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Sandra Edler TEMPOS COMPUL —SIVOS A BUSCA DESENFREADA PELO PRAZER UMA REFLEXAO SOBRE A BUSCA DESENFREADA PELO PRAZER este livro, parti dos quadros compulsivos que se tornaram muito frequentes no dia a dia de um consultério de psicandlise. Mas uma questao maior se impés tao logo me voltei aos primei- ros depoimentos que recebi de voluntérios: a reflexio sobre as atribulagdes de nossa vida cotidiana nos tem- pos compulsivos que hoje vivemos. Como se dé a passagem do tempo? De que tempo falamos? Para além de um tempo cronoldgico, possivel de ser mensurado, existe o tempo subjetivo, impalpé- vel, mais perceptivel a uns que a outros, como a areia de uma invisfvel ampulheta que teima em escoar, um pouquinho a cada dia, sinalizando uma perda pouco expressiva, talvez, mas presente a cada comemoragio de aniversério ou passagem de ano. O tempo do sujei- to estd associado & finitude, ele teré um fim. Mas so- brevive 0 desejo de imortalidade. O homem ganhou tempo, obteve maior longevidade. E aspira ir ainda mais longe. Na escuta clinica dos tiltimos anos, tornou-se muito nitida, no entanto, a queixa constante de que o tempo & Curto, a vida nao cabe nas 24 horas propostas pelo rel6- gio. Listas interminaveis com itens importantes acabam Por ser adiadas para o dia seguinte, com a constatacéo de que nao houve tempo. Pessoas exaustas, sobrecarre. Badas, agendas lotadas de compromissos, Isso nos leva a interrogar como estamos vivendo e ocupando nossas ho- ras, sobretudo na vida urbana, nos centros, nas grandes cidades. Houve o tempo da carroca, do trem, do carro e do avido. © homem era obediente ao ciclo da natureza, dormia ao escurecer e despertava a primeira claridade de manha. Hoje subvertemos a nogio de dia e noite e usa- mos, indistintamente, os dois espacos em nossas ativida- des ¢ lazer. Além disso, tempo real e tempo virtual, pre- Sente e futuro, se confundem no mesmo dia, E tornou-se imperativo 0 conceito de tempo improdutivo. Nos primeiros anos do século XI, a tecnologia e 2 comunicasao expandiram-se numa velocidade antes impensavel. Na civilizagao pés-industrial em que vi- vemos, a velocidade propria 4 maquina invadiu nos- sas vidas, impondo extrema aceleracao na maneira de viver e de pensar. A aceleragio deixou-nos mais ati- Vos, agcis, abertos a intimeras possibilidades, sim. Mas qualquer mudanga significativa traz consequéncias externas e internas. Ho, Tempos compulsivos O sujeito ea cultura mantém entre si permanente intera¢ao e, muito rapidamente, aparecem as forma Ges sintomaticas decorrentes das mudangas préprias a €poca. Neste livro, procurei me debrugar sobre 0 su- jeito contemporaneo, com suas dores ¢ as eventuais re- lagdes entre essas dores e as diversas condigdes sociais do nosso momento. Os quadros compulsivos, de uma maneira geral, cresceram, assim como as depress6es, 0 esvaziamento do sujeito quanto ao seu desejo, a perple- xidade diante da vida, a auséncia de expectativas, a de- sesperanca e 0 tédio, como uma imersio num grande vazio. Aumentaram também os quadros extremos de violéncia do sujeito contra si proprio e contra o outro, © masoquismo e as expressées de destrutividade. O livro aborda, inicialmente, os nossos tempos, si- tuando configuragées possiveis do mal-estar hoje. Em seguida, como esse mal-estar se manifesta no dia a dia do sujeito, as fontes do sofrimento humano, traduzindo também as novas modalidades sintomiticas em res- posta as condicées externas, Nesse momento, volto a atengao para a cultura em que vivemos. A que modi- ficagdes nos referimos, como essas mudangas altera- ram 0 ritmo da vida e acabaram por afetar o sujeito em sua subjetividade? Quais os imperativos decorren- tes do capitalismo avangado, a forga do mercado e as consequéncias da imersdo prolongada numa cultura profundamente consumista? O consumismo partici- pa da ampliagao do narcisismo, nao apenas trazendo Uma reflesdo sobre a busca desenfreada pelo prazer a © desabrochar de patologias especificas, mas também contribuindo para incentivar a infantilizagao. E adultos infantilizados agem como tiranos. Em seguida, de forma mais detalhada, apresento como se estrutura o narcisismo desde Freud. E a ex- posi¢ao prossegue abordando 0 conceito de pulsao. Diferentemente do instinto, a pulsio é um conceito de profunda referéncia humana, que define a teoria ¢ a pratica psicanaliticas. $6 mergulhando na dimensao das pulsdes torna-se possivel haver entendimento das condigées em que as compulsdes se apresentam e se fixam em cada sujeito. E as bases para seu tratamento A partir dai, os demais capitulos incluem depoi- mentos que possam ilustrar o aparecimento de diver- sas compulsées, bem como os diferentes caminhos escolhidos por cada sujeito que apresentou aqui sua narrativa. ‘rato os relatos como cartas, respondendo a um suposto leitor que me conta sua historia, e co- mento cada um deles, no apenas visando a seu desti- natario, mas procurando apreender a questo central neles contida. Abro também um espaco para abordar questdes ligadas a adolescéncia, uma época singu- lar da vida, em que conflitos internos se avolumam e crescem as demandas sociais. Isso abre terreno a uma vulnerabilidade para a eclosio de quadros compulsi- Vos, entre outros. E concluo analisando as condigdes em que o sujeito encontra meios para sua recupera- S40, deixando automatismo no qual vivia como um 2 ‘Tempos compulstvos refém e assumindo a responsabilidade da propria vida e do proprio desejo. ‘Tempos compulsivos retme, em suma, as reflexdes de uma