça restaurativa, sob o ponto de vista de Immanuel Kant, de modo a
abordar conceitos e características, com o objetivo de construir um segmento lógico entr

1
Bacharela em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG, Pós-Graduanda em Direito Penal
e Processo Penal; Investigação Criminal e Legislação Penal; Investigação Forense e Perícia Criminal pela
FACUMINAS. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-7224-5215.
2
Professor do curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, Câmpus do
Pantanal - CPAN, Cidade de Corumbá/MS, Doutor em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina,
bolsista CAPES (2022/2023), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019),
bolsista CAPES durante o período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal
(2017-2018), pesquisador vinculado ao projeto de pesquisa Cárcere e Fronteira. E-mail:
antonio.amorim@ufms.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1464-0319.

64
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

ambos, demonstrando sua interligação e a importância de um para o outro, conforme trabalhado


na primeira seção.
Como forma de contextualizar a problemática desenvolvida, a segunda seção traz um
comparativo entre o sistema retributivo e restaurativo, apontando as respectivas características
e aplicações de cada um, bem como os acertos e falhas, evidenciando assim, o problema social
da justiça criminal e uma alternativa de redução dos danos causados pelo sistema que a rege.
Ainda nessa perspectiva, a terceira seção traz o sistema restaurativo como uma
alternativa à crise do sistema penal brasileiro, de modo a colacionar medidas adotadas pelo
próprio Poder Judiciário, mais especificamente o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, e por
fim, no último capítulo, tratou-se acerca da aplicabilidade do método pelo Poder Judiciário e os
resultados já contabilizados, a partir de dados do Conselho Nacional de Justiça e seu reflexo
como fator alternativo à justiça criminal convencional.

2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO


DA JUSTIÇA RESTAURATIVA SOB A ÓTICA KANTIANA

A partir de uma análise breve do sistema tradicional de justiça, é possível analisar que
as partes, vítima e ofensor, são tratados de forma processual no curso do processo, sem que as
demais necessidades sejam atendidas. Em outras palavras, as necessidades psíquicas e
emocionais são negligenciadas, de forma que o bem jurídico ali tutelado, é o tipo penal violado.
As partes, são tratadas como provas processuais, de forma que o Estado possa, a partir disso,
aplicar a sanção.
Dessa forma, a vítima é vista como mera prova no processo, afinal, teve o seu bem
lesionado, que gerou o processo penal. Por outro lado, o ofensor é visto como alguém que
deverá suportar todos os males resultantes da pena imposta, de uma forma que não almeja a
ressocialização ou um atendimento mais humanitário. A partir dessa tratativa, ao se ignorar que
os sujeitos processuais são seres humanos, dotados de sentimentos e opiniões, ignora-se
também a dignidade da pessoa humana, algo de extrema relevância constitucional, que muitas
vezes, porém, não é respeitado.
Ao longo da história, esse preceito foi tratado de diferentes formas, conforme o
momento histórico abordado. Na antiguidade clássica, por exemplo, nem todos os homens
possuíam dignidade. Isso porque, ela estava interligada com outras condições sociais, como
status, emprego, escolaridade etc. Contudo, foi no período do Renascimento que o conceito que

65
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

se conhece hoje passou a existir, desvinculando-se de ideais cristãos no período do jus


naturalismo.
Ainda na história recente, o conceito de dignidade está pautado em uma relação
hierárquica religiosa e ideológica, o que se evidenciou inclusive na segunda grande guerra,
momento em que, seguindo uma ideologia racista, milhões de pessoas foram consideradas
indignas e inferiores, motivo pelo qual foram torturadas e executadas.
Daí, observa-se a importância e a preocupação quanto o cumprimento integral da
dignidade da pessoa humana ser tratada de forma tão contundente na legislação internacional,
sua preservação está totalmente ligada aos preceitos mais básicos de manutenção e respeito à
vida. A esse respeito, Immanuel Kant foi um importante filósofo, no que tange o estudo sobre
o que seria de fato a dignidade da pessoa humana. Seu destaque foi justamente no período
Iluminista, sendo um dos pioneiros a conceituar sobre o tema.
O pensamento desse autor é em sua totalidade baseado na razão e dever, na qual o
indivíduo pode, a partir de suas próprias conclusões, o indivíduo pode determinar sua conduta.
De acordo com ele, no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma
coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando
uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não permite equivalente, então tem ela
dignidade. (Kant, 2007).
Seguindo o pensamento de Kant, a fundamentação da dignidade da pessoa humana,
portanto, se dá quando a pessoa é considerada como o sendo, não como um objeto. Contudo,
ao observar a forma como as partes são tratadas no modelo retributivo, percebe-se que não há
o devido respeito à dignidade das partes.
A partir dessa colocação, pode se observar a existência de uma relação entre as práticas
restaurativas e o princípio da dignidade humana trazido por Kant, em contraposição ao sistema
retributivo, já que uma das principais premissas do método restaurativo, é olhar para as partes
como seres dotados de sentimentos e responsabilidade sobre suas ações.
Ao aplicar os métodos restaurativos, as partes terão suas dignidades preservadas, uma
vez que tratadas de forma pessoal, não como simples prova os autos do processo. Ademais,
outro aspecto relevante trazido por Kant é a autonomia de vontade das partes, na qual também
é um dos princípios da justiça restaurativa.
Para finalizar a relação entre a definição de dignidade por Kant e as práticas
restaurativas, afirma Karine da Silva Cordeiro (2012, p. 67) que “de acordo com o ponto de
vista Kantiano, a dignidade não existe se não houver autonomia, ao passo que, somente há
autonomia quando o indivíduo é submetido à lei na qual criou.”

66
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Assim, sua dignidade racional está relacionada com a capacidade de criar e obedecer
a leis que irão reger a sociedade, de forma a se tornar parte do meio e não apenas um sujeito
dele.

3. BREVE COMPARATIVO ENTRE OS SISTEMAS


RESTAURATIVO E RETRIBUTIVO

Para a melhor compreensão das características que tornam a justiça restaurativa, um


modelo aplicável à justiça retributiva, é necessário fazer uma breve comparação entre esses
modelos, de acordo com cada atribuição que possuem, sendo elas os valores, procedimentos,
resultados, efeitos para a vítima e efeitos para o infrator, respectivamente.
No que diz respeito aos valores, o sistema de justiça retributiva apresenta como
principais características o crime como sendo um ato voltado para a sociedade, na qual é
representada pelo Estado. Sendo assim, preza pelo interesse público, sendo a culpabilidade
voltada para estigmatização, fazendo uso categórico do direito penal e agindo de forma
indiferente quanto às necessidades da vítima, infrator e comunidade, além de ser um sistema
excludente.
Já os valores do sistema restaurativo, abordam o conceito de crime como sendo um ato
que viola as relações sociais, impactando de forma negativa a vítima. Dessa maneira, aborda o
interesse das pessoas e da comunidade, de forma que transmite ao ofensor a responsabilidade
por seu ato, buscando uma reparação social e visando o futuro. O uso do direito se faz de uma
forma alternativa, se comprometendo a Justiça social de inclusão, dando voz à vítima, sempre
amparado pelo respeito e à tolerância.
Quanto aos procedimentos, a Justiça retributiva atua de forma pública, através de
princípios como indisponibilidade da ação penal, de forma contenciosa, usando de normas e
linguagens complexas, sendo seus principais atores os representantes do jus puniendi estatal –
MP, juízes de direito e demais profissionais do direito, ficando a decisão a cargo destes.
Para a Justiça restaurativa, no entanto, a atuação é feita de forma comunitária, com as
pessoas envolvidas, de forma que preza o princípio da oportunidade, voluntariedade,
colaboração, informalidade e confidencialidade, sendo os principais atores desse modelo, a
vítima, o ofensor e a comunidade.
Em relação aos resultados, o modelo retributivo é pautado na prevenção do delito, com
foco em punir e intimidar o infrator, por meio de penas privativas de liberdade, direitos e multas,

67
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

o que acaba acarretando uma maior estigmatização do indivíduo. Sua tutela, gira em torno da
proteção aos bens jurídicos, que protege a sociedade à medida que pune o infrator.
Assim, ocorre a aplicação de penas ineficazes e desproporcionais, em
estabelecimentos prisionais que muitas vezes violam os direitos da pessoa humana, que muitas
vezes punem aqueles mais vulneráveis, sendo, portanto, injusto. Ademais, vítima e infrator não
recebem amparo e a paz social é estabelecida sobre um cenário de tensão.
Nesse sentido, o modelo restaurativo aborda o crime e suas consequências, focando
em restaurar a relação entre as partes, por intermédio da reparação do trauma moral e
emocional, que pode ser feito através de um pedido de desculpas, pela reparação do dano e/ou
serviços à comunidade, que trabalham também na inclusão e restauração em âmbito social.
Dessa forma, tutela a responsabilização do infrator, de forma espontânea, visando os
princípios da razoabilidade e proporcionalidade nas obrigações uma vez assumidas no acordo,
que resulta na reintegração do infrator e vítima, contribuindo para uma paz social pautado na
dignidade.
No que tange os efeitos em relação à vítima, o sistema retributivo considera essa como
sendo parte do processo. Isto é, não há participação ativa, proteção ou interação com o processo,
de modo aos seus sentimentos passarem despercebidos pelo Estado. Isso tudo, faz com que
surja um sentimento de ineficácia, pois embora haja a punição do ofensor, seus traumas e
frustração com o sistema, continuarão ali.
Por sua vez, no sistema restaurativo, ocorre o oposto. A vítima possui um papel ativo
no processo, de forma que pode falar, participar e ter o controle da situação. Sendo assim, recebe
um amparo maior, voltado para sua dignidade e visando reparar os danos também de ordem
emocional e psíquica, suprindo, portanto, as necessidades individuais e coletivas.
Quanto aos efeitos para o ofensor, na justiça retributiva, este é considerado a partir de
seus delitos, sua participação se resume a, assim como a vítima, uma prova processual, na qual
participará em busca de sua defesa por meio de um advogado-não tem voz ativa. Não há contato
com a vítima, desconhece muitas vezes os atos processuais, não é responsabilizado, mas sim,
punido pelo fato e suas necessidades não são consideradas.
Para a justiça restaurativa, no entanto, o ofensor é visto como alguém que necessita ser
responsabilizado de forma efetiva pelas consequências do delito de sua autoria, de forma que
participa ativamente do processo, interagindo com a vítima e a comunidade, momento em que
tem a possibilidade de ficar diante do trauma causado à vítima, oportunizando as desculpas e a
reparação. Fica a todo tempo ciente das consequências dos seus atos e tem suas necessidades
também supridas.

68
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Assim sendo, a partir da comparação entre os sistemas, é possível identificar os


benefícios da aplicação do método restaurativo no modelo penal pátrio, uma vez possível
associá-lo às melhorias de problemas sistêmicos que esse sistema, há tempos enfrenta.

4. A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA


PARA A CRISE DO SISTEMA PENAL

Diante das colocações até aqui, no que se diz respeito às características de cada
modelo, e, considerando as disposições promovidas pelo conselho nacional de justiça que já
existem no país acerca da aplicação das práticas restaurativas, é possível afirmar que sua
atuação se faz necessária.
Cabe salientar que as principais referências para a aplicação do Programa justiça
restaurativa para o Século XXI são de Howard Zehr, do ponto de vista conceitual, e Kay Pranis,
dos pontos de vista conceitual e metodológico, uma vez que os círculos de construção da paz
são empregados para a maioria das situações.
Dessa maneira, a partir da Resolução 225/16 CNJ, houve, no Brasil, uma expansão dos
projetos restaurativos. Contudo, cabe ressaltar que antes da elaboração desse documento,
haviam sido instaurados 03 projetos pilotos no Brasil: um em São Caetano do Sul – SP, entre a
vara de infância e juventude e as escolas, outro no Rio Grande do Sul e o último no Núcleo
Bandeirante, em Brasília.
Desde então, analisando o resultado positivo da implementação, mais Comarcas
começaram a instaurar essas práticas, a fim de amenizar problemas como a morosidade e alta
quantidade de processos judiciais.

4.1 ALGUNS PROGRAMAS DO PODER JUDICIÁRIO COM


BASE NO MAPEAMENTO DE PRÁTICAS RESTAURATIVAS
DO CNJ

Conforme dados do mapeamento dos programas de justiça restaurativa, elaborado pelo


CNJ no ano de 2019, dos 31 tribunais que responderam aos questionários enviados pelo órgão,
somente três responderam não possuir nenhum tipo de iniciativa sobre justiça restaurativa. Ou
seja, 25 Tribunais de Justiça, 96% do total de respondentes, e três Tribunais Regionais Federais,

69
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

60% dos existentes, possuem algum tipo de iniciativa em justiça restaurativa.


Dessa forma, é possível perceber que houve uma grande expansão das práticas por
parte do Judiciário. Nesse sentido, os projetos realizados não possuem uma estrutura única: são
diferentes, dependendo da comarca, da prática e o mais importante, à necessidade daquele local.
De acordo com o Mapeamento feito em 2019 pelo CNJ, o judiciário do Rio Grande do
Sul, possui projetos em diversas áreas, como escolas, presídios, em centrais comunitárias, nos
núcleos do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania e nos juízos da vara da
infância e juventude e execuções penais.
As práticas de justiça restaurativa no Rio Grande do Sul ocorrem desde 2004, sendo
um dos estados pioneiros na implantação do projeto. Teve seu início juntamente à Escola
Superior de Magistratura, contando com o apoio de magistrados daquela localidade. A partir
disso, surgiu a criação de uma Central de Práticas Restaurativas, em Porto Alegre por meio de
uma resolução, que estendeu a prática a toda área de atuação da Infância e Juventude de 1º grau.
No estado de São Paulo, também pioneiro na implementação de práticas restaurativas,
estas são realizadas desde o ano de 2005, através do programa “Promovendo práticas
restaurativas no sistema de justiça brasileiro”, fomentado pela Secretaria de Reforma do
Judiciário do Ministério da Justiça, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD).
Desde então os projetos foram expandidos para outras comarcas, sendo uma das
principais formas de atuação, o tripé sistema escola- poder judiciário - comunidades. O projeto
em São Caetano do Sul, teve notório destaque a partir de sua atuação voltada para as escolas,
como uma parceria entre o judiciário e a secretaria de educação, que consequentemente se
irradiou para a comunidade.
Outro projeto de implantação de práticas restaurativas ocorre nos presídios, e tem sido
colocada como uma execução penal restaurativa, consistindo em uma aplicação de círculo de
paz e pelo método vítima-ofensor.
No Rio Grande do Sul, os círculos de construção da paz são realizados pelo próprio
juiz da execução penal, com o objetivo de evitar conflitos e reincidência. Já os círculos vítima-
ofensor são realizados por uma assistente social lotada no presídio, com apoio do juiz, contudo,
sem predeterminação, haja vista que é aplicado conforme a necessidade, sendo muitas vezes
solicitada pelo próprio ofensor.
Recentemente, em 03 de fevereiro de 2022, o CNJ anunciou que outro presídio, desta
vez em Joinville Santa Catarina, iniciaria a implantação do modelo restaurativo, sendo o
pioneiro no Estado. O projeto tem previsão para ter início no primeiro semestre de 2022 e tem

70
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

como objetivo a construção de uma cultura de não violência e aplicação do diálogo.


Dessa forma, serão aptos a participar, os detentos que desejem restaurar os danos, de
forma que serão atendidas por uma equipe de psicólogos, pedagogos, assistentes sociais e
profissionais do direito. Ao final do processo, voluntariamente, podem requerer um encontro
com a vítima e mostrar em palavras seu arrependimento.
Sobre a instauração do projeto, a diretoria do presídio regional, ressaltou que toda
prática que vise diminuir a tensão do sistema prisional, tem o poder de impactar positivamente
a segurança interna do local. Ademais, a partir do compartilhamento das experiências, busca
que o detento compreenda o verdadeiro significado da pena, e, a partir do perdão, poder
recomeçar. Sendo assim, nas palavras do Juiz da Vara de Execuções penais de Joinville (CNJ,
2022, online):

A Justiça Restaurativa caminha paralelamente ao Poder Judiciário, ao sistema de


Justiça criminal, ao processo. Enquanto a Justiça tradicional é baseada na sanção
retributiva, que visa ao retorno do apenado à sociedade de forma harmônica e
integrada por meio da aplicação da pena, a Justiça Restaurativa tem como objetivo
trazer ao ofensor a sensibilização e responsabilização pelos seus atos, e uma possível
ressignificação e reparação para a vítima. É uma forma de alternativa penal, com o
fundamento da desconstrução da cultura do encarceramento em massa.

Dessa maneira, compreende-se a justiça restaurativa como sendo uma ferramenta de


auxílio não só ao Judiciário, mas também para as relações interpessoais, seja pela comunidade
ou nas relações cotidianas.
Ademais, também auxilia na reinserção daquele que se encontra privado de liberdade,
uma vez que, por meio das práticas restaurativas, poderá reparar de uma forma mais eficaz o
dano, outrora causado.
Assim sendo, ao considerar os benefícios das práticas restaurativas, é possível entendê-
la como uma alternativa penal, que por fim, acaba por desconstruir a política do encarceramento
em massa.
Por sua vez, no Estado de Minas Gerais, em 14 de fevereiro de 2022, o Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, se reuniu para a primeira reunião do Comitê de Justiça
Restaurativa, criado por resolução própria do tribunal. Um dos objetivos do encontro foi a
proposta para ampliar os programas já existentes, inclusive para a criação de um projeto-piloto
no sistema prisional.
Isso deve ao fato dos projetos realizados pelo Tribunal surtirem um efeito positivo: no
ano de 2021, dois foram os projetos que ganharam o prêmio Cultura da Paz: Programa Nós, que
leva a justiça restaurativa às escolas municipais e estaduais da rede pública de ensino de Belo

71
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Horizonte, às unidades de acolhimento institucional e aos centros socioeducativos, e o


programa Conciliação em domicílio, no qual, oficiais de justiça, ao cumprirem mandados
judiciais, poderão informar os envolvidos sobre a possibilidade de autocomposição e certificar
o outro lado sobre eventual proposta de acordo.
A proposta da Justiça Restaurativa no meio da educação ganhou ainda mais força no
começo de 2023, haja vista que o Conselho Nacional de Justiça, anunciou durante a 3ª sessão
Ordinária do Conselho, por meio da presidente do órgão Rosa Weber, que este ano será o ano
da Justiça Restaurativa no âmbito da educação. A medida, respaldada pela Resolução CNJ nº
458/2022, visa difundir os conceitos e abordagens no ambiente escolar considerando que ser a
escola um dos pilares de formação do indivíduo.
Como reflexo da ação, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais também tomou novas
medidas em 2023, a fim de expandir os programas já existentes. Por meio da Portaria Conjunta
1.446/PR/2023 houve a implantação da chamada Rede Multinível, Multissetorial e
Interinstitucional Judiciária de Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Estado de Minas
Gerais, que tem como objetivo permitir a estruturação e a colaboração entre magistrados e
servidores do TJMG na difusão e ampliação da oferta das práticas restaurativas aos
jurisdicionados.
Ela também cria as sub-redes FAMÍLIA JR TJMG, JUVENTUDE JR TJMG,
RECUPERA JR TJMG, PACÍFICA JR TJMG e COLABORA JR TJMG, especializando a
abordagem da Justiça Restaurativa em eixos temáticos que abarcam conflitos relativos a direito
de família, infância e juventude, direito penal e conflitos organizacionais, entre outros temas.

5. ÍNDICES E RESULTADOS BASEADOS NO


MAPEAMENTO DO CNJ EM 2019

O mapeamento realizado pelo CNJ em 2019, buscou elencar os dados relativos à


prática de justiça restaurativa no Brasil, a partir do qual se torna possível analisar informações
como aplicação, eficácia e preparação de pessoal.
Partindo disso, foi possível averiguar que em 93,1% dos casos em que a justiça
restaurativa é aplicada, a responsabilidade de coordenação fica a cargo do Poder Judiciário,
podendo ser compartilhada ou não com outras instituições.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Figura 1. Áreas de aplicação das práticas restaurativas.

Figura 2. Órgãos responsáveis pela coordenação do programa de Justiça Restaurativa.

Dentre os tribunais que adotam as práticas restaurativas, 88,6%, consideram que essas
práticas contribuem para o fortalecimento do trabalho em rede de promoção e garantia de
direitos e 9,1% entendem que não há algum tipo de contribuição. Dentre as iniciativas em que
há fortalecimento da rede proteção, 75% delas ocorrem na temática da criança e do adolescente;
48% na área de violência contra a mulher; e 27% em outras redes de proteção, tais como sistema
penitenciário, justiça criminal, ambiente escolar, dentre outros.
Quanto à metodologia dos procedimentos utilizados nas práticas restaurativas, 93%
dos programas utilizam os círculos de construção de paz, baseados em Kay Pranis. Outras
metodologias bastante difundidas são o processo circular, em 54% dos programas; e os círculos
restaurativos baseados na comunicação não violenta, em 45% dos casos.

73
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Figura 3. Metodologias dos procedimentos restaurativos adotados.

Acerca das instituições beneficiadas com as práticas restaurativas, as que tiveram


maior resultado positivo foram as escolas (61,4%), rede socioassistencial (47,7%),
universidades e faculdades (45,5%), programas socioeducativos (45,5%) e coordenadorias da
Mulher e Serviços de apoio às vítimas de violência Doméstica (45,5%).

Figura 4. Instituições que se beneficiam das práticas de Justiça Restaurativa.

Diante da análise das informações, é possível observar que a justiça restaurativa


beneficia inúmeras instituições. Dentre essas, a que mais se destaca é a escola, seguida dos
serviços de assistência social como CREAS e CRAS.

74
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

No âmbito da justiça tradicional, é possível observar que instituições como a


Coordenadoria de serviços em apoio de mulheres vítimas de violência doméstica, serviços de
atendimento socioeducativos, Ministério Público, Serviços Penitenciários e a OAB, também
são afetadas pelos benefícios das práticas restaurativas, o que serve como parâmetro para a
ampliação desse sistema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do presente trabalho, foram apresentados diversos aspectos que permeiam


não só o conceito de justiça restaurativa e retributiva, mas também a forma como a estrutura
social afeta esses modelos.
Nesse sentido, entender a forma na qual a sociedade é moldada, considerando os
fatores históricos e culturais, permite compreender os motivos pelo qual se adotou no Brasil,
um modelo de justiça punitivista.
Assim, a partir dessa mesma análise, foi possível tratar também os problemas
apresentados por esse sistema: apesar de instituído legalmente, grande parte das vezes, não
consegue cumprir com seu objetivo principal, o que acarreta problemas que passam a ser
observados em toda a sociedade.
Feito um comparativo entre os sistemas e, partindo da análise de que o método é
aplicável e condizente com os princípios e garantias do direito brasileiro, é possível verificar
que as práticas restaurativas são uma forma de modernização do atual sistema, de forma que
não busca substituí-lo ou retirar do estado seu poder de punir.
Dessa forma, é possível concluir que esse sistema se mostra eficaz no embate aos
desafios do sistema retributivo, seja pela forma com que trata as partes, almejando a reparação,
até mesmo pela celeridade e resolução de conflitos sem, necessariamente existir um processo,
o que acaba diminuindo os números de ações no judiciário.
Por conseguinte, sua aplicação nas escolas previnem o dano futuro, orientando e
educando a comunidade, de forma a buscarem uma resolução dos problemas através do diálogo.
Ainda nesse sentido, sua aplicação nos presídios poderá causar impacto no que diz
respeito aos índices de reincidência, ao passo que poderá ser aplicado também em sanções
disciplinares ou causas de diminuição da pena.
Contudo, considerando que é uma aplicação nova, ainda é necessário que haja maior
observação para traçar um resulto, embora sejam perceptíveis que, aplicados os princípios da

75
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

justiça restaurativa, além de alcançar uma resolução de conflito mais eficaz, também haverá
respeito à dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

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DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm: Acesso em 13 de jun.
2023.

BRASIL. Relatório Analítico Propositivo - Pilotando a Justiça Restaurativa: O papel do


poder judiciário. Brasília: CNJ, 2018. 378 p. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2011/02/722e01ef1ce422f00e726fbbee709398.pdf.
Acesso em: 10 fev. 2023.

BRASIL. Resolução nº 225 de maio de 2016. Disponível em http://www.cnj.jus.br/atos-


normativos?documento=2289. Acesso em 10 de jun. de 2023.

CONSELHO Nacional de Justiça. Mapeamento dos Programas de Justiça Restaurativa.


Brasília: CNJ, 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/
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CONSELHO Nacional de Justiça. Judiciário concentrará esforços para ampliar Justiça


Restaurativa nas escolas em 2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/judiciario-
concentrara-esforcos-para-ampliar-justica-restaurativa-nas-escolas-em-2023/ Acesso em: 20
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FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança


Pública: 2021. São Paulo: FBSP, 2021. p.59. Disponível em:
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KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Paulo Quintela.


Lisboa, Portugal: Edições 70, 2007

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: UNIC, 2009 [1948].
Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Iniciativas do TJMG são destaques no


prêmio Cultura da Paz. Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-
tjmg/noticias/iniciativas-do-tjmg-sao-destaques-no-premio-cultura-da-paz-
2021.htm#.Yg5xWujMKHt. Acesso em 15 mar. 2023.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Justiça Restaurativa em expansão no


TJMG. Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/informes/justica-restaurativa-em-
expansao-notjmg.htm#.ZBx2AnbMLIU. Acesso em 20 mar. 2023.

