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A fera

Paulo Paniago
O jardim zoológico é apenas uma nova jaula; se você for para ele,
está perdido

Franz Kafka, Um relatório para uma academia

Sem pai, nem parente nem... sozinho entre as feras

Racionais MC’s, Quanto vale o show

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Índice

1. Tem um homem na jaula 5


2. Basta uma fagulha 18
3. Uma boa dose de ilusionismo 29
4. Zoológico tropical 43

II

5. Planeta das ideias 54


6. Anúncio de uma aventura 69
7. Fique à vontade, sente-se e leia 80
8. Tranquilidade e turbulência 88

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I

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1 Tem um homem na jaula

Quando foi aberta a primeira jaula para humano no zoológico de Brasília


alguma coisa indistinta tornou o ar da cidade mais espesso. Não dá para imaginar
que alguém esperasse por esta modalidade de surpresa: jaula com homem, em vez
de outro animal qualquer. Homo sapiens em exposição. As pessoas certamente
teriam menos dificuldades para entender se fosse jaula dedicada a certos exotismos
controlados, como casal de animais ameaçados de ter a espécie eliminada da face
do planeta, ou ainda o zoológico inteiro montado com animais que têm imensas
dificuldades (mas com algum potencial) de se reproduzir em ambientes inóspitos,
na eventualidade de serem mantidos aos pares e em condições favoráveis.
Homem em cativeiro: definitivamente muito difícil de aceitar.
Simples como o sol no céu cheio no meio da manhã, uma terça-feira qualquer
assiste a chegada de uma turma de escola pública para visita, o ônibus para no
estacionamento perto da sombra de um conjunto de árvores que fica próximo da
guarita de entrada, depois de manobrar para não impedir o fluxo dos outros carros
menores pelas vias de acesso internas do zoológico. A meninada desce, forma um
semicírculo próximo à porta com intuito de ouvir pela última vez as instruções
severas da professora, tia Silvana.
— Então, meninos, só para reforçar — ela diz para o semicírculo que se formou
ao redor de si, com tom algo anasalado e fala alto porque a voz está sendo dissipada
pelo vento. Silvana teme que as sábias palavras que pronuncia não alcancem todos
—, não quero ninguém se desgarrando do grupo, pelo motivo que for. Quer ir ao
banheiro, levanta a mão e pede, quer ir ao bebedouro, levanta a mão e avisa, quer ir
ver alguma coisa diferente, primeiro tem que a tia autorizar, estamos entendidos?
Não vou admitir ninguém depois dizendo que esqueceu das regras. Combinado?
A molecada, ansiosa, vários a conversar entre si, acata mais ou menos, é possível
pensar que eles não aguentam mais esse tanto de advertências, pode, não pode,
faça, não faça, assim, assado, agora, daqui a pouco, desse jeito, daquele outro, os
adultos um bando de controladores de voo paranoicos obsessivos, sempre se
antecipando a possíveis colisões de aeronaves, os pequenos aflitos para desbravar e
conhecer coisas, movidos por curiosidade inabalável e contidos a duras penas por

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admoestações. Viver não é simples. O período de negociações não parece ter fim.
Silvana havia falado a mesma coisa em sala de aula, antes de saírem, depois repetiu
no ônibus. Ela acha que o cardume não tem memória e gosta de reforçar. Para
depois ninguém dizer que ela se esqueceu das advertências.
Parte do tormento de ser criança consiste em ter que passar pelo longo
aprendizado das regras controladoras do convívio social, em casa ou na escola, seja
onde for. Sempre alguém para restringir, vetar, moldar, negar, impedir,
embarreirar. Continua um mistério saber como o mundo avança a despeito de
tantas rédeas. Ou como seria a imaginação e seriam criados os inventos se não
houvessem tantas restrições em andamento.
Os pequenos bárbaros precisam ser domesticados em qualquer quadrante do
planeta, parece haver consenso quanto a isso em escala planetária. O esforço por
parte dos adultos responsáveis é enorme e os resultados angariados, mais ou menos
imprevisíveis. Não é tarefa simples, em resumo, sobretudo por conta da semente de
rebeldia, que parece implantada diretamente no DNA humano. Pobre tia Silvana.
Pobres educadores com a tarefa inglória de enquadrar pequenos projetos rebeldes
em construção e que necessitam ser contidos e domados. O trabalho sempre em
andamento da civilização, inconcluso em caráter permanente, ao que tudo indica.
— Então, mais uma vez, só para garantir.
Silvana prossegue o discurso que começa a parecer interminável. Guiou tantos
grupos ao zoológico e nunca atravessou problemas maiores do que um corte num
dedo, certa vez há três anos, seguido de socorro imediato, dois pontos e curativo, e
reclamações posteriores da mãe, depois conformada, quando a raiva cedeu; ou um
desmaio seguido de convulsões, em ocasião diferente, de uma menina que mais
tarde foi diagnosticada com epilepsia e que teve o infortúnio de ter o primeiro
sintoma dos ataques justo durante o passeio, o que quase botou em xeque os planos
de movimentação escolar e de excursões para fora dos muros do colégio (também
os professores foram admoestados, mas de vez em quando revoltam-se um pouco
contra as restrições demasiadas e anseiam pela sensação de liberdade que os
passeios proporcionam). Fora isso, tudo foi sempre tranquilo, basta manter
vigilância e enquadramento, a cantilena de regras renovada turma após turma,
como se fosse a oração que ela repete toda vez e, justamente por pronunciá-la,
invocar proteção para todas aquelas crianças e para si mesma. Silvana tem uma voz

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enjoada e demasiado fina, mas alta o suficiente para causar estragos no que chama
à boca pequena de pestinhas.
— Eu vou na frente, puxando a fila, tia Arlete vai atrás, qualquer dúvida e
qualquer problema, basta levantar a mão e pedir para a gente — ela por fim diz.
Como se esperasse justamente pela deixa, José Carlos, que todo mundo conhece
como Zeca ou, porque ele é criança e pequeno, Zequinha, ergue a mão.
— Pois não, Zequinha, o que foi? — tia Silvana tenta manter o tom elevado,
embora saiba que pode ser uma pergunta engraçadinha e portanto é melhor
esconder a impaciência com a conduta inalterável pelo menos por enquanto,
quando é só especulação. Por dentro, ela suspira exasperada. Zequinha talvez seja o
caso perdido nessa turma, o irrecuperável, o que não se enquadra. Ele é moreno,
espigado, tem um rosto com covinhas que o tornam jovial e algo esperto além da
conta, mas ela não se deixa enganar, o Diabo também pode se disfarçar com boas
maneiras e elegância. Aliás, deve ser um dos disfarces favoritos, sorriso nos lábios e
gentilezas na língua, o mais fácil de enganar pessoas. Zequinha reparte os cabelos
muito lisos de lado e, às vezes, enquanto fala, balança rapidamente a cabeça de
modo a retirar os fios que desabam e ameaçam lhe cobrir os olhos. Para os amigos,
a inquietude dele é inspiração; para as professoras, algo irritante.
— Queria saber se a gente pode começar logo o passeio, tia — ele diz, num tom
interrogativo, mas que também deixa transparecer um toque qualquer de
travessura, de desafio e impertinência. Está tripudiando, o pequeno demônio. É o
tom, o ritmo, o deboche, devidamente temperado por uma impostura de respeito
aparente. Demoninho que entende de ironia e a manipula com tanta destreza, o
que é um feito e tanto, quando se considera a idade que tem.
O efeito é o esperado, todo mundo ri e começa certo alvoroço de vozes e cabeças
em movimento. Tia Silvana ergue as mãos espalmadas para a frente, os braços
afastados do corpo, como se estivesse prestes a abrir as águas do mar Mediterrâneo.
Ela se dá por vencida. Nenhum milagre sairá dos braços abertos. Zequinha é capaz
de despertar algum movimento de rebeldia nos colegas, ele dificilmente se submete
a qualquer tipo de enquadramento. Um lado qualquer escondido de tia Silvana o
admira.
— Calma, minha gente, vamos começar. Mais alguma dúvida? Não? Então
vamos.

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Ela ainda se vira para Antônio, o motorista, e diz que se encontram novamente
naquele mesmo ponto dali a duas horas e meia, o período previsto para durar o
passeio, a manhã toda, além do tempo entre o transporte de ida e volta, e sempre
existe qualquer atraso, acrescido do intervalo previsto para tomar o lanche, na
metade da manhã. Antônio assente com a cabeça. Está decidido a tirar um cochilo
debaixo de uma árvore assim que todo mundo se afastar. Dormiu pouco à noite e
acordou muito cedo para se apresentar ao trabalho no horário.
O cardume infantil segue as balizas no início e no fim, mais altas, tia Silvana e tia
Arlete, os uniformes rebrilhando ao sol matinal da terça-feira. Então, quando
circundam a barreira de concreto que permite ver mal e mal os leões dentro de um
fosso com um simulacro de relva e alguns troncos de árvore deitados sobre a
grama, onde os animais podem se esticar para tomar sol e sentir com o máximo de
intensidade a condição permanente de prisioneiros, sem qualquer zebra no
horizonte para perseguir e sem qualquer sentido para continuar vivo e na hora do
dia em que estão especialmente letárgicos, tia Silvana repara numa construção
nova que não estava ali quando fez a última visita, há três meses, com a turma da
oitava série. Pastoreia a molecada e decide que quer ver o que tem dentro desse
novo local. Um bicho diferente? Um viveiro novo de pássaros? Os meninos relutam
em deixar os leões, mesmo que letárgicos. Os grandes felinos exercem um grande
apelo, com a boca aberta, a língua dependurada, os músculos relaxados, mas
existentes e potenciais.
Mas não, um viveiro não pode ser, os viveiros de pássaros do zoológico são todos
de estruturas gradeadas e circulares, tia Silvana logo se desfaz do equívoco do
próprio pensamento.
Estão chegando ao local quando Zequinha, esse menino hiperativo e
exasperante que sempre fica próximo de Silvana e fala sem parar, dá o alerta.
— Tem um homem lá dentro, tia — ele faz questão de apontar com o indicador
no fim do braço esticado, periscópio que ajuda a captar as maravilhas do mundo. A
covinha na lateral do rosto está especialmente proeminente.
Silvana acha que é algum funcionário terminando de ajeitar o espaço para
receber qualquer que seja o novo habitante dentro em breve. Começa a sentir certa
frustação, esperava ver algum bicho diferente desta vez, mas o ambiente ainda está
em preparação.

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— Ainda estão arrumando o lugar para receber um bicho — ela explica, virando
o rosto na direção da turma para ser mais bem entendida, embora a voz dela se
espalhe com muita facilidade e de forma natural em torno, no ambiente fechado.
O alerta sobre o que de fato acontece parte novamente de Zequinha. Crianças
são rápidas em compreensão ao primeiro impacto, fazem associações inesperadas.
Ele percebeu com algum instinto profundo que não se trata de funcionário, mas do
próprio animal em exibição. E precisa apontar isso, até pelo absurdo do que está
prestes a dizer.
— Não, tia, a jaula é do homem.
Silvana olha melhor, tenta prestar mais atenção ao que vê, processa a
informação lançada por Zequinha. De fato, o homem na jaula não está vestido com
qualquer uniforme de tratador, não parece ser da equipe de funcionários, ocorre a
Silvana pensar, sem saber o que seria exatamente o traço comum que definiria a
equipe de funcionários, além do uniforme. Não parece nem mesmo brasileiro, isso
sim, ela pode pensar e pensa. É como se o pensamento dela de repente se refreasse
para dizer de maneira telegráfica, ele-não-é-bra-si-lei-ro. Mas o que isso importa,
no fim das contas, é outra pergunta que se emenda à constatação.
Claro, se você for ponderar direito, não há traço distintivo do brasileiro que o
separe dos outros povos, seja formato de rosto, estrutura óssea específica, cor de
cabelo ou modelo de sarda. Nada. Brasileiro é a camuflagem de quase todas as raças
combinadas, o modelo ideal para se mandar como representante da Terra numa
viagem de contato interplanetária, a não ser pelo fato de ser tão avacalhado e com
tão baixo grau de respeitabilidade no cenário internacional, o que afinal o
desqualificaria, nessa hipótese. O que tem de mistura de raças, tem também de
confusão de valores. Em outras palavras e como se afirmou tantas vezes, o
brasileiro não é sério nem capaz de levar nada a sério. Ao mesmo tempo grande
vantagem e perdição. Um talento natural que nem sempre é bem compreendido,
justamente porque se mostra num tipo de insolência que não angaria respeito.
Zequinha é um modelo. Silvana, se perguntada, não saberia dizer se lamenta ou
elogia a confusão do brasileiro.
O homem na jaula, no entanto, se algo pode ser dito a respeito dele, é que não é
brasileiro. Pode ser, no fim das contas, mas se for, será surpresa extra, acrescentada
ao fato espetacular de ser ele o enjaulado, o que afinal é o que parece estar em
questão. E não é isso o brasileiro, por certo, um sujeito que surpreende todas as

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expectativas e se reinventa quando ninguém espera? Talvez seja um brasileiro,
afinal, quase conclui Silvana. Mas na cabeça dela começa a ganhar força outra
ideia, ser ou não brasileiro é irrelevante na situação. O gritante demais neste
cenário, ela percebe, é ele estar na jaula, é ser ele o bicho em exposição.
— Mas não é possível uma coisa dessas — ela diz. Não fala a Zequinha ou a
qualquer pessoa em particular, mas fala em geral, como quem expressa uma
indignação por ser a coisa certa, antes da próxima atitude adotada. E qual é ela?
Silvana está tão surpresa que não sabe que passo precisa ser dado a seguir. Decide
que pelo menos deve confabular com Arlete. — Ô, Arlete, chega mais. Você está
vendo isso aqui?
A pergunta não tem como ser mais retórica. Todo mundo está vendo, com
atenção especial, uma nova modalidade de magnetismo. A criançada parou de fazer
barulho e contempla a cena, sem saber como reagir à novidade tão espetacular mas
muito atraente, quanto a isso não há qualquer dúvida. Uma menina puxa o celular
para fora da bolsa a tiracolo e tenta enquadrar o novo bicho na selfie em que
pretende tirar onda com a situação. É de verdade, ela pensa escrever na legenda
quando for publicar a imagem nas redes sociais, tem um homem na jaula do
zoológico. E muitos emojis de risos no fim da frase, além de muitas exclamações na
sequência. Depois é esperar para ver quanta gente vai curtir. No ônibus, a caminho
do zoológico, tia Silvana tinha explicado que ia liberar o uso dos celulares pela
meninada, mas advertiu que a escola não era responsável se alguém perdesse o
aparelho durante o passeio. Portanto, tomassem cuidado, fossem responsáveis.
Regras, regras, regras. E toneladas de advertências.
Arlete para ao lado de Silvana.
— Amiga, não estou entendendo nada. Esse cara está mesmo enjaulado? Tem
explicação para isso aqui?
Silvana quer mais que a incompreensão alheia, parecida com a sua. Como situar
essa experiência. Como se posicionar a respeito, do ponto de vista ético. O que
fazer. Alguma coisa, por favor, rápido. No quadro de avisos dentro de sua cabeça só
tem o geral, o aviso que diz: algo está errado, no entanto sem qualquer informe
mais minucioso, sem explicação detalhada. E ela precisa urgente de explicação
detalhada.
Através do vidro, o homem parece distraído, tenta colocar uma poltrona verde
numa posição que lhe seja favorável em relação ao sol. É barbudo, magro, mas não

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está sujo ou maltratado, nem lembra um desses viciados em crack com roupa
maltrapilha e uma movimentação perigosa e potencialmente agressiva. Ajuda o
fato de a barba estar aparada. Lembra uma pessoa comum, um sujeito que você
encontra por aí caminhando pela rua, se arrumando e arrumando um pouco a
bagunça da sala antes de sair de casa com destino ao trabalho. É o que parece. E é
jovem. Um jovem barbudo. Deve ter vinte e três ou vinte e quatro, no máximo vinte
e cinco anos, a barba talvez atrapalhe a avaliação. Mas que pessoa comum vai estar
assim tão calma dentro de uma jaula no zoológico é mistério que precisa ser
explicado.
Tendo ajeitado a poltrona, ele finalmente se vira e percebe a turma da escola a
olhá-lo. Mas é apenas um relance rápido que nem dura um segundo inteiro. No
mesmo movimento em que se dá conta de que tem plateia, no instante seguinte
decide ignorar todo mundo de maneira solene, como se fosse a conduta certa a
adotar na situação. Simplesmente senta-se na poltrona, tentando colocar-se o mais
confortável possível, à beira do gramado que se estende até a parede com o grande
vidro em que a turma se aboletou. Pega um livro que está ali, meio enfiado entre o
assento da poltrona e o braço, senta-se e se põe a ler, como se estivesse na varanda
da própria casa. Não fosse pelo ambiente em torno, seria possível dizer que é um
sujeito no conforto da própria casa, cuidando da vida íntima, aproveitando os
momentos de lazer para colocar a leitura em dia.
Zequinha saca o celular do bolso e começa a gravar um vídeo, no qual é possível
ver a jaula, o homem dentro dela, a estrutura toda a cercá-lo, e depois o
enquadramento vai se fechando até chegar à placa, que anuncia o inesperado Homo
sapiens, espécie que se reproduz em cativeiro e em qualquer outra situação, mesmo
as mais adversas (um especialista em reprodução, é isso que ele é) espalhado pela
superfície do planeta e que pode ser encontrado inclusive nas regiões mais
inóspitas, com as temperaturas mais desvantajosas, positivas ou negativas. Aquele
ali, por exemplo, foi importado da Letônia, que para os padrões tropicais é uma
região bastante inóspita. A informação também consta na placa, ao lado da
expressão origem. Um dos países bálticos, a placa informa ainda. Pequena lição de
geografia, além de tudo.
— Isso não faz o menor sentido — prossegue Arlete, balançando a cabeça de um
lado para o outro. — Pensei que já tinha visto de tudo, agora mais essa.

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A verdade é que Arlete não está ajudando muito com esses comentários
genéricos. Silvana precisa de algo mais sólido e palpável em que se apoiar. Os
meninos estão fascinados, não com o ser humano em si, mas com a situação de vê-
lo em exibição, mesmo que numa jaula feita basicamente de vidro temperado,
ligeiramente esverdeada. Apontam para ele e conversam entre si, as meninas
tomam o cuidado de às vezes colocar a mão na frente da boca, talvez por pensar
intuitivamente que o homem pode ter o poder de ler lábios e pensando em evitar
ofendê-lo com especulações tateantes ou francamente denegridoras que produzem.
Zequinha tenta decifrar, da distância em que está, a lombada do livro, quem sabe
consegue ler o título anotado ali. Talvez ajude a compreender alguma coisa da
situação.
Desnorteada e sem ajuda da colega, Silvana tenta prosseguir com o passeio. É o
único recurso de que dispõe, sair dali e ignorar a questão. Talvez isso possa fazer o
assunto ser esquecido. Não é assim para tudo?, o que os olhos não veem a gente não
precisa pensar a respeito ou concluir qualquer coisa.
— Muito bem, minha gente, vamos continuar — ela diz, tentando exercer a
atitude de pastoreio. O gesto com as mãos, tentando ao mesmo tempo abraçar e
empurrar os meninos, confirma o pendor autoritário de Silvana.
— Mas, tia, espera um instante, a gente quer ver mais um pouco — rebate a
menina que tirou a selfie e ainda não conseguiu postá-la na rede social, o sinal da
operadora está fraco. Ela se chama Magda e no ambiente da sala de aula julga ser a
rainha do pedaço. A única relutância que encontra entre os súditos vem justamente
daquela outra autoridade chamada genericamente de tia. Os adultos são mais
difíceis de se dobrar às suas vontades. Mas ela pretende continuar trabalhando
nisso, sabe que é questão de tempo.
Silvana, no entanto, reluta em continuar nesta zona de desconforto que
começou a se irradiar aos poucos em torno dela e que teme que vá contaminar de
alguma maneira os meninos. Não sabe como enquadrar o que vê dentro de
categorias reconhecíveis e portanto está assustada, embora procure aparentar
calma exterior, para todos os efeitos, essa característica que é uma curiosidade do
reino animal, disfarçar emoções, sobretudo medo, mas também desconforto, por
trás de uma expressão de paisagem sem vento. A hipocrisia é o grande armamento
de sobrevivência dentro do jogo social, nem professoras de ensino fundamental
estão dispensadas de se utilizar do recurso: muito da educação não é o que se diz

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claramente, mas o que se deixa perceber nas entrelinhas. Quer ir para algum lugar
onde possa discutir o assunto com outra pessoa e expressar o que sente: indignação,
repulsa, fascínio, tudo misturado, de modo que se tivesse de resumir a ópera a
expressão utilizada seria confusão, mais do que qualquer outra. E sobretudo que
possa expressar o que sente de alguma forma coerente ao fim do processo, se
possível, mesmo que seja confusão, mas que pelo menos possa ser confusão bem
expressa. Coerência é muito importante na vida de um adulto, ela sabe. Qualquer
problema pode ser compreendido e ganhar simpatia alheia, desde que expresso de
maneira ordenada. Coerência é tudo e uma confusão expressa de modo coerente é
respeitada e levada a sério em praticamente qualquer circunstância. Acontece que
um homem enjaulado é uma incoerência enorme demais, porque foge a qualquer
padrão reconhecível, incontornável demais para ser desprezada. Agora, Silvana
precisa de reforço, simplesmente não sabe onde buscá-lo.
— O que tem para ver? — ela começa a perder a razão, sem as balizas com as
quais está acostumada a contar. A voz afina ainda mais, quando sobe uma oitava
sem que ela perceba. — É um homem enjaulado e nós viemos para ver os outros
bichos. Não vai adiantar nada ficar aqui parados, vamos ver os outros bichos.
Socorro, ela quis dizer. Me tirem daqui até que eu possa processar direito esse
acontecimento. Colaborem comigo, crianças, por favor. Preciso que fiquem do meu
lado nessa.
— Mas nós queremos ver esse bicho aqui, tia Silvana — Zequinha dispara a
insistência e a provocação. Pois é disso que se trata, o homem que volta à condição
primordial de bicho entre bichos, passível de ser enjaulado. Esse bicho aqui, a
expressão que Zequinha acaba de pronunciar, define a condição de animalidade a
que o cidadão foi reduzido. Mesmo com livro na mão, mesmo sentado no conforto
de uma poltrona verde, num ambiente que lembra a varanda de uma casa de
campo. Ele agora é bicho na jaula, como os outros.
Também outro bicho curioso é ativado, esse que parece se sobressair em relação
ao enjaulado (subjugado), a disparar a câmera de maldades e que por dentro talvez
se compraz muito com o que vê. Falo de Zequinha, subitamente afoito, mais
curioso que os outros colegas, mais irrequieto.
Zequinha, no entanto, não pode ser tão rapidamente condenado por se
comprazer com o que vê. Ele é criança, ainda mistura parcelas de curiosidade com
perversão a meio caminho de ser contida pelo longo processo educacional

