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PSICANÁLISE E APRENDIZAGEM

Adriana Thomazotti
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1 CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE À PSICOPEDAGOGIA

Apresentação

Quando tratamos do fazer psicopedagógico, é preciso lembrar que vai muito além da
simples indagação sobre as razões pela qual a criança não aprende. É preciso
considerar que o aprendente domina os recursos que são elaborados na sua realidade,
a partir dos quais poderá dar significado, ou não, à aprendizagem.

É na relação com os pais, com a família, com os primeiros cuidadores, conforme a


realidade em que vive, que o aprendente configura os significados para a relação com
o conhecimento e a aprendizagem.

Uma dificuldade de aprendizagem pode estar muito além de um transtorno ou mesmo


de causas orgânicas. A psicanálise traz um caminho de busca de respostas através da
escuta do aprendente, da percepção dos sentidos criados em sua subjetividade, e é
isso que a torna tão importante para a psicopedagogia.

Nesta disciplina buscaremos entender como a psicanálise contribui para os


diagnósticos e intervenções psicopedagógicas, sua importância para a compreensão
dos mecanismos que envolvem a construção da subjetividade e a possibilidade de o
sujeito se relacionar de maneira positiva, desejante frente à aprendizagem.

1.1 Psicanálise e Psicopedagogia – pontos de intersecção

Olhar para os pontos de intersecção entre a psicopedagogia e a psicanálise significa


pensar a educação como algo muito maior que a transmissão e/ou repetição de
conhecimentos; significa perceber os processos de criação que ocorrem na interação
do sujeito, no seu meio cultural.

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E compreender tais processos implica perceber que estes não se restringem a uma
simples adaptação à cultura, mas se estabelecem na ação e transformação dos
contextos culturais. E como a escola surge nestes contextos de interação? Na medida
em que a educação tem suas normas, valores e condições alicerçadas na cultura (não é
possível pensar a educação sem considerar que está integrada aos contextos culturais
de sua criação), as instituições escolares também são fruto da relação entre
cultura/educação/meio social.

Assim, compreender a lógica de funcionamento da instituição escolar, e contrapô-la ao


meio social em que o aprendente está inserido, é essencial para que possa
compreender o quanto essa dinâmica entre meio social e instituição escolar é
favorável ao processo de ensino-aprendizagem.

Por exemplo, um aprendente que pertença a um meio social mais aberto, em linhas
gerais, terá, provavelmente, maior dificuldade de interação em uma instituição escolar
mais conservadora, na qual tenha menores probabilidades de agir como está
acostumado em seu meio, devendo se adaptar à normas e regras que talvez não façam
sentido para sua percepção de mundo.

A psicanálise, ao abordar o funcionamento e a dinâmica da estrutura da personalidade,


identificando os modos pelos quais o sujeito lida com seus impulsos e desejos (função
do id) e com a própria percepção que tem de si mesmo (função egóica), permite que o
psicopedagogo tenha um olhar para as maneiras pelas quais o aprendente (criança,
adolescente ou adulto) lida com seus objetos internos (como por exemplo, os valores
que traz a partir da interação familiar, escolar, de seu grupo social), valorizando-os ou
não.

A psicanálise, portanto, auxilia o psicopedagogo a compreender os vínculos presentes


nas relações do sujeito com as pessoas e situações com as quais interage.

Isso porque a psicanálise é muito mais que uma abordagem terapêutica:

Psicanálise é o nome: 1) de um procedimento para investigação de


processos anímicos dificilmente acessíveis de outra maneira; 2) de um
método de tratamento; 3) de visões teóricas. (FREUD, apud LAPLANCHE,
2003, p. 358)

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Mas é preciso lembrar, como indica Bacha (2003):

A psicanálise não pode ser simplesmente alinhada como mais uma teoria do
desenvolvimento e da aprendizagem na formação de professores como se
apenas prolongasse a própria visão que a escola tem de si. (BACHA, 2003, p.
15)

É preciso pensar a psicanálise como um caminho, através do qual se faz possível olhar
para a educação a partir de novos pontos de vista, associada à própria humanidade,
que passa a ser percebida como sujeito do saber.

Mas é preciso lembrar o lugar da psicopedagogia: ela não trabalha estritamente com o
sujeito cognoscente, como o faria a partir do olhar pedagógico, nem com o sujeito do
inconsciente, desejante, característico da psicanálise.

Também não se trata da articulação entre pedagogia e psicanálise, mas sim de um


espaço de transdisciplinaridade que, segundo o Dicionário online de Português, é a
capacidade de “produzir uma interação entre disciplinas que, não somente se
restringindo ao conteúdo disciplinar, propõe um diálogo entre campos do saber,
buscando alcançar e alterar a percepção, cognição ou comportamento do sujeito”.

