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8/1/2020 . CONT. E ILHAS: €3,70 .

SEMANAL
A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS WWW.VISAO.PT

POUPANÇA IMOBILIÁRIO
AS NOVAS
COMO GERIR APOSTAS
PARA A CLASSE
O DINHEIRO MÉDIA

EM TEMPO
. 2/1AA4/11/2020

ENTREVISTA
KEN FOLLETT
DE CRISE E O REGRESSO
. 29/10

À IDADE
Nº 1400

DAS TREVAS
Nº 1443

O PODER DOS MILIONÁRIOS


MAIS DISCRETOS DE PORTUGAL
VIERAM DO NADA, CRIARAM GRANDES IMPÉRIOS, MAS NÃO GOSTAM DE HOLOFOTES E SÃO
DESCONHECIDOS DA MAIORIA DOS PORTUGUESES. DUAS DESTAS FAMÍLIAS ENTRARAM AGORA
NO CAPITAL DA TVI. AS HISTÓRIAS POR DETRÁS DE CADA FORTUNA

JOÃO EDUARDO
SERRENHO RANGEL
Tintas CIN Grupo Rangel

AVELINO HUMBERTO
GASPAR PEDROSA
Lusiaves Barraqueiro

GRÁTIS
FERNANDO
CAMPOS NUNES
Visabeira

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A EVOLUÇÃO
DUAS OPÇÕES FORÇADA
DE LEITURA DA REVISTA Uma investigadora
portuguesa está a estudar a
Pode escolher resposta dos animais para se
adaptarem às mudanças
como prefere ler provocadas pelo
aquecimento global
a edição semanal: LUÍS RIBEIRO

em formato pdf, Diana Madeira quer saber se as


alterações climáticas podem acabar com
com primazia uma espécie de minhocas marinhas do
género científico Ophryotrocha.
Olhando para elas, uns vermes
para o grafismo, ou minúsculos que mais parecem
centopeias viscosas, é fácil pensar que a

em formato de texto, sua extinção, seja por que razão for, não
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confortável do texto

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Para leitura mais 24 horas seguidas, subindo ao topo três
vezes, perfazendo
do mais de 2 700 metros
confortável dos artigos de altura escalados
ados
do na
também no Yosemite,
em
n vertical. Em 2012,
fez subidas
consecutivas do “El
“E Cap”, da Half Dome
ou caixas completos, e do Monte Watkins,
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elevações do parque,
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basta carregar. me
metros verticais em menos de 19 horas.
oi com David Allfrey,
E dois anos depois,
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Pode escolher o corpo s. N
“El Cap”, em sete dias.
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No México, em
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2015, escalou o Sendero Luminoso –

de letra mais adaptável 500 metros de rochaha no


n Parque
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pen três horas,
Potrero Chico, em apenas
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quando muitas duplas de alpinistas
ao seu gosto p
demoram dois dias, com proteção. ção.

MPRE DIMEN
EMPREENDIMENTO ARRISCADO

NAVEGAÇÃO INTUITIVA Na origem de Free Solo está uma


amizade e a determinação em superar o
► Deslize para navegar que parece impossível. Alex Honnold e o
realizador Jimmy Chin também
entre páginas < ANTERIOR 33 / 102 SEGUINTE >

► Aproxime e afaste
para ver detalhes

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VISÃO
29 OUTUBRO 2020 / Nº 1443

12 Entrevista:
Maria João Gregório

RADAR
16 Raios X
18 A semana em 7 pontos
20 Holofote
21 Inbox
GETTY

22 Almanaque
23 Transições
24 Próximos capítulos
26 Oceano de esperança
50 EUA: o momento da verdade
Com o adversário em vantagem e os EUA numa encruzilhada, Donald
28 Imagens do mundo Trump chegou à sua última linha de defesa, antes da batalha final

FOCAR 32 Ricos e discretos


74 Orçamento nos cuidados A história dos empresários que montaram impérios a partir do nada
intensivos e que, hoje, são alguns dos homens mais ricos do País. Como construíram
o seu império e de que forma mantiveram a fortuna na família

VAGAR
78 Entrevista com Ken Follet 42 Poupança (es)forçada
Face à incerteza de um futuro próximo, a poupança dos portugueses
84 VISÃO Fest Verde aumentou para novos máximos, nos últimos meses. A maior parte do
dinheiro tem sido canalizada para depósitos que rendem perto de zero por
VISÃO SETE cento. Será essa a melhor opção para os aforradores e para a economia?

56 Imagens de um homem controverso


Na próxima semana, Jaime Nogueira Pinto lança um novo livro sobre
António Champalimaud. O autor teve acesso a fontes e a fotografias
inéditas que a VISÃO publica, em primeira mão, nesta edição

62 Casas à nossa medida


91 Guesthouses Depois de anos arredados da construção nova – mais direcionada para a
com muito charme capacidade financeira dos estrangeiros –, os portugueses começam a ter
acesso a edifícios de qualidade, com escala e a preços mais acessíveis

OPINIÃO
8 Mia Couto
10 Mafalda Anjos
Online W W W.V I S A O . P T
Últimos artigos na BOLSA DE ESPECIALISTAS VISÃO
25 José Manuel Pureza
72 Hugo Santos Ferreira
77 José Carlos de Vasconcelos
90 Capicua
114 Ricardo Araújo Pereira Rui Couceiro Manuel Delgado Sara Filipe
EDITOR ADMINISTRADOR HOSPITALAR GESTORA DE COMUNICAÇÃO
Investir nos livros O papel do setor “Diz à tua mãe que
Interdita a reprodução, mesmo parcial, e na leitura privado em tempos eu a amo muito”
de textos, fotografias ou ilustrações sob de pandemia
quaisquer meios, e para quaisquer fins,
inclusive comerciais.
Todos os dias, um novo texto assinado por um dos 28 especialistas convidados

4 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


LINHA DIRETA Correio do leitor

VISÃO História Era uma vez na América


As eleições presidenciais
que se realizam nos Estados
Unidos da América na próxima
terça-feira, 3 de novembro,
são, seguramente, das mais
importantes para o mundo
nas últimas décadas. Nenhum
outro país tem a capacidade de Um trabalho importante
“mexer” com a globalidade do
planeta. Isto porque os EUA que chama a atenção para
se tornaram, no século XX, a
maior potência mundial − e é
“o outro lado” da pandemia
José Oliveira, Odivelas
esse o tema da VISÃO História
que encontra nas bancas. VISÃO FEST
Reconstituímos esse percurso Quero deixar aqui o meu agradecimento
de poder e influência, com pela companhia que me fizeram durante
o fim de semana passado [VISÃO
a ajuda de investigadores e Fest] e congratular-vos pela excelente
historiadores. Lembramos a escolha de palestrantes cujo trabalho
doutrina preconizada por James acompanho através da vossa revista que
Monroe, ainda no séc. XIX, assino há muitos anos e que está cada
vez melhor. Cheguei a ponderar deixar de
que defendia “a América para assinar, caso não tivessem abandonado
os americanos”. Recordamos a o tipo de plástico que era usado nas
intervenção decisiva dos EUA embalagens. Congratulo-vos também
na II Guerra Mundial, o papel por essa mudança. Desejo-vos longa
vida com a atenção e o profissionalismo
do Plano Marshall na afirmação com que têm tratado os assuntos
dos EUA na Europa (por Maria que são verdadeiramente importantes
Fernanda Rollo, professora da e urgentes. Bem hajam.
Fernanda Botelho, Magoito, Sintra
Universidade Nova), a posição
dos americanos na criação de STAYAWAY COVID
instituições internacionais (por Sequência de raciocínio lógico:
Pedro Aires de Oliveira, também da Universidade
U i id d Nova),
N ) a política
lí i externa qualquer cidadão pode ser portador do
coronavírus sem o saber. Portanto, não
Presidente a Presidente (por Bernardo Pires de Lima, do IPRI), o poderio é detetável. Quem sabe estar infetado,
militar (por Carlos Branco, investigador associado do Instituto de Defesa pode auto-sinalizar-se através dum
Nacional) e a rivalidade atual com a China (por Nuno Severiano Teixeira). código, mas é suposto ser obrigado a
Da revista, cuja informação é complementada com mapas e gráficos, fazem confinamento, a não poder circular em
espaço público. Logo, eu serei “burro”,
ainda parte temas como o capitalismo, o sonho americano e o “soft power pois continuo sem ver qual é a alegada
de Hollywood”. Caso não encontre a revista nas bancas, pode encomendá-la “utilidade” da StayAway Covid.
(e recebê-la comodamente em casa) em https://loja.trustinnews.pt/produto/ António Amaral Dias, Lisboa
visao-historia-edicao-61/. Boas leituras!
ANIMAIS
No artigo dos animais [O mal que
lhes fazemos, edição 1441] nada
foi mencionado sobre o maltrato
mais comum no nosso país:
Já nas bancas ter cães amarrados a vida inteira.
António Cruz

Contactos
visao@visao.pt
As cartas devem ter um máximo
de 60 palavras e conter nome, morada
e telefone. A revista reserva-se
o direito de selecionar os trechos
que considerar mais importantes.

NOVA MORADA
FORTUNAS EMERGÊNCIA “MADE IN CORREIO: Rua da Fonte da Caspolima
Os 25 mais ricos CLIMÁTICA PORTUGAL” – Quinta da Fonte,
do País Desafios, soluções, Tecnologias que Edifício Fernão Magalhães, 8,
heróis salvam o mundo 2770-190 Paço de Arcos

6 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


MAPEADOR DE ILHAS

Uma história
quase infantil
POR MIA COUTO

T
odas as tardes, o pequeno Gustavo ia brin- deviam surgir com a bola vermelha que assinala os
car para o jardim público. O pai ficava na programas com cenas de crueldade e de violência
janela vendo-o cruzar a estrada. O filho gratuita. Mas não havia escolha. É difícil cuidar sozi-
herdara dele a congénita inaptidão para nho de um filho, sobretudo naquela idade. Por isso,
ser criança. O menino caminhava com os Gustavo passava horas sentado frente à televisão, os
ombros arqueados, antecipadamente can- olhos escancarados, os pés balouçando sem tocarem
sados. Parecia o outono pisando flores. no chão. A cada dia parecia mais e mais leve. De cada
Não tardava a regressar a casa, o corpo vez que regressava do trabalho, o pai receava encon-
ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO

inclinado para a frente com pressa em trar o filho levitando de encontro ao teto.
fugir da luz. Sentava-se na penumbra da Certa vez, numa rara ocasião em que se demorou
casa, a televisão ligada. Não assistia a programas no jardim, o menino entrou em casa trazendo um
infantis. Sintonizava os noticiários internacionais. embrulho nas mãos.
O pai preocupava-se: hoje em dia, os noticiários – O que trazes aí? – perguntou o pai.

8 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


– É um país – respondeu. havia nação neste mundo que escapasse.
– Um país? Uma noite, ao jantar, o pai pediu ao filho novidades
– Estava no meio do caminho, parece que o deitaram do seu amigo.
fora – disse o menino. – Como vai o embrulho? – perguntou.
– E para onde levas esse país? – quis saber o pai. – Não é um embrulho – reagiu, magoado, o filho.
– Vou levá-lo para a minha cama, deve estar cheio de – É um país e está muito triste.
frio. Gustavo contou, então, o que tinha sucedido no dia
Gustavo deitou-se na cama e ajeitou o embrulho ao anterior. O noticiário tinha aberto com a notícia de
seu lado. Cobriu-o com um lençol, beijou-o na testa e um professor decapitado em França por ter exibido na
contou-lhe uma história. Quando sentiu que o país ti- escola imagens de Maomé. Inesperadamente, o peque-
nha adormecido, o menino fechou os olhos e dormiu. no país ergueu-se do sofá e proclamou: “Aquilo acon-
A meio da noite, o pai escutou vozes, espreitou pela teceu comigo.” Por um momento, Gustavo pensou que
fresta da porta e pareceu-lhe ver um menino a sair da o país se queria apresentar como sendo a França. Não
cama. O menino era negro e falava uma língua que ele era o caso. O professor fora assassinado em França.
desconhecia. O pai teve pena de que a esposa não esti- Isso ele sabia. O que o espantava não era aquela notícia,
vesse ali: desde que ficara órfão de mãe, Gustavo nunca mas a ausência de notícias que ele tão bem conhecia: os
mais convivera com outra criança. Agora, ali estavam cidadãos inocentes que eram, todos os dias, degolados
dois meninos a brincar no mesmo aposento, tornando a por fanáticos religiosos. E tudo isso acontecia no seu
noite mais leve e breve. território.
A madrugada já despontava e o pai voltou a despertar – Não sabia – declarou Gustavo.
com ruídos na sala. Gustavo regressa- – Talvez a televisão não fale
va ao quarto. Trazia ao colo o embru- desses casos, porque não conhece o
lho e conduzia-o de regresso ao leito. Nessa noite, se o pai nome dos falecidos – pensou o país
Irritado, o pai sentenciou: em voz alta. – Vou mandar-lhes a
– Essa porcaria veio da rua, deve estivesse acordado, lista dos que foram decapitados.
estar toda suja. teria visto o seu filho A esse trabalho se entregou o

Determinado, avançou pelo apo-


e o seu amigo país visitante. Dia e noite, ele fez chama-
das telefónicas e ia acrescentando os
sento, recolheu o embrulho, sacudiu a aproximarem- nomes dos sacrificados. O inventário
vigorosamente os lençóis e dirigiu-se se do aparelho de já tinha já duas centenas de nomes
para a porta. quando ele desistiu. Já tinha esgo-
– Vou deitar esta porcaria ao lixo – televisão e a entrarem, tado as suas fontes de informação.
anunciou. um após o outro, Muitos dos assassinados viviam tão
– Não faça isso, pai – pediu o me-
nino em prantos. – Por amor de deus,
no ecrã de plasma. remotamente que apenas a mor-
te sabia do seu paradeiro. Foi isto
pai. Esse é o meu amigo, o meu único Desapareceram que relatou ao seu pai o pequeno
amigo. como se fossem luzes Gustavo. Naquele mesmo momento,
O pai acolheu o pedido. Voltou numa sala anexa, o seu amigo país
atrás, passou o embrulho para as engolidas pelo ávido dormia com a lista fúnebre sobre o
mãos do filho. E viu como Gustavo, retângulo negro peito.
o seu fleumático Gustavo, abraçava o O pai escutou tudo aquilo e pou-
estranho volume nos braços. sou os talheres. O que ia perguntar
– Vem comigo – disse o filho, diri- pedia a suspensão do mundo.
gindo-se ao embrulho. – Vamos ver televisão. – É por isso que não comes? Por estares triste?
E sentaram-se, assistindo ao noticiário internacional. Gustavo não respondeu. Disse apenas que tinha
O locutor falava dos países do mundo, cada um carre- pensado num modo de ajudar o amigo. Ele mesmo iria
gando mais infortúnio do que o anterior. entregar a lista dos massacrados à estação de televisão.
E assim aconteceu durante dias. Gustavo e o seu ami- – É o que pensaste fazer, filho? – perguntou o pai.
go ficavam horas sentados na mesma sala escura, ilumi- – A estação de televisão fica na capital, e eu não tenho
nados apenas pela intermitente luz do plasma. planos de sair daqui tão cedo.
– Vamos esperar até apareceres na televisão – soli- Uma vez mais, Gustavo permaneceu em silêncio.
citou Gustavo ao país, agora seu companheiro de quarto. Despediu-se do pai com um abraço longo e estreito.
Em vão, o pequeno anfitrião e o visitante espreitaram Nessa noite, se o pai estivesse acordado, teria visto o seu
o ecrã à espera de ver imagens do pequeno país, existin- filho e o seu amigo país a aproximarem-se do aparelho
do, sereno e soberano, na sua própria geografia. Até que de televisão e a entrarem, um após o outro, no ecrã de
começaram a duvidar se alguma vez assistiriam a uma plasma. Desapareceram como se fossem luzes engolidas
notícia sobre esse país longínquo e discreto, esse mesmo pelo ávido retângulo negro.
país que agora se sentava numa sala escura, mãos dadas O que sobrou, tombado no chão da sala, foi o papel
com um menino triste. Gustavo tinha, porém, uma es- com os nomes dos degolados. Aquela lista era demasia-
perança: aquela sua televisão era de alta definição. Não do verdadeira para caber na televisão. visao@visao.pt

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 9


OPINIÃO
HISTÓRIAS
DA CAPA
Obscurantismo 2.0 e os quatro
tipos de negacionistas Covid
P O R M A F A L D A A N J O S / Diretora

E
squerda, direita; esquerda, direita – dizer, desde março, as principais indicações
1
eram centenas de militares alinhados da DGS e das autoridades, contribuindo para
a desfilarem impecáveis pela aveni- desorientar ainda mais as pessoas, quando o
da. No meio da parada, só o João não que era preciso fazer era informá-las com o
conseguia acertar o passo. Tropeça- estado da arte da ciência, que também está a
va nos próprios pés, enganava-se no descobrir uma realidade completamente nova.
compasso. Mas na assistência, os pais O terceiro grupo são os negacionistas
do rapaz, orgulhosos do seu rebento, libertários. Aqueles anarquistas tardios, que
bradavam para os outros: “Então, organizem- recusam a obrigação do uso da máscara como
-se! Não veem que estão todos mal?! O João é quem nunca ultrapassou o trauma de ser
que vai bem!” obrigado a comer a sopa em pequenino. Para A capa desta
Esta história de caserna é o que me quem a vida em sociedade só tem direitos e edição mete várias
ocorre quando olho para a crescente vaga nenhuns deveres, e pensar no bem-estar e na figuras: são os
de negacionistas da Covid-19 que, à medida proteção dos outros é algo tão distante como novos grandes
que a fadiga da pandemia se instala, alastra Vénus de Marte. O que importa é o seu umbi- empresários,
nas redes sociais como um vírus devorador go e o que bem o seu dono quiser fazer com discretos e
de neurónios. Vaga esta atrás da qual vão as ele, e os outros que se danem. poderosos.
pessoas que gostam de ser do contra, alguns Esses libertários andam normalmente de
internautas desprevenidos e os adeptos das mão dada com os negacionistas ignorantes.
teorias da conspiração. Eu conheço vários,
estou certa de que o leitor se deparará com
Os que por sistema recusam as conclusões
da ciência, quando as evidências científicas 2
outros tantos. não são inteiramente consentâneas com o seu
Há vários níveis destes negacionistas. conforto ou com a manutenção da sua forma
No topo da escala estão os negacionistas arcaica ou obtusa de fazer as coisas. São deste
alucinados. São os que veem em tudo forças grupo os que também recusam as alterações
escondidas para dominar o mundo, como nos climáticas, como se a ciência fosse uma ma-
maus filmes de ação ou de ficção científica. téria de crença ou de fé. No que toca à Covid,
Os que dizem que tudo isto é muito “suspei- estes negacionistas recusam o perigo do vírus,
to” e imaginam que a pandemia foi obra da alinhando com Bolsonaro e Trump na cantiga
China – um vírus criado em laboratório para da “gripezinha”. Sublinham que a mortalidade
arrasar e dominar de seguida o mundo. Ou os não é muito elevada – coisa que é um facto
que acham que as vacinas em estudo trarão –, sem perceberem que o perigo está na fa- Esta solução de
um chip localizador para nos vigiar e localizar. lência dos sistemas de saúde que geraria uma fotomontagem
Ou que com a Covid só se quer confinar as potencial mortalidade enorme. Desvalorizam fica demasiado
populações para se instalarem antenas 5G os números, comparando-os com outras artificial.
por todo o mundo, torres estas que por sua maleitas, quando estes números têm por base
vez enfraquecem o sistema imunológico do um mundo inteiro que se confinou e planos
indivíduo. Não vamos elaborar sobre os di-
versos estágios de alucinação aqui envolvidos,
de contingência apertados. Nunca param para
pensar na mortandade que seria se deixásse- 3
estarão ao nível dos terraplanistas em matéria mos o vírus à solta, fazendo o seu caminho
de morfologia da Terra. Adiante. sem quaisquer medidas de contenção.
Depois, há os negacionistas chicos-es- Estes negacionistas ignorantes enchem as
pertos. Aqueles que encontram no discurso caixas de comentários, formam grupos “pela
“aqui há gato” a única forma de darem nas verdade” ou “Sairdecasa” e até convocam
vistas, porque no campeonato da inteligência manifestações sem distanciamento e sem
e do bom senso ninguém lhes liga nenhuma. máscaras. Se Portugal e o SNS fossem
Alguns desses, além de dizerem disparates organizados à medida do seu egoísmo, da
vários nas redes, onde lançam o caos com sua desumanização e da sua insipiência,
desinformação, preconceitos e suspeições mereciam uma pulseira branca para as
totalmente infundadas, têm mesmo espaço urgências Covid, que os colocaria algures Vamos optar por
de opinião com amplificação em órgãos de no fim da lista da assistência e das vagas um fundo liso, que
comunicação social. Há neste grupo perfis nos ventiladores. Felizmente, não é. O SNS resulta melhor.
diferentes de pessoas: colunistas patetas e quando nasceu foi para todos, mesmo para É só uma questão
frustrados, mas também médicos, e esses são os idiotas e para quem não faz nada para o de escolher a cor
mais perigosos. Alguns entretiveram-se a des- merecer. manjos@visao.pt que se destaca
mais em banca.

10 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


 
 
moderação.
o.
Seja responsável, beba com moderação

  
 

A casta que dá o corpo único, a cor intensa,


o perfil complexo e singular que respira
perfumes ricos de frutos e flores, o caráter da terra
e as mãos de quem escolhe e aperfeiçoa.
Tudo o que é nobre tem uma origem
e esta é Monção e Melgaço.
Maria João Gregório
Diretora do Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável da Direção-Geral da Saúde

A crença de que os
alimentos são uma via
de transmissão do novo
coronavírus fez com que
muita gente alterasse
comportamentos alimentares,
reduzindo o consumo
de produtos frescos
LUÍSA OLIVEIRA DIANA TINOCO

12 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


S
Se ainda houvesse bilhete de
identidade, este denunciar-lhe-ia o
nascimento em Peso da Régua, há 33
anos. Mesmo que já tenha trocado
essa cidade banhada pelo Douro pelo
Porto desde que entrou na faculdade,
para o curso de Ciências da Nutrição.
Em 2018, assumiu a direção do
programa que se bate por incutir os
e ansiedade, que motivou o padrão no
sentido inverso.
Nessa altura do confinamento, a
DGS publicou um manual sobre
alimentação. Essas diretrizes
mantêm-se ou estão, de alguma
forma, desatualizadas?
Publicámos diversos materiais, porque
havia necessidade de esclarecer a
população em relação a algumas
informações que circulavam nas redes
sociais.
Como por exemplo?
A crença de que os alimentos são
uma via de transmissão do novo
coronavírus fez com que muita
gente alterasse comportamentos
alimentares, reduzindo o consumo
de produtos frescos, como fruta e
hortícolas. Esforçámo-nos também
para ajudar a população a gerir
melhor a alimentação e as compras,
parte do consumidor e, por outro,
reformular os produtos, reduzindo
aqueles nutrientes que gostaríamos
que não estivessem presentes.
Mas esse não é um problema para a
indústria alimentar resolver?
Estamos em diálogo com alguns
setores para incentivar essa
reformulação. Isso vai permitir que,
em 2022, altura em que acabará o
acordo que estabelecemos com eles,
possamos ter os mesmos alimentos no
supermercado, mas com melhor perfil
nutricional.
Esse acordo é transversal ou
identificaram os produtos mais
problemáticos e é sobre eles que
têm trabalhado?
Identificámos aqueles que mais
contribuem para a ingestão de açúcar
e de sal, especialmente nos grupos
mais jovens.
princípios da alimentação saudável aos num contexto em que as idas ao Estamos a falar de quê? Cereais de
portugueses, criado seis anos antes. supermercado estavam condicionadas. pequeno-almoço?
Este cargo obriga-a a deslocar-se uma A mensagem, quer estejamos em Esse é um bom exemplo, mas também
vez por semana a Lisboa, à Direção- pandemia quer não, é sempre a me refiro a iogurtes, leites com
Geral da Saúde (DGS), onde tem mesma? chocolate, batatas fritas e outros
uma secretária repleta de peluches As recomendações em relação à snacks, nectares ou refrigerantes.
em forma de legumes, distribuídos, alimentação saudável são exatamente Quando nos chega a informação de
em tempos, por uma cadeia de as mesmas. que alguns produtos diminuíram a
supermercados. A entrevista decorreu, Não há nenhum alimento mágico quantidade de açúcar ou de sal, é a
porém, numa enorme sala de para acabar com esta doença... DGS que está por trás disso?
reuniões, no último andar deste prédio Precisamente. No entanto, sabemos Houve uma negociação, mas o
na Alameda Dom Afonso Henriques, que uma alimentação adequada é setor também se vai adaptando ao
com vista desafogada para a capital. A muito importante para otimizar consumidor, que é cada vez mais atento
janela esteve sempre aberta, deixando o nosso sistema imunitário. Hoje, e interessado por estas questões.
entrar ar fresco, durante a hora e meia temos mais motivos para manter E houve abertura por parte da
que durou a conversa em torno da um estilo de vida saudável. Mas as indústria?
forma de nos alimentarmos. recomendações que fazíamos antes da Sim, até porque a nossa proposta
Depois de sete meses de pandemia, Covid-19 são exatamente as mesmas. de articulação surgiu depois da
é inevitável perguntar-lhe Quais são as maiores preocupações introdução de um imposto. De certa
como está a alimentação dos do Programa Nacional de Promoção forma, existia a expectativa de que
portugueses? da Alimentação Saudável? as autoridades de saúde pudessem
Na altura em que ainda estávamos em Nos últimos anos, temos insistido avançar com esta medida para outros
contenção social, fizemos um inquérito na recolha de informação para fazer produtos, se não houvesse uma
online e por telefone, pois queríamos um diagnóstico acerca do que os perspetiva de colaboração.
perceber como os portugueses se portugueses comem e definir a melhor Sabemos que os refrigerantes ainda
tinham comportado no período que estratégia de intervenção. Também são a bebida de eleição para grande
mais condicionou a nossa vida. investimos na literacia, através da parte dos portugueses. O imposto
O que mostraram os resultados? criação de um site, nutrimento.pt, teve resultados práticos nesse
A grande maioria reporta ter com informações credíveis sobre sentido?
alterado hábitos alimentares. Metade alimentação. Percebemos, entretanto, Espera-se que esta medida tenha
das pessoas acha que melhorou, que não podemos somente informar e impacto em três áreas: aumentando
consumindo mais hortícolas, mais depois aquilo que está mais facilmente o preço, pode diminuir o consumo;
fruta e bebendo mais água; a outra disponível não ser compatível com a por outro lado, como age sobre a
considera que piorou, aumentando a nossa mensagem. reputação das bebidas e o mal que
ingestão de snacks doces e refeições O que fizeram para resolver isso? podem fazer à saúde, também se
pré-cozinhadas. Começámos a trabalhar nessa área, espera que afete o consumo; e, por
O que motivou reações tão opostas? modificando a realidade nas escolas último, funciona como um incentivo
As pessoas tiveram mais tempo para e nos estabelecimentos de saúde. E à reformulação. Foi nesta última área
planear e para confecionar, o que as ainda passámos a utilizar medidas que tivemos mais resultados, com a
fez melhorar os hábitos alimentares. fiscais que podem, por um lado, redução da quantidade de açúcar em
Mas também houve stresse, incerteza induzir a uma menor procura por algumas das bebidas mais conhecidas,