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capitaneado nesse momento por tia Silvana e, confrontado com a possibilidade de
reverter o sinal por um momento, mesmo que temporariamente, da formação que
vem recebendo, deseja aproveitar a oportunidade. Qualquer um faria a mesma
coisa no lugar, tendo a idade que ele tem. Zequinha precisa testar até onde os
limites impostos a ele e à turma serão realmente punidos quando transpostos, não
tem outro jeito de saber a não ser por este método de tentativa e erro. Ciência da
intuição.
Cabe a Silvana, com a insustentável batuta provisória de maestro, dar tom e
andamento da sinfonia que não está saindo hoje como o ensaio dava a entender.
Silvana sabe que se as crianças gostam de algo, é natural que ela se posicione
contrariamente, porque é simples, as crianças tendem a gostar do que é proibido,
do mal feito, do que sugere desobediência. E um homem enjaulado, francamente,
não tem alternativa, é um absurdo completo. Mesmo que a placa esteja dizendo,
como está, que aquele sujeito está ali de maneira voluntária, que não foi capturado,
como os outros animais todos foram.
O homem — este homem — não é cativo.
Ou é?
Não é todo homem, e sobretudo aqueles que se julgam mais livres, os mais
prisioneiros, no fim das contas? Formas de captura aparecem sob disfarce de
trabalho, por exemplo, ou várias outras modalidades de compromisso. Não há
homem livre, a palavra indica a disposição humana para utopias, uma esperança
renitente, criada com objetivo de gerar frustração, apontar limites e criar angústias
que não se resolvem.
Se pensar bem, um homem enjaulado continua a ser homem, pensando na
separação entre homens e bichos, embora sejamos todos animais. A racionalidade
— mesmo com o uso estúpido que normalmente se faz dela — é o que separa uns
de outros. A autoconsciência, talvez, seja outro fator de distinção, e distinção não
apenas como algo que separa uma coisa de outra, como algo que coloca uma coisa
numa posição considerada melhor do que a da outra parte: trata-se de certo
privilégio. Quantos animais pode-se dizer que sejam autoconscientes? Mas um
homem enjaulado também volta a se aproximar de todos eles, além do fato de ser
animal como os demais, ao estar na mesma condição (no caso, sem figura de
linguagem): enjaulado, impedido de circular livremente, de ir aonde quiser. Claro
que, de modo abstrato, simbólico, é possível se perguntar quem nessa vida é

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realmente livre, porque todos os atos humanos estão condicionados a certos
limitantes.
Se pensar bem.
Mas quem pensa bem?
Em meio ao burburinho geral dos alunos e certa resistência, Silvana por fim
convence Arlete a ajudá-la no pastoreio. Essa Arlete é uma banana, Silvana pensa,
tenho que tomar todas as decisões sozinha, porque se depender dela, a gente não
sai do lugar. O mundo não é fácil. É necessário tomar decisões o tempo todo e essas
decisões precisam estar calcadas em regras, condições, fundamentos, princípios.
Grande parte dos seres humanos, no entanto, delega a outros essas
responsabilidades, embora mesmo isso seja decisão: a de delegar, de entregar de
bandeja para alguns a atribuição de dar norte para a vida da coletividade e arcar
com as consequências das decisões tomadas, o que é sempre arriscado.
As crianças, no entanto, não se esquecem do assunto candente, e enquanto são
encaminhadas ao restante do passeio e demoram bem mais do que o previsto para
se interessar pelos outros animais, Magda finalmente consegue perceber que o
sinal da operadora de celular foi restabelecido e sobe a selfie para a rede social, a
mesma que daí a pouco terá o vídeo de Zequinha. Por ser mais completo, por
conter mais informações, pela dinâmica que intuitivamente Zequinha imprimiu ao
vídeo e pelo modo como articulou a própria rede social, ele irá viralizar bem mais
do que a foto de Magda e é com o vídeo que o assunto vai começar a escalada de
interesse na esfera pública. Os meninos continuam inquietos, conversam muito,
porque perceberam que tem alguma coisa nesse evento que merece atenção e ainda
precisa ser melhor discutida. O resto do passeio parece um fracasso diante daquela
nova informação, da qual foram arrancados subitamente, de maneira injusta. Os
alunos adorariam voltar àquela jaula inicial e permanecer diante dela mais um
pouco. Mas as solicitações foram ignoradas, há um roteiro do passeio a se cumprir,
horários a respeitar, trajetórias desenhadas. A novidade tem que ficar para trás,
infelizmente. Quem sabe numa outra ocasião. Quem sabe depois que entender
melhor o que está acontecendo.
Silvana está assustada. Não ter opinião a respeito do assunto, a não ser uma
reprovação genérica que não ajuda muito, faz com que ela queira sair dali o mais
rápido possível. Deseja voltar para a situação anterior: animais na gaiola, humanos
do lado de fora, a olhar a bicharada, como deve ser.

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O susto de Silvana, portanto, com a pergunta de Zequinha, quando finalmente
dá a hora de voltarem para o ônibus e acordar Antônio caso ele ainda durma, tem a
ver com isso que ela acredita que é o “como deve ser” do mundo.
— Tia — Zequinha pergunta —, aquele homem que a gente viu está na jaula
porque quer?
Ela suspira e olha para ele com uma tristeza que não tem fim. A gente faz tanta
coisa que não quer nessa vida, depois arruma justificativas que tentam apaziguar a
alma. Nem sempre com bons resultados. E às vezes as fronteiras se movem.
— Não sei dizer, Zequinha.
A placa dizia que não, mas vai saber.
Silvana não gosta de não ter respostas, de não saber encaixar as coisas nos
devidos lugares, porque cada coisa tem lugar neste mundo, disso ela está bastante
convencida. Mas quando um guri feito Zequinha faz um comentário como o que
ele fez em seguida, desestabiliza tudo e o mundo parece desmoronar em sequência,
como aqueles grandes blocos que se desgrudam dos icebergs, por conta do
aquecimento global. Há uma espécie de camada sobreposta de tristeza na paisagem
que desliza pelo lado de fora da janela do ônibus, uma mudança brusca na
espessura do ar. Ou talvez isso ocorra apenas com Silvana, do lado de fora a
verdade é que o sol continua a brilhar do mesmo jeito.
— Porque os animais foram obrigados, dá para a gente ver pela cara triste de
todos eles — Zequinha diz. Ele sabe que foram capturados, evidente, quem não
saberia?
Não acrescenta, mas poderia: “Parecido com essa sua aí, tia”. E se dispusesse de
mais tempo e não tivesse sido arrancado dali junto com os colegas, talvez Zequinha
abrangeria na impressão a respeito da tristeza dos animais também a do homem na
jaula que ele viu e filmou. Há uma tristeza indefinível, misturada com certa
perversidade dos visitantes que parecem dizer aos animais, vocês estão presos aí e
eu não, eu posso circular à vontade.
Silvana tem que fazer muita força durante todo o caminho de volta para segurar
as lágrimas. Uma tristeza a invadiu como se fosse água represada que de repente
encontra caminho para inundar. Tenta entender o que nela desencadeou a tristeza,
mas não está se acertando com qualquer das emoções hoje. Ver o homem na jaula,
solidarizar-se com sua solidão, ela pensa, enumerando potenciais respostas que não
parecem completas. Não quer desabar na frente das crianças, deixar que vejam o

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quanto está fragilizada. Fica olhando pela janela, tenta não pensar muito a respeito
do assunto. Mas é impossível não pensar, nesse e em todos os outros assuntos
relacionados, sua situação no mundo, o emprego, dar aulas, educar crianças, o
suposto futuro da nação, e tudo isso em meio a tantas discussões, debates,
tendências, circunstâncias diferentes que se apresentam a cada novo dia. Os
assuntos agora parecem todos se confundir num mesmo problema sem solução.
Como se posicionar, como ter firmeza quando o chão parece tremer e se
movimentar embaixo dos seus pés e tudo em volta está em constante ondulação,
questões para as quais Silvana não tem resposta. E de repente parece ter surgido
essa rebelião de perguntas todas a cercá-la de uma vez, como os microfones de uma
coletiva importante.
O ser humano é um animal que pensa muito. Não necessariamente bem, mas
muito.

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2 Basta uma fagulha

Jornalistas adoram anunciar que têm uma bomba, mas todo mundo sabe que
estão dizendo isso em sentido figurado e se trata apenas da insistência em usar
jargão profissional. Embora sejam estimulados a evitar metáforas no momento em
que escrevem, jornalistas não conseguem se conter quando o assunto que
descobriram é palpitante acima do normal e acabam usando o lugar-comum pelo
menos durante as conversas para convencer os chefes, quando julgam que a
ocasião pede e a pauta justifica. Tenho uma bomba, dizem, às vezes com os olhos
arregalados para simular uma micro explosão facial. Isso deve retirar do caminho
os excessos de resistência na hora de negociar com o editor, esse empata-pauta de
carteirinha e formação. Talvez por isso o vocabulário adote a escalada na
intensidade, visando combater a certeza das negativas. Repórteres são terroristas da
informação, à procura de bombas que explodam na vida social dos editores e dos
cidadãos que leem jornal, à procura de provocar todo tipo de impacto.
Normalidade é algo que está fora de cogitação. O que é normal não interessa
porque não é notícia.
Isabel Tâmara percebe que tem uma bomba quando vê menos de doze segundos
do vídeo de Zequinha que uma amiga recomendou fazendo comentários de
estarrecimento numa rede social. As mensagens começaram a chegar
sucessivamente, o celular parecia uma pequena usina de apitos. Quando estaciona,
não resiste a ver o que tanto apita. Aos cinquenta e nove segundos, quando o vídeo
chega ao fim, Isabel sabe que a bomba é atômica. Sente que 1) seu coração está
claramente descompassado, e 2) terá dificuldade de controlar essas batidas, que
transbordam para além do peito e do tecido que o recobre, tornando-se visíveis ao
editor quando ela estiver diante dele, na defesa da pauta. São sintomas de desajuste
emocional, ele poderá julgar (de maneira equivocada, bem entendido, ela sabe e
pensa, rebatendo por antecipação uma crítica que ele sequer formulou ainda).
Isabel vê o vídeo uma segunda vez, apenas porque está impressionada com as
imagens e começa a processar com o máximo possível de rapidez que consegue as
potenciais repercussões da matéria. Só quando o vídeo termina pela segunda vez

18
Isabel pega a bolsa, retira a chave da ignição e sai para o estacionamento onde
conseguiu uma vaga, de maneira que diria milagrosa.
Uma lupa que conseguisse enxergar as engrenagens em funcionamento na
mente de Isabel iria mostrar hiperatividade, uma fábrica com operários
enlouquecidos e o maquinário ligado a toda velocidade.
— Tenho uma bomba — é a primeira coisa que ela diz assim que para na frente
da mesa de Dirceu, o editor de cidades, a parte do jornal dedicada a cobrir assuntos
gerais que supostamente interessam ao leitor comum, desde que ele possa se
identificar (por afinidade ou estranhamento, o que vai ser grande parte deste caso)
com o material apurado.
Isabel é baixinha e agitada, parece movida por uma espécie de efeito
permanente de um estimulante como a cocaína a lhe impulsionar o corpo, embora
nunca tenha inalado essa droga. Alguns amigos supõem que ela ficaria com voz
aguda de personagem de desenho animado que fala acelerado, caso um dia isso
venha a acontecer. Há quem tema que ela morra nessa hipótese, “porque o coração
dela simplesmente não vai aguentar”. Seus cabelos castanhos e lisos estão presos
num rabo de cavalo que lhe dão aparência de pessoa determinada e com certo nível
elevado de organização, o que seria rapidamente desmentido por um passeio pela
sala de seu apartamento.
A agitação de Isabel indica o contrário do que acontece com Dirceu Serralho,
atarracado e muito calmo, na aparência, embora fique um pouco nervoso quando
alguém nota que as entradas no alto de sua testa estão vencendo bem mais fácil do
que ele gostaria a guerra contra os cabelos. Basta um olhar lançado pelo
interlocutor para o alto da cabeça para lhe gerar certa intranquilidade. Há um
princípio de gastrite em andamento no estômago, ainda não diagnosticada. Dirceu
parece meditar muito antes de formular resposta para qualquer que seja o desafio
cotidiano e talvez não seja o melhor editor do mundo, mas sabe o que fazer no dia a
dia, sem precisar entrar no nível de exagero e estresse que normalmente dominam
as redações e os profissionais pelo mundo afora, boa parte deles, sim, engajada na
competição pelo cargo de melhor editor ou melhor repórter ou melhor fotógrafo ou
melhor seja lá o que for, como se no mundo tudo o que importasse fosse ser o
melhor em alguma coisa. Além disso, é importante que se diga que Dirceu não está
nessa competição insana porque acha todas as competições algo ridículas, portanto
a ambição, seja qual for a quebrada, não se dirige a esse fim. Vencer o dia, a

19
semana, o mês, pagar as contas e sobreviver lhe parece de bom tamanho e o cargo
lhe veio sem qualquer disputa mais acirrada. Ele era um dos mais antigos na
editoria quando o ocupante anterior pediu as contas e se foi para outro emprego
mais interessante. Pareceu natural ao diretor de redação alçá-lo, mesmo que
temporariamente, ao cargo de editor, e por enquanto ele vem se mantendo. Dirceu
considera que está ótimo como lema e conduta ser mais ou menos honesto com o
que publica, embora tenha cada vez menos convicção quanto à aplicação do
conteúdo de honestidade no mundo. Num universo em que tudo são sensações e
emoções, a verdade abandonou a cena por uma porta discreta e lateral. É uma luta
inglória de se manter, Dirceu sabe disso, e ele nem é o mais combativo dos oficiais.
— Sério, mesmo, Bel? Bomba? Se for para tanto — Dirceu diz, erguendo olhos
bovinos para ver os de Isabel, a voz a transbordar sarcasmo e ceticismo como se
fosse melhor extravasar do que conter, modo de evitar acidentes de maior porte nas
partes internas do próprio corpo, a ardência no estômago. Veneno é sempre melhor
que saia do sistema, para não contaminar pelo lado de dentro e causar, sei lá, um
câncer? Melhor nem pensar nisso. Ele se recosta na cadeira, empurrando as costas
para trás, antes de repetir a expressão. — Se for para tanto, estou louco para ouvir.
— Melhor, você vai ver — ela rebate, e aperta a ponta do indicador contra a tela
do celular, antes de virá-lo com alguns dedos ágeis enquanto o segura na direção do
editor. Deixa o vídeo de Zequinha causar o efeito que havia provocado nela
minutos antes, no estacionamento.
Dirceu ergue a mão e arranca mais ou menos gentil, mais ou menos autoritário o
aparelho das mãos de Isabel, e o aproxima de si, para ouvir melhor. Um calor o
inunda à medida que avança. Dirceu sente que o rosto deve estar ficando vermelho,
precisa fazer esforço para não se denunciar e fazer o sangue refluir. Poucas coisas
conseguem alterar seu ritmo cardíaco, o vídeo de Zequinha deve estar ranqueado
entre os que alcançaram os dez melhores dos últimos tempos.
— Perfeito, realmente isso aqui é importante — é forçado a admitir, balançando
a cabeça ao mesmo tempo. A mão devolve o aparelho para Isabel, enquanto os
olhos estão em outro ponto e só voltam a se cruzar com os dela quando termina de
dizer: — Vai para o zoológico agora, conversa com o administrador, com os
tratadores dos animais, se possível, o melhor de tudo, conversa com esse cara na
jaula. O que ele está achando, como foi parar ali, essas coisas.

20
— Tudo bem, estou indo, mas antes preciso saber se você vai colocar mais
alguém nessa cobertura — Isabel se esforça para não ficar aos pulos diante do chefe
para convencê-lo da necessidade de mais gente na reportagem. — Pelo menos um
estagiário, chefe. Alguém que fale com esse menino que postou o vídeo, talvez com
a professora, com os outros coleguinhas dele, com a diretora do colégio, enquanto
eu vou ao zoológico. Dá para fazer daqui mesmo, nem precisa se deslocar.
Dirceu rumina a questão em algum ponto remoto do fundo do cérebro antes
mesmo que Isabel diga qualquer outra coisa. Sabe que vai ter que conversar com
Rômulo Cerqueira, o diretor de redação, para comunicá-lo dessa pauta que não
esteve na reunião matutina dos editores. E sabe que vai precisar de mais alguém
nessa cobertura, sim, isso mesmo, um estagiário. Ou estagiária, alguém que consiga
conversar com uma criança e retirar alguma informação que possa ser usada entre
aspas. Mulheres parecem, na opinião de Dirceu, mais sensíveis e preparadas para
essa tarefa. Mas Isabel ter mencionado a necessidade de mais gente da pauta é
como se retirasse dele a iniciativa. Droga, que menina acelerada. Por que ela não
pode simplesmente esperar que eu diga alguma coisa, que eu ofereça? Não, tem que
parecer que é iniciativa dela, tem que se mostrar, essa aí. Ao mesmo tempo, ele sabe
que um lado interno e de difícil admissão se sente atraído por ela, talvez por conta
dessa presença magnética, elétrica, que emana de Isabel e que cria um contraste
imediato com o modo dele de ser.
O mundo é briga imensa, disfarçada de trocas de acenos recíprocos, tapinhas
fingidos nas costas e, evidente, hipocrisia a toda prova. As pessoas fazem o que
podem, mas nessa selva competitiva há leões, hienas, elefantes, guepardos, tigres,
cobras, burros, sapos, calangos, a fauna ampla. Quem não come é comido, a lógica
da ferocidade, bem distribuída para atingir a todos.
— Pode deixar, já estava pensando nisso, se liga no que você tem que fazer e me
traz uma declaração importante até no máximo três da tarde — ele diz,
acabrunhado, a voz mais rouca. É um chefe, precisa agir como tal, às vezes, lembrar
às pessoas os devidos lugares, justo agora que todos são tão democráticos e
questionam tudo. Jornal ainda é hierarquia.
Não à toa esse negócio afunda a olhos vistos, falta sensibilidade para perceber as
novas direções dos ventos. Os jornais tornaram-se lentos como os donos. São navios
do mundo contemporâneo, naufragam com capitães e a orquestra tocando a toda
porque não existe amanhã.

21
Discretamente, Dirceu olha com atenção Isabel se afastar, não sem antes fazer
uma varredura com o radar dos olhos e ter certeza de que mais ninguém o observa.
Para ele, o desejo por Isabel é maldição. Está fora de forma, para começo de
conversa, o que faz com que dificilmente ela se interesse por ele. Acresce que fez
uma promessa há oito anos, quando se casou, de que seria fiel. Uma promessa
muito complicada de se manter, um fardo que parecia simples nos primeiros anos
da vida de casado, mas que se tornou uma cruz para ele, que é sujeito com pouco
talento para Cristo. Além disso, qualquer movimento na direção da repórter pode
ser qualificado como assédio e render processo, simples e fácil. Ele está numa
armadilha impossível de ser desarmada.
Dirceu encarrega Josiane Cunha, a estagiária algo deslumbrada mas bem-
disposta, dona de uma voz fina e infantilizada (talvez o fator intuitivo para Dirceu
lhe ter atribuído a tarefa), de fazer as entrevistas na escola e depois comunica ao
chefe a natureza da pauta. Ao mesmo tempo, Isabel está a caminho do zoológico,
tentando verificar como faz para falar com o administrador. Pela internet, ela
procura os telefones da assessoria de imprensa e liga.
Acontece, e isso Isabel não tem como saber no momento, que a assessoria
recebeu a incumbência de não deixar ninguém falar com o administrador neste dia,
embargo que deve se estender até o meio da semana, quando vai se perceber o
verdadeiro alcance da repercussão da novidade, a escala viral da notícia, a
repercussão social. A ideia é encaminhar o interesse da imprensa até o Palácio do
Buriti, porque é o próprio governador quem vai assumir a frente e ser o porta-voz
do assunto. Só muito depois é que o administrador do zoológico será autorizado a
falar.
Em outras palavras, o que acontece agora é que o assessor de imprensa enrola
Isabel, dizendo que o diretor, Carlos Pacheco, está indisponível, numa reunião
fechada até o fim do dia. Ela bufa, reclama, chia, ameaça, negocia, mas nada, o
sujeito é inflexível do outro lado da ligação e Isabel nem tem ainda um nome tão
conhecido a ponto de passar por cima dele e conseguir falar com o administrador.
Mas ela está realmente empenhada em mostrar serviço e aciona, por telefone, um
tio que trabalha no gabinete do governador. Ela percebeu que a pauta vai dar o que
falar e quer sair na frente. O tio de Isabel diz que vai ver o que pode fazer, mas não
fará muita coisa, não porque não queira ajudar a sobrinha, mas porque realmente o

22
assunto está embargado (e nem pode dizer a ela que há embargo, pelo menos não
por telefone. Isso levantaria suspeitas imediatamente, como não é difícil imaginar).
Portanto, quando o carro do jornal a deixa no zoológico, Isabel ainda não
conseguiu nada de relevante. Ela checa mais uma vez a quantidade de acessos ao
vídeo de Zequinha e não sabe traduzir ainda o que os números crescentes querem
dizer. Os jornais nacionais vão entrar hoje mesmo na história? Ou só amanhã,
quando lerem a sua matéria? A paranoia é o maior disparador dos leitos de
adrenalina por onde correm os rios vastos da angústia nos quais jornalistas nadam
todos os dias. Isabel, neste momento, está perto de se afogar.
Josiane conversa com Zequinha, por telefone. Com vários colegas do Zequinha.
E fala com Silvana, cujas aspas amanhã estarão incluídas na matéria. “Percebi logo
o absurdo que era a imagem daquele homem enjaulado e tratei de tirar os meninos
dali o mais rápido possível”, estará transcrito, um pouco melhorado em relação às
palavras empregadas na vida real, mas o sentido é esse. Silvana acha que fez o
melhor diante das circunstâncias e da situação. No entanto, educadores em outra
ocasião, mais tarde, vão dizer que a decisão foi equivocada, que constitui problema
a atitude da professora de tirar os alunos de cena, em vez de discutir com eles as
implicações do que viram naquele momento, ou seja, um homem na jaula no
zoológico e o que está em jogo na situação do ponto de vista ético e moral. Silvana
vai se arrepender bem mais de ter falado com a jornalista do que da atitude
considerada antipedagógica. De si para si ou ao conversar com Arlete, ela pode
sempre alegar que não tem preparo para discutir ética, sabe que tem algo errado
naquele homem enjaulado, mas não sabe dizer exatamente o quê. Afinal,
tecnicamente falando os presídios estão cheios de homens enjaulados. Qual a
diferença? É exibir a jaula e o homem dentro dela que é o problema? Se estiverem
enjaulados, mas longe dos olhos de visitantes, então tudo bem? O que exatamente
ela deveria discutir com os alunos, Silvana se pergunta quando se depara com as
críticas, é algo que não está devidamente esclarecido. Mas ela sabe: se não tivesse
feito declarações ao jornal não sofreria tantas críticas. E finca pé, fez o que achou
melhor, nas circunstâncias. Estar intimamente certo é uma maneira de estar certo.
Protegeu suas crias afastando-as do perigo. É o papel que lhe cabia, foi o papel que
desempenhou. As fisgadas que sentiu na consciência, quando estava no zoológico,
ou que voltou a sentir ao ler as críticas, um pouco mais fracas que as primeiras, é
verdade, diminuíram com o transcorrer dos dias até sumir de vez.