76
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Portaria Conjunta Nº 1.446/PR/2023.


Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal- tjmg/noticias/iniciativas-do-tjmg-sao-
destaques-no-premio-cultura-da-paz- 2021.htm#.Yg5xWujMKHt. Acesso em 20 mar. 2023.

ZEHR, Howard. Justiça restaurativa. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas
Athena, 2012.

77
Capítulo 5

A BUSCA PELO DO SISTEMA


PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIO:
Quais as contribuições da Lei n. 13.964/2019?

Karoline Bassi Huber1


Antônio Leonardo Amorim2

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10535352

INTRODUÇÃO

Diante do perfil democrático atual é de extrema importância a alteração trazida com o


pacote anticrime, preservando as características do sistema acusatório penal brasileiro. O tema
tem extrema relevância pois vem mostrar o interesse em preservar princípios básicos de
garantias individuais e do devido processo legal previstos em nossa Constituição.
Além dos princípios presentes em nossa carta magna existem aqueles advindos de
tratados e convenções de direitos internacionais, equivalentes a emendas constitucionais. O
cenário atual de superlotação dos presídios e chacinas em massa, nos faz refletir sobre a
ineficácia do encarceramento e que é urgente a necessidade de se rever esse modelo de política
criminal de encarceramento da população.
Além disso, há no cenário nacional um sistema judiciário que atende ao clamor da
mídia e da sociedade, apenas prendendo cidadãos sem levar em conta as consequências que isso
pode trazer para o sistema carcerário e para a própria vida do indiciado.

1
Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT) – Campus de Diamantino.
ORCID: https://orcid.org/0009-0009-2875-5.
2
Professor do curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, Câmpus do
Pantanal - CPAN, Cidade de Corumbá/MS, Doutor em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina,
bolsista CAPES (2022/2023), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019),
bolsista CAPES durante o período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal
(2017-2018), pesquisador vinculado ao projeto de pesquisa Cárcere e Fronteira. E-mail:
antonio.amorim@ufms.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1464-0319.

78
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Posto isto, questiona-se: Qual(is) a(s) contribuição(ões) da Lei n. 13.964/2019 no


processo de efetivação do sistema acusatório no sistema de justiça criminal? Para responder à
problemática proposta, o texto foi organizado de modo que será necessário compreender as
bases históricas que deram origem aos sistemas processuais penais no mundo e a influência
deles na política processual criminal brasileira até o advento do Pacote Anticrime, para então,
descrever as contribuições da Lei n. 13.964/2019 no processo de efetivação do sistema
acusatório.

2. HISTÓRICO DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

Na subseção anterior foi possível perceber que a evolução das penas e o surgimento
das prisões estão intimamente relacionados com o advento do processo penal, uma vez que
conforme salienta Aury Lopes Junior (2020a, p. 43) o processo penal “é um caminho necessário
para alcançar-se a pena e, principalmente, um caminho que condiciona o exercício do poder de
penar”, limitado por um arcabouço de regras que compõem o devido processo penal como o
conhecemos hoje.
Antes de aprofundar nesse assunto, é importante lembrar que o crime é algo que foi
muito modificado nos últimos séculos, visto que antigamente era levado muito em conta a
questão da imposição religiosa e da classe social. Essa mudança deu espaço para a análise dos
objetos constitutivos do crime em si, a partir daí todo o aparelho judicial se fez presente além
das penas. Sendo assim, conforme salienta Foucault (1987, p. 26), “um saber, técnicas,
discursos científicos se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir”.
Além disso, houve uma maior preocupação com relação aos direitos humanos e,
consequentemente, a severidade penal começou a ser abrandada. Nesse cenário, Michel
Foucault (1987, p. 20) apresenta o surgimento de uma nova forma de punição:

[...] Momento importante. O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto punitivo,


são substituídos. Novo personagem entra em cena, mascarado. Terminada uma
tragédia, começa a comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem rosto, entidades
impalpáveis. O aparato da justiça punitiva tem que ater-se, agora, a esta nova
realidade, realidade incorpórea.

Para entender como funciona o presente sistema processual penal deve-se,


primeiramente, adentrar em épocas mais antigas e analisar a evolução ocorrida. Aqui, se torna
fundamental expor sobre os modelos de sistemas processuais penais utilizados no mundo ao
longo da história.
79
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Paulo Rangel (2020, p. 40), define que o sistema processual penal é:

[...] o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento


político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas à aplicação do
direito penal a cada caso concreto. O Estado deve tornar efetiva a ordem normativa
penal, assegurando a aplicação de suas regras e de seus preceitos básicos, e esta
aplicação somente poderá ser feita através do processo, que deve se revestir, em
princípio, de duas formas: a inquisitiva e a acusatória.

No mesmo sentido, Aury Lopes Junior (2020a, p. 54) afirma que a natureza do
processo penal variou ao longo do tempo de acordo com a ideologia predominante em cada
época, servindo como um “termômetro dos elementos democráticos ou autoritários” da
Constituição de cada Estado. Em outras palavras, ao longo da evolução histórica da sociedade,
do Estado e do Direito ocorreram várias mudanças na política processual penal. Diante disso,
deve-se ter em mente os três modelos de sistemas processuais penais utilizados até então: o
acusatório, o inquisitivo e o misto, os quais serão estudados, cronologicamente, a seguir.

2.1 SISTEMA ACUSATÓRIO

O sistema processual penal de cada período histórico sofreu influência direta do ideário
e da estrutura estatal vigente em cada época e, conforme explica Lopes Junior (2020b, p. 213),
“os sistemas não desaparecem de um dia para o outro, pois um paradigma não sofre um corte
cirúrgico, uma ruptura total do dia para noite, senão que existem longos períodos de transição”.
Por isso, se faz importante estudar as raízes históricas que deram origem a cada sistema e assim
conseguir compreender as suas características.
Em linhas gerais, o sistema acusatório originou-se no Direito Greco-Romano e
perdurou durante quase toda a Antiguidade e parte da Idade Média. Aury Lopes Junior (2020b,
p. 214) salienta que ao longo desse período a participação direta do povo e a sua atuação como
acusador e julgador se desenvolveu. O referido autor acrescenta que “vigorava o sistema de
ação popular para os delitos graves (qualquer pessoa podia acusar) e acusação privada para os
delitos menos graves, em harmonia com os princípios do direito civil”.
Esse modelo de sistema processual possui características próprias de regimes
democráticos, servindo como uma garantia de proteção dos cidadãos contra abusos estatais
(Rangel, 2020, p.40). Dentre essas particularidades, destaca-se a separação total das funções de
acusar, defender e julgar, as quais ficam sob a responsabilidade de indivíduos distintos. Além
disso, conforme salienta Norberto Avena (2020, p. 8) esse sistema foi denominado como

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

acusatório porque nele somente poderão ser levados a juízo os indivíduos que receberem uma
acusação formal que contenha toda a narração e características do fato imputado, sendo vedada
a atuação de ofício do juiz.
Ademais, esse sistema vigorou até o século XII, quando então passou a ser
gradativamente substituído pelo sistema inquisitório. Tal mudança foi impulsionada,
principalmente, porque o sistema acusatório foi se tornando insuficiente para atender às novas
exigências de repressão dos delitos, além dos acusadores serem constantemente impulsionados
por questões de vingança. Isso fez com que os juízes passassem a invadir cada vez mais as
atribuições dos acusadores e começassem a reunir em um mesmo órgão a responsabilidade de
acusar e julgar (Lopes Júnior, 2020b, p. 216).

2.2 SISTEMA INQUISITÓRIO

Os sistemas processuais penais, como visto anteriormente, se modificaram


paralelamente às mudanças políticas e sociais de cada período histórico. De acordo com Aury
Lopes Júnior (2020a, p. 54):

Cronologicamente, em linhas gerais, o sistema acusatório predominou até meados do


século XII, sendo posteriormente substituído, gradativamente, pelo modelo
inquisitório que prevaleceu com plenitude até o final do século XVIII (em alguns
países, até parte do século XIX), momento em que os movimentos sociais e políticos
levaram a uma nova mudança de rumos.

O Sistema Inquisitório, de modo geral, é aquele em que o poder está centrado nas mãos
de uma única pessoa. Conforme explana Paulo Rangel (2020, p. 41) nesse sistema “não há
separação de funções, pois o juiz inicia a ação, defende o réu e, ao mesmo tempo, julga-o”, ou
seja, o órgão responsável por iniciar a ação e investigar é o mesmo que irá punir o indivíduo.
Além disso, Rangel (2020, p.41) acrescenta que:

O sistema inquisitivo surgiu após o acusatório privado, com sustento na afirmativa de


que não se poderia deixar que a defesa social dependesse da boa vontade dos
particulares, já que eram estes que iniciavam a persecução penal. O cerne de tal
sistema era a reivindicação que o Estado fazia para si do poder de reprimir a prática
dos delitos, não sendo mais admissível que tal repressão fosse encomendada ou
delegada aos particulares.

Esse sistema foi muito utilizado na Idade Média, principalmente a partir do século
XIII, durante os regimes de monarquias absolutistas que, conforme explica Guilherme de Souza

81
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Nucci (2020, p. 26), queriam “combater os abusos cometidos pelos senhores feudais e pela
aristocracia em detrimento de vassalos e pessoas pobres”. Nessa época, aplicava-se o que o
referido autor chama de “tratar desigualmente os desiguais”.
Apesar de surgir com esse viés positivo, o sistema inquisitivo se acirrou durante o
Direito Canônico, período da história em que as leis e os regulamentos eram regidos pela Igreja
Católica e seu Tribunal da Inquisição. Conforme salienta Lopes Junior (2020a, p. 51) “no
transcurso do século XIII foi instituído o Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, para reprimir
a heresia e tudo que fosse contrário ou que pudesse criar dúvidas acerca dos Mandamentos da
Igreja Católica”.
Sobre isso, explica Nucci (2020, p. 26):

[...] o sistema inquisitivo, mesmo servindo a um lado positivo, apresentou várias


falhas e deu ensejo a abusos. Um dos principais custos do referido sistema deu-se,
justamente, no âmbito da inquisição promovida pela Igreja, à cata de hereges. Em
lugar de combater a injustiça social, terminou por promover uma autêntica caça às
bruxas (literalmente), sem a menor chance de defesa.

Desse modo, percebe-se que esse sistema adquiriu características próprias de regimes
totalitários e absolutistas em que houve o monopólio do poder político e a supressão de direitos
e garantias individuais intrínsecos à democracia (Rangel, 2020, p. 40).
Este cenário perdurou até meados do século XVIII, quando a Revolução Francesa, sob
influência dos ideais iluministas, possibilitou mudanças de ordem social e política, abrindo
espaço para a transição para o sistema misto, um modelo mais democrático e que se estende até
hoje (Lopes Júnior, 2020b, p. 227).

2.3 SISTEMA MISTO

O sistema processual misto, estabelecido pelo Código Napoleônico de 1808, foi


gradualmente se desenvolvendo no contexto histórico pós-revoluções Francesa e Industrial,
motivado pelos princípios de valorização do homem e pelos movimentos filosóficos da época.
Esse sistema buscou reunir características dos dois modelos anteriores, estruturando o processo
penal em duas etapas, uma inquisitória e outra acusatória. Nele ocorre a divisão das funções de
acusar, defender e julgar, contudo o juiz pode interferir nas outras funções em algumas situações
específicas (Avena, 2020, p. 10).
Conforme aponta Lopes Junior (2020b, p. 228) “a divisão do processo penal em duas
fases (pré-processual e processual propriamente dita) possibilitaria o predomínio, em geral, da
82
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

forma inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, desenhando assim o


caráter “misto”.
Além disso, foi nesse cenário que surgiu a figura do Ministério Público, o qual
possibilitou que a função de acusação continuasse nas mãos do Estado, no entanto
desempenhada por um órgão distinto do magistrado, garantindo-se, assim, uma certa
imparcialidade do juiz (Lopes Júnior, 2020b, p. 228).
Em linhas gerais, o sistema misto surgiu da necessidade de se desenvolver um modelo
que se afastasse do inquisitório, possibilitando o exercício de direitos e garantias individuais,
mas que sanasse a impunidade que havia no sistema acusatório, uma vez que nem sempre as
vítimas promoviam as acusações ou o faziam motivados por mera vingança (Rangel, 2020, p.
44-46):

Nesse caso, continuava nas mãos do Estado a persecução penal, porém feita na fase
anterior à ação penal e levada a cabo pelo Estado-juiz. As investigações criminais
eram feitas pelo magistrado com sérios comprometimentos de sua imparcialidade,
porém a acusação passava a ser feita, agora, pelo Estado-administração: o Ministério
Público.

Ante o exposto, observa-se que apesar de o sistema processual penal misto não ter
conseguido garantir a total imparcialidade do juiz, uma vez que este continuou atuando na fase
de persecução penal e na fase de julgamento, ele apresentou vários avanços em decorrência da
junção de regras do sistema inquisitório e princípios do sistema acusatório, permitindo a
coexistência no processo penal das garantias individuais com a atuação repressiva do Estado.

3. DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

O sistema processual penal, para chegar ao modelo como é conhecido hoje, vivenciou
um longo processo de evolução, passando por diversas mudanças no decorrer da história. Da
mesma forma como ocorreu a nível mundial, o processo penal brasileiro também sofreu
influência direta das diretrizes impostas pelo cenário político, econômico e social de cada
época.
Conforme explica Eugênio Pacelli (2020, p. 4), no Brasil, as primeiras disposições
processuais apareceram na Constituição Imperial de 1824, no entanto foi somente em 1832 que
surgiu a primeira legislação codificada, o Código de Processo Criminal de Primeira Instância,
ambos sob vigência das Ordenações do Reino de Portugal (séculos XVI a XIX) e,

83
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

consequentemente, ainda sob influência da estrutura judiciária portuguesa e das regras do


Direito Canônico.
O Código de Processo Penal brasileiro, ainda vigente, foi instituído em meados do
século XX, mais precisamente em 1941. Pacelli (2020, p. 4-5) entende que esse código, no seu
modelo originário, possui forte base autoritária, uma vez que foi influenciado pela legislação
processual italiana produzida durante o regime fascista da década de 1930, tendo a presunção
de culpabilidade como princípio fundamental. De acordo com o referido autor:

Na redação primitiva do Código de Processo Penal, até mesmo a sentença absolutória


não era suficiente para se restituir a liberdade do réu, dependendo do grau de apenação
da infração penal (o antigo art. 596, CPP). Do mesmo modo, dependendo da pena
abstratamente cominada ao fato, uma vez recebida a denúncia, era decretada,
automática e obrigatoriamente, a prisão preventiva do acusado, como se realmente do
culpado se tratasse (o antigo art. 312, CPP).

Importante lembrar que o Código de Processo Penal (1941) surgiu durante o cenário
político ditatorial do Estado Novo sob presidência de Getúlio Vargas (“Era Vargas”) e com o
respaldo da Constituição Autocrática de 1937, a qual, dentre outras coisas, reduziu os direitos
fundamentais e desconstitucionalizou o mandado de segurança e a ação popular (Mendes;
Branco, 2018, p. 99). Também é dessa época o Código Penal de 1940, ainda vigente atualmente.
Além disso, mundialmente estava acontecendo a Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
conflito global que envolveu as maiores nações mundiais. Tudo isso culminou para gerar um
contexto de instabilidade e autoritarismo que perdurou até 1945. Sobre isso, Diego Nunes
(2010, p. 186) destaca que:

A chegada do Código de Processo Penal brasileiro, a exemplo da codificação penal,


também é nitidamente marcada pelo hibridismo doutrinário, abarcando concepções
tanto liberais quanto autoritárias. Colocou em seu bojo o princípio da defesa social
como basilar, alicerçando-se na ideia presente dentro da ideologia do Estado Novo da
predominância da coletividade sobre o indivíduo.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e da Era Vargas, a democracia começou a ser
retomada no Brasil, abrindo espaço para a promulgação da Constituição de 1946, a qual, dentre
outras disposições, buscou restabelecer os direitos e garantias individuais, disciplinando, por
exemplo, que os cidadãos só poderiam ser presos em caso de flagrante delito ou por ordem
escrita de autoridade judicial (art. 141, §20). No entanto, esse contexto de abertura democrática
foi freado pelo regime militar e pelas Constituições de 1967 e 1969 que tornaram o sistema
processual penal marcado pelo modelo inquisitório, com a limitação do contraditório e da ampla

84
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

defesa, bem como a permissão da pena de morte e da prática de tortura contra os réus (Mendes;
Branco, 2018, p. 100).
Nesse sentido, Luís Roberto Barroso (2019, p. 373) explica que:

Da Independência até hoje, tivemos oito Cartas constitucionais: 1824, 1891, 1934,
1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, em um melancólico estigma de instabilidade e de falta
de continuidade das instituições. A Constituição de 1988 representa o ponto
culminante dessa trajetória, catalisando o esforço de inúmeras gerações de brasileiros
contra o autoritarismo, a exclusão social e o patrimonialismo, estigmas da formação
nacional.

Diante desse cenário, percebe-se que o sistema processual penal brasileiro surgiu com
forte viés inquisitório, fruto de regimes ditatoriais. No entanto, essa situação começou a mudar
a partir do final da década de 60, em razão das alterações feitas no Código de Processo Penal
(CPP). Dentre essas mudanças, destaca-se a Lei 5.349/67 que trouxe algumas mudanças
relacionadas aos direitos individuais e a garantia de liberdade, mas foi apenas com o advento
da Constituição de 1988 que ocorreram mudanças realmente efetivas (Pacelli, 2020, p. 6):

Enquanto a legislação codificada pautava-se pelo princípio da culpabilidade e da


periculosidade do agente, o texto constitucional instituiu um sistema de amplas
garantias individuais, a começar pela afirmação da situação jurídica de quem ainda
não tiver reconhecida a sua responsabilidade penal por sentença condenatória passada
em julgado: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória” (art. 5º, LVII, CF).

A Constituição Federal de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, surgiu logo


após o fim da ditadura militar em um cenário de redemocratização do Brasil. A Carta Magna
instituiu o Estado Democrático de Direito e se estabeleceu como a guardiã dos direitos e
garantias fundamentais (individuais e coletivos), bem como dos valores democráticos. Nesse
ínterim, nota-se o explícito descompasso entre as normas constitucionais e o Código de
Processo Penal, principalmente porque este foi criado durante um período ditatorial em que os
valores dominantes eram outros.
Em linhas gerais, é possível observar que o sistema processual penal adotado no Brasil,
a partir das mudanças trazidas pela promulgação da Carta Cidadã, passou a apresentar dentre
suas características principais: a presunção de inocência; a isonomia entre as partes; a
imparcialidade do juiz; a publicidade como princípio; passou a entender que o réu é sujeito de
direitos e que não tem o dever de produzir provas contra si mesmo; entendeu, também, que na
presença da dúvida, o réu deve ser absolvido; e que cabe à acusação o ônus da prova.

85
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Além disso, apesar da Carta Magna de 1988 não demonstrar de forma expressa que o
Brasil adota o sistema processual penal acusatório, depreende-se isso do seu art. 129, inciso I,
uma vez que estabelece a acusação como função privativa do Ministério Público, sendo essa
uma das características típicas do modelo acusatório. Sobre isso, Paulo Rangel (2020, p. 44)
explica que:

Hodiernamente, no direito pátrio, vige o sistema acusatório (cf. art. 129, I, da CRFB),
pois a função de acusar foi entregue, privativamente, a um órgão distinto: o Ministério
Público, e, em casos excepcionais, ao particular. Não temos a figura do juiz instrutor,
pois a fase preliminar e informativa que temos antes da propositura da ação penal é a
do inquérito policial e este é presidido pela autoridade policial. Durante o inquérito
policial, como vamos ver mais adiante (cf. item 2.3 infra), o sigilo e a inquisitividade
imperam, porém, uma vez instaurada a ação penal, o processo torna-se público,
contraditório, e são asseguradas aos acusados todas as garantias constitucionais.

Diante desse contexto, em que coexiste uma norma constitucional democrática e uma
legislação processual penal com base inquisitorial, ainda perdura a divergência doutrinária
sobre qual sistema processual penal é utilizado atualmente no Brasil, se inquisitório, acusatório
ou misto.
Um grande avanço nesse cenário foi proporcionado pelo advento da Lei n.º
13.964/2019, denominada de “Pacote Anticrime”, que trouxe modificações significativas ao
Código de Processo Penal e que estabeleceu em seu art. 3º-A que “o processo penal terá
estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da
atuação probatória do órgão de acusação” (Brasil, 2019), tornando o processo penal mais
compatível com a Constituição Federal de 1988.
Antes das alterações trazidas pelo Pacote Anticrime, uma parte da doutrina nacional
entendia que o sistema processual penal brasileiro é misto, uma vez que predomina o modelo
inquisitório na fase pré-processual (inquérito policial - sigiloso, sem contraditório e ampla
defesa) e o modelo acusatório na fase processual (ação penal – público, contraditório, ampla
defesa e demais garantias constitucionais).
Esse, por exemplo, é o entendimento de Guilherme de Souza Nucci (2020, p. 27), que
salienta que na “Constituição Federal de 1988, foram delineados vários princípios processuais
penais, que apontam para um sistema acusatório; entretanto, como mencionado, indicam um
sistema acusatório, mas não o impõem”, além disso, ele acrescenta que mesmo após a reforma
trazida pela Lei n.º 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o processo penal brasileiro ainda não
atingiu um sistema acusatório puro.
Paulo Rangel (2020, p. 46) tem posicionamento semelhante ao afirmar que:

86
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

O Brasil adota um sistema acusatório que, no nosso modo de ver, não é puro em sua
essência, pois o inquérito policial regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o
indiciado como objeto de investigação, integra os autos do processo, e o juiz, muitas
vezes, pergunta, em audiência, se os fatos que constam do inquérito policial são
verdadeiros. Inclusive, ao tomar depoimento de uma testemunha, primeiro lê seu
depoimento prestado, sem o crivo do contraditório, durante a fase do inquérito, para
saber se confirma ou não, e, depois, passa a fazer as perguntas que entende
necessárias. Neste caso, observe o leitor que o procedimento meramente informativo,
inquisitivo e sigiloso dá o pontapé inicial na atividade jurisdicional à procura da
verdade processual. Assim, não podemos dizer, pelo menos assim pensamos, que o
sistema acusatório adotado entre nós é puro. Não é. Há resquícios do sistema
inquisitivo, porém já avançamos muito.

Em contrapartida, Aury Lopes Junior (2020a, p. 64-65), defende que antes do advento
do Pacote Anticrime prevalecia o sistema inquisitório ou “neoinquisitório”, uma vez que a
gestão da prova está nas mãos do juiz durante a fase processual, não concordando ele com parte
da doutrina que entendia que o modelo processual adotado no Brasil era o misto. Lopes Júnior
(2020b, p. 214) reafirma seu posicionamento no livro “Fundamentos do Processo Penal”, em
que argumenta que:

Ora, afirmar que o “sistema é misto” é absolutamente insuficiente, é um reducionismo


ilusório, até porque não existem mais sistemas puros (são tipos históricos), todos são
mistos. A questão é, a partir do reconhecimento de que não existem mais sistemas
puros, identificar o princípio informador de cada sistema [...]

Ademais, Lopes Júnior (2020a, p. 71) salienta que depois das alterações feitas pelo
Pacote Anticrime, trazendo de forma expressa a adoção do sistema acusatório, bem como dando
nova redação a antigos dispositivos e adicionando outros com características do sistema
acusatório, não há mais motivos para se defender a existência de outro modelo. Acrescenta
ainda que para haver uma mudança realmente efetiva à luz do sistema acusatório é fundamental
afastar a vigência de dispositivos com viés inquisitório ainda presentes no Código de Processo
Penal, bem como mudar as práticas judiciárias.

4. O PACOTE ANTICRIME E A BUSCA PELA EFETIVAÇÃO


DO SISTEMA ACUSATÓRIO

A Lei n. 13.964 de 24 de dezembro de 2019, denominada de Pacote Anticrime, trouxe


modificações significativas ao Código de Processo Penal. Uma inovação importante foi em
relação ao disposto no art. 3º-A que define que o processo penal terá uma estrutura acusatória,

87
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

sendo vedadas as iniciativas do juiz na fase de investigação. Esse dispositivo além de definir,
literalmente, que o sistema processual penal brasileiro é o acusatório (não restando mais dúvidas
quando ao modelo de sistema processual penal adotado no Brasil), também proibiu que o juiz
invada as funções de outros atores durante a fase de investigação.
Complementando, o art. 311, do Código de Processo Penal, como visto anteriormente,
também restringe a atuação do juiz de maneira que ele não invada a função específica das partes.
Em ambos os dispositivos, vemos o emprego na íntegra de características do sistema acusatório.