psicanalista que se mantém ativa ha décadas. © prossegue, até o momento, sem interrupgées. Parte da possibilidade de analisarmos nosso estilo de vida, demandas, respostas automaticas, tudo aquilo que in- corporamos ao cotidiano: os imperativos ¢ as injungées que © viver neste comeco de milénio nos impuseram ~ apesar do curto espago de tempo — hipéteses poss{- veis, alternativas e abertura a novas interlocucées. Nao incluimos aqui qualquer material clinico oriundo do consul- t6rio. O foco de anilise so depoimentos colhidos, sob anonima- to, com auxilio de dois pesquisadores. Com eles, podemos refle- tin, em conjunto, no cendrio da vida cotidiana, queixas, lamentos, impasses, fontes de satisfagdo e dor dos voluntérios que foram entrevistados, Bles permitiram uma aproximagio mais detalhada a0 obscuro universo das compulsdes € trouxeram novos elemen- tos para aprofundar 0 debate sob 0 pano de fundo da cultura em que vivemos. Uma reflexao sobre a busca desenfreada pelo prazer B PVC Msc mses on ort yon a ole Ke-CoM clayey oL CeCe Br eliute incessantemente, sem possibilidade de escolha e até mesmo contr: a vontade consciente. Uma condicao de aprisionamento, nem sempre clara de ini “O mais complicado é que eu tinha lucidez para identificar CRTC M Clee eT. leet em ema a Aa demais. O que me faltava era a forca para interromper aquilo.” QUE TEMPOS SAO ESTES? COMPULSOES E MAL-ESTAR HOJE “Ah, por uma nova sensagao Pela qual eu possuisse o universo inteiro ‘Um uno tacto que fize: ‘A meu ser possuidor fisicamente, © universo com todos os seus s6is e suas estrelas E as vidas multiplas das suas almas... pertencer-me FERNANDO PEssoA homem busca 0 préprio prazer no percur. O so da vida. Essa condigao nao é exclusiva do momento atual. Sempre existiu e é percepti- vel em todas as épocas, desde 0 inicio da civilizagao. Mostra-se, inclusive, nitida nas criangas peque quando observamos seu comportamento, No entan- to, com as mudangas precipitadas pela pés-moder- nidade, a velocidade, a aceleragao, tudo isso ganhou uma apresentag4o mais clara e evidente tanto do ponto de vista subjetivo quanto do cenério social no qual se apresentam. Por que a procura pelo prazer tornou-se téo aguda e desenfreada, a ponto de produzir respostas repetiti~ vas, insistentes? O sujeito estabelece lacos compulsivos, por vezes de maneira muito intensa, que produzem, no conjunto da vida, esvaziamento, estreitamento e redu- 40 de horizontes existenciais. Como definir e contextualizar as compulsées, sinto- mas muito presentes na vida cotidiana, que se transfor- maram numa das expressées mais frequentes do mal- -estar contemporaneo? As compuls6es no se ligam unicamente as substan- cias psicoativas: de uma forma mais ampla podem se estabelecer nao apenas dia a dia, em nossa relagao com os alimentos, café, exer- cicios, dinheiro, compras, uso da internet, jogos, sexo até mesmo trabalho, Em quaisquer dessas atividades, ‘© que chama atengao nas compulsoes é 0 tipo de relacao que © sujeito cria com 0 objeto, e, nao necessariamente, 0 objeto em si. A resposta automatica ¢ o vinculo de de- pendéncia, somados, produzem um efeito de apequena- mento e redugdo do sujeito em suas escolhas e decisoes. A palavra “compulsao” sugere coergio, estar com- pelido a repetir incessantemente, sem possibilidade de escolha ¢ até mesmo contra a vontade consciente. Uma condigao de aprisionamento, nem sempre clara de ini- cio, que, possivelmente, teve como fator desencadeante a busca legitima do prazer, acentuou-se de tal manei- ra que, nesse percurso, 0 sujeito tornou-se refém. Aqui- lo que se enderegava antes ao prazer transformou-se em algo indispensavel para ele continuar a viver. Mas nem todas as compulsdes sao malvistas so- cialmente. Algumas sio acolhidas com bons olhos, frente a elas, mas nos lagos do 16 ‘Tempos compulsivos sobretudo aquelas ligadas ao trabalho, ao estudo © a exercicio fisico, Outras passam despercebidas ao olhar, : café e cho- como ocorre com certos habitos alimentares colate so bons exemplos. Outras, entretanto, provocam franca rejeigaio, como ¢ 0 caso da dependéncia do alcool e das drogas, sobretudo em casos de descontrole, Que fatores podem ser relacionados ao crescimen- to dos quadros compulsivos? Por que as compulsdes frequentes e, além disso, to exacer- badas que assistimos, cada vez mais, a sujeitos em si- tuagées-limite, vivendo de modo explicitamente des- trutivo? Havera, em nosso modus vivendi, habitos costumes, algo que possa ser pensado como possiveis agentes ou ainda fatores especificos que contribuam para a multiplicacaio dos casos de compulsao? A interrogacdo se volta, em particular, para o tempo 0 movimento compulsivos: como passamos, em algu- ma medida, a viver compulsivamente? Como as com- pulsdes se atrelaram ao dia a dia e que efeito produ- zem? Como se da a submissao do sujeito a um estado de dependéncia e engessamento? Em algum momento ultrapassa-se a linha ténue e nio se trata mais de um habito introduzido pelo sujeito, mas de algo que, uma vez posto, passa a regé-lo, & como um héspede, que acolhemos com encantamento e traz brilho ao cotidia- no, mas depois se torna o dono da casa. Como psicanalista, observo o aspecto singular que se apresenta no relato de cada analisando que recebo, Que tempos sdo estes? Compulsdes e mal-estar hoje "7 mas meu olhar nao alcanga apenas aquela singularida- de, ¢, sim, um conjunto mais amplo, a familia, os valo- res, a geracio, 0 universo particular onde transita. No horizonte, uma reflexéo maior se delineia: 0 que pode- mos refletir sobre © nosso