23
Isabel está numa discussão que parece interminável com Claudionor Pereira, o
assessor de imprensa do Zoológico de Brasília, que veio ao seu encontro e começou
a criar mil problemas.
— Pelo menos me deixa falar com ele — ela insiste, referindo-se ao sujeito na
jaula.
— Não, Isabel, não dá — Claudionor rebate. Ele parece enfarado, mas é o jeito
que tem de não demonstrar que está um pouco assustado com a rapidez da
resposta, que não lhe deu tempo de preparar-se melhor. — Ele não fala outra
língua. Ou você sabe letão?
Isabel fica visivelmente irritada com a postura de Claudionor, ou talvez com o
fato de que alguém nesse planeta não fala inglês, em última instância, talvez, com
sua incapacidade de falar letão. Mas quem fala letão neste mundo?
— Não, evidente que não falo letão — ela admite. — Mas você tem certeza de
que ele não fala inglês?
— Você pode tentar falar com ele. Mas ele não vai te responder, simples assim.
Estou falando de cadeira, porque tentei — ele mente. De maneira descarada,
porque conversou com o homem na jaula, antes de ele entrar nela, inclusive, e o
inglês do sujeito mostrou-se, se não impecável, suficiente para que se entendessem.
— E cadê alguém da embaixada? — insiste Isabel. — Vocês vão precisar, porque
isso aqui vai ficar cheio de jornais, revistas, televisão, querendo saber que história é
essa. Você está ligado que isso aqui vai causar o maio rebuliço, não está?
Claudionor começa a pensar que é assim mesmo, que ela tem razão, algo que ele
tinha imaginado, mas não com essa velocidade toda. E quando de fato acontecer,
vai ser uma prova duríssima para ele nos dias que se seguem. Dias de inferno à
frente, em que o sono será profundamente perturbado, ele que já não dorme bem
mesmo nos dias calmos.
— O Brasil não tem relações diplomáticas com a Letônia — ele explica.
— Não? — Isabel sente que ficou mais surpresa do que deveria.
— Não. Nas Américas, só existem embaixadas da Letônia nos Estados Unidos e
no Canadá.
Isabel reprime a vontade de soltar um puta que o pariu bem sonoro. Que merda
é essa?, ela gostaria de gritar na cara do cretino que teve a ideia de trazer de tão
longe um sujeito para ser animal no Brasil. Como será que foi feita a negociação
para esse sujeito despencar de um país europeu e vir parar num zoológico tropical?

24
Essa ela vai querer saber, seu leitor vai querer saber, e alguém vai ter que explicar.
Isabel insiste.
— Me diz pelo menos o nome dele.
— Isso é fácil — responde Claudionor, que não tem nem mesmo ideia de como
se pronuncia o nome daquele exemplar recém-adquirido. E tem dificuldade de
reter na memória aquele nome estranho e diferente. — Está aqui na placa, vem cá
para você ver.
De fato, o nome dele consta na placa do zoológico, Andrejs Poruks (e, entre
parênteses, Andrei Poruk, a transcrição ocidentalizada, sem declinação, porque se
trata de uma língua que tem terminações que afetam o modo como os nomes
próprios são grafados). É muito esquisito o modo como se grafam os nomes, sempre
com s no final, embora o prenome lembre o mais próximo Andrei, que é algo
remotamente reconhecível, pelo menos para quem lê romances russos, povoados
de Andreis aos montes. No caso de romances letões, bem, sem chance. Para começo
de conversa, será que existem romances letões na Letônia? Certamente que sim,
certamente que existem. aliás, diria que é o lugar para haver romances letões,
justamente a Letônia, por força da obviedade. Mas não há traduções de romances
deste país para outros, que eu saiba, nenhum grande campeão de vendas em
qualquer outra língua, o que deve ser apenas preconceito, porque é claro que existe
alguma coisa. Menos talvez para países de língua latina. O romance letão é um
segredo muito bem guardado para ser divulgado assim para países latinos de modo
geral, do mesmo jeito que evitaram relações diplomáticas mais formais. Quem
souber nomear um romancista da Letônia de qualquer que seja o período da
história concorre a um caminhão de prêmios.
Isabel contempla a placa verde com letras brancas. Depois ergue os olhos para o
tal Andrei Poruk que a placa indica. Ele está sentado na mesma posição que
Zequinha o filmou mais cedo, mergulhado na leitura de sabe-se lá que livro, Isabel
também não consegue enxergar a lombada ou as palavras na capa. A inclinação do
sol, no entanto, está diferente daquela da filmagem, e a poltrona parece ter sido
ligeiramente alterada de posição para retirar seu ocupante do sol.
— Sabe, Claudinho — Isabel diz para Claudionor, usando uma entonação entre
o simpático e o debochado —, você não está ajudando muito. Acho que vou ter de
voltar para a redação. Certeza que vou trabalhar melhor tentando alguma coisa por
lá, essa fonte aqui secou de vez, já percebi. Obrigada por nada.

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Ela se despede, parece que vai embora, mas na verdade é subterfúgio para ficar
sozinha e voltar para a área do zoológico, na tentativa de lidar diretamente com os
funcionários, sem o embarreiramento que um assessor de imprensa está sempre
disposto a fazer. É uma profissão ingrata, a de amortecedor humano, sofrendo
pressões de todos os lados. Mas Claudionor não parece insatisfeito, enquanto se
afasta dali ligeiramente distraído e não percebe que Isabel está indo para outro
lugar, em vez de ir embora como havia dito.
Ela finalmente consegue uma dica e fala com uma funcionária que lhe fornece
informações interessantes. Que por exemplo há uma insatisfação entre os
funcionários com o tratamento diferenciado que “algumas” pessoas recebem, uma
referência clara ao homem na jaula. “A administração tem dado pouca atenção às
nossas demandas”, a reportagem no dia seguinte de Isabel Tâmara vai trazer essa
frase assim, entre aspas, atribuída a “um tratador que prefere manter o anonimato”,
na verdade uma tratadora, Carmem Vasques. Mas só Isabel sabe que é ela, além da
própria, portanto esse anonimato está mais ou menos seguro. Alguma coisa do véu
das relações trabalhistas tempestuosas acaba por ser retirado, com essa matéria de
Isabel.
A situação no zoológico anda tão difícil que está prestes a desencadear uma
greve, a anônima Carmem diz ainda à reportagem. Sobretudo se a administração
“continuar ignorando nossas reivindicações, além de manter uma postura
francamente repressiva”, o que parece ser a disposição administrativa, ignorar o
quanto puder e manter um autoritarismo velado. Carlos Pacheco vai forçar
Claudionor a escrever uma carta à redação desmentindo tudo, dizendo que a
administração tem negociado com os representantes dos trabalhadores do
zoológico e a carta até será publicada, mas na seção de cartas dos leitores e no dia
seguinte à primeira e mais impactante reportagem, de Isabel Tâmara, com um
título gritante na primeira página: Somos todos animais, em tipologia grande, uma
palavra em cada linha, imagem de impacto acompanhada de foto contrastante,
porque mostra o sujeito sentado na poltrona com livro na mão. Parece a varanda de
alguém. No subtítulo, a explicação um pouco mais detalhada: Zoo exibe homem em
jaula. Aí o sentido da foto parece se alterar completamente, o que foi a intenção de
Dirceu Serralho ao fazer a manchete e o subtítulo num contraste e
complementação que se forma ao lado da imagem.

26
Com depoimentos de Zequinha, que filmou o homem e cujo vídeo está
repercutindo muito, de uma funcionária insatisfeita com a administração, a
anônima Carmem; de Silvana, a professora, não muito feliz nas declarações; e de
um professor de bioética da Universidade de Brasília, dizendo que essa situação é
de uma gravidade sem precedentes na história do país, obviamente sem considerar
a situação de presos em penitenciárias na extensão de todo o território nacional,
que é de fazer engolir em seco qualquer um que se diz preocupado com bioética.
Acontece que os presos não estão à vista de crianças de escolas e interessados em
ver apenas os animais da natureza selvagem. Bem, presidiários também são parte
de certa natureza selvagem, alguém poderia contrapor. Mas as camadas de pudor,
de prudência, enfim, sutilezas que não vem ao caso agora discutir. Os muros da
prisão impedem fugas e também a sociedade de ver o que se passa lá dentro. É essa
dupla face do muro a barreira protetora que impede a bioética de adentrar a
questão.
A falta de uma declaração oficial da administração do zoológico foi sentida, bem
como a falta de declaração, qualquer que tivesse sido, do homem na jaula, cujo
nome aparece no jornal, Andrei Poruk, ao lado de uma descrição relativamente
meticulosa de como ele se veste, como se senta, como parece dedicado à leitura,
embora o título do livro não seja revelado. Isabel foi forçada a admitir que não
falou com ele e deixou claro a ausência de declaração do mais novo integrante do
zoológico. “O senhor Poruk, importado da Letônia, não fala inglês ou qualquer
outra língua mais próxima, tornando praticamente impossível se comunicar com
ele na ausência de alguém que entenda letão”, diz ainda a reportagem, atribuindo a
responsabilidade ao zoológico de maneira velada, por não ter providenciado
tradutor capaz de dar voz a Poruk.
A intenção de Isabel, ao usar a expressão “importado”, era ter sido irônica com o
tratamento que está sendo conferido ao novo espécime do zoológico. Mas numa
reportagem como essa e numa época em que o politicamente correto parece ter
colocado uma película severa sobre tudo e todos, a possibilidade de ser mal
compreendida é enorme.
A matéria tem ainda um quadro ao fim, no qual se explica um pouco o processo
de formação da Letônia, país báltico que foi assimilado várias vezes, a mais recente
pela União Soviética, da qual se tornou independente em 1991. É um país com um
enorme acervo de canções folclóricas, tanto que mantém um festival realizado a

27
cada cinco anos desde 1873, e que é um dos mais importantes do mundo, o
Latvian Vispārējie latviešu Dziesmu un Deju svētki, conhecido, obviamente, pelo nome
abreviado em inglês, supostamente compreensível por potenciais turistas do
mundo todo, Latvian Song and Dance Festival. Ou ainda, em português, Festival de
Música e Dança da Letônia.
É um país com fronteira ao norte com a Estônia, ao sul com a Lituânia (os três
formam os países bálticos, porque têm a oeste o mar que leva esse nome no
singular), a leste com a Rússia e a sudeste com a Bielorrússia. A capital da Letônia,
Riga, mistura prédios medievais com outros em estilo art nouveau, e o centro
histórico é considerado patrimônio mundial pela Unesco. Esse tipo de informação
consta no rodapé da matéria, bem como outras mais prosaicas (o filósofo Isaiah
Berlin, por exemplo, nasceu em Riga, em 1909, embora seja considerado russo,
porque o país fazia parte do império russo à época e a família mudou-se para
Petrogrado quando Berlin tinha seis anos de idade; ou o fato de que no país a
conexão de internet é muito veloz e praticamente gratuita para todos; ou que existe
no país uma alta taxa de incidência de ruivos). Mas em lugar algum alguém
conseguiu explicar: o que faz um letão entre os outros animais do zoológico? O que
ele pensa e acha dessa situação? Como foi parar ali? Para que fins? Com que
objetivos? O que está acontecendo com o mundo?
Os leitores sabem bem que não é um jornal que vai dar conta de explicar o que
está acontecendo com o mundo.

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3 Uma boa dose de ilusionismo

O jornal parece ter aceitado muito mal a ideia de deixar um homem em


exposição na jaula do zoológico. O governador percebe o ranço assim que bate os
olhos na manchete e no espaço de destaque que o assunto ocupa na primeira
página, ao pegar o exemplar sobre a mesa no café da manhã de quarta-feira e correr
os olhos pela matéria, enquanto a outra mão leva a xícara à boca para tomar goles
rápidos de café preto e forte, com muito açúcar, alternando em seguida com uma
fatia barulhenta e crocante de torrada, que ele mastiga com o vigor das pessoas
determinadas a saciar os próprios apetites antes de qualquer coisa. Ele agora sabe
que vai ter que tirar o embargo sobre o assunto, porque os jornais nacionais devem
estar putos de não terem saído na frente com o assunto e tentarão compensar
pesando a mão um pouco, pelo menos num primeiro momento. Ele faz as contas
mentais muito rapidamente e decide que tem que concordar com a estratégia e
chegou o momento de tomar iniciativas, conforme o conselho do marqueteiro José
Carlos Fernandes. O sujeito é cheio de ideias agressivas e ousadas e, do modo como
defendeu os argumentos na reunião da semana passada, a alavancagem da
campanha de Adolfo Magalhães Passos é questão de tempo e controle. E Adolfo
está se sentindo no controle de ambos.
O governador quer conseguir um feito inédito, transformar-se no primeiro
governador do Distrito Federal a se eleger presidente. A fórmula de Joca Fernandes
para isso é peculiar e talvez ousada, mas justamente por isso pode ser que dê certo:
Adolfo Magalhães Passos deve se desvencilhar da imagem de corrupção associada
com os governadores do passado da capital, uma cadeia terrível de canalhas que se
sucederam com incrível naturalidade e desfaçatez, ao mesmo tempo que
demonstra coragem de enfrentar certos assuntos espinhosos, como essa iniciativa
vai se revelar: a de defender a manutenção de um homem na jaula do zoológico,
contra a grande maioria das opiniões gerais. Quando esse assunto dominar a pauta,
por ser polêmico e ter o que ele chama de centro vórtico de atração (o adjetivo vórtico
não existe, mas eis a magnificência de um bom marqueteiro: ser também um
formulador de neologismos dentro de bordões que mais cedo ou mais tarde
acabam entrando para o léxico), as pessoas se esquecerão de que ele não é

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exatamente sujeito alheio à corrupção, algo na linha de não deixar a mão direita ver
o que a esquerda anda fazendo. No Brasil, e não se sabe ainda por quanto tempo
mais, política e corrupção estão intimamente relacionadas. Uma não se faz sem a
outra, ou, de forma mais radical: a única política possível passa não por
interromper, mas pelo exercício da corrupção.
Outros assuntos da pauta do jornal incluíam a falta de controle de preços pelo
governo, com o subsequente aumento do dólar e da inflação. Adolfo contém um
bocejo matinal quando se levanta da mesa para se dirigir à esteira de exercícios.
Você pisca o olho e a sua vida passou, Adolfo medita, enquanto troca de roupa para
começar os exercícios. Você pisca de novo e a história vira a página, te deixando
para trás, no passado. É preciso ser suficientemente ousado para merecer fazer
parte da galeria de representantes da humanidade que merece atenção. Adolfo está
preocupado em dar jeito no que supõe que seja um problema crucial para o Brasil,
a violência urbana. Muita gente vê a questão com distanciamento, porque não se
sente afetado, ou vê com o olho distorcido da mídia, que enfoca mal e porcamente a
questão, por preguiça mental e displicência contumaz. Os teóricos acomodados,
outra classe de boçais, insistem na tecla da educação, quando todo mundo sabe que
o Brasil é um país que não consegue pensar ou agir no longo prazo, simplesmente
impossível. É por isso que o plano de Adolfo envolve uma série de medidas de
médio prazo, para ser factível e também — por que não? É legítimo pensar assim —
porque permite pensar num projeto de se manter no poder por prazo razoável.
Adolfo tem a ambição de se perpetuar por meio de sucessivos pactos que
permitirão a continuidade do projeto, todos eles previamente pensados para
ocorrer em prazos estratégicos. No fim das contas, o país será outro e ele manterá
seu nome se perpetuando a cada virada de página da história. Ter um projeto e
antecipar potenciais resultados insufla em Adolfo uma vontade ardente de se
exercitar e em seguida, depois de tomar uma ducha, ir para o trabalho, energizado.
— Vai ser muito importante controlar o início da narrativa — disse Joca na sala
em que só a cúpula dos secretários esteve presente, para ouvir as diretrizes gerais
do que será a campanha. Ele olha diretamente dentro dos olhos de Adolfo, como se
não houvesse mais ninguém na sala e ele fosse um encantador de serpentes que
não pode se descuidar um segundo sequer do objeto do seu interesse. Há algo de
perturbadoramente bizarro no jeito do marqueteiro, algo de maluco, mas que até
agora funcionou muito bem para ele e sua equipe. Há também algo de elétrico e

30
animado. Como se ele fosse um bobo da corte dotado de capacidade de fazer os
outros rirem (o controle do riso alheio é um feito e tanto). — Uma controvérsia e
um mal-estar inicial vão acontecer, com gente reclamando muito de direitos
humanos e essa coisa toda, por isso é muito importante que você não hesite nem
fraqueje, seja direto e defenda de maneira ao mesmo tempo tranquila e
pausadamente os argumentos para manter esse sujeito na jaula do zoológico.
Mesmo se houver manifestação pública contrária, porque é certeza que vai haver.
Para você, vai ser questão de manter a calma em meio à tormenta e é bom se
preparar para isso. Sobretudo vai ser importante saber separar os campos, quando
a imprensa começar a aproximar o assunto do homem na jaula do zoológico com a
situação prisional do país. É só depois de fazer a separação clara dos campos que
você vai poder apresentar o projeto de reforma prisional.
Em outra reunião posterior, sem os secretários, Joca explica a Adolfo variações
no cenário. Numa delas, ele joga Carlos Pacheco, o administrador do zoológico,
para as feras (ele não se desculpa pela obviedade da metáfora, desculpar-se por
piadas ruins ou metáforas mal-empregadas não faz parte do vocabulário de
qualquer marqueteiro profissional) e o abandona para que ele se queime sozinho.
Mas isso só em último caso, se falharem todas as outras variações, bem mais
afáveis. Até porque Adolfo diz que não gosta de jogar aliados no fosso, passa
impressão ruim para todos os demais subordinados, que podem se imaginar os
próximos da fila e comecem um movimento autônomo de debandada ou, pior, de
revolta. Política é cimento e cola, não demolição e porrete. Mas, às vezes, contrapõe
Joca, às vezes é preciso virar algumas mesas, argumenta, sem resistir a mais um
lugar-comum, é preciso quebrar os ovos se você quer comer um omelete. Adolfo se
incomoda com o erro de concordância, omelete é feminino, uma omelete, mas
deixa passar sem tocar no assunto. Trivial demais para merecer correção, pensa, e
também lhe dá prazer pensar que seu marqueteiro erra e que vai contribuir para
que continue.
O que Joca está tentando fazer é uma nova modalidade de produção política, ele
precisa explicar em detalhes para convencer Adolfo, que se mostra mais aberto a
novas ideias por conta de um intenso trabalho de prospecção de políticos feita em
anos recentes pelos procuradores dos ministérios públicos, enviando
sistematicamente — para alguns até sistematicamente demais — mão de obra
qualificada para abrilhantar presídios nacionais.

