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EPISTEMOLOGIA, FORMACAO DE PROFESSORES E PRAXIS EDUCATIVA TRANSFORMADORA Olinda Maria Noronha’ RESUMO: O presente artigo tem como objetivo desenvolver uma retlex8o que nos possibilte pensar quais seriam as relagdes possiveis entre Epistemologia, Formagao de Protessores e Préxis Educativa Transtormadora. Algumas ques- toes emergem de imediato no campo da retlexao: como tratar questdes tao am- plas e complexas? O que se entende por Epistemologia? Qual seria sua fungao na Formagao de Professores? Qual o entendimento que se tem de Formagaio de Professores? Que categorias fundamentais no campo conceitual estabele- ceriam as mediagdes entre estes dois 2mbitos? Estas questies estdo na raiz da. compreensao desta tematica e necessitam, portanto, ser desenvolvidas para que sejam pensacias as possiveis articulagdes entre Epistemologia e Formagao de Professores tendo como mediagao a categoria Praxis. PALAVRAS-CHAVE: Epistemolngia Formacaa de professores. Praxis Educative EPISTEMOLOGY, TEACHER TRAINING AND EDUCATION TRANSFORMATIVE PRAXIS ABSTRACT: This article aims to develop a reflection that enables us to consider the possible relationships between Epistemology, Teacher Training and Education Praxis Industry. Some questions come immediately under consideration: how to deal with issues as broad and complex? What are the ‘mediations between these two areas? These issues are the rool of understanding this subject and therefore they need to be developed in order to make it possible to think over the connections between Epistemology and Teacher Training, having Praxis category as mediation. KEY WORDS: Epistemology. Teacher Training, Praxis Education. + Livre-docente em Historia da Educagao, Professora colaboradora da FEIUNICAMP, pesquisadora do HISTEDBR. E-mail alinda@lesxa com br Recebida em: Margai20t0 Avaliado em: Abrit2010 QUAESTIO, Sorocaba, SP. v 12, 9 £24 jul 2010 Qunosio 12.2 EVines teezn10 112044 6 inca Mara Noronha, uando procuramos identificar as relagdes entre os émbitos acima men- cionados, estamos entendendo, em primeiro lugar, que sem uma funda- mentago consistente, tanto teérica quanto epistemolégica, o professor nao tera condigdes de estabelecer as mediagdes histériea, social, cultural ¢ ética entre os conhecimentos do senso comum presentes nas praticas mais amplas dos alunos e os conhecimentos cientificos, para poder transformé-los em conhe- cimentos socialmente significativos; em segundo lugar, que somente a dimensao tedrico-epistemologica confere ao professor a cepacidade de compreender ¢ atu- ar na dimenso técnica @ didatica, no que se refere & organizagao do currfculo como sintess entre os conhecimentos dos alunos @ das praticas sociais mais am- plas e 0 conhecimento cientifico sistematizado; em terceiro lugar, considerar de modo permanente a formagaio do professores como problema de conhacimento referido a tessitura das relagdes soviais que se desenvolvem no plano estrutural, conjuntural © nas préticas cotidianas do trabalho historicamente constituido. ALGUNS ELEMENTOS PARA A COMPREENSAO DO CONCEITO DE EPISTEMOLOGIA A aproximagao com a tematica nos faz consultar em um primeiro momento 0 sentido etimolégico da palavra “epistemologia’. O termo “epistemologia” deriva do F290 epistheme = conhecimento, ciéncia, ¢ logo = estudo, discurse. Nos dicio- narios filosoficos encontramos a mengao de “Conhecimento, Teoria do” (ABBAG- NANO, 1982) ou ainda "Ciéncia, Conocimiento y Gnoseologia” (MORA, 1977, p. 78), ou também com a derivagao frequente & genética nos dicionarios comuns de Estudo dos postulacos e métodos ds diferentes ramos do saber cien- tific ou das teorias e préticas em geral, avaliadas em sua validade ognitiva, ou descritas em suas traletérias evolutivas, seus paradigmas, estruturais ou suas relagoes com a Sociedade e a historia; teoria da Ciencia. (HOUAISS, 2001) Essas definigdes sintéticas ¢ de uso frequente nao explicitam, no entanto 0 significado da palavra Epistemologia. A Teoria do Conhecimento indicadla pelos Dicionérios de Filosofia pode ser enlendida de modo geral como a investigagao acerca da possibilidade da produ- 80 do conhecimento verdadeiro. A Teoria do Conhecimento afirmou-se como uma disciplina de carater especitico a partir do século XVII, com as retlexdes dos filésofos modemos que colocaram o problema da capacidade humana de conhe- cer. Também por voltar-se para a relagao entre 0 pensamento @ as coisas, entre © entendimento ¢ a realidade, entre 0 sujeito € 0 objeto do conhecimento. No en- QUAESTIO, Soracaba, SP, v. 12, p 5:24, jul 2010 Qunosto 12.REVined 2 ® teezn10 112044 EPISTEMOLOGIA, FORMACAO DE PROFESSORES E PRAXIS EDUCATIVA TRANSFORMADORA = 7 tanto, pode-se dizer que a questo da possibilidade do conhecimento jé era posta desde 0s filésofos classicos, 86 que do ponto de vista da ontologia (conhecimento ou saber sobre 0 Ser como manifestagéo do absoluto nas coisas — aletheia- a metafisica classica tinha como fundamento a crenga de que o pensamento tem 0 poder para conhecer a realidade tal como 6 em si mesma). Abbagnano informa, ainda, que a Teoria do Conhecimento perdeu a primazia e o significado desde que uma certa Teoria do Conhecimento de pressupostos idealistas (0 dado pri- mitivo do Gonhecimento é interior a consciéncia ou ao sujeito) foi contestada foi sendo cubstituida por outra disciplina, a metodologia compreendida como analise das condigées © dos limites de validade dos processos de investigagao © dos instrumentos lingiiisticos do saber cientifico. Segundo Abbagnano (1982, p. 170), A teoria do conhecimento veio @ perder 0 seu significado na filosofia contemporanea e foi substiluida por oulra disciplina, a melodologia, que € a anélise das condigbes € dos limites de validade dos processos de investigagao dos instrumentos linguisticos do saber cientifico, Outra informagéio obtida no dicionario de filosofia de José