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 13


para poderem passar para o escalão económico. No entanto, deixámos de
mais baixo do imposto.
Temos quatro ter a passagem de conhecimento de
Mais do que o impacto no escalões de mãe para filha, ao longo de gerações.
consumo? O estilo de vida também condiciona
Sim e, sabendo disto, no ano passado,
imposto, muito o tempo para nos dedicarmos
alterámos o mecanismo do imposto. proporcionais à cozinha, além de que grande
Atualmente, em vez de dois, temos parte dos nossos jovens tem poucas
quatro escalões, proporcionais à
à quantidade competências nesta área.
quantidade de açúcar. Com esta de açúcar. A Ciência já provou que é um
revisão, o nosso objetivo é pressionar padrão alimentar que traz
ainda mais a indústria a baixar esse
Com esta revisão, muitos benefícios. Quais os mais
teor. É que não se trata de um imposto o nosso objetivo é importantes?
para obter receita, mas sim saúde. Trata-se de um modo de nos
Com quantas empresas estão a
pressionar ainda alimentarmos que nos protege, pois
trabalhar? mais a indústria estamos a falar de uma base vegetal,
Assinámos este acordo com as com grandes quantidades de produtos
associações setoriais, que representam
a baixar esse teor. hortícolas, cereais mais integrais e
as empresas. Mas, tendo em conta que Não se trata de água como bebida de eleição. A forma
estamos a trabalhar no açúcar, sal e de confecionar, como os pratos de
ácidos gordos trans, estimamos que
um imposto para panela, também ajuda à retenção dos
podem estar envolvidos mais de dois obter receita, nutrientes. No fundo, são as grandes
mil produtos. recomendações para uma alimentação
O nosso ambiente está menos
mas sim saúde saudável, para a prevenção das
obesogénico? doenças crónicas mais prevalentes
Estamos a fazer um caminho nesse no País, como as cardiovasculares,
sentido, que é longo. Por exemplo, oncológicas, a diabetes ou a obesidade
uma das áreas importantes para nós todos os meios de comunicação. E, por – temos evidência científica muito
são os programas de ajuda alimentar, isso mesmo, conduzimos um estudo robusta a demonstrar que a adesão ao
da responsabilidade do Ministério do de avaliação para aferir se tínhamos padrão alimentar mediterrânico reduz
Trabalho, Solidariedade e Segurança conseguido chegar às pessoas, quais o risco de desenvolvimento destas
Social. Desde 2017 que conseguimos os meios que melhor permitiram patologias.
elaborar um cabaz nutricionalmente levar a mensagem e perceber ainda O ideal era que essa mensagem
equilibrado, para distribuir se a tinham compreendido e, por fim, chegasse aos mais novos. Mas
mensalmente a estas famílias, que se teve a capacidade de modificar de que forma isso se faz, se o
respeita as indicações da roda dos crenças, atitudes e comportamentos. problema, muitas vezes, está nos
alimentos. Os dados já existem, mas ainda não pais e na sua condescendência para
A roda dos alimentos chegou a ser foram publicados. com as crianças?
revista, como estava previsto para Sabe-se que a adesão dos Há fases da nossa vida que são
este ano? portugueses à dieta mediterrânica determinantes e podem ser janelas de
Ainda não aconteceu, nem sequer é baixa. Concorda com o argumento oportunidades. Nos primeiros mil dias
criámos o grupo de trabalho. de que os alimentos que a compõem de vida, conseguimos programar todos
Era importante saber: álcool com são mais caros do que outros, os nossos gostos, paladares e mesmo
moderação, sim ou não? menos recomendáveis? formar a programação metabólica que
Na roda, o álcool tem apenas uma Essa justificação é dada especialmente condicionará toda a nossa vida futura.
menção que remete para um consumo quando se fala de peixe ou azeite, por Foi por isso que no ano passado
sem risco de uma determinada comparação a outras gorduras. No publicámos um manual para pais e
quantidade. que diz respeito às frutas, hortícolas educadores. Queremos investir muito
Entretanto, surgiram outros e leguminosas existem outros mais nestas idades para transformar
estudos que apontam para que obstáculos, como não gostar ou não as crianças em adultos que gostam de
o consumo zero seja a única saber confecionar. Mas considero fruta e hortícolas.
quantidade isenta de riscos. que é possível ter um padrão Mandam-nos ler os rótulos para
Por isso, essa será uma questão mediterrânico a baixo custo. Aliás, não fazermos más escolhas. Qual
ponderada quando fizermos a revisão ele surgiu de uma necessidade de nos a percentagem de portugueses que
da roda. adaptarmos à escassez de alimentos, consegue realmente interpretar o
No ano passado, mais de metade como peixe e carne. Daí que as que lá está escrito?
dos portugueses não atingiu o leguminosas tenham sido introduzidas Cerca de 40% da população não
consumo recomendado de frutas como substituição. consegue, mas em grupos com
e hortícolas e ainda menos no que Não gostam ou não sabem menos escolaridade, o valor cresce
toca às leguminosas. A campanha confecionar?! O que aconteceu aos para 60 por cento. Em alguns casos,
que lançaram no final de 2019 portugueses? a indústria já acrescenta informação
surtiu algum efeito? Sabemos que a baixa adesão se verifica que nos ajuda a descodificar o que é
Talvez tenha sido a primeira vez que essencialmente nas populações mais legalmente obrigatório de constar nas
fizemos uma campanha transversal a vulneráveis do ponto de vista sócio- embalagens. loliveira@visao.pt

14 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


DESCOBRIR AVENTURE-SE
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RAIOS X

Fome longe do zero Apesar das melhorias, o Índice Global


da Fome mostra que vai ser difícil
acabar com este flagelo até 2030

M A N U E L B A R R O S M O U R A mbmoura@visao.pt

Escala de Gravidade
do Índice Global da Fome (IGF)
O IGF é uma ferramenta para medir
e acompanhar de forma abrangente
18,2
Este é o grau de fome em todo
o mundo, o que representa um
37
O IGF deste ano destaca os níveis
alarmantes de fome (o segundo mais grave
a fome a nível global, regional nível moderado e contrasta com do índice) de três países: Timor-Leste,
e nacional. As pontuações baseiam-se a situação grave (28,2) que Chade, Madagáscar. A falta de dados
numa fórmula que considera três se registava há duas décadas. completos deixam também Burundi,
dimensões da fome – ingestão Ainda assim, há ainda um número República Centro-Africana, Camarões,
calórica insuficiente (subalimentação), demasiado alto de pessoas República Democrática do Congo, Somália,
subnutrição infantil, e mortalidade a passarem fome a nível global: Sudão do Sul, Síria e Iémen entre os países
infantil. O índice foi adaptado quase 690 milhões estão em pior situação. O relatório de 2020,
e desenvolvido pelo Instituto subnutridas; 144 milhões de apresentado na quarta-feira, 28, destaca
Internacional de Pesquisa de Políticas crianças sofrem de raquitismo; que, “em muitos países, a situação está a
de Alimentação, dos Estados Unidos 47 milhões de crianças sofrem melhorar lentamente”, mas ainda háalguns
da América, e publicado pela primeira de emaciação (perda de massa casos em que está a piorar. As projeções
vez em 2006, em conjunto com muscular); e, em 2018, do IGF mostram que há 37 países que não
a Welthungerhilfe, ONG alemã. 5,3 milhões morreram antes conseguirão atingir o objetivo da Fome
Desde 2007, a irlandesa Concern dos 5 anos, em muitos casos, Zero fixado pelas Nações Unidas e que visa
Worldwide. Em Portugal, conta como resultado da subnutrição. atingir níveis baixos até 2030.
com o apoio da Ajuda em Ação.
O IGF classifica e ordena
os países numa escala
de 100 pontos, em que
0 é a melhor pontuação
(sem fome) e 100 é a pior.

≤ 9,9 → BAIXA → 48 PAÍSES


20 A 34,9 → GRAVE → 40 PAÍSES
10 A 19,9 → MODERADA → 26 PAÍSES
35 A 49,9 → ALARMANTE → 11 PAÍSES
≥ 50 → EXTREMAMENTE ALARMANTE → NENHUM PAÍS
NÃO INCLUÍDOS OU COM DADOS INSUFICIENTES

Pontuações do IGF por grandes regiões


42,7

Nos anos 2000, 2006, 2012 e 2020


38,2

36,6
36,0

31,0
29,5
28,2

27,8
26,0
25,4
20,5
18,2

18,5
17,0

15,5
15,0
13,5

13,3
12,0
13,1

11,0
10,4

9,2
9,2
8,4
8,3

7,5
5,8

2000 2006 2012 2020 2000 2006 2012 2020 2000 2006 2012 2020 2000 2006 2012 2020 2000 2006 2012 2020 2000 2006 2012 2020 2000 2006 2012 2020

MUNDO AMÉRICA LATINA EUROPA ÁSIA OCIDENTAL ÁSIA ORIENTAL SUL DA ÁSIA ÁFRICA
E CARAÍBAS E ÁSIA CENTRAL E NORTE DE ÁFRICA E SUDESTE ASIÁTICO AO SUL DO SARA

16 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


APOIAR A CULTURA
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7
PONTOS DA SEMANA

POR
RUI TAVARES GUEDES*
GETTY IMAGES

UM VOTO NA FLÓRIDA
PODE MUDAR O MUNDO?
Querem um bom exemplo para per- tem dúvidas de que muita coisa
ceber como as eleições para a presi- teria sucedido de modo diferente.
dência dos Estados Unidos da América Sabemos, por exemplo, que os EUA,
são, de facto, realmente importantes então a única superpotência global,
para o mundo? Recuem até ao ano teriam enveredado por um caminho
2000, àquela época de “paz e abun- completamente diferente em matéria
dância” em que alguns adivinhavam o de ambiente e liderado o mundo no
“fim da História”. A época em que se combate às alterações climáticas. Tudo
consolidava, aparentemente, o triunfo o que Al Gore fez depois dessa derrota
dos sistemas democráticos ocidentais não deixa margem para grandes
sobre os escombros da antiga União dúvidas sobre qual teria sido o seu
Soviética, em que se iniciava a gran- caminho nessa matéria. E o mundo
de revolução tecnológica e em que a estaria, hoje, certamente melhor, sem
União Europeia era o “clube” para o tantos anos perdidos pelo caminho.
qual todos queriam entrar. Sabemos também que os EUA, com Al
Nesse ano, numas eleições Gore no comando, teriam continuado
presidenciais com grande polémica a apoiar o papel das Nações Unidas
na contagem dos votos – e que serão, e promovido o multilateralismo nas
certamente, muitas vezes recordadas grandes decisões internacionais, até
nos dias a seguir ao próximo 3 de como forma de cimentar o domínio
novembro –, Al Gore ganhou no voto americano, em vez de embarcar em
popular (tal como Hillary Clinton em aventuras como a invasão do Iraque,
2016), mas perdeu para George W. sem a concordância da ONU – como
Bush no Colégio Eleitoral, depois de o fez George W. Bush, ateando um
Supremo Tribunal ter ordenado o fim incêndio que deixou toda a região
da recontagem dos votos na Flórida. num caos, que ainda hoje continua e
Sabemos o que aconteceu aos EUA e que ninguém sabe quando terminará.
ao mundo depois dessa eleição. Não Em 2000, a diferença de uns poucos
sabemos, no entanto, o que poderia ter votos na Flórida mudou o poder nos
acontecido se Al Gore tivesse mesmo EUA e teve um impacto tremendo
chegado à Casa Branca, após os oito em todo o mundo. Em 2020, grande
anos passados como vice-presidente parte da sorte do planeta está também
de Bill Clinton. dependente do que os americanos
Não sabemos, com rigor, o que decidirem. Com consequências
poderia ter acontecido, mas ninguém marcantes para o futuro.
*Diretor-executivo
rguedes@visao.pt

18 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


1 889
NÚMERO
FRASE

Fico literalmente doente só de pensar


que podemos ter mais quatro anos
Ventiladores no deste abuso e destruição das instituições,
Serviço Nacional
de Saúde, mais 747 e de estragos às nossas normas e valores”
do que em março Hillary Clinton, a propósito de uma possível reeleição de Donald Trump
O Ministério da Saúde
prevê um agravamento
de novos casos da
Covid-19, com um REINO UNIDO
pico previsível a 4 de
novembro, dia em que, O exemplar
segundo a ministra,
Marta Temido, se
Marcus Rashford
calcula que possam É um dos futebolistas
estar internados 2 634 mais bem pagos do
doentes em enfermaria planeta, um dos jogadores
e 444 em unidades de mais admirados no Reino
cuidados intensivos. “A Unido e, aos 22 anos, já
situação em Portugal é sabe como usar o seu
complexa, é grave”, disse poder e influência em
Marta Temido ao revelar prol de causas ainda
as projeções do Instituto mais importantes do que
Nacional de Saúde TENSÃO os golos que o tornaram
Ricardo Jorge. Para conhecido no Manchester
combater a pandemia, Duelo aceso entre Macron e Erdogan United e na seleção
ela afirmou que, face inglesa: desde há meses,
Aliados na NATO, mas cada vez mais inimigos na vida real,
a março, existem Marcus Rashford é o
o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o seu homólo-
atualmente mais rosto e o “líder popular”
go turco, Recep Tayyip Erdogan, têm aproveitado todas as
548 médicos e 1 727 da campanha para
oportunidades para se atacarem mutuamente, ao longo dos
enfermeiros no SNS. garantir refeições grátis
últimos tempos. Já foi assim com a guerra civil na Líbia, com
nas escolas a todos os
o conflito em Nagorno-Karabakh e com as disputas maríti-
alunos desfavorecidos.
mas no Mediterrâneo Oriental. Agora, a tensão subiu para
De certa maneira, tendo
níveis nunca vistos, depois de Macron ter defendido o direito
PA N D E M I A em conta o impacto que já
à publicação de caricaturas de Maomé, levando Erdogan a
causou, ele é também um
Máscara apelar ao boicote aos produtos franceses, no que foi acom-
panhado por muitos países árabes. Ambos, no fundo, tentam dos principais rostos da
até aos Reis capitalizar o duelo a seu favor: Macron a mostrar-se como
líder dos valores europeus e Erdogan a assumir-se como
oposição a Boris Johnson,
conseguindo, ao mesmo
Depois de tantas líder dos países islâmicos. Até quando? tempo, angariar milhões
(e por vezes inúteis) de libras, juntamente com
discussões sobre a sua a organização FareShare,
eficácia, as máscaras para assegurar refeições
SAÚDE
passaram a ser, às crianças. “Isto não é
finalmente, encaradas
como um dos elementos
O declínio da gripe política, é humanidade”,
reagiu Rashford, depois
principais no combate Um estudo publicado na 298 120 casos e 812 mortes, de o Governo de Boris
à pandemia, um pouco revista científica Lancet com- em 2019. Números seme- Johnson ter chumbado
por todo o mundo. Em provou aquilo de que muitos lhantes foram encontrados a sua proposta de
Portugal, são agora suspeitavam: este ano, também no Chile e na África garantir refeições às
obrigatórias, durante quase não houve gripe no do Sul. Qual a explicação para crianças durante as férias
um período de 70 dias, Hemisfério Sul − o que são, isto? Os cientistas acreditam escolares.
para todos os maiores naturalmente, ótimas notícias que sejam as medidas usadas
de 10 anos. Contas para o Hemisfério Norte. para combater a Covid-19,
feitas, vamos ter de usar Na Austrália, por exemplo, como o maior distanciamento
máscara no Natal, registaram-se apenas 21 social, a maior higienização
no Ano Novo e até 156 casos e 36 mortes, uma das mãos e o incremento no
ao Dia de Reis. enorme diminuição face aos uso de máscaras de proteção.

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 19


HOLOFOTE

Lewis Hamilton Histórico em Portimão


O PILOTO BRITÂNICO
Talento precoce E a distância,
Lewis Hamilton senhores?
quase parece ter
vindo ao mundo TORNOU-SE O PRIMEIRO Mas não foi só
pelo novo recorde
com um volante
nas mãos. Desde
A CONSEGUIR 92 de Hamilton
que o regresso
muito cedo que
este britânico,
VITÓRIAS EM CORRIDAS da Fórmula 1 a

DE FÓRMULA 1,
Portugal chamou
nascido a 7 de as atenções.

Lugares
janeiro de 1985
em Stevenage, PERMITINDO QUE Recordes
Numa época
completamente
com história
Portugal não é,
Reino Unido, brilha
nas corridas. Foi PORTUGAL VOLTASSE e causas
Foi também por um
atípica, por causa
da pandemia, o
definitivamente,
um país
campeão em
quase todas as
A SER PALCO DE ponto que, no ano
seguinte, chegou
campeonato só se
iniciou em julho,
umbilicalmente categorias por que UM GRANDE FEITO ao título mundial, o será o mais curto

NA HISTÓRIA DO
ligado à Fórmula 1, passou e chegou primeiro de seis que dos últimos anos
mas a verdade é à Fórmula 1 com já leva no currículo e e as corridas
que foi em solo
português que
apenas 22 anos,
em 2007. Nesse AUTOMOBILISMO que fazem dele o se-
gundo mais titulado
começaram
por não contar
se registaram ano, bateu o da história, à frente com público
MANUEL BARROS MOURA
dois momentos recorde de piloto de Juan Manuel Fan- nas bancadas.
marcantes com mais pontos gio. Este ano, tudo se O circuito de
da história da na época de estreia encaminha para nova Portimão foi
modalidade. (109) e só não vitória no mundial apenas o quarto da
Em 1985, foi no foi campeão do de pilotos, o que lhe temporada a poder
Autódromo do mundo por um permitirá igualar a ter assistência.
Estoril que o mítico ponto, e por causa melhor marca de Estiveram
Ayrton Senna de uma avaria na sempre, que é ainda previstas 45 mil
venceu o primeiro última corrida da de Schumacher. pessoas, mas
Grande Prémio temporada. Um registo notável o agravamento
da sua carreira. para aquele que con- da situação
Agora, depois de 24 tinua a ser o único sanitária obrigou
anos de ausência, piloto negro a singrar as autoridades a
com o regresso da na F1. Um “recorde” reduzir a lotação
Fórmula 1, desta de que não gosta, máxima para 27,5
vez no Circuito de mas que faz questão mil lugares. Ainda
Portimão, o nosso de usar para se bater, assim, as imagens
país volta a ser pública e ativamente, mostram inúmeros
palco de um feito pelos direitos da casos em que o
único: o britânico comunidade negra e distanciamento
Lewis Hamilton contra o racismo. físico parece não
conseguiu, ter sido respeitado,
ao volante de o que fez surgir, de
um Mercedes, imediato, um coro
conquistar a de críticas.
92ª vitória em
Grandes Prémios,
ultrapassando
a marca que
pertencia ao
alemão Michael
Schumacher.

20 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


INBOX

M O D É S T I A À PA R T E
Fui
Nunca caímos
na tentação
perseguida
de ostentar um por um ovni.
estilo de vida
de estrelas rock Tenho a
FERNANDO RIBEIRO
O líder dos Moonspell
acha que “muitos
colegas não se
certeza do
geriram tão bem e
estão aflitos” com os
efeitos da pandemia
que vi. Mas
também
pode ter sido
da erva que
fumei...
MILEY CYRUS
Putin foi apanhado Cantora conta que viu
algo que parecia
com uma arma “um limpa-neves voador”
fumegante apontada
à minha cabeça
e, depois de falhar
o alvo, disse: FRASE DA SEMANA
“Não fui eu”
ALEXEI NAVALNY
O líder da oposição na Rússia Os homossexuais
continua a acusar o Presidente
russo de ser o mandante
do ataque com a substância
têm o direito de
neurotóxica Novichok
de que foi alvo
C H O Q U E F R O N TA L
constituir família.
São filhos de Deus
PAPA FRANCISCO
O Governo devia ter Sumo pontífice defendeu a necessidade
de “uma lei de união civil” para defender
forte coragem para os casais do mesmo sexo
fazer um plano de
inverno não centrado
na Covid-19
JORGE TORGAL
O médico especialista em No dia em que se Um bandido
saúde pública frisa que “o mais
preocupante são as outras dedicar à medicina, será sempre um
patologias sem resposta” Frederico Varandas bandido. E, no final,
presta um grande será recordado
serviço ao Sporting como um bandido
As festas nos clubes JORGE NUNO FREDERICO
noturnos acabaram! PINTO DA COSTA VARANDAS
Presidente Presidente
STEFAN LÖFVEN do FC Porto do Sporting
O primeiro-ministro da Suécia
anunciou a limitação
a 50 pessoas nas discotecas

Fontes: Interview Maganize, O Jogo, Blitz, CNN, Público, Diário de Notícias, The Independent
29 OUTUBRO 2020 VISÃO 21
ALMANAQUE

NÚMEROS DA SEMANA

22
A Humanidade consumiu, nos
últimos 70 anos, mais energia
do que nos 12 mil anteriores
com uma “mudança radical”
que começou na década de
1950. Pelos cálculos do Grupo
de Trabalho do Antropoceno
da União Internacional
de Ciências Geológicas,
o consumo de energia desde
GETTY IMAGES

a segunda metade do século


XX atingiu 22 zetajoules
(o equivalente à energia
libertada pela explosão de 275
milhões de bombas atómicas),
por comparação com 14,6
zetajoules consumidos entre
o fim da última era glacial
Amazónia arde sem parar
Já houve mais incêndios este ano na parte brasileira da região do que
e 1950.
em todo o ano passado. Mas Bolsonaro diz que são “falsas narrativas”.
Segundo ele, “floresta tropical não arde”

€7 milhões
O ministro da Educação,
A Amazónia brasileira concentrou, de
janeiro até ao passado dia 22 de outubro,
89 604 focos de queimadas, ultrapassando,
central do Brasil responsável pelas políticas
de proteção ao meio ambiente, mandou
retirar os cerca de 1 400 bombeiros que in-
Tiago Brandão Rodrigues, nesse dia, o número de incêndios registados tegravam as suas brigadas contra incêndios,
anunciou na quinta-feira, 22, em todo o ano passado (89 176), segundo alegando falta de recursos. Isto porque, o
um investimento adicional de dados do Instituto Nacional de Pesquisas ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles,
sete milhões de euros para
Espaciais. Em 2019, o número de incêndios vem reduzindo gradualmente os recursos
garantir máscaras e outros
na Amazónia brasileira já tinha sido em do Ibama desde o ano passado e chegou a
equipamentos de proteção
30% superior aos de 2018, de acordo com anunciar a sua intenção de o fundir com
individual às escolas,
no segundo período letivo. dados de satélite recolhidos pelo mesmo outros órgãos ambientais. Enquanto tudo
organismo governamental. Se esta não fosse isto acontece, o Presidente, Jair Bolsonaro,
já uma situação dramática, mais assustadora classifica como “falsas narrativas” as in-

11 mil
fica quando se sabe que ela é conhecida no formações sobre os grandes incêndios que
momento em que o Instituto Brasileiro do devastam a Amazónia e o Pantanal, e afirma
Meio Ambiente (Ibama), órgão do Governo que “a floresta tropical não arde”.
Mais de 11 mil casos de
violência doméstica foram
registados pela PSP nos
primeiros nove meses do
ano, segundo dados hoje V I S I TA N T E AT E N T O
divulgados que apontam para
uma diminuição de cerca
de 9% face ao mesmo período
Quadro perdido de Jacob Lawrence
do ano passado. encontrado 60 anos depois
Uma pintura de Jacob Lawrence que não era vista em público

2 700%
O número de deslocados
há 60 anos, foi encontrada, a tempo de integrar a exposição de
30 peças da obra do artista americano que está, por estes dias,
patente no Metropolitan Museum of Art (Met), em Nova Iorque.
A exposição da série Struggle: From the History of the American People, completada em meados
internos em Moçambique dos anos 50 pelo pintor negro, está, desde o passado dia 29 de agosto, em exibição no Met, com a
cresceu 2 700% em dois anos peça desaparecida, conhecida como painel 16, representada por uma moldura vazia. E foi um visi-
e representa hoje 1,4% da tante que se lembrou, ao ver a exposição, de que uns vizinhos seus tinham em casa uma pintura de
população do país, destaca Lawrence. Suspeitando de que poderia tratar-se da obra em falta, encorajou os proprietários a con-
um relatório do Centro tactarem o museu de Nova Iorque. Confirmou-se que o quadro fazia parte desta série e, de acordo
de Integridade Pública, com o New York Times, já foi acrescentado à exposição, que está patente até dia 1 de novembro, e
ONG moçambicana. juntar-se-á, em 2021, à exposição itinerante que o Peabody Essex Museum vai organizar.

22 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


TRANSIÇÕES

VITÓRIA
O ciclista Ruben Guerreiro,
da equipa Education First,
tornou-se o primeiro
português a vencer o prémio
da montanha numa das três
grandes voltas ciclísticas
do mundo, garantindo a
camisola azul do Giro de
Itália, prova que decorreu
durante três semanas
e terminou no domingo,
25, em Milão. Inédita foi
também a classificação
de João Almeida, da
Deceuninck-QuickStep.
O português foi quarto
classificado na geral, o
melhor lugar alguma vez
conquistado por um ciclista
nacional numa grande volta,
e passou 15 etapas com a
camisola rosa de líder.

MORTES LEE KUN-HEE 1942-2020

Um visionário com estilo eremita


O vice-presidente do
Bundestag (parlamento
alemão), Thomas
Oppermann, morreu no
domingo, 25. O político
tinha 66 anos de idade e Terceiro filho do fundador do grupo Samsung contribuiu
era uma das principais para a ascensão e globalização da marca sul-coreana, ao mesmo
figuras do SPD, o partido
social-democrata alemão.
tempo que se tornava o homem mais rico da Coreia do Sul
Colapsou de forma súbita, Nos últimos seis anos pouco se soube construção de navios. Durante a sua
antes de fazer uma do estado de saúde de Lee Kun-Hee, liderança, a faturação total da empresa
intervenção na estação internado em Seul, após ter sofrido chegou a equivaler a um quinto do
televisiva ZDF. um ataque cardíaco. Já nos anos 1990 produto interno bruto da Coreia
do século XX, o magnata sul-coreano do Sul. Em paralelo, o empresário
A Imprensa britânica
lutou contra um cancro nos pulmões. também ascendia ao estatuto do
noticiou, na sexta-feira, 23, A causa da sua morte no domingo, 25, homem mais rico da Coreia do Sul,
a morte de Ebbe Skovdahl, aos 78 anos, também não é conhecida. com uma fortuna estimada em €17,5
antigo treinador de futebol Para Moon Jae-in, Presidente sul- mil milhões, segundo a Bloomberg.
do Benfica, aos 75 anos. O coreano, Lee Kun-Hee “liderou o Em 1996, ano em que se tornou
dinamarquês representou crescimento económico da Coreia membro do Comité Olímpico
o clube da águia em 1988 e do Sul transformando o negócio de Internacional, foi condenado por
contabilizou 11 vitórias em semicondutores na principal indústria ter subornado o ex-Presidente sul-
17 jogos. do país”, escreveu numa carta coreano Roh Tae-woo; em 2008, a
endereçada à família. Terceiro filho condenação repetia-se e acrescentava-
de Lee Byung-Chul – que, em 1938, se a acusação de evasão fiscal. Nunca
Morreu Haji 'Abdul' Azim, fundou o grupo Samsung, inicialmente chegou a ir para a prisão, pois recebeu
o segundo filho do sultão do pensado para a comercialização de perdões presidenciais. Em 2014, com
Brunei, Hassanal Bolkiah. peixes, frutas e camarões –, Lee a passagem da liderança da Samsung
O príncipe, de 38 anos, Kun-Hee tornou-se presidente em para as mãos do seu filho varão, Jay
morreu no sábado, 24. 1987, já a marca assumia a posição de Y. Lee, não terminaram os escândalos
Embora as autoridades não maior conglomerado da Coreia do de corrupção. Jay Y. Lee foi detido,
revelem a causa da morte,
Sul com negócios tão variados como acusado, condenado a cinco anos de
crê-se que ele estaria a
o fabrico de televisores, smartphones prisão, em 2017, absolvido no recurso
lutar, há vários anos, contra
um cancro.
(maior vendedor do mundo), chips de e libertado um ano depois. Mas o caso
memória e eletrodomésticos, até aos ainda está em curso.
seguros de vida, parques temáticos e Sónia Calheiros

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 23


O CDS prefere
negociar
PRÓXIMOS CAPÍTULOS
com o PSD,
mas admite
ouvir o PS

PERISCÓPIO

BOTÂNICA nós devemos estar,


Graça Freitas, nestes momentos.”
a romãzeira Esperemos que a
No evento promovido romã seja doce!
pela VISÃO, o
VISÃO FEST Verde, SAÚDE
a diretora-geral da Mal o Bloco
Saúde, Graça Freitas, virou costas...
e o ex-ministro das Mal o Bloco de
Finanças, e também Esquerda virou costas
da Segurança Social, ao Orçamento para
Bagão Félix, trocaram 2021, a ministra da
impressões sobre Saúde abria portas
a mútua paixão por ao envio de doentes
botânica. Bagão, do SNS para as
que é dado a fazer camas dos hospitais

LUSA
analogias entre privados. “O SNS
espécies de árvores está preparado para
e figuras públicas, foi isso”, diz a ministra,
ELEIÇÕES NOS AÇORES
desafiado a definir mas vamos lá ver se

CDS quer conversar


que espécie de árvore os privados também
é Graça Freitas. estão preparados.
“Uma romãzeira!”, Entretanto, que
sentenciou o enquadramento
Depois de o PS perder a maioria absoluta economista. “Porque é orçamental terá
nos Açores, uma coligação não chega: é preciso uma árvore delicada, essa medida, para
como a dra. Graça, e fazer face
uma “geringonça” à emergência
porque as sementes
do seu fruto estão da pandemia?...
Os açorianos foram às urnas, no passado domingo, 25, muito unidas, como (Ver pág. 74).
mas, perante o resultado das eleições, tudo ainda está em
aberto. O CDS mostra-se disponível para fazer parte da
solução, mas não vai dar o primeiro passo, adverte uma
fonte da direção nacional do partido, ouvida pela VISÃO.
“A bola não está nos nossos pés”, resume o mesmo dirigente.
Está, portanto, do lado dos sociais-democratas – a segunda
maior força política saída das eleições, com 21 mandatos
– ou no dos socialistas que elegeram 25 deputados dos 57
que constituem a Assembleia Legislativa Regional.
Os centristas estão mais interessados em sentarem-se à JOSÉ CARLOS CARVALHO
mesa das negociações com o PSD; mas o líder do CDS-PP
Açores, Artur Lima, não deixa de parte a hipótese de ouvir o
PS e, quem sabe, repetir a solução de 1996, quando o CDS e
o PS governaram juntos o arquipélago. Outra possibilidade
matematicamente possível é a replicação da “geringonça”
do continente, mas, desta vez, à direita. Sendo que esta TAP
teria de envolver a união de todos os partidos: PSD, CDS
(3 deputados), PPM (2 mandatos, se incluirmos o deputado João Soares é pelo fecho?
Desalinhado, como sempre, o deputado João
eleito em coligação com o CDS, pelo Corvo), Iniciativa
Soares – que foi o primeiro ministro da Cultura de
Liberal (1) e Chega (2). Ainda com
António Costa – partilhou, no Facebook, o excerto
“incertezas absolutas”, esta ideia de uma publicação de Luís Salgado Matos, no
parece pouco provável, depois de blogue O Economista Português, a apelar ao
André Ventura ter assumido que o
O CDS É UM partido – que chegou pela primeira encerramento da TAP: “Uma TAP deficitária é-nos
prejudicial. O Economista Português apela de
PARTIDO vez ao Parlamento açoriano, tal novo ao Dr. Costa: feche a TAP e tente negociar
como a Iniciativa Liberal e o PAN –,
RESPONSÁVEL. não quer “governar com os partidos com a Lufthansa. Para mais, a TAP acaba de
sugerir que não conseguirá respeitar as novas
VAMOS do sistema”. Resta saber se está metas pois voa com apenas 60% da capacidade
disposto a viabilizar um governo
PONDERAR AS de maioria relativa do PS. Coisa ocupada, o que é falência certa.” Afinal, não há
unanimidade, no PS, quanto ao destino da nossa
OPÇÕES que, depois de 20 anos de maioria companhia de bandeira...
ARTUR LIMA, absoluta, seria, para os socialistas,
líder do CDS Açores uma novidade. RRN