tempo? Acredito ser possivel visualizar a cultura e uma par- te de nossa época por meio do discurso dos sujeitos em andlise. E 0 proprio sintoma acaba por expressar um. rosto, as feiges de um determinado momento histori- co com suas crengas e valores. ‘Meu referencial e base de trabalho é a clinica psica- nalitica, mas ¢ impossivel néo observar em tanto tem- po de estrada as mudangas vertiginosas ocorridas nos uiltimos anos. Transformagées sociais que acarretam outras tantas no ritmo e no estilo de vida teréo reper- cussdo na subjetividade? Na propria configuragio do sintoma psiquico? O que podemos refletir sobre a am- pliacao dos quadros compulsivos? © que essa reflexio pode trazer para uma anilise da forma atual de viver? Quadros compulsives numa cultura também compul- siva? O tempo do sujeito é precipitado e, muitas vezes, atropelado pelo tempo da vida social. 18 ‘Tempos compulsives UM ESTADO CRONICO DE INFELICIDADE “Ah, viver 6 tio desconfortavel. ‘Tudo aperta: 0 corpo exige, © espirito nao para, viver parece ter sono e nao poder dormir ~ viver é incémodo.” CLaRice Lispscror ivemos um desconforto constante, que nao podemos definir com clareza. Muitas vezes © sentimos, sem reconhecé-Io; outras, nao € perceptivel. No entanto, ali estd. Pulsa, Pede algo como remédio, Reclama solugao, Aumenta ~ e pode mes- mo se tornar insuportavel. Em outros momentos, fica adormecido, quase suportavel. Mas nao cessa de todo e pode reaparecer com forga total. Essa condigao aponta para uma falta estrutural, um vazio que néo pode ser preenchido de forma completa. Os objetos encontra- dos sao apenas aproximagoes possiveis - insuficientes, portanto — para aplacar a dor e preencher 0 vazio. Freud nos legou 0 texto e a expressio O mal-estar na civilizagao: a civilizagao se constréi sobre a rentincia. da pulsao. O que isso quer dizer? Para vivermos juntos, precisamos, a todo momento, renunciar nossa pro- pria satisfacdo ou adié-la, ainda que em parte. Pagamos um alto prego para nos dizermos civilizados. Mas, para praticarmos isso, temos de nos confrontar com nossas, pulsdes, nossos estimulos internos que se movimen- tam em busca da satisfagao. Elas sio dotadas de for, constante e partem de uma fonte no interior do corpo em sua trajetéria em direedo ao alvo, que é sempre, a satisfagao, De alguma maneira precisamos fred-las, tor- nando vidvel a vida em comum. Mas sera isso possivel? A pulsio difere do instinto, cuja referencia é0 mun- do animal, mas guarda relagao com algo de cego e er- rante, aquém da linguagem. Podemos aproximé-la, talvez, de um elemento selvagem, presente no sujeito. Impée uma dualidade com a qual temos de conviver. Mesmo 0 sujeito mais civilizado é em alguma medida, pressionado pela urgéncia pulsional. A pulsao freudia. na é um impulso que tem a especi um objeto fixo: qualquer objeto pode ser eleito para um encaixe pulsional. E serve ao movimento de busca da satisfagdo. Como 0 objeto nio ¢ especifico, a satisfagio é incompleta, sempre parcial, o que atrela 0 sujeito ao infindavel ciclo da repeticao. E 0 encontro possivel & faltoso, porque 0 objeto encontrado nao coincide exa- tamente com o que foi perdido. Mas as pulsées insis- tem, repetindo sempre o mesmo circuito de busca, en- contro e desencontro, A civilizagao, por sua ver, impée sacrificios, tentan- do barrar o trajeto das pulsées ¢ exigir que cada sujeito abra mio de cotas de agressividade e sexualidade. Para cidade de nao ter 2 ‘Tempos compulsivos que os homens vivam juntos é preciso que haja limite E esse espaco de possibilidade ¢ construido por meio da renincia. Essa remincia, no entanto, produz um efeito marcante na subjetividade: torna-nos para sem- pre angustiados ¢ insatisfeitos, Sao basicamente trés as fontes de sofrimento huma- no ~ a simples observagao nos leva a perceber isso: a natureza, cuja forca nao dominamos; 0 corpo, que de- clina; € 0 relacionamento com 0 outro, fonte social do softimento. Hoje, passados mais de oitenta anos desde a publicagéo de O mal-estar na civilizagdo, vemos um panorama inalterado quanto a isso. A. natureza expée os efeitos da passagem do homem sobre o planeta; 0 corpo ~ a despeito do aumento da longevidade e dos avangos da medicina ~ envelhece; e, por fim, 0 outro, constante fonte de restrigio, Em cada parceria, rela- cionamento, trabalho de equipe, encontramos sempre uma barreira — a posi¢ao do outro ~ que sinaliza, a todo momento, até onde podemos ir. Além disso, é impor- tante ressaltar que, numa cultura de crescente indivi- dualismo, o outro incomoda em sua diferenca, chegan- do mesmo a incomodar s6 por existir. A nogio freudiana de narcisismo das pequenas dife- rengas faz referéncia direta ao miicleo egoico do sujeito, que responde pelo horror a diferenca — podendo pre- jidir guerras fratricidas, violéncia entre torcidas ~ e que, de forma ostensiva ou disfargada, eclode na esco- la, no convivio entre criangas. Ser e pensar diferente Um estado cronico de infllldade 2 desencadeiam no sujeito uma nuance de afetos que pode ir do simples desconforto ao édio. E, em nés mesmos, ¢ possivel perceber: até um amigo pode, em curto espaco de tempo, transformar-se em estorvo, e vi Diante de todas essas dificuldades, a cultura propée, em troca da remincia, oferecer ao sujeito elementos de protegao ¢ alicerce vida. Proposta que, segundo Freud, fracassa em seu resultado final e, mais ainda, nao pode se consumar na contemporaneidade. Nesse contexto, a vida cotidiana esté longe de ser um mar de rosas. Vivemos expostos as dificuldades ex- ternas, ao confronto inevitavel com o outro