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1. Resisténcias a partir do horizonte indigena O cristianismo moreno do Brasil significa a sobrevivéncia de importantes valores religiosos indigenas sob as formas, doutrinas ¢ instituigdes do cristianismo ocidental que veio para c4 com os colonizadores. Muitos valores culturais do mundo indigena se per. deram para sempre sob a violéncia do invasor europeu mas outros tantos continuam vivos e conseguiram encontrar uma brecha dentro do cristianismo dos engenhos, das fazendas, dos aldeamentos ¢ sobretudo das devogies. O BRASIL RELIGIOSO ANTES DOS EUROPEUS. Para ver com clareza esse mundo de influéncias e super- Posigdes que € 0 mundo mestico formado ao longo do processo colonizador queremos voltar para o que aconteceu no campo re- ligioso antes de 1500. Umensaio como este no comporta aprofundamentos de tipo monogrdfico mas quer ser um instrumento para a discussio ¢ um convite para ulteriores pesquisas. Trataremos, pois, ‘dos’ indigénas, sabendo que esse termo é uma simplificaco e uma generalizagao. O territ6rio brasileiro contém desde tempos muito remotos uma presenga humana bastante espalhada em todas as regides. O Brasil antigo nao era o ‘deserto humano’ que os cronistas coloniais ¢ Viajantes.do-sécylo 19 nos pintam. Jé lembramos as Pesquisas de (Got Nmendih respeito, Essa presenga humana estava basica- mente sub em dois tipos: os agricultores de certa forma itinerantes — ainda nao muito sedentérios —¢ os nomades cagadores, pescadores ou coletores de frutas ¢ plantas. O Brasil nio conheceu 5 Digitalizado com CamScanner os agricultores sedentarios t{picos das regides andinas, que jé viviam sob o domfnio de um estado, Aqui se vivia cm comunidades relati- vamente pequenas de duas mil pessoas no maximo, comunidades estas que eventualmente podiam dissolver-se na época da chuva, quando o sertao oferecia mel, caju, ou outras frutas de facil colheita. Algumas socicdades variavam, pois, segundo as estagées do ano; outras cram mais estdveis, mas 0 certo é que os nomades propria- mente ditos cram uma minoria quase insignificante diante da pratica da agricultura. Essa agricultura fornecia uma base homogénea para a vida dos amerfndios, apesar da extrema diversidade de linguas e costumes. O tronco tupi-guarani, que falava basicamente uma s6 lingua e se estendia por extensdes territoriais imensas, fornecia elementos suplementares de homogeneidade inclusive cultural. Desta forma podemos tragar — em linhas muito gerais — alguns elementos de religiosidade amerindia vivida pela diversidade de povos do Brasil-continente. Focalizaremos a idéia de Deus, a terra, amorte, a doenga e sua cura, o nascimento, a passagem para a vida adulta e finalmente os trabalhos da meméria. AIDEIA DE DEUS —~ | Todos os cronistas s4o unanimes em afirmar que os amerin- (dios eram muito religiosos,/Claro que essa afirmacao se escondia ‘expressoes fortemente ideolégicas como: superstigao, fei- tigaria, ignordncia, fanatismo etc., mas nao se pode dizer que os cronistas tiveram a impresso de entrar em terra secularizada, onde no havia religido. Mas essa religiosidade extrema néo deixou de desapont europeus, pois estes ndo encontraram aqui nada que correspondesse ao conceito de Deus qué carregavam consigo. Que religiao era essa que nao adorava um Deus? Em desespero de causa os missionérios jesuitas acabaram forjando um conceito, ‘Tupa’, crocgsio ¢ do trovao que no era aliada a nenhuma nogo de divi ndo tinha repercussdo nenhuma na cultura indfgena, mor- | matt logo depois da gesta missiondria. A religido do Brasil’ continuou enigmatica aos olhos dos europeus durante todos esses séculos de contato, e podemos avaliar a persisténcia dessa incom- preensao lendo algum trabalho por exemplo sobre espiritismo no Brasil. A confusdo era grande, e o paradoxo também: onde faltava a idéia de Deus, sobrava a idéia do sagrado, do ‘tremendo e fasci- 2. CAMARA CASCUDO, L. da. Geografia dos Mitos Brasileiros. Ed. da Univ. de Séo Paulo, S40 Paulo, 1983, p. 48. 