24 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


OPINIÃO

Quem vai pagar o empréstimo


dos bancos para financiar
o Novo Banco?
P O R J O S É M A N U E L P U R E Z A / Professor universitário. Deputado do Bloco de Esquerda

Q
uem disse que “o Estado não vai ser tórios; e o Estado está obrigado a financiar o Fundo
chamado a pagar eventuais prejuízos do de Resolução até 850 milhões de euros por ano sem-
Novo Banco”? O leitor, influenciado pelas pre que, para fazer essas injeções, o Fundo não tenha
discussões dos últimos dias sobre o Or- recursos próprios suficientes.
çamento do Estado, dirá que foi António A tudo isto, os seguidores presentes de Maria Luís
Costa ou João Leão. Injustiça pura. Não Albuquerque juntam duas juras. A primeira jura é a
foi nenhum deles. Foi Maria Luís Albu- de que, desta vez, não vai ser o Estado a emprestar ao
querque. Fundo de Resolução, mas sim um consórcio de ban-
Mas faça-se justiça à injustiça do lei- cos. Sim, mas então, para que tudo seja sem impacto
tor. António Costa, aquando da venda do no défice das contas públicas, porque não assume
Novo Banco ao Lone Star, declarou: “A venda não o referido consórcio diretamente a capitalização do
terá impacto direto ou indireto nas contas públicas Novo Banco? Porque tem de passar pelo Fundo de
nem novos encargos para os contribuintes.” E Mário Resolução? Em síntese, porque é que a responsabi-
Centeno acrescentou: “Não haverá garantias do Es- lização do sistema bancário tem de gerar impactos
tado no Novo banco.” A injustiça diretos ou indiretos nas contas
do leitor é, afinal, fundamentada públicas e, por isso, ser suprida
em conhecimento de causa. A se- O spin dos pelo pagamento do emprésti-
melhança entre o que disse Maria mo bancário com dinheiro dos
Luís Albuquerque e o que disse
governantes e contribuintes, pela enésima vez?
António Costa é indesmentível. dirigentes socialistas A segunda jura feita pelos émulos
No debate do Orçamento do
Estado para 2021, os governantes
para seduzir a atuais de Maria Luís Albuquer-
que é que só é assim porque tem
e dirigentes parlamentares do PS opinião pública é de ser assim, porque a legislação
decidiram, a uma só voz, voltar a um malabarismo e comunitária e o contrato de ven-
assumir Maria Luís Albuquerque da à Lone Star dizem que tem de
como sua inspiradora e a clamar
imita as afirmações ser assim. Mas a esse argumento
como mantra que “não há um de Maria Luís formal, a sensatez manda que
cêntimo de dinheiro público no
orçamento para o Novo Banco”.
Albuquerque se responda com uma pergunta:
deve um contrato ser cegamen-
Têm-no dito com ênfase, com te cumprido quando há indícios
tom perentório e vezes sem conta, mais que fortes de que uma das
para que não reste sombra de dúvida sobre essa de- partes tem um desempenho típico de administração
cisão de não haver nova injeção de dinheiro público ruinosa que gera prejuízos só suportáveis com a ga-
no Novo Banco. As almas inquietas de quem des- rantia de cobertura por dinheiro público?
confia das sucessivas proclamações há anos seguidos Sim, esta crónica é sobre o Orçamento do Estado
podem, pois, ficar sossegadas, tão cheia de garantias e sobre a responsabilidade de ter sobre ele uma po-
é a proclamação socialista. sição. Por estes dias, ouvi muita gente dizer que não
Mas vai-se a ver e o spin dos governantes e diri- viabilizar o orçamento é um ato de irresponsabili-
gentes socialistas para seduzir a opinião pública para dade. Na esmagadoríssima maioria dos casos, essa
a proposta de orçamento é um malabarismo e imita crítica não veio apoiada numa única palavra sobre
as afirmações de Maria Luís Albuquerque não só o conteúdo concreto da proposta de orçamento.
no teor, mas, mais que tudo, no alcance: esse spin é Sobre o Novo Banco, por exemplo. E a pergunta que
falso. É falso que não venha a haver dinheiro público vai ser inevitável daqui a poucos meses, quando os
para o Novo Banco no próximo ano orçamental. bancos vierem exigir o pagamento do que empres-
Isso decorre do esquema perverso que o contrato de taram ao Fundo de Resolução e, de novo, se decidir
venda à Lone Star fixou: o Fundo de Resolução está que é o dinheiro de todos nós que servirá para isso,
obrigado a injetar dinheiro no Novo Banco sempre será também sobre ser responsável: quem terá sido
que haja necessidades de capital para impedir que de novo responsável por mais uma sangria do erário
novos prejuízos ponham em causa os rácios obriga- público para o Novo Banco? visao@visao.pt

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 25


OCEANO DE ESPERANÇA

Oceano de Esperança é um projeto da VISÃO em parceria com a ROLEX, no âmbito da sua iniciativa Perpetual Planet, para dar
voz a pessoas e a organizações extraordinárias que trabalham para construir um planeta e um futuro mais sustentáveis

“É uma atrocidade contra


o planeta e contra a espécie
humana”
Descobriu uma nova espécie invasora nos mares à qual deu um nome científico inspirado:
Plasticus Maritimus. Desde então que a bióloga Ana Pêgo se dedica a combater este flagelo
BRUNO LOBO J O S É C A R L O S C A R VA L H O

É impossível ignorar a baleia na sala, até porque se trata de um lho no resto da Europa, sendo que muitos “não se limitavam
esqueleto com dez metros de comprimento, feito exclusiva- a apanhar o lixo. Traçavam-lhe a origem, as rotas, emitiam
mente de plásticos brancos apanhados na praia. Uma peça de alertas quando as mesmas peças surgiam em pontos diferentes,
“artivismo” apontada ao problema do plástico nos oceanos que, sinal de que tinham caído contentores em alto-mar”, ideia que
apesar de todas as campanhas, continua a crescer à razão de apelou à sua formação científica. “Percebi que o lixo tinha uma
mil toneladas por hora, o equivalente a um camião TIR cheio história para contar, que podia ser catalogado, e foi assim que
de plástico por minuto. Todos os minutos. “Uma atrocidade a angústia deu lugar à determinação e desta nasceu, em 2015,
contra o planeta e contra a espécie humana”, comenta à VISÃO a página Plasticus Maritimus, no Facebook. Dava assim início
Ana Pêgo, bióloga marinha e coautora desta Baelena Plasticus ao trabalho de identificação de exemplares desta terrível es-
que, depois de cumprido o trabalho em muitas exposições, pécie invasora, provenientes dos EUA, do Canadá, e de todo o
repousa agora no quintal desta investigadora e educadora ex- mundo, mas muitos também de Portugal, onde tem algumas
traordinária: “Gosto muito de misturar ciência, arte e biologia irritações de estimação, como é o caso das placas de Alerta de
para tentar fazer com que as pessoas conheçam e gostem dos Arriba em Perigo, colocadas pela própria Agência Portuguesa
oceanos, porque só assim vão estar predispostas a protegê-los.” do Ambiente (APA). “Essas placas são de plástico, e quando
Nascida e criada junto à Praia das Avencas, na Parede, estu- chega o mau tempo caem e partem-se. Já foram alertados vá-
dou Biologia Marinha na Universidade do Algarve e trabalhou rias vezes, por mim e por outras organizações, e nada mudou.
dez anos como investigadora no Laboratório Marítimo da A APA já deveria ter percebido que não pode continuar a fazer
Guia, em Cascais, antes de enveredar por esta área da Educa- sinaléticas em plástico.”
ção Ambiental. Plasticus Maritimus foi também o nome escolhido para o
Ana Pêgo admite que despertou para o problema dos plás- belíssimo livro editado pela Planeta Tangerina em 2018, cujo
ticos por volta de 2011: “O plástico já ali estava, mesmo à minha impacto ultrapassou as nossas fronteiras. Traduzido em dez
frente, só nunca tinha feito esse clique.” Mas desde então que línguas, chegou longe, a países como a Coreia do Sul e, bre-
se dedica de corpo e alma a esta luta: “Comecei a limpar a praia vemente, a China. O livro contém muita informação sobre a
compulsivamente. Chegava a ir de noite, e a minha família já relação entre o plástico e os oceanos, descrita de uma forma
se interrogava se eu não teria enlouquecido.” Era uma luta lúdica, e inclui até um guia para preparar idas à praia, com o
naturalmente inglória, e o entusiasmo acabou por dar lugar à objetivo de colecionar e analisar exemplares desta espécie. Tor-
angústia e à indignação: “Como era possível que mais ninguém nou-se, aliás, uma das ferramentas preferidas de professores
estivesse preocupado com este problema?!”, perguntava-se. e alunos para abordarem o tema nas escolas, ao ponto de Ana
“Claro que havia quem estivesse, como a professora Paula Sobral ter conhecido em Coimbra dois irmãos gémeos que sabiam
(presidente da Associação Portuguesa do Lixo Marinho, já aqui de cor várias frases do livro. Mas o melhor estava guardado
entrevistada), e outros que também apanhavam lixo na praia. para o fim, quando uma das crianças lhe disse que tinha dois
Mas éramos muito poucos, e nem sequer estávamos ligados.” ídolos no mundo: “Eu e a Greta Thunberg. Até fiquei sem jeito.
Começou então a descobrir grupos que faziam esse traba- Elevou-me a um patamar muito alto.” visao@visao.pt

26 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


29 OUTUBRO 2020 VISÃO 27
IMAGENS

O DILEMA DE
ABRIR OU FECHAR
Com o crescimento do número de casos de Covid-19, cada
vez mais cidades optam por impor medidas restritivas e de
recolher obrigatório, nem sempre bem aceites pelos residentes

FOTOS: GETTY IMAGES

MELBOURNE, AUSTRÁLIA
Milhares de pessoas manifestaram-se contra a continuação das medidas de
confinamento, depois de a cidade australiana conhecer, há várias semanas,
uma diminuição do número de novos casos de Covid-19

PARIS, FRANÇA
O encerramento
de um café na
capital francesa,
uma das nove
cidades do
país onde foi
decretado
o recolher
obrigatório entre
as 21 e as 6 horas,
como forma
de combater a
pandemia

28 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


ROMA, ITÁLIA
Um empregado limpa uma mesa numa esplanada vazia da Piazza Navona,
na capital italiana, na última noite antes de entrarem em vigor
as medidas de recolhimento obrigatório na cidade

BARCELONA,
ESPANHA
Os bombeiros
tentam apagar
os incêndios
acionados pelos
manifestantes que,
durante a noite,
protestaram nas
ruas da cidade
contra as medidas
de confinamento

VISÃO 29
IMAGENS

FOTOS: GETTY IMAGES


ISTAMBUL, TURQUIA
Fotografia aérea de um imenso mural de relva, criado pelo artista francês Guillaume
Legros (Saype) na Universidade do Bósforo. A obra faz parte do projeto Beyond Walls
Project, em que apenas se utilizam tintas biodegradáveis, criadas pelo próprio artista

HATTINGEN, ALEMANHA
O outono cria sempre cenários magníficos nas zonas de floresta,
lembrando, nesses momentos, como é importante proteger a Natureza
e como as árvores são fundamentais para a nossa vida na Terra
SAN VICENTE, GUATEMALA
A erupção do vulcão Pacaya, a cerca de 45 quilómetros da capital do país,
levou as autoridades a aumentar as medidas de segurança e a monitorizar
o avanço da lava, como forma de proteção das populações

SÃO PAULO,
BRASIL
Um tributo ao
80º aniversário
de Pelé, num dos
muitos murais
que o artista Luis
Bueno, conhecido
como “Bueno
Caos”, espalhou
pela cidade
brasileira

VISÃO 31
OS DISCRETOS
DONOS DE CINCO
IMPÉRIOS
FAMILIARES
VIERAM DO NADA, CRIARAM NEGÓCIOS
MILIONÁRIOS E TÊM GRANDE
INFLUÊNCIA NOS BASTIDORES.
MAS VIVEM COM TOTAL DISCRIÇÃO.
DUAS DESTAS FAMÍLIAS SALTARAM
AGORA PARA A RIBALTA COM
A ENTRADA NO CAPITAL DA TVI.
AS HISTÓRIAS POR DETRÁS FERNANDO

DE CADA FORTUNA
CAMPOS NUNES
Visabeira

C ATA R I N A G U E R R E I R O
EDUARDO
RANGEL
Grupo Rangel

AVELINO
GASPAR
Lusiaves

HUMBERTO
PEDROSA
Barraqueiro

JOÃO
SERRENHO
Tintas CIN
N
Nunca deu uma entrevista na vida, são raras
as fotos suas a circular e pouco se sabe sobre
ele. Mas é um dos portugueses com mais po-
der nos bastidores financeiros e até políticos.
“Não há presidente de um banco no País, nem
político ao mais alto nível, que não o conhe-
ça e não o leve em conta”, garante o antigo
ministro socialista Jorge Coelho, seu amigo
de longa data. Fernando Campos Nunes, 65
anos, é dono de uma das maiores fortunas do
País. Só em participações empresariais, tem
um património de 803 milhões de euros, se-
gundo a última avaliação da revista Exame. A
Visabeira, a holding que criou para as áreas das
telecomunicações, tem crescido sem parar e é, FERNANDO
atualmente, das que têm maior peso nacional.
Como ele, também João Serrenho, o dono
CAMPOS NUNES
64 ANOS
das Tintas CIN que se tornou, recentemente, Criou, com os irmãos,
acionista da TVI, Avelino Gaspar, que dirige a a Visabeira, em 1980,
maior empresa nacional de produção de aves, e depois de virem de
cujos filhos decidiram também comprar ações África. Atualmente, está
da Media Capital, Eduardo Rangel, que lidera presente em 16 países e
comercializa os produtos e
o grande negócio de logística na Península serviços para mais de 116
Ibérica, e Humberto Pedrosa, que controla a
Barraqueiro e que é acionista da TAP, preferem
EMPRESAS
atuar nos bastidores.
Partilham os lugares na lista dos mais ricos Grupo Visabeira,
do País ao lado de clãs como os Amorim, os Vista Alegre, Bordallo
Pinheiro, TV Cabo Fernando Campos Nunes aposta,
Queirós Pereira, os Viola ou os Mello, mas são
Angola, TV Cabo desde sempre, em telecomunicações.
raras as suas aparições e vivem em grande Na foto, um trabalho da empresa na
Moçambique, hotéis,
discrição. Estão sempre entre os convidados Ponte 25 Abril, no início dos anos 90
imobiliário
das comitivas presidenciais e ministeriais nas
visitas ao estrangeiro, têm todos títulos de PAT R I M Ó N I O
comendador ou de grande-oficial, atribuí-
dos por serviços prestados ao País, mas não
gostam de holofotes e são desconhecidos de
muitos portugueses. Todos eles montaram
€803 MILHÕES
verdadeiros impérios familiares que mantêm
Valor das participações
empresariais
ANTES DE COMPRAR
com mão de ferro. A VISTA ALEGRE,
São obcecados com o trabalho, conhecidos
como bons negociadores e considerados ho-
CAMPOS NUNES
mens que subiram a pulso. Nos bastidores, têm PEDIU A OPINIÃO
sido muitas vezes decisivos para desbloquea-
rem importantes questões nacionais: Hum-
A AMIGOS, DEPOIS
berto Pedrosa, acionista da TAP, foi o elemento FEZ O CONTRÁRIO
34 VISÃO 29 OUTUBRO 2020
FESTAS E CONVIDADOS DE ELITE
Fernando Campos Nunes promove, todos os anos, uma festa em que reúne
políticos, empresários e banqueiros. Costuma ser num dos seus restaurantes.
O filho faz eventos no The Day After, uma discoteca que pertence ao grupo

Todos os anos, a Visabeira organiza uma festa, em Viseu, que é considerada


um dos eventos mais badalados do ano, na Região Centro do País. Conhecida
como “Os Melhores Anos”, esta festa tem, ao longo dos tempos, contado
com a elite política e económica nacional. Na última edição, a lista foi longa.
Estavam ministros que desempenhavam o cargo na altura, como Manuel
Leitão Marques, e antigos ministros, como Jorge Coelho, Luís Marques
Mendes e António Correia de Campos. Viam-se ainda embaixadores, como
o de Moçambique em Portugal, Joaquim Bule, e o de Portugal na Rússia,
Mário Godinho, e vários deputados, como Edite Estrela e Lúcia Silva, entre
muitos outros. Da banca, encontravam-se Carlos Tavares (presidente da Caixa
Económica Montepio Geral); António Tomaz Correia (presidente do conselho
de administração da Associação Mutualista Montepio); Teixeira dos Santos
(então presidente da comissão executiva do Banco Eurobic) e João Nuno
Palma (vice-presidente da comissão executiva do Millennium BCP).
A festa costuma ser num dos restaurantes detidos pela Visabeira. Além deste
evento, o filho primogénito de Fernando Campos Nunes, Fernando Daniel – que
neste ano entrou para o conselho de administração da holding – promoveu
no ano passado uma Festa Branca (White Party 2019), reabrindo as portas
PEDRO FERREIRA

da famosa discoteca The Day After que pertence ao grupo. Os pais, Fernando
Campos Nunes e a mulher, estiveram entre os cinco mil participantes.
Para este ano, estavam previstas novas festas, mas a pandemia levou ao
adiamento dos eventos sociais.

conciliador nas negociações entre o Estado e


David Neeleman, o que levou recentemente
o ministro Pedro Nuno Santos a elogiá-lo,
intitulando-o de “empresário patriota”. Já Fer-
nando Campos Nunes foi a chave do sucesso
para resolver as negociações, entre Portugal
e Moçambique, relativas a Cahora Bassa, em
2003: o então ministro Luís Mira Amaral pediu
ajuda ao amigo e dono da Visabeira, tendo em
conta a sua influência naquele país africano,
e só assim se conseguiu negociar as contra-
partidas do Estado português na barragem.

O HOMEM DAS TELECOMUNICAÇÕES


Fernando Campos Nunes, 64 anos, nasceu em
Lisboa, mas viveu a infância e a adolescência Animação O herdeiro Fernando Daniel promoveu
em Moçambique, onde o pai era polícia. A uma Festa Branca, no conhecido espaço The Day After,
família mudou-se de Santos Evos, uma fre- em Viseu, que pertence ao grupo
guesia de Viseu, para África, quando ele e o
irmão eram ainda crianças. Frequentaram o
liceu moçambicano, partilhando brincadeiras
com alguns dos que, mais tarde, se tornaram
membros da elite do país.
“É hoje o português com mais influência
em Moçambique”, acredita Luís Reto, antigo
reitor do ISCTE e amigo de Fernando Campos
Nunes. Conheceram-se num avião, há longos
anos, quando ambos viajavam precisamente
para Moçambique. O líder da Visabeira tem Família Fernando Campos Nunes, Elite Na festa patrocinada
muitos negócios e hotéis no país, tendo no a mulher e os três filhos, na festa por Fernando Campos Nunes,
Montebelo Indy Maputo Congress Hotel “um Os Melhores Anos, um evento costumam estar personalidades
bungalow que faz de casa sempre que para promovido pela Visabeira de várias áreas. Aqui Jorge e
ali se desloca”, conta Luís Reto. Ainda recen- Cecília Coelho, Fátima Lopes e
temente, quando o Presidente moçambicano Edite Estrela

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 35


veio a Portugal, esteve a visitar a empresa de dos anos 80, com a empresa que abria valas e
Campos Nunes – que este montou em 1980, assentava cabos. Mas Campos Nunes revelou
pouco depois de regressar de África. Estudou logo a sua veia para o negócio, ao começar a
Engenharia Eletrotécnica, na África de Sul, e oferecer aos clientes, na área das telecomuni-
voltou com a família para Portugal, em 1979. cações e energias, soluções de chave na mão,
Foi assim que, aos 24 anos, lançou, com o em que estudava, planeava, criava o projeto,
irmão Daniel, a empresa a que os dois chama- construía, instalava e fazia a conservação e a
ram Visabeira. “A sua primeira atividade foi a manutenção de infraestruturas.
construção e manutenção da rede para a EDP As áreas de negócio, essas, alastraram-se e
e, depois, mais tarde, para a PT”, explica Nuno são hoje muitas e variadas: telecomunicações,
Terra Marques, o atual presidente do Conselho energia, construção, turismo, hotéis, shoppings
de Administração Executivo da Visabeira, con- e restaurantes, imobiliário e indústria, incluin-
tando que hoje em dia o grupo tem “90 em- do, entre outras, cerâmica e cristalaria, da Vista
presas consolidadas”. Tudo começou no início HUMBERTO PEDROSA Alegre e Bordallo Pinheiro. As suas empresas,
73 ANOS com os seus 12 mil trabalhadores, estão espa-
Tinha 20 anos quando lhadas por Portugal e pelo resto do mundo. Foi
Humberto Pedrosa lidera a empresa o pai comprou a ele quem montou a TV cabo em Angola e Mo-
desde o início. Na foto, os primeiros Barraqueiro e o pôs a çambique. Além disso, é um dos grandes ope-
autocarros novos adquiridos pela família geri-la sozinho radores de telecomunicações em vários países
Pedrosa, em 1967 europeus. “Na Europa, os negócios já atingem
EMPRESAS os 600 milhões de euros por ano”, contabiliza
Grupo Barraqueiro, Nuno Terra Marques. Tudo junto, dão ao gru-
Rede Nacional po um volume de negócios de mil milhões de
Expresso, TAP, euros que tornam Fernando Campos Nunes o
imobiliário e herdades oitavo português mais rico. Ele detém 99,45%
da empresa, os outros 0,55% são de outros
PAT R I M Ó N I O elementos da família. E, mesmo nos bastidores,

€320 MILHÕES
é o cérebro de tudo, dizem os mais próximos.
O seu feitio low-profile levou, aliás, alguns a
pensarem que, quando o irmão morreu num
Valor das participações acidente de viação em 1986, a empresa pudesse
empresariais sofrer um revés. Mas isso não aconteceu: “Ele é
predestinado para o negócio, antecipa o que vai
acontecer”, nota Nuno Terra Marques.
Move-se nos mais altos círculos nacionais,
entre políticos, governantes e empresários,
garante, por seu lado, Jorge Coelho que, re-
centemente, passou a integrar o novo órgão da
empresa: o Conselho Geral e de Supervisão.
Este foi criado para que Fernando Campos
Nunes pudesse ir passando a gestão executiva
e ficasse apenas a supervisionar. Isto porque,
segundo tem confessado aos amigos, quer-
-se reformar daqui a dois anos. E aí promete
dar a primeira entrevista da sua vida, na qual
conta com uma condecoração com o grau de
grande-oficial da Ordem do Infante D. Hen-
rique, em 2000.
Poucos acreditam que se afaste. “Não o vejo
a parar”, afirma Jorge Coelho. Apesar disso,
está a preparar o futuro. “Alteramos o governo
do grupo”, frisa Nuno Terra Marques, expli-
cando que Campos Nunes saiu do Conselho
de Administração (CA), passando para aquele
Conselho de Supervisão. O que levou, em ja-
neiro deste ano, o filho mais velho, Fernando
Daniel, de 23 anos, a entrar para o CA do gru-
po. Agora, ele é um dos homens que comanda
JOSÉ CARLOS CARVALHO

os negócios da Visabeira e a seu cargo está a


área do turismo, tendo entre mãos um arrojado
e inédito projeto de transformar um claustro
do Mosteiro de Alcobaça num hotel de luxo.
Os elementos do núcleo duro de Fernando

36 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


Campos Nunes são todos quadros da empresa.
Nuno Terra Marques tem 44 anos e é o homem
que no terreno lidera o dia a dia. Trabalham
nos dois últimos pisos do Palácio do Gelo,
em Viseu, e, antes da pandemia, era comum
almoçarem num dos restaurantes do grupo.
A mulher de Fernando Campos Nunes, Ana
Paula, é desde sempre uma peça-chave para a
contratação de qualquer pessoa para a Visabei-
ra. É consultora de Recursos Humanos. Além
de Fernando Daniel, o líder da Visabeira tem
mais dois filhos gémeos, João e Francisco, que
estão a estudar Gestão na faculdade. Apesar
de não gostar de aparecer, gosta de conviver.
“Vamos muito a restaurantes”, diz Luís Reto.
Aliás, Jorge Coelho conheceu-o numa festa
que a Visabeira patrocina, todos os anos, e
que junta centenas ou milhares de pessoas
em Viseu. “Era ministro de não sei quê e ele
convidou-me para ir a essa festa. A mulher
até estava grávida do primeiro filho”, recorda.
A expansão do império empresarial já o
colocou em algumas polémicas. A filial fran-
cesa da Visabeira, a Constructel, chegou a ser
RAFAEL GOMES ANTUNES

investigada em França por alegado desrespeito


dos direitos laborais, e a Fibroglobal, que era
detida pelo grupo de Viseu e pela PT, esteve
no centro de uma disputa entre a Meo e Altice.
Além disso, a Visabeira chegou a ser notificada
no âmbito da Operação Furacão, mas foram
“efetuadas correções técnicas fiscais, volun-
tariamente realizadas, e, em consequência, o
processo foi logo arquivado”, explicou fonte
oficial do grupo.
Em todos os momentos, Fernando Campos
Nunes manteve-se discreto. Aliás, antes da
AVELINO GASPAR crise do SARS-CoV-2, passava a vida a viajar.
63 ANOS Agora, está mais tempo em Portugal, continua
Criou sozinho a a conduzir o seu Mercedes e a não ter grandes
Lusiaves que se tornou hobbies. “Gosta é de trabalhar”, garantem os
a maior empresa do amigos.
País de produção de
aves DOS AUTOCARROS PARA OS AVIÕES
Humberto Pedrosa acredita que seguir os seus
EMPRESAS instintos o ajudou a transformar-se num dos
Grupo Lusiaves, homens mais ricos de Portugal. “Sempre tomei
Campoaves, Avisabor. as decisões sozinho”, diz à VISÃO, explicando
Avelino Gaspar criou a Lusiaves, em 1986, O filho Paulo Gaspar que, às vezes, em especial nos últimos tempos,
com um capital social de 1 500 euros. detém a Triun SGPS troca impressões com os colaboradores mais
Na época, o empresário tinha 29 anos, que comprou 20% da próximos e com os filhos, Artur, de 47 anos,
como ilustra a foto tirada nessa data Media Capital e David, de 45, que estão na holding Barra-
queiro, SGPS. Apesar disso, faz questão de
PAT R I M Ó N I O separar as águas. “Em cada empresa tenho um

€362 MILHÕES
administrador-delegado. Os meus filhos são
TANTO HUMBERTO acionistas, mas prefiro ter uma administração
PEDROSA COMO Valor das participações
profissional”, explica. David tinha, como ele,
assento no Conselho de Administração (CA)
AVELINO GASPAR empresariais de Avelino
e de Paulo Gaspar
da TAP – empresa da qual se tornou acionista
maioritário, em 2015, no âmbito do consórcio
COMEÇARAM OS SEUS com o brasileiro David Neeleman. Saiu ago-
NEGÓCIOS QUANDO ra de presidente do CA da companhia aérea,
com a entrada do Estado, para evitar possíveis
TINHAM 20 ANOS conflitos de interesse, uma vez que é acionista

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 37


DIVIDEM A LISTA a fazer as chamadas ‘excursões de garrafão’.
Comprámos autocarros de turismo e fomos
DOS MAIS RICOS crescendo.” Hoje, tem uma frota turística de
COM OS AMORIM OUTRAS 499 autocarros que a pandemia obriga a esta-
rem parados. Pelo meio do seu percurso, houve
OU OS MELLO, MAS
PREFEREM NÃO
FAMÍLIAS RICAS também alguma sorte. “Em 1974, a empresa
esteve à beira de ser nacionalizada”, lembra,