e, interna- mente, pressionados por pulsdes, cuja via de satisfagao esbarra com os limites impostos pela cultura. Desse embate inevitavel com a realidade (interna e externa), nasce o percurso singular tracado por cada um ao lon- go da vida. O sujeito com seu desejo, seu montagens ¢ artificios que cria para seguir em frente E Jonga a luta do homem contra a dor, ¢ todas as culturas, desde as mais remotas eras, procuraram ali- vio por meio de antidotes. Freud observa que o método talvez mais grosseiro, mas, ainda assim, mais eficaz, é © quimico, a agao de determinadas substancias no or- ganismo. Procura analogias, comparando 0 estado de euforia maniaca Aquele obtido pela acao de um toxico ~ embora a mania surja sem a administragao de qualquer substincia, Esses veiculos, na classica observagao freu- diana, sio amortecedores de preocupagées e permitem versa. intoma, com 2 ‘Tompos compulsivos que o sujeito se afaste da pressao da realidade e encontre refiigio num mundo préprio, ainda que por um espaco de tempo limitado. Seriam, assim, uma espécie de anes- tésicos diante dos problemas e vicissitudes da vida, ou ~ na expresso poética de Baudelaire ~ os paraisos arti- ficiais. A propriedade de algumas substancias de abran- dar o desconforto, ou, ao contrario, de fornecer estimu- lo a vida, pode gerar um estado de dependéncia. Isso do ponto de vista subjetivo. E, dependendo da substancia em uso, pode também causar danos ao organismo. Outras técnicas que apresentam resultados sao as praticas orientais, 0 ascetismo, a abstinéncia, a busca da quictude, o deslocamento para o trabalho e fontes intelectuais de satisfagao, que ndo so acessiveis a to- dos ¢ tém, como denominador comum, a tentativa de domar as manifestagdes pulsionais. Existem ainda as praticas sublimatérias que, lembra Freud, tampouco sao possiveis a um grupo grande de pessoas. Aqui, as principais seriam a religido, a ciéncia ea arte. Esta tl- tima retine as melhores condigées de promover efeitos sublimatérios. Sublimar as pulsdes ~ na criagao artis- tica, por exemplo - implica uma forma de satisfagao indireta. O artista adia 0 foco da satisfagao imediata, muda 0 alvo e 0 préprio objeto e cria algo que, mais tarde, pode ser compartilhado. B uma forma de lidar com a insisténcia pulsional sem reprimi-la e, ao mesmo tempo, de inventar um caminho, inaugurando também um novo circuito de satisfagao. Un estado cronico de inflicidade 23 Do ponto de vista psicanalitico, para que um sin- toma se manifeste € necessdria a confluéncia de dois polos: 0 polo interno (pulsional) ea cultura com a qual 0 sujeito interage. No que se refere A pulsdo, nao ha no- vidade: ela repete o mesmo trajeto, tendo como meta a satisfagao. Jé a cultura muda enormemente. E, a cada momento, apresenta ao sujeito novas ofertas, modos possiveis de satisfagao. Assim, a configuragao do sin- toma, sua face externa, pode se apresentar de formas variadas, de acordo com 0 momento da cultura no qual ele se coloca. Estamos hoje diante de novos sintomas. Alias, os novos sintomas nao sao propriamente novo: eles se mostram com novas vestes ou, ainda, surpreen- dem pela incidéncia ampliada. Tal crescimento trouxe interrogagées para os especialistas de diferentes areas, convocando-os ao debate e A troca de ideias. E nesse espago que este livro se insere, retornando a pergunta original: por que os sintomas compulsives tornaram-se to expressivos na vida contemporanea? Houve 0 momento em que a cultura exigia trabalho e contengao. E a vida de cada sujeito refletia isso. No momento inaugural da psicandlise, a ampliagao de ma- nifestacées inexplicdveis no corpo trouxe aos cientistas uma série de questdes. Freud percebeu nas paralisias, na cegueira, nas convulsées e nos demais sintomas neu- roldgicos bizarros algo além do sintoma médico. Viu naquelas manifesta um sinal, uma mensagem, pela via do organismo, de um conflito psiquico. Concebeu 4 ‘Tempos compulsivos © recalque, por meio do qual uma ideia inaceitavel é ba nida da consciéncia ¢ acaba encontrando outra forma de expresso. A época, eram fendmenos que surpreen diam pela quantidade de pessoas envolvidas. Tratava: de manifestag6es clinicas individuais, mas que refletiam também os valores da cultura fortemente repressora. Hoje esse mesmo sintoma encontrou outra forma de expressao. E muito raro encontrar a antigamente cha mada crise histérica em sua apresentagao original. Tor- nou-se socialmente depreciada e desapareceu quase por completo nos grandes centros urbanos. Vivemos uma cultura muito diferente daquela de inspiracao vitoriana do inicio do século XX. A vida numa grande cidade ganhou velocidade e ritmo fre- néticos. E nesse contexto que as compulsées flore: cem e se destacam entre as patologias representativas do sintoma social. Elas nos falam da busca rapida de satisfacdo, da pressa, da aceleragéo. ‘Traduzem a pro cura do alivio imediato a dor, & angtistia, ao panico. Ninguém suporta esperar. Qualquer demora é tempo perdido. Tempo perdido na obtengao de prazer, na pre- senga em eventos, no ganho imediato, no lucro rapido. ‘Uma cultura na qual todos tém de funcionar, a despeito de suas dores. Uma corrida louca contra o tempo. A cultura fornece préteses — préteses quimicas, no dizer de Freud ~ de todos os tipos: camuflagens, corretivos, aplicativos, prontas para suprir, repor, encobrir, de tal modo que tudo, ou quase tudo, fique como deve ser Uns estado erdnico de inflicidade 2s ~ aparéncia mantida ¢ humor sob controle. Todos se- guindo em frente, obedientes aos imperativos: aparén- cia saudavel, corpo