31
São duas personalidades protuberantes, pouco afeitas a ceder terreno no
território das ideias e realizações, e portanto o trabalho de Joca é complexo: aplicar
o princípio de reposicionamento de marca para um ser humano em constante
afirmação dos mesmos valores: um político precisa passar a imagem de solidez,
mesmo se não é isso que o caracteriza. Além disso, um ser humano que, por mais
personalidade que tenha e manifeste, depende muito de um tipo coletivo de
trabalho e uma capacidade de gerenciamento dessa gente a ele atrelada. Daí a
resistência de Adolfo com a ideia de lançar um dos seus aliados na fogueira, mesmo
que seja um dos mais rebeldes e que portanto mereça não apenas ser punido pela
rebeldia, mas servir de exemplo para evitar o futuro dos motins potenciais.
— É um castelo de cartas, uma fileira de peças de dominó — diz Adolfo,
referindo-se ao trabalho em equipe. — Você tira uma carta da base ou empurra
uma peça e o conjunto todo desaba.
Joca, no entanto, tem a mente de um estrategista de médio e longo prazo, capaz
de antecipar passos e se posicionar sempre num ponto em que não perde de vista o
cenário mais amplo e as vantagens que pode retirar de toda e qualquer situação. De
modo que lhe explica como fazer uma coisa sem disparar uma cadeia de
problemas. É um marqueteiro muito convincente, cujos argumentos parecem
amparados em bons e anteriores exemplos, quando necessário. Quando necessário
significa que, às vezes, ao tomar caminhos novos e inesperados, não há exemplos
anteriores a comprovar as palavras empregadas. Um instinto, um faro específico, a
ousadia e a adrenalina, nesse caso, precisam dar o norte. Para convencer Adolfo
Magalhães Passos, por exemplo, a certa altura Joca usa o argumento da coragem, da
ousadia. Num mundo em que o politicamente correto começa a ditar demais as
regras e a mudar a cultura do entorno, todo homem público vira alvo potencial de
críticas e a maioria começa a ceder, tentando se incorporar à nova ordem para não
ser deixado para trás no avanço da história. Mas é um erro, é preciso assumir a
frente e ditar novos rumos, ter propostas ousadas, é preciso controlar o ritmo da
dança e logo as pessoas começam a gostar, porque está na natureza mais profunda
do ser humano a vocação para seguir o líder da matilha, em vez de abrir sozinho
novos caminhos, e Joca ergue uma sobrancelha, destacando-a da outra, para
enfatizar o argumento, tanto que repete algumas palavras, está na natureza mais
profunda do ser humano necessitar de alguém que lhe diga para onde ir. Essa
conversa se dá no arremate da reunião solo com Adolfo, e é nela que, depois de

32
apresentar os argumentos básicos do raciocínio (o que justifica, ele supõe, o preço
caro que cobra pelos serviços: “não vendo estratégias, vendo conceitos”, diz,
orgulhoso com o próprio bordão, que repete sempre que a ocasião se apresenta),
passa a apresentar variações de cenário possíveis e como Adolfo deve se comportar
em cada situação diferente.
— Não se preocupe — Joca diz, ao fim —, se você não se lembrar de cada
cenário e da decisão equivalente em cada etapa desse processo. É para isso que vou
estar a seu lado, eu sou seu HD externo de campanha.
Embora no fundo Joca saiba que Adolfo vai se lembrar, porque um dos
componentes básicos para um homem público que almeja o topo da cadeia
alimentar do poder é ser dotado de memória prodigiosa, talento que ele viu o
governador demonstrar em algumas ocasiões recentes.
— Você não pode se esquecer dessa máxima — Joca arremata o assunto por fim,
como se cunhar uma frase de mais impacto desse garantia adicional e
movimentando novamente as sobrancelhas para emoldurar melhor as palavras —,
o Brasil é o país em que uma coisa muito errada pode dar muito certo.
Adolfo levanta-se da mesa do café da manhã com essa frase de Joca lhe dando
voltas na cabeça. A caminho do Palácio do Buriti liga para confirmar com o assessor
de imprensa, Hugo Castro, a coletiva das dez da manhã.
— O que que você achou da manchete, do destaque que o assunto recebeu? —
Adolfo pergunta, embora saiba que o assessor é um tanto resistente à ideia,
sobretudo porque sente seu cargo algo ameaçado com a presença do marqueteiro
cheio de ousadias e reviravoltas, embora Adolfo, ao anunciar que tinha contratado
Joca, fez questão de tranquilizar Hugo quanto à manutenção do emprego. Hugo, no
entanto, sabe que esse tipo de garantia pode mudar junto com a direção do vento,
de um minuto ao outro. E as chances de Joca se transformar num ministro das
Comunicações são bem maiores do que as dele, Hugo. A não ser que a Joca, num
eventual governo de Adolfo, vire o ministro da Casa Civil, aí, sim, ele, Hugo, tem
chance.
— Continuo a achar que isso pode virar um tiro no pé, sobretudo se começarem
a fazer passeatas e mobilizações — Hugo responde, do jeito ríspido que sua voz
eternamente rouca sempre parece soar. Na sua cabeça, não é caso de hipótese, se,
como falou, mas de certeza, quando. Quando começarem passeatas. Quando sair do
controle. Quando repercutir tão mal que terá reflexos nos números de campanha,

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puxando o candidato para baixo. Em outubro, Adolfo Magalhães Passos não vai
conseguir chegar ao segundo turno, desse jeito. É questão de lógica, embora não
seja lógica que presida resultados de eleição, mas uma combinação mortal de
múltiplos fatores. Entre eles, ao que se sabe, não constam modelos estapafúrdios
como esse que Adolfo defende. A incerteza de Hugo Castro quanto ao futuro do seu
emprego será ainda mais abalada quando descobrir, daqui a pouco durante a
entrevista coletiva, que há uma agenda de campanha por trás do barulho aparente
provocado pela presença de um homem enjaulado à vista de todo mundo no
zoológico de Brasília. Saber que informações estão sendo mantidas em segredo
inclusive para ele, que deveria saber tudo, é sinal de que seu trabalho pode ser
dispensado a qualquer momento. Mas Hugo é um sujeito bem-relacionado, não vai
passar dois dias sem emprego novo, se for o caso. Mesmo assim, ele receia.
— Governador, o que o senhor tem a dizer a respeito da inauguração de uma
jaula com um homem no zoológico? Como o senhor vê essa iniciativa? O senhor
tinha sido comunicado desse fato previamente? — são as primeiras salvas de
perguntas feitas para Adolfo Magalhães Passos no início da coletiva, depois de um
breve pronunciamento em que não disse muita coisa interessante. Fez apenas uma
abertura protocolar, justamente para permitir que as perguntas comecem. O
repórter que faz a primeira tem um ar petulante de quem não vai se contentar com
respostas indiretas ou cheias de elipses.
Adolfo olha diretamente para ele, como se quisesse atravessá-lo com uma bala
do olhar. É um olhar específico de efeito fatal, quase sempre, capaz de intimidar
qualquer um. Há um sorriso no seu rosto que em vez de gerar alívio, torna o olhar
ainda mais intimidante.
— Olha — Adolfo começa —, vou dizer uma coisa que vai surpreender a todos
vocês. Eu não sou contra.
Um silêncio súbito e cheio de expectativas se instala na horda de jornalistas por
um segundo, seguido por um intenso burburinho que aguarda aonde essa
declaração vai levar em seguida. O sorriso de Adolfo não se desfaz enquanto ele
continua a argumentar.
— Pelo que soube, o sujeito foi contratado voluntariamente entre vários
candidatos que se apresentaram para o trabalho. Pois se trata disso, minha gente,
vocês por acaso pararam para pensar? Se trata de um contrato de trabalho entre a
administração do zoológico e aquele sujeito. O que há de problemático nisso? Sim,

34
há questões controversas, como a exibição de um humano como se fosse um animal
— ele ergue os dedos indicador e médio das duas mãos e os agita no ar, para formar
aspas —, atrás das grades de uma prisão aparente, diante dos olhos de quem quer
que visite o zoológico da capital. Mas quando se pensa que é um contrato de
trabalho, quero ver como as instituições de defesa dos animais, como o WWF, vão
se posicionar. Não estão sendo infringidas quaisquer convenções trabalhistas, o
sujeito recebe décimo-terceiro e terá direito a férias como qualquer outro
trabalhador do zoológico. E suponho, de verdade, que isso deve aumentar o fluxo
turístico para Brasília, não por motivos cívicos, dessa vez, mas dentro de uma nova
modalidade de turismo, o que pode ser interessante do ponto de vista empresarial,
se a rede hoteleira, por exemplo, souber capitalizar o assunto.
Aqui Adolfo Magalhães Passos faz uma pausa, porque começou a encadear uma
ciranda de assuntos e sabe que é necessário deixar que os jornalistas, sempre tão
lentos, absorvam aos poucos os novos temas, a mudança gradual, a volta completa
no parafuso do que está em pauta. Então o candidato prossegue.
— Além disso, e o mais importante, esse homem na jaula, sozinho, aponta para
uma questão muito mais grave da qual nós estamos conscientes, ou pelo menos
deveríamos todos estar, que é a questão da urgente reforma do sistema prisional
brasileiro. Esse assunto nunca entrou antes como tema de campanha eleitoral,
embora ele seja um problema enorme e recorrente dentro da estrutura da
sociedade brasileira, e talvez justamente por causa disso os governantes do passado
decidiram que iriam empurrar o problema para a frente, ele é espinhoso demais
para estar na agenda das campanhas. Mas chegamos a um ponto em que não é mais
possível ignorar este assunto, de tão urgente e prioritário ele se tornou e, ou bem
passamos a debater o problema como sociedade e pensamos em soluções, ou
vamos enveredar por um caminho sem retorno e de agravamento do problema.
Além do quê, é extremamente importante começar a pensar no componente
explosivo que pode ser o incremento de gente da política que passa a conviver com
presos comuns que fazem parte de facções criminosas e organizadas, se isso não for
considerado, eu sou capaz de lhes dizer que é a própria manutenção da democracia
quem está sob forte ameaça. Nossa resposta até o momento tem sido ineficiência,
caos e ideias disparatadas, e isso está na hora de acabar. Garanto a vocês que eu sou
o único candidato nas próximas eleições que tem um plano de reforma do sistema

35
prisional brasileiro. Um plano sério, consistente, aplicável, um plano cuja cópia eu
vou pedir aos meus assistentes que distribua a partir de agora para vocês.
Num gesto que parece mais ensaiado do que deveria, quatro funcionários saem
das laterais do auditório e começam a distribuir entre os jornalistas uma espécie de
apostila, com o texto do Plano Nacional de Reforma do Sistema Prisional. Joca
Ferreira havia dito que a sigla a ser reforçada o tempo todo junto à mídia era RSP,
ênfase na reforma, mas em todos os materiais distribuídos deveria constar o nome
por extenso, com a expressão plano nacional sempre anotada. As pessoas deveriam
repetir tantas vezes a sigla RSP que ela iria entrar para o vocabulário do país, Joca
disse. As pessoas devem passar a discutir a RSP do mesmo jeito que falam com
tranquilidade, por exemplo, do STF e todo mundo sabe a que essa sigla se refere.
— Este plano que as senhoras e os senhores estão recebendo tem uma proposta
ampla de tratar com a devida profundidade uma questão que se tornou
incontornável no seio da sociedade brasileira — Adolfo Magalhães Passos
continua, o candidato em plena campanha, que toma iniciativas, controla
narrativas, dita ritmo. — Ou o Brasil revê com seriedade o seu sistema prisional
como um todo, ou vamos daqui a pouco nos tornar reféns e prisioneiros dentro de
nossas próprias casas de uma situação que beira a completa inversão de valores.
Como aconteceu com o Rio de Janeiro, imediatamente antes das eleições passadas,
as senhoras e os senhores devem se lembrar, quando pareceu necessário ao
governo uma intervenção do Exército, sem resultados efetivos. Está na hora de os
governantes voltarem a tomar as rédeas das principais decisões, por mais difíceis
que sejam, assumindo novamente a responsabilidade de dar um norte para esse
país que está tão carente de líderes sem medo de enfrentar crises mais graves. O
que o país precisa agora é de coragem.
Neste ponto ele faz uma pausa, para se certificar de que a frase vai ser anotada
para depois ser reproduzida nos textos e comentários publicados nos jornais e
revistas. Então retoma o que estava dizendo.
— Se vocês lerem com cuidado esse material que está sendo distribuído, vão
notar que o plano nacional de reforma do sistema prisional, a RSP, como estamos
chamando na intimidade, inclui um modelo de reforma que pode ser replicado no
plano político, com o enfrentamento do fim das barganhas dos partidos políticos
por cargos, tratando a coisa pública como balcão de negócios, bem como, por outro
lado, uma ampla reforma educacional de base, que fará o Brasil entrar num novo

36
ordenamento de como tratar as grandes questões nacionais. Os antigos teóricos
sempre estiveram corretos, sem educação este país não avança. Pois está na hora de
botar em prática e começar uma mudança estrutural profunda.
Ele não se importa que alguns vão dizer, ou seja, que Adolfo Magalhães Passos
está começando a adotar um discurso perigosamente messiânico. Isso também faz
parte dos cálculos de Joca Ferreira. Ele insistiu para Adolfo ficar longe dos números
e gráficos que constam no relatório e enfatizar palavras-chave que vão ajudar os
jornalistas a elaborar os textos. As declarações do governador virão entre aspas, os
números do relatório que levarão consigo de volta para as respectivas redações vão
emoldurar o restante e o conjunto vai se fechar de forma redonda e completa.
É preciso sair da caixinha, disse Joca. Toda campanha eleitoral tem a mesma
pauta há muitas e muitas décadas, sem alterações substanciais. É justamente uma
alteração substancial que vai fazer a diferença, ele explicou, como se fosse um
professor que abre a cartilha e começa a tarefa ao lado de alunos que não parecem
muito ansiosos em começar a aprender a lição, mas que estão curiosos de toda
forma com a novidade apresentada por aquele recém-chegado à escola.
Com sair da caixinha ele queria dizer que estava na hora de apresentar novos
temas para serem debatidos pelos candidatos um pouco além dos habituais,
economia e política, o que talvez desestabilize logo de cara meia dúzia menos
preparada e deixa os principais concorrentes loucos para correr atrás do prejuízo,
retirando soluções improvisadas de dentro da cartola, que vão soar amadoras e mal
resolvidas, quando não amalucadas, por motivo muito simples: ninguém sabia o
que pensar a respeito desse assunto, nem como começar a resolver com a devida
seriedade o problema. Por isso, para sair na dianteira com um projeto inovador e
para deixar a concorrência atordoada logo no início da campanha, Joca fez com
antecedência o dever de casa e montou uma equipe de especialistas em direito,
ciência política, sociologia, educação, que se reuniu durante meses, discutiu,
quebrou cabeças, debateu ângulos e possibilidades e, por fim, apresentou um plano
realmente inovador, na aparência, e tão amplo na abrangência quanto articulado
com vários setores da sociedade, escolas, empresas, organizações não
governamentais.
Só não combinou com os russos, para usar um gracejo futebolístico antigo, ou
seja, com o próprio governo (mas essa lacuna faz sentido: o plano só pode ser
implementado se a candidatura de Adolfo o confirmar no cargo). Um plano, insiste

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alguém e Joca gosta a ponto de incorporar para si no jargão, sistêmico. Se isso, então
aquilo, as partes todas operam para o funcionamento do conjunto, e são passíveis
de continuar operacionais mesmo quando um dos pontos desanda, embora o todo
sempre se beneficiará mais se cada uma das partes andar bem com as próprias
pernas. E se articulação prévia não foi feita com as demais partes envolvidas no
processo, o plano de Joca é sugerir a Adolfo Passos que lance o plano publicamente
para, com a repercussão dada ao assunto pela mídia, começar esse difícil processo
de costurar parcerias. É aí a prova dos nove, convencer iniciativas e pessoas o
suficiente para se engajarem no projeto, que tem faces tão contraditórias, porque
parte de um problema social grave para tentar resolver todo um quadro complexo
de situações: a educacional, a de acesso a empregos, a de reconfiguração social, a
econômica, a administrativa e burocrática. Esse projeto se ramifica em todas as
áreas. Trata-se de um plano de recuperação do país, de alavancagem, que pretende
criar uma onda capaz de arrastar — mesmo que a contragosto, quando se olha para
os extratos conservadores de vários matizes que compõem o Congresso Nacional —
ou afogar (mas isso nem Joca menciona com todas as letras), mesmo os mais
resistentes.
Não se trata apenas de diminuir a violência social ou controlá-la, mas de
efetivamente diminuir o contingente de pessoas encarceradas. O sistema envolve a
reciclagem de possibilidades a partir da constatação de um especialista que
vislumbra três propostas: o monopólio de uma facção e relativa paz, como em São
Paulo; várias facções em guerra, como no Rio; ou múltiplas facções em paz, como já
ocorreu no Ceará. A aposta, a partir da experiência de El Salvador, que negociou
com as marras, as facções de lá, garantiu uma queda pela metade nos homicídios,
de um mês para outro, mas só funcionou por seis meses. A diferença é que em El
Salvador o governo negociou com os líderes das facções. Eles, que tiravam parte
dos recursos de extorsão, uma vez que o mercado de drogas é pequeno, aceitaram
abrir mão da extorsão, num primeiro momento. Mas como o Estado não teve como
oferecer em contrapartida emprego e renda, a violência voltou a crescer e tudo
voltou a ser como antes. O plano de Adolfo prevê evitar que isso ocorra e quer, no
fim dos quatro anos de mandato, diminuir a taxa de homicídios em trinta por cento.
Se der certo o conjunto de ações, ele já se vê candidato a reeleição.
Adolfo deve se preparar para modalidades perversas de crítica, Joca antecipou,
que vão inclusive mencionar esse problema de convencimento em escala fazendo

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comparações com o projeto do seu futuro governo com o daquele homônimo
alemão que provocou um grande estrago não apenas no próprio país, mas em toda
a Europa.
— Você se chamar Adolfo não facilita as coisas para nós, mas tudo bem, a gente
vai dar um jeito nisso também — diz Joca, num dos encontros prévios, referindo-se
a dar um jeito nas críticas, não numa eventual mudança de nome próprio, o que
seria descabido.
Os jornalistas saem da coletiva atordoados. Vieram até ali para confrontar o
governador em relação a um dado específico e estranho na vida do comportamento
em sociedade, a inauguração da jaula com um homem no zoológico de Brasília, e
saem do Palácio do Buriti com um plano de governo atrelado ao lançamento de
uma campanha para a presidência. Plano de governo que tem aparência de ser
diferente dos demais e que precisará de algum tempo para ser deglutido, digerido,
compreendido, antes de ser, se for o caso — sempre é —, criticado.
Os jornais nacionais, por exemplo, patinam um pouco e ficam, pelo menos no
dia seguinte, uma quarta-feira, ainda no tema anterior, que é o homem na jaula. É
tão gritante, tão acintoso, que não tem como deixar aquilo apenas como pano de
fundo para uma discussão a respeito do futuro do país e de qual modelo de
governante será adotado nas próximas eleições.
“Brasília não para de surpreender”, anotou um comentarista da Folha de S.Paulo.
“Curiosamente, desta vez não foi do Congresso que veio a novidade, até porque as
prisões se tornaram bastante corriqueiras por ali, mas veio da cidade, ou, mais
precisamente, de seu zoológico, que abriu esta semana a primeira jaula pública
para exposição de um homem. O dado seria surpreendente por si só, quando se
pensa que o país tem a terceira população carcerária do planeta, mas acresce que o
homem em exposição não é brasileiro. Trata-se de um espécime da Letônia, país
báltico que é, de fato, um lugar exótico e estranho, embora entranhado no norte da
Europa, entre a Estônia e a Lituânia.”
As aulas de geografia e um pequeno laivo de inquietude moral são o estágio
anterior à verdadeira discussão, é o que pensa Adolfo Magalhães Passos ao ler essa
parte do texto. Mas é como Joca havia dito, os jornais, que parecem tão atualizados,
embora não saibam o que exatamente acontece abaixo da superfície, na verdade
sempre correm atrás do prejuízo para não dar impressão de mal informados junto
ao público que ainda os lê, essa sim, uma espécie ameaçada de ser extinta, que

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devia receber algum tipo de atenção. Cabe a assessoria de qualquer bom candidato
formular sempre duas ou três pautas de dianteira e ir jogando ossos aos poucos,
que a matilha ladrará com vontade e vai seguir a trilha de agrados de maneira
absolutamente previsível. Por mais que as redes sociais estejam mantendo alguma
frente em relação à mídia mais convencional no que diz respeito a chegar mais
cedo ao próximo assunto, o princípio continua a vigorar: você determina uma pauta
para discussão e deixa a fogueira se alastrar um bocado, depois chega com a água e
acalma o fogo ou muda a direção do vento para que o fogo se alastre em outro
rumo.
“Numa declaração polêmica, o governador do Distrito Federal, Adolfo
Magalhães Passos, disse não ser contra a manutenção do homem enjaulado, o que
deve lhe atrair polêmica para os próximos dias, para dizer o de menos”, prosseguia
o texto do comentário no jornal. “Fazendo pouco caso da situação, Magalhães
Passos aproveitou uma coletiva que deveria tratar do assunto para mudar o foco e
lançar seu projeto de governo, com uma anunciada reforma do sistema prisional
que parece ousada, porque pretende articular vários planos sociais na construção
de uma grande mudança para o país. Ainda é cedo, no entanto, para avaliar como
essas ideias vão repercutir nos meios políticos, mas é fato que vão dar o que falar.”
É o início de uma série de muitos editoriais, comentários, discussões, que vão se
seguir a respeito do plano de governo, das reais chances daquele candidato, das
coligações que pretendia fazer ou evitar, das verdadeiras fontes de financiamento e
de interesses que se articulam por trás de sua campanha com aparência de
inovadora, pelo menos num primeiro momento. Mas isso é mais tarde. Antes, será
necessário passar pelos editoriais, comentários, discussões a respeito de bioética,
relações de trabalho e legislação específica, contratação de mão de obra estrangeira
quando há tanto desemprego interno (e a sempre latente xenofobia que está
sempre à espera de ocasião para se apresentar de dentes arreganhados e um
rosnado), exibição de pessoas ao lado de animais entre as jaulas do zoológico, a
própria existência, permanência, manutenção de zoológicos parece em jogo nesse
quadro.
Se Andrei Poruk e seu destino pessoal têm dimensão de apenas uma pequena
peça disparadora no grande quadro que interessa a Adolfo Magalhães Passos e ao
marqueteiro de campanha contratado para assessorá-lo, a situação não parece bem
essa para os comuns dos mortais. Não toleram assim tão bem e a repercussão — o

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alastramento de fogueira antes da contenção, se é que contenção ou desvio será
possível — é bem maior e mais descontrolada do que se imagina.
Todo mundo começa a se perguntar pelo próximo passo de Joca Ferreira,
chamado por muitos especialistas da área de mago, nem tanto pelas realizações
bem-sucedidas anteriores na carreira, mas pela capacidade de dissimular uma coisa
em outra e a nova ainda numa terceira, criando cortinas de fumaça e despistes
dignos realmente dos maiores profissionais do ilusionismo. Perfeito para políticos
nacionais, algumas línguas maldosas comentam. Mas o fato é que ele parece
realmente ter descoberto um truque novo e eficaz em termos de chamar a atenção
da mídia e, portanto, com o poder de ampliação que decorre do interesse de
múltiplos e diferentes veículos, tornar-se o próximo tema em discussão na arena
pública. Um atrás do outro, ele desencava uma série de assuntos que sempre
permaneceram em papéis coadjuvantes nas eleições anteriores, numa sucessão tão
rápida que de fato lembra um desses mágicos que puxa um lenço de uma cor,
amarrado em outro de cor diferente e assim sucessivamente, distraindo olhares
com muitas cores e música alta.
O plano estratégico para reforma prisional se articula com vários outros
assuntos mais ou menos escondidos, por exemplo, a ausência de eficácia de
transporte público de qualidade associado com uma política (e mesmo uma
cultura) de apoio a grandes montadoras de carro que ainda têm planos de faturar
muito em países periféricos feito o Brasil, enquanto o resto do mundo se programa
e começa a cumprir um projeto de afastar-se de veículos pessoais movidos a
combustível fóssil, de maneira organizada e planejada. No discurso, essas coisas
estão interligadas por uma peripécia retórica que dá a impressão de fazer todo
sentido. Mas não é a única pauta esquecida que está saindo da cartola de Joca. O
fim da obrigatoriedade do voto deve entrar na pauta da próxima legislatura para
que se assegure uma verdadeira democracia e se isso soa francamente como tiro no
pé, se por acaso Adolfo estiver esperando encontrar simpatia para sua causa entre
políticos, Joca não parece nem um pouco incomodado e, de quebra, nem seu
candidato. Se isso soa como sucessão de tiros a esmo com possibilidade de
desencavar inimigos em pontos inesperados, o que parece contraproducente em
termos políticos, em que a união parece a melhor estratégia, a coisa realmente fica
séria quando Adolfo Magalhães Passos anuncia, num comício a meio caminho da
campanha, que pretende dar combate a uma das mais arcaicas (em qualquer

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sentido) instituições nacionais: cartórios. Num mundo francamente informatizado,
a legislação que prolonga a existência desse câncer social (sim, ele usa a expressão
sem hesitar, o que faz alguns analistas falarem em tentativa de suicídio antes
mesmo de a campanha descolar do chão, além de apontarem equívocos óbvios: isso
não é atribuição do executivo, o que deixa a impressão de que Adolfo está falando
uma grande, uma enorme bobagem) está com os dias contados na sua legislatura,
se eleito, junto com a rede mafiosa de cartórios, outra expressão que faz muita
gente engolir em seco. Adolfo parece naquele ponto em que perder as papas da
língua pode ser ao mesmo tempo ousadia plena e suicídio público, as cartas estão
lançadas. Não apenas esse ponto, mas dar combate sincero a uma desnecessária
quantidade inútil de documentos que burocratizam demais a vida cotidiana, com a
criação de um documento único que poderá ser usado durante toda a vida da
pessoa para múltiplos fins.
De brincadeira, um desafeto menciona durante um debate na televisão que, pelo
andar da carruagem, daí a pouco Adolfo Magalhães Passos estará defendendo a
eutanásia e obtém como resposta uma surpreendente confirmação. Ele tem a
ousadia plena de defender que, sim, está na hora de colocar o assunto a sério na
pauta e os adversários salivam, porque mexe com uma das paixões mais arraigadas
na alma da população brasileira, a posição conservadora e renitente em certos
assuntos naturalmente espinhosos. Os inimigos celebram. Essa campanha não vai
mesmo decolar em hipótese alguma. Embora sempre haja alguém para ficar
ressabiado, porque na ordem do mundo, toda sorte de malucos com planos
estapafúrdios tem em algum momento conseguido sedimentar apoio popular para
causas amalucadas e foram alçados a condição de poder. A história está aí para
fornecer um caminhão de exemplos. Em anos recentes, os Estados Unidos tinham
eleito um palhaço de cabelo alaranjado e um estranho bico de menino contrariado,
além de fama de valentão com potencial para disparar uma Terceira Guerra
Mundial. Mas, como quase sempre ocorre quando se trata de valentões, ele tinha
mais ameaças e latidos do que realizações concretas. É apenas outro exemplo de
como certos projetos aparentemente impraticáveis de repente se tornam plausíveis,
factíveis e efetivamente começam a transcorrer diante de quaisquer olhos,
assustados ou não. Adolfo tem chance real de acabar eleito, num país que às vezes
faz apostas temerárias demais só pela diversão de ver como a coisa fica. Joca tem
toda razão. O Brasil é o país em que uma coisa muito errada pode dar muito certo.