APARECER E DISCRETAS explicando que o Estado decidiu nacionalizar


as dez maiores empresas. “A Barraqueiro era
a décima primeira.” Mas o “golpe de sorte” –

do grupo Barraqueiro que tem contratos esta- OS JERVELL como o próprio Humberto Pedrosa lhe chama
– foi ainda maior. O líder da Barraqueiro, que
tais, como a concessão ferroviária da Fertagus. tinha 80 autocarros, havia marcado para o dia
Dona do grupo Nors, a
Este negócio da companhia aérea já lhe va- família Jervell tem um
25 de abril de 1974 uma escritura para comprar
leu guerras, como, por exemplo, com Miguel património de €361 a Arboricultora, com uma frota de 100. Porém,
Pais do Amaral, em 2015, com quem esteve milhões. O império o dono da empresa optou por adiar. Pouco
para se juntar na corrida à compra da TAP, e empresarial foi criado depois, decidiu-se que as empresas com mais
também algumas críticas sobre o seu envol- por Tomaz Jervell, de 100 autocarros seriam nacionalizadas. Ou
vimento na empresa. que morreu este ano, seja: falhar a escritura salvou a Barraqueiro
Apesar das dificuldades atuais, Humberto com 76 anos. O filho que, assim, não ultrapassou o limite. À sorte,
Pedrosa garante: “Não estou arrependido.” Tomás é o CEO do diz Humberto, juntou-se o otimismo constante
Tomou a opção de entrar no negócio, depois grupo Nors. Nele está e a capacidade de arriscar. Apesar das crises de
de ter sido contactado por um banco que ainda o outro filho, 1974, 1980 e 1998, “arrisquei muito”. Na época
precisava de um acionista nacional. “Gosto de João. Presente em das privatizações, comprou empresas caras e
projetos à volta dos transportes. Mas, de facto, 17 países, a empresa algumas cheias de problemas, como a Rodoviá-
nunca me passou pela cabeça ser um dos acio- tem um volume de ria do Alentejo. Hoje, a Barraqueiro tem 4 200
nistas da TAP”, diz, explicando que tinha pena negócios superior a autocarros, alargou a ação para o transporte de
de que a empresa fosse parar a mãos estran- €1,6 mil milhões. São combustível e de automóveis, e está a investir
geiras. “Se não houvesse pandemia, não tenho totalmente discretos A no Brasil, onde tem quatro empresas. Antes
dúvida de que, em 2022, a TAP teria resulta- empresa desenvolve a de começar a pandemia, estava envolvido em
dos positivos.” Agora, diz, a recuperação será sua atividade através projetos no metro no Brasil. Nos tempos livres,
de marcas como a Auto
mais lenta. Porém, continua “a acreditar” na gosta de caçar e de juntar a família, os dois fi-
Sueco, a Ascendum, a
empresa, garante. Foi, aliás, com esta postura, lhos, as noras e os seis netos, cinco rapazes e
Civiparts, a AS Parts, a
conta, que conseguiu construir o seu império Vitrum, entre outras.
uma rapariga.
empresarial. Aos 20 anos, ficou “sozinho” a Com 73 anos, continua a trabalhar, todos
gerir a empresa de transporte de passageiros os dias, e mantém a ambição. Hoje, o comen-
que o pai, Artur, comprou à família Jerónimo, dador (que recebeu a comenda da Ordem do

OS RODRIGUES
que vivia na Malveira, na mesma zona onde Mérito Empresarial das mãos do Presidente da
residiam os Pedrosa. Certo dia, o médico de República, em 10 de junho de 2013) controla a
família chegou a casa deles e, sabendo que os holding Barraqueiro, possui a Rede Nacional
Jerónimo não tinham descendência, olhou O Grupo Simoldes, Expresso e detém algum imobiliário e diversas
para o pai de Humberto e disparou: “Ó senhor fundado por António herdades. Mas, como o próprio diz, continua
Silva Rodrigues, um
Artur, tem de comprar aquela empresa.” Artur de olho em oportunidades. Agora, com um
empresário de Oliveira
Pedrosa, que já era dono de um negócio de património que vale 320 milhões de euros,
de Azeméis, continua
transporte de mercadorias, acabou por ad- a crescer. No próximo
não está sozinho como aconteceu aos 20
quirir a Barraqueiro, que tinha 11 autocarros, e ano, deverá atingir anos. Parte da sua holding é, até, detida pela
entregou-a ao filho. “Aos 20 anos, geria aquilo uma faturação de mil Arriva, uma empresa do Deutsche Bahn, mas a
100% sozinho”, recorda Humberto. milhões de euros, maioria da holding, 70%, é da família Pedrosa.
Os primeiros tempos não foram, porém, tendo em conta o
fáceis. Houve acidentes, como o de 1967, em investimento que O CRIADOR DE PINTOS
que uma cheia, em Olival de Basto, danificou está a fazer em novas Já Avelino Gaspar, de 63 anos, dono da Lusia-
quase toda a frota da empresa, que se encon- unidades industriais. ves, não abdica do facto de a empresa ser 100%
trava numa garagem naquela zona. E houve Já passou parte do da família. Os Gaspar são acionistas e muitos
alguns entraves como os que foram impostos negócio ao filho Rui trabalham na empresa. A mulher, Susana Pau-
pela regulação dos transportes, estipulada pelos Paulo Rodrigues. A la, é vice-presidente do grupo e gerente de
governantes de então. “Não se podia aumentar empresa tem as suas várias empresas. É o número dois de Avelino
uma carreira ou um horário”, recorda Humber- origens em 1959, que ocupa o cargo de presidente. O filho mais
to, sublinhando que, na época, tinha a linha que quando o empresário se velho, Paulo, dirige outros tantos negócios. A
ligava Turcifal a Lisboa e que qualquer acrescen- juntou ao avô e os dois filha do meio, Mariana, de 27 anos, que até se
to era proibido pelo Estado que queria proteger fundaram a Simoldes casou durante a pandemia, entrou em janeiro
os caminhos de ferro. Mas Pedrosa montou uma Aço. deste ano para a empresa e está já a desenvol-
estratégia: virou-se para o transporte escolar ver vários projetos. O mais novo, Francisco,
e apostou fortemente no turismo. “Passamos de 19 anos, está ainda a estudar, durante parte

38 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


do ano está em Londres, mas, quando pode,
trabalha no grupo. Na empresa estão ainda
dois sobrinhos de Avelino, filhos dos irmãos.
Discreto, o empresário de Leiria viu-se agora
debaixo dos holofotes quando o filho mais ve-
lho, Paulo Gaspar, se quis tornar acionista da
TVI, através da empresa Triun SGPS que divide
com os irmãos. Desde pequeno que Paulo tem
sonhos altos, tendo já assumido que, em novo,
gostava de ser Presidente da República. O seu
casamento com Maria Sousa, dona da Patachou,
uma empresa de roupa de bebé, foi, diz quem
assistiu, memorável. Decorreu no Mosteiro
de Alcobaça, em 2017, e o pai Avelino mandou
construir um lago artificial.
Em todas as decisões importantes, Avelino
Gaspar gosta de ouvir a família e, para isso,
reúne os filhos e a mulher, diz um amigo
próximo.
Num dos seus negócios (Avilafões) teve um
sócio com quem se incompatibilizou e acabou
com quatro queixas em tribunal. Três delas,
segundo fonte da empresa, já foram arquiva-
das, e a quarta, no que respeito à insolvência
danosa, já teve o mesmo fim. Em breve, será
ÉGIDIO SANTOS

a decisão instrutória sobre o eventual bran-


queamento de capitais.
O dono da Lusiaves tem uma vida discreta e
uma rotina diária bem definida. Acorda sempre
cedo, perto das 6h30 da manhã, e faz ginástica
e natação em casa. Nos tempos livres, está com
os filhos que já fizeram dele avô. Gosta de ler
JOÃO SERRENHO biografias e livros de gestão, mas está sempre
68 ANOS concentrado nos negócios. Tem por hábito fa-
Herdou a liderança zer diariamente as contas das empresas e acha
das Tintas CIN do pai, sempre que está a perder dinheiro em tudo,
António Serrenho, contou numa entrevista que deu, em 2016, à
transformando-a na maior
empresa do setor no País
Forbes. O quartel-general de Avelino Gaspar –
que, em 2015, recebeu de Cavaco Silva o título
de comendador industrial – é em Leiria, onde
EMPRESAS
todos lhe conhecem a capacidade de negociar.
Grupo CIN, Media Por ser dessa zona do País, António Sales, o
Capital e outros secretário de Estado Adjunto e da Saúde que
investimentos costuma aparecer nas conferências de Imprensa
João Serrenho herdou a empresa
do pai, António, com quem foi a divulgar os números da Covid-19, já sabia há
PAT R I M Ó N I O
trabalhar em 1976, quando muito quem era Avelino, mas só o conheceu
estava desempregado
€230 MILHÕES
Valor das participações
recentemente. “Ele fez um donativo muito im-
portante, de 250 mil euros, para o Hospital de
Leiria, para o Serviço de Pneumologia.” Avelino
está hoje entre os homens mais ricos do País
e o seu património, só em investimentos em-
presariais, ascende aos 362 milhões de euros.
A sua estratégia passou por montar uma rede
JOÃO SERRENHO, de 25 empresas, com 3 750 trabalhadores, que
DONO DAS TINTAS cobre todas as áreas de negócio possível. “Ele
não vende só frango”, dizem os mais próximos.
CIN, COMPROU Tem uma empresa que produz a matéria-prima,
5% DA TVI. O FILHO o milho, em explorações agrícolas (Lusiterra),
outra que faz a transformação dessa matéria-
É DIRIGENTE -prima em rações, para alimentar as galinhas
DO PARTIDO (Racentro), outra que cria as galinhas e os
frangos em quintas e onde são postos os ovos
INICIATIVA LIBERAL (Lusipintos). Possui também um negócio que

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 39


faz os transportes logísticos do grupo de umas
zonas para as outras, e criou uma empresa para
gerir os centros de incubação (Lusiaves), onde os
ovos são chocados, dando origem a novos pintos
que são depois criados nas quintas. Controla
ainda a parte do abate, do desmanche (Avibom)
e da embalagem, bem como toda a distribuição
pelos clientes. Mas não ficou por aqui. Avelino
Gaspar montou negócios de saúde e de nutrição
animal e várias unidades para aproveitar tudo
o que sobrava do abate, como as carcaças, as
vísceras ou as penas. Agora está a virar-se para
o setor energético, tendo ganhado um leilão para
montar um parque solar em Soure.
Desde novo que Avelino Gaspar decidiu que
queria investir em frangos. Tudo começou com
uma pequena aventura, quando tinha 18 anos,
ao decidir montar nas traseiras de casa dos
pais, numa aldeia em Pombal, um galinheiro
com 300 pintos. Era um dos sete filhos de um
casal que mantinha uma vida modesta e sem
capacidade para financiar os estudos de todos.
Começou, por isso, a trabalhar numa empresa
de cerâmicas, aos 13 anos, e, com o dinheiro que
juntou e com a ajuda de uma bolsa de estudo
da Gulbenkian, foi para a Escola Comercial de

MARIA CRUZ
Pombal, onde tirou o curso. Passou pela cons-
trução civil, fez o liceu e, aos 17 anos, foi para um
escritório de comerciantes de rações. Em 1975,
decidiu investir parte do dinheiro na compra
daqueles pintos e, uns tempos depois, aven-
turou-se no seu primeiro aviário, um espaço
com 400 metros quadrados, onde criou quatro
mil frangos. Chegou a dedicar-se ao imobiliá-
rio, tendo feito negócios com o cunhado, mas
investiu na agropecuária todo o dinheiro que
ganhou. Em 1986, criou a Lusiaves e tornou-se
EDUARDO RANGEL
67 ANOS
o maior produtor de aves nacional. Hoje, produz
Era despachante numa
mais de 100 milhões, todos os anos.
empresa na Alfândega
do Porto, quando
O DESPACHANTE
decidiu despedir-se e
Foi também a ousadia em jovem adulto que montar uma empresa
levou Eduardo Rangel, de 67 anos, a montar o que se tornou uma
seu império empresarial. Trabalhava como des- gigante da logística
pachante, num escritório que tinha uma sala na O despachante Eduardo Rangel
Alfândega do Porto, quando sentiu que tinha de EMPRESAS montou a sua empresa com
arriscar. Despediu-se e deixou o colega e amigo 27 anos. Na foto, a construção
Grupo Rangel, uma
para trás. “Foi a pior noite da minha vida. Não da sede, na Maia
holding com 18
dormi nada”, conta, recordando que, no dia
empresas
seguinte desse mês de setembro de 1980, com
27 anos, abriu a sua empresa aduaneira na Rua PAT R I M Ó N I O
da Restauração, no Porto. Para o ajudar, levou
um amigo, Alberto Pires, e o irmão José Rangel,
dez anos mais novo. Vinham de uma família
modesta em Valadares. O pai era sapateiro, e
€300 MILHÕES
Volume de negócios do
MUITOS POLÍTICOS
a mãe costureira. “Ele modelava sapatos e ela grupo TRATAM EDUARDO
fazia vestidos para as vizinhas e amigas”, expli-
ca. Eduardo era um dos quatro filhos e, aos 16 RANGEL POR
anos, começou a trabalhar como praticante de
despachante. Hoje, é dono da maior empresa COMENDADOR, MAS
de logística da Península Ibérica, a Rangel, e
tem, diz orgulhoso, um império com um vo-
ELE PREFERE NÃO
lume de negócios de 300 milhões de euros, 2 USAR O TÍTULO
40 VISÃO 29 OUTUBRO 2020
100 funcionários e uma área logística de 400 são na comunicação social já tinha começado,
mil metros quadrados cobertos. A sua holding porém, antes, sendo um dos acionistas do
de 18 empresas tem como CEO o filho, Nuno, jornal ECO.
de 41 anos. Decidiu passar-lhe a pasta há qua-
se dez anos, mas Eduardo ainda se mantém NEGÓCIOS João Serrenho, de 68 anos, herdou a lide-
rança do negócio de família do pai, António,
a supervisionar. “Continuo a tomar decisões,
em especial quando são negócios avultados”, EM NÚMEROS que tem hoje 96 anos. Foi ele quem, depois
de ter entrado na empresa em 1950, passou a

165
explica. Sempre disse aos filhos que “só seriam acionista e a tornou líder do mercado nacional.
líderes se demonstrassem competências”, senão Hoje, o império familiar é gerido por João que
apenas seriam acionistas. A filha optou por ser acumula uma riqueza de 230 milhões de euros.
dentista e não está no negócio. Já com Nuno Foi ele o sucessor, apesar de ser o mais novo
fala várias vezes por dia. “Eu sou mais emocio- de quatro irmãos. O mais velho, António Fran-

MILHÕES
nal, e ele mais racional.” Sempre lhes explicou cisco, nunca quis dedicar-se ao negócio das
também que só deviam manter a empresa se tintas, e as duas irmãs, gémeas, Maria Francisca
desse resultado e se não gerasse discussões e Maria João, apesar de acionistas, optaram por
na família. Caso contrário, devia-se vendê-la. O valor em euros do outros caminhos. Uma delas era dona de uma
EBITDA registado pela
Eduardo sempre trabalhou muito. “Pelo menos farmácia até há muito pouco tempo.
Visabeira é, segundo
15 a 16 horas, aos sábados e domingos.” Em João Serrenho entrou para a empresa do
a empresa, um
tempos, chegou a ter um hobby, o golfe, mas comportamento
pai, em 1976. Na altura, “estava desempregado”,
desistiu já lá vão 25 anos. “Um dia, tive um jogo histórico e representa contou no livro sobre António Serrenho, O
durante a semana e perdi um encontro com um um crescimento Senhor das Tintas, de José Alberto Magalhães.
cliente. Nunca mais.” Sempre foi líder absoluto de mais de 16%. A mesma passagem de testemunho parece es-
do grupo. Recebeu o título de comendador das tar a fazer agora com o filho mais velho, João
mãos de Cavaco Silva, em 2008, mas não gosta Luís, que entrou neste ano para o Conselho

610
de o usar. “Valorizo-o, mas não o adotei.” Ad- de Administração. Mas este seu herdeiro pro-
mite, porém, que muitos políticos que conhece mete ser mais mediático: João Luís Serrenho é
gostam de tratá-lo por comendador. Apesar de vice-presidente do partido Iniciativa Liberal.
gostar de discrição, é comum estar rodeado de Já o pai não gosta de aparecer. Nem tem vida
gente influente. Muitos estiveram presentes no social, garantem os mais próximos. É adepto

MIL M2
Brasil, no casamento do filho com a blogger do Futebol Clube do Porto e faz listas com coi-
brasileira, Ione Omena, em 2013. sas de que não se pode esquecer. É licenciado
Eduardo já é avô e, nos tempos livres, É a dimensão coberta em Engenharia Química e, em 2012, recebeu
gosta de conviver. Mas continua a saber que dos pavilhões de do então Presidente da República o título de
foi o trabalho duro que o levou ao topo deste produção avícola da grande-oficial, por mérito industrial.
império familiar. Quanto começou, lembra, o empresa Lusiaves Além de serem discretos, donos de comen-
País era pouco desenvolvido tecnologicamente, das e de medalhas, todos estes empresários
e ele decidiu apostar na tecnologia. “Foi uma garantem que arriscaram muito. Foi o que fez
decisão estratégica importante que nos tornou Avelino Gaspar, em 2003, perante a ameaça dos

22,5%
competitivos”, diz, recordando que desenvol- nitrofuranos em frangos, perus e codornizes.
veu a “primeira tecnologia aduaneira para ligar Em vez de suspender a produção de aves e de
as alfândegas”. deitar fora as que tinha, como fez a maioria das
Como sabia que nos anos 90 iriam ocor- empresas, ele optou pelo aposto: decidiu con-
rer mudanças na Europa, alargou as áreas de gelar milhares de aves e continuar a produzir.
A participação que
atuação e, além da atividade aduaneira, passou Humberto Pedrosa
Quando as análises pedidas pelo Estado deram
a dedicar-se ao setor transitário. Pelo meio es- detém na TAP negativo, estava pronto para pôr tudo no mer-
creveu um livro sobre as alterações que a União cado. Já Humberto Pedrosa, perante o controlo

50
Europeia ia desencadear nos procedimentos do Estado no transporte de pessoas, apostou
aduaneiros. De Portugal, expandiu os negócios no turismo, e Eduardo Rangel, por seu lado,
para Angola, Moçambique e Brasil. Agora, 40 antecipou-se às consequências do mercado co-
anos depois, está a apostar em áreas como a mum e alargou os negócios para os transitários.
farmacêutica. O irmão é chefe de compras no Fernando Campos Nunes decidiu, contra tudo
grupo e outra irmã está na área administrativa. e contra todos, comprar a Vista Alegre quando
O seu desejo é que, daqui a 40 anos, a Rangel
tenha crescido para o dobro. Para isso, diz, PAÍSES esta estava na falência. O feeling do empresário
de Viseu, conta o atual presidente do CA, Nuno
há apenas um segredo: “Distribuir pouco os A marca de tintas Marques, fê-lo arriscar em pegar numa empresa
lucros. O que é preciso é investir.” portuguesas CIN está que perdia milhões de euros e em transformá-la
presente pelo mundo, num “caso de sucesso”. “Também eu lhe disse
COMPRADOR DA TVI nos vários continentes para não comprar”, confessa Jorge Coelho que
Foi exatamente um dos últimos investimentos não tem dúvida de que o amigo nasceu para
dos Serrenho que os trouxe para o mediatismo. ser um empresário cheio de poder, mesmo
João Serrenho, dono das Tintas CIN, decidiu sem exposição pública. “Há muita gente que
tornar-se acionista da Media Capital, dona da tem muito poder no País e ninguém ouve falar
TVI, comprando 5% da empresa. A sua incur- dela.” cguerreiro@visao.pt

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 41


POUPANÇA
(ES)FORÇADA
O dinheiro colocado em depósitos bateu
máximos este ano. Com menos opções
de consumo, os portugueses foram
forçados a poupar e estão mais cautelosos
em relação ao futuro. Os orçamentos
familiares saem reforçados.
Mas a economia ressente-se
RUI BARROSO

42 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


29 OUTUBRO 2020 VISÃO 43
À
Taxa de poupança aumentou durante a pandemia
VALORES EM %
15

12

0
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

sentem um aumento significativo do


risco de desemprego”, refere à VISÃO
João Duque, economista e professor “O QUE SE
do ISEG. Nas últimas recessões, e
contrariamente à previsão mais clás- DEVE PEDIR
sica da economia de que as pessoas se
endividam em momentos de diminui-
ÀS FAMÍLIAS
À primeira vista, até pode parecer ção do rendimento e depois pagam a NESTE NATAL
uma contradição. A taxa de poupança
em Portugal subiu para máximos este
dívida quando o rendimento volta a
aumentar, já se tinha observado um É QUE
ano, apesar de a crise provocada pela
pandemia ter levado a uma perda sú-
mecanismo de poupanças preventi-
vas, “no qual as pessoas aumentam a
NÃO DEEM
bita e inesperada de rendimentos para sua poupança em períodos de maior DINHEIRO AOS
NETOS, MAS
muitas pessoas. Nos últimos meses, o incerteza porque querem precaver-se
consumo cingiu-se sobretudo a bens contra choques futuros”, observa Su-
essenciais devido ao confinamento e
as grandes decisões de compra foram
sana Peralta, professora de Economia
da Nova SBE. QUE LHES
adiadas, fosse por falta de dinheiro O problema é que esta não é uma COMPREM
PRENDAS”,
ou numa atitude de precaução face crise normal. A subida da taxa de
à incerteza. Assim, apesar de menos poupança foi transversal a toda a
dinheiro nas mãos das famílias, a
proporção de rendimento canalizada
Europa e foi feita a uma velocidade
inédita, o que levou o Banco Central DEFENDE
para depósitos bancários e outras Europeu a tentar perceber os motivos O ECONOMISTA
JOÃO DUQUE
aplicações financeiras disparou para de isso estar a acontecer. E, apesar de
valores recorde. Habitualmente, até se a precaução em relação à incerteza
associam taxas de poupança elevadas a continuar a ser um fator importante
algo positivo para a economia. No en- na decisão de colocar dinheiro de
tanto, especialmente nesta crise, essa lado durante esta crise, a autoridade
conclusão não é assim tão simples. monetária concluiu que o motivo mais
Mas comecemos por tentar perce- significativo aparenta ser mesmo o
ber os motivos para um maior esfor- da “poupança forçada” e não volun-
ço de poupança. Historicamente, as tária, em que quem queria e podia
crises tendem a levar a um aumento consumir ficou impedido de o fazer
da poupança. Essa é uma das possí- devido às restrições impostas pelo
veis explicações para o aumento do confinamento e a outras medidas de
dinheiro posto de lado no meio de contenção da pandemia. “Ao contrá-
um choque económico que afetou a rio do que sucede habitualmente nas
tesouraria e a liquidez das famílias. crises, a explicação principal para o
É o “conhecido efeito restritivo do aumento da poupança não é o receio
consumo, quando as famílias pres- face ao futuro, mas o facto de as fa-

44 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


COMO PREPARAR perda de emprego e rendimento sobre
os quais pode ser ofensivo sequer falar
UM ORÇAMENTO FAMILIAR em poupança”.
Mas o facto é que a taxa de pou-
(PARA TEMPOS DE CRISE E NÃO SÓ) pança teve um aumento expressivo. O
rácio que mede o dinheiro colocado
Rendimentos e despesas de lado face ao rendimento disponível
10,6% Sabe mesmo onde gastou cada subiu para 10,6% no ano terminado
2º TRIMESTRE
cêntimo? O primeiro passo para no segundo trimestre, de acordo com
construir um orçamento familiar os dados mais recentes do Instituto
passa por identificar de forma Nacional de Estatística (INE). No final
rigorosa todas as despesas, desde de 2019 esse indicador era de 7%. Para
as essenciais às mais supérfluas, remover os efeitos sazonais (como os
e os rendimentos que se espera impactos do subsídio de férias ou de
vir a ter. Depois de determinar
Natal) e mostrar de forma mais eficaz
qual a situação financeira, deve-
a evolução da tendência, o indicador
se definir um valor por tipo de
despesa em que o total seja inferior
que costuma ser destacado pelo INE
ao rendimento para ser possível tem em conta a soma dos últimos
destinar frequentemente dinheiro quatro trimestres. Se isolarmos os
para a poupança. dados efetivos apenas do segundo tri-
2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 mestre, a subida da taxa de poupança
FONTE INE INFOGRAFIAMT/VISÃO
é ainda mais impressionante. Acelerou
Fundo de emergência Os
para 22,6%, o valor mais alto desde
especialistas em finanças pessoais
mílias terem cortado nos gastos de 2000, data do início da série esta-
aconselham a que se tenha sempre
forma involuntária, dado que foram um fundo de emergência a que se
tística. É mais do dobro do registado
impedidas de seguir o seu padrão possa recorrer para fazer face a no mesmo período do ano anterior e
de consumo habitual”, explica Filipe despesas imprevistas ou à perda recuperou dos valores negativos veri-
Garcia, economista da IMF. inesperada de rendimentos. Em ficados no primeiro trimestre.
Além da conjugação entre a falta de situações normais deve fazer-se Este recorde reflete a redução do
alternativas ao consumo e a precaução um orçamento familiar em que consumo final das famílias e, simul-
para fazer face à incerteza, os danos na são identificados os rendimentos taneamente, o efeito do subsídio de
situação financeira das famílias foram e as despesas fixas e variáveis, férias recebido no trimestre, explica
contidos devido ao efeito de algumas de forma a ajustar os gastos para o INE. Apesar de na maior parte dos
medidas extraordinárias para respon- que sobre dinheiro que possa ser países do euro não se ter verificado o
der à crise. “A redução do rendimento destinado para poupança. António impacto positivo dos subsídios no ren-
disponível no segundo trimestre foi Ribeiro, analista da Deco Proteste, dimento, já que os salários são pagos
mitigada pelas medidas de apoio ao recomenda ter um fundo de em 12 meses em vez de 14, o valor da
emprego e rendimento, destacan- emergência equivalente a cinco ou taxa de poupança ainda foi superior ao
do-se o impacto do layoff simplifi- seis salários: “Sem esse fundo de verificado em Portugal. Esse indicador
cado”, afirmou o Banco de Portugal emergência, quando acontece um situou-se em 27,4% na Zona Euro du-
no último Boletim Económico. Filipe imprevisto muitas vezes tem de rante o segundo trimestre, segundo
Garcia considera que “em Portugal, se recorrer ao crédito, o que acaba dados do Eurostat. No mesmo período
por desequilibrar o orçamento das
deve também destacar-se o efeito das de 2019, a taxa de poupança tinha sido
famílias.”
moratórias de crédito, já que, ao não de 16,7% e no primeiro trimestre de
pagarem as prestações, as famílias 2020 estava em 15,6%.
ficaram com esse dinheiro nas suas Investir no longo prazo Após
contas, engrossando o volume global se ter garantido um equilíbrio AFINAL, É BOM OU MAU HAVER
de depósitos”. O adiamento do paga- entre rendimentos e despesas MAIS POUPANÇA?
mento das prestações dos emprés- e se ter construído um fundo de Portugal tem um histórico quase
timos apenas pode ser utilizado por emergência, pode começar-se a constante de baixa poupança desde o
pensar em colocar as poupanças
quem tenha visto os seus rendimentos início dos anos 2000, o que tem sido
a crescer. António Ribeiro sugere
afetados pela crise pandémica. E os visto como um calcanhar de Aquiles
que se comece a constituir um
números são ilustrativos da dimensão PPR “o mais cedo possível”,
para a economia nacional. No final de
do choque que muitas pessoas estão a preferencialmente assim que se 2018, data dos dados mais recentes
sofrer. De acordo com os dados mais comece a vida ativa. Isto porque, constantes no portal da Pordata, a
recentes, relativos ainda ao final de refere, “quanto maior for o prazo poupança das famílias portuguesas
junho, tinham sido concedidas quase de aplicação, melhor será o correspondia a 4,7% do PIB, o que
323 mil moratórias no crédito à ha- rendimento a longo prazo”. Além coloca o País na metade inferior da
bitação e mais de 196 mil no crédito de PPR, quem tenha poupança tabela da UE (ainda assim, à frente
ao consumo. Filipe Garcia realça que adicional pode procurar aplicações de países como Espanha e Irlanda).
“vale sempre a pena lembrar que a de longo prazo que sirvam como Este ranking é liderado pela Alema-
pandemia atingiu as famílias de forma alternativa aos juros de quase 0% nha, onde a poupança das famílias é
assimétrica, havendo muitos casos de dos depósitos. de 11,4% do PIB. Seguem-se França,

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 45


Para onde vai o dinheiro...
A poupança dos portugueses tem sido direcionada sobretudo para
a segurança de depósitos bancários e certificados de poupança
do Estado. Os valores aplicados têm batido recordes de forma sucessiva.