Esse é um risco sempre presente no modelo brasileiro, que carrega uma tradição
inquisitória fortíssima (e com ela uma cultura inquisitória ainda mais resistente) pois
somente com a Lei n. 13.964/2019 e a inserção do art. 3º-A é que nosso CPP
consagrou expressamente a adoção do sistema acusatório e, portanto, o afastamento
do agir de ofício do juiz na busca de provas, decretação de prisão, etc. É por conta
disso que seguimos sublinhando a importância da correta compreensão dos sistemas
processuais e, por conseguinte, do lugar do juiz no processo penal. (Lopes Júnior,
2020a, p. 90)

Então, se agora o Código de Processo Penal praticamente inaugura seu texto dizendo
que o sistema processual penal no Brasil é o acusatório e que é vedada a iniciativa e a
interferência do juiz na prova, muitas outras mudanças poderão ocorrer em decorrência disso.
Para compreender melhor esse cenário, é preciso lembrar das características dos
sistemas inquisitório e acusatório. O inquérito (fase pré-processual) tem a característica de ser
inquisitório, pois se parte do conceito de “verdade real”, que é tentar provar, conjecturar, o que
realmente aconteceu, tendo como base a presunção de culpabilidade. O problema do sistema
inquisitório é que se partia de uma verdade real em que o juiz (que era acusador, interrogador,
julgador) vislumbrava o fato, chegava a uma conclusão sobre aquele fato e com base na própria
conclusão, fazia todo o procedimento. O procedimento era para provar um fato que já estava na
cabeça daquele acusador e não para se verificar exatamente o que aconteceu. Por isso que na
prática a verdade real não existe, o que existe é a verdade processual.
No atual sistema processual penal brasileiro o inquérito tem características
inquisitórias porque é um procedimento sigiloso, em que uma só pessoa tem o poder naquele
momento de investigar e formular indícios, e indícios, em regra, não são provas. Por isso alguns
autores defendem (Lopes Júnior, 2020b), inclusive, que o inquérito não deveria ir para o
processo, o certo seria o Ministério Público separar as partes investigativas que ele achasse
importante e as levasse para o processo.
Voltando para o sistema acusatório, quando o Código de Processo Penal fala que essa
é a estrutura adotada no Brasil a partir das mudanças trazidas pelo Pacote Anticrime, então caso

88
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

algum dispositivo posterior a Lei n. 13.964/2019 esteja contrário à essa lógica, obviamente,
deveria ocorrer a revogação tácita desses dispositivos (Lopes Júnior, 2020b, p. 118):

Em que pese entendermos que o art. 156 do CPP (e todos aqueles que permitem a
atuação de ofício do juiz na busca de provas, decretação de ofício de prisões cautelares
etc.) não foi recepcionado pela Constituição e agora está tacitamente revogado pelo
art. 3o-A do CPP, por se tratar de uma mudança recente e que será vítima de
movimentos contrarreformistas (ou do movimento de sabotagem inquisitória, como
denomina Alexandre Morais da Rosa), vamos insistir em demonstrar a necessidade
da revogação e também da mudança rumo à cultura acusatória constitucional.

Outra situação é a necessidade de haver uma clara divisão de papeis (quem é o


acusador e quem é o julgador), ou seja, se o acusador não quer que seja feito alguma coisa, o
julgador não pode tomar a frente desse acusador porque ele acha que é necessário e agir de
ofício. O juiz precisa se colocar na situação de alheio ao processo. A iniciativa probatória
pertence às partes, não pertence ao magistrado.

[...] tudo isso cai por terra quando se atribuem poderes instrutórios (ou investigatórios)
ao juiz, pois a gestão ou iniciativa probatória é característica essencial do princípio
inquisitivo, que leva, por consequência, a fundar um sistema inquisitório. A
gestão/iniciativa probatória nas mãos do juiz conduz à figura do juiz-ator (e não
espectador), núcleo do sistema inquisitório. Logo, destrói-se a estrutura dialética do
processo penal, o contraditório, a igualdade de tratamento e oportunidades e, por
derradeiro, a imparcialidade – o princípio supremo do processo. (Lopes Júnior, 2020a,
p. 90)

No sistema atual também não há mais a figura de testemunha do juízo, ou seja, as


partes devem chamar todos que lhes interessem ou produzam todas as provas que lhes
interessem ou essas provas não irão para os autos do processo. Como dito anteriormente,
diferente do sistema inquisitório, não existe verdade real, mas sim a verdade processual, ou
seja, cabe às partes a iniciativa probatória. Desse modo, o juiz passa a ser um terceiro imparcial,
devendo ficar longe da produção das provas.
Outra novidade trazida pelo Pacote Anticrime é o disposto no §2º, do art. 313, do
Código de Processo Penal que diz:

§2° Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de


antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação
criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.964,
de 2019)

A partir do Pacote Anticrime não se admite mais o cumprimento da pena provisória


(execução provisória da pena), ou seja, se o sujeito foi condenado em segunda instância, mas

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

ainda não transitou em julgado, não se pode mais antecipar o cumprimento da pena. Além disso,
não será admitida a decretação da prisão preventiva como decorrência imediata de investigação
criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia. Esse é o caso, por exemplo, do
delegado, na investigação criminal, quando ele instaura o inquérito, ou quando o Promotor de
Justiça denuncia, ou quando o juiz recebe a denúncia, pedirem a prisão preventiva só pelo fato
do sujeito supostamente ter praticado o crime. No entanto, o fato da prática do crime não
autoriza a prisão preventiva, é necessário que estejam presentes uma das hipóteses previstas
nos arts. 312 e 313 do Código de Processo Penal.
Resumindo, a prisão preventiva não pode ser decretada de forma genérica, observe o
que diz o art. 315, sobre isso:

Art. 315. A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre
motivada e fundamentada. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
§ 1º Na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar,
o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos
que justifiquem a aplicação da medida adotada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
(Vigência)
§ 2º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória,
sentença ou acórdão, que: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
I - limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar
sua relação com a causa ou a questão decidida; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
(Vigência)
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de
sua incidência no caso; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; (Incluído
pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese,
infirmar a conclusão adotada pelo julgador; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
(Vigência)
V - limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus
fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta
àqueles fundamentos; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado
pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a
superação do entendimento. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).

A palavra “fundamentada” no caput do art. 315 foi adicionada pelo Pacote Anticrime,
sob pena de nulidade caso a decisão não seja fundamentada. A Constituição Federal fala que
toda decisão judicial deve ser motivada e fundamentada sob pena de nulidade, o que tornaria a
prisão ilegal (caberia nesse caso a impetração de Habeas Corpus). Desse dispositivo também se
infere que o juiz não pode fundamentar com base na gravidade abstrata do crime ou no histórico
do réu, mas sim na conduta específica praticada pelo agente. Ademais, é imprescindível que o
juiz, além de fundamentar sua decisão, enfrente todos os argumentos apresentados pelas partes

90
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

e explique qual a relação do dispositivo normativo, da súmula ou do julgado invocado com o


caso concreto que está sob análise.
Por fim, o Pacote Anticrime parece exigir do juiz uma postura mais personalizada,
impedindo que ele fique analisando o fato de longe, de forma genérica, sem verificar as
peculiaridades do caso concreto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o exposto no decorrer deste trabalho, depreende-se que embora a


Constituição Federal de 1988 tenha constitucionalizado o processo penal brasileiro e
estabelecido de maneira indireta que o sistema processual adotado no Brasil é o acusatório, foi
somente a partir de 2019, com o advento do Pacote Anticrime, que foi possível vislumbrar
mudanças mais significativas que afastaram o Código de Processo Penal de sua base fortemente
inquisitorial em que foi moldado.
No entanto, é importante lembrar que as mudanças não acontecem da noite para o dia
e que ainda há muitas adequações a serem implementadas. Ao estabelecer taxativamente que o
sistema processual penal brasileiro é o acusatório, o Pacote Anticrime dá a entender que é
necessário interpretar os demais dispositivos a partir das características desse modelo
processual.
De maneira acertada, outra mudança feita pelo Pacote Anticrime que condiz com o
sistema acusatório foi a proibição da decretação da prisão preventiva sem que o juiz tenha sido
provocado, ou seja, não é mais possível que o juiz a decrete de ofício. Entretanto, os requisitos
autorizadores da prisão preventiva não foram alterados, continuando vagos e genéricos, dando
margem à discricionariedade do magistrado e à violação do princípio da presunção de
inocência.

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91
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

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SANGUINÉ, Odone. Prisão cautelar, medidas alternativas e direitos fundamentais. Rio


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92
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

STF. Habeas Corpus 188.888 MG 0098645-73.2020.1.00.0000, Relator: Ministro Celso De


Mello. DJ: 06/10/2020. JusBrasil, 2020. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br. Acesso
em: 30 mar. 2023.

STJ. Habeas Corpus 590039 GO 2020/0146013-9, Relator: Ministro Ribeiro Dantas. DJ


25/06/2020. JusBrasil, 2020. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br. Acesso em: 30 de
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TÁVORA. Nestor; ALENCAR. Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal.


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TUCCI. Rogério Lauria. Teoria do Direito Processual Penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.

93
Capítulo 6

QUE CIDADANIA AS ESTRUTURAS DE


DOMINAÇÃO PERMITEM NO SUL
GLOBAL?
Um estudo sobre o Brasil Império e Contemporâneo

Brendhon Andrade Oliveira1


Francisco Quintanilha Véras Neto2

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10535388

INTRODUÇÃO

O presente trabalho3 centra-se no tema da construção dos direitos e cidadania de


grupos vulneráveis, sobretudo, considerando as estruturas de dominação e exploração de classe,
sexualidade, gênero e raça-etnia, no cenário nacional. Objetiva-se apresentar um paralelo entre
a formação do Brasil Império – uma vez que, considerando a Independência, é nesse período

1
Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT – Campus Diamantino). Mestre em Direito
pela Universidade Federal de Mato Grosso (PPGD/UFMT). Graduado em Direito pela Universidade Federal do
Tocantins (UFT). E-mail: andrade.brendhon@unemat.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8204-651X.
2
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (2004), Pós-Doutor em Direito
pela UFSC (2014). Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina nas disciplinas de Filosofia do
Direito e Teoria do Direito II. Professor permanente no programa de Mestrado e Doutorado em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina, Líder do Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para uma
Sociedade Sustentável (CNPQ). E-mail: quintaveras@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1620-6017.
3
Este texto apresenta resultados parciais da dissertação de mestrado intitulada “Os direitos sexuais nas ruínas do
neoliberalismo e neoconservadorismo: um panorama crítico acerca da cidadania LGBTI na democracia brasileira
(1986-2020)”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMT, aprovada e defendida em
2021. As discussões traçadas no trabalho se articulam ao Projeto de Pesquisa “Liberdade, Democracia e
Cidadania”, uma vezque os objetivos se propõem a analisar as concepções e manifestações sobre liberdade,
democracia e cidadania nos poderes constituídos na realidade brasileira, além de identificar historicamente as
expressões teórico-políticas conservadoras e suas apropriações das categorias liberdade, democracia e cidadania
– tendo o trabalho amplo diálogo com os objetivos almejados na pesquisa coordenada pelo Prof. Dr. Josiley
Carrijo Rafael.

94
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

que surgem as primeiras experiências de Estado e Direito notadamente brasileiras– e o contexto


contemporâneo, tomando como marco a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Disso, parte-se da seguinte pergunta: quais relações e paralelos são possíveis de
estabelecer entre a constituição da cidadania e direitos para grupos vulneráveis do Brasil
Império e o Brasil contemporâneo? A origem de um país inaugurado como colônia de
exploração, e que no século XIX se constitui como democracia censitária a liberal democracia
que também caracterizava a luta pela cidadania no império britânico já sob o peso da ascensão
da classe operária sindicalizada (Carvalho, 2013). No nosso contexto instituições como a
escravidão suprimida formalmente pelo assalariamento propiciado pelo desenvolvimento do
capitalismo industrial inglês se tornam parte da estrutura e da mentalidade escravagista. Nos
marcos deste novo ciclo hegemônico do capital, o domínio de oligarquias do colonialismo
interno sucessoras da metrópole portuguesa; se transformam nas classes dominantes subalternas
que são albergadas sob a dependência da pax britânica que já se impõe com a vinda da família
real ao Brasil e a abertura dos portos aos ingleses, como consequência do bloqueio continental
napoleônico. A história brasileira é a da segregação de índios, negros e pardos são parte do
tecido social de um país que adotou teorias eugenistas de embranquecimento no século XIX
com a utilização das teorias de Arthur Gobineau que se reproduzia inclusive no ambiente
intelectual dos recém inaugurados cursos jurídicos do Brasil expressos no discurso racista de
Silvio Romero e de outros dentro da tradição da ideologias edificadas nas narrativas do racismo
ocidental com a construção de estereótipos e estigmatizações pela ideologias raciais (Moritiz,
1993; Munanga, 1984). Esse discurso racializado mantinha intencionalmente a cidadania como
aspiração sonegada para esses grupos pelo seu fenóptico, além dos pobres em um contexto geral
de forte desigualdade social.
Assim, em primeiro momento aborda-se a formação do direito brasileiro no período
Imperial em sua relação com os fatores biopolíticos1 que alocava os diversos sujeitos, a partir
de suas marcas da diferença, em seus devidos lócus sociais. Em sequência, volta-se à análise de
que, embora existam diversos mecanismos jurídicos protetivos, como as estruturas de
dominação e exploração ainda se colocam como óbices à efetividade da cidadania e acesso aos
direitos da população pobre, negra, de mulheres e LGBTI.2 No ambiente do patriarcalismo
colonial sob a batuta de um catolicismo conservador, na verdade, nem se podia cogitar a
consideração destes direitos, salvo sob o viés anacrônico de direitos para esses segmentos

1
Miskolci (2012, p. 3) aponta que “O termo biopolítica se refere à emergência e expansãohistórica de um
conjunto de saberes e práticas que atuam sobre a vida dos corpos e populações”.
2
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos.

95
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

populacionais racializados, para mulheres, ainda mais para as negras sempre bestializadas, e
menos ainda para pessoas hoje designadas como LGBTQI+(FRY), o crime de sodomia era
previsto na legislação Filipina sob a égide da contra-reforma. Embora a perseguição da
homosexualidade também fosse efetivada por protestantes fanáticos e depois pelo
pseucientificismo da psquiatria positivista denunciada por Focault com seu discurso acerca dos
anormais dentro de instituições de sequestro de tempo (Foucault, 2002; Foucault, 2003). A
criminalização da homosexualidade se mantém intacta até Stonewall nos anos 70 do século XX,
casos como os de Alain Touring e tantos outros demonstram a demora das aspirações do
reconhecimento dos direitos da comunidade LGBTQI+ ser minimamente considerada. Mesmo
no século XX, a internações psiquiátricas de gays e lésbicas ainda faziam parte da patologização
dos comportamentos dentro de uma concepção de heteronormatividade hegemônica, a
criminalização também ocorria em países socialistas, e em vários países capitalistas ocidentais,
homossexuais, mulheres e indígenas ingressam no cenário de reconhecimento apenas nos anos
70 do século XX (Okita, 2007).
Muito embora o estudo faz uso de dados estatísticos e numéricos, “o objeto das
Ciências Sociais [é] essencialmente qualitativo”. A pesquisa adota a pesquisa qualitativa por
compreender que “ela trabalha com o universo de significados, motivações, aspirações, crenças,
valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e
dos fenômenos [...] (Minayo, 1994, p. 22).
Enquanto procedimentos técnicos utiliza-se da pesquisa bibliográfica e pesquisa
documental. A primeira “abrange toda a bibliografia já tornada pública em relação ao tema de
estudo” (Marconi; Lakatos, 2017, p. 123), como artigos e livros. Utiliza-se de autores/as como
Wendy Brown, Alysson Mascaro, Antônio Carlos Wolkmer, Bruna Irineu, Silvio de Almeida,
Ivanete Boschetti e Judith Butler, que contribuem teoricamente no tema proposto.
Empregou-se a pesquisa documental, que toma como fonte de coleta de dados os
documentos, tendo em vista “a importância dessa estratégia como alternativa de investigação
dadas as contribuições que uma análise crítica e aprofundada de determinados documentos pode
aportar” (Prates; Prates, 2009, p. 120). Entre os documentos que foram utilizados, destaca-se a
Constituição Federal de 1824 e de 1988, o Código Penal de 1890, o Projeto de Lei 2.893/2019
e diversos outros que serão abordados no decorrer do texto.

96
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

2. O LIBERALISMO JURÍDICO INCORPORADO À


FORMAÇÃO DO DIREITO NO SUL GLOBAL

A formação do pensamento jurídico brasileiro remonta ao Período Imperial, que


compreende a Independência do Brasil em 1822 até a Proclamação da República em 1889,
considerando que anteriormente se vivia sob o prisma do estrito colonialismo português.
Naquele momento, a invasão napoleônica sobre Portugal, em 1808, consequentemente fez com
que a família real fugisse para o Brasil, levando à instalação da Capital do Império na então
Colônia de exploração que, após a volta de Dom João à Europa, Dom Pedro I declararia, às
margens do Ipiranga, a Independência. Tal fato histórico é revelador de que, embora pareça um
movimento de ruptura, o novo Estado nascia dos interesses da elite imperial e com a exclusão
do povo (Wolkmer, 2019).
Devido ao histórico colonial, não havia uma identidade nacional à época, o que levou
o novo Estado de regime monárquico reunir esforços na criação de uma imagem de nação e
povo que justificasse sua independência através de uma unidade política e cultural (Miskolci,
2012). Miskolci (2012), apoiado em Eric Hobsbawn, aponta que na Era dos Impérios, o
nacionalismo era uma preocupação das elites políticas, econômicas e intelectuais. Na primeira
metade do século se acionou a imagem idealizada do indígena como símbolo de brasilidade,
ignorando, todavia, os massacres coloniais e as condições precárias e escravagistas que viviam
a população formada por negros, mestiços e os próprios indígenas.
As contradições são evidentes nesse período e produzem resultados até a
contemporaneidade. Naquele momento embora precisasse de elementos sociais e culturais que
justificassem uma nova nação, as massas populares sempre foram as últimas capturadas e
incorporadas pela “consciência nacional” – pois se orientava para a experiência europeia como
modelo civilizatório (Miskolci, 2012). Portanto, o povo europeu (leia-se brancos), seu modelo
econômico, de direito, de cultura, de produção de conhecimento etc., serviram de base para
formação do novo projeto nacional.
Nesse sentido, Miskolci (2012, p. 2) aponta que a partir da segunda metade do século
XIX, “o desejo da nação era um desejo de modernidade compreendido como a necessidade de
reformar a ordem social por meio de uma intervenção orientada estrategicamente”. Isso se
constituiu mediante de uma avaliação negativa do povo e do passado, por decisões políticas
como a abolição da escravatura sem políticas indenizatórias e por adoção de políticas de
imigração europeia como política de embranquecimento e de higienismo da população. Aponta

97
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

o autor que, embora a concepção política de nação apontasse para o futuro, os pés estavam
fincados na manutenção da ordem.
O autor buscou analisar a formação de um novo imaginário social entre 1870-1900,
que “se consolidou por meio de uma mudança política e cultural que reinscreveu a ordem social
anterior dentro da nova, pautada por valores sintetizados no modo positivista de ordem e
progresso” (Miskolci, 2012, p. 10). O desejo de ordem que “se cristalizou neste período primava
pelo autoritarismo, por um modernismo de ideais associado a um forte conservadorismo
político, um desejo de mudança sem alterar hierarquias e privilégio”. Já o progresso:

[...] é um ideal de civilização futura a ser alcançada por meio da evolução humana.
Seu culto por nossa elite modernizante do XIX mostra – ao mesmo tempo – a
avaliação negativa sobre seu próprio povo e as esperanças nutridas no futuro,
vislumbrando um olhar dirigido à Europa [...] (Miskolci, 2012, p. 1).

Nesse cenário de continuidade colonial, observando na Europa a ascensão da burguesia


e ideologia liberal, que segundo Wolkmer (2019, p. 249) é uma “concepção de mundo,
impregnada de princípios, ideias e interesses, de cunho individualistas, “traduzíveis em regras
e instituições” e vinculado “à condução e à regulamentação da vida pessoal em sociedade”, o
liberalismo se constituiu como doutrina que subsidiaria os interesses do novo projeto de nação.
A concepção de soberania jurídica se edifica com o nacionalismo jurídico do século XIX que
imprime a supressão de direitos declarados pelo iluminismo na revolução francesa (Hunt, 2009)
ainda que eurocentrados para homens brancos, burgueses e dotados de patrimônio e de razão
pela tradição patriarcal até que erupções de partidos de massa da classe trabalhadora
modifiquem esse estado de coisas.
Em relação ao liberalismo brasileiro, Wolkmer (2019, p. 250) aponta que “desde os
primórdios de sua adaptação e incorporação, tiveram de conviver com uma estrutura político-
administrativa patrimonialista e conservadora, e com uma dominação econômica escravista das
elites agrárias”. Nesse sentido, “o liberalismo brasileiro [foi] canalizado e adequado para servir
de suporte aos interesses das oligarquias, dos grandes proprietários de terra e do clientelismo
vinculado ao monarquismo imperial” (Wolkmer, 2019, p. 251). Se no contexto europeu o
liberalismo nascia contra o absolutismo da monarquia e tornou-se conservador à medida que a
classe trabalhadora ameaçava sua hegemonia política-ideológica:

Já no Brasil, o liberalismo expressaria a “necessidade de reordenação do poder


nacional e dominação das elites agrárias”, processo esse marcado pela ambiguidade
da junção de “formas liberais sobre estruturas de conteúdo oligárquico”, ou seja, a
discrepante dicotomia que iria perdurar ao longo de toda a tradição republicana: a

98
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

retórica liberal sob a dominação oligárquica, o conteúdo conservador sob a aparência


de formas democráticas. Exemplo disso é a paradoxal conciliação “liberalismo-
escravidão” (Wolkmer, 2019, p. 251).

Naquela época, o Império necessitava de uma codificação jurídica, e foi assim que
surgiram os primeiros cursos jurídicos do país (em São Paulo e Pernambuco), com fins a
responder aos interesses burocráticos do Estado. As nascentes Faculdades de Direito surgiram
para sistematizar e irradiar o liberalismo enquanto ideologia política-jurídica e criação de
quadro administrativo-profissional, uma elite burocrática.
Tal movimento é responsável por formar a base do pensamento jurídico nacional, ao
qual Wolkmer (2019, p. 278) nomeia de “bacharelismo liberal”, o qual é marcado por uma
“uma tradição advocatícia desvinculada de atitudes mais comprometidas com a vida cotidiana
e com uma sociedade em constante transformação”. Isso porque “A postura técnica e casuística
fecha-se ante o dinamismo dos fatos e resiste a um direcionamento criativo, não conseguindo
mais responder a novas e emergentes necessidades” (Wolkmer, 2019, p. 278). A partir dessa
reflexão, conclui o autor que:

[...] a tradição das ideias liberais no Brasil não só conviveu, de modo anômalo, com a
herança patrimonialista e com a escravidão, como ainda favoreceu a evolução retórica
de singularidade de um “liberalismo conservador, elitista, antidemocrático e
antipopular, matizado por práticas autoritárias, formalistas, ornamentais e ilusórias.
(Wolkmer, 2019, p. 254).

Autores de linha socialdemocrata e/ou liberais tendem a apontar que na América


Latina faltaram os pressupostos para implementação do liberalismo em seus termos originários,
como é o caso de Marcelo Neves (2018) em sua análise sobre a constitucionalização na
modernidade periférica. Elenca o autor diversas incompatibilidades entre a concepção liberal
da época e a Constituição de 1824 (Brasil, 1824), como o voto censitário para as oligarquias, a
liberdade dos ingênuos3 e a manutenção da escravidão.
Não é preciso percorrer um longo caminho na historicização do Brasil para lembrar
que além da Independência, a Proclamação da República também não contou com apoio das
massas populares; o período republicano foi conturbado por golpes de Estado; a Era Vargas é
marcada pelo autoritarismo populista; a ditadura militar foi um longo e intenso período de
políticas de extermínio; bem como os fenômenos recentes da ascensão antidemocrática pós-
Constituição de 1988, com o golpe de 2016 e governos de Temer e Bolsonaro. Em contexto de
Sul Global, especificamente na América Latina, o liberalismo sempre conviveu e sempre irá

3
Em referências àqueles cidadãos que nasceram livres.

99
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

conviver com estruturas de dominação, pois, a pergunta básica que deve ser feita é: liberalismo
para quem? A tradição liberal do Estado Mínino e das liberdades negativas visa a proteção de
um pequeno núcleo de cidadãos alçados pela renda e pela cor ao privilégio de classe e da
branquitute como imaginário do embranquecimento gerado pelo racismo estrutural, ou como
ideário fabricado no século XX dentro do mito da democracia racial construído dentro do
sociologismo antropológico de Gilberto Freyre (Carvalho, 2013).
Desde seu implemento na construção do Estado liberal na era Imperial, os princípios,
filosofias e ideias do liberalismo sempre foram aplicadas às camadas da sociedade que alocam
as elites: Liberdade para as elites! Aos negros, às mulheres, à população dissidente sexual e de
gênero, aos indígenas, aos despossuídos e aos outros: a escravidão e a legislação penal. Tanto
é verdade que, o Código Penal Imperial servia para punir as camadas populares, enquanto o
domínio da cidadania constitucional era direcionado às elites da época, como se retira das
leituras de Wolkmer (2019), Neves (2018) e dos textos normativos da época.
O Código Penal de 1890 (Brasil, 1890) previa a criminalização de mendigos e ébrios
no capítulo XII, bem como da vadiagem e capoeiras no capítulo XIII. Destaque para o crime de
vadiagem, no art. 399 “Deixar de exercitar profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe
a vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que habite, prover a
subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral ou
bons costumes” (Brasil, 1880). Já a Constituição Política do Império do Brazil de 1924, em seu
título 2 – Dos Cidadãos Brasileiros, previa em seu inciso I que são cidadãos “Os que no Brazil
tiverem nascido, quer sejam ingênuos, ou libertos [...]” (Brasil, 1924). No art. 179 desta Carta
Magna estavam previstos os direitos políticos e garantias individuais destinadas aos cidadãos,
local onde se visualizava espectros de exercício de cidadania e direitos.
Outro elemento importante que essa construção histórica do saber jurídico nacional
coloca é que os elementos conservadores e autoritários sempre fizeram parte do receituário do
projeto nacional. Conservadorismo para manutenção da ordem social, autoritarismo como
recurso de sanção e poder (Wolkmer, 2019). Mascaro (2014, p. 90) explica que em

Economias que se posicionaram internacionalmente como colonialistas, imperialistas


ou exploradoras de outras sociedades puderam ter margens para o incremento de suas
formas políticas e de participação democrática. Por outro lado, economias coloniais,
dependentes ou exploradas externamente tiveram grande dificuldade em assentar
bases de liberdade política aos seus próprios grupos e classes explorados
internamente.