Ferrater Mora (1977, p. 78), observa que & pergunta € possivel 0 conhecimento? foram dadas respostas radicals. Uma € 0 ceticismo, segundo 0 qual o conhecimento nao & possivel [..] # oulra & © dogmatismo, segundo 0 qual o conhecimento é possivel, mais ainda, «5 coisas Se conhecem lal como se oferecem ao sujeilo. ‘A mesma fonte considera que as respostas radicais nao so as mais fre- quentes na histéria da teoria do conhecimento. O mais comum é adotar variantes moderadas do ceticismo e do dogmatismo com a afirmagao de que 0 conheci= mento 6 possivel, mas nao de modo absoluto. Ainda encontramos na mesma fonte a indicagao de que outros intentaram descobrir um fundamento para o conhecimento que fosse independente de quaisquer limites. Tal ocorreu com Descextes 20 propor 0 ‘Cogito ergo sum’ € com Kant, ao estabelecer 0 que pode chamar-se o ‘plano transcendental’. (VORA, 1977, p. 79) © termo Ciéneia por sua vez apresenta a preocupagao de busca de um "ca- minho metodolégico para se chegar ao conhecimento”; este aparece associado @ um produto de um conhecimento especifico - 0 conhecimento cientifico, pois alguns saberes nao pertencem ao campo da ciéncia, como o saber vulgar; saber, QUAESTIO, Sorocaba, SP. v 12, 9 £24 jul 2010 Qunosio 12.REVines 3 ® teezn10 112044 a inca Mara Noronha, do verbo scire surge articulado ao termo Epistemologia quando se busca acritica do conhecimento cientifico ou o exame dos principios, hipdteses, processos e conclusées das ciéncias buscando provar seu valor objetivo? Consiceramos, no entanto, que todas essas definigdes @ acepgées do que seja epistemologia e ciéncia, encontradas nos dicionarios nao sao suficientes para fundamentar as relagdes entre Epistemolagia ¢ a Formagao do Educador principalmente se temos como pressuposto que esse profissional deve possuir em sua formag&o em sua pratica tanto a dimensao tedrico-epistemolégioa quanto a técnico-cientifica (competéncia como praxis). Esta dupla dimenséo in- torrelacionada potencializa ao educador se transformar em um sujeito histérico que consiga atuar como airigente na pratica educativa, de modo a construir a uni- tariedade entre escola © soviedade fundada no conceito de prdxis historicizada. Esta concepgao de edueador, portanto, em parte ja introduz alguns elemen- tos que demarcam o lugar tedrico do qual estamos analisando a possibilidade das relagées entre Epistemologia e Formagao de Professores. A PRAXIS COMO CATEGORIA FUNDAMENTAL DA EPISTEMOLOGIA E DA FORMACAO DE PROFESSORES Compartilhamos da posigao tedrica de que a praxis é uma categoria funder mental para a construgao tanto de uma Teoria do Conhecimento quanto para a compreensao da Formagao do Educador. Isto porque compreendemos a praxis ‘como 0 conceito central da filosofia que se concebe ela mesma nao s6 como interpretagao do mundo, mas também como guia de sua transformagao. As pers pectivas do ceticismo, do dogmatismo, do realismo acritico e do criticismo néio-re- alista separam teoria © pratica, sujsito © objeto impedindo que sejam produzidas as relagdes que fundam 0 processo de construgéo do conhecimento. A praxis se configura como categoria central na filosofia marxista grams- ciana para a construgao do processo de conhecimento, ao romper tanto com. perspoctiva idealista (0s objetos sao criados pela consciéncia) quanto com 0 materialismo metafisico (0 conhecimento como reflexo dos objetos do mundo ex- terior no espirito humano). A Teoria do Conhecimento fundamente-se, a partir da categoria praxis na atividade prética social dos individuos concretos ¢ historicas mente dados € nao em um sujeito € objeto tomados abstratamente. O conceito de praxis como atividade proclutiva implica na consideragao das relagdes do homem. com a natureza rompendo com a metafisica classica e com 0 antropologismo de 2 Para maiores aprofuncamantas sobre a questao concetva da epistemologia, consutar José Luis Sanfalice (2001). QUAESTIO, Soracaba, SP, v. 12, p 5:24, jul 2010 Qunosio 12.2REViines 4 ® teezn10 112044 EPISTEMOLOGIA, FORMACAO DE PROFESSORES E PRAXIS EDUCATIVA TRANSFORMADORA 9 Feuerbach colocando a atividade prética humana como o centro de uma filosofia da praxis humana? Na Tose 1 sobre Feuerbach, a praxis 6 conceituada por Marx tanto como fundamento da relagéo do homem com a natureza 6 com os outros homens quan- to. como base da relagao sujeito-objeto no plano do conhecimento, sendo coloca da de forma clara como concepgao de objetividade: ‘Afalna capital de todo 0 materialismo até agora (incluso 0 de Feuerbach é captar 0 objeto, a efetividade, a sensibilidade apenas sob a forma de objeto ou de intuigao, e nao como atividade humana sensivel, praxis; 86 de um ponto de vista subjetivo. Dai, em oposigao ao materialism, © lado ativo ser desenvolvide, de um mado abstrato, pelo idealismo, que naturalmente nao conhese a atividade efetiva e sensivel como tal. (MARX, 1978, p. 61) No campo da Teoria do Gonhecimento 0 conceito de praxis assume uma importancia central, pois se apresenta como entério de verdade. Se a pratica se Constitui como 0 fundamento ¢ 0 limite do conhecimento — 0 homem conhece as coisas sob condigdes historicamente dadas — “a pratica nao 6 proporciona o objeto do conhecimento como também o critétio de sua verdade”. (VAZQUEZ, 1977, p. 55) Na Tese 2.sobre Feuerbach podemos encontrar a referéncia a esse conceito: A questo se cabe ao pensamento humano uma verdade objeliva no & tedrico, mas pralico. E na praxis que © homem deve demonstrar a verda- de, asaber, a efetividade e o poder, acciterioridade de seu pensamento. A disputa entre a efetividade ou ndo-efetividade do pensamento isolado da praxis - é uma questo puramente escoléstica. (MARX, 1978, p. §1) E importante lembrar, contudo que esta relagao do homem com a verdade tendo como fundamento a pratica objetiva nao se da de forma mecanica e direta, pois a pratica néo expressa nada por si mesma. O proprio Marx jé alertava sobre a distingao