As taxas de juro são de outro grande destino da Estado.


zero ou, na melhor das poupança dos portugueses Já o investimento no
hipóteses, de apenas são os produtos de dívida mercado de capitais tem
algumas décimas. Mas isso do Estado. Os certificados sido mais comedido.
não tem travado a entrada de aforro e do tesouro Mesmo os aforradores
de cada vez mais dinheiro atraíram mais de 470 que investem em bolsa
em depósitos bancários. milhões de euros desde o retraíram-se devido à
A inércia, a segurança e a início do ano, com o valor incerteza, alterando as
liquidez imediata destas total aplicado nestes suas carteiras de ativos
aplicações têm atraído a instrumentos a atingir para instrumentos com
fatia de leão da poupança máximos históricos. menor risco no período
dos portugueses nos António Ribeiro, analista da de maior nervosismo nos
últimos anos, algo que Deco Proteste, considera mercados financeiros, que
também se verifica nesta que entre as soluções se verificou em fevereiro
crise. Entre o início do ano de capital garantido e março deste ano. Em
e o final de setembro, o estas duas são as “mais Portugal, e mesmo sem o
valor aplicado nos cofres interessantes, mas para efeito desta crise, existe
dos bancos aumentou oito prazos superiores a cinco “ainda pouco hábito de
mil milhões de euros, para anos”. Estes produtos têm recurso ao mercado de
mais de 158 mil milhões. taxas ilíquidas de entre capitais como forma de
“O facto de a poupança, 0,5% e 1,38%, dependendo canalizar poupança”,
sob a forma de depósitos, do tempo em que se observa Paula Carvalho.
continuar alocada a taxas mantenha essa aplicação. A economista sugere
GETTY IMAGES

de juro muito baixas ou Os juros mais altos em um reforço da “cultura


nulas está relacionado com comparação com os dos financeira, permitindo
a escassez de alternativas depósitos têm atraído assim compreender alguns
e custo de oportunidade”, investimento nos últimos produtos que podem ser
explica Paula Carvalho, anos e os certificados de complexos e implicam
economista do BPI. poupança representam normalmente aceitação de
Além de depósitos, o já 11% da dívida direta do riscos”. Suécia e Países Baixos com um rácio
superior a 8%.
Com exceção das últimas crises, a
Investimento recorde Depósitos bancários tendência da poupança dos portugue-
ses tem sido de descida e nos últimos
em certificados de poupança em máximos anos esse indicador tem estado em
mínimos históricos, bem longe do
Valor total das aplicações Valor total aplicado que se verificava antes da entrada no
em Certificados de Aforro em depósitos euro. Isso pode deixar os portugueses
e Certificados do Tesouro em situação mais vulnerável para en-
VALORES EM MILHÕES DE EUROS VALORES EM MILHÕES DE EUROS frentar choques como o que estamos
29 540,6
30 000 200 000 a atravessar. No final de 2019, um em
cada três portugueses não conseguia
fazer face a despesas imprevistas, um
158 060 valor ligeiramente acima da média
25 000
150 000 da União Europeia. Nas pessoas com
rendimentos mais baixos e em risco
de pobreza, 64% não tinham capaci-
20 000
dade para responder a gastos inespe-
rados. Além disso, segundo cálculos
100 000 do centro de estudos Bruegel, basea-
15 000 dos em dados do BCE, para o total
das famílias portuguesas a mediana
da dimensão da almofada financeira
10 000 50 000 equivalia a pouco mais de dois meses
2001 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 2000 01 02 03 0405 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 de salário. A recomendação dos espe-
FONTE IGCP FONTE Banco de Portugal INFOGRAFIA MT/VISÃO cialistas em finanças pessoais é de que

46 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


ALTERNATIVAS PARA PÔR
AS POUPANÇAS A RENDER
Depósitos bancários É a
alternativa a que, tradicionalmente, os
portugueses mais recorrem. Apesar de
atualmente terem juros muito próximos
de 0%, continuam a ser a principal
opção para colocar a poupança, devido
a terem capital garantido e liquidez
imediata. António Ribeiro, analista da
Deco Proteste, aconselha a fazer-se
uma prospeção de mercado, já que nos
depósitos para o prazo de um ano as
taxas variam entre 0% e 0,7% líquidos.

Dívida do Estado Os certificados


de aforro e certificados do tesouro
também têm capital garantido e têm
sido uma das grandes apostas para
colocar a poupança. Estes produtos
têm rendimentos ilíquidos entre cerca
de 0,5% e 1,38%, dependendo do prazo
da aplicação.

Imobiliário Perante os baixos


retornos de depósitos e outros
instrumentos mais conservadores, o
imobiliário foi uma opção popular nos
últimos anos para se conseguir garantir
algum retorno nas poupanças, apesar
de no investimento direto não existir
liquidez imediata. Além da compra
para valorização ou arrendamento, por
exemplo, existem também fundos que
permitem investir neste mercado. Em
esse fundo de emergência tenha um não é propriamente voluntária”, realça
cinco anos, o número de investidores
maior poder de fogo. “Recomendamos Filipe Garcia. As restrições provocadas
neste tipo de produtos, geridos por
ter entre cinco e seis salários”, indica pela pandemia forçaram a um corte
entidades portuguesas, mais do que
António Ribeiro, analista financeiro abrupto do consumo, que resultou duplicou. Eram mais de 108 mil no final
da Deco Proteste, em conversa com nos tombos inéditos do PIB e no ris- de junho, segundo dados da CMVM.
a VISÃO. co de subida maciça do desemprego. Estes produtos tiveram em média uma
À partida, a subida da poupança até Além da quebra forçada do consumo, rendibilidade ilíquida de 3,2% no último
poderia ser vista como algo positivo a tendência de se poupar em tempos ano.
para a economia. O problema é que de crise funciona também como um
“há uma parcela dessa poupança que entrave à recuperação económica.
“Utilizando a investigação feita sobre Fundos de investimento Outra
alternativa passa pelo recurso
o efeito das precautionary savings na
a instrumentos nos mercados
ANTES recessão anterior, há evidência de que
este comportamento contribui para o
financeiros, sejam obrigações ou
ações. Uma das formas de investir
DA PANDEMIA, efeito recessivo”, revela Susana Peralta.
Também Paula Carvalho considera
nestes produtos é através de fundos
UM EM que “no curto prazo, o aumento de
ou PPR, que oferecem opções
consoante o grau de risco e o perfil
CADA TRÊS poupança provoca sempre menor
crescimento, dado que significa uma
dos aforradores e permitem ter uma
carteira diversificada. Existem mais
PORTUGUESES diminuição do consumo imediato”.
Mas a economista do BPI realça que
de 970 mil investidores em fundos
geridos por instituições nacionais e
NÃO CONSEGUIA “se for aplicada e alocada aos setores cerca de 265 mil que apostam em
que precisam de capital para investi-
FAZER FACE mento ou liquidez, se essa alocação for
fundos de gestoras estrangeiras.
Já o investimento direto em bolsa
A DESPESAS bem feita, de forma eficiente e eficaz,
mais tarde tal traduz-se em aumen-
adequa-se sobretudo a investidores
mais experientes e familiarizados com
IMPREVISTAS to da produtividade e da capacidade conceitos financeiros.

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 47


Recurso ao
crédito desce
Colapso no consumo levou a uma
quebra nos empréstimos. Moratórias
ajudaram a manter incumprimento
sob controlo.

A quebra súbita de rendimentos ou a


chegada de despesas inesperadas levam,
muitas vezes, ao recurso ao crédito ao
consumo. Mas, nesta crise, isso não
aconteceu. Apesar de cerca de um terço
das famílias portuguesas não dispor de
um fundo de emergência, a quebra no
consumo e apoios como as moratórias
de crédito evitaram, para já, que se
aumentasse o recurso ao endividamento.
As instituições bancárias têm indicado
nos últimos inquéritos feitos pelo Banco
de Portugal que a procura de crédito
pessoal diminuiu “fortemente” no segundo
trimestre, apesar de se notar uma
recuperação nos últimos meses. Entre o
início do ano e o final de agosto, o valor dos
GETTY IMAGES

novos créditos aos consumidores totalizou


3,82 mil milhões de euros, menos 39%
do que os 6,28 mil milhões no mesmo
período do ano passado. Estes valores
incluem crédito pessoal, empréstimos
para a compra de automóvel e os plafonds produtiva”. Assim, recomenda, “o que se deve
autorizados de cartões de crédito e Para já, e devido à incerteza sobre pedir às famílias neste Natal é que não
descobertos bancários. Além da menor a evolução da pandemia, o dinheiro deem dinheiro aos netos, mas que lhes
procura de crédito, tem-se conseguido, está a ficar parado em depósitos ban- comprem prendas. Neste momento é
à custa das moratórias, manter o crédito cários e equiparados em vez de fluir mais importante dar um cavalinho de
malparado sob controlo. Nos empréstimos para a economia. À exceção do mês de pau fabricado em Portugal do que dar
ao consumo, o rácio de malparado continua agosto, o montante colocado nestas a ‘nota’ de 20, 50 ou 100 euros dentro
no mesmo nível de final de 2019 (6,6%) e aplicações tem batido sucessivos re- do envelope”. Seria uma das formas
no crédito à habitação até desceu de 0,8%
cordes. Havia mais de 158 mil milhões de ajudar a economia e as empresas
para 0,7% nos primeiros oito meses do ano.
de euros guardados em depósitos no portuguesas no difícil processo de
final de setembro, segundo dados recuperação.
Crédito ao consumo abrandou divulgados esta semana pelo Banco
de Portugal. Desde o início do ano, as A POUPANÇA DEPOIS DA CRISE
Montante dos novos contratos
de crédito aos consumidores novas entradas de dinheiro para de- Seja de forma involuntária ou como
VALORES EM MILHÕES DE EUROS pósitos superaram os levantamentos precaução face aos tempos incertos
em mais de oito mil milhões de euros. que vivemos, a poupança colocada de
800
O stock tem crescido a um ritmo de lado pelos portugueses é significativa.
700 quase 30 milhões de euros por dia. No segundo trimestre totalizou mais
600 “A poupança em depósitos associa- de 6,6 mil milhões de euros, segundo
504,4 da a uma incapacidade para a econo- dados do INE. O Banco de Portugal
500 mia encontrar boas alternativas para espera que o aumento da poupança
400 os aplicar de modo reprodutivo atra- nesta fase venha depois a possibilitar
vés do crédito às empresas leva a um uma recuperação mais rápida do con-
300 avolumar de liquidez sem virtualida- sumo. A instituição liderada por Mário
200 de”, afirma João Duque. O economista Centeno antecipa que “o consumo
acrescenta que há uma escassez de de bens duradouros não automóveis
100 procura de bens de consumo, pelo que tenha uma recuperação compara-
0 essa liquidez se torna estéril quando tivamente mais rápida, refletindo a
J F MAM J J A S O N D J F MAM J J A deveria deslocar-se para o consumo concretização de compras adiadas e
2019 2020 de bens e serviços, com particular relacionadas com a manutenção de ní-
INFOGRAFIA MT/VISÃO destaque para os bens duradouros. veis elevados de teletrabalho e ensino

48 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


à distância”. Já as despesas associadas global e mais abrupta”, realça Susana
a lazer, turismo e restauração deverão Peralta. O mais provável é que, dada a
ter uma recuperação mais lenta. natureza da crise, mesmo quando se
Após a saída das crises anteriores, ultrapassar a pandemia, a poupança
a poupança em Portugal mostrou continue em níveis mais altos do que
tendência de descida com a desmo- os verificados nos últimos anos. “Caso
bilização dos fundos preventivos por a situação não se agrave, a tendência
parte das famílias quando a bonança será para a taxa de poupança recuar,
se seguiu à tempestade. Mas, desta embora possa estabilizar em patama-
vez, isso poderá não ser tão linear. “É res mais elevados do que os anteriores
sempre preciso ter cuidado com estas à Covid-19, dada a persistência do
extrapolações, até porque esta crise efeito desta crise ao nível de capaci-
é diferente. Foi mais repentina, mais dade de geração de riqueza”, afirma
Paula Carvalho, economista do BPI.
Apesar da aparente confiança na recu-
AS POUPANÇAS peração do consumo, o próprio Banco
de Portugal admite que “a manutenção
PREVENTIVAS de um ambiente de incerteza deverá

DEVERÃO
continuar a motivar a poupança por
motivos de precaução”.
MANTER-SE Enquanto persistir a incerteza so-
bre o que ainda nos reserva esta crise
DEVIDO pandémica, o mais provável é que se

À INCERTEZA
tente evitar ao máximo desfazer os
fundos de emergência que foram sen-
SOBRE do reforçados nesta crise e que a li-
quidez continue parada nos cofres dos
A EVOLUÇÃO bancos em vez de fluir para projetos e

DESTA CRISE
investimentos que possam puxar pela
recuperação, via crédito. visao@visao.pt
AMÉRICA
O MOMENTO
DA VERDADE
COM O ADVERSÁRIO
EM VANTAGEM
E A NAÇÃO NUMA
ENCRUZILHADA,
DONALD TRUMP
CHEGOU À SUA ÚLTIMA
LINHA DE DEFESA, ANTES
DA BATALHA FINAL

M O L LY B A L L , E M O C A L A , F L Ó R I D A *
D
discurso conciliador sobre cuidados da economia, de como ele está a con-
de saúde, um comício drive-in num seguir uma maioria no Supremo Tri-
parque de feiras, em Detroit, posan- bunal, e pouco mais.” Em privado, até
do para selfies (com máscara), com os assessores de Trump admitem que,
um coro juvenil. Mas o que Biden faz mais do que uma verdadeira estraté-
é quase irrelevante. As eleições de 3 gia política, os seus comícios servem,
de novembro não são sobre Biden, e sobretudo, para manter o Presidente
todos – incluindo o próprio Biden – ocupado e satisfeito emocionalmente.
sabem disso. São sobre Trump. Este é Tanta coisa tem acontecido e, to-
o derradeiro referendo a uma Presi- davia, nada parece mudar desde 2016:
dência que não respeita normas; é o indignações, escândalos, tumultos,
clímax de um colapso nervoso nacio- centenas de milhares de mortos e
nal, o último acerto de contas. Desde milhões de desempregados devi-
que se candidatou que Biden descreve do ao SARS-CoV-2. A proibição de
a sua campanha como uma “batalha entrada no país de cidadãos de paí-
pela alma da nação”, e, por mais banal ses muçulmanos; a investigação do
De início, a voz do Presidente parece que isto possa soar, é difícil discordar. procurador Robert Mueller sobre a
estar rouca, até que ele se põe aos gri- Esta é uma campanha que assenta num ingerência russa em 2016; filhos de
tos. “Vamos obter uma grande vitória e contraste emocional – confiança, in- imigrantes em gaiolas; Stormy Da-
ponto final”, proclama Donald Trump. clusão – e num apelo a um recomeço, niels [a atriz de filmes pornográficos
“E mais, sabem porquê? É mais outra a um regresso a tempos normais. a quem Trump pagou para não reve-
derrota e eles acabarão por aceitá-la.” “Toda a gente sabe quem é Trump”, lar um caso extramatrimonial] e Kim
Ouve-se um murmúrio entre a declara Biden, no Michigan. “Agora Jong-un [o ditador norte-coreano que
multidão jubilante e suada que enche é preciso que eles [eleitores] saibam Trump considera um amigo]. Injeções
este centro de criação de cavalos, a quem nós somos.” No entanto, como de desinfetante contra a Covid-19,
noroeste da cidade de Orlando, na Ca- Trump não se cansa de realçar, se o recomendadas por Trump durante
lifórnia. Há milhares de pessoas con- normal de outrora era assim tão bom, uma conferência de Imprensa. Os
centradas na pista do aeroporto, sob então ele jamais teria sido eleito. emolumentos de governos estran-
um sol escaldante de outubro. Quase Um Trump combativo, insistindo geiros [que violam a Constituição]; a
toda a gente enverga uma t-shirt ou um em que os institutos de sondagens impugnação aprovada na Câmara dos
boné com slogans de Trump, e quase estão enganados, um caos em rede- Representantes...
ninguém usa máscaras faciais. Eles [a moinho: em muitos aspetos, parece Os últimos quatro anos têm sido
assistência] vão ganhar a Flórida mais uma repetição das eleições de 2016. um sonho político febril, uma história
uma vez, assevera Trump. Vai haver no- Alguns republicanos, angustiados, de um homem que morde um cão,
vamente [como aconteceu nas eleições receiam que Trump esteja em queda sem que ninguém concorde em que
de 2016] uma grande onda vermelha [a e a arrastar com ele o partido. campo está o cão e em que campo está
cor do Partido Republicano]. Recentemente, o senador republi- o homem. Uma grande parte dos nor-
Numa outra versão da realidade, cano Ben Sasse, do Nebraska, acusou te-americanos convenceu-se de que
o cenário é muito menos promissor o Presidente de ser um “indivíduo os democratas estão em conluio com
para o atual inquilino da Casa Bran- narcisista obcecado com a televisão”, um culto de pedófilos que adoram
ca. A maioria das sondagens indica que “bajula ditadores”, “maltrata mu- Satanás, e Trump não diz se acredita
que o seu adversário, o democrata lheres” e “troça dos cristãos evangéli- nessa teoria de conspiração, porque
Joe Biden, está numa posição de li- cos” [a sua principal base de apoio]. É esse eleitorado o ama.
derança na Flórida, um estado sem o claro que Trump arrasou com Sasse, Tudo deu errado, e tudo pode ainda
qual é quase impossível a reeleição de no Twitter. acontecer. Esta é a maior diferença
Trump e onde mais de 16 mil pessoas relativamente a 2016: embora todos
morreram de Covid-19. UM SONHO FEBRIL os dados pareçam apontar para uma
O Presidente norte-americano está Os estrategos da campanha de Trump derrota de Trump, os analistas, que
na defensiva nos chamados estados gostariam que ele os ouvisse e se há quatro anos tantas certezas tinham
battleground [decisivos na determi- comportasse bem, em vez de, por quanto a uma vitória de Hillary Clin-
nação do vencedor], que ele ganhou exemplo, continuar a sua vendetta ton, mostram-se agora cautelosos.
há quatro anos, e depara com dificul- contra Anthony Fauci, o mais popular
dades até mesmo nos estados onde a cientista do país, ou de disseminar
vitória seria certa, como no Ohio e na
Geórgia. Numa altura em que os pro-
relatórios duvidosos que muitos sus-
peitam tratar-se de uma campanha de TRUMP ESTÁ NA
blemas do país são urgentes e óbvios, desinformação russa, sobre o antigo DEFENSIVA ATÉ NOS
ESTADOS ONDE DEVERIA
o argumento final de Trump é uma trabalho de Hunter Biden [filho de
embrulhada de teorias da conspiração Joe], na Ucrânia.
e de queixumes pessoais.
Enquanto, na Flórida, o Presidente
Trump “deve parar de se quei-
xar que as pessoas o atacam ou que TER UMA VITÓRIA CERTA,
congregava os seus apoiantes, no Mi- estão a tentar roubar-lhe a eleição”, COMO NO OHIO
E NA GEÓRGIA
chigan, Joe Biden dedicava-se a coisas recomenda o estratego republicano
normais para qualquer candidato: um Charlie Black. “Deveria falar apenas

52 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


Campos de batalha pelo voto
Os estados onde se podem decidir as eleições de 3 de novembro, vulgo swing states

232 VOTOS NO COLÉGIO ELEITORAL, SEGUNDO AS ÚLTIMAS SONDAGENS


125
Seguros Favoráveis Empatados Favoráveis Seguros
118 114 181 68 57
270 O vencedor necessita de ganhar, pelo menos, 270 dos 538 votos no Colégio Eleitoral
NÚMERO DE VOTOS ATRIBUÍDOS A CADA ESTADO NO COLÉGIO ELEITORAL. O CANDIDATO QUE GANHAR
EM CADA ESTADO RECEBE TODOS OS VOTOS ELEITORAIS, COM EXCEÇÃO DO MAINE E DO NEBRASKA
MASSACHUSETS
NEW HAMPSHIRE 4 11
WASHINGTON VERMONT 3
12 MICHIGAN
MONTANA DAKOTA 16 MAINE
3 DO NORTE MINNESOTA VIRGÍNIA 2
OREGON 3 10 OCIDENTAL RHODE
7 DAKOTA 5 NOVA ISLAND
IDAHO WISCONSIN IORQUE
4 DO SUL 4
WYOMING 3 10 20
3 PENSILVÂNIA CONNECTICUT 4
IOWA
NEVADA NEBRASKA 6 20 NOVA JÉRSIA 14
JOE BIDEN 6 4 INDIANA OHIO DONALD TRUMP
Partido Democrata UTAH ILLINOIS 11 18 Presidente dos EUA
DELAWARE 3
6 COLORADO 20 VIRGÍNIA Partido Republicano
9 KANSAS MARYLAND 10
6 MISSOURI 13
CALIFÓRNIA 10 KENTUCKY 8
55 DISTRITO
ARIZONA OKLAHOMA TENNESSEE 11 DE COLÚMBIA
11 NOVO MÉXICO 7 ARKANSAS CAROLINA 3
5 6 DO SUL
9 CAROLINA DO NORTE
ALABAMA GEÓRGIA 15
TEXAS 9 16
38

LUISIANA MISSISSÍPI FLÓRIDA


8 6 29
ALASKA 3 HAWAI 4

Arizona Texas Iowa Ohio Flórida Pensilvânia Geórgia


Um dos principais bastiões O estado com o segundo Tudo pode vir a Em 1960, os eleitores deste Em 2016, Donald Trump ganhou Aquele que já foi Outro dos grandes
republicanos dos EUA. maior número de eleitores acontecer neste estado estado votaram o “Shunshine State” por apenas o maior bastião bastiões republicanos
No último século, só os e com maior peso no Colégio conservador que, em maioritariamente em Richard 1,2% (113 mil votos). Por causa da democrata da cintura cujo perfil demográfico e
democratas Franklin Eleitoral, só suplantado pela 2016, Donald Trump Nixon, ao contrário dos seus pandemia, os eleitores brancos industrial dos EUA deu, sociológico está a mudar
D. Roosevelt, Harry Truman Califórnia, pode ser uma das ganhou de forma clara compatriotas que deram e reformados podem agora em 2016, a vitória a de forma acelerada.
e Bill Clinton conseguiram surpresas de 3 de novembro. a Hillary Clinton. a vitória a John Fitzgerald virar-se para Joe Biden, mas a Donald Trump por Os afro-americanos já
fugir à tradição. A influência crescente A pandemia pode aqui Kennedy. Mas depois disso, sua vantagem é residual (1,5%). apenas 44 mil votos representam quase um
As sondagens indicam que dos hispânicos pode penalizar o Presidente apesar dos resultados Os hispânicos, em geral, e os (0,7% do total). Agora, terço do eleitorado
Joe Biden pode ser o quarto. baralhar os planos de e os Republicanos - renhidos, acertaram sempre cubanos, em particular, podem Joe Biden não quer ser e podem dar a Casa
A confirmar-se, será a vingança Donald Trump. Jimmy entre os “swing states”, no candidato vencedor para a ser decisivos para a reeleição derrotado no estado Branca a Joe Biden, tal
póstuma de John McCain, o Carter, em 1976, foi o último é o que tem as taxas Casa Branca. Neste momento, do Presidente - o Partido onde nasceu (na como já aconteceu com
senador que Donald Trump Presidente democrata a de contágio Biden e Trump parecem Republicano ganhou 241 mil cidade de Scranton) Bill Clinton, em 1992
insultou vezes sem conta conquistar o “Lone Star State” mais elevadas virtualmente empatados novos militantes desde agosto

BIDEN VS TRUMP RESULTADOS DE 2016


Evolução das intenções de voto (a nível nacional) Clinton obteve mais 2,8 milhões de votos,
mas Trump ganhou no Colégio Eleitoral
52
CLINTON 232 TRUMP 306
50 48,0% 45,9%
270
48 50,8%
46

44 42,8%
42

40
JAN. FEV. MAR. ABR. MAI. JUN. JUL. AGO. SET. OUT.

FONTE RealClearPolitics INFOGRAFIA MT/VISÃO

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 53


Sortudo Joe Biden pode vir a beneficiar
da elevada taxa de participação eleitoral.
Já se especula que estas possam ser as
eleições mais concorridas desde 1960

Excluir Trump é tentar o destino. as ruas e formaram clubes locais, de


Por isso, é necessário que esta eleição Oakland a Oklahoma City. Mobiliza-
não sirva apenas para decidir quem irá ram-se por muitas causas – justiça
ocupar a Casa Branca, nos próximos racial, cuidados de saúde, direitos dos
quatro anos. Em 3 de novembro (ou, imigrantes e das mulheres –, mas o
se tudo correr bem, poucos dias de- principal objetivo é livrarem-se deste
pois), os EUA talvez possam responder Presidente.
à pergunta sobre o que representaram Verificou-se um realinhamento,
estes últimos quatro anos – se Trump mas o número crescente de brancos
era o que a América queria ou se foi da classe operária que se associaram
um acaso que acabou por ter sérias ao GOP embateu numa adesão em
consequências. Será uma decisão não massa ao Partido Democrata por parte
sobre propostas políticas a adotar, de eleitores brancos com formação
mas sobre qual a realidade que, cole- universitária, residentes dos subúr-
tivamente, decidimos habitar. bios e mulheres. A eles se juntaram
eleitores jovens e de cor, indepen-
BRANCOS VS. BRANCOS dentes e seniores. E Joe Biden “criou
No meu voo para o Minnesota, para uma coligação sem precedentes na
mais um comício de campanha de política democrata nos últimos 20
Trump, o passageiro no assento ao anos”, salienta John Anzalone, o prin-
lado do meu inicia, com o comissário cipal responsável pelas sondagens da
de bordo, uma discussão sobre más- campanha do adversário de Trump.
caras faciais. Quando chego ao balcão Apesar de todas as explicações para
da agência de aluguer de viaturas, um o que aconteceu em 2016, e subse-
funcionário com aparência normal quentemente, a história política desta
tem um autocolante no telemóvel era talvez seja simples: a maioria dos
em que se diz: “Q: Trust the plan” norte-americanos não queria que
[referência ao movimento conspira- Trump fosse Presidente. Só que uma
tivo Qanon]. confluência de circunstâncias ajudou a
GETTY IMAGES

O Minnesota, estado rural, nem sem- colocá-lo na Casa Branca: a adversária


pre foi um viveiro de atividade políti- certa [Hillary Clinton], a ingerência
ca, mas a vitória de Trump, em 2016, russa, o Colégio Eleitoral.
nasceu em lugares como este: cidade Donald Trump não era um teó-
vazia do Midwest [região Centro-Oes- rico político nem sequer criou um gorá-los ainda mais não é o proble-
te] industrial, onde as suas declarações movimento. Concentrou-se apenas ma.” O número de eleitores brancos
agressivas e tiradas em oposição a no rugido da multidão, na lisonja ao das zonas rurais que ele levou para o
acordos comerciais e à imigração gal- seu ego. Os milhões que o amam de- GOP é muito menor do que o de elei-
vanizaram legiões de pessoas brancas ram-lhe um feedback constante de tores urbanos e suburbanos atraídos
sem formação universitária. Michigan, afirmação e transformaram partes da pelo Partido Democrata, e o resultado
Wisconsin e Pensilvânia tornaram-se América rural e branca em “Trump é que Trump irá, provavelmente, ter
estados republicanos, pela primeira Country” [País de Trump]. um resultado no Minnesota muito
vez, em décadas. E o Minnesota esteve Acontece, porém, que uma maioria pior do que obteve há quatro anos,
a 1,5 pontos percentuais de também de norte-americanos – em particular apesar de ter feito deste estado um
mudar de cor. a metade do eleitorado que vive nas dos principais alvos da sua campanha,
Depois de 2016, muitos têm vindo a áreas suburbanas – acorreu às urnas, constata Jacobs. “Este é um daqueles
analisar esta revolução. Donald Trump desde 2016, para exprimir o seu desa- anos em que o Presidente é tão im-
foi, por um lado, saudado como o grado, seja em eleições locais seja nas popular que um referendo sobre ele
tribuno de um realinhamento da intercalares de 2018. E Trump pouco poderá criar uma enorme afluência
classe operária e, por outro, despre- tem feito para convencê-los a mudar às urnas.”
zado como um demagogo da política de ideias. O comício de Trump em Bemidji,
identitária branca. Teóricos, como o “A base de Trump está ao rubro”, em 18 de setembro, pode ter sido o
seu antigo conselheiro Steve Bannon, admite Larry Jacobs, cientista político milionésimo dos EUA, mas foi apenas
imaginaram uma mudança eleitoral na Universidade de Minnesota. “Revi- o primeiro nesta região. Os apoiantes
tectónica, à medida que uma nova amontoaram-se no pequeno hangar
política centrada no nacionalismo, do aeroporto para ouvir o Presidente
no isolacionismo e no protecionismo A CAMPANHA DE JOE dizer que os democratas querem en-

BIDEN JÁ GASTOU MAIS DE


suplantava o dogma económico obso- cher o seu estado com refugiados do
leto, proposto pelo GOP [Grand Old Terceiro Mundo, como é o caso da
Party – Partido Republicano].
Além disso, Trump também arqui- 250 MILHÕES DE DÓLARES congressista liberal de Minneapolis
Ilhan Omar [imigrante muçulmana
tetou outra coisa: o despertar do outro EM ANÚNCIOS TELEVISIVOS da Somália].