esculpico, sujeito sempre presente, conectado, ligado. E, sobretudo, feliz! A felicidade tor- nou-se obrigatéria, como escreveu Daniéle Silvestre, em A obrigagdo de ser feliz, Passou a fazer parte de uma boa apresentacao. Nossa vida deixou de ser contida, As portas da in- timidade se abriram, ¢ o privado tornou-se piiblico. A vida urbana deixou de ter pausas e aprendemos a viver sob o ritmo 24 por 24. Sem nos darmos conta, a vida tornou-se sofrega, frenética, e a relagéo de cada sujei- to com o tempo tem mudado de maneira imperiosa. Um recente seminério que realizei sobre Baudelaire e a modernidade trouxe 4 meméria, por meio da poesia, a estranheza do poeta com a adogao, pelo homem, do tempo da maquina — 0 que altera 0 tempo subjetivo e diversas praticas ligadas ao pensamento. Sao reflexdes realizadas a partir da ro com 0 advento da maquina, do trabalho nas fabricas do estilo urbano de vida. O modo de existir mudou & época, e continua a mudar radicalmente. Hoje, na mo- dernidade avangada, a experiéncia do tempo pode ser resumida numa palavra: velocidade. Em consequéncia disso, os sintomas psiquicos, que se revestem com as cores de seu tempo, passaram a refletir essas mudangas e ganharam novas feicdes. ina ainda na modernidade, 26 Tempos compulstvos A LOGICA DO EXCESSO “Recorda-te de que o tempo é um jogador avido. Que ganha sem roubar, a cada partida! £ a lei!” CHARLES BAUDELAIRE ero as condigées de vida contemporaneas piores do que aquelas que as antecederam? Viver nunca foi facil, e cada época propée dificuldades especi- ficas A passagem do sujeito pela vida. Mas nossa época traz caracteristicas dinicas, sobre cujas peculiaridades vale a pena pensarmos um pouco. Nossa cultura propée, de forma cada vez mais cla~ ra, © consumo rapido ¢ o descarte igualmente rapido de objetos, cujo prazo de validade mostra-se cada vez menor. A velocidade é uma temitica atual, e nossa vida decorre num ritmo acelerado bastante impul- sionado pela aquisigao quase ininterrupta de objetos. Esse movimento nos mantém constantemente ocupa- dos, e passamos a necessitar de muito mais tempo e de infindaveis objetos para viver. Em paralelo, a queixa onipresente da falta de tempo. O tempo virando um sonho de consumo. No entanto, 0 dia permanece com 24 horas. Nossa forma de ocupar o dia é que se tornou superocupada! O escritor Italo Calvino, em As cidades invisiveis, descreve Leénia, uma cidade cujos moradores acor- dam, todas as manhas, em lengdis frescos, lavam-se com novos sabonetes ¢ extraem de suas geladeiras no- vissimas latas com intocados alimentos. Tudo é novo em Leénia e, nas calgadas, em limpidos sacos plisticos, todo 0 lixo acumulado aguarda retirada. Tanto assim que a opuléncia em Le6nia é medida pelo que é jogado fora, pelo lixo de cada um. E 0 prazer dos moradores €0 de conviver sempre com novidades, descartando, a cada noite, tudo 0 que foi usado, No entanto, observa Calvino, “quanto mais Leonia expele, mais cois mula [...]; renovando-se todos os dias a cidade conser- iS acu va-se integralmente em sua tinica forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e de todos os dias e anos. E possivel pensarmos nossas vidas ~ como sugere Calvino ~ com base no descarte que realizamos, ¢ bas- ta uma noite como a de Natal, 0 Réveillon, 0 sébado seguinte ao Black Friday ou a Pascoa para nos darmos conta dessa realidade. Precisamos de tantos itens para viver? E na quantidade em que compramos? Estamos exagerando? Ou somos impulsionados ao consumo e a cle aderimos sem questionamento? Com a contribui¢ao de Lacan, chamamos a voz do- minante, a palavra de ordem do funcionamento social, 28 Tempas compulsivos de discurso do mestre. Havia, para o sujeito constitui- do por esse discurso, objetos que nao faziam parte dos circuitos origindrios de troca de mercadorias. No en- tanto, no rumo da histéria, houve uma mutagdo que imprimiu a esse discurso uma nova légica. Visualizan- do, no inicio dos anos 1970, 0 avango do capitalismo © as transformagdes dele decorrentes, Lacan deixou- -nos uma nova perspectiva, renomeando 0 discurso do mestre como discurso do mestre capitalista ou, apenas, discurso do capitalista, mais conveniente as condigées da economia no capitalismo avangado. E um discurso que imprime velocidade as transformagoes ¢ busca in- cluir objetos e atividades, quaisquer que sejam, no cir- cuito de trocas, nesse grande mercado no qual tudo se consome ~ na expresso de Lacan. A logica que rege 0 novo discurso se caracteriza pela saciabilidade, Nao ha mais limite, Quanto mais, me- Ihor! Trata-se, hoje, de lucrar e, nesse sentido, nao ha Tal mandado so- tempo a perder nem esforgos a medi cial nao se impés sem consequéncias: nés nos tornamos frenéticos em nossas atividades. Vista numa perspectiva de trinta anos atras, a vida de hoje seria impensavel, tal- vez fossemos diagnosticados como hiperativos. Nao ha mais uma meta fixa, os limites estabelecidos sao facil- mente renegociados ~ sobretudo nos cartées de crédito. Sempre mais, sempre mais! Nunca temos 0 bastante! Se analisarmos as nogées de discurso do capitalista com a ideia de sociedade do espetaculo proposta por A ligica do excesso 2 Guy Debord, apesar de pertencerem a registros dife- rentes, teremos melhor visibilidade de nossa cultura hoje. Dois valores sempre existentes tornaram-se im- perativos: a insaciabilidade e a exibic&o de gozo. O ci- dadao e a cidada comuns sao sujeitos estressados que funcionam além do que podem para girar 0 orcamento € honrar os cartées de crédito ao final do més. Com- prar, comprar! Gerar