entre esséncia e aparéncia da realidade objetiva quando afirmava que “toda ciéncia estaria de mas, si la forma y la esencia de éstas coincidiesen direc- tamente”. (MARX, 1959, p. 757) 3. Nos Manuscrtos de 1844, Men a tretava da praca como fundamenta da unidade entre homem e natureza; sujetae objeto. Tamém na Ideologia Alea e nas Teses sobre Feuerbach a atvidade humana é tralada ‘coma 0 funcamento de todas a relades da soniabilade humana e cas relapies sujeto-abjeta no plano do cconhecimento, Consuitar a esse respetto Kart Marx (1078); Kal Mark @ F Enges (1076); Kari Manx (Teses conlta Feuerbach, 1978). QUAESTIO, Sorocaba, SP. v 12, 9 £24 jul 2010 Qunosio 12. EVined 5 ® teezn10 112044 10 inca Mara Noronha, Podemos dizer desta maneira que a concepgao de praxis como eritério de verdade introduz uma ruptura tanto com 0 idealismo quanto com empirismo. Isto significa que os pressupostos do qual se parte nao podem ser identificados como algo atbitrério ou atrelados de modo simplista a forma como se manifestam na representagao prépria ou alheia. Além disso, 6 preciso considerar também que os conhecimentos nao existem objetivamente independentes da experiéncia do individuo. E preciso levar em conta neste processo 0 modo como os homens sao coneretemente, como produzem @ como aluam sob condig6es concretas ¢ deter minadas historicamente Esta ruptura 4 apontada por Vazquez (1977, p. 157) quando considera que: ‘a concepgéo de prética como critério de verdade opde-se tanto a uma concepgao idealista co critério de validade do conhecimento, segundo ‘a qual a teoria teria ern si mesma o critério de sua verdade, como uma concepga0 empirica, segundo @ qual a prética proporcionaria de forma Greta e imediata o critério de verdade da teoria. Diante do que foi exposto até o momento, torna-se necessaria uma aproxi- magao maior do que seja praxis do ponto de vista de sua definigao conceitual, para, em seguida, justificar o significado de se colocar a praxis como fundamento da teoria do conhecimento (epistemologia). Comegamos por retomar a distingao feita por Marx e sintetizada por Vazquez (1977, p.185) de que “toda praxis é atividade, mas nem toda atividade é praxis”. (© que Marx quer dizer com isso 6 que a praxis consiste em uma atividade so- cial consciente dirigida a um fim especifico 6 nao uma atividade natural que nao transcende 0 &mbito biol6gico ou instintivo. Marx desteca 0 papel da produgéio de objetos com finalidades no proceso de trabalho, como definidor da agao huma- na. Ao antecipar 0 resultado efetivo, o homem como sujeito hist6rico pode ajustar seus atos como elementos de uma totalidade regida pelo objetivo. ‘Antes de tudo, 0 trabaino um proceso de que participam o homem ea natureza, proceso em que o ser humano com sua propria aga, impul- siona, regula ¢ controla seu interambio material com @ natureza. De- fronta-se oom a natureza como uma de suas Forgas. Pde em movimento 2 forgas naturais de seu corpo , bragos @ pernas, cabega e m&os, a fim de apropriar-se dos recursos dla natureza , imprimindo-nes forma itl & vida humana. Aluando assim sobre a nalureza exteina e modificando-a, ‘20 mesmo tempo modifica sua propria nalureza. (MARX, 1980, p. 202) E-com este sentido que a praxis deve ser compreendida, nao como qualquer atividade, mas como atividade social dirigida a um fim madiacia polo proprio trax QUAESTIO, Soracaba, SP, v. 12, p 5:24, jul 2010 Qunosio 12. EVines 6 ® teezn10 112044 EPISTEMOLOGIA, FORMACAO DE PROFESSORES E PRAXIS EDUCATIVA TRANSFORMADORA 11 balho por meio da qual o homem modifica a natureza, se modifica e modifica os, outros homens, consistindo, pois em uma atividade social e nao individual. ‘Sob esse aspecto podemos encontrar trés categorias fundamentais de pré- xis trabalhadas por Marcovik (1968, p. 25) que possibilitam a ampliagao da ane lise do coneeito de praxis: 1. Transformagao do entomo natural em que vive o homem (conquista ¢ humanizagao da natureza, mociticagao, superagao e criagao artificial de objetos fendmenos de natureza organica e inorgénica, transformagao das condigdes natureis da vida humana). 2. Criagao de cistintas formas e instituigdes da vida humana, des intera- gies humanas, da mitua comunicacao, do trabalho cooperativo, trans- formagao das condigdes socials da vida humana. 8, Auto-ctiagao do homem. Nao s6 0 homem se cria asi mesmo como ser biolégico, como espécie, nao 86 transforma mediante a educagao & aperfeigoamento desta, a outros seres sociais. Como individiuo, 0 ho- mem se transforma em personalidade mediante a aboligao das cistintas formas de alienagao @ 0 desenvolvimento de suas poténcias fisicas, sensoriais, intelectuais emotivas, morais e outras. Como pode ser compreendido, existem varias formas fundamentals de pré- xis, mas 0 que dolimita o conceito de praxis sao as relagdes que se estabelecem entre tooria 6 pratica uma vez que nao existe praxis como atividace puramente material, pois ela supde a elaboragao de finalidades dirigidas a um fim tendo como base, portanto, a produgao de conhecimentos que caracterizam a atividade tedrioa, Esta preocupagao da articulagao da teoria ¢ pratica também pertence a0 Ambito das preocupagdes de Marx (1978, p. 58), que esta expressa na Tese XI sobre Feuerbach, quando demonstra sua preocupagao com a filosofia como praxis: “Os filésofos so limitaram a interpretar 0 mundo diferentemente, cabe transforma-lo” Marx quer dizer com isso que a filosofia om si mesma nao consiste em uma praxis, mas pode se transformar em um “guia ou instrumento tedrioo de transfor magao da realidade, ¢ tomar possivel a transformagao desta’. (VAZQUEZ, 1977, p. 208) A filosofia, na medida em que deixa de ser algo meramente tedrico e se cola- ca aservigo da transformagaio das relages sociais, pode situar-se no campo da praxis revoluciondria. Ao relacionar teoria e pratica coloca implicitas as relagdes que devem ser eslabelecidas entre sujeito e objeto no proceso de