6 Digitalizado com CamScanner noso’. Existia na sociedade amerindia um ‘além’ da sociedade, uma_ dimensao meta-social, uma alteridade fundamental. A sociedade encontrava scu fundamento ¢ razao de ser fora de si, numa referén- cia a uma anterioridade inatingfvel (os antepassados). A prépria memoria mitica, transmitida em hist6rias ¢ ritos, constitufa a sc dade, Tormava a lei orginica dela, que nio cra desobedecida por pinguém, O antropélogo francés Pierre Clastres, nos seus Gltimos trabalhos dedicados ao assunto no Diciondrio das Mj ologias, con- clui dizendo: “Que estranha religiio, sem deuses!”°. Sem deuses nem teologia, a rigor. A TERRA Aqui também os europeus ficaram admirados de encontrar povos sem nogao de propriedade privada das terras. O Padre Anténio Sepp, SJ, que viveu quarenta anos entre os guarani das redugées do Paraguai, testemunha: “Nunca vi nenhuma cerca nas terras dos indios!”. A auséncia da cerca indica um tipo de acesso a terra que € de ordem réligiosa. A terra € sagrada, ela merece o respeito que se deve ao sagrado. A famosa distinc4o entre profano_ e sagrado se dilui diante de uma Sensibilidade religiosa muito afi- ada; pois 0 Sagrado penetra ‘em fico, nas plantas nos animals na plantas, nos animais, na natureza em geral. Dai a atitude harmoniosa entre o homem e a terra. Semi instrumento agressivo para cortar ou matar (0 ferro), 0 homem “nao tem a impressdo de habitar um mundo onde ele domina. Ele é controlado pela natureza e nao pelas pessoas. Seu cosmos nao € antropomérfico”’. O homem nio procura transformar_ © meio no qual vive, mas integrar-se_a ele. Nao impde a cultura a natureza, mas vive segundo a natureza. Ainda encontramos numero- sos tragos desse tipo de comportamento por parte do povo brasileiro nos mfnimos detalhes da vida didria. Até hoje h4 um ‘pensamento made’ proprio do corpo social brasileiro, e que muitos inter- pretam como improvisacao, falta de espfrito de organizacao, falta de disciplina, etc. Sabemos como os valores do Brasil antigo sao reprimidos na sociedade em que vivemos. As freqiientes guerras entre povos indfgenas, erroneamente interpretadas por cronistas coloniais, tinham o significado de permitir por parte de cada povo 3. CLASTRES, P. Diversos artigos em: BONNEFOY, Y. Dictionnaire des Mythologies. Paris, Flammarion, 1981, em dois volumes. Veja especialmente: I, p. 17.19; I, p. 546-553; Il, p. 507-510. 4, BONNEFOY, Y. op. cit. Il, p. 169. Digitalizado com CamScanner © acesso independente a terra. Eram guerras por assim dizer ‘centrifugas’, no sentido de afastar os inimigos do habitat natural, nao cram guerras de conquista como as que os portugucses prati- cavam. Nisso vai uma diferenga fundamental, de sorte que 0 uso ‘ou abuso — de indios ‘mansos’ nas guerras contra {ndios ‘brabos’ constitufa por parte dos portugueses uma falta elementar de ética. Sendo que a ligagao com a terra cra fundamental para o indfgena, tanto no sentido sedentério (terra para plantar) como no sentido mais némade (terra para colher ¢ cagar), a maior injustiga que se fez foi a de lhe tirar a terra para converté-la em ‘propriedade privada’. Esta constitui sem divida a desordem maior da sociedade brasileira até hoje, a que causa a imensa conglomeragio de pessoas nas periferias pobres das grandes cidades brasileiras. O comporta- mento religioso do indigena para com a terra e tudo que ela gera sempre contrastou violentamente com a postura agressiva e trans- formadora da terra que € propria do sistema mundial moderno. MORTE, DOENCA, NASCIMENTO, IDADE ADULTA A morte: Os mortos nao se conformam em deixar a aldeia e ficam rodando em torno dela. O povo ainda hoje fala desses ‘mor- tos-vivos’ ou dessas ‘almas’ que