Portanto, ao se tratar da psicopedagogia, há o trabalho de compreender o sujeito


cognoscente e o sujeito desejante como uma única instância, que se caracteriza como
o sujeito aprendente.

1.2 Eu é um outro

Forbes (2021) lembra um verso de Rimbaud: “Eu é um outro", e destaca que “tudo o
que de mim captarem será sempre de um outro”, o que significa dizer que toda a
representação que temos sobre nós mesmos é construída a partir do olhar do outro:

Esclareço. (...) o processo de humanização se dá pela história familiar que


nos acolhe. Peguemos um exemplo simples, o nome de uma pessoa. Que o
leitor se pergunte por que se chama José, Maria, Silvio ou Ana. Rapidamente
se dará conta de como a sua identidade foi construída a partir do outro.
Vejamos uma experiência comum à grande maioria das pessoas. Quando
Maria atinge os 2 anos, ela pede para sua mãe: "Maria quer água." A mãe,
julgando que sua filha já está grandinha, lhe contesta: "Minha filhinha, você
não deve dizer Maria quer água, mas, sim, eu quero água." Maria responde:
"Você também quer água, mamãe?". E aí Maria recebe a interpretação
crucial: "Não, minha filha, você tem que entender que eu é você." Assim

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surgimos como um eu num lugar de um outro, dando razão ao poeta: “eu é


um outro”. (FORBES, 2021, online)

Compreender o quanto somos ligados ao olhar do outro implica compreender,


também, a nossa dependência do olhar do outro, da aprovação do outro, do aplauso
do outro. E essa relação, estabelecida com esse outro, traz profundo impacto sobre a
própria questão da educação. Ferenczi (psicanalista húngaro, um dos mais íntimos
colaboradores de Freud) traz uma análise essencial quanto à sensibilidade das crianças
nesse processo de relacionamento com o outro, que se traduz, também, em
aprendizagem:

(...) Num quarto onde existe uma única vela, a mão colocada perto da fonte
luminosa pode obscurecer a metade do quarto. O mesmo ocorre com a
criança se, no começo de sua vida, lhe for infligido um dano, ainda que
mínimo: isso pode projetar uma sombra sobre toda a sua vida. É muito
importante entender a que ponto as crianças são sensíveis; mas os pais não
o creem; não podem imaginar a extrema sensibilidade de seus filhos e
comportam-se, na presença deles, como se as crianças nada sentissem
diante das cenas excitantes a que assistem. (FERENCZI, 1928/2011, p. 5-6)

Evidencia-se que o processo educativo é responsável pela criação de condições de


desenvolvimento do sujeito. E na contemporaneidade, quando presenciamos
mudanças importantes nas principais instituições sociais, a educação escolar precisa
ser analisada a partir da complexidade que envolve a própria educação, o que significa
compreender o sujeito na sua relação com o outro a partir de aspectos cognitivos,
sociais e emocionais.

Neves (1991) lembra que a psicopedagogia estuda o ato de aprender e ensinar,


levando sempre em conta as realidades internas e externas da aprendizagem, tomadas
em conjunto, “procurando estudar a construção do conhecimento em toda a sua
complexidade, procurando colocar em pé de igualdade os aspectos cognitivos, afetivos
e sociais que lhe estão implícitos”. (NEVES, 1991 apud BOSSA, 2007, p. 21)

Portanto, é possível considerar que a psicopedagogia se diferencia pelo cuidado


particular sobre as emoções e ideias do ser cognoscente, buscando os aspectos
externos e internos que envolvem sua aprendizagem.

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Nesse sentido, quando se considera ser a aprendizagem uma construção individual e


interna, que se realiza em um processo que é histórico, pessoal e social, é preciso
atentar para as significações simbólicas que são construídas nesses processos.

São as primeiras experiências, primeiras relações que constroem as primeiras


percepções sobre o mundo e que influem na constituição do sistema cognitivo e
afetivo que está em desenvolvimento. E os significados construídos nesse
desenvolvimento se dão a partir da apropriação, da reconstrução, do conhecimento,
de modo pessoal, mas a partir do olhar do outro, na elaboração da subjetividade.

1.3 A aprendizagem, o outro e o prazer de conhecer

Em uma elaboração singular, que o sujeito realiza a partir de seus saberes, há a


transformação de informações em conhecimento, e é nisto que se constitui a
aprendizagem – um espaço simbólico no qual as diferenças permitem a criação a partir
das novidades, em um jogo no qual a criatividade apresenta-se como essencial,
permitindo ousar, arriscar, experimentar o novo e conhecer a si mesmo.