100
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

O autor deste trabalho, entende, em primeiro lugar, que o direito, como se conhece
hoje, é fruto do desenvolvimento do capitalismo – isso não quer dizer que a justiça e regulações
sociais por meio de normas nasça na modernidade. Em segundo, compreende o direito como
relação social, a qual “as relações que se formam a partir da estrutura social e econômica das
sociedades contemporâneas é que determinam a formação das normas jurídicas” (Almeida,
2020, p. 139).
Soma-se a esse entendimento a compreensão de que o direito é parte das relações de
poder, inspirada em Michel Foucault, tendo em vista que “A concepção do direito enquanto
manifestação do poder admite que a criação e aplicação das normas não seriam possíveis sem
uma decisão, sem um ato de poder antecedente” (Almeida, 2020, p. 134). Para essa concepção,
o direito seria um dos domínios de poder e instrumento de dominação social.
Em ambas as perspectivas, seja como poder (Foucault), seja como relação social
(Mascaro), significa que o direito é resultado de construções sociais e reflete as relações de
poder e relações sociais daquele momento histórico, numa posição expressamente contrária à
ideologia liberal de pureza do direito, ou de separação do direito e da sociedade, ou como se o
direito fosse algo vivo per si, anterior às relações humanas e não resultado das relações sociais.
As abordagens positivistas dentro de uma miragem de neutralidade cientificista positivista, ou
de um direito organicista importado por formas jurídicas derivadas do fascismo italiano ou o
direito como encarnação de um ideal caricato de justiça dentro de uma visão do bacharelismo
caracterizando a ambiguidade de uma visão ornamental do fenômeno jurídico; seja pelo
cientificismo ou pelo ecletismo liberal afastando da definição do direito o seu caráter classista
derivadas da forma mercantil, sempre brotando da necessidade de impor a força diante de
desigualdades sociais produzida pela fratura escravista colonial, pelo mercado de trabalho
excludente do capitalista mitigada por alguns setores que conseguem a conquista de direitos
sociais ou de afirmação de conquistas dentro das dinâmica da intersecionalidade envolvendo
classe, raça, gênero fornecendo visibilidade para os corpos invisibilizados pela sexualidade,
raça ou direitos ecológicos com a perspectiva contemporânea da natureza como sujeito de
direitos dentro do biocentrismo da Pashamama (Zaffaroni, 2017) advindo sempre da luta de
movimentos sociais, dos povos originários, do movimento negro, LGBTQI+, dos povos
originários, de quilombolas, de trabalhadores, do MST.
A busca de agroecologia, da segurança alimentar, de direitos de crianças e
adolescentes, a conquista da liberdade sexual, intelectual dependem de lutas conjunturais
alicerçadas nestes sujeitos coletivos de direito constituidores de direito e de uma perspectiva de
alteridade dentro de uma comunidade de vítimas invisibilizada pela totalidade de uma

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

exterioridade ocultadora de populações dominadas pelos processos de invasão, daí a


importância do método analético e da transmodernidade baseada em uma ética material da
alteridade (Dussel, 1995) como parte desta crítica do eurocentrismo imposto pela expansão
capitalista deste o mercantilismo.
Essa redução do direito às normas jurídicas se dá o nome de positivismo jurídico.
Mascaro (2019, p. 46) alerta que “O positivismo jurídico é o método por excelência da redução
do problema jurídico aos limites do normativismo”. Essa concepção é a mais comum e a
difundida tanto nos cursos de direito, como socialmente falando, uma vez que direito e lei são
facilmente confundidos, até mais que direito e justiça representada pela concepção
jusnaturalista4. Entretanto, como assertivamente aponta Lyra Filho (1982, p. 3):

A identificação entre Direito e lei pertence, aliás, ao repertório ideológico do Estado,


pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencer-nos de que cessaram as
contradições, que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é
imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além ou acima das leis.

Para Lyra Filho (1982, p. 3), “a lei emana do Estado e permanece, em última análise,
ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade
politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico”.
Essa posição juspositivista-liberal que orientou a formação do pensamento jurídico nacional
deixou seus resultados, expressados nos termos de Mascaro (2019, p. 12):

[...] o jurista tecnicista, que em geral quer esconder a relação do direito com o todo
[...] identifica o direito apenas com a norma jurídica. Pinça um fenômeno isolado do
direito e quer fazer dele a razão de ser da explicação jurídica, sem relacionar a norma
com os demais fenômenos. Estes são os juristas limitadores, que procedem a um
reducionismo na explicação do direito, escondendo os liames do direito com a
sociedade para não explicitarem os seus reais vínculos.

Atualmente, esse arcabouço teórico juspositivista-liberal ainda é utilizado como


argumento para manutenção da ordem conservadora e neoliberal5. No caso dos direitos LGBTI,

4
O jusnaturalismo entende que o direito está incluído numa ideia de justiça e que para a validade das normas
estatais elas devem estar em conformidade com o direito natural. Falha essa concepçãoem permitir que sob seu
domínio se justifique a exploração de pessoas, como o foi à época da escravidão e reiterar a ideia de justificações
metafísicas para o direito, das ciências naturais e expressões religiosas, que, historicamente, tem fundamentado
opressões sobre mulheres, LGBTI e populações negra (Almeida, 2020).
5
Utiliza-se o termo neoliberalismo inspirado em Brown (2019) que mescla a corrente foucaltiana e neomarxista.
Em termos foucaultianos, Brown (2019, p. 32) aponta que este “revela como governos, sujeitos e subjetividades
são transformadas pela remodelação neoliberal darazão neoliberal, considera o neoliberalismo como revelador
de como o capitalismo [...] é sempre organizado pelas formas de racionalidade política”. Nos termos
neomarxistas, se “concebe o neoliberalismo como um ataque oportunista dos capitalistas e seus lacaios políticos

102
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

mulheres e população negra, é comum ver análises jurídicas juspositivistas que ignoram o
contexto social dessasparcelas sociais, o veto de participação política e apontam que o Supremo
está invadindo competência ao “legislar” – ainda que um dos desdobramentos do pós-guerra
tenha sido o surgimento do controle de constitucionalidade como instrumento de efetivação de
direitos fundamentais. Apontam esses autores que a competência de legislar é do Legislativo,
ao passo que ignoram que os projetos de lei voltados ao reconhecimento de direitos da
comunidade LGBTI, por exemplo, estão em debate desde 1995 sem êxitos (Irineu, Oliveira,
Freitas, 2021).
Moreira (2019, p. 88) aponta que o “regime liberal não elimina relações assimétricas
e arbitrárias”. Pois, ainda que se “possa fazer parte de regimes supostamente democráticos, sua
inserção social será sempre de marginalização porque o projeto de dominação social opera em
quaisquer regimes políticos, mesmo aqueles baseados no princípio da igualdade de direitos”.
Para o autor,

As transformações dos regimes políticos pelas quais passamos afetaram positivamente


a vida de muitas pessoas brancas, mas elas não modificaram de forma essencial o
status cultural e material da vasta maioria das pessoas negras. Os projetos de
dominação racial utilizados durante os períodos colonial e monárquico foram
diferentes daqueles presentes na era republicana, mas todos foram bem-sucedidos em
manter a dominação branca (Moreira, 2019, p. 89).

É nesse sentido que Almeida (2018, p. 29) entende a legalidade como reivindicação
conservadora, embora dela eventualmente há que se recorrer.

A defesa do Estado de direito como defesa da legalidade é, no fundo, uma


reivindicação conservadora, uma vez que a legalidade é uma das manifestações mais
específicas da sociedade capitalista. Certamente que é possível compreender que, em
um contexto de Estado policial e de repressão, a defesa da legalidade se torne um fator
de vida ou morte para determinados grupos e indivíduos. Mas é importante que se
tenha em mente que o Estado capitalista é aquele que se desprende do poder pessoal
e que tem como base a legalidade. A legalidade só é uma pauta tida como progressista
em momentos de crise da sociedade capitalista em que o Estado, para preservar a
ordem de reprodução do capital, precisa ignorar os limites estabelecidos pela lei,
configurando-se o estado de exceção.

Considerando o acima registrado, a dimensão estrutural do racismo – e se inclui outras


diferenças e estruturas de dominação – não podem ser dissociadas do direito. Pois, “o direito,
ainda que possa introduzir mudanças superficiais na condição de grupos minoritários, faz parte
da mesma estrutura social que reproduz o racismo enquanto prática política e como ideologia”

aos Estados de bem-estar keynesianos, às sociais-democracias e ao socialismo de Estado” (BROWN, 2019, p.


29).

103
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

(Almeida, 2020 p. 140). Ou seja, o direito não só convive com as estruturas sociais da opressão,
como as legitima histórica e atualmente, obviamente alterando suas tecnologias.
Por exemplo, a escravidão na história que se traduz hoje em prisões superlotadas de
pessoas negras e mercado de trabalho em piores condições para essa parcela da população.
Ambas têm a mesma estrutura: o racismo. Isso vale para outras estruturas de poder e dominação,
como o sexismo e LGBTIfobia, e, também, de exploração da classe trabalhadora, que, como
aponta Mascaro (2013, p. 87).

A democracia, lastreada no direito e nas formas da sociabilidade capitalista, representa


tanto um espaço de liberdade da deliberação quanto um espaço interditado às lutas
contra essas mesmas formas. Por isso, a democracia representa o bloqueio da luta dos
trabalhadores mediante formas que não sejam aquelas previstas nos exatos termos
jurídicos e políticos dados. Exclui-se, com isso, a possibilidade da luta que extravase
o controle e o talhe do mundo estatal e de suas amarras jurídicas. A ação
revolucionária é interditada.

Mascaro (2013, p. 60) compreende que a forma jurídica e a forma política do Estado
capitalista foram conformadas, embora sejam diferentes. Para o autor, “A dinâmica das lutas de
entre as classes, grupos e indivíduos se apresenta politicamente, no capitalismo, perpassada
sempre pela forma estatal”. O Estado não representa a extinção das lutas em favor de uma
classe, pelo contrário, é a manutenção da contradição entre classes, considerando que “Sua
forma política não é resolutória das contradições internas do tecido social capitalista, sendo,
antes, a própria forma de sua manifestação” (Mascaro, 2013, p. 60).
Assim, parte-se da consciência de que o direito materializado no Sul Global serve ao
domínio do capital e às relações sociais hierarquizadas. Nos termos de Mascaro (2019, p. 14),
o fim do capitalismo impõe o fim desse direito notadamente técnico, impessoal e abstrato, essa
forma social-jurídica que ao tornar todos juridicamente iguais legitima o domínio das classes
que detém do domínio do capital, “porque somente numa sociedade socialista que se preocupe
com cada qual e com todos, um outro tipo de manifestação poderá então ser a medida justa das
coisas, das pessoas, dos fatos e das situações, deixando se ser uma estrutura mecânica que
chancela a exploração do capital”.

104
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

2. BRASIL CONTEMPORÂNEO: ESTRUTURAS DE


DOMINAÇÃO CAPITALISTA, SEXISTA, RACISTA E
LGBTIFÓBICA E AS CONTRADIÇÕES DA CIDADANIA NO
NEOLIBERALISMO

Quando se pensa no cenário contemporâneo brasileiro, no que se refere aos direitos e


cidadania, é importante tomar como marco histórico a promulgação da Constituição Federal de
1988 (BRASIL, 1988), além dos impactos do contexto internacional advindos do pós-2ª Guerra
Mundial, como as aspirações do positivismo ético ou pós-positivismo, que produziram
mudanças no Direito, visto que os horrores do fascismo e do nazismo impuseram a necessidade
de um Estado de Direito que protegesse os direitos humanos e fundamentais do arbítrio e
autoritarismo estatal, trazendo a dignidade da pessoa humana para o centro do ordenamento
jurídico.
Como parte do pós-positivismo, tem-se a criação de uma Constituição forte e
independente prevendo mecanismos como o controle de constitucionalidade, que possibilita o
Poder Judiciário invalidar atos de outros poderes caso incompatíveis com a Carta Magna.
Também nesse cenário, ao menos na Europa, os Estados de Bem-Estar Social ganham
contornos jurídicos, centrados nas ideias da social-democracia.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 acompanha esse movimento e num contexto
pós-ditadura, buscou assegurar o máximo de direitos fundamentais, a descentralização dos
poderes e democratização do acesso da população à justiça e aos bens sociais – trata-se de uma
‘constitucionalização abrangente’.
Aliás, importante mencionar que “os movimentos sociais tiveram grande participação
na construção de direitos fundamentais e sociais previstos na Constituição de 1988” (Almeida,
2020, p. 151), muito embora, na Constituinte de 1986/87, os militares ainda mantivessem o
controle das instituições e do Poder Público (Costa; Marques, 2018), revelando a preocupação
em manutenção das velhas práticas conservadoras, autoritárias e liberais, que estariam
revelados na formação da nova Constituição.
Inspirada nas ideias do positivismo ético, contestando a pureza do direito, e buscando
o reconectar com a filosofia moral e política, trazendo para o mundo jurídico o plano ético e
valores morais que se traduzem nos princípios, objetivos e fins públicos da Constituição, a Carta
Maior de 1988, apesar de seus problemas e contradições, é notadamente um texto normativo

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

voltado à cidadania, à justiça social e ao combate das diversas desigualdades, marginalizações


e pobrezas, promoção do bem de todos sem preconceitos de qualquer origem, conforme se retira
de seus objetivos (art. 3º).
Possui como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores
sociais do trabalho, a democracia e o pluralismo, se constituindo como um Estado Democrático
de Direito (art. 1º), com a prevalência dos Direitos Humanos (art. 4º), além de um rol extenso
de garantias individuais e fundamentais voltados à liberdade e igualdade (art. 5º), cuja aplicação
é imediata.
Além disso, os direitos e garantias previstos nela, não excluem outros decorrentes de
princípios ali adotados (parágrafo segundo, art. 5º), demonstrando que seu sentido normativo e
objetivo é sempre ao progressismo, adiante, nunca para o passado. Prevê diversos direitos
sociais, com especial atenção ao art. 6º, que menciona educação, saúde, alimentação, trabalho,
moradia, transporte, lazer, segurança, previdência e assistência (Brasil, 1988).
Com a Constituição de 1988 possibilitou-se um cenário de expansão dos direitos e
garantias aos diversos grupos sociais, sobretudo por considerar que do ponto de vista externo e
interno, o século XX, como um todo, é marcado pela organização dos movimentos feministas,
sexuais e étnico-raciais, na busca de legitimidade, desconstruções e ressignificações – que se
soma as lutas históricas dos movimentos do mundo do trabalho.
Com essa constitucionalização abrangente, devido aos períodos de horrores
autoritários, tais previsões podem se tornar pretensões dos sujeitos de direitos: as/os cidadãos
brasileiros/as. Mas o pós-CF/88, embora acompanhado de certa visibilidade e reconhecimento
formal de direitos da classe trabalhadora, de mulheres, negros/as e LGBTIs, também foi
marcado por ataques neoliberais e neoconservadores6 ao Estado Democrático de Direito que se
tentou garantir em 1988, como a Reforma Trabalhista de 2017 (BRASIL, 2017) e Reforma da
Previdência de 2019 (Brasil, 2019), heranças de Michel Temer e Jair Bolsonaro,
respectivamente.
E isso se evidencia em todo período pós-promulgação da Carta Maior, como percebe
Feitosa (2018, p. 440), todo clamor democrático pela CF/88 “não foi suficiente para impedir a
implementação do projeto neoliberal que se consolidara nos anos seguintes sob a regência dos
Ex-Presidentes Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso”.

6
O conservadorismo acredita que sua base moral serve de base para a regulação da vida social e reprodutiva da
sociedade (Birolli; Machado; Vaggione, 2020). O neoconservadorismo denomina as novas configurações do
conservadorismo clássico. Para Almeida (2018, p. 28), “o neoconservadorismo estrutura-se como reação ao
Welfare State [Estado de bem-estar social], à contracultura e à nova esquerda, fenômenos atrelados ao pós-
Segunda Guerra Mundial e ao advento do regime de acumulação fordista”.

106
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Ocorre que, do ponto de vista histórico, também se elegeu um governo que, no espectro
político tradicional, se aloca no campo das esquerdas, que foi o Partido dos Trabalhadores (PT),
com a eleição do Presidente Lula em 2002. Conforme Ricci (2010, p. 9), o PT optou por um
pacto social pelo desenvolvimento pautado na conciliação de classes e interesses, utilizando-se
daquilo que o autor nomeou de “modernização conservadora”, que é um movimento que
fragmenta as demandas da sociedade civil e promove a inclusão social pelo consumo,
culminando num conservadorismo de classe média individualista, fundamentalista religioso e
avesso aos movimentos populares e agenda de direitos.
Nesse cenário dos governos petistas e desde a promulgação da CF/88, os grupos que
antes estavam solapados na base da sociedade conseguiram alguns avanços. Leis raciais foram
aprovadas como a de cotas para o ensino superior (Brasil, 2012), o Estatuto da Igualdade Racial
(Brasil, 2010) e a lei de que define os crimes de racismo (Brasil, 1989).
As mulheres também conseguiram alguns avanços como a Lei Maria da Penha (Brasil,
2006), Lei do Feminicídio (Brasil, 2015), Lei de cotas para participação política (Brasil, 2022),
a primeira Presidenta foi eleita, além de diversas políticas públicas para mulheres. A população
LGBTI também, de forma mais restrita que as parcelas da população acima mencionadas,
conseguiu avançar no campo dos direitos e das políticas, ainda que de forma precária, e com
isso ganhou visibilidade política, social e midiática (Irineu, 2019).
A população empobrecida do país também contou com diversas políticas sociais e de
distribuição de renda que possibilitaram algum tipo de ascensão social e melhora das condições
de vida. Todos esses avanços, são carregados de limites da própria cidadania no contexto do
capitalismo – ou seja, não foram e não são capazes de alterar significativamente a vida da
população brasileira de forma emancipatória (Boschetti, 2018) – mas gerou um ressentimento
nas classes dominantes e privilegiadas. Brown (2019, p. 215) argumenta que

O ressentimento, o rancor, a raiva, a reação à humilhação e ao sofrimento – certamente


todos estão em jogo no populismo da direita à liderança autoritária. No entanto, essa
política do ressentimento emerge nos indivíduos que historicamente dominaram
quando sentem tal dominação em declínio – na medida em que especialmente a
branquitude, mas também a masculinidade, fornece uma proteção limitada contra os
deslocamentos e perdas que quarenta anos de neoliberalismo produziam nas classes
trabalhadoras e médias.

O ressentimento descrito por Brown (2019) faz parte do movimento do que a autora
nomeou de “ascensão da política antidemocrática no ocidente”, por articular nuances do
neoliberalismo e do neoconservadorismo, o que no Brasil restou evidente nos governos de
Michel Temer, e, sobretudo, de Jair Bolsonaro. Para Brown (2019, p. 10):

107
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Estas novas forças conjugam elementos já familiares do neoliberalismo


(favorecimento do capital, repressão do trabalho, demonização do Estado social e do
político, ataque às igualdades e exaltação da liberdade) como seus aparentes opostos
(nacionalismo, imposição da moralidade tradicional, antielitismo populista e
demandas por soluções estatais para problemas econômicos e sociais (Brown, 2019,
p. 10).

As bases dessas forças antidemocráticas articulam o “discurso de violência contra


minorias, de intolerância e de hiperindividualismo” (Almeida, 2018, p. 32), o que “permitiu
uma aproximação entre conservadorismo cristão e individualismo liberal, assim como entre
antipluralismo e neoliberalismo” (Biroli; Machado; Vaggione, 2020, p. 25).
É um movimento que se ancora em políticas que defende supostas maiorias de
tradições nacionais e religiosas que “promovem retrocessos que diminuem a possibilidade
participação [...] de grupos que atuam em defesa de direitos humanos, sobretudo nas pautas
feministas e LGBTQI” (Biroli; Machado; Vaggione, 2020, p. 190).
Ocorre que, além do ressentimento gerado, e muito embora, como demonstrado,
existem diversas legislações protetivas, os dados de violência no Brasil apontam para mortes
de mulheres, LGBTIs e pessoas negras em simples decorrência dos marcadores sociais da
diferença que carregam em seus corpos. A questão da seletividade, do etiquetamento dos
aparatos sociais repressivos e do controle social informal difuso derivado da mídia (Andrade,
2015), uma megamáquina criminalizadora e exterminadora de jovens negros, pessoas lgbtqui+,
assim como a própria noção da necropolítica de Achille Mbembe (2018) demonstrando a
perpétua natureza da exceção do mundo colonial imposta sobre populações na África, no Haiti
que firma uma resistência invisibilizada pela historiografia ocidental do povo do Haiti através
do jacobinismo negro (James, 2019), que derrota Napoleão e outros impérios coloniais
constituído pelo racismo, uma herança do ódio racial napoleônico, que posteriormente
influenciará Mussolini e Hittler no Holocausto e no ódio negrófobo gerado no seio do
negroceno, plantanoceno, capitaloceno (Ribbe, 2008; Ferdinand, 2020), e taxionomias de saque
baseadas na colonialidade do ser, do saber e do poder (Quijano, 2005)
A título exemplificativo, segundo os dados da Organização Não-Governamental
Transgender Europe (TGEU), o Brasil é o país que mais mata, em números absolutos, a
população trans (travestis e transexuais) em todo globo. Conforme apuração, em 2018 têm-se
369 casos de homicídios, sendo que 167 aconteceram somente no Brasil, seguido do México
com 71 e Estados Unidos com 28.

108
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Importante ressaltar o comparativo percebido por Almeida e Vasconcellos (2018, p.


