You are on page 1of 16

A transferência na construção do caso

Alejandro Reinoso
Palavras-chave: construção do caso clínico; fantasia e transferência na construção do
caso clínico.
O caso clínico tem uma relação fundamental com a direção do tratamento. Inclui
uma estratégia, uma tática e uma política. A estratégia é a transferência, da qual vamos
falar hoje, a tática é a interpretação, e a política tem a ver com o desejo do analista e a
posição do analista. De algum modo a política inclui o caso do analista. Por quê?
Porque o desejo do analista tem um componente de base neurótica, quer dizer que é um
desejo impuro. O caso, também desde a política, inclui a enunciação do analista, em que
não há garantia do ato, onde há sempre algo falido no ato, que nos empurra à
supervisão, à própria análise, que faz circular a casuística nos espaços da Escola, que
nos permite também incluir o terceiro aí presente que é a Escola, na construção do caso.
De maneira tal que poderíamos dizer que em nossa orientação não há caso sem Escola.
Bem, o título para hoje articula três significantes: transferência, construção e caso.
Vamos começar ao contrário: caso, construção e, finalmente, transferência.
O que é o caso em psicanálise? Eu lhes felicito que, durante esse período, nesse
Instituto, estiveram abordando a perspectiva da casuística. Isso coloca no centro o lugar
que o caso tem em psicanálise e que a conversação clínica também tem para nossa
orientação.
A ciência contemporânea degrada a ideia e a prática do caso único, ainda que lhe
seja designada o lugar dos métodos brandos ou cinzas. É contra-atacada e é a contracara
das estatísticas e das factualidades. O discurso universitário forclui o sujeito e ao mesmo
tempo o desejo do analista. É a favor de outra política, a política das habilidades e das
competências, dos skills, ferramentas de conduta, em que os protocolos são desprovidos
de qualquer formação.
O gênero chamado narrativo valoriza mais os casos. Mas seguidamente os põe
em série com as biografias e as intrigas das chamadas crônicas amarelas ou vermelhas
dos criminosos. Mais ou menos essa cor, a cor do caso na criminologia. Freud, em
particular, ficou decepcionado porque seus casos eram lidos na Viena da época como
romans à clef, em francês, como novelas à chave, quer dizer, casos que despertam
particularmente o desejo do leitor. Era um escritor indiscutível, dizia o crítico literário
Harold Bloom a respeito de Freud, que recebeu o prêmio Goethe de Humanidades e
Letras. A captura que produzia o texto de Freud tornava difícil ler o caso de uma
maneira lógica. O historial freudiano, disse Éric Laurent, advém do romantismo alemão,
da novela de Goethe. Assim, por exemplo, o Caso Dora se parece de certo modo ao
Jovem Werther, com suas paixões, ainda que Dora inclua um modelo novo: o sonho e
sua interpretação, com suas incidências no tratamento. A intriga sexual e o sentido
oculto dos desejos inconscientes no relato dos casos fez a fama de Freud. Era, como
disse Éric Laurent, um gosto da época; o gosto pela intimidade e sua construção, como
dizem os historiadores do século XIX, George Dewey e Phillipe Ariès.
Não obstante, os casos freudianos não são uma história familiar, nem uma
autobiografia, tampouco uma história da intimidade. Freud faz no historial médico um
deslocamento, transformando-o em um historial clínico. Os detalhes sintomáticos, o
curso da enfermidade, a etiologia, introduzem a paixão pela causa, a causa de um
sentido que possa encaixar. Assim, Freud, ao distanciar-se do historial médico, enoda o
sintoma, a etiologia, o terapeuta, a terapêutica e o prognóstico, mas situando,
inicialmente, um ponto de impasse, a transferência, especialmente no Caso Dora. Vai
esgotar no final do mesmo, e em suas sucessivas releituras, sua miopia e furor
interpretativo, ao não poder ler adequadamente esse vetor do tratamento.
De toda maneira, Freud inclui em seus casos um real impossível, pressionado,
por outro lado, na época dos historiais, por um empuxo ao sentido, ao final esclarecedor,
a uma elucidação mediante interpretação. Freud esteve tentado pelo furor interpretandis,
como chave de acesso ao desejo inconsciente, ao sentido dos sintomas. Sem embargo,
paulatinamente, foi isolando e diferenciando os fenômenos da transferência em suas
duas dimensões: como motor e como obstáculo.
O caso freudiano tem um ponto de articulação em torno do simbólico, nos
recorda Lacan, em seu retorno a Freud. Lacan se orienta pela envoltura formal do
sintoma na releitura que faz dos casos freudianos, como a lógica da fobia no Pequeno
Hans, o labirinto obsessivo no Homem dos Ratos, a figura do quarteto em Dora e na
Jovem Homossexual, o esquema R no caso Schreber. Lacan se orienta, em um primeiro
momento da direção do tratamento, para elucidar a combinatória inconsciente que está
operando. O caso se ordena em torno da noção de desejo, da tensão imaginário-
simbólico e da passagem da relação com o semelhante ao Outro.
Sucessivamente, o caso terá como centro a orientação pelo real. É dizer, o caso é
articulado em torno do gozo e da repetição. De todo modo, os casos clínicos não
apresentam nenhuma perspectiva que se acerque do ideal. Cito Éric Laurent: “a
construção do caso gira sempre ao redor do impossível que inscreve um lugar vazio em
reserva, o significante do Outro barrado”. Por isso, o caso e a poética estão articulados.
Disse Laurent: “a envoltura formal do caso não é separável da sua poética. A palavra
designa, ao mesmo tempo, o efeito de criação obtido pela formalização do sintoma,
tanto do lado do analisante como do lado do analista”. O caso, portanto, é solidário ao
ato analítico e ao que daí procede e emerge, é um dizer que produz amor. Laurent dirá
do seguinte modo: “o caso é uma poética que ultrapassa ao analista e ao analisante”.
Paulatinamente, o caso se desliza para incluir e alojar a lógica, e inscrever a
contingência à necessidade. Essa contingência é capturada na escritura de um caso, e
inscreve um acontecimento de corpo, um encontro que chama à necessidade de
formalização do caso. A transmissão dessa captura produz transferência na audiência.