Neste sentido, a aprendizagem é uma fonte de prazer, particularmente, se ocorrer em


um contexto de liberdade e confiança, onde a criatividade transparece no pensar e no
falar, articulando as experiências e a subjetividade de cada um.

Esse prazer se dá na relação entre ensinantes e aprendentes, e é a natureza dessa


relação, o quanto se investe nestas possibilidades criativas, que possibilita o
desenvolvimento das modalidades de aprendizagem. Por outro lado, se houver
precariedade na estimulação, esse jogo prazeroso se perde na impossibilidade de se
expressar o pensamento em falas, ações, criações, o que pode induzir as dificuldades
para aprender.

É importante considerar a aprendizagem como uma relação e, neste contexto, deve-se


ter em mente que o sujeito depende do outro, seja esse outro igual ou rival: o sujeito
projeta seus conteúdos, seus pensamentos, no intuito inconsciente de que
correspondam a expectativas, em um processo que Freud identifica como construção
do Eu ideal.

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O Eu ideal é representado pelo que o Eu desejaria ser ou ter, e que se constitui em


referência ao outro. E o sujeito busca moldar seu Eu à imagem e semelhança do Eu
ideal, de modo que o “homem e o ser estão entregues um ao outro [...]. Pertencem
um ao outro por mútua destinação ou remissão. Sem o ser [...] afastado do ser o
homem não desdobra essência e vive no desenraizamento.” (BICCA, 1999, p. 164).

Esse processo é importante porque permite ao sujeito, a partir do que o outro


representa para si, construir sua percepção de identidade como uma forma de
dependência “quase” narcísica para ser feliz, pois, “o indivíduo tem de fato uma dupla
existência, como um fim em si mesmo e como um elo de uma corrente, à qual serve
contra – ou, de todo modo, sem – a sua vontade.” (FREUD, 2010, p. 20-21).

Podemos perceber, assim, que o investimento do outro, a relação com o outro são
essenciais para se organizar um cenário no qual a criança possa se sentir segura,
desejada, amada, de modo a desenvolver o desejo pela aprendizagem – a ausência de
investimento está relacionada à ausência de desejo, o que conduz a uma
aprendizagem que não se apresenta como significativa para o sujeito.

Uma aprendizagem que não se apresente como significativa não é algo indiferente: a
aprendizagem leva a transformações no comportamento do aprendente, em uma
combinação complexa de intencionalidade e vontade, que se apresenta na melhor
forma quando se dá em um contexto sócio-afetivo, ou seja, quando há o vínculo entre
aprendente e ensinante.

1.4 O prazer de aprender

A relação entre ensinante e aprendente é uma relação que se estabelece entre dois
sujeitos que compartilham, além de conhecimentos, um espaço de intersubjetividade.

Mais importante que o conteúdo a ser ensinado, é o molde relacional que se imprime
na subjetividade do aprendente, que pode ser marcada pela alegria ou pela frustração,
pela facilidade mediada pelo ensinante ou por perturbações, dificuldades e desafios
que parecem instransponíveis.

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Os primeiros cuidadores, geralmente os pais, e em sequência os professores, quando a


criança está em processo de escolarização, são os primeiros ensinantes, e são capazes
de construir relações que propiciem espaços e tempos para aprendizagem, em
processos que se inscrevem na autoria do pensamento, ou relações que perturbam, ou
mesmo, destroem os desejos e possibilidades de uma aprendizagem efetiva.

As relações com os diferentes ensinantes, que são outros significativos, ou seja,


percebidos com importância e afeto, estruturam o aprendente ao interceder entre
esse sujeito em constituição e os objetos de conhecimento.

É possível dizer, assim, que é a partir da subjetividade que se coloca na relação entre
ensinantes e aprendentes, que se colocam as possibilidades de pensar, sentir e criar
mais ou menos livres.

O desejo de saber, a demanda do conhecimento, portanto, estão presentes na


subjetividade do sujeito que aprende, mas principalmente se constitui na relação do
aprendente com seu par dialético, o ensinante.

1.5 Espaços de análise e interpretação

Pode-se dizer que um dos principais objetivos do trabalho psicopedagógico é


minimizar as dificuldades do ser cognoscente, o que pode acontecer a partir da
facilitação e da descoberta do gozo de aprender, sem repressão nesse processo.

A contribuição da Psicanálise se revela quando o psicopedagogo exerce a escuta


qualificada para identificar a origem das dificuldades ou transtornos, para além do
imediatamente aparente.

E no que consiste a intervenção psicopedagógica? Entre outros elementos, na


possibilidade de favorecer os espaços de autoria de pensamento, de protagonismo na
própria subjetividade. O olhar que a abordagem psicanalítica propicia que se debruce
sobre as relações familiares, nos elementos principais da formação deste aprendente,
permite que essa ação não se limite à criança (ou adolescente, ou adulto) atendida,
mas envolva a família ou cuidadores no processo.