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4 Zoológico tropical

Esta narrativa poderia a partir de certo ponto bifurcar-se para mostrar como a
história de Andrei Poruk é individual, enquanto outras coisas acontecem a sua
volta e apontam para circunstâncias bem mais amplas, a ambição política de Adolfo
Magalhães Passos, que é mais um candidato à presidência entre tantos outros, num
jogo complexo de interesses e manipulações que mobiliza grande parte de um país
que é enorme e complicado. Entretanto, essa expansão mostraria o candidato num
cenário muito amplo que as narrativas literárias às vezes até conseguem
compreender com grande maestria, por exemplo como acontece com o Guerra e
paz, do Liev Tolstói, mas no fundo a tradição do romance é voltar-se para a
trajetória do personagem, a individualização, e nisso este relato aqui não será muito
diferente.
É preciso, portanto, começar a pensar cada vez mais na trajetória desse
personagem que é Andrei Poruk. Em vez de enveredar pela campanha de Adolfo
Magalhães Passos à presidência e todos os desdobramentos que se sucedem, o mais
indicado é mencionar o que aconteceu nas semanas imediatamente posteriores à
inauguração da jaula para humanos no zoológico de Brasília, a jaula de Andrei
Poruk. O importante é o movimento de retorno em direção ao objetivo inicial, que é
investigar quem é e o que pensa Andrei Poruk, e como ele vê o fato de ser animal
em exibição nesse zoológico tropical. Do modo como penso esta narrativa, ela deve
mostrar os entornos de Andrei, mas depois se concentrar na história pessoal dele,
na aventura solitária do humano na jaula e como ele chegou até ela.
Quando falo em zoológico penso num que, tomado metaforicamente, inclui não
apenas a jaula de Poruk, mas a cidade como um todo, os habitantes que, nela, são
capazes de se mobilizar para protestos contra a decisão de expor um humano em
cativeiro ou aqueles que, perguntados, dizem não ligar a mínima para a questão,
uma vez que se trata de um contrato firmado entre as partes e se elas decidiram que
está tudo bem e nenhuma legislação trabalhista foi violada é porque talvez esteja
mesmo, os brancos que se entendam lá entre eles. Por mais que juridicamente não
exista problema no tipo de contrato que firmaram a administração do zoológico e
essa nova modalidade de empregado, do ponto de vista moral a coisa não é bem

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assim e muita gente se sentiu particularmente ofendida. A ponto de questionar,
porque sempre é possível questionar, quem é que formula, do ponto de vista
jurídico, leis trabalhistas e que valores permeiam a criação dessas leis, quais os
fundamentos e princípios que os regem e que competência detém os tais
formuladores. Porque essas leis não vieram de tábuas de pedra fornecidas por Deus
diretamente a Moisés, mas vieram de homens de carne e osso que se sentaram e as
formularam sobre papel, com valores submetidos a pressão da atmosfera e aos
temperos do humor que jamais estão inscritos na pedra. Homens que almoçam e
jantam, se casam, têm filhos e leem livros de direito, preocupados em evitar que a
bobagem que estão prestes a cometer encontre respaldo na jurisprudência
estabelecida anteriormente, mas que têm dor de dente e um incômodo existencial
qualquer que pode incliná-los a esta ou aquela decisão, a depender do dia, da
circunstância. Homens que talvez leiam o mesmo livro que Poruk, caso o livro que
ele esteja lendo esteja acessível a quem quiser em língua portuguesa (ou, em se
tratando de homens da lei, em inglês ou latim).
No dia em que o principal periódico de Brasília estampa a manchete que indaga
a todos se somos bichos — a distinção é ou pode parecer sutil, animais somos todos,
segundo as categorias humanas de entendimento, mas bicho implica animal
despojado de consciência, algo que um ser humano toma para si como prerrogativa
que o define como isso mesmo, ou seja, humano —, Maria Emilia D’Ávila sente-se
particularmente atingida pelo teor da questão. É como se o editor do jornal (vale
lembrar: Dirceu Serralho, responsável pela editoria de cidades em dias corriqueiros
e convocado para formular esta manchete em questão) tivesse pensado nela ao
formular o título chamativo e impactante para o dia seguinte à inauguração da
nova jaula do zoológico.
O fato de nos dias seguintes o jornal não conseguir estampar uma entrevista com
o humano enjaulado, como era a expectativa de Maria Emilia, não a impede de
organizar um protesto contra esta infâmia. O primeiro de muitos que se seguirão,
porque na rede de relacionamentos virtuais que a internet proporciona, a
velocidade dos protestos, bem como a dos gracejos, é impressionantemente mais
rápida. O de Maria Emilia é organizado com certa calma. Ou melhor, calma não é a
expressão correta, com meticulosidade, suficiente para gerar a repercussão
desejada. A jaula é inaugurada — modo de dizer, porque não há inauguração,
simplesmente está lá, aberta à disposição de todos, sobretudo da turma da

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professora Silvana, que sofre o primeiro impacto — na terça-feira, o protesto
acontece na quinta subsequente.
— O mundo está acabando — diz Maria Emilia, na quarta, quando lê a
manchete e as primeiras linhas da matéria escrita por Isabel Tâmara. O
interlocutor de Maria Emilia neste momento, em casa, é Lauro, o marido, um
sujeito muito alto e de ombros largos, embora magro, careca no alto da cabeça e
com cabelos encaracolados nas laterais, com um rosto fechado que muitos supõem
que seja resultado de contrariedades resumidas em mau humor e propensão a
resmungos, mas quem o conhece sabe que se trata antes de concentração, marcada
por duas linhas verticais pronunciadas logo acima do início do nariz. A voz de
Maria Emilia ao decretar a proximidade do fim do mundo parece contida e prestes
a explodir. Ela sente, e isso é mais ou menos raro para uma mulher firme e
determinada como Maria Emilia, um aperto no coração ao ler a manchete.
— Como sempre — responde Lauro, esta manhã um pouco mais distraído do
que o costume. Justamente ter pronunciado a resposta mais ou menos habitual do
diálogo matutino do casal, Maria Emilia envolvida e preocupada em excesso com o
mundo, ele não parecendo ligar a mínima, faz com que ele, por algum motivo
insondável e contraditório, pareça ter se despertado para o momento presente.
Mas, de volta, Lauro pronuncia apenas outra das frases que o casal troca pelo
menos uma vez por semana, como se fosse um velho jogo de tênis em que a bola vai
ser rebatida em intensidade média, apenas para ser colocada na quadra do
adversário. — De acordo com os jornais, o mundo não dura mais uma semana. É só
catástrofe. Não sei porque você continua a ler.
— Já tivemos essa conversa — Maria Emilia rebate, fazendo uso de outra frase
que é recorrente entre eles. A bola passa de lado da quadra. Se ganhasse uma
moeda para cada vez que sua mulher pronuncia a frase, Lauro hoje seria rico. —
Que outro jeito de saber a respeito do andamento do mundo a não ser lendo
jornais?
Se Lauro tem dúvidas a respeito dos motivos ou da importância para Maria
Emilia querer ficar sabendo do andamento do mundo, guarda para si. Ele mesmo
não acha necessário ir à procura de saber dos negócios do mundo, porque o mundo
dá jeito de se apresentar para ele, naquilo que é necessário ser informado. Haver ou
não haver jornais, lhe parece, é indiferente, o mundo existe à revelia dos jornais e,
para ser franco, ele não se sabe se melhora o entorno existir tanto papel e rios de

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tinta em circulação. Lauro é dos que, se perguntado, teria dito que não liga para o
sujeito na jaula do zoológico. É só um ser humano, ele os vê por aí aos montes todos
os dias e nas condições mais adversas, não precisa ir ao zoológico para isso,
invadiram ruas e praças públicas, superlotam ônibus e estádios de futebol, são
barulhentos e nervosos e alguns parecem necessitar de bem mais atenção do que
esse sujeito no zoológico. Portanto, nada de fuzuê com essa bobagem, é a sua
opinião a respeito do assunto, significa gastar muita saliva para pouco resultado.
Mas ele sabe que o ser humano não é assim, que o ser humano precisa ter uma
escala de valores e com a régua que gosta de usar para medir o mundo verifica tudo
o que acontece em volta e dá opinião e se manifesta e faz boicote ou inicia greve,
tudo com muito barulho pelo meio. São as importantes distrações para estar no
mundo e sentir-se vivo, para não se ocupar com o principal, que é reconhecer que
não só toda existência é absurda como está obrigada a se encerrar inapelavelmente
em algum momento. Lauro não se distrai, ou se distrai pouco. Para a boa parte das
pessoas, Lauro D’Ávila seria um indiferente. Obviamente, nada mais remoto do que
o modo como ele se vê por dentro. Decide não responder em voz alta à mulher,
apenas emite um suspiro.
Maria Emilia está enfurecida.
— É preciso fazer alguma coisa — ela diz. — Isso não pode ficar assim de jeito
nenhum. Se esse pessoal pensa que pode fazer uma barbaridade dessas e escapar
impune, vai ver que estão bem enganados. Quer apostar que o cretino do Adolfo
está por trás disso, ele e aquele marqueteiro maluco dele, o Joca?
Ela bufa, vocifera, parece realmente alterada em excesso pela novidade. Se
Maria Emilia fosse um desenho animado, este é o momento em que estaria saindo
fumacinha pelas laterais das orelhas. Sabe-se que em parte, a exasperação dela se
dá por conta da falta de interesse de Lauro. É exasperante ficar incomodado e a
pessoa ao seu lado não ligar a mínima. Dá vontade de lhe apertar o pescoço só por
manter a indiferença. Mas há uma contrapartida, e isso é um pouco incômodo para
o marido, porque lá atrás no tempo, no que parece ter sido uma outra vida, Adolfo e
Maria Emilia foram namorados, e agora a vida e as circunstâncias os transformou
em adversários, muitos anos depois, e talvez em parte por Maria Emilia ter se
casado com Lauro, embora esse não seja o único fator. Parece ter sido outra vida,
Lauro gostaria de acreditar nisso, mas vê com alguma reticência relutante o excesso
de antipatia que a mulher parece nutrir pelo hoje desafeto. Se o ditado faz sentido e

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quem desdenha quer comprar, pode ser que a raiva de Maria Emilia esconda algum
tipo de atração persistente pelo antigo namorado, pelo menos devidamente
camuflada, se é que isso serve de qualquer tipo de consolo. Visto que a vida íntima
do casal empacou numa estação morna que parece sem perspectiva de melhorar, é
natural que ele suponha que a mulher talvez se lamente pelo que poderia ter sido,
caso o caminho e as escolhas tivessem sido diferentes, caso ela tivesse se casado
com Adolfo e assumido o sobrenome Magalhães Passos, em vez de ter se casado
com ele e aceitado o D’Ávila.
Ela olha para o marido.
— Eu sei o que você está pensando, mas não é bem isso, eu realmente estou
indignada só pelo fato de que encarceraram um sujeito junto com os animais do
zoológico e isso é uma afronta a qualquer nível de racionalidade humana.
Lauro ergue e abaixa os ombros, como quem desistiu de contestar. Discutiram
muito a respeito da presença — essa presença fantasmática — de Adolfo em suas
vidas, até que o assunto parece ter passado a segundo plano e permanecido aí. Ele
não consegue conter um comentário irônico, no entanto, talvez porque saiba que
isso vai gerar uma resposta amarga de Maria Emilia.
— Até onde percebi ele não está junto com os animais, mas numa jaula própria.
— Você entendeu o que eu quis dizer — Maria Emilia rebate, num tom irritado.
Às vezes, acha que o marido não passa de um eterno adolescente que nunca vai
conseguir crescer o suficiente. Mas a verdade é que ele gerencia com notável
competência tanto a empresa da família como as carteiras de ações que possuem no
mercado financeiro e que darão boa parte da sustentação da campanha dela para se
tornar, pulando uma etapa que normalmente se faz e se considera necessária
(eleger-se primeiro deputada distrital, antes de querer algo acima disso na
hierarquia do poder), deputada federal. É possível sim, confirmou o consultor que
foi contratado para dar início à campanha a peso de ouro, desde que. Então disse a
cifra mágica que precisaria ser gasta para elegê-la, antes de lhe mostrar uma
planilha dos nomes que estariam eleitos em outubro para a próxima legislatura.
Gastavam o necessário, eram eleitos, simples assim, porque o dinheiro põe em
movimento uma máquina de gerar votos. O dela poderia estar entre aqueles nomes
listados. Bastava gastar a quantia. Na perspectiva apresentada por ele, não era nem
gasto, mas investimento no mercado futuro. O dinheiro empregado voltaria, com
juros, dividendos e margem de lucro folgada.

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Portanto, eis Maria Emilia ao telefone falando com o consultor da campanha.
Sim, é boa ideia organizar manifestação, protesto, marcha, mobilização e ganhar
espaço na mídia.
A causa humana está sempre contaminada por todo tipo de agendas, algumas
mais explícitas, outras mais sutis. Ninguém está a passeio por aqui, mesmo
profissionais de festas parecem preocupados em tratar a coisa como trabalho, o
que, no caso, é mais ou menos óbvio. Todo mundo parece muito interessado em
fazer cumprir a agenda pessoal, que às vezes é apenas isso mesmo, egoísta e
pessoal, outras vezes necessita afetar em grande quantidade vidas alheias. Como
Maria Emilia neste momento, que conseguiu articular as peças devidas para pôr em
movimento uma mobilização de pessoas para participar de um protesto, algumas
tão indignadas quanto ela, algumas mesmo até mais, mas a maioria, apenas porque
recebeu uma convocação a que não pôde se furtar. Ela passa a quarta-feira toda
fazendo esforço na coordenação para mobilizar pessoas e produzir material, faixas,
panfletos que questionam a iniciativa, releases para distribuir aos veículos de
comunicação para que façam a cobertura, de modo que quando chega a quinta-
feira, o evento é bem-sucedido em termos de apresentar muita gente indignada a
protestar contra a iniciativa do zoológico e chamar a atenção midiática. Tanto que
na noite de quinta, o telejornal noturno da principal emissora de televisão, que
havia feito na noite anterior uma matéria breve sobre a novidade estranha
inaugurada em Brasília, volta ao assunto para mostrar os protestos na capital, que
estão lançando luzes novas no início da campanha do governador do Distrito
Federal para a presidência. As imagens mostram os manifestantes com faixas,
cartazes, e Maria Emilia aparece alguns segundos, mas sua longa fala foi tão editada
que sobrou apenas isto: “É um absurdo sem proporção manter um homem numa
jaula para que todos possam ver, crianças inclusive. Que tipo de sinal isso envia
para toda a sociedade? A de que voltamos à barbárie?”. É claro que Maria Emilia
sabia da grande chance de isso ocorrer. A repórter simpática e risonha que a
entrevistou mais cedo estava à espera de uma declaração bombástica, o editor
contava com isso, uma frase que provocasse algum tipo de impacto, e ela veio, não é
nenhuma joia inesquecível, mas dá para o gasto e é suficiente para fazer o assunto
voltar à pauta, sobretudo porque aponta para uma inquietação não resolvida,
matéria-prima do jornalismo. Que solução dar para um homem na jaula, caso os
protestos continuem e ganhem força? Quem pode ou deve se pronunciar a

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respeito? O que a seção de direitos humanos da Ordem dos Advogados tem a dizer
sobre o assunto? Nesta mesma quinta-feira num editorial do Estadão, como o jornal
O Estado de S. Paulo é conhecido, a pergunta é se o experimento levado a cabo no
zoológico de Brasília descumpre o que está previsto no Código de Nuremberg e na
Declaração de Helsinque a respeito da autodeterminação das cobaias, da
autonomia, da tutela e como essas questões podem ser aplicadas na situação
específica. Gente séria discutindo assunto de gente grande de forma ponderada,
para não dizer sisuda. O que não pode é continuar esse homem enjaulado à vista de
todo mundo sem que se tome alguma providência. Mas qual? E quem deve tomá-la,
no fim das contas? Porque Adolfo Magalhães Passos permanece inflexível na
decisão de manter Andrei Poruk enjaulado, pelo menos até o fim do mandato e da
campanha. A questão é encontrar — em que prazo, com que eficiência — uma
brecha na legislação que permita entrar com um processo e alterar a decisão,
retirando o mais rápido possível o homem da jaula e reinstaurando de volta a
tranquilidade em algumas consciências. Mas sendo processo, e sendo a justiça
brasileira como é, todos antecipam que a coisa deve se estender muito além de
qualquer prazo razoável. A rapidez da justiça ocorre apenas em raras, raríssimas
ocasiões, e só quando a pressa pode encontrar justificativa na letra da lei para
disfarçar qualquer teor ideológico mais assanhado. O andamento normal dos
processos e trâmites promovidos pelos homens da lei brasileiros, como se sabe, é o
de um elefante adoentado.
Maria Emilia coloca rodas em movimento e agora elas praticamente continuam
por inércia. Para o domingo, há um grande protesto marcado, com mobilização
impressionante. De algum modo, essa indignação consegue contaminar um
número realmente elevado de pessoas, que parecem aproveitar a ocasião para
protestar contra tudo e contra todos. Mas consulte um estatístico e ele vai lhe
apresentar uma curva de interesse, não importa quão diferente o assunto possa ser.
O gráfico indicará o aumento de interesse num primeiro momento, sem dúvida.
Quanto mais polêmico, maior o interesse, não há muito segredo aqui, mas indicará
também o decréscimo na sequência, o desinteresse, numa curva análoga, se se
pensar bem, a de uma existência humana. A crise é atropelada por outras, que se
apresentam mais emergenciais, e de gerenciamento de crise em gerenciamento de
crise há uma ciranda de assuntos que precisa ser respeitada para que o
funcionamento da sociedade se mantenha, seja no equilíbrio precário que for. É

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triste dizer, mas o interesse arrefece, cede, se torna quebradiço. É triste, mas é
necessário, um pouco como acontece com a roda da natureza, as estações se
revezam, embora pareça que o universo continue no mesmo lugar, pequenas
alterações aqui e ali são visíveis e, bem, nada então permanece no mesmo lugar,
talvez mesmo o universo, infinito, esteja se movimentando e impedindo que se
possa dizer este lugar aqui (e com o movimento no espaço, o universo emula o
transcorrer do tempo). Talvez o mesmo lugar nem exista, na metafísica do universo,
isso não passa de um conceito abstrato e intangível. A situação paradoxal de Poruk
estava prevista quem sabe nos primórdios da história do pensamento ocidental,
quando na Academia de Platão o filósofo definiu o homem como bípede implume e
um outro filósofo, o cínico Diógenes, segundo um relato que se consolidou (mesmo
que historicamente não tenha ocorrido — embora não se tenha tantas evidências,
seja para comprovar, seja para refutar —, é como se tivesse existido de qualquer
modo, por força da tradição), retirou as penas de um frango, jogou-o diante de
Platão e dos discípulos e afrontou a todos com uma expressão desafiadora. “Eis o
homem de Platão”, ele teria declarado, provocador. Não à toa, alguns situam este
filósofo que é Diógenes como precursor do anarquismo.
Depois de alguma coisa do interesse pelo assunto ter passado, quando parece
que o homem na jaula de Brasília vai ser esquecido como mais um assunto bizarro
que passa a fazer parte do cenário local, em que a quantidade de maluquices é tão
grande que não há muito que se possa fazer, é publicada uma matéria numa revista
mensal de grandes reportagens ou, como alguns preferem chamar, de jornalismo
literário.
O editor da revista piauí, na verdade mais que editor, o criador da revista, que de
vez em quando escreve sobre assuntos prosaicos de forma instigante, é quem assina
a reportagem a respeito de Andrei Poruk numa jaula de zoológico em Brasília. Ele
publicou desde o perfil de um grande matemático brasileiro, Artur Avila, um desses
assuntos que também parecem bizarros por si só — como é que um país cheio de
contradições e atropelos é capaz de fazer um grande matemático, reconhecido
mundialmente e ganhador de uma medalha Fields, uma espécie de Nobel da
matemática —, até um assunto de aparência trivial, a respeito de uma simples
pichação que reaparece nos muros do Rio de Janeiro (em que se lê: “Não fui eu”), e
que se tornou mote para uma série de reflexões a respeito do que é a essência do
brasileiro, essa pergunta de um milhão de dólares com a qual se debatem os

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pensadores do Brasil. A partir de quase nada é possível refletir de forma diletante,
mas apenas na aparência, a respeito do que significa ser brasileiro e preocupar-se,
ou ser brasileiro e simplesmente não ligar a mínima. A boa reflexão não é mesmo
oriunda de uma banalidade, é possível se perguntar ao se ler o texto dele a respeito
da pichação, que se transforma de repente num texto a respeito da posição que os
humanos ocupamos todos na vida e na responsabilidade que temos uns para com
os outros.
Pois o texto a respeito de Poruk mostra justamente que o editor anda
preocupado, não só com o fato de o Brasil estar inaugurando uma nova modalidade
de manifestar o mal e ser pernicioso, algo que parece estar inscrito no DNA da
nação, mas no movimento seguinte ser também e novamente mal e pernicioso ao
esquecer em seguida — ou naturalizar — o assunto. A certa altura, é possível
pensar que ele chega a se perguntar qual das duas posturas é a mais maléfica e
nociva. “Quando se para de pensar a respeito do gesto estimulado pela insanidade
ou uma intencionalidade suspeita de um marqueteiro acusado por muita gente de
ser irresponsável ou leviano, não se pode deixar de pensar um pouco também que
somos todos os brasileiros em larga medida irresponsáveis e levianos juntos com
ele”, o editor pondera, mencionando o ponto de partida dessa história toda, ou seja,
o envolvimento do marqueteiro da campanha presidencial Joca Ferreira,
interessado em transformar Adolfo Magalhães Passos num concorrente sério para
as próximas eleições.
A matéria desejaria ter reacendido o debate em torno da questão, sem dúvida, e
por um momento parece que vai conseguir isso, mas uma crise econômica começa
a se formar no horizonte e ganhar consistência, de modo que não há mesmo jeito e
o homem na jaula no centro da capital brasileira é solapado pela grave questão de
como sobreviver em meio a tanto descompasso com a moeda brasileira, novamente
fragilizada a ponto de provocar as mesmas crises de sempre, agravadas:
desemprego, alta da inflação com reflexos nos preços de produtos alimentícios nos
supermercados, queda do poder de consumo, aumento das taxas de juro e no valor
do dólar, perspectivas sombrias por toda parte e para quase toda a gente, a não ser
para os bem situados no mundo mercantil da retenção de dinheiro em bolsos
próprios, em bancos locais, em contas bancárias na Suíça ou em paraísos fiscais
ainda mais difíceis de rastrear.