Veremos mais adiante que o caso exemplar, nesse sentido, é o testemunho do
passe. É uma clínica, o testemunho do passe, do grande Outro barrado, na qual as
respostas do falasser são construções de suplências generalizadas ante o vazio central
devido à pluralização dos Nomes-do-Pai. Por isso, nomear um caso supõe sempre uma
exigência de bem-dizer, que é um dos nomes da lógica da experiência analítica. Isso
orienta o dizer do analisante e sua transferência e também o dizer interpretativo do
analista. Esse esforço de poesia indica que o caso é uma demonstração toda vez que, em
si mesmo, é homogêneo à forma do chiste. É dizer que o caso também traz o novo. E
isso somente está vivo quando há um Outro que dá consentimento a sua construção. Daí
a importância da construção do caso e sua transmissão no contexto da Escola. Deste
modo, a construção tem um valor em si, enquanto conta com o aval de quem a sustenta.
Uma comunidade de analistas. É por isso que o caso empurra à conversação clínica.
Proponho dizer desse modo: somente há caso se passa pela comunidade. Freud o fazia
em suas reuniões de quarta-feira. Lacan, em suas apresentações de doentes, e
em referências nos Escritos e também em seus seminários.
Os casos freudianos estudados no primeiro semestre do CPOL ou as referências
que há em diversos livros e artigos de ex-pacientes de Freud ou de pacientes de Lacan
também, que foram entrevistados, iluminam essa modalidade de trabalho, mas não dão
conta da estrutura mesma do caso. Lacan faz alusões precisas e evanescentes de alguns
de seus casos.
Elena, colega da EOL, recompilou a casuística de Lacan presente em distintos
registros e constatou casos que Lacan aludiu em distintos escritos3. Ela assinala que as
alusões, que são breves e escassas, são um dizer bastante, sem dizer demasiado. Essa é a
lógica do caso lacaniano. O traço, a pincelada, a vinheta. Temos também em Lacan uma
série de relatos de testemunhos, como por exemplo o de Rosine Lefort, em entrevista
com Judith Miller, que alguns consideram como seu passe. Ela conta de sua análise com
Lacan e o inédito do ato. Cita, por exemplo, que quando ela fugiu, Lacan foi buscá-la na
entrada do metrô de Paris. Ou também quando, em uma de suas múltiplas fugas do
consultório de Lacan, ele ameaçou fechar as portas e mandar embora todos os pacientes
que estavam na sala de espera. Coisa que Rosine Lefort afirma que ele efetivamente fez,
para que ela não se fosse.
A partir daí, pode-se deduzir ou fazer a hipótese não só do desejo inédito de
Lacan, mas também do alcance das manobras transferenciais. Poderíamos dizer que aí
estão as consequências e os efeitos dos casos vivos que testemunharam aqueles que
realizaram encontros com ele.
A construção em psicanálise
A construção é uma necessidade do clínico de elucubrar a prática. A definição do
clínico inclui a construção. Os sujeitos, de outra parte, constroem seus sintomas com
base no discurso da época. Atualmente, o discurso universitário, o discurso da ciência, o
discurso capitalista. Também poderíamos dizer do retorno do discurso religioso.
Constroem assim o seu próprio caso. Armam uma história, uma novela, com base em
identificações e laços com figuras locais, como por exemplo, em relação com seu
entorno religioso, com as instituições das quais participam. Os sintomas da época, os
sintomas atuais, que não são os sintomas da época de Freud, são o cansaço, a fadiga, a
fibromialgia, a angústia generalizada, o medo líquido (como assinala Bauman), os temas
de gênero e, é claro, os desafios trans da atualidade. Se por um lado os sujeitos tentam
transmitir suas particularidades, o discurso tem um teor universal que os impede de se
alojar. Desse modo, os sintomas chegam aos consultórios, como diz Freud, em um
estado selvagem, e se domesticam sob transferência, transformam-se em outros
sintomas. Aquilo que Freud chamava, no início, de cura por amor.
Esse ponto inicial tem essa marca, a transformação do sintoma da época em
sintomas no interior de um caso construído sob transferência. Para Freud, o que não se
recorda pode-se construir, mas com um limite, como adverte no texto “Repetir, recordar,
elaborar”. Esse limite é a pulsão. Posteriormente, em “Construções em análise”, assinala
que o analista é arqueólogo do vivo, que o analista reconstrói a partir de restos. Trata-se
de agrupar os restos conservados. Miller vai tomar essa referência para falar da salvação
a partir dos dejetos4, como vocês recordam de sua conferência no Brasil há vários anos.
Freud também, em “Construções em análise”5, faz equivaler as construções do
analista, ele diz assim, as construções são do analista, - não obstante os pacientes
também façam construções, especialmente, assinala Freud, as formações delirantes dos
enfermos, - são equivalentes das construções que nós realizamos pelos tratamentos
analíticos como tentativa de explicar e restaurar. A noção de construção é um conceito
operativo, um instrumento para a casuística, para que algo caia, a propósito da noção
latina de caso, como disse Laurent. Casus, que algo caia. Aqui no Chile se diz que caia a
terra. Os argentinos, que caiam as fichas. Não sei como se dirá em português essa
expressão, esse elemento de precipitação, cristalização, disse Laurent a propósito da
teoria dos cristais. Se constitui um cristal. A noção de construção de caso tem essa
particularidade, cristaliza vez por vez, não de uma vez por todas. Isso que cai, que
precipita, pode ocorrer durante uma sessão de análise, pode ocorrer durante uma
supervisão, ou pode ocorrer em torno de um impasse com um analisante. Às vezes, cai a
ficha ou cai a terra, ou cristaliza a pista fundamental de um caso, em uma sessão de
análise do próprio analista. Definitivamente, para Freud, para a psicanálise, as neuroses
e as psicoses são construções.
Teremos, por um lado, um aspecto lacaniano: a construção da fantasia, que está
muito articulada com a transferência. A fantasia não se apresenta diretamente, disse
Miller, em “Duas dimensões clínicas: sintoma e fantasia”6, e também em seu seminário
publicado há poucos anos, um dos primeiros seminários de Miller, “Del sintoma al
fantasma y retorno”7. A fantasia se constrói, não se interpreta, diferentemente do
sintoma. E como se constrói? Por um lado, por via de fazer aparecer a fantasia, por
outro lado, precisando as características de como a fantasia se introduz na transferência,
em terceiro, tentando precisar e, também, manobrar com os objetos pulsionais que se
desprendem da fantasia fundamental.