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Mas essa é uma abordagem que exige um cuidado especial: o psicopedagogo deve
trabalhar uma real percepção de si, de modo a não permitir que seus próprios valores
guiem suas estratégias de intervenção, uma vez que sua postura com relação à
aprendizagem influencia o trabalho com os membros da família, propiciando a
ressignificação dos seus papéis de ensinantes (e também de aprendentes), levando a
uma maior segurança para lidar com o próprio processo de aprendizagem.

Ao facilitar as relações, pelo envolvimento da família no processo da criança atendida,


o psicopedagogo auxilia no modo como o conhecimento é elaborado, transmitido e
criado nesse meio.

Muito além de se ater à dificuldade de aprendizagem, é possível favorecer o


desenvolvimento de comportamentos comprometidos com o processo, por parte dos
ensinantes/aprendentes envolvidos pela intervenção psicopedagógica.

Ao assumir os papéis de autores de seus pensamentos e aprendizagens, os sujeitos


também assumem responsabilidades, pois não se limitam à repetição de ideias,
conceitos, mas se tornam produtores dos saberes que estão presentes no seu
cotidiano. De certo modo, pode-se dizer que a intervenção psicopedagógica permite a
instrumentalização dos sujeitos para sua atuação mais consciente na sociedade,
agregando informações, percepções e elaborações às suas ações.

Aprender é um processo prazeroso e exercitar a inteligência pela aprendizagem é uma


conquista, lançando luz sobre as potencialidades do sujeito que, ao conquistar a
autonomia sobre seus próprios processos, descobre o mundo, a cultura, e passa a
desejar algo que não sabe o que, mas que o incita ao movimento, à busca por esses
saberes que dão sentido à existência.

E sendo a escola o espaço privilegiado de criação e socialização de saberes, estando


presente na interação entre aprendizagem, conhecimento e educação, é preciso que,
também, a escola se comprometa com a promoção do prazer da busca pelo
conhecimento.

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Se há problemas no relacionamento (e no estabelecimento de vínculos) entre


pais/filhos, educadores/alunos, ensinantes/aprendentes, enfim, se não há troca
afetiva, o desejo do aprendente em conhecer, em buscar soluções, em aprender é
prejudicado.

O olhar da psicanálise permite se debruçar sobre as relações entre ensinantes e


aprendentes, ressignificando os vínculos e as interações.

Conclusão

Nesse bloco discutimos como a psicanálise atua de maneira adjuvante no contexto da


psicopedagogia e na compreensão dos processos interrelacionados aos problemas de
aprendizagem e dificuldades na educação.

A psicopedagogia, enquanto possibilidade de práxis, de ação, pode atuar no sentido da


transformação das relações e suas práticas, de modo que se propicie melhores
condições de aprendizagem e revertendo quadros de desadaptação aos processos de
busca de conhecimento, criando novas respostas para os problemas educacionais.

A transdisciplinaridade é o conceito chave para se compreender os modos pelos quais


a psicopedagogia, ao lançar mão do olhar da psicanálise, é capaz de observar,
diagnosticar e intervir nos processos de aprendizagem.

REFERÊNCIAS

BACHA, M. N. Psicanálise e educação: laços refeitos. 2. ed. São Paulo: Casa do


Psicólogo, 2003.

BICCA, L. O mesmo e os outros. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.

BOSSA, N. A. A psicopedagogia no Brasil: contribuições a partir da prática. Porto


Alegre: Artmed, 2007.

FERENCZI, S. A adaptação da família à criança. In: FERENCZI, S. Psicanálise IV. (A.


Cabral, trad., pp. 1-15). São Paulo, SP: Martins Fontes (Trabalho original publicado em
1928), 2011.

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FORBES, J. Eu é um outro. HSM Management, 20 mar. 2021. Disponível em:


<https://bit.ly/3C7bM1O>. Acesso em: 9 nov. 2021.

FREUD, S. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos. (1914-


1916), obras completas volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LAPLANCHE, J. Contracorrente. In: GREEN, A. (Org.). Psicanálise Contemporânea:


Revista Francesa de Psicanálise. Número especial (p. 357-370). Rio de Janeiro: Imago,
2003.

TRANSDISCIPLINARIDADE. In: Dicionário Online de Português. Disponível em:


<https://bit.ly/3kkSsYC>. Acesso em: 9 nov. 2021.

REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES

KUPFER, M. C. Limites e alcances de uma aproximação entre psicanálise e educação.


In: KUPFER, M. C. Educação para o futuro: Psicanálise e educação. 2. ed. São Paulo:
Escuta, 2001.

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