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Preocupar-se com um homem na jaula deixou de ser prioridade, ou mesmo
importante. Até pensar a respeito de quem é ele, com o que sonha, que tipos de
problemas enfrenta no dia a dia, parece de repente um luxo desnecessário diante
do contexto da crise, de mais uma crise, uma crise extra que faz muita gente se
perguntar se o Brasil não poderia ser definido como justamente um país em que a
crise se faz essencial para que continue a existir. Uma crise sistêmica, para usar
uma expressão tão cara a Joca Fernandes, o marqueteiro da campanha de Adolfo
Magalhães Passos. A crise fundamental, fundante e definidora. O texto de João
Moreira Salles, o editor da piauí, serve apenas como canto do cisne para a história
de Andrei Poruk na jaula de Brasília. O jornalista é uma espécie de historiador do
presente, tenta encontrar os temas atuais e dar contorno conceitual a eles, depois
mais bem sistematizado e documentado por historiadores, uma vez decantada a
poeira que se deposita sobre algumas questões. Mas a verdade é que o Brasil é o
país em que a profissão de historiador parece absurda, porque ele foi desde sempre
constituído pela vontade de renitente de deixar o passado sem qualquer vislumbre,
contemplação ou risco de entendimento. O passado é para ser esquecido, não para
fornecer qualquer tipo de lição a respeito do presente e evitar, no futuro, a
reincidência de qualquer desplante. Historiadores e jornalistas, nesse caso,
parecem estapafúrdios e desnecessários.
Depois de alguns dias de reacesa a chama do debate em torno da questão do
homem na jaula, no entanto, o assunto volta a esmorecer. O apagamento da
memória, a intermitência sistemática das manifestações da memória, é o que ajuda
em grande parte a compreender o que é o Brasil, esse país que caminha para o
futuro abanando uma longa cauda atrás que vai apagando os próprios rastros. O
Brasil não gosta de passado e não quer saber de olhar para trás, entender o que
aconteceu antes para evitar cometer insanidades mais adiante.
É nesse momento em que Andrei Poruk é deixado mais ou menos em paz com
seu livro, cujo título ainda se desconhece, se é que não mudou várias vezes desde
que chegou, é neste momento que esta narrativa pode finalmente ir a seu encontro.

52
II

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5 Planeta das ideias

Enquanto mora na Letônia, Andrei Poruk vive muito tempo entre as paredes do
quarto na casa dos pais e entre os corredores e salas de aula da Universidade de
Riga, onde se demora o quanto pode. Ele gosta do ambiente animado da
universidade, com muitas ideias em circulação, debates acalorados, se agrada de
participar das discussões, sobretudo quando não é sobre a vida pessoal, o que
acontece com frequência quando a confusão se passa no front caseiro: por onde
anda e com quem, a que horas volta, essas chateações de vida familiar, embora o
controle esteja decrescente e a tolerância, até que bem alta. Mas quando se
encontra na universidade, ele percebe que o importante são ideias mais gerais,
soluções para grandes problemas nacionais, opiniões divergentes que precisam
encontrar consenso ou admitir impasse eterno e, mesmo assim e se possível,
encontrar saída.
Andrei gosta disso, da eletricidade que existe no ar, do clima de algo prestes a
explodir, nem que seja uma explosão de ideias, e portanto se organiza para ficar a
maior parte do tempo nesse local. Quando está em casa, procura se isolar na
solidão do quarto e refletir a respeito do que tem aprendido, articula os contrastes
entre a parte de fora (a universidade e as provocações a seus valores a que é
submetido quando está nela) e a parte de dentro (a casa e, nela, o lugar tranquilo
para processar reflexões, o quarto). A gente passa a vida a transitar no meio desses
dois ambientes, pensa, talvez possa ser escrever algo a respeito justamente disso.
Acaba de tomar gosto pelos estudos depois de uma vida convencional e dispersa.
Agora ele se dedica com afinco a entender melhor as ideias de alguns pensadores,
como o recém-descoberto Walter Benjamin, um filósofo alemão que fez parte,
mesmo que de forma marginal, do que se chama hoje em dia de Escola de
Frankfurt e, para Andrei, ele tem um jeito muito peculiar de escrever ensaios a
respeito de temas interessantes. Porque não fala a respeito de alma ou ética ou
generalidades, como os demais filósofos fazem, mas a respeito de coisas palpáveis,
uma rua anônima, fotografia, um escritor até então pouco conhecido, e tudo de um
modo muito provocativo e próximo, bem próximo da vida como ela de fato é hoje
em dia. Andrei consegue imaginar o filósofo caminhando pelas ruas, dirigindo-se

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ao abrigo seguro de uma biblioteca, enquanto observa as ruas em volta e toma
notas mentalmente a respeito do que vê. Há um olho que observa a rua, mas há um
outro, interno, que começa a estabelecer relações simbólicas entre essa rua e
diversos aspectos dos sentimentos humanos. É isso o que Andrei deseja
compreender em Benjamin e em si mesmo. O ensaísta que não fica apenas
mergulhado no mundo abstrato das ideias, mas também incorpora o que o olho
capta, uma rua molhada depois da chuva, a melancolia que se dissolve.
Importa saber que Andrei almeja levar uma vida intelectual, decisão mais ou
menos tardia que surge na sequência de uma adolescência convencional, com
namoros turbulentos, amigos arruaceiros, bebidas em excesso ingeridas em festas
que ocorrem em grandes quantidades e por motivos irrelevantes.
Os jovens na Letônia costumam beber muito e praticar uma dose mais ou menos
controlada, mais ou menos permissiva de confusões; com Poruk não é diferente. Há
certa liberalidade que os pais toleram nos respectivos filhos, antes que os jovens
atinjam a idade adulta e assumam responsabilidades e compromissos que
carregarão pelo resto da vida. Há uma cultura mais ou menos arraigada que, sem
ser posta em palavras, significa mais ou menos o seguinte: beba e faça uma ou duas
bobagens, nada muito sério, depois fique sóbrio e assuma responsabilidades. Assim
é a vida. Um letão sabe disso e age mais ou menos de acordo.
Em parte, o argumento é este, disfarçado de tolerância para com a própria
juventude. Hormônios, os pais letões costumam dizer uns para os outros,
parecendo que levantaram os ombros e deram o assunto por resolvido, como se a
explosão da juventude tivesse uma explicação biológica e química para esclarecer o
motivo do comportamento atribulado. Além disso, o país viveu muito tempo sob
jugo de conquistadores (alemães e finlandeses primeiro) e, desde a década de
noventa do século vinte, quando readquiriu autonomia, desta vez da ex-União
Soviética, achou por bem deixar os jovens mais soltos, mais à vontade para praticar
todo tipo de atitude que desejassem. Liberdade é inebriante, costumam dizer, como
se isso fosse o suficiente para permitir a conduta dos jovens em relação a excessos.
E como se essa liberdade precisasse ser sentida de forma prática, os jovens se
embriagam com bebidas alcoólicas e alguma violência, certos exageros que, quase
sempre, não geram maiores consequências. Depois dessa temporada que funciona
como rito de passagem para a vida adulta, voltam a ser pessoas responsáveis, bem-

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comportadas e que levam a vida de modo parecido com a que os pais têm. De modo
geral, funciona.
Alguns, como se sabe, se tornam alcoólatras pela vida afora e uns quantos dentre
esses se tornam adultos disfuncionais. É do jogo, as pessoas em volta que formam a
comunidade erguem os ombros mais uma vez, abrem as mãos espalmadas para
cima e justificam o preço a pagar pelo excesso de tolerância. O importante é que a
maioria prossegue com a própria vida. Era assim nos rituais de passagem de tribos
primitivas, continua a ser assim nos rituais contemporâneos de sociedades ditas
civilizadas.
Andrei não escapa de aprontar a própria cota de incivilidades, bebe vodca com
amigos e pula catracas do metrô sem pagar ou é expulso do vagão um pouco depois
por estar um pouco alterado demais e provocando balbúrdia. Mas ele sente que
essas atitudes têm alguma coisa de vazias e desencontradas, que não lhe diz
respeito, que não o ajuda a ser quem ele gostaria. É mesmo apenas questão de
tempo, então, algo dentro dele fazer clique e disparar algum outro tipo de interesse,
que nele parecia à primeira vista bastante improvável, porque pouca gente a sua
volta está interessada em ter vida intelectual como a que ele de repente se vê
propenso a desenvolver.
Há uma aula, num mês quente de primavera em que o dia apresenta cores
especialmente claras e permanecer dentro de sala de aula se assemelha a tormento,
forma de tortura desagradável, em que o professor da turma de terceiro ano de
Andrei Poruk menciona algumas ideias filosóficas de Walter Benjamin, entre tantas
outras do grupo que chama de Escola de Frankfurt, e Andrei reconhece-se de
alguma forma nos argumentos, a ponto de parar de pensar no mundo lá fora e no
que faria se estivesse no parque, concentrando-se cada vez mais no que o professor
está dizendo. Parece que Benjamin foi capaz de escrever com a mesma competência
a respeito de fotografia e da crise do romance, do barroco e da trajetória poética de
Charles Baudelaire, das ruas entre prédios que serviram de base para o comércio
em Paris e de brinquedos e brincadeiras que perderam sentido. Em resumo, a vida
como ela é, na diversidade e na confusão barulhenta. Parece existir alguma coisa
interessante além do esperado no modo de pensamento benjaminiano, o adjetivo
que o professor usa em certo momento e que Andrei passa a adotar, porque chama
a atenção deste aluno ao indicar uma possibilidade nova de estar no mundo.

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Entre as muitas coisas que Andrei aprende a respeito de Walter Benjamin, está o
fato de que ele, Benjamin, sempre pensou a respeito de questões relativas à história
(o último texto que escreveu chama-se justamente Sobre o conceito da história), e no
entanto passou a vida toda a ser perseguido implacavelmente pelos movimentos
mais cruéis das circunstâncias históricas. Por fim, empurrado para a fronteira entre
a França e a Espanha, acuado pelo nazismo que parecia estar pessoalmente em seu
encalço, cometeu suicídio com overdose de morfina, em Portbou, em setembro de
1940, ou pelo menos essa é uma das versões para a morte dele. Tinha deixado com
Georges Bataille os manuscritos de Passagens, ou As passagens de Paris, e o escritor os
guardou na Bibliotèque Nationale. O calhamaço de informações, longe ainda de ser
o livro que Benjamin tinha imaginado, foi editado décadas mais tarde e publicado,
mesmo estando incompleto. Curioso que Benjamin havia renovado a ficha pessoal
para frequentar a Bibliotèque Nationale em janeiro de 1940, talvez imaginando que
Paris ainda estava a salvo das garras do nazismo. Pouco depois, numa carta enviada
para a mulher de Theodor Adorno, Gretel (o casal já se encontrava nos Estados
Unidos), ele tenha expressado indecisão entre começar um artigo novo ou dar
sequência ao trabalho sobre Baudelaire, que dizia morar em seu coração mais do
que qualquer outro, mas disse também que não poderia tolerar “adiamento nem
interrupção, nem mesmo para assegurar a sobrevivência do seu autor”. O outro
artigo que Benjamin tinha em mente era um estudo comparativo entre as
autobiografias de Jean-Jacques Rousseau e André Gide, o que deixa Poruk de
orelha em pé: e se decide por mãos à obra e fazer esse estudo como espécie de
homenagem a Benjamin?
A questão é que existe tanta coisa para ler, de Benjamin e de autores anteriores a
ele, tantas possibilidades em aberto, temas, conexões possíveis, caminhos, que
Andrei Poruk se sente um tanto atordoado e perdido. É parecido com aquela cadeia
de relações que ele de vez em quando gosta de estabelecer. Em 1921, Walter
Benjamin comprou uma aquarela de Paul Klee, intitulada Angelus Novus. Parece
muito com rabiscos infantis, uma criança que decidiu desenhar um anjo. Em 1940,
quando escreve o ensaio Sobre o conceito da história, Benjamin menciona que o anjo
da história encontra-se em meio a um turbilhão, sendo soprado de costas rumo ao
futuro, mas com os olhos voltados para as ruínas do passado, que se acumulam aos
seus pés. Anos mais tarde, quando um número considerável de leitores (mas um
número simplesmente impossível de ser contabilizado) já deve ter lido em algum

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momento o texto benjaminiano, aparece uma cantora como Laurie Anderson e
presta uma homenagem explícita a Benjamin, numa música chamada The Dream
Before, do álbum Strange Angels, ou seja, anjos estranhos, numa tradução livre. Na
letra, João e Maria da fábula infantil estão vivos e bem, moram em Berlim e
conversam entre si.

Ela diz, O que é história?


E ele diz, História é um anjo
sendo soprado
de costas
rumo ao futuro
Ele diz: História é uma pilha de ruínas
e o anjo quer voltar e arrumar as coisas
para consertar as coisas que se quebraram

Mas tem uma tempestade que sopra do Paraíso


e a tempestade continua a soprar o anjo
de costas
rumo ao futuro

Ao fazer isso, mais um fio do tecido se estabelece e lembra — essa referência


Andrei não faria sozinho, ele conta com a sorte de o professor conhecê-la e apontar
para o jovem aluno — um relato de Jorge Luis Borges a respeito de não existirem
escritores particulares, mas um único autor que se apresenta, ou se manifesta, por
meio de escritores singulares. É como se tudo se conectasse e fizesse parte de um
mesmo movimento. Talvez seja apenas um espírito otimista dentro de Andrei que
se recusa a ceder terreno para a entrada da realidade brutal. Quando lê dois ensaios
de Benjamin, um a respeito do narrador e outro a respeito de Franz Kafka, ele
percebe as intenções de Benjamin: mostrar que há uma perda de sentido das coisas
do mundo, algo que a parábola na narrativa de Kafka vai enfatizar com todas as
forças. Perda de sentido do mundo, que nunca teve mesmo qualquer sentido. “A
obra de Kafka representa uma doença da tradição”, escreve Benjamin. Ou seja, a
parábola não simplesmente desloca o sentido original, mas cria novo sentido, que
no caso da obra do escritor tcheco é ausência de sentido.
Agora, ao pensar a respeito dessas questões, Andrei acredita que está se
inserindo numa espécie de tradição, mas terá que contribuir com algo de si mesmo,

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com algum tipo de ideia original, para que de fato possa fazer parte dessa tradição
de pensadores. Ele gostou muito de ser informado que uma das mulheres por quem
Benjamin foi apaixonado era letã. Benjamin resumiu a vida amorosa significativa a
três mulheres, uma com quem se casou, a secretária multilíngue Dora Pollak; uma
por quem foi apaixonado e não exatamente correspondido, a escultora Jula Cohn; e
uma que lhe mostrou as potencialidades de uma relação explosiva, vulcânica,
justamente a letã Asja Lacis, que ele chama de revolucionária russa de Riga (à
época, a Letônia fazia parte da União Soviética), “uma das mulheres mais
extraordinárias que conheci”. Estava numa das constantes viagens que fazia ao
exterior quando a conheceu, em Capri, em 1924. Mas as discussões acaloradas a
respeito do que chamou de “comunismo radical” não tinham chance de ir muito
longe com um pensador que foi a vida inteira um radical, mas radical livre. Ao ler
uma referência a Benjamin num estudo a respeito da Escola de Frankfurt, Andrei
confirma isso. Stuart Jeffries menciona o seguinte em seu Grande hotel abismo: a
Escola de Frankfurt e seus personagens: “Embora Benjamin nunca tivesse pertencido à
equipe da Escola de Frankfurt, ele foi seu mais profundo catalisador intelectual”.
Não é pouca coisa.
A vida toda, Benjamin foi um exilado, de si mesmo, da história, do mundo que
insistia em persegui-lo de forma implacável, empurrando-o para margens, frinchas,
espaços indefinidos que talvez ecoassem (mal) dentro de sua sensibilidade aguçada.
Ele se refugiava no conhecimento, na inteligência, apesar dos pesares. Como se a
inteligência pudesse ser o refúgio contra todos os movimentos retrógrados,
conservadores, do mundo. Retrógrado é maneira gentil de dizer. O abrigo do
pensamento, Andrei formula. Poderia escrever um ensaio a respeito disso, dessa
irmandade internacional que se articula em torno de ideias e ignora a tacanhice das
fronteiras e passaportes.
O mundo parecia se afundar mesmo em trevas as mais sombrias. Na volta da
Itália, Benjamin passou por Nápoles, Roma e Florença e viu cada vez mais fortes os
sinais do fascismo se espalhando pelo país. Ele se escondeu nos estudos e, em
dezembro de 1924, escreveu uma carta ao amigo Gershom Scholem para dizer que
tinha terminado uma primeira versão de Origem do drama trágico alemão, o texto cru
da tese de livre-docência que pretendia apresentar à Faculdade de Filosofia em
Frankfurt, o que fez em maio de 1925, mas retirou o trabalho em setembro, sob
recomendação de amigos, para evitar uma recusa formal. Um dos biógrafos, Bernd

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Witte, explica a postura de Benjamin: “Para ele mesmo a sua solidão intelectual era
mais importante do que o vínculo e a segurança institucionais, pois somente ela
parecia lhe garantir um juízo crítico e independente”. Andrei pensa a respeito da
frase de Witte. Como ele sabe o que Benjamin pensava a respeito da própria
independência no conflito com algum vínculo institucional? Afinal, se chegou a
apresentar a tese, é porque tinha a ambição de ser considerado professor e inclusive
contratado para um cargo universitário. O biógrafo deve estar chutando, não tem
como saber as verdadeiras intenções de Benjamin. Uma biografia, afinal, não passa
de um grande chute. E um chute ainda mais arriscando quando se pensa no estilo
fragmentário que Benjamin sempre cultivou. Como falar na inteireza de uma vida
toda fragmentada, uma vida em fuga dos movimentos soberbos das forças obscuras
que a época reservou para ele? Uma vida que se viu forçada a termina de forma
abrupta na fronteira (a fronteira: um desses não-lugares, anota Andrei num canto da
página, para ver se usa em alguma parte do que for escrever). Uma vida que foi
vivida o tempo todo sob pressão e sob movimento, embora Benjamin admitisse
gostar mito da ideia de movimento perpétuo. “Seu vício maníaco de viajar”, como
anota o biógrafo. Mas viajar desse modo, movido à força pelas engrenagens
perversas da história, à procura de abrigo (impossível achar) ou de dinheiro
(sempre precário) para sobrevivência, não é fácil.
Numa carta a Bertolt Brecht, de 1935, a quem tinha sido apresentado por Asja
Lacis, Benjamin escreve: “Não tenho me mostrado inteligente o suficiente para essa
vida”. A verdade é que a vida andava mesmo precária e daí para a frente pareceu
piorar a cada dia. Benjamin morou em Paris com a irmã, depois sublocava quartos
de outros imigrantes. Sua tábua de salvação parecia ser a Bibliotèque Nationale, “o
lugar de trabalho mais ansiado”, conforme anotou. Várias das cartas que escreveu
para Nova York — para onde a sede do Instituto de Pesquisas Sociais, ou seja, a
Escola de Frankfurt, havia se transferido — entre 1935 e 1937 contêm reclamações
da miséria econômica que o acometia. O sintoma de desespero fica claro quando
Benjamin encarregou um jovem conhecido na América, Stephan Lackner, de tentar
vender a gravura de Paul Klee, de modo a poder pagar a passagem do
deslocamento que talvez fosse se revelar definitivo (bem: num sentido perverso, foi:
Benjamin se suicidou enquanto fugia em direção à trajetória que o levaria afinal à
América, onde poderia se juntar ao pessoal da Escola de Frankfurt e talvez pudesse
levar uma vida menos complicada).