306) acerca da mortalidade trans: “Estima-se, ainda, que a expectativa de vida atual de pessoas
trans seja de 35 anos (próxima àquela dos brasileiros não escravizados em 1880), enquanto para
o restante da população é de 74 anos (mais que o dobro)”. Essas marcas foram utilizadas
historicamente como biopolíticas, ou seja, utilizam-se essas diferenças para produzir diferentes
categorias de pessoas que serão úteis ao processo tanto de exploração, como de opressão.
Não é de se estranhar que a média de magistrados/as brancos/as seja de 80% (CNJ,
2018), enquanto cerca de 67% dos encarcerados são pessoas negras – ou seja, dois a cada três
presos (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019). Essas estatísticas quando confrontadas
com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, s.d.) são reveladoras do
racismo estrutural, visto que cerca de 45% da população se declara como branca e o restante
como não-brancos (pretos, pardos, indígenas etc.).
Em termos de população carcerária majoritariamente negra, aponta Silvio de Almeida
(2019, p. 328) que “a desigualdade racial que marca o autoritarismo não é apenas “herança” da
escravidão; o racismo tornou-se independente da escravidão e se atualizou, ganhou novas
formas de se reproduzir para além da escravidão”.
Mas além disso, a população negra, sobretudo as mulheres negras, continuam a ser as
maiores vítimas das diversas violências, sejam elas letais ou econômicas, do setor público
(polícias) ou privado (violência doméstica ou do mercado, por exemplo) – a saber, como forma
demonstrativa, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, 2019) informou que 66% das vítimas de feminicídio são mulheres negras, uma
porcentagem que aumentou em relação aos anos de 2017 e 2018, que era de 61%.
As questões do racismo estrutural que atingem a população negra historicamente não
são isoladas, pois são interseccionadas às questões de classe, gênero, sexualidade e outros
marcadores da diferença. Quando se pensa em direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo, e
se está falando de direitos que protegem a população de mulheres e LGBTI na sua pluralidade,
há uma ofensiva antigênero institucionalizada nos Poderes que integram o Estado Democrático
de Direito, sobretudo, no Poder Legislativo e Executivo – o que impede uma proteção integral
a essas populações.
Do ponto de vista da representatividade política institucional, conforme dados
retirados da Câmara dos Deputados (Brasil, s.d.), na legislatura 2019-2022, 85,19% das vagas
são ocupadas por homens e apenas 14,81% por mulheres. E mesmo assim, essa ínfima
representatividade não significa que todas as mulheres que foram eleitas representarão
interesses de outras mulheres nas suas intersecções com as demandas de classe, sexualidade,

109
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

faixa etária, deficiência, dentre outros marcadores, como é o caso do projeto de lei abaixo
ilustrado – muito embora acredita-se que é preciso ter equidade entre números, já que conforme
o IBGE (s.d.), as mulheres são maioria nacional por uma margem considerável.
A legislação penal criminaliza o aborto, salvo naqueles casos em que há risco de vida
para a gestante, gravidez resultante de estupro e por anencefalia, sendo esta última decidida por
judicialização direcionada ao Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 442, de 2018 (Brasil,
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442, DF/2018). A exemplo de
direitos reprodutivos, até mesmo aqueles abortos permitidos por lei – conhecidos como abortos
necessários: estupro, risco à vida da gestante e anencefalia – estão como objetos de discussão
no Congresso Nacional com fins a criminalizá-los, como é o caso do recente PL 2.893/2019.
Proposto pela Dep. Chris Tonietto (PSL/RJ) e Felipe Barros (PSL/RJ), o PL objetiva
revogar dispositivo que trata dos abortos necessários. Extrai-se da justificativa do projeto: “O
autor do estupro ao menos poupou a vida da mulher – senão ela não estaria grávida. Pergunta
que não quer calar: é justo que se faça com a criança o que nem sequer o agressor ousou fazer
com a mãe: matá-la?” (Brasil, Projeto de lei nº 2.893, de 2019).
Já no que diz respeito aos direitos sexuais voltados à comunidade LGBTI no
Congresso Nacional, há tentativas de inclusão de proteções jurídicas desde a Constituinte de
1986/87 e com a subsequente submissão de dois projetos de lei específicos em 1995 – o PL 70
(Brasil, Projeto de lei nº 70, de 1995), acerca de da alteração de prenome para pessoas trans –
e o PL 1.151 (Brasil, Projeto de lei nº 1.151, de 1995), que disciplinava a união civil entre
pessoas do mesmo sexo. Desde então, diversos projetos de lei foram submetidos à apreciação
tanto da Câmara de Deputados, quanto do Senado Federal, e todos, sem exceção, restaram
infrutíferos.
Todo esse cenário de neoconservadorismo legislativo levou o movimento LGBTI a
judicializar os direitos como forma de satisfação e reconhecimento, desembocando no Poder
Judiciário a tarefa de proteção jurídica dessa comunidade – isso significa que os direitos LGBTI
foram reconhecidos via judicialização, e não via legislação (Oliveira, 2021).
Irineu, Oliveira e Freitas (2021, p. 59), em estudos realizados pelo Núcleo de Estudos
sobre Relações da Mulher da Universidade Federal de Mato Grosso (NUEPOM/UFMT),
ilustram que a cruzada antigênero institucionalizada no Poder Legislativo, que faz parte de um
contexto maior de neoconservadorismo crescente no ocidente, possui três estratégias comuns:

1) “Barrar” qualquer aprovação de direitos sexuais e reprodutivos pela via legislativa,


se articulando e mobilizando no sentido de votar contrariamente às proposituras

110
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

progressistas. A título de exemplo tem-se os direitos de família, identidade de gênero


e criminalização da homofobia, cujas tentativas legislativas foram frustradas;
2) Criar mecanismos jurídicos que vedam expressamente qualquer avanço no que se
refere ao reconhecimento jurídico e político de mulheres e LGBTI. A exemplo disso
tem-se aquelas proposituras que vedam o reconhecimento de direitos, como foi o caso
da adoção e da alteração de prenome no registro civil;
3) Retroceder em posições jurídicas já alcançadas tanto pela via legislativa, quanto
pela judicialização. Pode-se observar tal postura por meio do Estatuto da Família que
visava retroagir às concepções de família formadas por heterossexuais, embora o STF
já havia reconhecido a constitucionalidade dos vínculos matrimoniais de casais gays-
lésbicos. O direito ao aborto também é alvo de PL que intenta criminalizar todas as
possibilidades, incluídas àquelas permitidas por lei.

Além disso, tem se utilizado dos pânicos morais sob argumento de que a ideologia de
gênero tem por objetivo a destruição da família tradicional, da sociedade e das crianças, tendo
como foco os grupos de militância feministas e LGBTI. Assim,

Para além de institucionalização do conservadorismo nas instituições democráticas, o


fundamentalismo religioso precisa recorrer à propagação ideológica de seu discurso
com vistas a reiterar privilégios e manter a hegemonia. Entre as ferramentas de
controle ideológico encontra-se aquilo que Weeks (1981, p. 20) nomeou de pânico
moral. Para o autor, “os pânicos morais cristalizam medos e ansiedades muito
difundidos [...]. A sexualidade tem tido uma centralidade particular em tais pânicos, e
os ‘desviantes’ sexuais têm sido bodes expiatórios onipresentes”. (Irineu, Oliveira,
Freitas, 2021, p. 59).

Todo esse cenário delineado acaba por revelar que, além das opressões estruturais
como o sexismo, o racismo, a LGBTIfobia e a pobreza, em suas intersecções, a tradição jurídica
latino-americana é marcada pelo fetichismo da lei, que muitas vezes possui leis e direitos de
caráter meramente simbólico, que não garante sua efetividade. Nesse sentido,

Nas sociedades latinas, em geral, não pensamos a lei e o direito como uma espinha
dorsal do contrato social que pode e deve se transformar à medida que se transformam
os sujeitos que os produzem (e suas relações). Mas sim como um arcabouço quase
mítico (platônico, poderíamos dizer) que “determina a realidade”. Além disso, na
conjuntura atual, em face da crescente perda de capacidade indutiva e normativa dos
Estados nacionais, assistimos ao surgimento e intensificação de demandas políticas
no sentido de mais regulação e controle (Corrêa, 2006, p. 109).

Apesar de haver um amplo conjunto de dispositivos protetivos positivados, o racismo,


o sexismo, a LGBTfobia estruturais, alinhadas a divisão de classes sociais, se tornam reais
impedimentos à efetividade dos direitos e da cidadania. A população negra, de mulheres e
LGBTI, portanto, tem seus direitos cada vez mais centrados no direito e na lei, mas não em
raras ocasiões, tem produzidos efeitos diversos daqueles que objetivam as lutas por
redistribuição e reconhecimento.

111
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Os direitos das populações vulneráveis no Brasil no cenário contemporâneo ainda são


marcados por precariedades, inefetividades, simbolismos e formalismo jurídicos – e isso não é
um fato isolado da contemporaneidade, pelo contrário, é um resultado histórico e que tem
relação direta com a produção do direito e cidadania no Brasil Imperial. Isso porque possuía
essas mesmas características, além das formas conservadoras e autoritárias combinadas com o
discurso liberal possível aos colonizados países do Sul Global, que parte da meritocracia e dos
fatores biopolíticos. Liberdade e igualdade, mas depende de quem e para quem.
Todo esse cenário parece muito próximo àquilo que Fraser (2021, p. 40) nomeou de
Neoliberalismo Progressista, que é um conceito que “combinou um programa expropriativo e
plutocrático com uma política de reconhecimento liberal-meritocrática”. Isso porque

Servindo-se das forças progressistas da sociedade civil, eles difundiram um ethos de


reconhecimento superficialmente igualitário e emancipatório. No centro desse ethos
estavam os ideais de “diversidade”, “empoderamento” das mulheres, direitos
LGBTQ+, pós-racialismo, multiculturalismo e ambietalismo. Esses ideais foram
interpretados de maneira específica e limitada, totalmente compatível [...] com a
economia dos EUA: proteger o meio ambiente significava monetizar o carbono.
Promover a propriedade da casa própria significava agrupar os empréstimos subprime
e revendê-los como títulos de garantia hipotecaria. Igualdade significava meritocracia.

Esse programa reduz a igualdade à meritocracia, tendo em vista que o neoliberalismo


progressista “para uma ordem ‘mais justa’ não visava abolir a hierarquia social, mas
‘diversificá-la’”, no qual “seus principais beneficiários só poderiam ser aqueles que já
possuíssem o necessário capital social, cultural e econômico. Todos os outros continuariam
presos no porão” (Fraser, 2021, p. 42).
Muito embora, como já assinalado neste trabalho, ressalta-se a necessidade de
manutenção desses direitos e garantias advindas com o contexto da Constituição Federal de
1988, como forma de mediação com o Estado Capitalista, também deve-se observar que

O reconhecimento formal de direitos no âmbito do Estado Social Capitalista, se por


um lado possibilitou as melhorias de condições de vida, por outro, também revelou o
quanto é incompatível a igualdade substantiva e a emancipação humana com a
cidadania burguesa, contrariando suposições com as de Marshall (dentre outras), para
quem a cidadania é capaz de superar a desigualdade. Não são poucas asanálises que,
ao incorporar a perspectiva mashalliana de cidadania, compreendem a conquista de
direitos como possível caminho para a emancipação humana, confundido cidadania
com emancipação humana. (Boschetti, 2018, p. 82)

É nesse sentido que “Não se deve ter nenhuma ilusão sobre os limites do Estado Social
na socialização da riqueza socialmente produzida”, tampouco “conceber o Estado como
mecanismo de superação da desigualdade social, ou como possibilidade de redistribuição [...],

112
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

ou como estratégia de emancipação humana. Essa é perspectiva típica do reformismo,


alimentado pelo politicismo”. Atribui-se aos direitos, à cidadania e às políticas “uma capacidade
de superação da desigualdade social que elas não dispõem” (Boschetti, 2018, p. 87).
Certamente uma das frentes de luta e resistência deve observar a organização do
Estado como forma de garantir o mínimo existencial da população frente ao modo de produção
capitalista, articulando-se em defesa dos direitos da classe trabalhadora na sua diversidade
étnico-racial, de gênero, sexualidade e demais marcadores da diferença.
Nos termos de Santos e Rafael (2020, p. 154), é necessário encampar um conceito de
justiça possível na sociabilidade burguesa que precisa ser interpretada a partir um horizonte
mais amplo socialmente, considerando a superação do capitalismo e das opressões, em oposição
aos conceitos de justiça apresentados pelas concepções liberais. Desse modo,

Relegada ao próprio direito, a concepção burguesa de justiça, contribui para a


manutenção, estruturação do capitalismo, que em sua essência é desigual e opressor.
[...] Assim, feita essa primeira distinção, é necessário transcender a associação
imediata entre Direito e Justiça, para compreendermos a essência da justiça possível
na ordem burguesa, apontando interpretações que iluminam o enfrentamento das
diversas formas de opressão.

Mas para além da institucionalidade capitalista e do contexto atual que mescla


neoliberalismo com neoconservadorismo formando o caldo que da base à nova direita e ao
bolsonarismo, as alianças nas políticas das ruas entre os povos oprimidos e explorados se
colocam como a tarefa a se construir entre os movimentos anticapitalistas e antiopressões.
Butler (2018, p. 65) analisa que

A precariedade é a rubrica que une as mulheres, os queers, as pessoas transgêneras,


os pobres, aqueles com habilidades diferenciadas, os apátridas, mas também as
minorias raciais e religiosas: é uma condição social e econômica, mas não uma
identidade (na verdade, ela atravessa essas categorias e produz alianças potenciais
entre aqueles que não reconhecem que não pertencem uns aos outros)

Sugere a autora que “As alianças que têm se formado para exercer os direitos das
minorias sexuais e de gênero devem, na minha visão, formar ligações, por mais difícil que seja,
com a diversidade da sua própria população” e mais ainda, “todas as ligações com outras
populações sujeitas a condições de condição precária induzida de nosso tempo” (Butler, 2018,
p. 77).
Inclusive, é desse ponto de vista que se reitera a tese 11 da obra “Feminismo para os
99%” de Arruza, Bhattacharya e Fraser (2019, p. 93), a qual convoca a todos movimentos
radicais a se unirem em uma insurgência anticapitalista comum. As autoras rejeitam o
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

neoliberalismo progressista, bem como o populismo reacionário, devendo “unir forças com
outros movimentos anticapitalistas mundo afora – com movimentos ambientalistas, antirracista,
anti-imperialista e LGBTQ+ e com sindicatos”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho objetivou apresentar um paralelo entre a formação do Brasil


Império e a contemporaneidade, tomando como referência a promulgação da Constituição
Federal de 1988, apresentando a relação dos direitos e da cidadania em face das estruturas de
dominação, poder, exploração e opressão, considerando os marcadores sociais da diferença
como classe, raça, gênero e sexualidade.
Viu-se que a formação do direito no Brasil e a consequente noção de cidadania
remontam o período Imperial, considerando o fator Independência e seus desdobramentos,
como constituição de um Estado, do direito e da identidade nacional – na qual a Europa era o
modelo a ser seguido, tanto enquanto personificação de povo, quanto de organização política
inspiradas nos moldes do emergente liberalismo europeu.
O liberalismo jurídico que cabe aos países do Sul Global conviveu e ainda convive
com formas autoritárias, conservadoras, coloniais, formalistas e que se utilizam de fatores
biopolíticos para divisão da população, remetendo a diversidade e pluralidade de sujeitos aos
seus devidos lugares sociais. O domínio da cidadania e dos direitos como liberdade e igualdade
eram voltados às elites brancas e endinheiradas, enquanto a “cidadania penal”, a escravidão e a
marginalização social cabia aos negros, mestiços, indígenas, mulheres, dissidentes sexuais e de
gênero, despossuídos e pobres.
No cenário contemporâneo, apesar das garantias e direitos protegidos pela CF/88 e
pelos diversos instrumentos normativos, as estruturas de dominação capitalista, sexista, racista
e LGBTIfóbica continuam a ser reais impedimentos na concretização, acesso e efetividade dos
direitos dessas populações.
Isso porque a tradição jurídica latino-americana é eivada de fetichismo da lei, que se
caracteriza por precariedades, inefetividades, simbolismos e formalismos, sobretudo quando
tangencia os direitos e a cidadania de grupos submetidos às violências estruturais. E essas
vulnerabilidades sociais são potencializadas pelo neoliberalismo e neoconservadorismo, que
unidos pelo ressentimento, promovem desregulação do capital, ataques aos direitos sociais e
pânicos morais em sua agenda antigênero e antidiversidade.

114
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Apesar dos diversos avanços nas últimas décadas, todo esse programa se aproxima do
neoliberalismo progressista – que não visa abolir o capitalismo, mas apenas diversificar a
hierarquia social, tomando a meritocracia como princípio organizador da vida.
Conclui-se que o reconhecimento formal de direitos no Estado capitalista, embora
necessário para os grupos historicamente discriminados, explorados e oprimidos, não dispõe de
nenhuma capacidade de superação das mais diversas desigualdades. Resta aos movimentos
sociais se insurgir em torno de alianças anticapitalistas e antiopressões como forma de resistir
e demarcar outras possibilidades de viver dentro de uma territorialidade e de um direito
insurgentes sempre surgido nas fissuras e nas brechas das lutas contra o status quo conservador.

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118
Capítulo 7

A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL:


Da ofensa a reintegração – em busca do melhor interesse para as
crianças e adolescentes

Fabiana Montanher Guedes1


Antônio Leonardo Amorim2

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10535507

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem o objetivo de apresentar uma perspectiva de Justiça Criminal,


relevante para as conexões de convívio social, num enfoque das ofensas provocadas por
adolescentes inseridos na sociedade. A meta é a abordagem dos agentes inseridos nos conflitos
que chegam ao judiciário, comentando pontos como o papel da vítima, do ofensor, do Estado e
da sociedade em geral na construção real de paz social.
Objetiva-se a análise da precariedade e colapso do sistema punitivo atual, por processo
comparativo e conceito entre Justiça restaurativa e Justiça punitiva, sendo esta última a forma
de justiça trabalhada pelo Estado na atual conjuntura criminal do Brasil.
Destina-se a todos aqueles que visam compreender o conteúdo restaurativo e a
prestação eficiente de uma justiça que não prima inicialmente pela punição, mas, visa a
reintegração dos ofensores e restabelecimento de paz nos cenários de violência e desconexão,

1
Advogada, bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) – Ituiutaba. ORCID:
https://orcid.org/0009-0004-6661-1143.
2
Professor do curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, Câmpus do
Pantanal - CPAN, Cidade de Corumbá/MS, Doutor em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina,
bolsista CAPES (2022/2023), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019),
bolsista CAPES durante o período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal
(2017-2018), pesquisador vinculado ao projeto de pesquisa Cárcere e Fronteira. E-mail:
antonio.amorim@ufms.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1464-0319.

119
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

por práticas que conduzem conflitos, estabelece pertencimento, concede fala ao ponto que
presta serviço humanitário as partes inseridas e aqueles que se pretende responsabilizar.
Observa-se que mesmo a proposta da justiça restaurativa seja dar voz aos indivíduos
envolvidos nos atos de ofensa, trazendo uma nova possibilidade de enfrentamento dos conflitos,
ela muitas vezes, depara com situações de fragilidades que os vínculos familiares,
institucionais, comunitários enfim, sociais, em modo geral resultam das relações. Ao que
confere o campo juvenil, essa relação se intensifica por fatores da própria necessidade de
transgredir que alguns demonstram.
Em um primeiro momento, aborda-se os conceitos, a questão histórica e a linha de
etária que se pretende demonstrar. Em um segundo momento, visa trabalhar teorias que abrange
a Justiça Restaurativa e seu processo, método de aplicação. Em um terceiro momento volta-se
a problemática proposta neste trabalho, para ao fim respondê-la de forma teórica e utilizando
de teorias por autores como Howard Zerh e Kay Pranis.
Trata-se de um processo de conexão harmônica entre a forma de Justiça Restaurativa
e as normas. Elenca dispositivos constitucionais e integra os poderes legislativo, executivo,
judiciário e a sociedade que necessita ser ouvida e vista por uma nova perspectiva circular de
posição do que aquelas travadas pelas litigiosidades, em posição vertical.
Ao fim, pela narrativa de exemplos de sucesso da implantação do processo restaurativo
em práticas jurídicas com o público adolescente, abrange algumas questões acerca dos possíveis
impactos que a implementação da justiça restaurativa pode ocasionar para os operadores
jurídicos e resultados positivos aos adolescentes e a sociedade.

2. DIGNIDADE JUVENIL: CONCEITOS, GARANTIAS E


DIREITOS

Com a promulgação da Lei n° 8.069 decretada no ano de 1990, ou mais popularmente


conhecido Estatuto da Criança e do Adolescente, uma classe até então discriminada começa a
despontar e tomar proporção de direitos e dignidade, assegurados pelo art. 3°, do ECA. As
crianças e adolescentes, ganha status de proteção, bem maiores a serem garantidos em direitos,
contido já no art. 1°, da Lei citada.
Mas como denominar quem são as crianças? Qual característica poderia distinguir o
indivíduo como criança ou adolescente? A resposta para tal indagação está contido no art. 2°
da Lei 8.069/90, dispõe que ara efeitos desta lei, considera-se criança, até doze anos de idade

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incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade, e ainda,


excepcionalmente, explicito em lei, aqueles adolescentes entre 18 e 21 anos de idade, portanto
a faixa etária é a regra de distinção e a exceção são por exemplo questões de limitação psíquica.
O Estatuto foi um marco na questão da proteção e dignidades dessas crianças e, um
reflexo das leis internacionais relativas à criança e do adolescente, ele se fez necessário no
cenário de direitos e conseguiu garantir direitos básicos aos atendidos em seu bojo. Remontar
a história brasileira dos direitos inerentes a criança e o adolescente é, fazer uma linha do tempo
entre a época colonial quanto das “Rodas dos Expostos” e os dias atuais, e no âmbito mundial,
é pensar na Grécia e Roma antigas onde naquele cenário as crianças eram consideradas simples
objetos sem direitos, nesse momento descortina-se a fase anterior da promulgação do Estatuto.
Constitucionalmente, pensar na figura do Princípio do melhor Interesse da Criança e
do Adolescente, estando previsto no art. 227, caput da CF/88, além de estar também garantido
no Estatuto da Criança e do Adolescente, nos art. 4°, caput e art. 6°, e como consequência na
Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, será pensar na figura da
integral proteção. Tais artigos especifica as políticas públicas a serem implantadas; prioridade
absoluta enquanto garantia constitucional nos tramites e decisões, bem como nas questões de
direitos sociais e coletivos, além de classificar esses indivíduos como pessoas em
desenvolvimento, garantindo o direito sob seu melhor interesse.
Compreendido em um grau de princípio fundamental, cabendo a observância universal
dos direitos a ele conectados, enfim, a todos compete a observação e salvaguardar sua garantia
e eficácia. Ainda, o Princípio da Proteção Integral à criança e ao adolescente, segue as mesmas
disposições do princípio anterior, cabendo proteção, apoio e incentivo de todos em sociedade
para com esses adolescentes, que aqui seriam os personagens central do foco.
Neste ínterim, Veronese (2013, p. 38-46) destaca que, essa parcela da população, tem
direitos especiais, sendo o mínimo já que tanto já lhes foram retirados, a partida não é igual,
muitos danos já foram provocados a esses minoria, neste momento o Direito a Dignidade
Humana Básica deve prevalecer e, os envolvidos nas questões de direitos e garantias dos
adolescentes, devem se ater ao fato de que tais direitos decorrem de uma batalha travada
constitucionalmente.
Outro dispositivo que normatiza e da condição de prioridade aos casos de conflitos por
jovens é o art. 35, inc. II e III da Lei 12.594/2012, lei esta que foi promulgada pela Resolução
225 do CNJ, que visou uniformizar o conceito de Justiça Restaurativa nas questões de conflitos
criminais. Dessa Lei nasce o SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), que
executa medidas socioeducativa aos jovens que cometem “atos infracionais, elencando

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

princípios norteadores da execução das medidas socioeducativas, proporção e limites da


aplicação das medidas socioeducativas, e trabalha pontos importantes como a relação de
equidade e tratamento por questões como idade, capacidade e circunstâncias pessoais dos
jovens atendidos.
Parece um tanto estranho, que fora necessários tais normas para preservação dos
direitos da criança e do adolescente, todavia, a bem pouco tempo nossas crianças esquecidas e
desprezadas, depois passam a serem exploradas, e ainda o são, para trabalhos braçais com
condição precária e de pagamento abaixo do mercado de trabalho entre outros fatores já
conhecidos do senso comum e por fim, após serem esquecidas pela sociedade e Estado passam
a ser consideradas pessoas de direitos e ganham proteção como dever de todos (Veronese, 2013,
p. 38-46).

3. A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL: DA OFENSA A


REINTEGRAÇÃO - UTÓPIA OU REALIDADE?

A dinâmica de desenvolvimento e evolução mundial trouxe através das tecnologias


existentes, um novo modo de repercussão dos atos. Os atos praticados na contemporaneidade,
tomam proporção e formas muito rápido se conectando a tecnologia e ao anseio da sociedade.
Assim também ocorre como Direito Penal, que com o crescimento populacional, tende a ser
compelido a ter respostas eficientes na maneira de ressarcir o dano lesado, mas na cautela de
não transgredir os direitos do ofensor, com uma visão de vingança privada, e sim o uso
moderado de seus procedimentos e meios de contenção social.
Conforme a modernidade chega, as necessidades sociais mudam, a resposta do Poder
dominante deve atender essa necessidade e assim, contribuir para a paz social, todavia, na
questão criminal, a observação para imprimir parâmetros satisfatórios, não tem de certa forma
cumprido sua finalidade. Neste ponto Zerh (2008, p.61) comenta:

Dentro do processo, o fenômeno do crime se torna maior do que a vida...


Muitos têm feito tentativas de reformular esse processo nos últimos séculos. A
conclusão de alguns de que "nada resolve", ou de que nenhum bem pode advir desses
esforços de reformulação, é imprecisa. No entanto, muitas, senão a maioria dessas
tentativas, têm sido infrutíferas. Os esforços de reforma têm sido usados para servir a
propósitos muito diferentes daqueles originalmente visados.

Esta visão de conexão Estado, sociedade, ofensor e vítima, o que se tem notado é um
superlotamento de processos nos tribunais e presos encarcerados. Na questão juvenil, os direitos

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foram inseridos, mas a forma de condução não tem produzido o efeito esperado, a
ressocialização não tem efeito nas aplicações punitivas atuais.
Dito isso, importa resgatar o conceito de Processo Restaurativo na preleção da
Resolução 2002/12 da Organização das Nações Unidas – ONU:

2. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e,


quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados
por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime,
geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a
mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos
decisórios (sentencing circles).

Desse modo, a questão restaurativa trata-se de uma justiça com a perspectiva


abrangente e se forma através de um processo axiológico e diria hermenêutico, uma conexão
entre todos envolvidos e responsáveis, provocando a construção da solução e da paz, pela
narrativa, com meios fundada em princípios basilares, necessário para a completude da
Dignidade Humana a que se quer atingir (Manual de Práticas Restaurativas, 2008, p. 21).

É um processo comunitário, não somente jurídico, que se refere a procedimentos


específicos, no qual, a palavra “justiça” remete a um valor e não a uma instituição. A
Justiça Restaurativa valoriza a autonomia das pessoas e o diálogo entre elas, criando
oportunidades para que envolvidos e interessados (autor, receptor, familiares,
comunidades) possam conversar e identificar suas necessidades não atendidas, a fim
de restaurar a harmonia e o equilíbrio entre todos.