riqueza, produzir, render e lucrar sao os valores dominantes. Para que essa superprodu- Gao se dé é necessario correr, performar, estar presente, aparecer. © aparecer tornou-se uma forma de existir. Para que isso se dé é necessario ser rapido, objetivo, pragmitico, ir direto ao ponto. Antes, encontros de lazer, de conversa gostosa relaxada, numa transforma- ao rapida passaram a almogos/encontros profissionais para networking com tais ou quais pessoas que vao ocupar postos-chave na empresa, no departamento, na academia, na politica. O dolce far niente, a siesta, 0 Scio criativo ~ objeto das reflexdes do socidlogo italiano Domenico de Masi -, a pausa desapareceram quase to- talmente. Cresceram as opgées de trabalho, para além do formal, diversificaram-se enormemente as maneiras de se ganhar a vida, Deixou de existir o antes chamado “hordrio do expediente’, e esse tempo em produgio in- vadiu a vida pessoal, conjugal, familiar, o lazer € 0 sono. Manter-se no topo custa muito caro ~ e como cansa! E ‘© que € mais importante: 0 consumo, no nivel em que hoje o praticamos, alterou alguma coisa no amago das “Tempos compulsivos relagdes humanas. E essa alguma coisa vem a ser 0 va~ lor da pessoa humana. © filme Proposta indecente, de Adrian Lyne, langado no ano de 1993, anunciava os valores do final do milénio: tudo tem seu prego e nao existem mais objetos fora dos circuitos de vendas. “E pessoas?”, pergunta Diana, perso- nagem protagonizada por Demi Moore. “Compro pes- soas todos os dias’, responde John Gage (Robert Redford). O filme foi tema de reflexo do filésofo francés Jean Baudrillard, que discute a nogao de troca impossivel - na qual os sujeitos implicados cederiam de seus valores diante de uma proposta miliondria - ea de moeda viva, algo que nao teria prego, mas que acaba tendo. O filme ilustra de forma inequivoca os valores com os quais nos deparamos hoje: todo homem tem seu prego, ¢ tudo é uma questo de chegar a essa cifra. Um perfodo de pro- funda banalizagao na histéria humana, em que valores como dignidade, correcao € ética ~ como vemos todos os dias — tém sofrido fortes abalos. Aparentemente 0 sujeito € mais livre, mas s6 na aparéncia, na lingua solta a “falar verdades” nas redes sociais, a impor-se em relagao ao outro. E submisso ao consumo. Faz parte de um grande rebanho que se- gue lideres — nao mais os do passado, mas aqueles que aparecem na midia: celebridades, atores, personagens de novelas - cujos figurinos e acessérios so cam- pees de venda! O consumo infantiliza e transforma o adulto numa crianga pequena, um consumidor tenaz, A ligica do excesso a cheio de energia e vigor em busca de seu objeto/brin- quedo ~ consagrado pela expressio sonho de consu- mo. Os shopping centers so verdadeiros laboratérios do comportamento humano, ¢ basta uma tinica tarde para perceber homens e mulheres peregrinando pelos corredores, déceis, siderados, olhando as vitrines em busca daquele objeto, da cor especial da estagao, algo que em sua fantasia ira distingui-los e torna-los tini- cos. Mas é a sociedade de massa que homogeneiza. O consumo deixou ha muito o terreno utilitério a servigo das necessidades da vida civilizada e passou ra- pidamente a criar demanda e a seduzir 0 consumidor em potencial. Um especialista em marketing entrevis- tado pelo programa Além da conta, da Rede Globo, na noite da segunda-feira 19 de janeiro de 2015, esclarecia que 0 terreno da compra racional, consciente, est4 do- minado, e o marketing avanca agora para o inconsci te, procurando seduzir por meio de texturas, cheiros. As marcas distribuem-se por aromas especificos ten- tando capturar © consumidor com alguma coisa que ele nem sabe bem que &... mas compra! A compra impulsiva é estimulada e representa um segmento im- portante no mercado consumidor, O que aqui chamo de consumo nao significa ape- nas 0 ato de comprar. Pensamos a ideia de consumo como uma légica na qual estamos todos envolvidos, que estimula a voracidade ou, como mencionou Char- les Melman, uma atividade de mercado que interfere ene 32 ‘Tempos compulsivos na subjetividade. A ideia ¢ que, 0 que existe, nao s6 esta dispontvel, como ¢ acessivel ao consumo. Quais as consequéncias para uma cultura quando tudo entra no Tudo se consome, € 0 proprio circuito de mercador sujeito passa a encarnar, na citada expressio de Bau- drillard, uma moeda viva. O sujeito se torna objeto, um produto a venda ¢, lamentavelmente, se orgulha disso, como € 0 caso, por exemplo, das mulheres-fruta. E uma fase em que o discurso capitalista impera sem restrigao ou barra, Pelo contrario: por vezes, nao ter limites tor- nou-se sinénimo de ser arrojado, Seguindo essa légi- ca, as praticas de gozo evocam também uma busca de satisfagdo imediata e desenfreada, que passa longe da mediagao do Outro e nao conhece restri¢ao ou limite. E 0 caso de Amanda, 34 anos, formada em direito. Uma compradora compulsiva. Em seu depoimento, ei a ela admitiu: “Era uma coisa tao intima que cus encarar. CON meio do ano de 2013, perdi totalmente o controle das compras que fazia. Tinha parado de trabalhar em fevereiro e, em margo, decidi estudar para fazer concurso. ‘Tudo planejado. Exercicio pela manha e, 4 tarde, estudar o maxi. mo possivel. Assim seriam meus dias e, em dois anos, ndo mais que isso, atingiria meu objetivo: um emprego piiblico na area juridica, renda esta- vel, carreira e plano de satide, Mas nao segurei a A logica do excesso 33 a barva. Tinha terminado um relacionamento Ion- go. Falei para mim mesma: agora vou ficar um bor tempo sozinha. Eu preciso me encontrar. Nav posso ficar dependente de relacionar ento algum, Meu cargo era temporario, Dei baixa no Exército, Pensei: preciso de um tempo para di- gerir isso tudo. E a partir daf comecei a me per- mitir. Achei que poderia ‘enfiar 0 pé na jaca, co- met 0 que quisesse, beber, gastar, dormir ou nao dormir, sem ter que explicar a ninguém. Por fim, uma vida independente. Até entdo, eu trabalhava todos os dias e emendava um namoro no outro. Uma vida cheia de compromissos, de pessoa su- perocupada. Qua: Fiquei vivendo assim, achando que estaya me libertando. De vez em quando, gunia dentro de mim: ‘Quando é que vocé vai co: e sem tempo para pensar. urgia uma per- megara estudar? Quando 6 que vai botar ordem no que come © comecar a malhar?’ Respondia: ‘Ah! Uma hora eu vou!" Me sentia bem porque moraya sozinha e estava me bancando. Nao tinha de dar satisfagoes a ninguém. Quando me matriculei no curso preparatério para concursos, passei a ter uma cobranga ~ in- terna e tashbém da familia -, porque, querendo ou nao, vocé gera uma expectativa, precisa cor- responder, acaba comparando seu desempenho com o de um colega. Percebe suas limitagées. Temps compulsivos sdbados, o dia to Comecei a fazer 0 curso ao! Ja no primeiro sabado, ao sair do curso, resolvi ir ao shopping. Ali comesou © descontrole, Com- prei o que nao precisava, roupas, bolsas. meias ica, livros novos para estudar. am para gind monte de coisas, Moro ao lado de um grande shopping , ao voltar para casa, tenho necessariamente que passar por ele, Mas, depois que comecei 0 cu 50, passei a parar nele todas as vezes que voltava para casa. Isso gerou um descontrole enorme. Sempre senti que tinha uma compulsao latente, mas ela tomou forma ali, Uma compensagao? Es- tava sentindo um vazio enorme pela perda que tive com 0 relacionamento amoroso, a perda do trabalho, dos amigos que fiz ali. Tive que voltar a estaca zero recomegar. ‘Totalmente s6, f como eu vejo hoje. Naquele momento nao via nada, 86 ans me sentir poderosa, podendo comprar ¢ me pre- sentear, Um ganho; tas sé imediato: o efeito se dissolvia rapidinho. © mais complicado é que eu tinha lucidez para identificar 0 que estava acontecendo e clare- za para ver que estava demais. O que me faltava cra a forca para interromper aquilo. E foi ficando cada vez pior. Eu criava um roteiro na minha ca- bega: vou comprar um arco, vou comprar uma em comprar, gastar, o sentimento bom de A logiea do excesso 36 bolsa brane , eu ndo tenho bolsa branca, quero isso e aquilo. No meio do itinerario jé estava can. sada e querendo voltar para casa. Mas mim mesma: ‘Ah, niio, mas eu tenho que passar na Loja tal, tal ¢ tal, Eu jf me programei para i agora vou cumprir!’ A gente vive dois lados na compulsao, aquela coisa boa de comprar, uma sensagao de poder passageira, de compensa: & logo em seguida, surge a culpa. Vocé percebe direitinho que ¢ uma ilusdo, uma autoenganagao € que aquilo nao vai adiantar nada, Eu tinha feito uma ‘senhora’ reserva. Recebi uma indenizayao do Exército, uma espécie de se- guro-desemprego, tinha me capitalizado e podia bancar meus estudos até a mudanca de vida.-Mas esgotei as reservas. Gastei muito inclusive me dizia para c tratando, Estava em aniilise duas vezes por se mana, Mas nao fal a nada a esse respeito, Ta as sessdes ¢ levava outras coisas para comentar: mi nha solidao, a aridez, a secura da minha vida, me queixava de ter uma vida dura, sozinha. Mas... sobre a compu foi uma coisa tio intima que custei a encarar. Uma amiga me aju- dou. Levou-me para assistir a uma palestra sobre oniomania. E o nome da compulsao por gastos. 14 eu soube do trabalho dos grupos, da escola de educagio financeira, Comecei a me cutidar. Levei o tema para a minha anilise e s6 entao vi 10, nada dizi: Tempes compulsvos que o buraco é bem mais embaixo. At isso tem muita coisa que é dificil ver, que dé. muito. A compulsio encobre um sofrimento profundo, Mas foi algo que precisei passar para reconstruir minha vida em novas bases. > © relato de Amanda é emblemitico e permite a du- pla insercdo que vamos aprofundar: a vertente do so- frimento individual e 0 pano de fundo da cultura em que vivemos, a questao pessoal tangenciando algo mais amplo: a forma contemporadnea ocidental de viver. A vor aberta do discurso social com os valores que pro- paga ¢ que. repercutem na esfera intima, atingindo a subjetividade e constituindo ~ ou ajudando a moldar ~ a face externa do sintoma, que apresenta dois polos: © polo interno, da pulsio que se repete, 0 da cultura € do momento no qual se revela. Os sintomas psiquicos, hoje, dificilmente se configuram com as mesmas vestes com que se apresentaram na época em que Freud viveu ¢ construiu o¢ pilares da psicandlise. Fles carregam as marcas e injungdes do nosso tempo. Dai podermos fa- lar de sintoma — tanto no Ambito clinico quanto num sentido mais amplo ~ como uma tendéncia marcante, ou mesmo uma “patologia social” da nossa época. FE fato que transformagdes acentuadas ocorreram nas tiltimas décadas do século XX e no inicio do sécu- Jo XXI. O avango cientifico e tecnolégico, sobretudo na rea das comunicagdes, promoveu novos padrées de A liica do excesso a conforto ¢ agilidade e imprimiu 0 acesso 4 velocidade ndo apenas nos meios de transporte. A comunicacao se 4 @ qualquer momento, sem barreiras, entre pessoas de diferentes continentes. Nossas vidas passaram a ter outro ritmo. A globalizagao se impds, trazendo a uni- formizagao de padroes, e a internet abrit novos espacos ~ 0 universo virtual multiplicando as possibilidacles de interacao ¢ contato, numa dimensao