construgao do conhecimento. QUAESTIO, Sorocaba, SP. v 12, 9 £24 jul 2010 Qunosto 12.REViines 7 ® teezn10 112044 2 inca Mara Noronha, O significado da praxis como ponto de partida da teoria do conhecimento encontra sua justificativa maior na medida em esta categoria incorpora as outras, categorias chaves que estao na base da epistemologia e podem ser desenvolvi- das de modo metodolégico a partir dela. A partir da consideragao da praxis como categoria fundamental da epistemo- logia ¢ do carater relacional entre sujeito e objeto no proceso de construgao do conhecimento pode-se afirmar que neste processo hé um sujeito historico que se relacionacom 0 objeto construindo e sendo ao mesmo tempo construido por este. O coneeito de praxis implica, portanto 0 conceito de sujeito nao como um ser pas sivo, mas como um ser social que age no mundo com o objetivo de transforma-lo de acordo com um fim. A relagéo dialética sujeito-objeto tem como pressuposto que a teoria se altera no transito com a realidade, assim como esta se altera com a teoria. Em outras palavras, é preciso transtormar a “verdade pratica” (ambito da aparéncia, do fenémeno) em “verdade teérica” (4mbito do conhecimento) para que a primeira adquira um contetido de praxis transformadora. Esta alitude epistemologica que tem a preocupagao de transformar a ‘verda- de pratica’ em “verdade tedrica’ é necesséria de modo permanente para que seja superada a perspectiva pragmatista de redugao da praxis ao mundo da vivéncia espontaneista, Partilhamos neste sentido da analise de Lefebvre (1978, p. 7) a0 considerar que: a sosiabilidade capitalista constréi uma realidade urbana tragmentade, um espago controlado e nesse espago, metodolégica (e episterologi- camente) se instala 0 conto entre o ‘vivido sem conceito’ e o ‘conceito sem vida’. Uns ispensam-se de pensar e outros dispensam-se de viver © vivido sem conceito representa o mundo empirico © esponténeo da vi véncia @ 0 conceito sem vida o mundo da abstracao, do idealismo. A superagéio deste antagonismo é possivel com a compreensao da esséncia (determinagdes histéricas) do modo como a sociabilidade humana é construida sob a logica das relagdes capitalistas. E, portanto no espago definido pela atual reestruturagao produtiva - que cria um espago fragmentado, mas com a aparénoia de certa ha- mogeneidade - que deve incidir a altitude metodolégica fundamental de compre- ensao deste mundo fenoménico visando atingir sua estrutura intama de deter minagées historicas (esséncia). E fundamental neste processo que 0 sujeito nao assuma os pedagos ou os fragmentos independents da realidade como objeto de sua retlexdo & ago, mas tenha em conta como atitude epistemologica a ca- togoria totalidade, desenvolvendo o esforgo teérico-metodolégico de articulagao entre 0 particular de sua experiéncia ¢ 0 geral QUAESTIO, Soracaba, SP, v. 12, p 5:24, jul 2010 Questo 12. EVined 8 ® teezn10 112044 EPISTEMOLOGIA, FORMACAO DE PROFESSORES E PRAXIS EDUCATIVA TRANSFORMADORA 13 A importancia desta atitude prende-se ao fato de que, se por um lado, a vida colidiana constitui a premissa basica e primordial para se fazer Historia (para viver 6 necessério comer, beber, vestir, morar, etc.), constituindo o primeiro fato histérico que tem o significado de produgao dos meios materials necessaries para a cubsisténcia, nas relagdes que se estabelecem com a natureza 6 com os oun ros homens, por outro, representa a possibilidade historica de transformagéio da realidade, pois tao logo as primeiras necessidades estejam satisfoitas, novas ne- cessidades serao criadas. Neste processo, se 0 homem se tornar prisioneiro da ago instrumental © prética de apenas satisfazer suas necessidades imediatas, pode nao enxergar os limites de sua agao nom a esséncia de sua pratica. Por isso podemos dizer que a praxis se constitui na fonte e no limite do conhecimento. Seguindo na construgao do entendimento da praxis como categoria central da epistemologia cabe ressaltar que a ruptura com a compreensao ingénua, fun- dada nes impressdes imediatas do senso comum requer por parte do sujeito uma alitude constante de busca de articulagao entre o particular © o universal, entre © Ambito da existéncia fenoménica e o da esséncia estrutural dos fendmenos. 6 somente a partir de sua atividade pratica que 0 sujeito consegue apropriar-se do mundo na forma de “coisas para si”. Esta apreensao imediata, contudo pode permanecer nos limites de uma atitude pragmética e utilitéria. Para ullrapassar ‘0 mundo da realidade imediata (praxis fetichizada) em que se vive @ chegar as. delerminagdes histéricas do fendmeno, 6 necessério o desenvolvimento da agaio que liga a teoria a pratica € que conduz a investigagao, por melo do processo de conhecimento, ou dito de outra maneira, a passar do concreto empirico ao con- creto pensado, ao conhecimento da “coisa em si’. Este dlesafio, contudo néo é simples de ser enfrentado e superado, pois a maneira como 0 homem se apropria das coisas no interior da ldgica capitalist tende a distorcer os sentidos através dos quais esta apropriagao é feita. A propriedade privada nos torou t&o esttipidos e unilaterais que um objeto somente & nosso quando 0 temas, quando existe para nés en- quanto capital ou quando é imediatamente possuldo, comido, bebido, vestido, habitado; em suma, utlizado por ns...) em lugar de todas os sentidos fisices e espirituais apareceu assim o simples estrannamen- 10 de todos esses sentidos, 0 sentido de ter [..] a formagao dos cinco sentides é um trabalho de toda a Historia Universal até nossos dias. O sentido que é presa da grosseira necessidade praitica, tem somente um. sentido limitado. (MARX; ENGELS, 1983, p. 33, 25) Para romper com 0 émbito da necessidade vulgar da realidade imediata chogar & compreensao do sentido objetivo das coisas 6 necesséria a realizagao QUAESTIO, Sorocaba, SP. v 12, 9 £24 jul 2010 Qunosio 12.REVines 9 ® teezn10 112044 “4 inca Mara Noronha, do movimento dialético que vai da parte para o todo e do todo para a parte: dia lética particular-geral. Este processo consiste no movimento que vai do concreto empitico para o concreto pensado, podendo ser compreendido como ‘© movimento do fendmeno para a esséncia e da esséncia para o fend- meno, da tolalidade para a contradig&o e da contradigéo para a total dade; do objeto para 0 sujeito e do sujeito para 0 objeto |... 