Veja que a Justiça Restaurativa possibilita o uso de vários métodos dentre eles, os
círculos, esses círculos são verdadeiras ferramentas de conexão e a sua base metodológica pode
variar, todavia em todos eles a ferramenta da fala se faz presente e necessária. A comissão
organizadora do manual de Práticas Jurídicas do Paraná, conceitua os círculos como sendo “(...)
um encontro para restaurar relações; um modo de resolver conflitos por meio do diálogo, em
que as pessoas envolvidas chegam a acordos definidos em conjunto, com apoio de um
coordenador” (Manual, 2008, p. 09).
Uma visão analítica diante da questão retributiva enquanto Justiça, é aquela então que
determina o crime e penaliza, numa estrutura de Estado que processa, condena e aplica a pena,
deixando ao lado a vítima e o ofensor, se projetando como a parte ofendida, restando a vítima
e o ofensor do fato lesivo, na posição de ferramentas a provar o dano ofendido.
Outro ponto conceitual é o próprio direito, que para a Justiça Restaurativa, se alarga
em questões subjetivas de cada indivíduo dentro do processo restaurativo. Neste sentido pensar
no Direito inerentes aos atos sociais, é pensar na questão humana de dignidade básica. Assim,

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o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, se alicerça nessa concepção restaurativa. Essa


Dignidade Básica foi galgada pelos esforços internacionais e nacionais, tendo sofrido
adaptações para atender a fatos antes intocados.
Aqui compete relembrar da tipicidade delegada adotada pelo ECA, em que o
dispositivo coloca os intitulados “crimes” cometidos por adolescentes em atos infracionais,
ainda a possibilidade da retroatividade e anterioridade da lei penal, em face do benefício da
aplicação da lei mais benéfica ao ofensor, provocado pela teoria da “ultima ratio” do Direito
Penal, além de outros princípios que trazem no seu bojo o cerne do Princípio da Dignidade
Humana (CF/88, art. 1°, inc. III e 5°, inc. XXXIX).
No entanto, mesmo com todos os pontos elencados durante a proposta tratada da forma
de justiça, uma questão é de suma importância ressaltar. A Justiça Restaurativa não visa
eliminar a penalização de uma ação ofensiva, realmente não; o que se pretende é, conectar todos
os envolvidos e dar similitude a responsabilidade adquirida pelos atos ofensivos. O processo
para admissão dessa nova forma de julgar, é complexo, por isso a exigência de se ter preparação
para a facilitação das partes nesses métodos restaurativos.

3.1 JUSTIÇA RESTAURATIVA NOS PROCEDIMENTOS DE


ATOS INFRACIONAIS

Como uma nova proposta de abordagem as questões que envolvam ofensas a justiça
punitiva de forma geral, a Justiça Restaurativa tem encontrado caminhos e possibilidade dentro
do ordenamento jurídico brasileiro. Assim, claramente vem à tona uma imagem de justiça mais
significativa como um todo, aquelas figuras de punição severas já não resistem ao
tempo/espaço. Os desejos da sociedade estão diferentes. A eficácia na aplicação das leis se
tornara insuficientes, assim como o modelo atual tem se tornado.
A necessidade de uma estrutura humanizada, que dê vida aos personagens renegados
do passado toma forma. A vítima, a sociedade e até o ofensor deseja serem escutados, deseja
sentar-se à frente do mecanismo judicial e poderem ganhar voz. Assim, a Justiça Restaurativa
se modifica bem como, os direitos inerentes ao homem, bem como o próprio Direito em si,
caminhando junto a modernização das mudanças no cenário universal. Nessa linha visível cabe
citar a questão da modernidade liquida, teoria implementada por Bauman (1999, p. 07), quanto
a crescente necessidade do aprimoramento, tecnologia, tudo é líquido, fugaz e passageiro.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

A partir de 2002 a Justiça Restaurativa ganhou corpo através da ONU, em 2005,


ganhou vida no ordenamento jurídico brasileiro, sendo nosso país signatário de alguns pactos e
convenções que tratam da matéria de Dignidade da Pessoa Humana, logo, os programas e
projetos da Justiça Restaurativa se iniciou pelo país. Exemplo positivo de inciativas como essas,
foram do Projeto Justiça para o século 21, realizado no sul do país, tendo um marco satisfatório
em seus Estados, mas principalmente em Porto Alegre/RS.
Diante da abordagem do Projeto, cumpre destacar os fundamentos de estruturação para
um resultado satisfatório em processo restaurativo, para o restabelecimento da pacificação
social entre os envolvidos possíveis:

1. Desenvolver as práticas de Justiça Restaurativa em unidades jurisdicionais do Poder


Judiciário do Rio Grande do Sul, e referenciar sua difusão nas demais políticas
públicas e comunidades;
2. Consolidar a aplicação do enfoque e das práticas restaurativas na jurisdição da
infância e da juventude, já em desenvolvimento conforme Resolução n. 822/2010 –
COMAG;
3. Desenvolver expertise para aplicação das práticas restaurativas em áreas
jurisdicionais ainda não exploradas, em especial na violência doméstica, juizados
especiais criminais e execuções penais;
4. Viabilizar a oferta de práticas restaurativas como parte da oferta de serviços de
soluções autocompositivas dos CEJUSCs – Centros Judiciários de Solução de
Conflitos e Cidadania do Rio Grande do Sul;
5. Produzir e difundir conhecimentos, capacitando recursos humanos para a atuação
em práticas da Justiça Restaurativa e em sua multiplicação.
6. Apoiar a utilização do enfoque e das práticas restaurativas no âmbito de políticas e
serviços a cargo do poder executivo, notadamente nas áreas de segurança, assistência
social, educação e saúde.
7. Apoiar a criação e consolidação de serviços de base comunitária para pacificação
de conflitos com base nos princípios e práticas da Justiça Restaurativa. (BRASIL,
2015, p. 21).

No Projeto Justiça para o século 21, os campos de atuação são pautados no enfoque
restaurativo pela base principiológica; as práticas restaurativas enquanto metodologias;
articulação em redes em estratégias de disciplina social; a transformação pessoal e institucional
na transformação cultural das pessoas e instituição e a ambientação restaurativa na resolução
das desconexões e construção do ambiente pacífico.
A criação do Programa JR21 TJRS foi aprovado em outubro de 2014, tendo sua
formulação concluída e sua execução iniciada em março de 2015. O sucesso da implementação
do Projeto, motivou outros polos a iniciarem o mesmo trabalho, chegando a um total de 18
projetos no ano de 2015/2016 (CNJ, 2016, p. 121-126). Em relação ao percentual como métrica
apontada, cabe a observação que o objetivo é da construção da paz em um processo narrativo,
portanto dentre todos os assistidos, o sucesso se pauta na observação das histórias e nas
responsabilidades assumidas.
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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Em um novo projeto no Paraná mais de 900 pré-círculos foram constituídos, que


resultaram em aproximadamente 350 círculos, seja em processos judiciais, seja círculos
informais de sensibilização e relacionamento. O início de tudo ocorreu através da Comissão
Paranaense de Práticas Restaurativas do Tribunal de Justiça do Paraná TJPR que foi instituída
por meio da Portaria n. 11/2014, de 18 de setembro de 2014, pelo Núcleo Permanente de
Métodos Consensuais de Solução de Conflitos NUPEMEC, com o objetivo precípuo de
deliberação acerca da política de práticas restaurativas no âmbito do Poder Judiciário
Paranaense (CNJ, 2016, p.328-331).
Dos programas gerados pela inciativa, destaca-se ao nosso interesse o programa “Na
medida que eu Penso”, voltados aos jovens infratores em cumprimento as medidas
socioeducativas. O “falando em família” que abrange todos os personagens oriundos de lares
conflitantes litigiosamente e com históricos de abandono emocional. E por fim o projeto
“Escola Restaurativa” para proporcionar a criação de projetos facilitadores de resolução de
conflitos no ambiente escolar (CNJ, 2016, p.332-335).
Com todas as práticas implementadas, os programas concretização a mudança de
pessoas e dos ambientes institucionais, inserindo no contexto judicial os conflitos das
instituições sociais. Exemplo de resultados positivos vieram do projeto “Na medida que eu
penso”, dos adolescentes encaminhados ao projeto, mais da metade foram participantes ativos
dentro das seis turmas criadas, e alguns desses jovens reafirmaram a vontade de continuarem
no projeto, caindo o percentual de reincidência nos atos infracionais dentre os assistidos (CNJ,
2016, p.381) a prova disso está no relato de um dos adolescentes assistidos pelo programa:

Eu aprendi que nesse projeto agente abriu a cabeça bom pelo menos eu aprendi a
respeitar as pessoas e os dias que eu compareci aqui amei. E é sério quero “vim” aqui
muitas vezes aprendi a escutar as pessoas intende o que elas “falão” amei muito vim
aqui. Intendi que “agente” não pode fazer tudo o que vem na cabeça, pensa, refletir e
além de tudo ter respeito. É isso que eu acho! (A.C.R.S) (CNJ, 2016, p.382).

Ao longo dos relatos, importante é o fator de envolvimento das instituições em


quererem caminhar na perspectiva da Justiça Restaurativa, o sucesso já é demonstrado pelos
estudos e levantamentos realizados nos programas e projetos criados pelo país, o cerne agora é
cada parcela da sociedade assumir de fato e de direito sua cota parte no processo para
restauração dos conflitos em sociedade, inerentes as nossas crianças e adolescentes. Nesse
sentido, vale uma análise quanto da repressão estatal e institucional, a ser alterada para a
possibilidade da execução de reintegração dos jovens a sociedade.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

3.2 DA OFENSA À REINTEGRAÇÃO

O Estatuto da Criança e do Adolescente Lei n°. 8.069/90, veio romper com a estrutura
normativa anteriormente existente, trouxe uma roupagem principiológica de Proteção Integral
a Criança, proteção essa que na Lei suprimida a proteção atingia somente aqueles que estavam
em determinado risco de segurança, ou seja, uma lei discriminatória, pois elencava o que seria
risco, deixando desamparado todos aqueles que estariam em condições irregulares mas que, se
não provadas essas irregularidades, as crianças não estariam cobertas por essa proteção legal,
intitulada como Doutrina da Situação Irregular.
A proteção integral da criança orientou a Constituição Federal de 1988, através do seu
art. 227, que diz:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.

Neste sentido, calcado na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, na


Declaração Universal dos Direitos da Criança de 59, o Princípio da Proteção Integral adotada
pelo ECA, tem como base, três norteadores: criança e adolescente como sujeitos de direito,
direito também a absoluta prioridade e ainda, respeito a capacidade dessas crianças enquanto
indivíduos em desenvolvimento.
Uma das inovações trazidas pelo ECA e observadas, está descrita no art. 98, que trata
das medidas de proteção no caso de violações de direitos desses indivíduos, numa figura tríade
de responsabilidade do Estado, da família e da sociedade no geral como também, medidas que
podem ser aplicadas pelo seu próprio comportamento, o que significa que, em si cometendo um
ato infracional, o adolescente ou criança poderá cumprir uma medida socioeducativa, sendo
elas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade
assistida; semiliberdade e internação.
Um alerta merece ser dito neste contexto, se busca um novo olhar na cultura de
penalizar, reintegrando os envolvidos, com dignidade a roda social, nos parece significativo
entender que medidas socioeducativas devem trazer caráter de responsabilidade, todavia com o
trabalho de reintegração ocorrendo em todas as linhas de acesso a esse adolescente, a

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

engrenagem deve estar alinhada entre Estado, Família e sociedade, se um elo se rompe, a
medida restaurativa não se cumpre:

Não podemos mais tratar a infância e a juventude com descaso, não podemos mais
coisificá-los como meros objetos passíveis de tutela de normativa, não podemos mais
diferenciar a quem se deve proteger. Todas as crianças e adolescentes,
indistintamente, estão na condição de sujeitos de direitos e são merecedores de uma
proteção especial aos seus direitos, sem negligência, sem crueldade, sem opressão,
sem discriminação e sem desrespeito.

O SINASE instituído pela Lei 12.594/2012 que por sua vez nasceu da concepção da
Resolução 225 do CNJ, conceitua que as medidas socioeducativas estabelecidas pelo ECA têm
por objetivos:

Art. 1° § 2º inc. I- a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas


do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação;
II - a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e
sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento; e
III - a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença
como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados
os limites previstos em lei.

Importa dizer que, de longe não se afigura a necessidade de reparação do ato


infracional cometido, pois se assim não fosse, restaria incitando a caminhada contra
dispositivos legais já normatizados em nosso ordenamento, incitando a anarquia institucional,
não, esse não é o intuito. O intuito primordial, é a abertura para possibilidade da expansão de
novos meios de se fazer/realizar a responsabilidade infracional de nossos jovens, adolescentes.
Não se deseja, e fala-se com veemência, instituir ociosidade e passividade excessiva,
para aqueles que de certa forma adotaram caminhos contrários as normas redigidas, não se
busca vitimá-los ao ponto de menosprezar nossos próprios institutos, mas objetivasse a
integração desses institutos e pessoas nos processos de construção restaurativa. E ao fim, a
responsabilização ocorrerá protegendo os direitos dos jovens e dando-lhes deveres de uma
maneira a incentivá-los a não praticar novamente tais atos, além da satisfação e ganho da
sociedade e da vítima no geral.
Um ambiente pacífico requer muita observação, diálogo aberto e direcionado, preparo
emocional e restabelecimentos psicológicos, o que ao fim é o intuito da Justiça Restaurativa em
relação ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, pautado pela valorização de
experiências subjetivas, através da narratividade destas.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

4. A JUSTIÇA RESTAURATIVA TEM PROMOVIDO A


REINTEGRAÇÃO DOS ADOLESCENTES INFRATORES NA
SOCIEDADE?

Da complexidade de fatores que envolvem a questão de criminalização de adolescentes


infratores, o que notadamente se figura, é à vontade na resolução de uma ofensa. Neste ponto,
cabe, pensar na ofensa, como uma questão macro, saindo de um ponto territorial, e chegando a
cada particularidade social. Contudo, não compete desprezar nenhum departamento ou
nenhuma base estrutural composta em nosso país, a iniciativa neste momento/espaço é a
abertura de uma nova visão, uma lente que envolva cada teoria lançada no universo.
O ponto fundamental que neste cenário obsta travar, foi sem sombra de dúvida o da
questão humana. Se desbravando a concepção histórica, resulta na constatação de que as
crianças e adolescentes, eram negados princípios básicos da condição de sobrevivência humana,
claramente se fez necessário a modulação de uma lei que se visa proteger esses indivíduos.
Um fenômeno bastante conhecido e pouco divulgado, é aquele em que só se tem
representação, aquele ou aquela que se faz representar. Assim, se permiti-nos constatar, ocorre
em relação as mulheres, ainda pouco representadas no contexto político-social, também assim,
ocorre com as crianças e adolescentes no cenário geral. As minorias são renegadas, por não ser
monetariamente necessários.
Aqui, tem se a necessidade de dedicar pequeno espaço emotivo para trazer a reflexão,
que reverberou durante essa jornada cognoscível, trata-se da “Chacina da Candelária” no centro
da cidade do Rio de Janeiro, que a cerca quase 29 anos, foi realizada por um ato brutal, de um
dos braços do Estado, a polícia militar; contra crianças e adolescentes em situação de rua,
vulneráveis e desprovidos de dignidade. De toda a ação brutal, 8 crianças faleceram e um
adolescente conseguiu sobreviver e contar a história.
Ponto chave dessa triste cena foi uma artista social, que transformou aquele horror em
trabalho social, inicialmente pelo Projeto Coqueirinho, embaixo de uma ponte e depois tal
projeto se firmou com o nome de Projeto Uerê, transformando vidas dos adolescentes em
situação de rua e residentes na comunidade da Maré, no Rio de Janeiro. Yvonne Bezerra de
Mello ou a “Tia Ivone” como chamavam os adolescentes que ela assistia na época, mencionou
em uma reportagem ao site TERRA, que acreditava que das crianças e adolescentes
sobreviventes da chacina, metade já havia morrido por ações violentas nas ruas e comunidade
do Rio de Janeiro.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Essa dedicação é justa e expressamente para chamar para a questão de violação de


direitos, a maioria das crianças e adolescentes em situação de rua ou mesmo, residentes em
comunidades e regiões periférica, convive não somente com a estrutura da violência, a violência
ali é efeito, resultado de uma série de supressão de Direitos Básicos, como educação,
alimentação, moradia, saúde, sendo esses uns dos fatores que contribuem para o crescimento
de ações e explosões violentas, já cerceado em momento anterior.
Finalmente, a análise central da problemática aqui desenvolvida, e exemplificada
acima, trata justamente da união de processos restaurativos circulares nas esferas judiciais e
sociais, integradas a ações de Políticas Públicas efetivas para a população, chamando ao
contexto laborativo, toda estrutura nacional, para promoção da construção real da paz. Nas
palavras de Herbert de Souza (03/11/1935–09/08/1997), o sociólogo, mais conhecido por
Betinho:

Se não vejo na criança uma criança, é porque alguém a violentou antes, e o que vejo
é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado. Essa que vejo na rua, sem pai, sem mãe, sem
casa, cama e comida, essa que vive a solidão das noites sem ninguém por perto, é um
grito, um espanto. Diante dela o mundo deveria parar para começar um novo encontro,
porque a criança é o princípio sem fim e o seu fim é o fim de todos nós.

Isto posto, resposta não há do que, sim, acreditasse na estrutura restaurativa proposta
por este novo paradigma, pelas óticas de Mayara de Carvalho e Kay Pranis, através de um
processo legal, com capacitação de seus componentes mediadores e facilitadores,
proporcionando a narrativa entre seus envolvidos, para satisfação de um Direito de
Responsabilizar voltado não somente ao dano e as penas em si, mas as necessidades do ser
humano social em comunidade, que neste trabalho tem-se na figura representativa d
adolescentes ofensores, que são pessoas reconhecidas de Direitos pelas normativas vigentes.
Não renega-se o trabalho de Howard Zerh, porém, acredita-se num processo mais
humanitário, do que simplesmente a mudança de uma ótica dentro do processo já existente,
acredita-se nas tratativas anteriores aos fatos, ou mesmo posterior todavia, por um processo que
não posiciona verticalmente as partes envolvidas em desconexão de conflitos, chamando todos
ao eixo circular e com isso, provocando a observação de segurarem sua cota de responsabilidade
na construção desse caminho pacífico, que parte do unitário subjetivo para o conjunto social.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nessa pesquisa foi explorado o conceito Justiça Restaurativa, com finco da


contribuição metodológica de teorias e práticas no campo da Justiça Restaurativa em
atendimento a adolescentes autores de ato infracional, no cenário judicial mensurando o
contexto de social de vulnerabilidade
Na inercia do Estado em gerar programas voltados a realização de políticas públicas
de qualidade, vislumbra-se um cenário em que o adolescente ofensor do ato infracional, se torna
peça esquecida, lhe sendo negado condições básicas e sociais, no qual desejo é se tornar visível
a sociedade e aos governantes, esse mesmo Estado contribui com o processo de deslegitimação
desse adolescente, a partir do ato infracional.
Em um cenário favorável para combate essa situação, a Justiça Restaurativa se mostra
como uma nova possibilidade, da qual só se concretiza tem de beneficiar todos os adolescentes
que por ela se beneficie. Fato de que no campo judiciário medidas restaurativas têm tomado
espaço, no entanto, o cuidado ao processo restaurativo necessita de aperfeiçoamentos, ora,
quem se submeteria em um cirurgião com um médico que não opera? Esse é o ponto, o
judiciário carece de auxílio e experiências positivas de sucesso nos métodos da Justiça
Restaurativa. Transpor a barreira da conexão fria, das paredes gélidas, do afastamento
mecanizado das medidas, requer conteúdo humanitário. Nessa linha diante do vasto cenário de
oportunidades de implantação de práticas, projetos, programas e ações restaurativas é que se
conecta o presente trabalho.
Assimilar os conceitos, interligar ofensor, vítima e sociedade, pede um tanto de
perseverança e de empatia, os facilitadores e mediadores dessas práticas no poder judiciário,
devem se ater ao fato da constante preparação, e os Tribunais devem disponibilizar essas
conexões. A justiça Restaurativa se mostra como ferramenta hábil em qualquer meio social, em
qualquer espaço, nesse sentido olvidar que ela tenha um caráter reintegrativo é duvidar de
técnicas e métodos seculares de preservação da paz continuada, através da narrativa e trocas de
experiências, da capacidade de colocar-se a ouvir e oportunizar o restabelecimento das relações
humanas, é abrir o caminho para uma nação realmente soberana de direitos e cumpridora de
seus deveres, o que neste último caso não se dissolve da ideia restaurativa, ao contrário da ideia
inicial de aplicação a que se tentaram imputar as práticas da Justiça Restaurativa. Esse é um
norte do que a Justiça Restaurativa é capaz de gerar, o montante produtivo somente será passível
de mensurar quando toda conexão for estabelecida

131
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Observamos que a justiça restaurativa tem o potencial de visibilizar as histórias de vida


dos adolescentes e suas famílias, além de ser um espaço para a manifestação e ampliação da
responsabilização para além do adolescente e sua família, incluindo o Estado. Isso porque as
histórias dos adolescentes e suas famílias trazem a dimensão subjetiva, do particular, mas
também apresentam uma dimensão coletiva, relacionada à conjuntura econômica do país e às
escolhas políticas feitas.
A participação de toda sociedade, e efetiva contribuição do Estado é imprescindível
para que a justiça juvenil restaurativa, alcance o seu propósito teórico, esclarecido e
comprovado que tais práticas realmente têm conquistado, quando bem estruturada, percentuais
capazes de contenção das violências que nossos adolescentes têm vivenciado.

REFERÊNCIAS

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Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas
destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nos 8.069, de 13 de
julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986,
7.998, de 11 de janeiro de 1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de
dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os Decretos-Leis nos 4.048, de 22 de
janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm. Acesso em 19 mai.
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132
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

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133
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

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134
Capítulo 8

A CONSTRUÇÃO DO SER “MATÁVEL”:


Uma análise da influência midiática na construção do “eliminável”

Joicy da Silva Soares1

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10535492

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem o intuito de verificar a influência que os meios de


comunicações, notadamente a mídia televisa, exerce na criação do estereótipo de criminoso.
Frisa-se que tal agente dispõe de espetacularismo ao tratar de certos tipos penais quando
praticados por indivíduos negros (bodes expiatórios), resultante no pânico moral.
De modo que, é crível e imprescindível que esse fenômeno seja investigado
considerando a herança escravocrata, manifesta na forma do racismo, presente na estrutura
social brasileira. Assim, tem-se o seguinte problema de pesquisa, qual a contribuição da mídia
na construção do inimigo? Para responder esse questionamento, é necessário analisar as
relações raciais no Brasil, inicialmente, estabelecidas com a chegada dos colonizadores
portugueses ao país, onde a mão de obra escravizada foi a força motriz da economia brasileira
e ao tempo que escravizava, a classe dominante, deslegitimava culturas, sob o pretexto de
civilizar. Ressalta-se que por mais de trezentos anos o povo negro foi animalizado e objetivado,
dado que disseminavam a ideia de inferioridade.

1
Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT) – Campus Diamantino. ORCID:
https://orcid.org/0009-0007-3177-9597.