A fantasia é um objeto de construção, de redução da monotonia da fantasia
fundamental. Segundo as palavras de Lacan, é a passagem da selva das fantasias à
fantasia fundamental. Esse é o processo de construção. Sabemos que a fantasia pode se
apoderar da cena analítica, mesmo que seja quando está desfalecida e aparece a angústia
ou bem quando trata de se ocultar e se fazer inconfessável. Se produz nesse momento
um intento de inflamação da transferência. Que se construa, quer dizer que o analista
não fica no lugar de objeto, mas sim na interrupção dessa satisfação, que se introduz na
sessão para satisfazer-se e fazer introduzir o gozo de contrabando, e também fazer o
tampão do desejo do Outro como operador da análise. Sabemos que esse operador é o
significante da falta no Outro S (A/).
Portanto, diz Miller, na selva da fantasia vai se limpando, vai se depurando a
fantasia fundamental. Essa construção da fantasia, de algum modo, desde o analista,
significa ir contra sua satisfação, pois a fantasia se nutre não somente das
particularidades dos objetos, mas também do sentido gozado. Portanto, a partir da
interpretação fantasmática é necessário ir em uma experiência contra, como assinala
Lacan no Seminário XXIII. Quando o sujeito faz uma experiência contra essa
interpretação fantasmática emerge o alívio, aparece aquilo que se chama classicamente
uma luz de esperança, que dura pouco, porque volta o contragolpe do sentido gozado. É
assim e isso não se move.
Por isso a fantasia tem uma dimensão geométrica. É dizer que tem a estrutura de
um eterno, daquilo que não muda, de um destino. Por isso a fantasia vai se construindo
com as contingências que se produzem sob transferência. A fantasia tenta interpretar
tudo a partir de seu sentido, fazendo tradução da mesma cena que insiste. O analista
pode introduzir um não a isso de diferentes formas: uma delas é capturar algo que
aponta à fuga de sentido, de um gozo mais além do sentido, sublinhando a opacidade de
gozo naquilo que não se entende, que, do mesmo modo, vai mais além do sentido do
sintoma. Isso é algo intraduzível, somente é legível, se pode ler.
A construção na psicose
O interesse de Lacan por Joyce, a quem dedica um Seminário, aponta localizar
aquilo que sustenta um sujeito que não se analisa. Essa é a particularidade de Joyce, não
se analisou. Qual é a relevância dessa construção? Por um lado, obviamente, não se
orienta pela transferência para construir o caso de Joyce, à diferença do Caso Aimée,
caso de sua tese de doutorado, mas se orienta por um laço e por aquilo que enoda. Daí
podemos deduzir também, podemos localizar, que a transferência é uma experiência de
enodamento. Esse é um dos ensinamentos do caso Joyce, que não se analisou, que não
esteve sob transferência, uma das consequências é ler a transferência como um nó.
Joyce constrói sua obra, seu Ego e seu nome. Diz assim Lacan no Seminário 23: “Joyce
não sabia que ele fazia o sinthoma, quero dizer, que o simulava. Isso era inconsciente
para ele. Por isso, ele é um puro artífice, um homem de savoir-fàire, o que é igualmente
chamado de um artista”8. Agrega em uma página mais adiante: “Não tinha considerado
isso de imediato, foi vindo com o tempo. O texto de Joyce é todo feito como um nó
borromeano. O que me impressiona sobretudo é que ele não se deu conta disso, a saber,
que não há vestígio em toda sua obra de alguma coisa similar. Mas isso me parece muito
mais um signo de autenticidade”9. É dizer, a construção através de sua obra e de seu
sinthoma como uma forma de enodamento.
Também encontramos alguns apontamentos sobre a construção em alguns casos
clássicos de Lacan, sob transferência, como o Caso Aimée, que citava anteriormente,
sobre a paranoia de autopunição10. Nesse caso, Lacan, para construí-lo, seguiu ao pai
da epistemologia em psiquiatria, Karl Jaspers, não a Freud. Por outro lado, temos um
caso particular: Maria da Trindade, uma religiosa que foi paciente de Lacan durante
quatro anos e da qual nos restam alguns registros. Não todos porque, tenho entendido, a
partir desse ano e o próximo, Miller liberou para publicação a troca de cartas entre
Maria da Trindade e Lacan. A única carta que por enquanto está publicada está dirigida
a ela, além do informe que ela escreve a Lacan, que se denomina “Da angústia à paz”, e
permite fazer uma leitura acerca do caso. A carta de Lacan é uma pista fundamental
sobre as manobras do analista. Quero ler um fragmento, porque isso diz acerca da
posição do analista e das manobras da transferência. É uma carta que Lacan vai entregar
pessoalmente no lugar onde ela vivia. Diz: “Minha querida irmã, envio uma breve nota
que lhe destinava ontem à noite antes de receber sua carta desta manhã. Inclusive me
ocupei pessoalmente de lhe levar antes de um jantar que tinha em um congresso. Tentei
encontrá-la, creio que anotei mal o endereço. De toda forma, essa carta é para que saiba
com que ânimo vou apelar a você”. Cito: “não deixá-la só, no desamparo em que senti
que se encontrava em certo momento, de todo perdida. Entenda você, agora, a ação que
empreendi para resolver a dificuldade moral em que se encontra. Isso é o que deveria
ser objeto de nossas sessões. Quero dizer, o modo que você vai conduzi-las – do modo
como ela vai conduzir a sessão, em que vai relacionar as recordações, os sentimentos,
inclusive os sonhos que surgirão correlativamente durante as sessões. É isso que ao ler
as suas cartas vejo que você não entendeu. Meu objetivo não é lhe ensinar a livrar-se
desse vínculo, mas descobrir o que foi feito para que se manifeste a você como algo tão
doloroso, permitir-lhe que o satisfaça com toda liberdade. Se foi em torno do exercício
desse dever que se desencadearam as faces mais perturbadoras de seu drama é porque aí
se puseram em jogo imagens para você desconhecidas. É preciso que confie em mim
para sair desse momento. Venha me ver o quanto antes. Estaremos juntos para resolver
isso. E, por favor, não conte com uma correspondência mais prolongada, porque isso
não seria mais que perda de tempo. Confio, de minha parte, em você, para dizer-lhe até
logo. Chama-me por telefone amanhã, às 9h, por exemplo”. Fim do fragmento.