0 processo do pensamento nao se limita a transformar 0 todo eadtico das repre- sentagées no todo transparente dos conceites; no curso do processo 0 proprio todo & concomitantemente delineado, determinado e compreen- dido.(KOSIK, 1976, p. 30) Compreender a construgao do conhecimento como um processo que exige esses cuidados metodolégicos constitui uma diretriz epistemolégica de grande alcance e significado para o sujeito, pois apenas mediante o esforgo tedrico € metodolégico que inclui a apropriagao dos fundamentos histéricos da realidade © de como estes elementos se articulam historicamente, expressando os condicio~ nantes daquele momento histérico, 6 que é criado 0 caminho metodolégico para que a esséncia da realidade seja atingida em todas as suas partes constitutivas. E com este significado que Marx (1980, p. 16) faz a distingao formal entre 0 método de investigagao © 0 método de exposiao assim expresso em seus escritos: E mister, sem dévida, distinguir, formalmente, o método de exposicao e © método de pesquisa. A investigagao tem de apoderar-se da matéria em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvol- vimento, e de perquirir a conexao intima que hd entre elas. Sé depois, de concluido esse trabalho & que se pode descrever, adequadamente, 0 movimento real. Se isto se consegue, fioard espelhada, no plano ideal a vida da realidade pesquisada, 0 que pode dar a impressao de uma construgao a prior. O método dialético é distinto, portanto do idealism hegeliano em que 0 pen- ‘samento 6 0 oriador do real, pois para Marx “o ideal no é mais do que o material trangposto para a cabega do ser humano e por ela interpretado”. Difere também. da atitude empirista em que o conhecimento esta dado na realidad, bastando ser registrado, pois fala por si mesmo; ou de uma mistura do tipo "bricolage” em que varias percepgdes do real s&o agregadas de modo inconsequente; ou ainda de uma combinagao mais ou menos ordenada de assuntos que “falem” sobre a lado; ou também com a atitude holistica de percepgao do mundo. Concordamos com Kosik (1976, p. 49) quando atirma que: QUAESTIO, Soracaba, SP, v. 12, p 5:24, jul 2010 Qunosio 12.REVnes 19 ® teezn10 112044 EPISTEMOLOGIA, FORMACAO DE PROFESSORES E PRAXIS EDUCATIVA TRANSFORMADORA 15 o ponto de vista da totalidade concreta nada tem aver de comum com a totalidade holistica, organicista ou neo-romantica, que hipostasia 0 todo antes das partes e efelua a mitologizagao do todo. A cialética nao pode entender a totalidade como um todo ja feito e formalizado, que determi- na as partes, porquanto & propria determinagao da totalidade pertencem a génese e 0 desenvolvimento da totalidade, 0 que, de um ponto de vista metodolégico, comporta a indagagae de como nasce a totalidade © quais so as fontes internas do seu desenvolvimento e movimento. A totalidade nao é um todo j& pronto que se recheia com um contetido, com as qualidades das partes ou com suas relagdes; a prépria totalida- de & que se concretiza e esta consretizagaio nao apenas criagao do contetido mas também criagao do todo. Aatitude metodologica e epistemolégica adequadas para a construgao do processo de conhecimento é, pois, aquela que trabalha com as categorias histori= cidade, totalidade, contradigao ¢ movimento compreendidas no sentido atribuido por Marx, ao expor 0 modo como trabalhou para a explicagao da génese, desen- volvimento e possivel extingéio do modo capitalista de produgao. A FORMACAO DE PROFESSORES COMO PRAXIS EDUCATIVA E EPISTEMOLOGICA Em um segundo movimento de reflexéo, a pretenséo levantar algumas questdes sobre a Formagao de Professors. Diante do que foi exposto até o pre- sente momento em que procuramos entender o papel da praxis como categoria central para a construgéo do conhecimento e para uma epistemologia do que 6 construido como verdade, consideramos ser necessario realizar uma diferan- ciagéio de {undo conceilual entre o que pode ser chamado de uma ‘atividade de formagao de professores’ uma ‘préxis de formagao de professores”; entre uma “atividade educativa’ e uma ‘praxis educativa’. Estes problemas nos levam a pensar que estamos diante da questéio de como construir uma Epistemologia na Formagao dos Professores. Esta indaga- 90 pode ser traduzida na necessidade de se colocar a formagao do professor nas condigées objetivas em que ele se encontra hoje, como problema de conhe- cimento. Esta foi uma das possibilidades sugeridas logo no inicio destas reflexdes. © que, na medida em que a teméttica foi sendo desenvolvida foi adquirindo signi- ficado como diretriz explicativa. Com 0 objetivo de encontrar algumas diretrizes que nos permitam definir ‘com maior precisa esse posicionamento, retomamos a titulo de sintese, algu- mas reflexdes tratadas até o momento, ao mesmo tempo em que indicamos al- QUAESTIO, Sorocaba, SP. v 12, 9 £24 jul 2010 Qusosto 12.2 EVined tt ® teezn10 112044 16 inca Mara Noronha, guns outros elementos constitutivos do atual momento histérico, que afetam a formagao do professor. a) O significado metodolégico de se resgatar 0 pressuposto da anélise mar- xista de que a compreenséo da realidade objetiva n&o ocorre de maneira espon- tanea, imediata, exigindo que 0 conhecimento seja construido nas relagdes que se estabelecem entre teoriaxpratica; sujeito-objeto; particular-universal, b) Oconhecimento & a propria dialética em uma de suas formas, é a decom- posigaio do todo; ) O mundo da aparéncia do fendmeno é resultado da divisaio do trabalho, da sociedade de classes ¢ da hierarquia social que é estruturada a partir da forma capilalista de organizagao do mundo, Para romper com essa praxis fragmentéria @ fotichizada 4 necessério 0 conhecimento dessa realidade como condigao de sua compreenséo e superagao historica; 4) O conhecimento 6 construido pelo sujeito como construgao histérica e social, sendo, portanto criagao @ recriagao de todos os homens. O conhecimento nao deve ser reduzido, portanto a algo externo que se encontra nas normas das politicas sociais ou se limita aos dados codificados nos softwares ou nos manuais, de ensino; e) aaprendizagem do processo de construgaio do conhecimento objetivo tem do ser exercitada desde a infancia como forma de aquisigao dos instrumentos fundamentais de compreenséo da realidade a partir de suas determinagdes his- toricas, para que se tomem possiveis agdes que tenham a perspectiva historica de transformagao da realidade social. Esse conheoimento, por sua vez, nao pode ser reduzido ao cliché ja desgastado pelo uso inadequado, comumente carac- terizado como “saber socialmente acumulado”. Pois conhecimento é constan- temente criado e recriado pelos sujeitos concretos ¢ s6 ganha sentido histérico- transformador se vitalizado pela praxis em que alunos ¢ professores sao sujeitos, do proceso de transmissao-assimilagaio-superagao do conhecimento elaborado pelo conjunto dos homens em sua historia concrota:* 1) A ofetividade do conhecimento depende das condigdes historicamente da- das da existéncia dos sujeitos, da subjetividade dos sujeitos ¢ das relagdes que ‘S80 construidas nestas condigdes, pois 0 conhecimento nao existe separado do homem; 9) © desenvolvimento das noves tecnologias advindas das mudangas no mundo do trabalho tende a inverter a relagao sujeito-objeto colocando a tecno- logia como um sujeito auténomo, transformando o sujeito em uma extens&o das novas tecnologias. E preciso sempre perguntar neste processo “quem é 0 sujeito 4 Consulta a esse respeito: Olinda Maia Noronha (2004), QUAESTIO, Soracaba, SP, v. 12, p 5:24, jul 2010 Qunosto 12.REVines 12 ® teezo10 112048 EPISTEMOLOGIA, FORMACAO DE PROFESSORES E PRAXIS EDUCATIVA TRANSFORMADORA 17 que conhece” para que n&o se perca a dimensAo ontoldgica e epistemolagica do processo de constiugao do conhecimento; h) Subentende-se deste modo que o conhecimento est articulado como praxis as necessidades humanas, pols 0 saber é fruto da atividace humana como expressao das respostas as necessidades historicas do homem como sujeito ati- vo e criador de sua historia; i) As mudangas ocorridas no mundo do trabalho @ nas relagdes sociais esto exigindo um ‘novo’ tipo de trabalhador que seja capaz de uma adaptagao rapida (flexivel) ao mundo do trabalho. Esta “novo” trabalhador precisa dominar “novas competéncias” (desenvolvimento de subjetividades que precisam ser construidas 6 reconstruidas para incorporar a intensificagao @ precarizagao do trabalho) @ que representam para a légica do capital a sintese entre o dominio cognitivo geral & os conhecimentos tacitos voltados para resolver problemas praticos do cotidiano (competéncias criativas que sao 0 resultado da relagao entre conhecimento técito ¢ formagao geral rarefeita). Na ldgica do consumo das competéncias nao ha um modelo estabelecido a priori, mas uma combinagao permanente de arranjos fle veis em que aquilo que interessa é a ocupagao que estara disponivel (no ambito da nogao de empregabilidads) © @ posse dos conhesimentos sistematizados que podem representar vantagens compelitivas para a insergao/ exclusao no mercad }) Neste processo perverso acima enunciado toma-se necessario que a ed cagao ocupe também um novo papel mediador: o espago da escola tem que ser 0 lugar em que a pratica possa a ser apropriada pela teoria, pelo aprendizaco inte- lectual e estabeloga uma outra relaggo entre conhecimento técito e conhecimento cientifico para além da |égica da acumulagao imposta pelo capital; k) Ao tomar como ponto de partida que 0 conhecimento é construido no inte- rior de uma pedagogia da préxis bem como a consideracao do professor @ do alu- no como suieitos histéricos que ao mesmo tempo em que séo modificados pelas circunstancias sao capazes de nela atuar, modificando-as, torna-se possivel que uma praxis transformadora possa ser desenvolvida no processo pedagégico de formagao de professores e alunos dentro de uma perspectiva politécnica e nao de modo polivalente, flexivel e adaptavel como propdem as politicas educacionais neoliberais. Politécnico e unitdrio fazem parte do referencial cléssico marxista e gramsciano tendo © proceso de trabalho como mediador 6 principio educativo. Unitério tem o significado de sintese da multiplicidade de conhecimentos mediado pola pratica histérica; ® 5 Sobre esta questa recomendamos a letra de Acacia Zeneida Kuerzer (2007) 6 Para aprofundamento cesta quest recamencamas a lefura de: Kart Max (1986); Kat Mant e Friedroh Engels (1078), Kar Manx e Friedrich Engels (1083): Antonio Gramsci (1082); Lucila Regina de Souza Machado (1689), Paolo Nosela (1992), Gaudénci Frigoto (1208) QUAESTIO, Sorocaba, SP. v 12, 9 £24 jul 2010 Qunosio 12.REVInes 13 ® teezo10 112048 18 inca Mara Noronha, 1) 0 principio do conhecimento unitério (que articula universal ¢ particular; objeto & sujeito; teoria € pratica; objetividade e subjetividade; estrutura e con- juntura; conhecimento tacito ¢ conhecimento cientifico) se constitui como uma epistemologia da formagao de professores em contraposigaio a formagao frag- mentada @ rarafeita que caracterizam os cursos de formagao. PENSANDO AS RELAGOES ENTRE EPISTEMOLOGIA E FORMACAO DO PROFESSOR Foitas estas consideragdes, podemos retomar a questo da formagéo do professor nas condigées historicas atuais come problema do conhecimento, tan- do em conta os desafios que a atual ordem mundial impde como légica e como ideologia. Estamos vivendo hoje uma situagao de grandes cificuldades tedricas em que a