NOS ESTADOS DECISIVOS


campo. Liberais em estado de choque, Durante grande parte do discur-
na sua maioria mulheres, encheram so, Trump perdeu-se em elogios ao

54 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


o centro, evitar distrações, deixar o
adversário destruir-se. Mas, e depois?
“Trump tem um medo de morte de
ficar visto como um perdedor”, afir-
ma Miles Taylor, um antigo membro
da administração Trump que agora
faz campanha a favor de Biden. “Ele
vai considerar qualquer perda como
sendo ilegítima, para se sentir melhor.
E quem sofrerá mais não será Donald
Trump – serão as nossas instituições
democráticas e o país.”
Se vencer, Joe Biden enfrentará
uma série de desafios espinhosos,
além da pandemia e da recessão que
a acompanha. A sua enorme coligação
inclui centristas e socialistas, repu-
blicanos apóstatas e democratas de
base, idosos com medo da Covid-19 e
jovens eleitores de cor revoltados. Ele
apresentou uma agenda económica
ambiciosa que promete “reconstruir
melhor”, gastando biliões de dólares
para expandir o sistema nacional de
saúde, edificar novas infraestruturas
e lidar com as alterações climáticas.
Alguns ativistas liberais exigem
mudanças significativas como o fim
do filibuster no Senado [um processo
que permite aprovar as nomeações e
leis mais importantes com uma maio-
ria de apenas 51 e não de 60 votos –
ideia dos democratas para ajudarem
talento militar do general Robert E. teve. Tem uma vantagem maior em Obama, mas que agora os prejudica]
Lee [comandante do Exército dos Es- todo o país e não enfrenta um terceiro e a entrada de mais juízes no Supre-
tados Confederados durante a Guerra candidato de peso [como Jill Stein, do mo Tribunal. Sem estas mudanças,
Civil Americana, 1961-1865], depois Partido Os Verdes, em 2012 e 2016] alegam, a agenda de Biden ficará blo-
dedicou vários minutos aos emails que o possa prejudicar. Sondagens queada; outros argumentam que isto
de Hillary Clinton e descreveu sem estaduais mostram que Biden che- representará uma escalada inaceitável
pudor a “bela cena” de um repórter a gou muito mais longe do que Hillary no que tem sido a política de Trump:
ser atingido por um projétil, durante Clinton, no Wisconsin e no Michigan, quebrar as regras.
um direto televisivo. Em 9 de outubro, embora noutros estados, como nos “O nosso sistema tem sofrido
as autoridades de saúde haveriam de da Flórida e da Pensilvânia, a corrida imenso com a ordem irregular de
comunicar que o comício em Bemidji esteja a ser renhida. Donald Trump, mas Joe Biden sabe
foi a fonte de nove casos de Covid-19, Uma angariação de fundos mas- como fazer-nos regressar à norma-
dois deles exigindo internamento siva permitiu à equipa de Biden gas- lidade”, confia Miles Taylor.
hospitalar. tar mais em anúncios televisivos do Se alguma coisa aprendemos com
que Trump – cerca de 250 milhões a eleição de Trump é que o normal
SÍNDROME PÓS-TRAUMÁTICA de dólares [mais de 210 milhões de nunca deixou de ser uma ilusão. A
Com uma liderança constante na euros], na Flórida, na Pensilvânia, no América sempre foi um lugar mais
reta final, Joe Biden preocupa-se, Michigan, na Carolina do Norte, no estranho, mais zangado e mais dividi-
agora, em não cometer erros. “Se Wisconsin e no Arizona. Tem ainda do do que aquele que os seus políticos
aprendemos algo com 2016 é que não as ondas da rádio e a televisão só para reconhecem. Não há recuo possível; o
podemos subestimar Trump ou a sua si, no Ohio e no Iowa. único caminho é seguir em frente.
capacidade de voltar à luta nos últi- Os democratas também têm uma
mos dias”, escreveu Jennifer O’Malley vantagem clara sobre os republicanos * Com Charlotte Alter, Brian Bennett,
Dillon, manager da campanha de no que a toca a votações antecipa- Leslie Dickstein, Philip Elliott, Simmone
Biden, num memorando que, em 17 das. Joe Biden optou por fazer uma Shah e Abby Vesoulis.
de outubro, enviou aos apoiantes do campanha ligeira, feliz por manter os
democrata. eleitores centrados em Trump. Se tudo
Em sondagens nacionais, Joe Biden correr como planeado, Biden parecerá
© 2020, TIME Inc. Todos os direitos reservados.
tem uma imagem mais favorável do um génio político por executar os es- Traduzido da TIME Magazine
que a de Hillary Clinton alguma vez tratagemas mais básicos: tentar cativar e publicado com autorização da TIME Inc.

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 55


ANTÓNIO CHAMPALIMAUD
UMA VIDA
CONTROVERSA
Na próxima semana, Jaime Nogueira Pinto lança
Um Olhar (Dom Quixote), uma nova biografia de António
Champalimaud. Com depoimentos de familiares
e amigos e através de fotos inéditas, que a VISÃO aqui
publica em primeira mão, o autor dá-nos uma perspetiva
mais intimista sobre um dos homens que marcaram
a história do século XX em Portugal
PA U L O M . S A N T O S
Berço de ouro
Com a mãe, Ana de
Araújo de Sommer
Criados na disciplina
Cresceu no seio de uma família abastada. Filho de Carlos Montez Champalimaud, médico militar e descendente de
fidalgos franceses, e de Ana de Araújo de Sommer, família alemã radicada em Portugal, dona da Quinta da Marinha,
que se dedicava ao comércio do ferro, António Champalimaud foi educado com uma certa austeridade. Receita que
quis repetir na educação dos seus filhos: “Não lhes dava muito dinheiro. Dava-lhes o que entendia que era necessário.
Tinham em casa tudo o que precisavam. Não passavam dificuldades como eu também não as tinha passado. Criei-os
com disciplina. Vivam uma certa largueza, mas sem esbanjamentos.” Cultivava o estoicismo, tal como era apanágio das
famílias mais tradicionais da altura, embora tenha sido mais duro com os rapazes do que com as meninas. O mesmo
aconteceu com os netos. Começou a trabalhar aos 19 anos, após a morte do pai. E nunca mais parou. Construiu um
império, perdeu-o, reconstruiu a fortuna além-fronteiras, voltou a investir em Portugal e deixou cerca de um terço do
seu dinheiro para criar uma Fundação Champalimaud. “Os meus pais ensinaram-me, desde muito novo, que era preciso
trabalhar [...]. Estatisticamente, já deveria ter morrido. Como isso ainda não aconteceu, continuo a trabalhar.”

O tremer do chão
Estendeu os seus negócios a quase todo o
tipo de atividades, desde a siderurgia à banca,
passando pelos cimentos, os seguros e a
agricultura, entre muitas outras. No entanto,
era na indústria que se sentia vivo: “Quando
entro na fábrica, sinto o tremer do chão se
as máquinas estão a trabalhar bem. Quando
entro no banco, não sinto nada.” Gostava de
acompanhar todos os processos, desde a
construção da fábrica até ao momento em que
esta iniciava a laboração. Teve um método
de trabalho que seguiu à risca: levar cada
um dos investimentos até ao fim, para não
se “dispersar por pequenos negócios” que
o desviassem dos “objetivos essenciais”. Foi
assim também no final da sua vida. Talvez pela
experiência que sentiu no caso da herança
Sommer, fez questão de transformar todos os
seus bens patrimoniais em dinheiro ou ações,
fáceis de transacionar, evitando qualquer tipo
de conflito na distribuição da sua fortuna pelos
seus herdeiros.

58 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


FOTOS: D.R.

A magia de África
Apesar de ter herdado, do lado da sua mãe, minas de cobre no Nordeste de Angola e algumas fazendas em São
Tomé, a sua verdadeira incursão por terras africanas começou com a compra, ao BNU, da fábrica de cimentos da
Matola, em Moçambique, negócio que acabaria por dar início ao caso da herança Sommer. Em poucos anos, António
Champalimaud iria tornar-se um dos maiores produtores de cimento e aço de África, beneficiando da pujança do
investimento em obras públicas que existia nestes dois países, nomeadamente a construção da barragem de Cahora
Bassa. Mas este continente foi para António Champalimaud mais do que uma mera oportunidade de negócio: “Nem
queria acreditar nos meus olhos. A magia de África foi para mim um repto sensorial único.” Homem de paixões, tinha
as mulheres como “a coisa mais fantástica da criação de Deus” e a caça como um dos seus passatempos favoritos.
Este fascínio levou-o a comprar duas coutadas em Moçambique onde família e amigos se dedicavam a esta atividade
e que, mais tarde, se tornaram uma das zonas mais protegidas da vida animal daquele país. “Deixei de caçar quando
percebi que a fauna era um bem limitado, que se estava a dizimar e que precisava de ser protegido.” O continente
africano acabaria também por marcar a sua via após o exílio de Portugal. Quando lhe perguntaram o porquê da
escolha do Brasil, respondeu: “Talvez tenha sido, também, a nostalgia de África.”

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 59


O fim do primeiro império
O caso da herança Sommer levou António Champalimaud
a sair do País, em 1969, tornando-se foragido da Justiça.
Só regressou a Portugal em 1973 e, poucos meses
depois, dá-se o 25 de Abril. Confiante no seu passado de
contestação ao regime de Marcelo Caetano e por ter a seu
lado alguns advogados conotados com a oposição, como
Francisco Sousa Tavares, Manuel João da Palma Carlos
e Francisco Salgado Zenha, António Champalimaud
não teme o processo revolucionário, apesar de ser um
dos homens mais ricos do País. Quatro dias depois da
revolução, a Junta de Salvação Nacional, liderada pelo
general António de Spínola, recebe no Palácio da Cova da
Moura o chamado núcleo duro de líderes empresariais
de Portugal. Entre eles estão Manuel Ricardo Espírito
Santo, José Manuel de Mello, Miguel Quina, João
Meireles e António Champalimaud. Com o aumento das

ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO


tensões políticas após o 1º de Maio e a demissão de
Adelino da Palma Carlos do cargo de primeiro-ministro,
que resultaria na ascensão de Vasco Gonçalves, António
Champalimaud percebeu que a “tolerância” que tinha
para com o novo regime estava esgotada: “Junto
de Spínola, tentei, por todas as formas e feitios, evitar
a tragédia. Expus-me muito. Fui tantas vezes a Belém,
a pedido dele, que nas últimas vezes já pensava se
não ia lá para ficar preso”, diria.

Homens de aço
Apesar do seu namoro com a Junta de Salvação
Nacional, os focos de tensão fizeram-se desde
logo sentir nas suas empresas, entre as quais
a Siderurgia Nacional, que, para António
Champalimaud, era uma espécie de bastião
do império. Já com um caderno reivindicativo
preparado –, que exigia saneamento de
administradores, aumentos salariais e
participação nos lucros –, os trabalhadores
exigiam falar com o “patrão” antes de entrar em
greve. Apesar do clima de tensão que se alastrava
FOTOS: D.R.

pelas ruas, António Champalimaud pegou no


seu carro e foi sozinho para o Seixal. Em jeito
de comício, subiu a uma varanda para falar com
todos os funcionários que se concentravam num
dos pátios da empresa: “O homem de aço fala aos
homens de aço. A greve é loucura. A salvação, a
prosperidade de todos, a entrada de mais escudos
na casa de cada um ao fim do mês reside na
capacidade de produzir mais aço, sem greves
e com a maior colaboração entre todos.”
O discurso, porém, acabaria por não surtir efeito.
Pouco tempo depois, um grupo de trabalhadores
invadiu a sede da Siderurgia na Rua Braancamp,
em Lisboa, para sequestrar os administradores.
Em abril de 1975, a Siderurgia acabaria
nacionalizada, bem como outras empresas de
ARQUIVO A CAPITAL/IP

Champalimaud. A família vai para Paris e, mais


tarde, recomeça no Brasil, onde ainda lhes
restava uma cimenteira, a Soeicom, após terem
sido expropriados do seu império empresarial
em Portugal, Moçambique e Angola.

60 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


“Nós não somos um clã”
O casamento com Maria Cristina de Mello, neta de Alfredo da Silva, fundador da CUF, com quem teve sete filhos,
foi um dos catalisadores do crescimento do império Champalimaud. Mas António nunca viria a ser bem acolhido
no seio daquela que era, na altura, a família mais rica de Portugal. “O meu casamento correu mal. E, por outro lado,
entre mim e os meus cunhados, havia uma competição empresarial agravada pelas intrigas no seio da família.”
O divórcio aconteceria nos anos 60, na mesma altura em que rompia com os irmãos, devido ao tão badalado
caso da herança Sommer, que se arrastou pelos tribunais entre 1957 e 1973. Aos filhos deixou o aviso:
“Nós não somos um clã. Clã é a família Espírito Santo. Nós não.” No exílio, no Brasil, deu-se o regresso à terra.
Com a sua companheira da altura, Maria João de Mello Espírito Santo, António Champalimaud comprou várias
fazendas e dedicou-se à agropecuária. No início dos anos 90, já tinha mais de oito mil cabeças de gado.
IMOBILIÁRIO / DOSSIER

À MEDIDA DOS

No condomínio A Obra Nova


ERA, uma parceria com 40
promotores, já tem mais de
300 projetos em todo o país.
O Lux One, em Paços de
Ferreira, é um deles (na foto)

62 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


PORTUGUESES

Após anos arredados da construção nova – mais direcionada


para a capacidade financeira dos estrangeiros –, os clientes
nacionais começam a ter acesso a edifícios de qualidade,
com escala e a preços mais acessíveis
MARISA ANTUNES

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 63


I
IMOBILIÁRIO / DOSSIER

Imagine um apartamento a estrear, onde


não faltam varandas panorâmicas, área
específica para o teletrabalho e os quar-
tos todos em suíte. Fora de casa, mas
ainda no prédio, um jardim privativo NEXITY
só para residentes, bem como uma sala
multiusos que pode servir para celebrar
os aniversários das crianças ou como FRANCESES APOSTAM
área de cowork. Uma casa de sonho
ajustada aos tempos de pandemia e que
EM PORTUGAL
caracteriza bem o produto novo que co-
meça a surgir no mercado, a preços para A Nexity veio para Portugal
a classe média e média-alta nacional. investir em casas para o
São projetos de escala, com mais segmento médio/médio-alto.
de 50 unidades em cada edifício, cujas O seu primeiro projeto,
obras arrancaram no ano passado ou a Flower Tower, em Leça
já este ano, e que não só não pararam da Palmeira, tem 108
como não baixaram os preços de co- apartamentos, todos com as
mercialização – até porque os novos tão desejadas varandas. Com
ginásio comum e espaço de
atributos dos imóveis impostos pela
cowork, os preços começam
Covid-19 criaram também novos argu-
nos €112 500, para os T1, e vão
mentos de venda. Sinal evidente de que até aos €350 mil, para os T3.
o interesse dos compradores continua a
regular o valor das casas é o acréscimo
de 7,8% nos preços da habitação em
Portugal no segundo trimestre deste bém a primeira descida em cadeia desde dar a conhecer outros empreendimen-
ano (em comparação com o mesmo setembro de 2015. É, igualmente, uma tos de grande dimensão. “Por exemplo,
período do ano passado), ou seja, já em das descidas mensais mais acentuadas o projeto da Round Hill com a TPG,
plena pandemia. dos preços das casas desde 2007, ape- um condomínio com 98 apartamentos
Mas a tendência começa lentamen- nas superada pela variação de -2,2% em (de T1 a T4) e piscina comum em pleno
te a inverter-se quando se olha para a maio de 2011”, refere o relatório. Campo Pequeno, Lisboa; o Metropolis,
evolução dos preços desde março, sem Nada que afete, por enquanto, os com 200 unidades junto ao Estádio de
comparações com o ano anterior. Esta projetos novos, afiança Patrícia Barão, Alvalade; ou o outro empreendimento
semana ficou a saber-se, através da da consultora JLL. Depois do Jardim da Nexity, desta vez no Dafundo, em
Confidencial Imobiliário, que o preço de Miraflores dos belgas da Krest, com Algés, com 60 apartamentos. A norte,
venda das casas em Portugal Continental 120 apartamentos, ou do mais recente temos o projeto da Quântico/Albatroz
desceu 2,1% em setembro face a agosto. Flower Tower, da promotora francesa nas Antas, com 170 apartamentos. To-
“Salvo variações negativas residuais que Nexity, em Leça da Palmeira, com 108 dos estes projetos não pararam com a
não foram além de -0,3%, esta é tam- unidades, a JLL ultima preparativos para pandemia e vão ser lançados já no início

64 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


quitetura e na forma como os imóveis
J A R D I N S E FA N O R
vão e estão já a ser construídos em Por-
tugal. Um exemplo: o home office veio
PENSAR EM GRANDE para ficar, ou seja, existe a necessidade
de ter uma zona para trabalhar a partir
de casa. As grandes empresas já estão a
As coisas não podiam estar pensar como vai ser o modus operandi
a correr melhor nos Jardins no futuro e, havendo essa necessidade,
Efanor, em Matosinhos, um dos as casas têm mesmo de estar adaptadas”,
maiores projetos do País, com reforça Frederico Abecassis, realçando
mais de 400 casas projetadas. que agora, mais do que nunca, as habi-
O primeiro edifício com mais tações devem ser ecológicas. “Se vamos
de 60 unidades está quase trabalhar mais em casa, estas devem
acabado e já foram vendidas mesmo ser eficientes do ponto de vista
cerca de 75% das unidades,
energético, não só por questões de sus-
a maioria em plena pandemia.
tentabilidade do planeta mas também
Os preços começam nos
150 mil, para os T0, e vão quase
por questões económicas.”
aos 800 mil euros, para os T4
com piscina na cobertura. VARANDAS ANTI-STRESSE
Entre os argumentos de venda do
Flower Tower, o projeto da Nexity no
Norte, em Leça da Palmeira, estão pre-
cisamente aqueles que se encaixam nas
tem vindo a aumentar. “Devido à pan- novas exigências trazidas pela pandemia.
demia, as pessoas estão à procura de “É o caso dos espaços exteriores. O
casas com varandas, terraços, espaços Flower Tower é um edifício que brinca
exteriores, e esses imóveis têm valores muito com as varandas, é quase como
mais altos”, aponta Patrícia Barão. um jogo. Todos os apartamentos têm
Uma clientela mais abonada que, uma ou mais, o que faz todo o sentido
apesar da crise económica que está a com o clima que temos em Portugal.
instalar-se, vai permitindo equilibrar o Depois, ao nível dos interiores, procu-
setor. No entanto, nos dados mais re- rámos ter espaços polivalentes e temos
centes divulgados pelo Instituto Nacio- várias tipologias +1, em que se criaram
nal de Estatística, entre abril e junho já é quartos mais pequenos que podem fun-
notória a quebra no número de imóveis cionar como um escritório. Nas áreas
vendidos (usados e novos) – cerca de comuns, foi ainda criado um pequeno
33 398, menos 21,6% face ao mesmo ginásio e um espaço com potencial
período do ano anterior. para ser mais do que uma sala para as
Os preços, porém, não acompa- reuniões de condomínio. Pode ser um
nham esta redução. “O que a pandemia espaço de coworking ou uma sala de
veio trazer foi algum equilíbrio entre a eventos”, detalha Fernando Vasco Costa,
oferta e a procura. Mas nada tem que CEO da Nexity.
ver com a hecatombe de preços que al- Com preços a partir dos 112 500
guns preconizaram”, afirma Rui Torgal, euros, o Flower Tower despertou tanto
diretor-geral da rede imobiliária ERA. interesse junto do mercado que, em
O “interesse” da banca em continuar a pouco mais de um mês, foram vendidas
financiar o crédito à habitação, aliado às mais de 20 das 108 unidades que irá ter
taxas de juro de juro dos empréstimos, esta torre. Depois deste projeto, seguir-
“que não só são historicamente baixas -se-á o empreendimento no Dafundo
do próximo ano”, exemplifica a respon- como asseguram a perspetiva de se (Algés), onde em tempos funcionaram as
sável da JLL. manterem assim mais alguns anos”, são revistas da Motorpress. Serão mais de 60
“A classe média/média alta continua motores essenciais desta procura, realça. unidades, com a lógica atual em termos
ativa, muito interessada nas novidades Frederico Abecassis, CEO da consul- de espaços exteriores privativos, varan-
e a querer saber onde pode comprar e tora Coldwell Banker Portugal, reforça, das e até coberturas verdes, nas quais
o que comprar. É preciso não esquecer lembrando que, mais do que baixarem se podem incorporar piscinas para as
que o mercado residencial é mais re- os preços, as promotoras imobiliárias penthouses. “O nosso produto, embo-
siliente do que outros setores, pois as arranjam outras formas de negociar ra possa ser vendido a estrangeiros, foi
casas têm vários usos. Podem ser usa- com os clientes. “Os promotores estão pensado para as famílias portuguesas”,
das não só para viver mas também para a ser flexíveis na forma de pagamento, garante Fernando Vasco Costa.
passar férias, arrendar, trabalhar… Isto por exemplo, diminuindo os reforços A norte, começa a tomar forma o
permite que este setor nunca estagne”, de sinal”, exemplifica. projeto imobiliário que seria o culminar
reforça ainda, acrescentando que, neste “Mais do que impacto nos preços, do grandioso plano que o empresário
segmento, o valor médio de transação a pandemia veio trazer impacto na ar- Belmiro de Azevedo tinha para os ter-

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 65


IMOBILIÁRIO / DOSSIER

FORTERA

ISRAELITAS INVESTEM
NO NORTE
O grupo israelita Fortera
investiu cerca de €200 milhões
em mais de uma dezena de
projetos, todos a norte, entre
Porto, Gaia, Espinho (na foto)
e Braga. O público-alvo é
o mercado doméstico e os
valores médios do metro
quadrado situam-se nos €3
200. Em nenhum deles, garante
o CEO do grupo, foi sentido o
efeito da pandemia nas vendas.

renos da Efanor. Localizado em Mato- muito valorizadas, como as varandas de mas este segundo edifício vai ter mais
sinhos, no epicentro de uma série de 28 metros quadrados ou os 28 mil me- 145 unidades e contamos arrancar com
projetos Sonae (como o Norteshopping tros quadrados de área verde privativa, a construção em meados do próximo
ou o Porto Business School), o empreen- temos registado ainda mais procura”, ano. Acreditamos que o mercado vai
dimento Jardins Efanor tem já em fase conta Sandro Mota Oliveira, CEO da continuar a ter interesse neste tipo de
de finalização o primeiro edifício (de Invest&Co, empresa especializada na produto”, sublinha ainda o responsá-
vários que vão ser construídos num total gestão e promoção de ativos imobiliá- vel da Invest&Co, acrescentando que
de 400 casas) com 62 apartamentos e rios e que está a fazer a coordenação dos os portugueses representam 80% das
preços a partir dos 150 mil euros para Jardins Efanor, um empreendimento do vendas do primeiro edifício.
os T0. Cerca de 75% já foram vendidos, promotor Prédios Privados, que adqui-
a maioria este ano, em plena pandemia. riu os terrenos à Sonae. HOTÉIS RECONVERTIDOS
“Não sentimos qualquer impacto Com o ritmo de vendas a encorajar A menos de meia hora de distância de
negativo devido à atual situação, bem o investimento, a empresa prepara-se Matosinhos, mais especificamente em
pelo contrário… Tendo em conta as para lançar o segundo edifício em breve. Gaia, o grupo Fortera, de capitais is-
características do projeto, atualmente “Ainda estamos a definir as tipologias, raelitas, vai lançar o Skyline, um projeto

66 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


ros em uma dezena de projetos, todos 70 unidades) e menos hotel. E no Porto
COLDWELL BANKER
a norte, entre Porto, Gaia, Espinho e temos outro projeto, também com cerca
Braga. Em nenhum deles, garante Elad de 70 apartamentos, que foi, no último
CASAS SUSTENTÁVEIS Dror, foi sentido o efeito da pandemia
nas vendas, após o desconfinamento.
minuto, reconvertido em residencial”,
diz o gestor israelita.
“A maioria dos nossos projetos não Tal como aconteceu com a Fortera,
O Prata Riverside Village, está localizada em centros históricos, são cada vez mais os promotores que
na zona ribeirinha de Lisboa, nem é destinada a turistas, por isso não fazem contas à vida em relação aos
é um dos projetos que está sentimos esse impacto. Quando resol- seus projetos hoteleiros. “O turismo
a ser comercializado pela vemos investir em Portugal e no Norte, vai demorar mais a recuperar e alguns
Coldwell Banker. Frederico a nossa estratégia sempre foi focada no promotores pedem a nossa ajuda para
Abecassis, o diretor-geral, mercado médio e local e não necessa- transformar os seus projetos em aparta-
lembra que a pandemia já riamente nos investidores, apesar de mentos para vender ou para integrar no
começa a transformar as termos alguns. Não nos quisemos es- modelo built to rent, ou seja: o investidor
casas. Mas não só. “Também
pecializar em nenhum outro mercado, não vende mas arrenda todos as unida-
o home office veio para ficar.
pois conhecemos este muito bem”, diz des daquele imóvel e vive das yields (taxa
Se vamos trabalhar mais
a partir de casa, estas devem
o CEO da Fortera. de rentabilidade). Há cada vez mais pro-
ser mais eficientes do ponto Ainda que mais residual, o grupo jetos deste género a surgir”, diz Patrícia
de vista energético.” chegou, contudo, a reservar na sua Barão, da JLL, lembrando um estudo
carteira de investimentos dois imóveis, feito recentemente pela consultora e que
um no Porto e outro em Braga, que, dá conta de diversos projetos que irão
dada a sua localização central, tinham colocar no mercado de arrendamento
misto que incluirá um hotel (com mais como destino o mercado hoteleiro. Mas cerca de três mil novas casas, a custos
de 200 quartos), um edifício residencial a pandemia trocou as voltas, para já, a controlados, nos próximos cinco anos.
com mais de 50 unidades e ainda uma esse plano, dada a crise que se vive agora Para arrendar ou vender, certo é
zona de escritórios e comércio, num nesse setor. que o setor habitacional assente na
investimento global de €80 milhões. “Temos um edifício, o Convento de construção está cada vez mais focado
O grupo tem estado imparável desde Braga, que comprámos para criar uma nos portugueses. Resta saber quão
que chegou a Portugal e, em cinco anos, unidade hoteleira e acabámos por repla- resiliente será este mercado enquanto
já investiu cerca de 200 milhões de eu- near – será mais service apartment (com durar a pandemia. visaoimobiliario@visao.pt

MORADIAS
INDIVIDUAIS
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Localizadas na zona da Nazaré,


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Miguel Saraiva
“A mobilidade dos jovens vai ter
mais impacto do que a pandemia”
O fundador do maior atelier de arquitetura do País fala dos efeitos da Covid-19
no mercado da habitação, deixando o aviso: “Vamos sair dos nossos espaços
privados e vamos querer um espaço público que responda aos nossos desafios”

E
MARISA ANTUNES

stá à frente do maior atelier em altura, também tem de haver pla-


de arquitetura de Portugal e o neamento, porque isto passa tudo por
único que aparece na famosa planos de pormenor, por planos de
“Big List” do ranking mundial urbanização, com enquadramento de
WA100, onde constam os 100 Plano Diretor Municipal. Para que isso
maiores gabinetes do mundo. aconteça, tem de haver vontade política
Miguel Saraiva, 51 anos, fun- que responda a desafios estruturantes
dador da Saraiva e Associados, para as cidades, mas não se abre espaço
tem acumulado projetos den- a esse debate e devia abrir-se. Até por-
tro e além-fronteiras, deixan- que as obras de construção em altura,
do a sua marca
m em obras tão emblemá- e olhando para casos principalmente
ticas como
com a sede da Polícia Judiciária na Europa, normalmente são objetos
ou o Campus
Cam da Justiça, no Parque das de grande qualidade arquitetónica. Têm
Nações,
ç em
e Lisboa, o Hospital Beatriz a vantagem de libertar espaço urbano
Ângelo, eem Loures, ou o edifício In- público. Em Portugal, tradicionalmen-
finity, ttambém na capital, ainda em te, não temos esta disponibilidade e
construção mas que será uma das
const esta abertura, tanto pelos privados
torres mais altas de Portugal.
torr como pela parte pública que gere as
O seu
s atelier assina o projeto cidades. Teoricamente, a sociedade
Infinity, da Vanguard
Infi civil reage mal à construção em altura
Properties, perto de Sete
Pr – e bem, porque querem impor isso
Rios, que será uma das
Ri dentro do casco das cidades, o que não
maiores torres do País. É,
m faz sentido. Mas a verdade é que há o
portanto, um defensor da glamour que muitos sentem em viver
construção em altura, em altura. Tanto é assim que, no pro-
um tema polémico em jeto Infinity, a apetência pela compra
Portugal… é gigante, segundo os indicadores a
O tema só é polémico por- que temos acesso através do promotor.
que querem fazer constru- Como é que a pandemia está a
ção em altura nos centros afetar o trabalho da empresa?
das cidades de Lisboa e do Gosto de analisar a pandemia em várias
Porto, que são, na minha óti- vertentes. Primeiro, em termos resi-
cca, as únicas cidades portugue- denciais, diria que, até ao momento,
sas que têm capacidade para
sa a pandemia não teve qualquer tipo de
absorver este tipo de escala; as
abso impacto na nossa atividade. Os clientes
outras cidades não têm necessida- são muito estruturados, têm estado a
de dess
dessa escala. Sou 100% a favor da aguentar perfeitamente este embate
construção em altura; não sou é a favor
construç e continuam com os seus projetos.
da constr
construção em altura onde querem Há hoje uma apetência natural dos
impô-la. Mas para haver construção estrangeiros em comprar imóveis em

68
6 8 VISÃO 29 OUTUBRO 2020
Portugal, e não tanto pelos Vistos Gold Antes da pandemia, falava-
ou pelo programa dos Residentes Não se muito da tendência a nível
Habituais, mas muito pelo estilo de mundial para a construção de
vida que o País permite. Os estrangei- casas mais pequenas. E agora?
ros puseram o foco em Portugal por Poderá haver uma inversão devido
questões de segurança, de clima, de
estilo de vida e por ser um País bastante
AS à questão do confinamento?
Sim, é um contraciclo. Nós andámos a
desenvolvido. Ao contrário do que es- INTERVENÇÕES desenhar casas mais pequenas devido

EM LISBOA
tamos sempre a dizer, temos um País ao custo das mesmas e a pandemia
desenvolvido e com infraestruturas hoje grita, exige, mais área porque as
bastante recentes. Já em termos de
hotelaria, notou-se o impacto. É na- FORAM pessoas, ao confinarem-se em casa,
querem mais espaço. A grande conse-
tural. Nós tivemos dois projetos fora
de Lisboa que deixaram de ser hotéis
CENTRADAS quência desta pandemia tem muito que
ver com a baixa qualidade espacial que
para serem edifícios residenciais. Os
restantes hotéis que estamos a desen-
NAS PESSOAS foi desenvolvida ao longo destes anos.
As pessoas negligenciaram aquilo que
volver, a maioria em obra, mantiveram QUE HABITAM andaram a comprar, negligenciaram
o seu uso. Seria muito oneroso alterar
o objetivo inicial. Mas temos perfeita A CIDADE E NÃO o nível de exigência que puseram nos
projetos. E hoje as famílias, ao estarem
consciência de que há uma insegurança
enorme no setor. Não se sabe o que NAQUELAS confinadas, deparam-se com casas, não
diria obsoletas, porque são recentes,
vai ser o futuro e é evidente que isso
vai ter um impacto grande também
QUE A VISITAM mas com áreas muito pequenas e com
funcionalidades duvidosas, em que o
na encomenda privada dos ateliers, espaço de estar está paredes-meias
principalmente em Lisboa e no Por- com o espaço privado de cada uma
to. Nestas duas cidades, o impacto é das habitações. A pandemia veio alertar
gigantesco, a insegurança é enorme. para uma série de situações que, ainda
Vamos ver. Acho que os hoteleiros vão assim, não creio que venham a ter um
estar muito expectantes nos próximos impacto futuro tão grande ao nível da
dois a três anos. habitação e na forma de habitar.