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Depois da primeira aula que tem a respeito do assunto, Andrei procura um
exemplar da obra de Walter Benjamin na biblioteca, encontra uma coletânea de
ensaios que falam de literatura e história da cultura e leva para casa como se
carregasse um tesouro na mochila. Essa é a sensação, se tivesse de descrevê-la.
Fascinante, o mundo das ideias não precisa ser sisudo e mencionar apenas temas
elevados, mas pode debruçar-se sobre miniaturas e questões do dia a dia, temas
caros a Benjamin. Foi como se alguém tivesse aberto uma chave nova para a vida,
apresentando a Andrei um universo enorme, monumental, que precisa de gente
para catalogar e compreender. Ele pode se candidatar para o cargo, pensa. Ou é
como se a filosofia dissesse que a vida cotidiana também importa e que toda a
hipocrisia em que a existência está mergulhada pudesse ser parte de uma análise
que retira o véu e enxerga as coisas como elas de fato são. É uma forma ainda de
rebeldia, Andrei entende, mas uma rebeldia que é levada a sério pelos adultos e
que pode se constituir numa forma de garantir a sobrevivência, com prazer e com
seriedade aparente, que na verdade esconde uma forma divertida de continuar
vivo. Andrei quer saber onde é que precisa assinar para fazer parte desse universo.
Decide que será pensador, filósofo, ensaísta, escritor, homem de ideias. Cada uma
dessas coisas, todas elas. Talvez jogue xadrez, como fazem os conterrâneos, como
fizeram Benjamin e Brecht sempre que se encontraram para trabalhar juntos.
Nesta noite, depois de ler muitas páginas do livro de Benjamin e de ter apagado
a luz, encontra dificuldade para dormir, porque as ideias ficam lhe rondando a
cabeça e provocam uma rebelião contra o sono. Gostaria de ser como Benjamin,
estudar qualquer assunto, escrever de maneira desafiadora e elegante a respeito de
temas que lhe são próximos. Andrei Poruk decide que vai ser uma pessoa sagaz, um
pensador inquieto do mundo contemporâneo, um provocador que vai cutucar com
vara curta ideias feitas e conceitos estabelecidos. Vai ser divertido, decide. Meia-
noite e meia, como não consegue conciliar o sono, acende a lâmpada sobre a
escrivaninha, e começa a escrever um ensaio a respeito de ser jovem na Letônia, a
embriaguez da liberdade, algo que talvez despertaria um sorriso no próprio
Benjamin, se ele pudesse ler. Às três, Andrei consegue se arrastar de volta para a
cama e dorme um pouco, até o despertador tocar, às sete e meia, para que ele se
levante e comece a se preparar para as aulas do dia.
Neste momento a vida dá uma guinada importante, porque de repente Andrei
sabe o que quer fazer na universidade, embora não saiba ainda que curso vai

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prepará-lo melhor. Ele chega ao ambiente acadêmico e se sente elétrico, acordado,
consciente, eufórico. Pensa a respeito dos caminhos que se abrem diante dele,
pensa a respeito de potencialidades que prometem ser interessantes. Pode ser
literatura, história, ciência política, sociologia. Curiosamente, decide que não quer
cursar filosofia, não quer uma formação careta sobre correntes filosóficas e camisas
de força para moldar o pensamento. Vai precisar circular em torno do assunto
primeiro. Talvez a filosofia fique para a pós-graduação, caso consiga bolsa. Até lá,
vai se permitir certas aventuras do pensamento, primeiro. Os pensadores da Escola
de Frankfurt, o professor disse, não eram exatamente filósofos, na acepção dura da
palavra, ou seja, não tinham necessariamente cursado filosofia na universidade.
Muitos eram sociólogos de formação. E filósofos por opção. Esse vira o lema que
passa a repetir com alguma frequência: filosofia por opção. Pensa até em criar uma
camiseta com esses dizeres. Soa irônico, mas é sério, diz tanta coisa, ele fala para si.
Gosta da ideia, embora não a execute. Quer dizer, não executa a ideia de fazer a
camiseta.
A ideia de ser filósofo não o abandona nunca mais a partir desse dia de
primavera em que escuta falar pela primeira vez de Walter Benjamin, o filósofo
cuja influência parece continuar a se estender sobre o mundo, mesmo tantos anos
depois do suicídio no limite entre a França e a Espanha, quando tentava fugir do
nazismo e se viu impedido pelo fechamento da fronteira justo no dia em que ia
fazer a travessia para no fim chegar a algum lugar diferente, provavelmente o Novo
Mundo, ou seja, os Estados Unidos, porque na Espanha não teria campo de atuação
e porque vários dos ex-colegas do Instituto para Pesquisa Social, o nome oficial da
instituição que abrigou o que se conhece como Escola de Frankfurt, haviam partido
para a América. Tomou uma decisão extrema que cortou pela raiz uma mente
privilegiada, pensa Andrei. Alguém precisa assumir esse legado, dar continuidade a
esse tipo de pensamento. Pode ser eu, Andrei sonha. Por que não?
O jovem estudante passa a procurar por esse tipo de pensador na biblioteca e vê
que a bibliografia do tema é praticamente inesgotável. Por um lado, poderia ser
desanimador, saber que há tanto acúmulo de gente que pensou a respeito de
praticamente tudo o que há para se pensar. Fileiras e fileiras de livros nas estantes
dedicadas à filosofia, quilômetros de pensamento concentrado entre as capas
daqueles volumes que se sucedem, o acúmulo do que o ser humano foi capaz de
produzir ao longo de tantos séculos. Um universo inteiro do que a humanidade foi

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capaz de raciocinar e Andrei sabe que a biblioteca da sua escola nem é das maiores.
No entanto, e isso é o que faz com que Andrei não desanime, os filósofos não
pensaram a respeito de muita coisa atual. É nisso que ele pode se diferenciar dos
outros. Pensar sobre o momento presente, questões atuais, o que é a vida
contemporânea, que desafios ela apresenta e como abordar essas coisas de um jeito
interessante. Nisso os filósofos pecam um pouco. Nisso, Walter Benjamin foi um
tanto diferente. Justamente esse é o ponto de inflexão, o legado que Andrei Poruk
deseja herdar. Por dentro, ele sabe que o diferencial que foi de Benjamin e que
agora ele deseja continuar é uma sacada nova, um jeito de fazer esse projeto dar
certo e ter percebido isso ainda tão novo, Andrei pensa, é talvez o que lhe dá o
direito, sim, de levar adiante essas ideias.
Escreve com misto de afinco e euforia vários ensaios nos dias que se seguem à
sua descoberta. Afinco. Escrever é afinal uma tarefa difícil, que exige dele ter que
pensar a respeito das questões não de forma convencional ou trivial, mas de
maneira inovadora e densa e, além disso, tomar decisões sobre a melhor forma de
colocar as ideias no papel. Euforia. Às vezes, basta olhar para alguma coisa ou
começar a ver um filme para ser assaltado por uma série de ideias que imploram
para serem transformadas em argumentos para os próximos ensaios. Andrei
começa a pensar, por exemplo, que os motivos pelos quais ele mesmo aceitou beber
tanto quando completou quinze anos é porque queria ser apreciado pelos amigos, o
que agora considera que foi um erro. O que qualifica um filósofo é não precisar de
qualquer aval coletivo, é preciso bastar-se e intimamente, Andrei jura para si
mesmo que jamais vai se colocar nesse tipo de situação novamente, de precisar
aceitação social. Se as pessoas não gostarem do que ele pensa ou de como age, pior
para elas. Não vai se moldar mais ao grupo, será uma pessoa no controle da própria
autonomia.
É pensando nisso que Andrei começa a desenvolver um ensaio a respeito do
contraste entre verdade e mentira, algo que sempre inquietou filósofos. Todo
mundo parece estar em busca da verdade, mas a vida social é inteira baseada em
mentiras e, no dia a dia, a quantidade de mentiras empregadas é enorme,
simplesmente porque as pessoas não suportariam viver falando a verdade umas
para as outras. A verdade é insuportável, conclui, e mais do que isso, as pessoas não
querem mesmo qualquer verdade, preferem, por ser mais cômodo, ou melhor, por
ser a única coisa viável, preferem a mentira. Ou as mentiras, plural.

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Uma delas, bastante intensa, é tratada num ensaio de Poruk a respeito do modo
como as pessoas decidem viver, ludibriando o tempo, ocupando-o com atividades
triviais, como ir ao cinema, ver uma partida de futebol, perder tempo diante da
televisão ou do celular, porque do contrário a vida se torna um fardo difícil demais
de suportar. Divertir-se é um modo de não pensar o tempo todo na finitude da existência e
não ficar paralisado por este conhecimento tão terrível, ele anota num trecho do ensaio.
Mesmo que dure apenas um instante, a diversão é um modo de passar rasteira na ideia da
morte como o terreno do absoluto contra o qual qualquer rebelião parece inútil. Hum, isso
não está mal, ele pensa.
Um dia, decide mostrar os ensaios que andou escrevendo ao professor que falou
de Walter Benjamin na sala de aula e despertou um mundo novo no interior de
Andrei. O professor se chama Aleksandr Blank, um sujeito com um corpo em
formato de pera e uma voz meio anasalada, que se veste com um desleixo de fazer
dó. Ele lê com entusiasmo os ensaios de Andrei, comenta com o aluno a
possibilidade de, sim, ir longe se continuar por aquele caminho. Diz com um
sorriso que quase disfarça a voz anasalada que se sente orgulhoso por ter ajudado a
descobrir uma vocação e que esse tipo de situação é o que faz a atividade de
professor valer a pena. Andrei sabe que é uma modalidade de lugar-comum, mas
como se trata de gentileza, não vai contestar Blank, apenas pelo prazer perverso de
vê-lo confrontado com a própria mediocridade. O que talvez, Andrei está pensando
também, seja sintoma de arrogância de sua parte, porque quem ele pensa que é
para criticar uma pessoa como Aleksandr Blank, que tem muito mais experiência
de vida. A verdade é que os pensamentos de Andrei disparam para todos os lados e
é difícil manter uma unidade neste momento, um tipo de treinamento que talvez o
estudo acadêmico avançado irá lhe proporcionar, é a esperança que cultiva.
— Você vai estudar filosofia, então? — pergunta Blank, sabendo que a resposta
vai apenas confirmar sua suspeita.
— Aí é que está, acho que não — surpreende Andrei. — Cursar filosofia não vai
me ajudar neste projeto, pelo menos não nesse momento, porque vou aprender a
respeito das escolas, das teorias, da lógica, da metafísica, tudo muito formal, e não é
isso o que eu quero. Se tivesse como estudar num instituto como aquele lá que
existiu em Frankfurt...
— Instituto para Pesquisa Social — relembra Blank.

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— Isso, Instituto para Pesquisa Social. Se houvesse algo assim, seria lá onde eu
gostaria de estudar.
— Mas não existe, Andrei, não na Letônia, pelo menos. Talvez seja possível
pesquisar se existe algo parecido, mas você teria que se mudar para outro país e,
nesse caso, é preciso pensar se você está disposto a fazer isso e se terá condições de
ser aceito nesse outro lugar, onde quer que ele esteja. Se quiser, posso te ajudar na
procura. Mas, se isso se mostrar impossível, por um motivo ou por outro, você devia
considerar o curso de filosofia, de qualquer modo.
— Seria ótimo essa ajuda — Andrei admite, embora a ideia de se mudar da
Letônia seja algo assustadora. Não terá dinheiro para se sustentar em outro país,
seus pais não aceitarão essa ideia assim tão fácil, os recursos financeiros da família
são suficientes para as necessidades do dia a dia, mas não para esse tipo de, ele
imagina o pai falando com a voz rouca, exorbitâncias.
— Enquanto isso, te conto uma piada sobre filósofos letões — diz Blank. —
Quem sabe te ajuda a decidir. É assim. Três filósofos se sentam para discutir
filosofia. O primeiro diz, batata é igual a felicidade; você sempre caça, nunca
alcança. O segundo diz, batata é igual a vida; é uma sorte ter uma, impossível ter
duas, mas no fim é preciso comer a que se tem. O terceiro diz, batata é igual
eletricidade, não existe a não ser na América capitalista. Aí, os três concordam uns
com os outros. Tudo é triste. E eles são assassinados por mencionar a América
capitalista. A vida é assim.
Andrei não acha graça, e fica olhando para o professor meio sem saber como
reagir, enquanto Aleksandr aperta os olhinhos e sacode a barriga de meia idade
numa risada toda peculiar, que Andrei conhece de sala de aula, nas ocasiões em
que ele julga contar algo engraçado e ri, quase sempre sozinho ou com a
solidariedade de alguns poucos. Mas talvez não seja mesmo para achar graça. Piada
velha, da época da dominação russa, que só as gerações mais antigas são capazes de
apreciar. Lugar-comum, isso mesmo que Poruk pretende evitar a todo custo daqui
para a frente. Embora ele sinta algum tipo de solidariedade pelo professor que não
se interessa em saber se ele achou graça ou não, que ri com autonomia, e que sabe
rir a despeito de quão complicada seja a situação. Aliás, eis aí um tema para ensaio,
pensa Andrei, a autonomia do riso diante de qualquer que seja a adversidade. Será
que Walter Benjamin sabia rir, ele se pergunta, e depois anota no caderno.

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O plano de estudar no exterior revela-se uma utopia, o outro nome que
normalmente se usa para se dizer impossibilidade. Andrei decide afinal cursar
letras, com algumas disciplinas feitas em filosofia. Está começando o caminho que
julga ser sólido para levar a bom termo o projeto de virar um futuro Walter
Benjamin. É claro que, ao entrar na universidade, ele descobre um grande número
de outros pensadores mais contemporâneos do que Benjamin, vários deles
debruçados sobre a atualidade que tanto interessa a Andrei. Descobre, por
exemplo, o filósofo francês André Comte-Sponville, que escreve de maneira tão
simples a respeito de assuntos tão complexos, o que não deixa de ser uma façanha.
O que será necessário, a certa altura Andrei entende, é desenvolver um tipo próprio
de pensamento que seja capaz de torná-lo interessante e relevante.
A ideia de relevância é complicada, ele sabe, porque envolve algum tipo de
instância ou instituição que decide, talvez de maneira arbitrária ou sabe-se lá com
que métodos seguros, quem é ou não relevante, quem merece ou não atenção. Há
muito de acaso nos emblemas da vida social, que estão decidindo quem deve se
destacar, quem merece ser mergulhado no rio do esquecimento. E só às vezes
alguns nomes são salvos de lá, mesmo tendo sido em vida mergulhados ali no que
parecia que ia durar para sempre. Um Van Gogh, um Caravaggio, um Kafka. Um
Poruk? Não, um Poruk, este Poruk vai lutar para nem ser preciso o mergulho no
esquecimento, para ser catapultado logo a um lugar em que suas ideias sejam
relevantes para o seu tempo. A tarefa é complicada, ele sabe, porque envolve não se
sabe bem que tipo de fatores imponderáveis. Algo que passa pelo sistema da mídia,
ele pensa, e Andrei tem pensado muito durante a graduação, algo que passa pela
centralidade ocupada por certos países, dos quais o seu não é exatamente um
destaque, há muitos fatores que devem ser levados em consideração. Mas, por que
ele está preocupado com a relevância? Deveria, e também a respeito disso ele
pensa, se preocupar apenas com a consistência e a materialidade das ideias. Se não
se tornar conhecido em vida, azar. Se puder ser recuperado depois de morto, tudo
bem, é um preço legítimo a se pagar. O importante é poder se dedicar ao
pensamento, a esse mundo imaterial em que a mente se torna mais destacada do
que o mundo sólido e cheio de adversidades e complicações, tarefas redundantes e
boçalidade. Embora seja por estar imerso nele é que seja possível erguer um pouco
a cabeça, acima da linha material, para ver as coisas um pouco melhor.

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Quando finalmente termina a graduação e parece sem saber que rumo tomar em
seguida, há um professor interessado em orientá-lo no mestrado que o estimula a
continuar os estudos um pouco mais.
O professor pertence ao departamento de filosofia, chama-se Karl Vanag. É um
sujeito de sobrancelhas tão grossas que parece ter colocado duas taturanas na testa
apenas para pregar uma peça em alguém, algo capaz de lhe dar aparência de estar
eternamente em briga contra os destemperos do mundo — esses que nunca são
poucos. Vanag está perto de se aposentar, cantou num grupo de canções folclóricas
quando era mais jovem, mas mesmo perto de encerrar a carreira aceita esse aluno
que frequenta sua disciplina sobre as relações de proximidade e distância entre
filosofia e literatura. Andrei mostra tanto interesse no tema mais caro de Vanag —
o pensamento da escritora e pensadora letã Zenta Mauriņa, sobretudo no período
anterior ao longo processo de migração que ela experimentou a partir de certo
ponto na vida —, que Vanag diz sim, aceita orientar Andrei Poruk, caso ele consiga
passar nos exames para o mestrado.
O curioso na obra de Zenta Mauriņa, pensa Andrei, à medida que as aulas de
Karl Vanag caminham com intensidade tão crescente quanto o interesse de Andrei
pela obra da escritora, é que ela é autora de textos de ficção, mas escreve também
bastante a respeito da obra de outros escritores, sejam eles letões (Rainis
[pseudônimo de Jānis Pliekšāns], Anna Brigadere, Fricis Bārda), russos (Fiódor
Dostoiévski, de quem ela escreveu uma biografia) ou italianos (Dante Alighieri). É
este lado do escritor que olha para os pares e discute questões literárias o que
termina por despertar a curiosidade de Andrei Poruk para a obra de Zenta
Mauriņa, mais do que as frases pausadas e a respiração um tanto ofegante de Karl
Vanag, resultado, Andrei desconfia, do volume da barriga que oprime os pulmões,
mas também da quantidade alucinante de cigarros que Vanag consome.
Andrei consegue vislumbrar um futuro em que passará diante da vitrine de
alguma livraria e verá livros de sua autoria a respeito dos escritores que ele mesmo
tanto admira, um número que permanece em aberto, porque Andrei tem ainda
pela frente um grande potencial de novas descobertas por serem exploradas. Uma
das mais recentes, que andou lendo nos dias anteriores à prova do mestrado,
quando terminou de estudar toda a teoria e precisou dar um tempo de leituras
pesadas para desopilar um pouco o cérebro, foi a obra de um escritor espanhol que
também gosta de se debruçar sobre outros autores, Enrique Vila-Matas. A obra dele

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começou a ser traduzida há pouco na Letônia por uma pequena editora charmosa,
Ezera Redaktors, cheia de cuidados com a edição.
Eis aí outro tema para ensaios, os escritores que estão sempre falando a respeito
da própria atividade em incontáveis livros. Durante um tempo, ele conversa com
Vanag a respeito do que tem pensado, escrever sobre o lado biográfico de Mauriņa
(a biografia de Dostoiévski, que tem o nome dele, ou a autobiografia dela, A longa
jornada) ou tentar escrever algo mais geral a respeito da multiplicidade de gêneros
em que ela escreveu, ensaios, biografias, ficção. Andrei fica especialmente tentado a
analisar as narrativas de um livro dela chamado No começo era a alegria, como
explica a Vanag, que abana a cabeça, para cima e para baixo, com as incômodas
taturanas pregadas na testa.
A ideia de fazer um mestrado é interessante, porque permitirá a Andrei Poruk
refinar um pouco mais o próprio pensamento, que é o que ele deseja, e prolongar a
permanência nesse ambiente mais ou menos seguro que é representado pela vida
acadêmica. De modo que ele se dedica para as provas, a escrita, a de proficiência
em língua estrangeira, a entrevista, e se sente abalado pelo misto de esperança e
possibilidade de fracasso, caso outros candidatos sejam melhores, caso tenha
cometido algum tipo de bobagem muito grande em alguma das respostas. Essas
emoções em conflito desembocam num grande alívio quando o resultado é
divulgado e seu nome está na lista dos selecionados. Vai começar uma nova etapa
da vida, com as melhores perspectivas pela frente. É pouco depois desse breve
momento de celebração e contentamento que uma novidade inesperada como a
morte inesperada de Karl Vanag vem jogar água fria nos planos de Andrei.

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6 Anúncio de uma aventura

A respiração cada vez mais ofegante do professor Karl Vanag é um indício da


piora na saúde que ele prefere fingir que ignora. Os cigarros acesos um no outro
também não colaboram muito para melhorar as coisas, além da tendência para o
consumo imoderado e algo compulsivo de comidas gordurosas. O contraste entre
essa vida dispersiva no cotidiano e a postura austera que adota em sala de aula
quando pratica análises literárias ou filosóficas é gritante. Mas acontece que Vanag
recusa-se a procurar médicos, porque não confia muito no trabalho que eles
praticam.
— São uns charlatões — bufa, sempre que algum amigo lhe diz que talvez seja
bom procurar um especialista para olhar a tosse cada vez mais insistente.
Os amigos temem câncer de pulmão, que pode ser fatal para ele, nessa idade
avançada de sessenta e sete anos em que se encontra e terá baixa resistência ao
tratamento agressivo, mas é um enfarte que invade as fronteiras pouco definidas da
cidadela do seu corpo durante uma noite em que está sozinho em casa, três meses
depois do início das aulas no primeiro semestre de Andrei Poruk como orientando,
e o estrago provocado é irrecuperável.
A diarista que visita a casa de Vanag uma vez por semana para fazer uma geral e
lavar e passar as roupas do velho professor encontra o corpo dele caído na sala,
quando vem de manhã para trabalhar. Ela fica chocada e, enquanto espera a
chegada das autoridades convocadas para a remoção do corpo, chega a imaginar há
quantos dias ele está morto, mas o legista dirá mais tarde, em parte para
tranquilizá-la, que ele deve ter morrido na noite anterior e não passou tanto tempo
assim até a descoberta, na manhã seguinte. Menos mal, pensa Inara, a diarista, de
maneira instintiva achando que a solidão da morte, o cadáver solitário, é de algum
modo mais terrível que a morte em si. Deve ter lutado sozinho para chegar ao
telefone e pedir socorro, mas não houve tempo.
O que lhe resta de família é avisada para tomar providências quanto ao enterro.
Vanag tem (embora o verbo no presente não seja mais indicado nesta situação) uma
irmã que mora no interior, em Daugavpils, a umas três horas de distância a sudeste
de Riga, perto da fronteira com a Lituânia e a Bielorrússia. A universidade também