O que nos ensina essa carta? Certamente nos mostra as manobras de Lacan para
poder resolver um momento de impasse, um momento de desespero de Maria da
Trindade. Vocês podem ler no texto que foi publicado em castelhano com posfácio de
Henrique Berenguer. O caso construído a partir dessa carta permite dizer que Lacan
aposta no desejo do analista e o põe em ato com manobras inusuais fora do consultório,
com palavras precisas, destinadas a reconduzir o trabalho analítico, a fortalecer a
transferência de trabalho. Maria da Trindade persistiu quatro anos, por momentos
dificilíssimos, também com internações, sustentada pela mão de Lacan.
O que entendemos por construir um caso na época do falasser, do sinthoma? É
um desafio, não, o último ensino? Diz Miller que é preciso colocar no centro o corpo na
construção do caso. Deslocamos, então, a lógica da envoltura formal e da produção dos
significantes em direção ao campo do real. Estamos falando do corpo falante como
substância gozante. Esse é o material central da condução do caso. É o corpo, diz Miller,
que toma os objetos a, é o corpo de onde se extrai o gozo para o qual trabalha o
inconsciente. Miller sublinha que no ultimíssimo ensino é necessário apontar ao
inconsciente enxame, aos Uns sozinhos, não articulados. E o analista-sinthoma, uma
modalidade da época do falasser, do sinthoma do último ensino, o analista-sinthoma
aponta ao saber-fazer, à dimensão de uso e, portanto, ao fora do sentido.
É a época do Outro que não existe, como sublinha Éric Laurent, no texto que
vocês estão trabalhando sobre a conversação clínica, não é a época do Outro barrado11.
Por qual razão? Porque o que há é o Um mas não há o Outro, não há nada mais. É
simplesmente uma questão de existência, pontua Laurent. Isolar os Uns que consolam é
trabalho dos analisantes.
No argumento que escrevi ao Enapol sublinhei que o lugar que tem a
transferência e o amor é o efeito de produzir o isolamento, a precisão dos Uns
sozinhos12. Para isso, qual é a posição conveniente do analista? É necessário que nessa
posição o analista siga o trabalho do analisante. A análise do falasser instaura a verdade
mentirosa e aquilo que não mente é o gozo, o gozo do corpo. É necessário para a
construção do caso que o analista possa seguir e acompanhar – seguir é a nova versão,
poderíamos dizer, do secretário do alienado, na época generalizada do sinthoma.
Portanto, se trata de um real que escapa de ser escrito e que só pode ser nomeado. Daí
que a via das nomeações constitui um eixo central da clínica. É assim que pode existir
uma escrita daquilo que existe, e inclusive daquilo que não tem existência.
A construção do caso na supervisão
Duas pinceladas: a construção do caso na supervisão. Digo isso porque parte da
construção nesses casos se produz nesse contexto.
A construção na supervisão implica em uma operação de separação do analista
de sua subjetividade. E de pôr à prova o impossível tal como deve ser construído em
suas condições específicas. De acordo com Laurent, a partir dessa construção podemos
encontrar uma saída possível ao impasse do caso. Alguém, como analista, não é parte do
caso, mas fica incluído nele pelas bases neuróticas, quer dizer, pelo desejo impuro do
analista. E isso se traduz em que o ato analítico tem em si a experiência do lapso do
mesmo ato. Não somente, para concluir esse aparte da construção, não somente teremos
a construção sob supervisão, também a sessão analítica se constrói sob transferência e se
constrói para o analisante e para o analista. Éric Laurent, em um texto que se chama A
interpretação ordinária13, afirma que o corte – que estrutura a sessão analítica, a sessão
assemântica – separa os S1 dos S2. Na lógica atual, isola os S1. Isso permite que na
linha inferior do matema do discurso analítico se pode desarticular o saber dos S1. A
consequência fundamental é que a sessão analítica, nesse caso, construída dessa
maneira, produz os Uns sozinhos. Vamos agora à transferência.
Transferência
Para Freud, a transferência tinha um nome, fogo. Em “Pontuações sobre o amor
de transferência”, para Freud a transferência é uma resistência, é um obstáculo, o
paciente não quer saber nada, é um fechamento do inconsciente. Ao mesmo tempo,
Freud, nesse mesmo período, assinala que é a presença do analista que vai permitir a
intervenção. Ao final de “Repetir, recordar e elaborar''14, diz o seguinte: o manejo da
transferência é seu principal recurso para dominar a compulsão à repetição e
transformá-la em um motivo para recordar. Poderíamos dizer, com Lacan, que a
dimensão simbólica desse aspecto implica o chamado ao Outro que a transferência
inclui. Não tudo pode ser recordado, nos diz Freud, pois há restos. Nem tudo resta
recoberto pelo significante.
A transferência, no entanto, é um fenômeno automático. Se a transferência se
trata de amor, o terrível é que se trata de um amor a qualquer um em posição de analista,
diz Miller em um texto que se chama “O gênio da psicanálise”. Acrescenta, “pode se ver
quando há uma transferência de paciente, uma remissão de um analisante a outro
analista, que indica a suposição, por parte do primeiro analista, de que o fenômeno da
transferência pode se produzir com um outro do mesmo modo que com o primeiro
analista”. Portanto, a definição mais simples que se pode fazer a este respeito é a
definição do Sujeito Suposto Saber como pivô da transferência. Essa é a estrutura da
transferência no sentido lacaniano. Enquanto que para os demais, tal como os incluía
Freud, os fenômenos são muito mais complexos. São fenômenos de amor, de ódio, de
confiança, de desconfiança. Trata-se de todas as maneiras de uma disposição do sujeito
a incluir uma suposição.
Na histeria, o significante da transferência é a pergunta. Através da pergunta o
sujeito se faz representar ante o saber constituído. Apresentar-se com o significante da
pergunta é a maneira que o sujeito se dirige ao saber. Miller assinala, em um texto que
se chama em espanhol “Los preguntones”15, que o significante da pergunta é um
significante que diz que falta um, que falta um significante, mas, para dizê-lo, a
pergunta mesmo já é um significante. Assim que podemos entender o que significa esta
expressão utilizada por Lacan uma só vez, que o significante da transferência na histeria
é a pergunta. A pergunta sobre se há ou não há pergunta no sintoma, se há pergunta
sobre o gozo, sobre o desejo, é um vetor da construção do caso. É isso que levamos
frequentemente à supervisão. Há posição de pergunta ou não há posição de pergunta por
parte do paciente ou do analisante? No âmbito de nossa época encontramos muitos
casos sem perguntas e com demandas precisas de ajuda que são mais arranjos,
solicitações de mudanças, pedidos de uso, podemos dizer que é uma posição sem
pergunta.