que, antes, nao poderiamos sequer imaginar. i Os avangos séo inegaveis. Nao hé como nem por ue voltarmos no tempo. Mas é importante analisar: modificagdes radicais nao ocorrem sem consequén- iss. Ha inevitavelmente um efeito colateral que pode: mes perceber a olho nu, tanto na vida social quanto ha intima, e, muito nitidamente, na mudanga daqueles que nos procuram no dia a dia do consultério. Essas mudangas apontam na direcao do aumento de qua- dros compulsivos, distiirbios alimentares, descontrole busca do excesso na forma de viver. O imediatismo se Impoe aos nossos olhos, € 0 apelo a satisfacéo imediata torna-se imperioso. Essa mudanga de paradigma foi tio brusca, e os efeitos se apresentaram de maneira tao expressiva — w Por vezes, devastadora ~, que estamos avaliando sua extensio na forma de ser do sujeito em seu dia a dia Seus habitos, novas demandas e valores, bem como na esfera do pensamento. Se, até as tiltimas décadas do sé. culo passado, construir a prépria vida, inspirado por 38 Tempos compulsivos ativo, neste momento, a um ideal, era um valor signi aparéncia fisica e a performance promovem uma nova maneira de pensar e de viver, impondo-se de forma quase absoluta como referéncia A busca do sujeito. Na era do excesso, esse movimento tornou-se exagerado, frenético e, por vezes, para alguns sujeitos, ‘nico, o va~ lor maximo a ser alcangado. Eclodiu, em consequéncia, uma série de manifestagdes ligadas ao corpo e & ima- gem, cuja énfase na cultura superou qualquer expecta: tiva. Para muitos sujeitos, 0 corpo em si passou a ser a razao do existir. Por meio dos depoimentos apresenta- dos neste livro, 0 leitor terd a oportunidade de visuali- zar ~ na esfera intima ~ 0 reflexo do fendmeno maior que se apresenta no cenario social Vamos partir de algumas questoes presentes no relato de Amanda, comecando por aquelas ligadas as perdas que menciona. Um longo laco amoroso, a con- clusao do contrato no Exército: 0 amor e a carreira, ambos abalados em sequéncia, certamente provocan- do intensa dor e mal-estar. A despeito das tentativas de racionalizagao — “vamos em frente’, “o cargo era tem- pordrio” -, percebemos que houve sofrimento. Ou seja, nao basta que a razio compreenda, nao somos apenas pensamento e raciocinio. Ha. um montante de afeto que resiste e precisa de mais tempo para ser elaborado. E ela teve clareza disso no momento inicial, avaliando que seria melhor parar: “Preciso digerir tudo isso.” Seria 0 tempo necessirio a0 que chamamos trabalho de luto, A liga do excesso 2 um inventério interno das perdas, magoas, rupturas. E nao apenas isso: quando Amanda perde 6 namorado, nao perde apenas o namorado. A mesma coisa em rela. 40 ao cargo que ocupava, Junto com eles, perde tam. bém 05 planos, os sonhos, as fantasias, as expectativas que guardava, em relagio tanto a vida a dois quanto 4 Vida profissional: perdas nao apenas objetivas, mas de fudo o que estava ligado, internamente, ao que foi per- dido. © que Amanda chama de “digerir’; nés, analistas, chamamos de elaborar, E como uma digestio, s6 que se dé por meio do pensamento, com palavras ¢ lembran- sas. As perdas ~ Freud as situou muito bem em Luto ¢ melancolia — nao podem ser apenas apagadas. Levam tempo ~ e dao trabalho ~ para serem revividas, para Que 0 sujeito, s6 entao refeito da dor, possa se envolver novamente com a vida, trabalho ¢ 0 amor. Algo aconteceu, possivelmente da ordem do nao dito, ou seja, algo escapou a ordem da palavra, a cla. boragio ¢ impulsionou-a a agir “sem pensar” Mencio. na que resolveu se liberar, se permitir. Decidiu abolir as regras com que vinha norteando a vida, horérios ¢ cuidados alimentares © comesou a exagerar. Talver na tentativa de equilibrar 0 softimento e comemorar # repentina liberdade. Depois, conseguiu moderar os excessos fisicos e fixou-se nos gastos. Quando surgiu a primeira cobranga ~ 0 curso preparatério —, o des controle com as compras se colocou. ‘Talver tenha sido mero fator desencadeante. Um hiato em que a reflexio 40 Tempos computsivos eu, No entanto, Aman. nao pode se fazer, e a ago se deu, No entanto, Am: as vozes internas que surgiam tanto Estou nc da faz refe! como lamento quanto sob a forma de ordens. cansada, quero voltar para casa’, pensava consigo mes- ma. E, respondia: “Nao, j4 me programei, tenho que passar na loja tal ¢ tal” Ganhava a segunda voz, a vor, do comando. Essa constatac&o, bem como a fala sobre a culpa, subsequente as compras, remete diretamente & questao superegoica, conceito criado por Freud, cuja construgao levou anos para se consolidar. Em suas al timas formulagées, justamente, abre perspectivas que ajudam a entender as compulsdes, um mal recorrente em nosso momento. ne O superego freudiano -~ que em sua forma inicia pode ser associado & consciéncia moral, @ formagao ideais — esta ligado aos vestigios, As vozes ouvidas fincia que traduziam ordens ¢ interdigées fami- mo instancia psiquica, do: na liares, sobretudo paternas. C . c tem uma face normativa que representa a lei, mas nao apenas isso. Revela também o carater cruel e absolute que a lei pode assumir. E, por vezes, demanda a Possivel. F 0 que acontece, por exemplo, nos quadros melancélicos, nos quais 0 superego “adoece’, funciona em sua face terrivel e passa a comandar 0 sujeito. Freud. menciona a hipermoralidade, o sadismo do superego contra 0 ego. Mais tarde, elabora 0 conceito de pulsio de morte, a forca destrutiva que atua silenciosamente. Redefine, entdo, o superego, mostrando que, quando a A ligica do excesso

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