perspectiva positivista se junta com a fragmentagao da pés-modernidade mergulhando 0 mundo da investigagao no relativismo © na irracionalidade, em que es posigdes metodolagicas sao confundidas com “estilos de vida’ baseados no selfhumano.? A tecniticagao da sociedade em todos 08 seus niveis tem provocado um. pedagogizacao da vida colidiana. A cada momento surgem novas ne- cessidades de aprendizagem e tais desefios nao tém encontrado gua- rida na forma como se concebe tradicionalmente a tormagao escolar. Fazse necessério dotar as pessoas de uma qualificagéo pedagogizada, aquela capaz de permitir que as pessoas possam encontrar, dentro de si mesmas, porque tiveram e tem os recursos disponiveis, em qualquer momento de suas vides, 08 meios as condigées para sua realizagao cultural, cientifica e tecnolégica. Este seria 0 ideal democratico de edu- cago geral na nova Sociedade tecnicizada. (MACHADO, 1994, p. 457) A "pedagogizacao da vida cotidiana” lem como suporte um tipo de proposta do formagao de professor © do aluno baseada nas competéncias individuais no interior de uma epistemologia da pratica, e do deslocamento dos métodos de ensinar para os métodos de aprender ou de aprender a aprender para cer fiol & politica educacional que vem sendo tragada desde a Conferéncia Mundial sobre Educagao para Todos de 1990 tendo como referéncia histérica os embates pro- duzidos pelas transformagées estruturais @ conjunturais na sociedade atual. 7 Sobre a questao consular Ellen Meksins Wood (1999) 8 A esse respeiio consuitar Olinda Maria Noronha (2002), Helena Costa Lopes de Fretas (2003), Aca Zeneida Kuenaet (1099). QUAESTIO, Soracaba, SP, v. 12, p 5:24, jul 2010 Questo 12.2REVines 14 ® teezo10 112048 EPISTEMOLOGIA, FORMACAO DE PROFESSORES E PRAXIS EDUCATIVA TRANSFORMADORA 19 Os desatios tedricos e epistemoldgicos que se colocam diante do atual quae dro de “incorporagao da ciénoia e da tecnologia na educagao presorita para to- dos independente da atividade de trabalho a ser exercida pela pessoa, visando aperfeigoar suas qualidades basicas” (MACHADO, 1994, p. 451) so enormes, exigindo uma formagao tedrica 6 epistemolégica sélida 9 rigorosa que permita a0 professor a arliculagéo entre 0 conhecimento técito (da experiéncia) € 0 co- nhecimento elaborado ou cientifico (explicito) visando @ superagao dos limites impostos pela sociedade burguesa. Concordamos com Kuenzer (2007, p. 1175) quando afirma que: mesmo com todos os limites impostos pela sua condigao burguesa, S80 0s processos educativos os responsaveis pela elevagao da pratica ao nivel do pensamento, ou, dito de outro modo, sao 0s processos educa- tivos que fazem a mediagao entre a teoria e a pratica. Assim, oferecer possibilidades de acesso em niveis cada vez mais ampliacos a um ni mero cada vez maior de trabalhadores tem conseqiéncias, uma vez que nao na como controlar a energia liberada através da produgao circulagao do conhecimento e da capacidade de andlise critica que este era. Nesta diego vamos encontrar também a reflexéio de Frigotto (1996, p. 95) da qual compartilhamos quando considera que: “As dimensées técnica ¢ didatioa no processo de ensino, para serem efetivas, implicam necessariamente a dimen- sa0 teorica, @ que, sem estas, aquelas podem se constituir em bloqueadores de processos de conhecimentos previamente construidos pelo aluno.” Nao se trata, portanto, de negar 0 cotidiano da pratica do professor caracte- rizando-o simplesmente como o lugar do senso comum (vivéncia), em contraposi= Gao a.uma perspectiva teérico-académica que este deveria adquirir para entender e dar sentido a experiéncia. A pratica cotidiana do professor constitui sem diivida a possibilidade concreta de construgéio do conhecimento e da sintese entre 0 conhecimento tacito 6 o conhecimento cientifico. A prética representa a possi lidade 0 limite de construgéo de uma praxis transformadora na medida em que contém todos os elementos histéricos de afirmagao dos sujeitos no mundo abrin= do a possibilidade de se construir ¢ trabalhar com os conhecimentos socialmente significativos. Ao desenvolver uma pratica pedagégica que consiga superar tan- to 0 ativismo pedagégico quanto o teoricismo vazio @ 0 voluntarismo politico 0 professor pode contribuir para introduzir elementos de ruptura no monopélio do conhecimento, que caracteriza o funcionamento do capitalismo. Esta superagao se da em forma de sintese historica por meio da praxis como categoria central de uma epistemologia da formagéio © como possibilidade de QUAESTIO, Sorocaba, SP. v 12, 9 £24 jul 2010 Qunosio 12.REVines 15 ® teezo10 112048 20 inca Mara Noronha, transformagao das condigées dadas pelas circunstancias. Isto, porque @ cons- trugaio, compreensao € explicagéio dos fatos néio ocorrem nem desde uma pers- pectiva iluminista nem idealista ¢ nem espontaneista, mas pelas relagdes que se estabelecem entre teoria e pratica, entre sujeito ¢ objeto, entre objetividade & subjotividade mediante a praxis. A praxis implica, portanto, na agéo humana critico-pratica que fecunda a compreensao sobre 0 modo como os conhecimentos sao produzidos, sistemati- zadlos, controlados @ distribuidos na sociedade capitalista nao 86 como “Timitagao educativa’, mas, sobreludo como “un proceso historico de apropriagién privada do los saberes sociaimente acumulacios y necesarios para la lucha por el poder social em todas sus dimensiones ¢ imprescindible para el disefio de un proyecto domocratico de sociedad”. (GENTILLI, 1993, p. 15) Gabe ressaltar deste modo 0 significado que 0 concsito de praxis assume para poder reafirmar que a capacidade de dotar de significado ¢ finalidade a atividade prética 6 propria do homem nenhuma forma de saber sistematizado, controlado ¢ codificado em "pacotes” pode prescindir desse momento critico-pra- tico quo imprime as relagdes de retlexdo © apao, teoria o pratica, objetividade 6 subjetividade em um processo de tenséio permanente. Por este