A transferência, de todo modo, aponta, diretamente, no primeiro Lacan, ao
Outro. Para entender a transferência, vamos localizar esquematicamente três momentos
do ensino de Lacan. Primeiro, é a relação do sujeito com o Outro. Aqui, a transferência,
diz Lacan no Seminário A angústia16, é a introdução ao Outro. Transferência é a
introdução ao Outro. E nesse período, o caso sempre está construído a partir da noção
de estrutura. Afirma Lacan na “Questão preliminar”17: “tudo o que tem a ver com o
sujeito depende do que acontece no campo do Outro, seja neurose ou psicose”. Por isso
mesmo, uma das perguntas da direção do tratamento, nesse registro, no registro da
estratégia, é a seguinte – que também é um elemento que aparece nas supervisões: qual
tipo de Outro convém a esse sujeito? Qual tipo de semblante? Quais manobras com os
objetos? Qual ressonância, para esse sujeito, é conveniente para o tipo de Outro que este
sujeito desdobra da transferência? Isso inclui diretamente a pergunta que Lacan toma
como indicação de Carl von Clausewitz, a estratégia. Qual modalidade de Outro nos
permite manobrar quando não estamos manobrando? Desde essa pergunta emerge
imediatamente aquilo que Maurício Tarrab indicou em várias ocasiões para os analistas.
Tarrab nos diz que teremos que nos perguntar, quando não estamos em ato ou quando há
um desfalecimento do ato analítico, com que fantasma próprio, do analista, estamos
operando? Somente dessa maneira, com essa dupla leitura, a da estratégia e também
pelo trabalho que os analistas fazem em suas próprias análises, podemos assumir de
maneira clara o fator transferencial.
Miller, em “Clínica sob transferência”18, disse que durante uma análise, a
constituição ou construção do sintoma analítico está articulado diretamente com a
transferência. Disse assim: “seria um erro se localizar exclusivamente a partir da
demanda feita ao analista”. Seria um erro considerar que a demanda analítica é
exclusivamente a transferência. A transferência é anterior à demanda de análise.
Recordemos com Lacan que no começo da análise está a transferência. Há um momento
anterior à entrada em análise. Um momento que Miller assinala que é a pré-
interpretação que o sujeito tem de seus sintomas. Essa localização é anterior à suposição
da instituição do Sujeito Suposto Saber. Aí, a suposição está articulada ao sintoma em
estado selvagem. O sintoma, que inclui o sem sentido, é dizer, o real envolto nele, se
enoda ao analista. O encontro com o real do sintoma chama à suposição de saber, é uma
consequência lógica. Miller indica que esse é o ponto de partida da sintomatização. Isso
é desenvolvido em um texto que se chama “Introdução ao Método Psicanalítico”, em
que se produz a linha direta de como se desenvolve os primeiros momentos de uma
análise. Diz que o sintoma é a definição que recebe o sujeito mesmo de uma análise,
pede instalação do significante da transferência. Repito: a formalização metafórica do
sintoma, sua envoltura, supõe o seguinte, o sintoma é a definição que recebe a própria
análise, pede a instauração do significante da transferência. Sublinho esse pedido, esse
chamado, o sintoma está plenamente constituído ou construído quando a sua
formalização se articula ao Sujeito Suposto Saber. E nesse ponto é possível falar em
demanda de análise. É nesse ponto em que o analista se adiciona ao sintoma, o analista
fica adicionado ao sintoma.
Os sintomas mudam de significação sob transferência, portanto, os sintomas são
inseparáveis da transferência. Em outras palavras, teremos o seguinte vetor: os sintomas
se deslizam desde o estado selvagem até a construção do sintoma. Por isso diz Miller
nesse texto, “Clínica sob transferência”, que a entrada em análise se baseia no golpe
acertado à fantasia. Como poderia saber de antemão o analista, já que a própria fantasia,
como axioma, não emerge a não ser como uma construção em análise? Aqui, vemos a
relação direta entre sintoma e fantasia sob transferência.
Uma segunda leitura da transferência, no ensino de Lacan: a relação do sujeito
com o objeto. Miller, seguindo o que coloca Lacan, em uma indicação sobre o objeto a,
quer dizer que, se não há extração do objeto a do corpo, este está invadido pelo gozo,
como nas psicoses. A extração do objeto a do corpo é o que permite, inclusive nos casos
das psicoses, introduzir um alívio a essa invasão de gozo no corpo. Lacan assinala que,
de algum modo, é parte da normalidade, que se encontra nos paradigmas do gozo19, o
gozo do Seminário 21 é o gozo normal, que é a normalidade em que o sujeito vai buscar
o objeto a no campo do Outro. Isso, no caso do sujeito neurótico. O louco, o sujeito
psicótico, é livre porque não tem que buscar o objeto a no campo do Outro, é livre do
Outro porque não tem que buscar o objeto a nesse lugar. Ele já o tem no bolso. É uma
liberdade de que o psicótico padece. Em termos de Miller, se poderia dizer o seguinte:
se é livre do Outro porque se padece da tirania do objeto a. É por isso que Lacan
assinala que o psicótico sofre porque suas vozes o demonstram. Se o objeto a que o
sujeito vai buscar no campo do Outro não aparece no campo do Outro, estamos no
terreno da multiplicação dos objetos. Lacan fala disso no “Pequeno discurso aos
psiquiatras”20, falando dos objetos a no plural. Qual a passagem que faz Lacan neste
pequeno discurso aos psiquiatras? Que existe uma pluralização dos objetos a na cultura
e que vamos buscar os objetos a que estão presentes na vida social e não
necessariamente no terreno do Outro. E nesse paradigma, para pensar a relação do
sujeito com o objeto a e ler a transferência, teremos o Seminário 821, o seminário sobre
a transferência, onde o objeto está articulado ao amor de transferência.
Vou falar um pouco mais disso adiante quando trataremos de alguns pontos
sobre o amor. É aí onde começa a ocupar o lugar crucial o objeto, se vai buscar no Outro
um objeto que incendeia, um objeto de irrupção, como Lacan sublinha, que é a irrupção
de Alcibíades em “O Banquete”, onde o analista ocupa o lugar de agalma. Esse lugar
precioso, esse tesouro. No Seminário 2122, diz que esse objeto causa vai permitir
separar o ideal do objeto e que vai ser a posição conveniente que se interroga em cada
uma das construções de nossos casos. Ali onde o desejo do analista permitir que apareça
a diferença absoluta. Se não for assim, se não se intervém nesse nível, a construção pode
nos permitir reorientar o tratamento.