135
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

2. ESTERIOTIPO DE CRIMINOSO

Michel Foucault (1999) percorreu o desenvolvimento das formas de punição desde a


utilização do suplício até o seu desaparecimento, motivado pelo surgimento da ideia de inversão
de papeis, aos olhos da população saturada de assistir atrocidades; já que o carrasco, executor
das penalidades físicas, representante da justiça, passou a ser visto como cruel, em razão dos
castigos aplicados que, por vezes, superavam em termos de violência, os delitos cometidos
pelos condenados.
Dessa forma, a justiça ao executar as punições públicas (matar ou ferir) não era mais
tida como a forte e gloriosa e passou a assumir o papel de violenta quando do seu exercício. A
partir daí, emergiu a nova forma de punir: a estigmatização do indivíduo, ressaltando que a
condenação marcava o indivíduo “delinquente” com sinal negativo, através da publicidade, por
meio dos debates e da prolação de sentença; no cerne das execuções, a justiça passou a delegar
a função através de mecanismo administrativo, a exemplo das prisões, sob o controle da
Marinha e das Colônias (Foucault, 1999).
O objetivo central era: erradicar ou reduzir ao mínimo as penas direcionadas ao corpo,
propriamente dito, embora os substitutos de “castigo-corpo” fossem penas físicas, (reclusão,
servidão e trabalhos forçados, interdição e deportação) não atingem o mesmo grau de
sofrimento físico. Sob tal perspectiva, “o castigo passou de uma arte das sensações
insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos” (Foucault, 1999, p. 15); onde, nos casos
entendidos como necessários, a justiça passou a utilizar-se de punições à distância para atingir
o corpo dos justiçáveis.
Michel Foucault (1999, p. 20) elucida o objeto da punição, “pois não é mais o corpo,
é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue,
profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições”. Calha estabelecer que,
o citado processo de alternância de objeto punitivo, não simboliza mudanças imediatas na
categorização das condutas punidas, embora diversas infrações tenham perdido sua conotação
de gravidade, sendo que outras condutas deixaram de ser criminalizadas, como por exemplo, as
de natureza religiosa, como a blasfêmia, tais mudanças somente aconteceram durante os últimos
duzentos anos.
Ressalta-se que embora tenham ocorrido mudanças, substancialmente, a cisão do
permitido e proibido manteve-se (Foucault, 1999). Michel Foucault (1999, p. 21) expõe ainda,

136
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

a modificação do objeto “crime”, malgrado a definição formal do crime tenha se mantido


(qualidade, substância e natureza), o elemento punível, sofreu grande interferência, onde se
relativizou a interpretação, ante a mais nova estabilidade da lei. O que se exemplifica no
seguinte trecho:

Porém julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as


inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade. Punem-se as
agressões, mas, por meio delas, as agressividades, as violações e, ao mesmo tempo,
as perversões, os assassinatos que são, também, impulsos e desejos. Dir-se-ia que não
são eles que são julgados; se são invocados, é para explicar os fatos a serem julgados
e determinar até que ponto a vontade do réu estava envolvida no crime. Resposta
insuficiente, pois são as sombras que se escondem por trás dos elementos da causa,
que são, na realidade, julgadas e punidas. Julgadas mediante recurso às
“circunstâncias atenuantes”, que introduzem no veredicto não apenas elementos
“circunstanciais” do ato, mas coisa bem diversa, juridicamente não codificável: o
conhecimento do criminoso, a apreciação que dele se faz, o que se pode saber sobre
suas relações entre ele, seu passado e o crime, e o que se pode esperar dele no futuro
(Foucault, 1999, p. 21)

Isto é, formalmente, colocam-se sob julgamento os elementos jurídicos codificados,


no entanto, subliminarmente, julgam-se as particularidades dos indivíduos, sejam elas
relacionadas a atos passados, condição financeira, relações sociais, raça e comportamentos
esperados futuramente.
A partir dos novos sistemas penais dos séculos XVIII e XIX a globalização
encaminhou os julgadores à um novo caminho, que não se restringia a julgar apenas os
“crimes”; considerando que, conforme defende Michel Foucault (1999, p. 25), tal atribuição foi
delegada as instâncias extrajurídicas, em consequência influenciada por elementos
extrajurídicos que passaram a ter grande poder sobre a operação penal. O que alterou as
questões examinadas nos julgamentos:

Não mais simplesmente: “O fato está comprovado, é delituoso?” Mas também: “O


que é realmente esse fato, o que significa essa violência ou esse crime? Em que nível
ou em que campo da realidade deverá ser colocado? Fantasma, reação psicótica,
episódio de delírio, perversidade?” Não mais simplesmente: “Quem é o autor?” Mas:
“Como citar o processo causai que o produziu? Onde estará, no próprio autor, a origem
do crime? Instinto, inconsciente, meio ambiente, hereditariedade?” Não mais
simplesmente: “Que lei sanciona esta infração?” Mas: “Que medida tomar que seja
apropriada? Como prever a evolução do sujeito? De que modo será ele mais
seguramente corrigido?” Todo um conjunto de julgamentos apreciativos,
diagnósticos, prognósticos, normativos, concernentes ao indivíduo criminoso
encontrou acolhida no sistema do juízo penal (Foucault, 1999, p. 23)

Observa-se que a “alma” do criminoso não é posta em questão para determinar as


responsabilidades jurídicas sobre determinado fato, e sim para “julgá-la” conjuntamente

137
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

(Foucault, 1999). Perpendicular a isso, descortina-se um sistema penal que utiliza-se de seu
poder para estabelecer os corpos a serem criminalizados, sob a influência do capitalismo e do
colonialismo que através de gerações manteve a massa controlada e vigiada, a fim de
estabelecer “corpos dóceis”, definido como “[...] corpo que pode ser submetido, que pode ser
utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (Foucault, 1999, p. 163); o referido
fenômeno se dá, senão somente, em razão dos estereótipos construídos através da
desumanização e consequente animalização do indivíduo não branco, consoante debatido na
seção anterior.
Em contraponto, no âmbito da sociologia criminológica entendiam-se que a distinção
entre o comportamento de “criminoso” e o comportamento adequado à lei, dependia mais da
definição legal do que, de fato, de atitudes boas ou más, positivas ou negativas, vez que
determinado comportamento era criminalizado seguindo parâmetros sociais, considerando que
a legitimidade dos sistemas de valores penais era implicitamente influenciada por questões
político-sociais (Baratta, 2002).
A partir de tais perspectivas, para compreender a criminalidade, em consequência as
teorias que a estudam, em especial o labeling approach, Alessandro Baratta (2002) defende que
é necessário o estudo do sistema penal como norteador para o comportamento socialmente
adequado.
Considerando que o status de delinquente atribuído ao indivíduo está estritamente
correlato às instâncias oficiais do sistema penal (polícia, judiciário e instituições penitenciárias)
e a forma como elas controlam a delinquência. Cabe ressaltar que mesmo que determinado
indivíduo tenha a mesma conduta penalmente punível não será alcançado, se este não for
previamente estigmatizado pelos agentes de controle social (Baratta, 2002).
Baratta parte da concepção de que para a investigação criminológica deve considerar
não apenas a “criminalidade” como também o “criminoso”, já que é imprescindível para
compreensão da realidade social, mediante os processos de interação (Baratta, 2002, p. 86-87).
Para as abordagens criminológicas tradicionais o exame das questões busca estudar “quem é o
criminoso?”, “como se tornou?”, “em quais condições torna-se reincidente?” e “como controlá-
los?”; enquanto, os interacionistas, adeptos do labeling approach, indagam “quais são os
indivíduos considerados desviante?”, “no que resulta esse estigma?” e por fim “quem
determinar a estigmatização?”.
Resultando-se no surgimento de duas linhas de estudo: sendo que a primeira pretendeu
descobrir quanto a formação da “identidade” desviante e o “desvio secundário”, e os efeitos
causados à pessoa etiquetada; ao passo que, a segunda linha, buscou entender a definição, a

138
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

atribuição de determinadas ações na qualidade de desvio e sua atribuição a comportamentos e


indivíduos, remetendo as agências de controle social e os indivíduos que as integram (Baratta,
2002, p. 88-89), o que se estudará a seguir.

3. A CONSTRUÇÃO DO OUTRO – A QUEM SERVE NO


BRASIL?

Dispondo da teoria do etiquetamento que tem a criminalidade como “bem negativo”


contrário ao privilégio, vez que determinado comportamento só será etiquetado como desvio e,
em consequência, criminalizado, se atribuído, concomitantemente, à indivíduos pobres e
racializados, sob a influência do capitalismo e neoliberalismo, vemos a nominação do Outro,
através da rotulação criminal.
Ressalta-se que no meio social, determinados indivíduos pertencentes aos estratos
sociais mais favorecidos e representantes de determinadas instituições tem o condão tanto de
estabelecer quais infrações serão perseguidas, quanto de definir quais serão as pessoas que
deverão ser perseguidas, eis que dotados do poder de estabelecer e aplicar as normas (Baratta,
2002).
Ademais, em razão do monopólio de poder social, não é incogitável ponderar que,
diante de tais prerrogativas os “[...] critérios segundo os quais são recrutados e pelo tipo de
especialização a que são submetidos, exprimem certos estratos sociais e determinadas
constelações de interesse” (Baratta, 2002, p. 111).
Para melhor delimitar quem são os indivíduos tidos por “inimigos” e a quem o Estado
pretende proteger, necessária a compreensão do direito penal do inimigo desenvolvido por
Günther Jakobs (2007, p. 30), que esclarece “o Direito penal do cidadão é o Direito penal de
todos, o Direito penal do inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao
inimigo, é só coação física, até chegar à guerra”. Para ele, quem não se submete aos ditames
sociais apresentando constante ameaça, deve ser segregado, sem direito de ser tratado como
cidadão e etiquetado como inimigo, fadado a eliminação; de modo que, o direito penal do
inimigo é a forma de combater o perigo.
Para Jakobs (2007, p. 37):

[...] o Direito penal conhece dois pólos ou tendências em suas regulações, por um
lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta
para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro

139
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

lado, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se


combate por sua periculosidade.

Infere-se que muito antes da violação da ordem, efetivada por meio do cometimento
do delito, o Estado, através do monopólio do poder, submete o autor como forma de combater
futura periculosidade. Em consonância a isso, Evandro Piza Duarte (2016, p. 520) entende que:

O tipo criminal não foi uma mera categorização de indivíduos, mas a construção
discursiva que delimitava, transformava e atuava sobre conflitos sociais. Da mesma
forma, o tipo racial não foi apenas um rótulo arbitrário, mas um modo de representar
e intervir sobre conflitos sociais.

Para fins de reflexão e melhor entendimento, reprisa-se que “quem ganha a guerra
determina o que é norma, e quem perde há de submeter-se a esta determinação” (Jakobs, 2007,
p. 36), cabe lembrar sob que circunstâncias o Brasil se desenvolveu, a fim de erudir sobre as
posições de poder ocupadas pelas classes sociais mais abastadas e quais indivíduos as
compõem, o que deixa os sujeitos negros - estigmatizados, a margem da sociedade e subalternos
as normas inscritas pelos estratos sociais superiores para o seu próprio privilégio.
Por fim, imperioso ressaltar a conveniência que tal sistema de etiquetamento de
condutas de certos indivíduos gera aos demais sujeitos não etiquetados, que conscientemente
ou não, utilizam-se de suas vantagens em um país onde, por vezes, ignora-se a existência do
racismo estrutural e seus efeitos, negando a voz aos que sofrem, ao passo que contribuem para
a perpetuação do fenômeno.

4. RACISMO PELO USO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Nesta seção será discutida a atuação da mídia em notícias de ocorrência de delitos,


com ênfase na mídia televisiva que, inobstante a crescente nos demais veículos de comunicação,
ainda tem maior abrangência, vez que alcança os mais diversos extratos sociais.
Conforme dados da Mídia Dados Brasil 2021, verifica-se que 96,16%, cerca de
71.295.300 (setenta e um milhões, duzentos e noventa e cinco mil e trezentos), dos domicílios
brasileiros possuem aparelho televisor. Quanto ao perfil dos consumidores, colhe-se que 53%
do público é feminino e 47% masculino, sendo em sua maioria pertencentes a classe econômica
C, que compõem 49%, enquanto as classes A/B são 35% e D/E 16%. Ressaltando-se que as
cinco maiores emissoras da TV aberta (Globo, Record, SBT, Band e Rede TV!) possuem

140
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

jornalismo em sua programação noturna (18h à 00h) de segunda à sexta, período de maior
audiência.
Esse meio de difusão de informações, aqui falando dos programas jornalísticos, com
exemplo do programa Alerta Nacional apresentado por José Siqueira Barros Júnior (Sikêra Jr.)
da emissora da RedeTV!, utiliza-se de discursos sensacionalistas para atingimento de maior
público. Como forma de exemplificar, foram analisados as edições do programa exibidas de
08/11/2021 à 12/11/2021, a partir dos vídeos contidos no site da Rede TV!, em especial, quanto
aos crimes imputados e vitimados à indivíduos manifestadamente negros.
No programa do dia 08/11/2021 noticiou-se “homem é assassinado com um tiro
durante briga”, a equipe de reportagem correspondente informou o desconhecimento do motivo
do crime, no entanto, esclareceu que a vítima se tratava de pessoa com passagens policiais com
mandado de prisão em aberto, o que foi satirizado pelo apresentador com o bordão “CPF
cancelado com sucesso”; “traficante é morto em confronto com a polícia”, tratava-se de
indivíduo com ficha criminal com morte também satirizada pelo apresentador; “policial é morto
durante tentativa de assalto”; “homem mata amigo após acusa-lo de roubar celular dele”.
Na edição do dia 09/11/2021 apresentou-se “no colo do tinhoso - bandido é morto e
dois fogem após troca de tiro com a PM”, a morte do suspeito foi comemorada e satirizada com
o bordão “CPF cancelado”; “traficante que traiu facção acabou morto por ex-comparsas”,
apresentador diz que o indivíduo acabou se tornando alvo de outros criminosos e que isso é
consequência de ter envolvimento com essas pessoas, em razão disso a morte foi comemorada
com o bordão “CPF cancelado”.
No programa do dia 10/11/2021 informou-se “bandido morre em confronto com a
polícia no Mato Grosso”, foi esclarecido que os dois suspeitos cumpriam pena em liberdade,
sendo que um suspeito fugiu e o outro faleceu, este em especial tratava-se de indivíduo branco;
“foragido do Acre é preso depois de levar surra no Mato Grosso”, acusado teve sua imagem
satirizada pelo apresentador; “Eu me apaixonei pela pessoa errada – Jovem morre no lugar do
namorado em possível acerto de contas”, vítima culpada pela violência sofrida por ter se
envolvido com “criminoso”.
Na edição do dia 11/11/2021 anunciou-se “erva daninha – homem executado tinha
dívida com o tráfico de drogas”, embora a equipe correspondente tenha sido informada que,
segundo a polícia, a vítima não tinha ficha criminal, pautando-se em informações da população,
afirmaram que o acusado tinha envolvimento com o tráfico de drogas e a vítima foi satirizada
com o bordão “CPF cancelado”; “arrastado pro inferno – fez arrastão nas ruas do Cabo e teve
CPF cancelado”, acusado de realizar arrastões teve a morte comemorada com “mais uma notícia

141
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

boa”; “Covardes e perigosos!! – ladrões atacam e ameaçam mulheres na zona Leste de SP”,
apresentador alerta quanto a periculosidade enquanto mostram a imagem dos indivíduos; “Fuga
frustrada - bandido morre após assalto e comparsa é preso na fuga”, morte satirizada com
bordão “CPF cancelado”.
Por fim, na edição do dia 12/11/2021: “da cadeia para o cemitério – câmeras flagram
execução de dois criminosos”, as mortes foram comemoradas com o bordão “CPF cancelado”,
sendo que a equipe de reportagem informou que as vítimas respondiam por crimes de roubo,
tráfico e homicídio e atualmente estavam em regime semiaberto; “surtou no ônibus – homem
matou passageira e feriu duas pessoas”; “vítima de bandido cara de pau – grávida é salva por
PM à paisana em assalto em clínica no DF”; “pistoleiro executou o sargento do exército Lucas
Guimarães”, família ofereceu recompensa de R$ 40.000,00, programa divulgou imagem do
indivíduo de máscara asseverando que o executor do crime possui tatuagens e que
provavelmente já deve ter praticado outros crimes, com base em suposições; “três patetas -
polícia captura três fugitivos de penitenciária”.
Embora tenha sido selecionado determinado período, a título de exemplo, dando
ênfase aos crimes de maior ocorrência (homicídio, roubo, lesão corporal etc.) com participação
de indivíduos estereotipados, frisa-se que não foram noticiados, nesse período, nenhum dos
crimes classificados como crime de colarinho branco, denotando a preferência por crimes
violentos, com o fito de instaurar o pânico moral.
Percebe-se, ainda, que se falando em crimes que resultaram na morte de indivíduo
criminalizado, seja na qualidade de acusados ou de vítimas, apenas um indivíduo branco teve
sua morte satirizada com o bordão “CPF cancelado”, contudo, tratava-se de individuo também
estigmatizado em função da criminalidade secundária.
A prática de comemorar a morte de acusados, embora o ocorrido seja recente, já foi
corroborado por Eugenio Raúl Zaffaroni (2012, p. 311) em sua obra A Palavra dos Mortos, na
qual aduz “os mortos são um produto natural da violência deles”, e a comemoração do efeito
morte é em virtude da eliminação do inimigo.
Denota-se que, a mídia acaba vinculando a imagem do indivíduo negro, ao passo que,
ridiculariza o estereotipo, expõe rostos, divulga informações extraoficiais e dissemina o medo,
objetivando reafirmar seu discurso preconceituoso. Registra-se que tal abordagem não ocorre
apenas com os acusados e suspeitos de praticar crimes, uma vez que ocorre também com as
vítimas, em se tratando de indivíduos pertencentes ao mesmo extrato dos criminosos
identificados por semelhança a eles.

142
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Dessa forma, extrapola o cunho informativo, eis que dotado de tendenciosidade que,
embora em nenhum momento utilize-se de termos que exprimam explicitamente o racismo, tal
ocorrência se manifesta nas entrelinhas.

4.1 CRIMINOLOGIA MIDIÁTICA

A criminologia midiática é a construção do senso comum que subverte a realidade em


junção aos preceitos e crenças já existentes, estribada na etiologia criminal simplista, fazendo
com que a maioria das pessoas tenha uma visão sobre questões criminais construídas a partir
de notícias e informações obtidas através dos meios de comunicação (Zaffaroni, 2013, p. 198).
Uma das razões da mídia televisiva refletir tanto sensacionalismo e catástrofe está na
utilização de imagens que acabam por ativar o modo emotivo dos telespectadores, ao passo que
exprimem ideias concretas e não abstratas, o que impossibilita o pensamento reflexivo, sendo
que “nem sempre se percebe o que se olha” (Zaffaroni, 2013, p. 200). Além dessa abordagem,
ainda se utilizam de conteúdos implícitos, onde o telespectador é conduzido silenciosamente à
determinadas conclusões, com a falsa ideia de que concluiu sozinho.
Conquanto, destaca-se que ao difundir essas ideias, a criminologia midiática
estabelece o ideal de pessoas decentes (bons cidadãos), pautando-se em estereótipos, inclusive
no estabelecimento dos maus. A partir dessa distinção, institui-se o eles e o nós, onde eles são
os maus, sujos e perversos que perturbam a ordem social e trazem inquietação a nós: bons,
irrepreensíveis e carecedores de proteção a todo custo.
Nessa toada, Eugenio Raúl Zaffaroni (2012, p. 309) esclarece:

(O “eles” é poroso) Os preconceitos sintetizam o estereótipo que define a diferença


são muitos e variam em cada sociedade e tempo. A criminologia midiática delimita
mais o eles quando os identifica etnicamente, como no caso dos negros e índios,
deixando-os mais abertos quanto assinala uma classe e estamento social, como os
jovens pobres de comunidades precárias [...].

Compreende-se que para que haja o eles, é imprescindível que possam ser
identificados como diferentes de nós e, uma vez estigmatizado, o negro por tabela é tratado
como inimigo a ser combatido, pois haverá comparações ao semelhante dele (criminoso). Cabe
registrar que a mídia escolhe inclusive os crimes para dar enfoque, visto que não se trata de
uma seletividade penal aleatória, são escolhidos com base a legitimar a perseguição dos negros
que compõe os extratos sociais inferiores, intitulados bodes expiatórios, resultando na

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

minimização dos crimes cometidos por outros indivíduos não etiquetado, dado que não servem
para corroborar a imagem deles.
Os programas de TV apresentam-se como meio ideal para a difusão do medo no âmbito
social, “[...] pois joga com imagens, mostrando alguns dos poucos estereotipados que
delinquem e, de imediato, os que não delinquiram ou que só incorrem em infrações menores,
mas são parecidos” (Zaffaroni, 2013, p. 201).
Este é um dos exemplos de situação, onde a mídia dispõe de seus discursos implícitos,
já que não é necessário que declarem que se determinado indivíduo se assemelha com o
criminoso estereotipado também delinquirá em algum momento. Necessário registrar que o
único meio onde a criminalidade advinda do negro – estereotipado, não gera comoção e
compadecimento com a vítima, se trata da ocorrida contra pessoa negra, principalmente dentro
do mesmo estrato social; pois não há reconhecimento com o nós, porquanto não carecedores de
piedade, visto a naturalidade da violência entre eles, já que dotados de incivilidade - condição
própria dos inferiores.
E isso se dá em razão da seletividade existente não apenas na criminalização, mas
também na vitimização A partir da análise de todos os pontos levantados até aqui, é possível
identificar a relação entre a criminologia midiática e o racismo, dada a sua natureza estrutural,
intrínseca a sociedade brasileira, de perseguição ao negro.
Outrossim, a personificação da criminologia midiática se apresenta na pessoa do
empresário moral - “[...] comunicadores, os formadores de opinião, os intérpretes das notícias”
(Zaffaroni, 2013, p. 215) que, por óbvio, age pautado em interesses de todo um meio
empresarial. Sob esse aspecto econômico, manifesta-se a influência do capitalismo no meio
midiático, onde busca perpetuar os interesses da burguesia através da legitimação,
naturalizando a ideia de inferioridade dos acusados.
Considerando-se que “a acumulação de capital que os negócios das telecomunicações
propiciam transferiu as empresas de informação para um lugar econômico central [...]” (Batista,
2002, p. 3), oportunidade em que o foco é redirecionado para questões criminais sem considerar
o determinismo. Com a ausência do determinismo, revela-se um sistema, onde o único culpado
pelo delito é o próprio infrator, retirando de jogo questões sociais e históricas, que conforme
professado durante o desenvolvimento desta pesquisa, influem tanto na criminalização primária
quanto na secundária do individuo negro.
Veja-se que, uma vez reconhecido o poder da pecúnia nesse meio, eis que tais
programas televisivos são financiados por patrocinadores, socorrem-se a difusão de
informações da maneira mais espetacular possível em busca de audiência, tirando vantagens do

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

clamor social pela pena, quando, conforme diz Nilo Batista (2002, p. 4), reivindicam-se através
do “delito-notícia” pela “pena-notícia”.
Repisa-se que a criminologia midiática atua tanto por influência da estrutura social
brasileira, corroborando o racismo, quanto pelo capitalismo, como forma de preservar, garantir
e prosperar todo o capital que tal indústria lucra ao difundir o pânico moral.

4.2 QUAL A CONTRIBUIÇÃO DA MÍDIA NA CONSTRUÇÃO


DO INIMIGO?

A contribuição da mídia na construção do inimigo se dá de diversas formas, vez que


se vale da manipulação e ocultação de informações para disseminar ideias, a fim de atingir seus
objetivos que, conforme anteriormente mencionado, não se trata de meio livre de interferências.
A influência do capitalismo se dá duplamente, seja por meio do mercado midiático
criminológico que cresce estribado em tragédias e pânico, seja através da histórica
marginalização do negro por questões socioeconômicas pós abolição, que o mantiveram em
situação de inferioridade, visto que seu tratamento de subalterno desvalorizado persistiu, em
razão da forma que a escravidão foi extinta, resultando no traumatismo da escravidão.
Ligada à última forma de influência do capitalismo, temos, ainda, o racismo estrutural,
neste ponto correlato a criminalização. Tais influências na mídia projetam a imagem dos
indivíduos a serem perseguidos e dos que serão protegidos, tendo em mente que ao dizer
imagem, refere-se à racionalização negativa deles a partir da ótica das classes dominantes.
Quanto à atuação da mídia televisiva, percebe-se que ocorre de maneira seletiva,
pautando suas reportagens, frequentemente, em informações obtidas através da polícia, da
vítima e da acusação, já que habitualmente mais participativa nas fases preliminares das
investigações, demonstrando a quem é dado voz. Ressalva-se que se trata de uma sociedade
naturalmente racista, onde encontramos estabelecidos os papeis do outro e do nós, do inimigo
e do cidadão, na qual um deve ser protegido e o outro eliminado e para que haja essa
diferenciação, é necessário apenas o reconhecimento do que se parece conosco e o que é
diferente.
Assim, o que transparece “em todas as cenas nas quais a presença da imprensa surge,
é que há dois polos expressivos, entre a denúncia do que não pode se calar, quanto à construção
da imagem do negro criminoso, animalizado, perigoso e que deve ser combatido” (Flores, 2017,
p. 129).

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Além da influência exercida diretamente no senso comum, já que dá voz e notabilidade


apenas a determinada fonte, a fim de corroborar o próprio discurso, tem-se que:

O sistema penal atua sempre seletivamente e seleciona de acordo com os estereótipos


fabricados pelos meios de comunicação em massa. [...] é pela observação das
características comuns à população prisional que descrevemos os estereótipos a serem
selecionados pelo sistema penal, que sai então a procurá-los (ZAFFARONI, 1989, p.
130).

Depreende-se que a mídia influencia também no sistema penal, que colhe seus
estereótipos nos meios de comunicação e, posteriormente, devolve-os através dos estereótipos
dos segregados ao meio social, como forma de orientar quanto ao tipo. A saber, conforme dados
fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN, 2021, p. 203), no ano de 2020
a população carcerária negra tratava-se de 66,3%, enquanto no ano de 2005 compunha 58,4%,
o que indica não apenas a maioria da população carcerária, como também uma crescente,
corroborando a “cara” que representa o sistema prisional e a manutenção do estereotipo do
criminoso.
Lado outro, conforme o Centro Brasileiro de Análise Planejamento (CEBRAP, 2021)
que elaborou a pesquisa com a temática “Mídia, sistema de justiça criminal e encarceramento:
narrativas compartilhadas e influências recíprocas”, na análise de sentenças, quanto ao
reconhecimento como prova, concluiu-se que:

[...] a falta de questionamento da origem do “reconhecimento” é ilustrada pelo fato de


serem poucos os processos nos quais há menção expressa à reportagem vista que
serviu como evidência, de que data ela era, de qual veículo. Entre os casos em que foi
possível identificar o veículo específico, na Região Nordeste houve prevalência da
televisão e, em especial, de programas policialescos [...] (CEBRAP, 2021, p. 365).

Informa, ainda, a ocorrência da tentativa de ocultação da influência exercida pela mídia


no meio judicial, sendo que em 63% dos julgados em que mencionam veículos de comunicação,
não há indicação da fonte e em 28% sequer mencionam o tipo do veículo (CEBRAP, 2021, p.
365), todavia, sem conseguir ocultar que a mídia se faz presente.
Paralelo a isso, segundo levantamento realizado pelo Colégio Nacionais dos
Defensores Públicos Gerais - CONDEGE (2021), através de processos acompanhados pelas
defensorias, pautando-se em informações fornecidas por defensores, oriundas de 10 estados
brasileiros, 83% dos indivíduos presos injustamente, por meio de reconhecimento de
fotográfico, são negros, sendo que, da quantia total, em 60% dos casos houve a decretação de

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

prisão preventiva, com o menor período de permanência de 24 dias e maior período de 851 dias,
aproximadamente dois anos e 9 meses.
Para Eugenio Raúl Zaffaroni (1989, p. 134):

[...] a carga estigmática não é provocada pela condenação formal, mas pelo simples
contato com o sistema penal. Os meios de comunicação em massa contribuem para
isso em alta medida, ao difundirem fotografias e adiantarem-se às sentenças com
qualificações como “vagabundos”, “chacais”, etc.