motivo, retomamos 0 conceit de praxis como diretriz heuristica para pensar o problema da formagao de professores: Praxis é a atividade concreta pela qual os sujeites se atirmam no mun- do, mociticando a realidace objetiva e, para poderem alteréla transfor- mando-se em si mesmos. E a ago que, para se aprofundar de maneira mais consequent, precisa de reflex20, do auto-questionamento, da teoria: e & a teoria que remete & aga, que enfrenta o desatio de veriti- car seus acertos € desacertos, cotejando-os com a prética. (KONDER,, 1902, p. 115) Na porspectiva da praxis a formagao de professores ganha outro sentido que no 6 aquele contido nas atuais politicas educacionais que substitui o principio de universalidade ¢ de igualdade pelo de eqilidade®, na formagao de professores. Essa substituigao preconiza que: como a educagao média cientitico-tecnolégica e a educagao superior no S&0 para todos, é desperdicio investir na formagao qualificada de professores para os trabalhadores e sobrantes, que provaveimente se- ro clientes dos cursos de formacdo profissional.[..] As atuais politicas de formagao apontam para @ construpao da identidace dle um professor sobrante. (KUENZER, 1999, p. 181-162) 9 Consulta a esse respeito Dermeval Saviani (1986). QUAESTIO, Soracaba, SP, v. 12, p 5:24, jul 2010 Qunosio 12.REVines 16 ® teezo10 112048 EPISTEMOLOGIA, FORMACAO DE PROFESSORES E PRAXIS EDUCATIVA TRANSFORMADORA — 21 Observamos a partir destas reflexdes que temos varios desatios do ponto de vista epistemoldgico, pratico, ético-poliiico & histérico a serem enfrentados no campo da formagao e profissionalizagao do edueador. Todos estes desafios tém como base uma formagao efetiva em que a dimensao tedrica e pratica se fundam om uma sintese que possibilite a construgao dos conhecimentos so- cialmente significativos no ambito de uma permanente tensao dialética entre os conhecimentos produzicos pela experiéncia © os conhecimentos cientificos sis~ tematizados hi a partir de uma foricamente na e pela praxis. Este movimento tornarse possivel nova sintese entre corporeidade € intelectualidade, presente na con- cepgao de competéncia como praxis [..] que embora se realize a partir a l6gica da acumulagao flexivel na perspectiva da unilateralidade, por contradigao, permite recuperar a concepgao de omnilateralidade como um dos fundamentes dos processes de formagao humana. (KUENZER, 2007, p. 1176) Além de uma formagéo que artioule de modo permanente o saber @ 0 fazer, a teoria ¢ a pratica, 0 ambito do conhecimento no plano sdcio-historice imprimin- do historicidade as experiéncias, a agao critico-prética que implica em uma epis- temologia do trabalho docente, é preciso estar atento também a uma ampliagaio da concepgao de educador que esta posta na atual organizagéio da sociabilidade capiltalista, Trata-se de formar um professor que tenha também como objetivo ser dirigente no sentido gramsciano do conceito. Esta caracteristica implica em uma formagao que tenha como fundamento a unitariedade ou organicidade entre es- cola € sociedade que permitiria ao professor desenvolver uma proposta pedagé- gica fundada no conceito de praxis relacional historicizada buscando encontrar a “unidade na diferenga ¢ a diversidade por dentro da aparente identidade”. © Esta perspectiva de formagaio esta fortemente ancorada nas relagdes teorie-pratica que se configuram na experiéncia pratica do professor ¢ se constituem juntamen- te com a teoria no fundamento da praxis. Finalmente é importante considerar nestas reflexdes uma questao/argumen- tagao de Gramsci encontrada em um texto de Nosella (1992, p. 119) que contribui para resgatar © exprossar as dificuldades @ o significado da construgao da unita- riedade como sintese dialética entre a realidade dos alunos ¢ ensino, que pode ser realizadia pela mediagao da agao dirigente do professor: 10 Asse respeito examinar: Antonio Gramsci (1978; 1982). QUAESTIO, Sorocaba, SP. v 12, 9 £24 jul 2010 Qunosio 12.REViines 17 ® teezo10 112048 22 inca Mara Noronha, como produzir a unitariedade enquanto o Estado néo representa a maioria dos alunos? A resposta de Gramsci €: pelo ‘trabalho vivente do professor’. Mas se 0 estado dirige € forma o professor dentro da cultura retrograda da sociedade que ele representa como podera esse professor, individuaimente romper com essa orientagao e restabelecer a Unitariedade entre seu ensino e a realidade objetiva dos alunos? A res- posta é clara: a pratica social e profissional do protessor deverd ser pe- dagogicamente orientada por um outro Estado, paralelo (ou antitético), isto é, pelo Partido mais avangado que representa o mundo do trabalho. Esla passagem de Gramsci reitera a necessidade e a exigéncia da formagao de ditigentes novos ¢ qualificados (no sentido da competéncia como praxis) para que possa ser recuperada a utopia historica de uma sociedade mais igualitéria. No ambito da formagao de professores a realidade historica atual esta colocando, portanto, a necessidade de formagao de um professor com caracteristicas de dirigente, ou seja, daquole profissional que possuia tanto o dominio teérico-epis- temoldgico quanto o técnico-cientifico para que possa avangar na construgaio de agdes pedagogicas comprometidas com a transformagao das relagdes socials. E para Gramsci somente pode haver a formagao deste tipo de dirigente no interior de um projeto de formagao que tenha a praxis como fundamento e sintese da atividade tedrica © pratica. REFERENCIAS ABEAGNANGO, Nicola. Dicionario de filosofi Bosi. S40 Paulo: Mestre Jou, 1982. 2. ed. Trad. e coord. por Alfredo FREITAS, Helena Costa Lopes. Certificagéio docente ¢ formagao do educador: ragulagao 6 desprofissionalizagao. Educago & Sociedade, Campinas, v. 24, n 85, dez. 2003. FRIGOTTO, Gaudéncio. A formagao e profissionalizagao do educador: novos. desafios. In: SILVA, Tomaz T. da; GENTILLI, Pablo (Orgs.). 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