Portanto, aqui, nesse paradigma, o nó está no objeto causa e nos objetos que se
alojam ali onde emerge a função de agente no discurso do analista. O objeto a no lugar
do agente. Marie-Helène Brousse diz que é ali onde se alojam os objetos a dos pacientes
que analisamos.
Retomando o texto “Clínica sob transferência”, Miller sublinha que a
precipitação do sintoma é o contraponto temporal e lógico da travessia da fantasia. A
respeito da transferência e da fantasia, sublinha o seguinte: o saber suposto do sentido
da fantasia serve de tela ao objeto da fantasia, cujo lugar, ao mesmo tempo, prepara. O
segundo aspecto importantíssimo para a construção do caso, o saber suposto do sentido
da fantasia, quer dizer, a pré-interpretação prévia do sintoma, permite ocultar ou
recobrir o objeto da fantasia, que todavia não aparece no momento preliminar, diz
Miller, se está preparando o seu lugar. Por isso mesmo sublinha que nesses momentos
preliminares aparecem fenômenos de franja, sintomas transitórios que acompanham a
acomodação do sintoma.
Terceiro paradigma: a parceria entre falasser e corpo
Recordemos que Miller disse que analisar o falasser já não é o mesmo que
analisar o inconsciente no sentido de Freud, nem mesmo o inconsciente estruturado
como linguagem. Diria, Miller, “inclusive apostemos que analisar o falasser é o que já
fazemos e que nos falta saber dizê-lo”23. É nisso que estamos nos últimos anos.
No último ensino Lacan muda a noção de sujeito e inconsciente pela noção de
falasser, onde os Uns totalmente sozinhos insistem e gozam de forma absolutamente
isolada. Aqui, a política do sintoma tem uma variante. Sabemos que a política da
psicanálise é uma política do sintoma, poderíamos pensar que na atualidade a política é
a política do sinthoma? Éric Laurent responde parte dessa pergunta em sua conferência
sobre a época do falasser, a conferência de seu doutorado honoris causa na Argentina24.
Quer dizer que nessa política se trata na construção dos casos de detectar os
enodamentos, as consistências e os ecos do dizer no corpo, na versão do Seminário 2325
sobre a pulsão, para ler e construir os casos.
Em relação ao Um sozinho, que se pode fazer sob transferência, se não faz
laços? Que seria, disse Laurent, o Outro, o grande Outro do Um? Qual é o parceiro
desse Um sozinho sob transferência? Que relação há entre o Um do gozo e o amor?
Miller disse que uma pista que ele considera crucial e que encontramos nas notas passo
a passo do Seminário 23 é que o corpo como conjunto vazio, como vazio de
significação, que o corpo poderia fazer-se parceiro desse Um sob transferência. Daí a
importância de incluir nos casos, na construção dos casos, as manobras com o corpo do
analista.
Na clínica do significante, o primeiro paradigma, se trata de isolar os significantes do
analisante, aí não está presente o corpo do analista. No seminário “O últimíssimo”,
Miller sublinha que a transferência é o grande ausente do último ensino. Retoma aí a
noção crítica de Lacan de transferência positiva e negativa, que está presente no
Seminário 2426, na lição de maio de 1977. Diz o seguinte Lacan: “a transferência que
se chama, não sei por que, negativa, e nem sempre se sabe o que é a transferência
positiva. Eu tratei de defini-la sob o nome de Sujeito Suposto Saber. O que é o suposto
saber? É o analista. Isso é uma atribuição, como indica a palavra suposto”. Uma
atribuição, conclui, não é mais que uma palavra.
Laurent, no texto que está na conversação clínica27, diz que há um elemento
crítico, onde Lacan introduz uma crítica à noção de Sujeito Suposto Saber. Qual é a
função do analista no ultimíssimo ensino? Tomo uma frase do Seminário 24: “o analista
faz verdadeiro o tropeço, o equívoco, faz Um-equívoco”. No seminário 19, disse antes,
que o Um pode ser alcançado por Um-dizer. Isso, disse Laurent, é de algum modo a
generalização da função de secretário, mais além da função de testemunha e apoio. O
fazer verdadeiro, o fazer Um-equívoco é um toque libidinal que o analista situa como
algo do novo nessa versão do inconsciente-tropeço, o Unbewusste, que quer dizer
inconsciente em alemão. E nesse contexto, Laurent sublinha a noção do Outro que não
existe, que já não é o Outro barrado. Diz: “dado que temos um corpo falante que
equivoca, que tropeça, que se embrulha, então, há uma ruptura do analista com sua
ancoragem na suposição”. Isso me parece um ponto crucial que teremos que conversar
em nosso Enapol sobre a transferência. O analista já não está no lugar de Sujeito
Suposto Saber, está mais no lugar daquele que segue - suis, em francês, je suis, il suit -
aquele que segue. Por isso Miller sublinha em um texto, uma conferência na Espanha,
“chegado o momento, o analista se verá investido do traje de luzes do Sujeito
Suposto Saber. Mas isso não é mais que um disfarce, porque, como poderia conhecer
com anterioridade a causa do mal desse sujeito particular? ”.
Seguir é uma palavra chave em Lacan e aparece com clareza em “Nota
Italiana”28. Nessa Nota, Lacan sublinha dirigindo-se aos italianos – não estamos
falando da transferência analisante-analista, mas da transferência dos membros de uma
Escola com Lacan. Sistematicamente convida aos analistas que sigam a Lacan, sigam-
me, os que não me seguem seria bom que me seguissem etc. Há várias referências que
podemos encontrar na “Nota Italiana”. Seguir não é, por acaso, uma forma de amor?
O amor e a transferência na construção do caso.
A transferência está no início, no começo está o amor também. No Seminário
sobre a transferência, Lacan assinala que o amor está diretamente relacionado com a
pergunta dirigida ao Outro acerca do que pode dar-nos e do que tem que nos responder.
Não é que o amor seja idêntico a cada uma das demandas com as quais o acossamos,
mas situa-se mais além dessa demanda, na medida que não pode nos responder como
última presença.
