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Marcelo Bortoloci, Di Cavalcanti: modernista popular. Companhia das Letras, 2023.

Di Cavalcanti é sem dúvida um dos mais destacados artistas brasileiros do século XX.
Nascido como Emiliano de Albuquerque Mello, no Rio de Janeiro, em 1987, Di (abreviação
de Didi, seu apelido de infância) Cavalcanti (referência a seus antepassados nordestinos) foi
um dos principais nomes da Semana de arte moderna, ocorrida em São Paulo, em 1922, por
cujo cartaz ficou responsável.

Mas se por um período trilhou caminho semelhante aos dos modernistas paulistas, Di
Cavalcanti não deixou de experimentar bifurcações próprias ao longo do trajeto. Explicitar os
diversos elementos (sociais, políticos e, claro, estético-culturais) que formataram esse
itinerário tortuoso é o grande mérito de Di Cavalcanti: modernista popular, de Marcelo
Bortoloci.

Sem escamotear as muitas contradições do pintor, Bortoloci nos faz passear com
desenvoltura pela vida e pela obra de uma figura que, desde cedo, encampou o desafio de
elaborar uma arte própria, original, “contra muitos adversários, inclusive ele próprio”.

De família abolicionista, outrora relativamente abastada, Di Cavalcanti esteve boa


parte da vida em situação de instabilidade financeira, na dependência de trabalhos
esporádicos ou da benevolência de mecenas como Paulo Prado, herdeiro da elite paulista do
café. Ao mesmo tempo, o interesse precoce pelas classes populares e pelo submundo boêmio
(do Rio de Janeiro ou de Paris) acabou por torná-lo, em 1928, o primeiro dos modernistas a
aderir ao então Partido Comunista do Brasil (PCB).

Com efeitos visíveis sobre a sua obra, o engajamento comunista faria dele um
pioneiro do modernismo nacionalista que daria o tom do debate artístico nos anos 1930. Nem
por isso a militância no “Partidão” esteve isenta de conflitos com a direção da organização,
com sua costumeira desconfiança em relação aos intelectuais. A ruptura, por motivos mais
pessoais do que propriamente políticos, viria em 1937, quando Di Cavalcanti e a esposa
Noêmia Mourão viviam as penúrias do exílio em Paris, para onde foram após dois meses de
cárcere no Rio de Janeiro.

Se na primeira viagem à capital francesa, em 1923, Di Cavalcanti tomara contato com


a efervescente cena artística e intelectual de bairros como Montparnasse e Montmartre, o que
serviu para reforçar as suas convicções modernistas, agora a situação era bem mais
complicada. Após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a França fora invadida pelos
nazistas, obrigando o casal a voltar às pressas para o Brasil em 1940.

O período parisiense tornou a pintura de Di Cavancanti mais soturna e melancólica.


Na bagagem de retorno, ele trouxe também a conversão ao catolicismo. Nunca deixaria de
lado, porém, a preocupação social, bem como a defesa da pintura figurativa - contra, por
exemplo, a arte abstrata do pós-guerra, por ele considerada um desprezo individualista pela
humanidade social.

Nas décadas seguintes, o reconhecimento público e mercantil cobrou o seu preço,


acompanhando-se de uma evidente decadência estética, pela qual não seria perdoado. Prova
disso foi a baixa frequência de pessoas em seu velório e enterro, em outubro de 1976,
monotonia interrompida apenas pela presença indiscreta de Glauber Rocha, que tirou da
cerimônia as imagens para o curta-metragem Di-Glauber, exibido e premiado no festival de
Cannes.

Como se vê em Modernista popular, Di Cavalcanti parecia estar sempre no


cruzamento dos caminhos, equilibrando-se entre posições distintas, quando não antagônicas
entre si. Comunista, católico, moderno que jamais abandonou por completo a tradição,
homem do povo, mas de estilo de vida perdulário, Di Cavancanti se metamorfoseou em
muitos ao longo da vida. Sua obra e sua trajetória são, portanto, um testemunho único das
contradições de um país à procura do seu prometido futuro.

Fabio Mascaro Querido é professor de sociologia da Unicamp

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