Não se pretende afirmar que o reconhecimento é inteiramente pautado na mídia


televisiva, no entanto, há de se ressaltar que influencia tanto no meio social, na criação e
disseminação do perfil, quanto no sistema penal, ao passo que colabora para uma maior
criminalização do povo negro.
Diante disso, realça-se que as atribuições da mídia se dão na criação do perfil de
inimigo a ser eliminado, aumento das chances de condenação e influência no aumento da
população carcerária negra, eis que projetada como um complexo sistema de manipulação da
opinião pública.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante os apontamentos feitos no decorrer da pesquisa, infere-se que os meios de


comunicação social, em especial a mídia televisiva, têm grande influência na sociedade, ao
passo que transmitem informações dos mais diversos segmentos, sendo as questões criminais
um dos assuntos com maior comoção, uma vez que atua diretamente nas emoções, gerando
indignação e medo.
Ressalva-se que não atua sozinha, ao passo que sofre influência do capitalismo e do
racismo estrutural, oriundo do período da escravidão e pós-abolição, onde através do
colonialismo e neocolonialismo instaurou-se a ideia de inferioridade do povo negro, presente
nas relações sociais até os dias atuais. Impende mencionar, que o direito penal é intrinsicamente
ligado às questões raciais, ao passo que colhe dos estereótipos o seu objeto de criminalização e
encontra no negro “corpos dóceis”, para submeterem ao sistema, veladamente, influenciado por
questões político-sociais, já que o estabelecimento do comportamento “criminoso” é definido
a partir dos parâmetros sociais.
A partir disso, ocorre a rotulação criminal, que não necessariamente prescinde de
condenação formal, já que apenas ser semelhante a eles é o suficiente. Depreende-se da mídia

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

televisiva a utilização da imagem dos indivíduos negros como objeto de disseminação do pânico
moral, na qualidade de inimigo a ser combatido, despendendo, inclusive, de discursos
implícitos quanto a sua forma de atuação, resultando na criminalização prévia do indivíduo
racializado.
Deste modo, contribui na construção do estigma social do negro, na sua disseminação
e perpetuação, que resulta na maior atribuição de crimes a indivíduos estigmatizados, que acaba
por reverberar na definição da população carcerária. Porquanto, uma vez verificada a influência
que exerce tanto no meio social, quanto no sistema de justiça, é crível que medidas sejam
tomadas para refrear essa atuação, sem prejuízo da liberdade de expressão, através de debates
e orientações no sentido de prevenir os meios de comunicação quanto ao poder exercido e ao
sistema de justiça no que se refere as fontes utilizadas como meio de prova.
Ademais, por se tratar de um problema social intrínseco a estrutura social brasileira,
deve-se trabalhar não apenas nos meios especializados (jornalístico e jurídico), como também,
por meio da mídia, na disseminação de estudos e matérias que tragam à baila o problema
existente, que há muito tempo tem sido negligenciado.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Revan, 2002.

BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no Capitalismo Tardio. Disponível em:


http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf. Acesso em 13 jun. de 2023.

CENTRO BRASILEIRO DE ANÁLISE E PLANEJAMENTO (CEBRAP). Mídia, sistema


de justiça criminal e encarceramento: narrativas compartilhadas e influências recíprocas.
Disponível em: https://iddd.org.br/midia-sistema-de-justica-criminal-eencarceramento-
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DUARTE, Evandro Piza. Paradigmas em criminologia e relações raciais. Cadernos do


CEAS: Revista crítica de humanidades, Salvador, 2016. Disponível em:
http://bradonegro.com/content/arquivo/12122018_105347.pdf. Acesso em 13 jun. de 2023.

FLORES, Tarsila. Cenas de um genocídio: homicídios de jovens negros no Brasil e a ação


de representantes do Estado. Brasília. 2017. Disponível em:
https://repositorio.unb.br/handle/10482/31045. Acesso em 13 jun. de 2023.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete.


Petrópolis, Vozes, 1999.

148
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

JAKOBS, Günther, MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas.
2. ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007.

MÍDIA DADOS. Mídia dados Brasil 2021. Disponível em:


https://midiadadosgmsp.com.br/2021/. Acesso em 13 jun. de 2023.

REDETV! Alerta nacional: vídeos. 2021. Disponível em:


https://www.redetv.uol.com.br/jornalismo/AlertaNacional/. Acesso em 13 jun. de 2023.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar.


São Paulo: Saraiva, 2012.

ZAFFARONI, Eugénio Raúl. A questão criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

ZAFFARONI, Eugénio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do


sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1989.

149
Capítulo 9

ENCARCERADOS PREVENTIVAMENTE:
O controle do Sistema de Justiça Criminal sobre os corpos negros

Antônio Leonardo Amorim1

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10535488

INTRODUÇÃO

O sistema de justiça criminal opera de modo racial, criminalizando e aprisionando


corpos negros, esse fenômeno se opera desde a colonização do Brasil, período esse em que os
corpos vulneráveis dos escravos eram aprisionados e escravizados.
Mesmo com a superação da escravidão, os corpos negros não deixaram de ser alvo do
Estado, são presos, subalternizados e estigmatizados, com isso, compreender como opera o
sistema de justiça criminal, em especial no momento da decisão da prisão preventiva se faz
necessário.
Vários são os episódios de violência praticado pelo Estado em matéria criminal, no
entanto, ainda que muitos tenham se escondido em discursos retóricos que escodem o racismo,
não deixam de operar de modo preconceituoso e racial, fazendo com que o corpo negro ainda
seja encarcerado.
Exemplo disso, podem ser verificados a partir de diversos episódios, como o do Juiz
da Vara Criminal de Florianópolis que utilizou como motivo determinante para a decretação da
preventiva o fato da acusada ser negra, quando comentou em sua decisão que a acusada é de
“raça ruim, raça malandra, ao invés de trabalhar resolveu obter lucro fácil transportando drogas

1
Professor do curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, Câmpus do
Pantanal - CPAN, Cidade de Corumbá/MS, Doutor em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina,
bolsista CAPES (2022/2023), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017-2019),
bolsista CAPES durante o período do mestrado (2017-2018), Especialista em Direito Penal e Processo Penal
(2017-2018), pesquisador vinculado ao projeto de pesquisa Cárcere e Fronteira. E-mail:
antonio.amorim@ufms.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1464-0319.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

por aí”, essa situação é clara demonstração de que o sistema de justiça criminal tem suas vítimas
preferidas, qual seja, o corpo negro.
Diante disso, essa pesquisa tem o seguinte problema de pesquisa: nos anos de 2020 a
2021 o sistema de justiça criminal brasileiro preferiu o encarceramento dos corpos negros pela
prisão preventiva? A resposta a esse problema de pesquisa se dará pelo método dedutivo, da
pesquisa bibliográfica, analisando as teorias de processo penal no que toca aos requisitos da
prisão preventiva, além da coleta de dados qualitativo na Plataforma Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, analisando a quantidade de presos provisórios no Brasil pelo viés racial.
O objetivo geral dessa pesquisa é analisar se o sistema de justiça criminal opera
encarcerando o corpo negro preventivamente. Como objetivo específico, essa pesquisa
descreverá os elementos necessários para decretação da prisão preventiva, analisará o racismo
no sistema de justiça criminal, por fim, apresentando resposta ao problema de pesquisa
levantado, discutirá o aprisionamento da população negra pelo sistema de justiça criminal.
Essa pesquisa está estruturada da seguinte forma, na primeira seção será discutido
aspectos críticos sobre os motivos decisionais da prisão preventiva, os quais são responsáveis
pelo aprisionamento antecipado dos investigados/acusados. Na segunda seção, será analisado o
racismo no sistema de justiça criminal, discutindo os dados apresentados pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, onde se verifica o padrão racista do Estado brasileiro, que é de encarcerar
corpos negros. Na última seção, será discutido o encarceramento da população negra pelo
sistema de justiça criminal, que opera desde seu nascimento de modo racista e com objetivo de
eliminar os vulneráveis.

2. PRISÃO PREVENTIVA - ASPECTOS CRÍTICOS


DECISIONAIS

A prisão preventiva, também considerada precária, por não ter em sua essência
elementos robustos de comprovação da autoria delitiva (Lopes Jr., 2022), é estruturada pelo
Código de Processo Penal de modo a ser a última alternativa preferida pelo juízo criminal.
Por isso, analisar os elementos responsáveis pela prisão preventiva se demonstra
necessário e imprescindível, para que então possa ser possível compreender os dados do sistema
prisional apresentado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O corpo preto tem sido o
preferido no processo de encarceramento em massa, estruturado pela engenharia do terror
racial.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Na teoria geral das cautelares, verifica-se que a prisão preventiva deve ser a última
medida a ser adotada, motivo pelo qual, não pode o juízo criminal preferir a prisão preventiva,
deve se utilizar de outros elementos, como medidas cautelares diversas da prisão (art. 319, do
CPP), liberdade provisória com ou sem fiança (art. 321, do CPP).
A prisão preventiva é antecedente, não analisa profundamente o mérito da ação, uma
vez que ainda não se estabeleceu o contrário e ampla defesa, já que na maioria das vezes ocorre
na fase do inquérito policial ou em audiência de custódia. Ainda que com elementares mínimas
de autoria e materialidade delitiva, é preciso instruir o processo, sob pena da prisão preventiva
se tornar cumprimento antecipado de pena, situação essa que é vedada pelo art. 313, §2º, do
CPP.
O problema é que no Brasil a exceção (prisão preventiva) tem-se tornado a regra, uma
vez que o sistema de justiça criminal está prendendo sem culpa formada, sucumbindo do
acusado o direito de contraditório e ampla defesa, além de estar desalinhado à homogeneidade.
O princípio da homogeneidade, disciplina que o juiz quando da decisão em cognição
sumária, deve fazer um juízo cognitivo sobre a futura sentença que proferirá no processo, ocorre
que, o processo ainda não foi instruído, a defesa não se manifestou e não produziu nenhuma
prova, com isso, novos elementos (prova/detalhes) que podem surgir no curso da instrução
criminal, podem influir na decisão do julgador, com isso, “no processo penal, assim como na
vida, os detalhes podem fazer toda a diferença, motivo pelo qual devem ser constantemente
monitorados” (Rosa, 2020, p. 17).
Deve ser levado em consideração que todo esse exercício de cognição sumária,
promove no julgador a antecipação do julgamento, o que faz com que o acusado já preveja que
a sentença penal proferida por esse juízo será condenatória, situação essa processual em total
desarmonia com o juízo imparcial ou pelo menos o que se espera dele (Rosa, 2020).
Vale lembrar, que em cognição sumária, o juízo criminal está decidindo apenas com
base em elementos de informação, que são extraídos dos autos do Inquérito Policial, sem
garantia nenhuma de contraditório e ampla defesa ao acusado, em total afronta ao inciso II, do
art. 282, do CPP (Lopes Jr, 2022).
Pontua Alexandre Morais da Rosa (2020, p. 17):

O desafio da cognição judicial imparcial em face da interação processual precisa


dialogar com a noção de dissonância cognitiva. Todos nós buscamos internamente
manter a coerência entre comportamentos, opiniões, crenças e atitudes, a saber, a cada
nova informação advinda do exterior (informação acrescida), precisamos atualizar
nosso conhecimento e, para tanto, realizamos o processo (in)voluntário de
manutenção/modificação das nossas premissas do mapa mental.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Mesmo sendo inegável que o juiz se utilize de argumentos emprestados às suas


convicções, o Código de Processo Penal, estabelece balizas que precisam ser superadas pelo
juiz quando da decisão sobre as medidas cautelares, em especial, quando da decretação da
prisão preventiva.

3. RACISMO NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

A história do Brasil Colônia se inicia com a invasão das suas terras, sendo considerado
uma colônia de Portugal. A colonização nunca se desentranhou das relações sociais e jurídicas
no Brasil, pelo contrário, ainda continuam em plena operação sistêmica (Oliveira, 2021).
Assim, “a fundação de nosso país acontece tendo a escravidão baseada na
hierarquização racial como pilar (Borges, 2019, p. 57), mais que isso, as matrizes que funda o
Brasil são de ideologias racistas, operando a construção do Estado brasileiro baseado na
exclusão de raças (Oliveira, 2021).
Juliana Borges (2019, p. 19) analisando o racismo no sistema prisional, acentua que o
processo de correção utilizado no Brasil é um modelo direcionado de segregação de corpos
pretos, quando comenta que:

Essa população prisional não é multicultural e tem, sistematicamente, seus direitos


violados. A prisão, como entendemos hoje, surge como espaço de correção. Porém,
mais distorce do que corrige. Na verdade, poderíamos nos perguntar: alguma vez
corrigiu? E corrigiu para quê? Os resquícios de tortura, como pena, permanecem;
apesar de, segundo a tradição, a privação de liberdade é que seria o foco punitivo.
Esse processo se enreda da seguinte maneira: 64% da população prisional é negra,
enquanto esse grupo compõe 55% da população brasileira. Em outras palavras, dois
em cada três presos no Brasil são negros. Se cruzarmos o dado geracional, essa
distorção é ainda maior: 55% da população prisional é composta por jovens, ao passo
que esta categoria representa 21,5% da população brasileira.

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022), o Brasil em 2021


ostentava a quantidade de 820.689 (oitocentos e vinte mil seiscentos e oitenta e nove) pessoas
inseridas no sistema prisional brasileiro, dentre os quais, 769.947 (setecentos e sessenta e nove
novecentos e quarenta e sete) são do sexo masculino, sendo que 233.827 (duzentos e trinta e
três oitocentos e vinte e sete) são presos provisórios.
No ano de 2020 de todo o total de pessoas encarceradas, 66,7% eram negros, o que
representava 397.816 (trezentos e noventa e sete mil oitocentos e dezesseis mil) pessoas
encarceradas, no ano de 2021, os dados não são tão diferentes, 67,5% de todos os encarcerados

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

são negros, representando um total de 429.255 (quatrocentos e vinte e nove mil duzentos e
cinquenta e cinco) de todo o sistema prisional (FBSP, 2022).
De acordo com o IBGE (2022), estima-se que no censo de 2022, 46,8% da população
brasileira se autodeclare parda e 9,4% preta, com isso, apenas 56,2% de toda população
brasileira será considerada preta/parda, no entanto, quando a temática é sobre presos, tem-se
um patamar muito superior (67,5%).
Presos provisórios, são aqueles que foram recolhidos no sistema prisional
preventivamente e aguardam julgamento encarcerados, esperando que o Estado julgue sua ação.
Esperam o julgamento de sua ação em uma modalidade de cumprimento de pena antecipado,
pessoas presas preventivamente, sem instrução criminal, em total desarmonia com o sistema
acusatório e garantias processuais.
O Estado de Mato Grosso do Sul em 2021 tinha 5.016 (cinco mil e dezesseis) presos
provisórios, o Estado de Mato Grosso no mesmo ano, tinha 6.588 (seis mil quinhentos e oitenta
e oito) presos provisórios (seres humanos encarcerados esperando julgamento). Nesse sentido,
“caso matenhamos esse ritmo, em 2075, uma em cada 1 em cada 10 pessoas estará em privação
de liberdade no Brasil” (Borges, 2019, p, 19), por isso, a prisão preventiva não se tornar a regra
no sistema prisional, pelo contrário, deve ser a exceção, sempre utilizada em último caso.
O fato do sujeito preto preso em flagrante delito, conduzido perante a autoridade
judicial, para audiência de custódia, tem mais chance de ter a sua prisão convertida em
preventiva do que o branco, nesse sentido, aponta Warat (2004, p. 176) que o cinismo é operado
como forma de agir das relações, transportando isso para o sistema de justiça criminal, verifica-
se que as questões de raça são preponderantes na tomada de decisões:

Onde cinicamente se produzem televisivamente as múltiplas formas de dissuasão do


político-econômico-afetivo, é preciso dar uma olhada em direção ao indizível, o que
não se permite dizer. Em outras palavras: encontrar-se com o que não é permitido
dizer (que no fundo é o inconsistente político) encontra-se com o outro lado da lei. E
esse outro lado, para mim é o novo lugar do "Estado de Direito" e da dogmática
jurídica. Uma nova forma de exercício da cidadania o direito de dizer o indizível. O
direito que o "corpo da lei" receba os seus indizíveis.

A maioria dos casos criminais não são ditos pelos magistrados seus pensamentos sobre
a raça, são raras as exceções em que se utiliza de fundamento racista para encarcerar o corpo
preto. Na próxima seção, será verificado um caso concreto de prisão preventiva decretada por
um magistrado criminal de Florianópolis/SC, que considerou o fator raça como justificativa
para decretação da medida assecuratória.

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Repensar as estruturas de Estado, em especial a do sistema de justiça criminal é medida


mais que necessária, principalmente a de romper com as estruturas racistas que engenham a
aplicação da pena e aprisionamento do corpo negro, mas também é compreender que “o Estado
Brasil é o que formula, corrobora e aplica um discurso e políticas de que negros são indivíduos
pelos quais deve se nutrir medo e, portanto, sujeitos à repressão” (Borges, 2019, p. 57).
Nesse sentido, explica Michelle Alexander (2017, p. 265) que “o modo preciso como
opera o sistema de encarceramento em massa trabalha para aprisionar os afro-americanos em
uma gaiola virtual (e literal) pode ser compreendido mais claramente se olharmos para o sistema
como um todo”. É nesse sentido que o sistema de justiça criminal brasileiro opera, prendendo
corpos negros e vulneráveis.

4. ENCARCERAMENTO DA POPULAÇÃO NEGRA PELO


SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO - A
VULNERABILIDADE DO CORPO NEGRO

Episódios como o do Juiz da Vara Criminal de Florianópolis, que em 15.06.2022,


utilizou do racismo como motivo determinante para a decretação da preventiva, destacando que
a acusada era negra, comentário esse feito em sua decisão judicial, quando mencionou que a
acusada era de “raça ruim, raça malandra, ao invés de trabalhar resolveu obter lucro fácil
transportando drogas por aí”, não é mais comum.
Essa situação é de clara demonstração de que o sistema de justiça criminal tem suas
vítimas preferidas, qual seja, o corpo negro, o qual não sensibiliza socialmente quando vai para
o cárcere.
A população de presos provisórios no Brasil, a cada ano tem aumentado ainda mais,
conforme verificado, no ano de 2021, o Brasil ostentava a quantidade de 233.827 (duzentos e
trinta e três oitocentos e vinte e sete) presos provisórios.
São corpos encarcerados que sem uma sentença penal, cumprem pena no sistema
prisional, sem ao menos terem ideia de como serão suas sentenças penais, e que deveriam ser
presumidamente inocentes, conforme determina o art. 5º, LVII, da CF.
Ainda que poucos sejam os registros de demonstração clara de racismo como
mecanismo de aprisionamento, para Warat (1983, p. 98) o sistema operará de modo que o agir,
sentir e pensar, não serão mais expostos:

155
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

O senso comum estaria, assim, construído por todas as significações que,


reivindicando um valor assertivo, não deixam de ser uma fala adaptada a preconceitos,
hábitos metafísicos, visões normalizadoras do poder, certas tentações de profetismos,
ilusões de transparência e noções comuns apoiadas em opiniões. Em suma, uma fala
adaptada às práticas espontâneas e disciplinares de pensar, agir e sentir.

Os motivos que levam pessoas ao aprisionamento pela via da prisão preventiva devem
obedecer a estrita legalidade, qual seja, o padrão ético de expressões previamente estabelecidas
que justificam motivos seguros do uso da ultimada medida.
Esse modelo de sistema de justiça criminal, que se utiliza como regra do
aprisionamento da população negra, mantém em pleno funcionamento a colonização, ainda
operando o modelo de segregação de corpos.
Entende Soraia da Rosa Mendes (2021, p. 86):

Não se trata de distanciar-se completamente do garantismo, mas de submetê-lo ao


crivo das vozes silenciadas de quem tem liberdade e dignidade humana em jogo
ocupando o espaço reservado à vítima, à ré ou à condenada. Penso, contudo, que já
aprendemos com Foucault que o reconhecimento reflete interesses do sujeito que
conhece e que as verdades ostensivas são informadas por relações de poder. Neste
sentido, vejo a questão das verdades jurídicas como pontos de distanciamento entre
feminismo e verificacionismo.

Pois bem, para chegarmos ao mais próximo de padrão de garantia de direitos, para que
o motivo da raça não seja utilizado como fundamento determinante para o aprisionamento de
corpos, o cumprimento das normas de garantias de direitos fundamentais se demonstra como
imprescindíveis.
É a partir desse padrão, em que garantias de direitos fundamentais são estabelecidos,
com objetivo de promover uma atuação única dirigida pelo Estado, na qual, o motivo da raça
não pode ser levado em consideração no momento da decisão sobre o aprisionamento.
Para tanto, repensar as ciências criminais de modo crítico, compreendendo o papel do
racismo nas relações de poder, com isso, acentua Warat (2004, p. 194):

Desta forma, se verifica que a produção de um saber crítico se encontra norteado pelas
mesmas obsessões da ortodoxia epistemológica, que, a partir de uma interrogação
sobre a cientificidade da ciência, pretende impor normas e critérios em torno da
positividade do conhecimento científico. Assim, o saber crítico, adaptando certos
hábitos epistemológicos consagrados, posto ser dono de um lugar, fora do poder, de
uma verdade indiscutível, com a qual crê poder instaurar um conhecimento, apto para
uma transformação radical do Direito e da sociedade, o que não deixa de ser uma
ilusão, eticamente diferenciada.

156
CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Nesse sentido, quando se verifica pelos dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (2022) que no ano de 2020 66,3% e no ano de 2021 67,5% da população
carcerária é negra, de outro lado, representam apenas 56,2% de toda população brasileira.
Prender é uma escolha, quando o juiz decide pela prisão, o faz de modo deliberado,
até mesmo porque, “a explicação posterior, a saber, pós-decisão, é local adequado para
justificativas consonantes forçadas (viés retrospectivo), ao mesmo tempo em que pode implicar
na tendência à evitação de novos elementos dissonantes, em geral, com viés de confirmação”
(Rosa, 2020, p. 19-20).
Além disso, “o problema é que a construção das razões é de trás para frente, a saber,
do presente para o passado, autorizando que possamos justificar (retoricamente ou manipulando
premissas e fatos)” (Rosa, 2020, p. 21).
Por isso, considerando as expressões aferidas pelos dados apresentados pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (2022) de que 67,5% da população carcerária brasileira é negra,
somado as estimativas do IBGE para o ano de 2022, de que apenas 56,2% da população seja
considerada negro, é clara demonstração de que o sistema de justiça criminal opera de modo
racista, encarcerando a população negra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme se verificou nesta pesquisa, o racismo é motivo determinante na escolha de


quem será aprisionado, por isso, os corpos negros têm sido preferidos pelo sistema de justiça
criminal, ainda que nem sempre isso venha a ser declarado pelo magistrado (verbalizado ou
escrito). O que ocorreu em Santa Catarina, onde o magistrado de modo deliberado expõe sua
opinião racista não é comum.
Pelo contrário, o racismo nos últimos anos está sendo mascarado, isso não significa
que deixamos de ser racistas, mas que o sistema de justiça criminal demonstra claramente que
o corpo negro é o preferido para se prender (os dados demonstram isso).
Um sistema prisional que tem aproximadamente 30% de toda sua população carcerária
formada de presos provisórios, pessoas que não tem qualquer reconhecimento de culpa pelo
Estado, demonstra evidente desejo de aprisionamento pelos magistrados brasileiros.
Do mesmo modo, é a questão racial, quando de todo contingente de presos, 67,5% são
negros/pardos e, de outro lado, a população brasileira nesse mesmo padrão não supera 56,2%,

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

demonstra que o sistema de justiça criminal tem vítimas preferidas, que o corpo negro é objeto
de controle social e de repressão pelo Estado.
Os dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, demonstram que
nos anos de 2020 e 2021, o sistema prisional brasileiro prendeu e segregou preferencialmente
corpos negros e, que no ano de 2021 teve um aumento de 1,2% com referência ao ano de 2020.
Desse modo, é de se concluir que os corpos negros têm sido vítimas do sistema de
justiça criminal, em flagrante construção social de racismo e de encarceramento em massa da
população negra.

REFERÊNCIAS

ALEXANDER. Michelle. A Nova Segregação Racial: racismo e encarceramento em massa.


São Paulo: Boitempo, 2017.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 20 maio
2023.

BRASIL. [CPP]. Código de Processo Penal de 1941. Brasília, DF: Presidência da República,
[1941]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del3689compilado.htm. Acesso em: 28 jun. 2023.

BORGES. Juliana. Encarceramento em Massa. São Paulo: Pólen, 2019.

FÓRUM. Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança


Pública 2022. São Paulo, 2022.

LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2022.

MENDES. Soraia da Rosa. Processo Penal Feminista. Barueri: Atlas, 2021.

MIGALHAS. Em audiência, juiz chama presa de raça ruim: “em país decente perderia poder
do filho”. Migalhas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m0qVKs-
Pu1E&t=65s&ab_channel=Migalhas. Acesso em: 28 jun. 2023.

ROSA. Alexandre Morais da. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction.
Florianópolis: Emais, 2020.

OLIVEIRA. Dennis de. Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica. São Paulo:
Editora Dandara, 2021.

WARAT. Luís Alberto. Dilemas sobre a história das verdades jurídicas: tópicos para
refletir e discutir. Revista Sequência, n. 6, Florianópolis, p. 97-113. Disponível em:

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CRÍTICAS AO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: DEBATES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16922/15492. Acesso em: 28 jun.


2023.

WARAT. Luís Alberto. O outro lado da dogmática jurídica. In: MEZZAROBA, Orides et al.
(coords). Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação
Boitex, 2004.

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