Lacan, nesse ponto, disse que o amor, em particular, vai mais além da demanda
de amor, e esse amor está articulado ao objeto. Vai agregar o seguinte: “há um mandato
do deus amor, é um mandato espantoso” disse Lacan, de algum modo todos conhecemos
algo desse amor espantoso. “Esse mandato é fazer do objeto que ele nos designe algo,
que em primeiro lugar é um objeto. Um objeto ante o qual desfalecemos, vacilamos e
desaparecemos como sujeitos. Sob transferência o sujeito fabrica, constrói algo e por
isso é necessário que a função da transferência e essa dimensão espantosa reste
articulada à construção de ficções em análise. É dizer que a transferência pode alojar
esse amor espantoso do objeto que nos desgarra. Sobre isso escutamos nas análises,
onde escutamos o registro da queixa que, às vezes, está articulada ao sintoma em estado
selvagem, e tentamos buscar e precisar se há signos de transferência ao analista. Freud
se lamentava no caso de Dora de que não soube ler bem os primeiros signos de
transferência. Por isso mesmo é crucial, em uma supervisão ou na construção de um
caso ou em uma apresentação, separar demanda de análise, de amor, mas também
separar pedido de ajuda da demanda analítica. O pedido de ajuda ou a demanda de ajuda
nos permite localizar que estamos na presença de um paciente, enquanto a demanda
analítica nos situa já no contexto de uma análise.
Por isso que seguidamente nos perguntamos, na construção dos casos, se há caso
ou não há caso. Não sei se em português tem o mesmo impacto que em castelhano: não
há caso! Isso quer dizer que não há nada, que não se pode fazer nada! Por isso há caso
quando há sintoma, daí a dificuldade de construir um caso quando não temos um
sintoma, quando não há ninguém que responda à política do sintoma.
Construção do caso clínico nas instituições
Pensava em falar sobre a construção do caso nas instituições, quando nas
instituições não temos a possibilidade de guiar a leitura pela política do sintoma, quer
dizer, quando não há sintoma para o grande Outro, como ocorre seguidamente nesses
casos institucionais, como muitos casos de entrada ou de pedido de ajuda do tipo
infanto-juvenil. De todo modo, a transferência em uma análise que dura – para guardar a
diferença que Miller aponta em “Sutilezas analíticas”, entre as análises que iniciam, as
análises que duram, as análises que terminam – está articulada diretamente a esse
componente libidinal que está mais além do amor.
Qual é a particularidade da construção de um caso nas instituições? Para nós que
trabalhamos nas instituições é crucial captar, delimitar, situar os laços transferenciais
vigentes, assim como também apontar para a construção de laços transferenciais das
equipes, assim como das pessoas que trabalham na gestão e administração. A instituição
é uma instituição da transferência, disse Miquel Bassols. A instituição do discurso do
mestre, a que rege os procedimentos, as formas, os pagamentos, eventualmente, não dão
conta do laço transferencial. Isso mesmo poderíamos dizer que ocorre na universidade,
que estão regidas por outro mestre, mas onde a instituição da transferência é perturbada
pelas demandas dos estudantes a certos professores, gerando perturbações naqueles que
produzem menos efeitos transferenciais.
Para a construção dos casos nas instituições há algumas coordenadas que são
fundamentais, como a construção da transferência de trabalho, falar a língua do outro,
são tópicos cruciais da FAPOL29, quer dizer: não falar em lacanês, mas falar a língua
da instituição, porque de outro modo nos fazemos expulsar ou vivemos uma experiência
de trincheira. É necessário precisar os ideais institucionais, as demandas da instituição,
os sintomas da instituição e as lógicas grupais. Para construir os casos é conveniente
localizar esses pontos para saber, por exemplo, se necessitamos fazer uma construção de
uma instituição invisível, como disse Alexander Stevens, colega que trabalha na Euro
Federação. Disse Stevens que as instituições invisíveis estão direcionadas ao laço de
trabalho com as equipes, especialmente isso se verifica na prática entre vários,
modalidade que opera fundamentalmente em instituições que estão regidas pelo
discurso analítico. Ou se se trata de instituições não analíticas, de levar algo da
instituição invisível, da instituição da transferência à instituição, e da prática entre
vários para que no caso construído, que às vezes tem múltiplos agentes, assistente
social, fonoaudiólogos, psiquiatras, pedagogos, médicos etc. possam construir e
localizar de quem é a demanda, de quem é o problema, em definitivo, como falamos
antes, se há caso ou não há caso.
Em muitas instituições, os analistas não são ninguém para o consultante, é um
qualquer, um qualquer que necessita se colocar no lugar de alguém. Esse ser alguém não
é baseado em uma insígnia, em um título, senão em um fazer, produzir transferência.
Um desafio crucial que não mencionei antes, mas o retomo a partir desse ponto, é a
relevância que tem a transferência imaginária, como primeiro ponto de entrada, o
componente de sugestão, que no primeiro ensino tanto Freud quanto Lacan que
criticam, mas que ao final de seu ensino Lacan volta a retomar, se não há algo na
transferência generalizada que tem esse aspecto de sugestão. Se trata não de esperar
isso, mas de produzi-lo, a produção dessa dimensão de transferência dessa ordem.
Recordemos que o cartel, para aqueles que conhecem a dinâmica do cartel, dessa célula
base da Escola, está baseado no discurso histérico, como disse Miller30. É a
provocação, é o chamado ao trabalho. Essa provocação é crucial à entrada de muitos
casos que vêm sem demanda e sem pedido de ajuda. É uma aposta para ver se esse caso
se pode construir ou não, ou bem detectar se esses casos são pseudo-casos que têm mais
sentido para as instituições, mas que do ponto de vista analítico não produzem nenhum
efeito.
O dispositivo do passe e a construção do caso singular
O dispositivo do passe produz efeitos transferenciais. Um caso que recebe uma
demanda após ter decaído e desconsistido o Outro. No dispositivo, o Secretário do
Cartel escuta, recebe e dirige o Cartel do Passe que escuta, por sua vez, aos passadores
que entrevistaram o passante. É um caso que passa como uma carta de mão em mão, de
orelha em orelha até que, ao final, a mesma comunidade analítica escuta o testemunho.