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Diria então que o efeito da tadas. A situação deriva de dois motivos: existe hoje entre os clientes de 2008/09
pandemia não irá refletir-se na por um lado, nestes países registou-se e os clientes que vieram em 2015/16 é
conquista de mais espaço interior uma quebra enorme ao nível da en- que estes últimos são muito mais pro-
(de qualidade)? comenda privada. Por outro lado, são fissionais e muito mais estruturados.
Acho que vai ser o espaço público a países muito desestruturados, onde a Neste momento, o mercado nacional
responder muito mais a isso, até por- questão social, nestas circunstâncias, pesa cerca de 85% da nossa faturação.
que o nível de exigência das pessoas é muito dura para as pessoas e para as E qual é o peso dos promotores
aumentou nesse aspeto. Se as varan- empresas, até porque não existem gran- estrangeiros?
das são o espaço exterior, por defeito, des mecanismos de suporte à socieda- Absorvem 80%, é impressionante. A
das nossas habitações, temos também de em si e não há uma rede de saúde Saraiva & Associados faturou cerca de
de exigir que o espaço público seja o estruturada como existe em Portugal 15 milhões de euros em 2019.
prolongamento das nossas casas. Va- ou na Europa. Além disso, estamos a Há 12 anos publicou um livro sobre
mos sair dos nossos espaços privados reposicionar o atelier em geografias a habitação a custos controlados
e vamos ter de ter jardins, passeios, diferentes, em países mais estruturados. mas especializou-se, entretanto, no
um espaço público que responda aos E que peso essas filiais tinham na imobiliário de luxo…
nossos desafios. O grande proble- vossa atividade? Especializei-me ou o mercado obri-
ma da cidade é que, durante anos, o Chegaram a representar 60% das en- gou-me a especializar-me… Olho para
espaço público foi negligenciado e a comendas do grupo, se recuarmos a construção de luxo como olho para a
única coisa que nos interessava era cerca de cinco anos. Atualmente, a construção a custos controlados: res-
o espaço privado. A pandemia veio faturação no estrangeiro representa peito o desenho, respeito as cidades,
alterar o paradigma. Os promotores, entre 15 e 18 por cento. Começámos respeito quem vai habitar. Evidente-
juntamente com as entidades públi- a nossa internacionalização em 2008, mente, são programas que respondem
cas, têm de concentrar esforços não ainda com bastantes encomendas em a necessidades diferentes, até porque
só nos seus edifícios, mas também no Portugal, mas já com o sentimento de uma responde aos desafios de quem
espaço envolvente dos mesmos. Tem que as coisas iam complicar-se por cá. desenvolve projetos no centro da ci-
de haver aqui, no pós-pandemia, um Passado o período mais negro da dade e outra na periferia. É natural
foco de interligação entre os privados anterior crise, quando começaram que assim seja porque o custo do solo
e o público, no sentido da valorização a sentir que o mercado nacional dificilmente permite que os custos
dos espaços que são confinantes às voltava a ganhar atratividade? controlados estejam dentro da cidade.
nossas intervenções. De 2014 para 2015, sente-se o merca- Já começam a surgir em Portugal
Como vê a transformação de do nacional a reagir à crise em termos investidores institucionais a
Lisboa e do Porto nos anos mais imobiliários. Principalmente com a che- apostarem na habitação a custos
recentes? gada de investimento estrangeiro, com controlados para o mercado de
Conheço melhor Lisboa. Penso que as fundos imobiliários de grande escala. arrendamento. Como acompanha
pessoas, já com algum distanciamento, Foram cinco anos de um crescimen- esta tendência?
começam a perceber que a cidade de to extraordinário, junto a operadores Não temos um mercado de arrenda-
Lisboa foi pensada como um todo, que internacionais. A grande diferença que mento por dois motivos: um é cultu-
as intervenções foram centradas nos ral – as pessoas preferem mesmo ter
habitantes da cidade e não simples- a sua habitação em vez de arrendar; o
mente naqueles que a visitam. Hoje outro motivo assenta na questão dos
a cidade tem uma qualidade urbana juros que são realmente muito baixos
que é incomparavelmente superior e, sendo tão baixos, são concorrenciais
àquela que existia. Os últimos 12 anos aos valores do arrendamento. Mas
trouxeram bastante valorização no que hoje sabemos que os jovens olham
diz respeito à criação de espaços de para o mercado de trabalho como um
estar, de viver e de partilhar, coisa que mercado global. Nessa tendência, os
durante tantos anos foi negligenciada.
Mas é evidente que isto, ao acontecer,
AS OBRAS DE jovens vão optar mais pelo mercado
de arrendamento porque as novas
suscita tensões naturais.
Fundou o seu atelier em 1996 com
CONSTRUÇÃO gerações querem ter diferentes expe-
riências profissionais, querem mobi-
apenas dois arquitetos. Quantos EM ALTURA SÃO, lidade, e isso leva-as a viajar e a mudar
tem agora?
Sim, o atelier está quase a fazer um NORMALMENTE, de cidade com grande facilidade. Na
minha perspetiva, essa, sim, vai ser
quarto de século… Atualmente tem
120 colaboradores em Lisboa, mais 20 OBJETOS uma alteração profunda do paradigma
na área da habitação e dos promotores
colaboradores externos. Da rede dos 11
ateliers no estrangeiro que tínhamos,
DE GRANDE imobiliários. A mobilidade dos jovens
vai ter muito mais impacto na habita-
fechámos a China e parqueámos o Pa- QUALIDADE ção do que a própria pandemia. E isso

ARQUITETÓNICA
namá, a Venezuela, o México e a Malásia. deveria ser monitorizado e analisado,
Encerraram devido à pandemia? não só pelos privados como pelo pú-
Foi um misto de oportunidade. Dos 11, blico. Vai haver uma alteração muito
temos seis a funcionar… Na China não profunda na forma de habitar neste
foi bem fechar, temos as portas encos- âmbito… visaoimobiliario@visao.pt

70 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


COM CARLOS DANIEL

A OPINIÃO DE QUEM SABE.


O DEBATE ENTRE QUEM PENSA DIFERENTE.

ESTREIA
DIA 27 OUTUBRO - 22h
IMOBILIÁRIO / OPINIÃO

Vistos gold: vamos


desmistificar?
POR HUGO SANTOS FERREIRA / VICE-PRESIDENTE
EXECUTIVO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA

D
DE PROMOTORES E INVESTIDORES IMOBILIÁRIOS

epois de tanta contrainformação, mensagens “Aumenta os preços”: De acordo com todos os dados
(propositadamente?) mal passadas, ou mes- consolidados, a emissão de vistos na Área Metropolitana
mo falta de conhecimento sobre os temas, do Porto e mesmo no Porto foi completamente irrelevan-
urge clarificar os mitos criados à volta do te (0,9% e 56 vistos totais). Do mesmo modo, a emissão
programa de Autorizações de Residência para de vistos na Área Metropolitana de Lisboa foi global e
Investimento (ARI, vulgo “Golden Visa”): igualmente insignificante (menos de 2% de todas as tran-
“Bruxelas quer o fim do Golden Visa”: sações imobiliárias). Mais: por cada mil imóveis transacio-
Não corresponde à verdade, uma vez que as nados, apenas sete foram dedicados ao ARI (3 por cento).
ações e os processos instaurados contra Chi- “Facilita o branqueamento de capitais”: Muito se
pre, Malta e Bulgária dizem respeito a pro- fala deste risco, mas o facto é que, até ao momento, não
gramas de concessão de cidadania, não tendo nada que foram detetadas situações anómalas de relevo. O bran-
ver com o Programa ARI português, que apenas concede queamento é uma possibilidade latente em muitos ou-
autorizações de residência (para investimento) temporá- tros sistemas importantes e credíveis. Da mesma forma
rias por cinco anos, mediante comprovativo de manu- que não seria sensato acabar com esses sistemas para
tenção do investimento realizado. evitar esse risco, também não o
“Não cria emprego”: Só quem seria terminar com o programa ARI
pretende induzir as pessoas em erro
pode fazer uma afirmação destas. É
Estes investidores têm só porque a ameaça existe. A legis-
lação em vigor obriga promotores
óbvio que um programa que, isola- sustentado toda uma imobiliários, bancos, mediadores,
damente, desde 2012, já captou €5,5 fileira da construção notários, advogados a denunciar
mil milhões de investimento; que é e a evitar esta ameaça. Porém, se
um dos principais responsáveis por
e do imobiliário que, dúvidas ou brechas surgirem, o que
permitir que investidores estran- nos últimos anos, se espera é que, no exercício das
geiros anualmente tenham vindo a
investir na fileira da construção e
representa 17,4% do suas competências, e caso seja ne-
cessário, o Estado exerça um maior
do imobiliário outros tantos €5 mil PIB e que alberga controlo no interesse de todos.
milhões; que em 2019 foi ainda capaz cerca de 600 mil “Leva à deslocação de pessoas
de atrair €700 milhões e, desde 2020 para os centros urbanos”: Há inú-
até agora, €550 milhões de inves-
postos de trabalho meros estudos internacionais ela-
timento, não só cria riqueza a um só na construção borados por insuspeitas instituições
País ainda descapitalizado como gera de elevada reputação que demons-
benefícios diretos a toda uma fileira, tram que, até 2050, há uma clara
ocasionando também efeitos indiretos em muitos outros concentração das populações junto dos centros urbanos.
setores de atividade, como a grande indústria dos mate- As razões desse movimento derivam da procura de me-
riais de construção, o turismo, o comércio, os serviços e, lhores oportunidades de vida, nomeadamente emprego.
portanto, é gerador de emprego. Ou seja, estes investi- Em países como Portugal, que dispõem de amplas zonas
dores têm sustentado toda uma fileira da construção e costeiras, é normal a crescente procura pelos grandes
do imobiliário que, nos últimos anos, representa 17,4% centos urbanos localizados no litoral, que, em geral, ofe-
do PIB e que alberga cerca de 600 mil postos de traba- recem mais oportunidades.
lho só na construção. Mais: 17 vistos ARI foram emitidos “Leva à escassez de habitação acessível”: São seg-
a cidadãos estrangeiros que criaram, de forma concreta, mentos de mercado completamente diferentes. De acor-
pelo menos 170 postos de trabalho efetivos. do com os dados divulgados, o valor médio do investi-
“Tira os habitantes a Lisboa”: De acordo com os mento rondará os 575 mil euros. Ora, considerando o
Censos 2011, Lisboa perdeu cerca de 260 mil habitan- poder de compra médio dos portugueses recorrendo a
tes. Ora, o programa ARI foi criado em 2012, pelo que crédito, por um período não inferior a 35 anos, o valor
a perda de habitantes, nomeadamente para concelhos máximo do crédito a uma taxa de esforço de 33% deverá
adjacentes, deveu-se a outros fatores que há décadas rondar os 350 mil euros – logo, bem inferior ao valor
ocorrem na cidade e que nada têm que ver com isto. médio verificado no programa ARI. visaoimobiliario@visao.pt

72 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


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PA R L A M E N TO

Orçamento
“Para os males
nos cuidados
extremos,
só são eficazes
os remédios
intensos”
intensivos
Marcelo pressionou o Governo para
Hipócrates que os hospitais privados entrem no
Médico grego
(460 a.C. - 377 a.C.) combate à pandemia. PS volta
a dividir-se entre moderados e radicais
quanto às políticas de Saúde. Tensão
condicionou negociações com
o Bloco, tendo em vista a viabilização
do OE para 2021
FILIPE LUÍS

74 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


António Costa e João Leão
Primeiro-ministro e ministro
das Finanças, à chegada ao primeiro

H
dia do debate orçamental

oras antes do debate parla-


mentar sobre o Orçamento
do Estado para 2021, Marta
Temido, ministra da Saú-
de, anunciava a decisão de
transferir para o setor priva-
do e social os doentes “não
Covid” do Serviço Nacional
de Saúde, “sempre que ve-
jam consultas, exames ou
cirurgias serem desmarca-
dos, face ao agravamento
da pandemia”. Este foi um primeiro passo
no sentido de integrar o sistema privado
no combate à pandemia, mas a opção não
é consensual, dentro do próprio PS. A
abertura do Governo aos privados surgia
na própria semana em que o Presidente
da República, Marcelo Rebelo de Sousa,
recebia vários agentes ligados ao setor da
Saúde, nomeadamente antigos ministros
da pasta. À saída de um desses encontros,
Maria de Belém – ministra nos governos
de António Guterres e coordenadora de
uma lei de bases da Saúde que o novo
ministério, na sequência da nomeação de
Marta Temido, meteu na gaveta – fazia
votos para que alguns erros cometidos no
combate à pandemia “fossem, agora, cor-
rigidos”. Uma das personalidades recebidas
em Belém, esta semana, disse à VISÃO
que só “pela pressão do Presidente, bem
como pelos vários apelos de especialistas
na área da Saúde, dentro e fora do PS”, é
que a ministra terá “caído em si”. A mes-
ma fonte referiu que “podemos guardar a
discussão ideológica para mais tarde, mas
que, agora, urge fazer face à emergência,
com os recursos que existem”.
O difícil equilíbrio entre privado e pú-
blico marcou o fio de prumo da discussão
orçamental e pode explicar muita coisa so-
bre o chumbo do BE. No domingo à noite,
24 horas antes de a ministra ter admitido o
recurso ao privado e social, a coordenadora
do Bloco de Esquerda, Catarina Martins,
invocava o fracasso do Orçamento para
2021, na área da Saúde, como o motivo
principal que levou a Mesa do Bloco a
decidir, por unanimidade, votar contra
o documento, na generalidade: “Este OE
falha na questão mais importante do nos-
so tempo. Quando tudo se pede ao SNS,
este Orçamento não tem o bom senso de
o proteger.” Era o epílogo de longos meses
de conversa, em que as divisões, no seio
do próprio partido do Governo (com os
setores mais moderados a defenderem o
recurso aos privados e os chamados radi-
cais a alinharem com o Bloco), se refletiam
nas conversas com o parceiro bloquista.

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 75


PA R L A M E N T O

ORÇAMENTO NO VENTILADOR
Para os negociadores do executivo, o
SNS foi um pretexto “conveniente” para
o Bloco justificar a sua decisão política,
há muito tomada, de votar contra o or-
çamento. O BE teria escolhido uma causa
especialmente sensível para a opiniao
pública, sobretudo em tempo de pan-
demia. Ora, o beneplácito provisório do
PCP não é tido como uma questão de
“favas contadas” para a aprovação final.
Um elemento do gabinete do primeiro-
-ministro admite que, na especialidade,
a negociação com os comunistas – ainda
por cima, estribados no facto de serem,
agora, o principal “parceiro de dança”
do Governo – será dura. Mas o eventual
acordo pode ter, nos bastidores, algumas
garantias extraorçamentais, como o de-
sinvestimento do PS, nas próximas au-
tárquicas, em municípios-emblema para
os comunistas… Com tantas dificuldades Catarina Martins O divórcio,
– incluindo a hipotética dependência de no seio da Geringonça, teve por
duas “limianas” deputadas não inscritas, pretexto a diferença de perspetivas
Joacine Katar Moreira, ex-Livre, e Cris- nas questões da Saúde
tina Rodrigues, ex-PAN –, o orçamento

12 565,4
fica ligado ao ventilador, durante a dis-
cussão na especialidade. um seu antecessor do mesmo partido,
Na terça-feira, dia em que se iniciava conduz “a política de Saúde mais mar-
a discussão orçamental, no Parlamento, xista dos últimos anos”. Esta tensão, que
Marcelo Rebelo de Sousa recebia dois é histórica e cíclica, está a acompanhar
ex-ministros da Saúde, Paulo Macedo, a pandemia, na escalada rumo ao pico.
do governo de Passos Coelho, e Adal-
berto Campos Fernandes, antecessor de LEVAR A CARTA A GUIMARÃES
Marta Temido no primeiro governo de Para aumentar a confusão, o bastonário da
M I L H Õ ES D E EU RO S
António Costa. Adalberto é tido como Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães,
Para a Saúde, no OE 2021
um dos críticos das políticas seguidas até encabeça a lista de assinaturas de uma

4
este momento. A lei de bases de Maria de carta de antigos bastonários, criticando as
Belém – outra figura ligada aos setores políticas do Ministério da Saúde, e aler-
socialistas da Saúde “não marxistas” – tando, em tons alarmistas, para a rutura
foi encomendada pelo ex-ministro, mas, do SNS. Em resposta, um grupo de qua-
com a remodelação de outubro de 2018, tro dezenas de conhecidos e prestigiados
acabou por não ver a luz do dia. No en- clínicos, a começar pela ex-ministra Ana
tanto, a possibilidade de recurso ao setor Jorge, respondeu, no Público, com uma
privado manteve-se na letra da lei, que foi “contracarta”, em que desautorizam o seu
aprovada pelo próprio Bloco de Esquerda. M I L H Õ ES D E P O RT U G U ES ES bastonário: “Não nos sentimos representa-
O ex-ministro socialista Correia de Têm acesso aos hospitais dos.” E lembram que o recurso ao privado
Campos, cuja visão da saúde pública se privados já acontece, como comprova um artigo ali

2
situa num campo geralmente considerado citado, do Jornal de Negócios, em que se
“mais à esquerda”, admite que há várias diz que 41% do orçamento do SNS já se
tendências no seu partido e que “há mes- destina a pagar a privados.
mo socialistas, ou antes, pessoas inscritas Estes números correspondem, na
no PS” que defendem o setor privado, e verdade, a contas feitas ao peso do setor
outros que são demasiado radicais para privado em Portugal. Um responsável
admitirem, sequer, um recurso limitado do Grupo CUF comenta que o Ministé-
aos privados. De facto, no PS cabem fi- rio se chama “da Saúde e não do SNS”.
guras que vão desde Germano de Sousa, Entre seguros privados, seguros por via
homem forte dos laboratórios com o M I L H Õ ES D E U T E N T ES de contratos coletivos de trabalho, sub-
mesmo nome – que estão na linha da DO SNS sistemas vários e ADSE, cerca de quatro
frente das encomendas dos testes Covid São considerados pobres, antes milhões de portugueses já podem utilizar
– a… Marta Temido, que, nas palavras de das transferências sociais os hospitais privados, sem um rombo no

76 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


OPINIÃO

Erros que se pagam,


seu orçamento, mas essa possibilidade
está vedada ao resto da população que,
informação que falta
neste quadro de pandemia, se arrisca a
P O R J O S É C A R L O S D E VA S C O N C E L O S
ficar – e tem ficado – sem cuidados de
saúde relacionados com outras patolo-

1
gias. É que, dos restantes seis milhões
de cidadãos, dois milhões correspondem O percurso para a viabilização assim impedindo de ser o PSD a re-
a estratos populacionais em situação de do Orçamento do Estado (OE), cusá-lo primeiro, como espero faria
pobreza (antes das transferências sociais, em particular quanto às rela- corrigindo o grave erro, este de Rio,
pensões, RSI, etc.) e outros dois milhões ções PS-BE, e o resultado das quando há tempos não afastou em
estão acima desse patamar por uma eleições nos Açores evidenciaram absoluto essa possibilidade.

3
questão de meia dúzia de euros mensais as negativas consequências do que
de rendimento. Cidadãos que, portanto, aqui considerei dois notórios erros A informação parece, entre nós,
não têm qualquer alternativa de trata- políticos de António Costa, entre o cada vez mais limitada. Assim,
mento fora do sistema público. Restam, muito mais em que tem acertado. A não li, vi nem ouvi nenhuma
finalmente, dois milhões que, com mais saber: a) o PS ter recusado liminar- notícia sobre um acontecimento
ou menos sacrifícios, poderão escolher mente a disponibilidade do BE para da maior importância para o Chile e
alternativas ao SNS. celebrar um acordo de legislatura, bem relevante no contexto da região
Ou seja: recusando qualquer tipo de como aconteceu na anterior − se era e até do espaço ibero-americano a
acordos mais amplos com o setor priva- possível ou não levá-lo a bom termo que também pertencemos. Refiro-
do, o Estado falha na cobertura aos mais depois se veria...; b) a forma como -me ao referendo, que o governo
vulneráveis. E este é o principal argumen- amiúde se relacionou com o PSD de se viu “forçado” a promover após
to que tem sido explanado pelos especia- Rui Rio, maxime quando disse que grandes manifestações populares,
listas ouvidos em Belém. Mas Ana Jorge o Governo acabava no dia em que a sobre elaboração ou não de uma
justificou que a sistemática transferência sua subsistência (leia-se: a aprova- nova Constituição, para substituir a
de doentes para os hospitais privados vai ção do OE) dele dependesse. que ainda vem do tempo de Pinochet
afastar, “primeiro os doentes, depois os O erro face ao e permite ou pro-
recursos e, finalmente, os profissionais”. BE justifica parte move tremendas
No fundo, defendem os setores mais à do que está a suce- O resultado injustiças sociais.
esquerda do PS, o que se paga aos priva- der. Mas não tudo, das eleições nos E o resultado foi
dos devia ser investido nas melhorias do em especial o voto Açores, não sendo “sim”, com uma
SNS. Era esta a posição do Bloco. do BE contra o OE, esmagadora maio-
Correia de Campos explica à VISÃO na generalidade, transponível para ria de 78,3%, e
que o financiamento dos privados, nos em vez de se abs- o todo nacional, 79% dos votantes
acordos celebrados pelo Estado, não pode ter e deixar o voto pode sinalizar uma a optarem ainda
ter por base os custos suportados pelos
hospitais públicos. Deve ser inferior,
final dependente
do que resultar da tendência, mormente pela futura Cons-
tituinte ser forma-
porque os privados não têm obrigações discussão na espe- na correlação da apenas pelos
como a investigação e a admissão dos cialidade − posição de forças PS/PSD para o efeito elei-
estudantes estagiários, podem escolher com eventuais cus- tos e não por estes
especialidades mais lucrativas em detri- tos para o partido e serem metade e
mento de outras e podem, até, selecionar mesmo para Marisa Matias nas pre- a outra metade deputados do atual
os seus doentes. Foi o que aconteceu, sidenciais. O erro face ao PSD além Parlamento. Mais, na Constituinte
conforme lembra a carta coassinada por do mais tirou espaço de manobra ao haverá igual número de homens e
Ana Jorge, no início da pandemia, quando Governo nas negociações para via- mulheres. O que é extraordinário,
os privados transferiram grávidas infeta- bilizar o OE e tirou ao PS qualquer sobretudo atendendo a que ali, por
das com Covid-19 para o SNS. Correia de autoridade moral para criticar o PSD exemplo, o divórcio apenas é possível
Campos recorda que o comportamento pelo seu sentido de voto. há 16 anos e o aborto há três − e só

2
dos privados, nessa altura, lhes trouxe nos casos de risco de vida da mulher,
“danos reputacionais de que querem, O resultado das eleições nos Aço- inviabilidade fetal e estupro.
agora, recuperar”. E outro ex-responsável res, não sendo transponível para Tudo isto na pátria de Gabriela Mis-
pela pasta da Saúde defende que, por isso o todo nacional, pode sinalizar tral, Pablo Neruda e Salvador Allende,
mesmo, o Estado tem, agora, obrigação uma tendência, ou tendências. onde António Costa esteve em 2017
de negociar com os privados prestações Mormente na correlação de forças em visita de Estado e se garantiu o re-
de serviços “a preços sociais”. PS/PSD, e mostrando a necessidade forço de relações entre os dois países,
Em Belém, o Presidente da República de um diálogo aberto e sério entre integrando o Chile, como observador,
está mais ativo do que nunca, a ouvir eles. A solução de governo a en- a CPLP, para ele exportando mais de
toda a gente e a pressionar o Governo. contrar não é fácil. E foi pena que o 400 empresas nacionais e sendo o
E, desta vez, a discussão não é só sobre a Chega se tivesse adiantado a recusar nosso terceiro “cliente” na América do
declaração, ou não, do estado de emer- a hipótese de entendimento com um Sul − tudo isto não é sequer “notícia”
gência. fluis@visao.pt partido do “sistema” − o PSD, claro −, em Portugal?... visao@visao.pt

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 77


VAGA R

“Se o homem
falhar em
conciliar a justiça
e a liberdade,
então falha
em tudo”
Albert Camus
Escritor
(1913-1960)
FOTOS: GETTY IMAGES

78 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


E N T R E V I S TA

KEN
FOLLETT
O regresso à cidade das catedrais
TRINTA ANOS DEPOIS DE OS PILARES DA TERRA,
O AUTOR DE BEST-SELLERS, COM MAIS DE 170 MILHÕES
DE LIVROS VENDIDOS NO MUNDO, VIAJA À IDADE MÉDIA
NO NOVO ROMANCE KINGSBRIDGE: O AMANHECER
DE UMA NOVA ERA. EM ENTREVISTA À VISÃO, OLHA,
TAMBÉM, PARA AS TREVAS DO PRESENTE
S Í LV I A S O U TO C U N H A
29 OUTUBRO 2020 VISÃO 79
Triunfante Ken Follett fotografado em

N
E N T R E V I S TA Madrid, em 2019, na apresentação de
um espetáculo musical baseado no seu
grande best-seller: Os Pilares da Terra

Nem sempre o caminho é em frente:


Ken Follett, 71 anos, inverteu o relógio
do tempo e revisitou Kingsbridge na
Idade Média, antes de aí serem coloca-
das as primeiras pedras da catedral que
transformou este britânico de raízes
galesas num dos mais bem-sucedidos
autores de ficção histórica, amante de
champanhe e de realismo sem proble-
mas de incompatibilidades. Kingsbri-
dge: O Amanhecer de Uma Nova Era
(Editorial Presença), o novo romance
de 700 páginas, é, diz, “uma pressão
no bom sentido”: “É muito lisonjeador
para um escritor sentir que os leito-
res guardam a sua obra no coração. É
claro que, quando as pessoas gostaram
tanto de um dos meus romances, é
minha responsabilidade dar-lhes um
novo livro que elas possam apreciar
também.” Esta prequela d’Os Pilares da
Terra parece conter as sementes das
questões contemporâneas: a intolerân-
cia, o abuso de poder, os perigos das
(in)justiças, a luta das mulheres e dos
homossexuais, os combates políticos.
Em conversa telefónica com a VISÃO,
Follett fala do passado e do presente.
Poucos autores criaram territórios
ficcionais que parecem reais.
O que o fez regressar a Kingsbridge?
O ser o meu território, precisamente. Os
leitores interessam-se pela cidade, há
um site de fãs de Kingsbridge, e, ao fim
de quatro livros [seis volumes, na versão
portuguesa], Kingsbridge representa
efetivamente Inglaterra. Em Os Pilares
da Terra [de 1989], a catedral é construí-
da na cidade. Em Um Mundo sem Fim que tem que ver com magia, dragões,
[2007], conta-se a história da terrível feiticeiros... Mas gosto muito de ficção
Peste Negra através da experiência científica, se esta estiver baseada em
dos habitantes de Kingsbridge. E Uma ciência. É outra maneira de se ser rea-
Coluna de Fogo [2017] versa as guerras lista, não é?
religiosas europeias no século XVI e Nada de nonsense, sensatez acima
como elas afetaram a cidade... Kingsbri- de tudo, é o seu credo?
dge tem, agora, uma vida própria.
O realismo dos romances é-lhe “NECESSITAMOS DE Exatamente. Os leitores têm de ter a
sensação de que a história tem lógica:
essencial. E a imaginação?
Necessitamos de ambos, para criar um REALISMO E IMAGINAÇÃO “É claro que isto iria acontecer, apesar
de eu não estar à espera...”
bom romance. O autor precisa de criar
algo que nunca aconteceu, mas, para
PARA CRIAR UM BOM Aqui, interessa-se mais pelas
pessoas do que pela arquitetura.
que os leitores desfrutem dessa minha ROMANCE. COMO É uma posição ideológica: o espírito

LEITOR, NÃO GOSTO


fantasia, é necessária a criação de todo humano é medido pelo quotidiano
um panorama. Todos os mínimos deta- e não pela arte?
lhes, desde os materiais de que a igreja
é feita ao barco que atravessa o rio, os NADA DE NARRATIVAS Não há arquitetura em Kingsbridge: O
Amanhecer de Uma Nova Era, porque
campos de cultivo, as ruas, os crimino-
sos, os padres, tudo tem de ser abso-
FANTÁSTICAS, ENTEDIO-ME a Inglaterra da época tinha poucos
edifícios e igrejas construídos em pe-
lutamente realista. Como leitor, devo
dizer que não gosto nada de narrativas
COM TUDO O QUE TEM dra, não existiam castelos. Os ingleses
não os sabiam construir até que os
fantásticas: entedio-me com tudo o QUE VER COM MAGIA” normandos vieram, em 766 d.C., e os

80 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


“ESCREVO SOBRE
CONSTRUTORES,
PEDREIROS, CARPINTEIROS,
ARTESÃOS EM GERAL,
NA IDADE DAS TREVAS PORQUE SÃO ELES QUE
Uma prequela que conta como
Kingsbridge nasceu, no século X ERGUEM UM PAÍS, E SÃO
Ambição, medo, sexo, quotidiano,
amores contrariados, destinos
MAIS INTERESSANTES”
revirados do avesso, fugas e
história tem de ser lógico. Há meto-
redenção, são estes os barrotes
das narrativas de Ken Follett. No
dologias e requisitos semelhantes. E a
novo livro, o ano é 997. Inglaterra faceta maravilhosa, espantosa, que têm
está dominada pelos desmandos os arquitetos é a sua imaginação: eles
dos lordes. O povo, esse, teme as são capazes de ver nas suas cabeças,
invasões vikings e as injustiças. tridimensionalmente, o edifício inteiro.
Um construtor de barcos, Edgar, Eu não consigo visualizar a minha pró-
perde a amada e a aldeia num raide pria casa em três dimensões: observo
bárbaro. Uma dama normanda uma parede e não tenho a certeza do
aposta no marido errado, e que há para lá dela! E isso acontece
enfrenta um novo país – a sua com a maioria das pessoas. Mas essa
impossível história de amor é o é uma capacidade semelhante à que
fio ténue que atravessa uma saga tenho de imaginar um romance inteiro:
povoada de bispos gananciosos, alguns leitores consideram isto fantás-
vilões e alcoviteiras, herdeiros tico, como se se tratasse de um dom
e confessores. Kingsbridge, o sobrenatural.
Amanhecer de Uma Nova Era é um Lê-se: “Um rei pode dar ordens,
bom retrato de época que não falha mas fazê-las cumprir é outra
a sua vocação de page turner. questão.” Um mau líder é, agora
e sempre, a fonte de todo o mal?
Kingsbridge não é bem sobre maus
líderes mas sobre a “rule of law”, o
Estado de direito. Várias personagens
ensinaram. Mas do que eu gosto mes- que, quando lemos volumes históricos, tentam obter justiça e não conseguem,
mo na arquitetura é que esta me revela encontramos muitos monarcas, minis- e é nessa questão que assenta o Estado
as maneiras de viver. Em Inglaterra, há tros, generais e almirantes e por aí fora, de direito. Hoje, o que temos em mui-
centenas de velhas “casas de campo” – e isso está certo, porque são aqueles tos países europeus é o exercício desse
que de facto são palácios, hoje muitos que têm o poder para tomar decisões. Estado de direito, que significa que
deles pertença do Estado – e adoro Mas o que se passa por detrás da políti- todos devem obedecer à lei, seja o rei,
visitá-las porque me ajuda a imaginar ca interessa-me muito mais. o primeiro-ministro ou o presidente.
as vidas dos habitantes de outrora. O Faz sempre extensas pesquisas. Mas se o governo controlar os juízes,
meu interesse pelas catedrais foi des- Experimentou algumas técnicas como acontecia na Inglaterra anglo-
pertado pela minha curiosidade sobre artesanais com as suas mãos? -saxónica, então não há justiça. Mas
os pedreiros que as construíram, os Não. E a razão é porque sou péssimo esta pedra basilar da nossa liberdade,
padres que as pagaram, as cidades que nisso [risos]. Não consigo sequer mon- hoje, está em perigo: o Governo da
cresceram aos seus pés. tar estantes, uma dessas tarefas básicas Polónia, por exemplo, está a tentar
Para si, os construtores são mais que é suposto os homens saberem controlar os tribunais. Temos um jornal
importantes do que os intelectuais, fazer em casa. Parte do meu fascínio inglês, o Daily Mail, que sempre que há
na literatura e na vida? com os artesãos deve-se ao facto de uma decisão legal que não lhes agrada
É uma pergunta difícil... Mas segura- eles poderem fazer algo de que sou declara que os juízes não foram eleitos.
mente que escrevo sobre construtores, incapaz. Por outro lado, vejo o ofício É claro que não foram eleitos! Essa é
pedreiros, carpinteiros, operários que dos pedreiros e carpinteiros como algo que é a questão, os juízes não são polí-
dispõem tijolos, artesãos em geral, parecido ao processo dos meus livros, ticos. Mas nem toda a gente entende a
porque são eles que erguem o país: porque há uma oficina envolvida na importância disso...
constroem as casas, as igrejas, as es- escrita, as coisas têm de ser construí- Estamos a assistir a um regresso
tradas. São mais interessantes. É claro das de uma certa maneira: o enredo da dos lordes, no mundo?