incomodam, aparecem em sonhos e visagens. Esses mortos devem ser apartados dos vivos, pois amea- ¢am a vida com doengas € outros perigos. E preciso livrar-se dessa Presenga incdmoda e perigosa. HA nas comunidades indigenas uma vontade de acabar de vez com os mortos. Por isso as comunidades nao organizam propriamente ‘cemitérios’ que simbolizam uma certa aproximag4o e comunicagio entre vivos e mortos, mas procuram enterrar o morto para que ele desaparega para sempre, ou langar 0 esqueleto j4 sem carne no rio, no esquecimento, O nome do morto nao € mais lembrado, Esse comportamento aparentemente insen- sivel nao impede a dor e sua expresso na hora da morte, mas demonstra afinal de contas que a vida € a vontade suprema, uma vida sem sustos nem ameacas. A doenga: A doenga nao € s6 um caso individual, mas implica toda a comunidade. E uma ameaca paraa vida da comunidade toda. Aqui entra o pajé no centro da vida comunitéria como médico € sacerdote, grande defensor da comunidade contra as ameagas que aparecem sob a forma de doengas. Embora os missiondrios se engajassem numa luta sem tréguas com os pajés, procurando so- bretudo tirar-lhes a autoridade e atrair para si o papel antigamente desempenhado por eles, sua vit6ria sempre foi incerta. Os curan- Digitalizado com CamScanner deiros sio sobrevivéncias dos antigos pajés, guardam scu prestfgio mesmo nas perifcrias das atuais metrépoles. O sacerdote catélico nio conseguiu herdar de todo o prest{gio do pajé, pois nao conse- guiu situar-sc no cxato lugar onde este atuava, no lugar do combate A doenga como ameaga A vida comunitéria. Onascimento: Mais uma vez se percebe a dimensio altamente comunitiria da vida ind{gena por ocasiiio do nascimento. Um novo nascimento na aldcia é percebido com reccio, pois ameaca quebrar a harmonia existente em comunidades de to poucos participantes. Ele parece que desperta as forcas da morte e necessita por isso ser protegido contra clas. Essa protecdo se exprime em numerosos Titos, por exemplo no rito estranho do pai que tem que ficar deitado na rede e jejuar até a queda do cordao umbilical da crianca. O batismo cristéo desde cedo foi interpretado dentro desse conjunto de ritos que conjuram as ameagas das forgas da morte. Qualquer pesquisa simples feita junto ao povo acerca do sentido do batismo revela essa ‘leitura’ a partir do horizonte amerindio. A passagem da crianca @ vida adulta: A passagem para a vida adulta é percebida como uma morte e uma renascenga. A pessoa tem que morrer A infancia despreocupada e nascer para a vida social responsével, sobretudo através da expansdo da sexualidade. Pas- sagem dificil e por isso mesmo extremamente dramatizada por provas fisicas muito penosas (perfuragéo do lébio inferior, ou mordiduras por formigas etc.). £ um novo nascimento precedido de uma morte simbélica. No novo nascimento s4o transmitidos os valores constitutivos da sociedade através da fala ou do gesto. Aqui se articula uma complexa pedagogia, nao através da relagao entre um professor ¢ um aluno, mas pela sociedade toda que se torna pedag6gica, educadora. Nao é transmitido um saber sobre a socie- dade, mas sim o saber da sociedade, com seu universo de mitos ¢ ritos, de leis e de politica. A lei ndo é defendida pelo poder como nas sociedades articuladas pelo mecanismo do estado, mas sim pela religiao, pelo mito e pelo rito de teor religioso. A religio traz consigo a lei ¢ com ela a propria sociedade. Temos a impressao de que no Brasil atual essa vigéncia da religiéo como constituigéo basica do pafs ainda perdura, Nao sao nem as leis nem os defensores dela que mantém a sociedade brasileira em ordem, mas sim 0 senso 6tico que emana da religido, em grande parte. Aqui também ainda vive o Brasil antigo, anterior aos dltimos quinhentos anos. Digitalizado com CamScanner

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