Portanto, o passante, no dispositivo do passe, dá conta oralmente de seu caso e é
entrevistado. Como AE nominado, o AE constrói o seu caso, sobretudo seu primeiro
testemunho. Convido vocês a ler os primeiros testemunhos de passe, que são a primeira
construção escrita. De algum modo, o testemunho tem uma estrutura, é simples, não
conta tudo, não é uma autobiografia, está animada pelo desejo de transmissão e
nominação que a Escola lhe confere. É um valor de transmissão do final de análise, da
queda do inconsciente transferencial, deixando às claras as letras que foram escritas
através das contingências. A posição, como disse Miller, de já não há ninguém, que é a
posição do analista, implica que o testemunho já não é pessoal, é parte da comunidade.
Posso dizer pessoalmente, meus testemunhos já não me pertencem. É uma ficção, uma
verdade mentirosa que dá conta do real, ao mesmo tempo, os testemunhos dão conta de
um ganho transferencial. Disse Laurent, é o que Lacan reteve para a experiência do
passe, onde cada um conta seu caso de final de análise. Esse caso testemunhado tem a
estrutura do chiste. O dispositivo vai radicalizar a enunciação de cada um, a
singularidade. Ao mesmo tempo, o AE é uma figura transferencial, disse um colega
catalão. Pode tocar o sintoma de alguns após escutar um testemunho. Algumas pessoas
depois de escutar um testemunho começam uma análise ou vão à supervisão. Em
definitivo, o corpo falante do sujeito que escuta o testemunho pode ser tocado.
No seminário “O desencantamento da psicanálise”, de 2001-200231, Miller se
pergunta o seguinte: se o verdadeiro caso não seria o do AE, o qual desloca de forma
decisiva o estatuto do saber do analista. Por qual razão? Porque o analista não sabe, pela
simples razão de que está em posição de a minúsculo, como agente a título da causa do
desejo.
Marie-Hélène Brousse assinala, em uma conversa com Miller nesse mesmo
seminário, que não está publicado ainda, que o relato de um caso mobiliza os pontos
vivos que geram uma relação com a psicanálise, de maneira tal que um bom relato de
um caso é sempre uma carta em suspenso, uma letra em espera. Essa transmissão está
maximizada e potencializada na construção do caso dos AEs.
Fico por aqui. Transcrição e tradução: Paula Lermen e Fred Stapazolli Revisão: Adriana
Rodrigues e Paula Lermen
1. Aula inaugural proferida no ICPOL-SC em 07 de agosto de 2021. Tradução e transcrição
revisada e aprovada pelo autor.
2. Analista praticante na cidade de Santiago/Chile, Membro da Nueva Escuela Lacaniana (NEL)
e da Scuola Lacaniana di Psicoanalisi del Campo Freudiano (SLP) e da Associação Mundial de
Psicanálise (AMP).
3. YEYATI, Elena Levy (org). A casuística de Lacan. Buenos Aires: Grama, 2013.
4. MILLER, Jacques-Alain. A salvação pelos dejetos. In: MILLER, J.A. Perspectivas dos
Escritos e Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
5. FREUD, Sigmund. Construções na análise. In: Obras incompletas de Sigmund Freud:
Fundamentos da clínica analítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
6. MILLER, Jacques-Alain. Duas Dimensões Clínicas: Sintoma e Fantasia. In: Percurso de
Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
7. MILLER, Jacques-Alain. Del sintoma al fantasma y retorno. Buenos Aires: Paidós, 2018.
8. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma.[1975-1976]. Rio de Janeiro, Zahar,
2007, p. 114.
9. Idem., p. 149.
10. LACAN, Jacques. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade[1932]. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
11. LAURENT, Éric. Tratamiento psicoanalítico de la psicoses e igualdad de las consistencias.
In: MILLER, Jacques-Alain; BRIOLE, Guy (orgs) La conversación clínica. . Buenos Aires:
Grama, 2020.
12. REINOSO, Alejandro. Do amor repetição ao novo no amor. X ENAPOL. Disponível em:
http://enapol.com/pt/argumentos/
13. LAURENT, Éric. A interpretação ordinária. In: Revista Arteira, n. 09, Florianópolis (EBP-
Seção Sul), 2017. Disponível em: http://revistaarteira.com.br/images/pdf/Arteira-9.pdf
14. FREUD, Sigmund. Lembrar, repetir e perlaborar (1914). In: Obras incompletas de Sigmund
Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

15. MILLER, Jacques-Alain. Los preguntones (1984). In: MILLER, Jacques Alain.
Introducción a la clinica lacaniana. Barcelona: RBA, 2006.
16. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro, Zahar,
2005.
17. LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose [1955].
In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
18. MILLER, Jacques-Alain. In: Clinica bajo transferência: ocho estúdios de la clinica
lacaniana. Buenos Aires: Manantial, 1993.
19. MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana on-line, n.07,
março/2012. Disponível em:
http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_gozo.pdf
20. LACAN, Jacques. Breve discurso a los psiquiatras. Paris, 1967. (Inédito). Disponível em:
http://lacanterafreudiana.com.ar/2.5.1.12%20%20BREVE%20DISCURSO%20A%20LOS
%20PSIQUIATRAS,%201967.pdf
21. LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência [1960-1961]. Rio de Janeiro: Zahar,
2010.
22. ________. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais em psicanálise [1964].
Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
23. MIILER, Jacques-Alain. O inconsciente e o corpo falante. Março/2014. Disponível em:
https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?
intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=274
2&intIdiomaArticulo=9
24. LAURENT, Éric. Honoris causa en la Universida de Córdoba. Disponível em: Honoris
Causa en la Universidad de Córdoba – por Éric Laurent – 2019/12/02 | PSICOANÁLISIS
LACANIANO (psicoanalisislacaniano.com)
25. LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
26. LACAN, Jacques. Le séminaire (1976-1977): L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre.
Inédito.
27. LAURENT, Éric. Tratamiento psicoanalítico de la psicoses e igualdad de las consistencias.
In: La conversación clínica. MILLER, Jacques-Alain; BRIOLE, Guy (orgs). Buenos Aires:
Grama, 2020.
28. LACAN, Jacques. Nota italiana [1973]. In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003.
29. Federação Americana de Psicanálise da Orientação Lacaniana. https://fapol.org/pt/
30. MILLER, Jacques-Alain. Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada. In:
Gimenez, Stella (org). O cartel: conceito e funcionamento na Escola de Lacan. Rio de Janeiro:
Ed. Campus, 1986.
31. MILLER, Jacques Alain. (2001-2002). Le desenchantement de la psychanlyse. Curso
ministrado no âmbito do Departamento de psicanálise da Universidade de Paris VIII. Inédito.

You might also like