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 81


Do thriller à saga medieval
E N T R E V I S TA Ken Follett escreveu 31 livros,
que foram publicados em mais
de 80 países

É muito claro que, na maioria dos paí-


ses, nunca houve um Estado de direito.
Estou a pensar, por exemplo, na China.
Muitos países fingem tê-lo, mas os seus
governos são corruptos. A verdade é
que o princípio do Estado de direito
está sob ameaça: basta olhar para os
EUA e o seu atual Presidente, que acha
que deve controlar os tribunais. Trump
tem um grande ressentimento perante
o facto de os tribunais poderem rever-
ter as suas decisões…
Se Trump for reeleito, crê existirem
riscos para a democracia?
Para mim, o problema é que, mes-
mo que Trump seja derrotado, ainda
há milhões de votantes nos EUA que
pensam que ele está a fazer um bom
trabalho. Neste momento, cerca de
33% dos votos são a favor dele: em que
estão a pensar esses votantes? Como é
que, depois de tudo o que aconteceu,
eles podem querer que o seu país seja
governado por aquele homem? E o que
acontecerá da próxima vez: será que vai
haver outro idiota como Trump a fazer
as pessoas darem vivas e votarem nele?
Comparação óbvia, estamos
a regredir a uma espécie
de Idade das Trevas?
Não acho. Quando estudei História,
marcou-me observar que em todas
as batalhas sobre liberdade religiosa,
direitos civis, direitos das mulheres,
ganhámos e depois... há sempre um
backlash, uma reação. Mas esta não
apaga todo o progresso feito anterior-
mente. Se se pensar na batalha dos
direitos dos gays, começou na década
de 1960 para que a homossexualidade
fosse descriminalizada. E, hoje, apesar
da reação conservadora, ser homosse-
xual não constitui um crime na maioria
dos países, essas conquistas não foram
revertidas.
Perante o processo do Brexit,
estamos a ver um grande triunfo
dos conservadores?
Não creio que Boris Johnson seja um
conservador: é um político muito
radical, que quer mudar Inglaterra. Eu
não sou conservador. E não gosto das
mudanças que Boris está a fazer: é um
nacionalismo fora de moda.
O padre Aldred menciona, no seu
livro, a hostilidade de Dreng’s
Ferry (precursora de Kingsbridge)
perante os forasteiros. As atuais
denúncias antirracismo e
intolerâncias têm um rasto antigo...
Sim. Eu reflito o que está em meu redor

82 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


nas minhas histórias. E uma das coisas e milhares de mulheres fizeram esta
mais negativas, atualmente, é o ódio gestão ao longo dos tempos. Os autores
aos que são “diferentes”. Economica- de livros é que não repararam nelas! “QUANDO O SENHOR DAS
TERRAS PARTIA PARA A
mente é péssimo, pois quase todo o Ragna é enganada, traída,
dinheiro que fazemos é a negociar com humilhada, violada, forçada a atos
os outros, algo especialmente verda-
deiro no caso de Inglaterra, uma ilha.
impensáveis… Nunca tem pena
de fazer as suas personagens GUERRA, DEIXAVA À MULHER
Éramos um país terceiro-mundista e
os anglo-saxónicos eram demasiado
sofrerem tantas provações
para entreter os leitores?
O PODER DE AS GOVERNAR,
pobres para aspirarem às catedrais.
Na Idade Média, o país tinha milhões
Bem, se eu fizer o que ambiciono, ha-
verá sempre algo inspirador. É verdade
E MILHARES DE MULHERES
de ovelhas e vendia a lã, cujos lucros que Lady Ragna sofre muito, mas ela FIZERAM ESSA GESTÃO
pagaram as igrejas. Mas, depois, os
camponeses marcharam sobre Londres
nunca desiste. O que eu gosto nela é
esse espírito, a coragem, a resistência. E AO LONGO DOS TEMPOS.
e queimaram as casas dos mercado-
res holandeses, grandes responsáveis
é disso que a minha história se ocupa.
Um romance que não mostra como as OS AUTORES É QUE NÃO
pelo bem-estar que se vivia e que nada
tinham que ver com os problemas dos
personagens conseguiram suplantar os
seus desesperos, que os deixa ser letár-
REPARARAM NELAS”
impostos. Mas eram estrangeiros... E é gicos, é péssimo – eu detesto esse tipo renúncia os ajudaria a lidar com a ques-
o que se está a passar agora. de literatura e há muita assim por aí. tão. Claro que isso é sempre um erro...
Lady Ragna é uma mulher num É um feroz adepto dos finais Ler um romance seu é sempre
mundo misógino a lutar pelos felizes? uma experiência acessível, que
seus direitos. Hoje, tantos séculos Sim, sou [risos]. E Ragna tem o seu não faz o leitor passar por muitas
depois, continua-se a ter de final feliz, depois de muitos anos de dificuldades. Receia que o público,
defender os direitos das mulheres... sofrimento. Sabe, uma das razões por ou a crítica, considere os seus novos
Bem, é uma luta em andamento. As que os leitores gostam tanto da saga Os livros como “mais do mesmo”?
pessoas marcham, fazem protestos, Pilares da Terra é que mostra como es- Bem, sou conhecido pela variedade
e têm a noção de que as coisas não tas belíssimas catedrais foram erigidas das minhas histórias. Mas tem razão:
mudam, mas estas manifestações fun- por gente que tinha vidas muito duras, os meus livros e personagens nunca
cionam. Há que ter paciência e nunca pessoas abrigadas em casebres de devem ser difíceis de entender. Para
desesperar. Se se continuar a combater, madeira onde dormiam no chão. Tra- mim, a arte da boa comunicação é
podemos ganhar. Há que reconhecer ta-se do espírito humano a superar as tornar tudo claro. A expressão que
que sempre houve mulheres e homens circunstâncias, e este é um tema sobre gosto de usar é “sem esforço”. Sei que
que recusaram os papéis que lhes eram o qual vale a pena escrever histórias. há certas pessoas, até amigos meus, que
dados pela sociedade. E é interessante Há, aqui, referências históricas escrevem livros desafiantes, em que
observar que ao longo de toda a Idade e homenagens literárias. Por os leitores param a questionar-se: “O
Média, quando todos concordavam que exemplo, a Jane Eyre, de Charlotte que se passa aqui?” Eu não desrespeito
as mulheres eram fracas, burras e in- Brontë, e a Rebecca, de Daphne esses romances, mas não são o tipo de
capazes, houve abadessas que geriram du Maurier, na história do regresso livro que quero criar.
conventos com muitos empregados e da primeira mulher do marido A atual pandemia apequenou
hectares e houve rainhas poderosas. de Ragna… a literatura?
Quando o senhor das terras partia Sim, é verdade [risos]. Roubei a história Bem, eu escrevi sobre uma pande-
para a guerra, ele deixava à sua mulher a Brontë e ainda não tinha dado por mia em Um Mundo sem Fim, sobre a
o poder de as governar: cabia-lhes isso. “morte negra” que era muito pior do
recolher as rendas, reparar os castelos, E Aldred, um monge que quer que a Covid-19. Não foi tão internacio-
construir um centro que valorize nal, pois o mundo não era tão ligado.
o conhecimento, teria algo a dever Mas a Peste Negra matou mais de um
“HOJE, O PRINCÍPIO ao medievalista Umberto Eco?
Sim, recordo-me bem d’O Nome da
terço da população europeia, africana
e do Médio Oriente. Foi muito pior do
DO ESTADO DE DIREITO Rosa. Mas não creio que nenhum dos
seus monges que valorizavam o conhe-
que a Covid-19: as pessoas morriam
muito rapidamente, horrivelmente, só
ESTÁ SOB AMEAÇA: cimento fosse gay… Inventei algo que Eco um pequeno número sobrevivia. Esta

VEJA-SE OS EUA E O SEU


não fez [risos]. Mas, na verdade, penso pandemia é, também, terrível, espe-
que não é surpreendente criar uma cialmente para as pessoas pobres, que
ATUAL PRESIDENTE, personagem assim nessa época. Sempre
houve gays a procurarem essa vida, e
vivem num pequeno apartamento e
nem podem sair... Mas, ao contemplar
TRUMP, QUE ACHA uma das razões é porque se tratava de
ambientes predominantemente masculi-
acontecimentos históricos como a Pes-
te Negra ou as perseguições religiosas
QUE DEVE CONTROLAR nos. Também porque sentiam que as suas
ânsias eram erradas segundo o dogma
dos séculos passados, vemos que houve

OS TRIBUNAIS”
coisas muito piores do que aquilo que
religioso, acreditavam que uma vida de estamos a viver agora. scunha@visao.pt

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 83


XXX

Foi bonita a festa


do ambiente
Durante dois dias, mais de 30 oradores
juntaram-se à VISÃO, na Estufa Fria,
para pensar o País, a sustentabilidade
e o planeta. Uma transmissão digital
que teve já cerca de 170 mil visualizações

N
Graça Freitas e Bagão Félix:: Botânica como escape
em o plano de con-
tingência apertado
nem as muitas me-
didas de seguran- Graça Freitas teve uma rara oportunidade para descansar da pandemia e falar
ça impediram que sobre o assunto que a faz sorrir com gosto: orquídeas. A seu lado, esteve António
a festa se fizesse Bagão Félix, que a acompanha no fascínio pela Botânica. Foi uma conversa
na Estufa Fria, que deliciosa. A diretora-geral da Saúde contou que a sua paixão por plantas nasceu
abriu portas, neste aos oito anos. “Fui à Madeira, onde tinha família, e havia um jardim de uma tia
fim de semana, aos mais de 750 visitan- minha com muitas orquídeas.” Foi amor à primeira vista. Hoje, o cansaço não a
tes que ali acorreram, ao longo das seis deixa sequer cuidar das suas amadas orquídeas caseiras: “Chego a casa, olho
sessões, para ouvir os mais de 30 orado- para elas à distância e percebo, pelas folhas, que estão mal. E custa-me estar
res convidados. Pelo palco, ou pelo ecrã sentada no sofá, absolutamente estafada, e não conseguir levantar-me para ir
digital, passaram pensadores, investiga- tratar delas.” Já Bagão Félix tem um fascínio especial por árvores. “Tenho 500
dores, cientistas, artistas, ativistas e go- e tal, de 105 espécies. Faço muitas experiências, umas vezes com sucesso,
vernantes, todos com um intuito comum: outras com insucesso.” Era, aliás, a Botânica que lhe dava ânimo e o ajudava
a recarregar baterias nos tempos mais conturbados de governação. No fim, o
incentivar uma partilha de ideias sobre o
moderador pediu a Bagão Félix para dizer que árvore é para si Graça Freitas.
ambiente. E, em última análise, incentivar
“Romãzeira”, disse o ex-ministro, sem grandes hesitações. “Porque é uma árvore
à mudança – tanto nas pequenas coisas delicada e tem os bagos, as sementes unidas em comunhão. E é assim que eu
do dia a dia como nas grandes opções vejo o seu trabalho hoje, nesta pandemia, ao unir os esforços de todos.”
estratégicas e políticas ambientais.
O VISÃO FEST Verde fez parte da pro-
gramação oficial da Lisboa Capital Verde
Europeia 2020, parceira desta iniciativa
que, este ano, teve uma forte componente
digital, tendo em conta a versão reduzida
da plateia. Todas as intervenções foram
emitidas em streaming, no site da VISÃO,
no Facebook e no Instagram, e foram
acompanhadas por muitos milhares
de pessoas. Todos os vídeos, incluindo
os dos workshops, estão agora também
disponíveis no site da revista. É preciso
ter VISÃO, e é preciso pensar verde!

84 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


O VISÃO FEST VERDE FEZ
PARTE DA PROGRAMAÇÃO
OFICIAL DA LISBOA
CAPITAL VERDE EUROPEIA
2020

“Portugal pode
ser o campeão
da proteção
marinha”
EMANUEL GONÇALVES
FUNDAÇÃO OCEANO AZUL

“Não há “Lisboa ganhou


contradição a Capital Verde
entre a não porque
prioridade seja a melhor
de conter a do mundo, mas
pandemia e porque evoluiu
a de cuidar e muito em todos
preparar o futuro os parâmetros
e os desafios ambientais”
ambientais, JOSÉ SÁ FERNANDES
que ameaçam VEREADOR DO AMBIENTE
o nosso futuro
coletivo”
DA CML
Markl e Faro:: “Tentem pôr-se na pele do outro”
Um dos painéis menos óbvios juntou Nuno Markl e Diogo Faro, os dois
ANTÓNIO COSTA humoristas, ambos cada vez mais ativistas contra o ódio e o desrespeito pelos
PRIMEIRO-MINISTRO outros. A ideia que os une é esta: “Tentem pôr-se na pele do outro. Oiçamo-nos
mais uns aos outros.” Este manifesto antiegoísmo a duas vozes ficou marcado
por uma reflexão sobre o que se passa nas redes sociais. Desinformação,
teorias da conspiração, ofensas são o pão-nosso de cada dia. E se há assunto
que suscita controvérsia nos posts é, sem dúvida, o da questão ambiental e o
da urgência no combate às alterações climáticas. “Quando se tenta sensibilizar,
surgem sempre vozes contra, que acham que gostamos mais de ursos-polares
do que de pessoas. O planeta é de todos, e estamos lixados se acharmos que
só interessa o nosso dia a dia. Mesmo os egoístas podem perceber que o clima
também lhes vai tocar à porta”, disse Markl. Parece fácil de perceber, não é?

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 85


XXX
“O que podemos
fazer com um
maior e mais
rápido impacto
ambiental
positivo é deixar
de comer carne”
JONATHAN
SAFRAN FOER
ESCRITOR

Pensar o território e fazer a transição energética “Em termos


A crise provocada pela Covid-19 é dramática, mas representa uma científicos,
oportunidade para fazer reformas profundas ao nível ambiental. É assim não há razão
que pensam António Costa Silva, autor da Visão Estratégica para o Plano nenhuma para
de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030, e José Sá Fernandes,
vereador para o Ambiente da Câmara Municipal de Lisboa, ambos com ter esperança
uma abordagem otimista. “Acredito que, com esta crise, a pandemia e o de que exista
choque energético que estamos a sofrer, vamos ter um maior domínio
das energias renováveis, incluindo o hidrogénio, e uma transformação
um planeta
completa do nosso sistema de mobilidade”, sublinha Costa Silva. “Só alternativo
conseguimos discutir o futuro se olharmos bem para a realidade que está para os seres
à nossa volta. A realidade é superior à ideia, porque em muitas matérias
temos de agir já. No seu documento, que é muito bom, põe no fim o humanos”
ordenamento do território, mas acho que devíamos começar por aí, para CLARA SOUSA SILVA
ter coesão social e colocar bem todas as peças”, sublinhou Sá Fernandes. ASTROFÍSICA MOLECULAR
Numa coisa ambos concordam: a saída do aeroporto do centro de Lisboa
já devia ter acontecido “há muito tempo”.

“O maior “Só vale a pena


problema comprarmos
não é a mudança uma peça
do clima, de roupa se
é a rapidez a usarmos
com que 100 vezes”
acontece” JOANA BARRIOS
PEDRO MATOS SOARES ATRIZ
CLIMATOLOGISTA

Mensagens
pelo planeta
Os visitantes
puderam deixar
mensagens
e ideias para
mudar o mundo,
e fotografar-se
numa réplica da
capa em tamanho
gigante da revista
VISÃO

86 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


PEGADA NEUTRA
A BP COMPENSOU AS EMISSÕES
DE CARBONO DESTE EVENTO

“Não podemos
continuar a
querer crescer
sempre, temos
algo mais
importante
pela frente:
sobreviver”
EUNICE MAIA
MARIA GRANEL

“Há um profundo “Os grandes desafios que


conhecimento a Humanidade enfrenta,
do mundo do hoje, têm, todos eles, que
microcosmos, ver com a degradação do
porque o Homem ambiente provocada pelo
se coloca na Homem, e a pandemia
posição arrogante que vivemos é um bom
de ser o centro exemplo”
ou o topo JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
da evolução” ESCRITOR
MIA COUTO
ESCRITOR

“É preciso “Das emissões


encontrar de carbono
materiais de toda a
sustentáveis, Humanidade,
não tóxicos metade foi feita
e amigos do nos últimos
ambiente, 30 anos”
e tecnologias DAVID WALLACE-WELLS
que usem ESCRITOR
pouca energia”
ELVIRA FORTUNATO
INVESTIGADORA

Confinados mas presentes Ricardo Araújo


Pereira entrou, à distância, para uma intervenção
sobre o poder do humor perante desafios
complexos e António Zambujo preparou
uma versão da música Terra, de Caetano Veloso,
para encerrar a última sessão de domingo

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 87


XXX

“Já estão
a existir
alterações
no oceano
que, se nada for
feito, daqui a
uma ou a duas
décadas
terão custos
enormes”
JOSÉ XAVIER
BIÓLOGO
E CIENTISTA POLAR

“Temos “O que se passa


a enorme com os cavalos-
responsabilidade -marinhos da ria
de fazer com Formosa é um
que as próximas dos casos mais
gerações gritantes em que
recebam um estamos a falhar
planeta mais localmente
limpo e mais como
justo. Sem portugueses”
deixar ninguém NUNO SÁ
para trás” FOTÓGRAFO E VIDEÓGRAFO

ELISA FERREIRA
COMISSÁRIA EUROPEIA

Rap e agricultura unidos na urgência da mudança


A rapper Capicua subiu ao palco, mas não rimou. Sem ter música
“De alguns
de fundo, fez muito bem de jornalista e moderadora, com os seus meses para cá,
dois convidados, pessoas que admira pelos projetos agrícolas que ninguém pode
desenvolvem – ao seu lado esquerdo, sentou-se Alfredo Cunhal Sendim,
da Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo, mais longe ficou ter dúvidas de
Luís Alves, do Cantinho das Aromáticas, em Vila Nova de Gaia. que estávamos
“A PAC [Política Agrícola Comum] acabou de ser aprovada, mas é uma enganados
vergonha”, acrescenta Alfredo Sendim. “Quando destruímos a Europa,
elaborámos um Plano Marshall e conseguimos. Agora que estamos a acerca do nosso
destruir a nossa sobrevivência não conseguimos fazer nada.” “Vivemos poder”
numa abstração humana, e a Natureza só nos dá lucro quando a
destruímos.” Apesar de as ideias apresentadas terem uma nota DULCE MARIA CARDOSO
catastrófica, a conversa acabou em tom otimista, com a positividade ESCRITORA
cravada na voz de Luís Alves, quando disse a Capicua: “Ainda tenho
esperança de que, no meu tempo de vida, possa dar um mergulho
no Douro, como na capa do disco dos GNR, Psicopátria.” Na assistência,
o baixista da banda do Porto, Jorge Romão, há de ter sorrido por baixo
da máscara.

88 VISÃO 29 OUTUBRO 2020


TODOS OS VÍDEOS
EM VISÃO.PT
“Se nos repugna
ver pessoas a
soprarem nos
genitais de
um animal ou
a lavarem os
dentes com
carvão, o que
pensariam elas
de nós se nos
vissem a deitar “Podemos ser
toneladas de lixo agentes de
na Natureza?” mudança sem
Desafios ambientais exigem ação conjunta JOEL SANTOS
FOTÓGRAFO E VIDEÓGRAFO
ser pela via
do consumo.
Já estamos a correr atrás do prejuízo das alterações climáticas, O produto mais
continuamos a errar demasiado e os mais pobres continuam a ser
os mais sofrem neste contexto. É preciso foco e ação coletiva para sustentável
alcançarmos a neutralidade carbónica com que Portugal também se é aquele que
comprometeu para 2050. Os esforços que o País tem feito em busca de
melhores políticas ambientais são notórios e dão frutos, e muito ajuda
eu já possuo”
que a Europa esteja a trabalhar em bloco nesta matéria. Foi este o tom JOANA GUERRA TADEU
do painel que reuniu o ministro do Ambiente e da Ação Climática, João ATIVISTA AMBIENTAL
Pedro Matos Fernandes, o antigo secretário de Estado do Ambiente,
José Eduardo Martins, e o deputado do Bloco de Esquerda, José Manuel
Pureza. Mas ainda há um caminho a percorrer em termos de gestão
de resíduos, graças aos elevados preços da reciclagem e às faturas do
saneamento, sublinhou José Eduardo Martins. A mudança, essa, não
“Tudo parece
pode ser drástica e mal comunicada, como aconteceu em França com as descrever a nossa
taxas de carbono. “Não quero um Woodstock permanente nem ir viver espécie como a mais
para uma gruta como o Menino Jesus. Não é do dia para a noite que se
muda uma sociedade”, sublinhou o ministro. estúpida que alguma
vez apareceu no
nosso planeta”
STEFANO MANCUSO
INVESTIGADOR

“A visão do ambiente como


uma realidade lateral, incómoda,
desagradável e que suscita obstáculos
ao desenvolvimento
eco
económico
e financeiro
fi
do País
Pa passou,
e já
j passou
há muito”
MAR
MARCELO REBELO
Unidos pela música O músico e colunista da VISÃO encerrou DDE SOUSA
o primeiro dia do VISÃO FEST Verde, com canções do seu repertório PRESIDEN
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
que falam da vida e das coisas mais simples

29 OUTUBRO 2020 VISÃO 89


CRÓNICA

E
u sempre quis repensar o Natal, mas nunca pensei
que fôssemos repensá-lo por causa de uma virose.
Mais: sempre detestei redações sobre o Natal e
aqui estou eu a fazer uma redação sobre repensar o
Natal, o que é, no mínimo, deprimente. Ainda assim,
menos deprimente do que repensar a praia que,
felizmente, ninguém teve de repensar. E nada precoce,
P O R C A P I C U A / Rapper se pensarmos que 2020, como se diz nos memes,
resume-se a Janeiro, Fevereiro, Covid-19, Dezembro.
O Natal é aquela altura do ano em que estamos com as pessoas de

Repensar
quem gostamos e com as pessoas que só vemos uma vez por ano. Este ano,
vai ser o ano em que não vamos estar com as pessoas de que gostamos,
precisamente porque gostamos delas, nem com as pessoas que só vemos

o Natal
uma vez por ano, o que faz com que este ano seja o ano em que nem essas
pessoas veremos. Resumindo, isto de repensar o Natal, quando finalmente
acontece, é para pior. E olhem que havia muito mais por onde repensar.
Ocorre-me logo o bolo-rei, que tem o epíteto de rei precisamente por-
que ninguém votou nele, ninguém clamou por ele, toda a gente o trocaria
por qualquer outra sobremesa, mas está lá porque todos os seus antepas-
sados já lá estavam. E, apesar de todos questionarem o espaço que ocupa
na toalha, há sempre a desculpa da tradição e da preservação do simbo-
lismo do Natal. Em síntese, o monarca dos bolos é como a monarquia
nos países democráticos: há que repensar. Até porque se o mantemos por
uma questão de iconografia, poderíamos envernizar um exemplar e man-
tê-lo, de ano para ano, como as árvores de Natal de plástico. Assim como
assim, metade da sua constituição já é fruta cristalizada.
Outra coisa a repensar é o esgotamento feminino com a logística
natalícia. Gerações e gerações de mulheres, juntas ou sozinhas na
cozinha, esgotadas, exauridas, exangues, fazendo sonhos, fritando
rabanadas, assando perus, cozendo bacalhau, nos dias que antecedem,
nos dias em que decorre e nos dias após o Natal, até um de janeiro.
Numa repetição de rotinas, gestos e rituais, que se habituaram a ver
nas suas mães, e que fazem questão de reproduzir porque, afinal, isso
é que é o Natal. Elas são a produção, vivem a tradição dos bastidores e
se, para os outros, o Natal é estar à mesa, para elas é estar na cozinha,
numa missão hercúlea, muitas vezes autoimposta, que representa a mais
inculcada forma de exploração do patriarcado – o serviço à família. O
que se estende por todo o ano, na dupla jornada, exacerba-se nos dias
em que o estar em família também se exacerba, e as mulheres, numa
espécie de clímax da sua condição, fazem a alquimia de tornar festa e
celebração, o que é (quase sempre) servidão.
Por falar nisso, já repensávamos o excesso de comida, de desperdício,
de consumo e de prendas para as crianças. Podíamos comer na mesma,
oferecer na mesma e fazer as crianças igualmente felizes, sem exagerar,
sem gastar tanto e sem deitar tanta coisa fora. Restos, embalagens,
papel e todas essas dionisíacas manifestações de uma abundância que,
na realidade, não vivemos e que, para bem do planeta, nem deveríamos
simular. Podíamos repensar esses excessos, por toda a antecipação que
implicam, num frenesim de compras e trânsito nas semanas anteriores, e
também pela quantidade de tralha que as crianças levam para casa, quase
toda em plástico. Até porque, na bebedeira do excesso, nem chegam a
prestar atenção aos brinquedos, e é maior a ansiedade de rasgar papel de
Este ano, vai ser o ano embrulho do que propriamente a alegria.
em que não vamos Agora, há coisas no Natal que gostava de não repensar. As histórias
do Tio Zé, sobretudo as mais impróprias para contar à mesa. A aletria da
estar com as pessoas Tia Cristina. A roupa-velha que queria comer no dia vinte seis, mas que
de que gostamos, quase nunca se faz. Ir a Vila do Conde. Ver os amigos emigrados que vêm
à cidade para as festas. E o ritual pós-Natal, de sortear entre amigos a
precisamente porque pior prenda do ano. Isso e saúde para todos (!), porque para viver o Natal
gostamos delas é preciso muita saúde. visao@visao.pt

90 VISÃO 29 OUTUBRO 2020

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