69
é informada, Inara liga para a secretaria do departamento, pede para falar com o
chefe e lhe conta o que houve. Como rastilho de pólvora, a morte de Karl Vanag
começa a circular pelo campus e alcança Andrei Poruk nas primeiras horas da
manhã, quando ele chega para assistir as aulas do dia.
A impressão que Andrei tem ao receber a notícia é que se abriu um grande
buraco negro debaixo dos próprios pés e o vazio o engoliu inteiro. O vínculo que
estabeleceu com Vanag foi muito intenso e rápido. Fruto, Poruk desconfia, da
distância que existe em outra frente, entre ele e o pai, August Poruk, um burocrata
da empresa de gás da Letônia, a Latvijas Gāze, que passa a maior parte do tempo
que tem de vida excessivamente preocupado com o próprio trabalho e talvez com a
sempre presente iminência de perdê-lo, sobretudo à medida que o país procura
mecanismos para se livrar da dependência de gás oriundo da Rússia e procura
fechar acordos com outros países, os bálticos Estônia e Lituânia e o nórdico
Finlândia. Não é desculpa para tratá-lo, Andrei pensa, ao próprio filho, da maneira
distante com que August o trata. O ressentimento de um lado em relação ao pai
gerou o vínculo muito forte e muito rápido do outro no que diz respeito a Vanag, é
a análise que Andrei faz de si para si. Vanag apareceu como um pai substituto
natural, embora seja bem mais velho que o próprio pai de Andrei. A paternidade
não liga para essa questão das idades, como fica bem claro.
Andrei dá meia volta e desiste das aulas do dia. Vai ao velório, depara-se com o
boneco de cera exposto à vista de todos na casa funerária sombria e acha o
cerimonial exagerado em torno do defunto extremamente artificial e desnecessário.
O que querem as pessoas ao tratar a morte como rito, ele se pergunta, e fica
imaginando que Vanag concordaria com essa linha de raciocínio e
questionamento, se estivesse ali com Andrei. Ele passa a recordar os muitos e
intensos debates que mantiveram, na aula ou depois dela, na sala de Vanag,
durante as sessões de orientação.
— Este país é pouco afeito ao pensamento — ele afirma um dia, erguendo as
taturanas da testa para dar mais efeito ao que diz. — Embora seja um lugar muito
bom para uma modalidade de aplicação prática do pensamento, o jogo de xadrez,
com nossos grandes mestres e mentes interessadas. Mas o xadrez, por mais
variações que ofereça, é sempre um tabuleiro com sessenta e quatro casas e metade
desse número em peças, ou seja, é sempre pensar dentro de limitações e variações
dentro de limitações, é um jeito perverso de educar o pensamento para permanecer

70
sempre seguindo as mesmas regras. Esse não é o melhor jeito de evoluir o
pensamento. Precisamos sair dessa armadilha e avançar, não só evoluir o
pensamento, mas o país, como um todo.
Em seguida, sem explicar muito o que entende por evolução de um país, Vanag
começa a explicar que o que pensa, na verdade, envolve abdicar da ideia de nação,
esta ou aquela, a Letônia, por exemplo, para alcançar um momento em que será
possível falar em um único planeta, com fronteiras abolidas, concomitante com a
desmontagem das estruturas fronteiriças e das respectivas burocracias. Uma utopia
pela qual talvez valha a pena lutar, ele diz, com um sorriso melancólico. A
humanidade como uma coisa só, sem as tolices locais que segregam e segmentam.
Ou melhor, com respeito às tolices locais, mas sem abrir mão do aspecto mais
amplo da humanidade que nos define a todos.
Enquanto se recorda dessas conversas, Andrei não derrama uma lágrima e acha
que não está sendo tão afetado pela perda do orientador. Sou mais forte do que
pensava, ele chega a formular para si. Será o caso encontrar algum outro
orientador, será o caso não pensar tanto a respeito da sucessão de perdas, a do pai,
em vida, a de Vanag, na morte literal, e tocar a existência adiante. Esse é talvez o
grande segredo humano, a capacidade de tocar adiante enquanto a vida ao lado e
atrás desmorona. Ela, a vida, afinal talvez não passe disso no fim das contas, uma
permanente administração das perdas que se acumulam diante da pessoa e uma
capacidade inconsciente de continuar vivo enquanto isso. Perdas que se acumulam,
ele ri da ideia contraditória que a frase sugere. Devia ser na verdade perdas que se
subtraem, mas também isso iria acumular um tipo de vazio. Andrei sabe que não
está conseguindo juntar duas pontas lógicas de um mesmo raciocínio neste
momento. Nem sabe mais a respeito do que está pensando de verdade, para falar
honestamente. Está atordoado. E está sentindo muito mais a perda de Vanag do
que vem demonstrando, seja com lágrimas ou com qualquer outra manifestação
exterior.
Ele cumpre, com os demais orientandos de Vanag, o ritual de acompanhá-lo até
o Raiņa kapi, o cemitério que tem esse nome tão poético, Chuva. Os restos mortais
de Vanag, ou seja, o boneco de cera que Andrei viu exposto no caixão, ficarão ali
para deteriorar pelo sem-fim dos tempos. Madeira e restos orgânicos que
apodrecem debaixo da terra, encimados por uma pedra gravada que permanecerá
por muito mais tempo. Gravam apenas o nome dele e a data de nascimento e

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morte, patrocínio da irmã que veio de Daugavpils. Ela se chama Zigmara e chegou
pensando em levar consigo o corpo do irmão de volta para a cidade natal com o
intuito de enterrá-lo num túmulo próximo ao dos pais, mas depois de ouvir tantos
argumentos contrários desiste e aceita enterrá-lo ali mesmo, onde Vanag cultivou
amigos e seguidores intelectuais, onde construiu uma carreira em vida e agora
precisa permanecer para manter a carreira em morte, um argumento pouco
convencional mas eficaz.
Depois, Andrei segue para um bar perto de casa e enche a cara sozinho, como
sozinho passa a ressaca no dia seguinte e sozinho permanece nas próximas
semanas. Uma atitude de custo elevado, do ponto de vista emocional, mas ele acha
que é o melhor para poder pensar direito a respeito de como as coisas são e deixar
que as ideias se sedimentem, além de precisar de um tempo para decidir o que
pretende fazer com a própria vida de agora em diante. Uma única certeza: é preciso
dizer sim a qualquer possibilidade de aventura, a qualquer novidade que se
apresente para ele. É preciso dizer sim a excessos, porque a moderação ele viu do
que é feita e o tipo de retorno modesto que ela proporciona. Para de fazer a barba,
que cresce de maneira desgrenhada.
As meditações de Andrei Poruk levam-no a escrever um ensaio a respeito do
luto neste período. Vivendo no planeta das ideias, ele precisa tirar proveito delas,
conclui. Os amigos, boa parte deles, está começando a exercer uma atividade
qualquer de comércio junto aos pais, donos de pequenas empresas de transporte ou
de comércios variados. Andrei é o único com talento para pensar, ou pelo menos é
o único que tem coragem de fazer este investimento, o que não deixa de ser visto
pelos demais com certa desconfiança, porque parece uma presunção além das
próprias capacidades, portanto, um despropósito que pode ter alto custo. A vida
simples é tão melhor. E Andrei parece aquele vaidoso excessivo, o ambicioso
descontrolado. Ou será que essa é apenas a projeção que Andrei faz do que supõe
sejam os pensamentos dos amigos, é o que ele não tem muita certeza agora, que se
pôs a cogitar além das próprias capacidades e talvez por isso esteja pensando em
excesso. Aliás, todas as suas certezas estão em banho-maria, todas colocadas sob
suspeita. Seja como for, escreve a respeito do próprio luto, das ideias sombrias que
o rodeiam na sequência da morte mais ou menos prematura de Karl Vanag.
A morte é uma modalidade inevitável de traição, mas nem por ser inevitável é
menos perniciosa, Andrei anota no ensaio. Uma traição às pessoas que

72
permanecem vivas e se ressentem da ausência daquele que se foi. O que leva ao
próximo patamar, o de que a lamentação é tanto pela perda da pessoa quanto pela
projeção de que também eu terei que me submeter à humilhação da morte, à
aniquilação inevitável. Uma vez disparada a máquina de ideias sensíveis de Andrei,
ele escreve com ímpeto a respeito das emoções que o tomaram. E de maneira
implacável, porque percebe que é o único jeito de tratar o tema da morte com
honestidade. Escrever a respeito do tema é uma maneira de processar o luto, ele
percebe, a certa altura. Uma maneira peculiar, sem dúvida, mas tão legítima quanto
as demais.
Andrei começa a pensar se não seria o caso abandonar a universidade e procurar
um emprego mais convencional, na contramão do que vinha pensando dias antes,
quando tinha se posicionado inteiramente a favor das aventuras, das novas
possibilidades, sim aos excessos. Essa vida das ideias na qual tentou mergulhar é
inquietante, porque quanto mais você pensa, mais é preciso se provocar, cavoucar,
chafurdar e quando pensa que será necessário fazer isso ao longo de toda a
existência, Andrei não sabe se dará conta do recado. Sobretudo, lhe parece difícil
manter a coerência. É exaustiva, essa escolha, é mais maldição do que alento. Os
pais de Andrei se preocupam com o retraimento do filho, ou melhor, a mãe se
preocupa, porque é mais sensível e observadora e está atenta para o que acontece
em volta. August, como se sabe, está preocupado demais com a dimensão do
trabalho na própria vida. Mas a mãe de Andrei, Livija, tenta conversar com o filho e
retirá-lo um pouco do mutismo em que ele se meteu. Ela teme que o filho possa
estar entrando num quadro de depressão severa e, quanto mais deixá-lo quieto,
pior será para tentar uma reversão quando a coisa avançar demais. Acontece que
Livija também tem um emprego como secretária bilíngue de uma firma de
exportação e só pode dar atenção ao filho à noite, quando chega em casa, e no
entanto Andrei tem passado horas e horas fora de casa, portanto é difícil que se
encontrem para conversar. As agendas não parecem afinadas. A preocupação de
Livija tem que ser administrada da pior maneira possível, com a manutenção de
uma distância que não lhe agrada. Mas no fim de semana ela tenta conversar com
Andrei. Ela bate na porta do seu quarto.
— Filho, preparei aquele bolo de amêndoas que você gosta tanto — diz, através
da porta. — Posso entrar?

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Livija escuta o barulho de alguma coisa caindo no chão, um som abafado. O que
está acontecendo lá dentro? A voz do filho reluta, mas concorda.
— Entra, mãe.
Ela empurra a porta e tenta sorrir.
— Vem comer um pedaço, meu amor. Vai fazer bem para você.
— Mãe, estou sem fome agora.
— Você tem se alimentado mal demais por esses dias, meu filho, isso não está
ajudando. Você anda mais magro ultimamente. Vem comer um pedacinho. Eu
estou pedindo.
Ela se aproxima aos poucos da cama dele e se senta na beirada. Andrei está na
cadeira próxima à escrivaninha que tem no quarto, mas virou-a na direção da mãe.
Quando ela se senta, percebe que ele se curva para pegar um livro que está no chão.
Livija continua a falar, uma vez que ele não se manifesta.
— Você quer conversar comigo a respeito de qualquer coisa, meu filho? Você
sabe que pode confiar em mim, sempre pôde, e sinto falta das nossas conversas. A
gente tinha uma relação mais próxima quando você era mais novo e você falava
sobre tudo comigo.
— Ah, mãe, você está nostálgica hoje — ele diz. Mas não refuta as informações, a
de que falava mais com a mãe, a de que parou de falar. — As coisas mudam, você
sabe.
Ele ergue os ombros, como se quisesse se justificar. Não poderia falar com a mãe
a respeito dos pensamentos que vem tendo, ela não iria compreender. Ou será que
está subjugando a mãe, como acontece quando o sujeito entra para a universidade
e aprende que há um mundo intenso de diferentes valores e, quando confrontado
com aquele mundo de onde veio, restrito e fechado em si mesmo, é inevitável o
conflito, o choque. Como falar isso com a mãe sem ser ofensivo, Andrei pensa, e
conclui que talvez seja melhor não falar, melhor manter aqueles pensamentos
apenas para si, para não ser considerado uma pessoa insensível e arrogante. Não
falar com a mãe, ele pensa, é uma maneira de poupar um conflito desnecessário,
até que possa chegar ao ponto, que ele julga ser questão de tempo e adequação, em
que vai saber como aproveitar os valores do seu ponto de origem para aplicar nos
textos que pretende desenvolver mais adiante, no futuro. De alguma maneira, ter
ido para a universidade fez Andrei perceber que pode se transformar em alguém
diferente, mas ao mesmo tempo não quer simplesmente passar uma borracha por

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cima do passado e negar os valores de origem. O processo, no entanto, até que se
conclua, é complexo e requer um grau de sutileza que tem feito Andrei meditar
bastante, motivo pelo qual prefere não escancarar para a mãe alguns dos
pensamentos que vêm lhe incomodando.
Quanto ao luto, bem, o luto é para ser vivido de maneira muito particular, e se
tiver que falar para a mãe a teoria de Vanag como substituto para o pai que não
cumpre o papel de pai porque é um ausente inveterado, ela vai se sentir obrigada a
defender o marido, o que será também desgastante para a relação mãe e filho.
Andrei não quer isso. Portanto, nada de conversa franca a respeito desse assunto
também.
Durante um tempo essa diferença entre o que ele pensa internamente e o que
exterioriza em conversas banais lhe incomodou, porque é como se estivesse traindo
a confiança da pessoa amada, no caso, a mãe. Mas Andrei entende que é necessário
isso, essa dose de hipocrisia é o que permite o convívio entre os humanos. A
honestidade, a verdade é fatal e dolorosa demais para estar na mesa de negociações.
É preciso usar esses subterfúgios porque são eles que permitem as relações entre as
pessoas. Esse é o resumo da história da humanidade.
Então, depois de despistar mais um pouco com conversas triviais, Andrei por fim
aceita descer até a cozinha e comer um pedaço do bolo de amêndoas que a mãe lhe
preparou para ver se consegue aplacar um pouco da tristeza do luto. A vida tem
fome, ela sabe, o inexorável da fome é um grande empurrão de volta para a ciranda
das vontades que estimulam a gente a querer continuar na existência. O inexorável
da fome às vezes atende pelo nome de bolo de amêndoas.
Nos dias que se seguem, Andrei melhora aos poucos, embora também seja
possível dizer o contrário, que ele piora aos poucos. Ou que oscila um bocado entre
os estágios de dor e lamento e de um certo apaziguamento inevitável. Mesmo
deixar a dor de lado parece a ele um movimento de traição à memória de Karl
Vanag. Mas Andrei não consegue voltar a se sentir contente e mesmo alegre em
algumas ocasiões, embora o incômodo, a inquietação, algo do mundo perturbador e
sombrio permaneça.
Um dia ele caminha pelo centro histórico de Riga a caminho da universidade,
depois de ter tomado um café, e vê um anúncio no vidro de uma loja. O cartaz tem
tamanho médio e papel amarelado, mas o que chama a atenção é o conteúdo: a
oferta de um emprego no mínimo esquisito, ficar em exibição no zoológico de

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Brasília, capital do Brasil, na América do Sul, por um período de três meses,
renováveis. Anota o número de telefone para ligar mais tarde, quando chega em
casa, depois das aulas. Havia dito que precisava estar aberto a aventuras e aquele
cartaz parecia o anúncio de uma aventura.
— Estou ligando porque vi o anúncio a respeito do emprego no Brasil — ele diz,
como se tateasse um caminho desconhecido com a voz.
— Ah, sim, o processo seletivo já começou, se quiser podemos fazer
agendamento para uma entrevista — responde a voz que o atende. Parece uma voz
jovial, despreocupada, de mulher.
Poruk quer fazer o agendamento, sim, e marca uma data para daí a três dias. O
prédio onde estão sendo levadas as entrevistas é antigo, tem uma fachada sóbria de
pedra escura. Andrei atravessa um corredor largo e bate à porta indicada. Uma
jovem de cabelo curto vem abrir para ele.
— Pois não? — ela diz, com expressão séria, embora a voz seja um tanto suave,
quase infantil.
— Tenho uma entrevista agendada para este horário — Andrei responde.
Ela abre mais a porta e se coloca de lado.
— Entra, por favor. Você deve ser o senhor Poruk.
— Exatamente — ele diz, enquanto balança a cabeça em assentimento. Embora
não se sinta um senhor.
Ela pede que ele se sente num sofá que está encostado numa das paredes, diante
do qual há um quadro pendurado, mostrando uma paisagem rural e supostamente
bucólica. Pouco depois, diz que ele pode entrar e lhe indica uma porta que fica atrás
de sua mesa de secretária. Lá dentro da outra sala, sentado atrás de uma cadeira
diante de uma mesa antiga de madeira, está um sujeito na casa dos trinta anos,
arrumando uma pilha de papéis, que pede a Andrei que ele se sente e fique à
vontade. Pergunta se ele aceita tomar um chá (ele declina) e começa a lhe explicar a
natureza muito peculiar do trabalho. Consiste em permanecer numa jaula durante
o dia, todos os dias da semana, menos segunda, que é o dia de descanso, num
zoológico de Brasília.
— Mas, vou fazer o quê, se aceitar isso, vou fazer o que na jaula?
O sujeito ergue os ombros e coloca as mãos voltadas para cima, como quem diz,
não sei.

76
— O que você quiser. Pode interagir com as pessoas pelo vidro, pode ficar
jogando paciência no seu tablet, se você tiver um, ou no seu celular. Ou pode
simplesmente fazer nada, olhar para fora, para a natureza que estiver ali à
disposição.
— Posso ler?
— Sim, claro, pode ler ou fazer qualquer outra coisa.
— Não acho que conseguirei interagir com as pessoas. Sou tímido diante de
estranhos.
— Não é um problema, não precisa interagir com ninguém se você não quiser.
Pode fazer qualquer coisa, desde que fique na jaula, à vista de todo mundo, o dia
inteiro, desde a hora de abertura até a hora do fechamento do zoológico, que é às
cinco da tarde.
— Basta ficar na jaula?
— Basta ficar na jaula — o sujeito assente. Ele falou o próprio nome, quando
Andrei entrou na sala e os dois se cumprimentaram formalmente, mas Andrei não
conseguiu captar direito e agora tem vergonha de lhe pedir para que repita.
— E o que tem na jaula? — Andrei quer saber.
— Ah, excelente pergunta — o sujeito sorri e forma covinhas nas laterais do
rosto. — É uma jaula bem confortável, com vidro na frente, em vez de grades, e um
pequeno gramado na frente de uma área cimentada onde existe uma poltrona para
você ficar sentado, se quiser. É como se fosse uma varanda. Na parte de trás fica o
banheiro, longe das vistas do público, e a cama para você dormir. As refeições serão
servidas pelo pessoal do zoológico, virão do mesmo restaurante que faz a comida da
equipe que trabalha lá, a única diferença é que você terá que comer na jaula, na
hora do almoço. Não imagino que será um problema, certo? Você é capaz de comer
num restaurante, onde outras pessoas podem te observar comendo. Não é muito
diferente. Além disso, na parte reservada tem uma mesa com frutas e sucos, para
você comer na hora do lanche.
Andrei se dá conta do quanto é esquisita aquela proposta. Confortos e tudo, mas
ainda é uma jaula, ele pensa em dizer, mas não diz. No entanto, não disse a si
mesmo que estaria aberto a aventuras? Essa é uma aventura, a possibilidade de
passar três meses num país tropical, diferente, e num trabalho que é caso único no
mundo. Mas tem uma coisa que ele ainda não faz ideia, e que talvez possa ter peso
significativo na balança da decisão.

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— E o salário, quanto é? — ele pergunta ao sujeito das covinhas.
O cidadão lhe diz uma importância realmente elevada, depois a converte para
euro e o valor continua muito alto, muito mesmo. Andrei jamais conseguiria um
primeiro emprego com salário tão alto não apenas na Letônia, mas em lugar algum
na Europa. O sujeito lhe explica que abrirão conta num banco em seu nome e
depositarão nela, todo mês, o salário, o qual ele poderá converter para euro,
quando e se quiser, por uma taxa interessante. Nem precisa dizer, mas ele diz, que o
emprego dá direito a passagens aéreas de ida e volta sem qualquer desconto do
salário. Além disso, o contrato tem cláusula que estipula que os três meses de
duração, de agosto a outubro, podem ser estendidos de comum acordo entre as
partes, caso haja interesse. Acrescenta que existe também um seguro saúde, que
cobre qualquer complicação que surja nesse período. Chega a fazer piada, que
Andrei desconsidera, dizendo que ele não vai precisar ser tratado pelos veterinários
do zoológico.
— Esses três meses, vamos chamar assim, são um período de experiência. Se der
certo, nós expandimos o contrato por um período eventualmente indeterminado.
Você pode ficar o tempo que quiser, um ano, dois, a vida toda, se preferir, depois
desse período inicial. Aí vocês estarão submetidos à legislação trabalhista
brasileira, livres para negociar entre vocês o que for mais interessante.
Andrei está curioso com uma coisa.
— Apareceram outros candidatos para a vaga? Como vocês vão fazer para
selecionar?
— Apareceram dois outros até agora, mas quando souberam das condições,
acabaram desistindo na hora. Não é um emprego convencional, reconheço,
portanto não é qualquer pessoa que está disposta a aceitar.
A frase, sem que o sujeito saiba, é determinante para Andrei. Não é qualquer
pessoa que está disposta a aceitar e ele, nesse momento, sente que não é qualquer
pessoa, nem deseja ser. Qualquer pessoa é seu pai, com um emprego burocrático e
com um medo constante de perdê-lo. Disso Andrei está livre, desse medo boçal.
São três meses, depois dos quais o contrato pode ser renovado. Se o emprego
estiver muito chato, ele pode voltar para a Europa com uma bolada que vai permitir
que viva por uns dois anos, enquanto decide qual será o próximo passo. Dois anos
em que pode pensar num novo emprego ou dedicar-se a escrever um livro de
ensaios. Ele está seguro de uma coisa, e isso quase o deixa contente, quase o faz

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esquecer por um momento da morte de Karl Vanag e do desconforto de viver sob o
mesmo teto que um pai distante e indiferente, Andrei Poruk sabe que não é
qualquer pessoa.

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7 Fique à vontade, sente-se e leia

Andrei Poruk leva alguns dias para se decidir, mas afinal liga para o escritório de
representação brasileiro no centro de Riga e diz que aceita a oferta de emprego. O
sujeito que o entrevistou pede que vá ao escritório assinar o contrato e comece a
providenciar passaporte e outros documentos necessários, vacinas etc. Essa parte,
Andrei sabe, apesar de chata e burocrática, é mais ou menos tranquila. Mas agora
vem a outra, mais difícil, conversar com os pais a respeito do novo emprego.
Ele espera um dia em que todos estejam juntos ao jantar. Então solta a bomba.
— Pai, mãe, tenho uma coisa para contar para vocês — diz, e fica quieto à espera
de alguma reação. Sabe que a frase é suficientemente ambígua para levantar os
radares de alerta de ambos.
— O que foi, meu filho? — Livija toma a frente na conversa.
— Arrumei um emprego — ele responde. — Mas é um emprego muito peculiar,
porque é num país estrangeiro e vou passar por um período de três meses de
experiência. Aliás, posso dizer que o emprego é mesmo um tipo de experiência.
Vou ficar numa jaula num zoológico de Brasília, a capital do Brasil.
August para de comer. Livija arregala os olhos.
— Você está falando sério? — o pai quer saber.
— Muito sério. Ontem estive no escritório de representação que me contratou
para assinar o contrato. Começo em duas semanas. Mas queria tranquilizar vocês. É
apenas por três meses, se eu não gostar, ou mesmo se eles não gostarem, o contrato
é cancelado e eu volto. No pior cenário, terei conhecido um país sul-americano e
ganhado algum dinheiro.
— E a universidade? — Livija pergunta.
— Vou trancar o semestre. Eu estava mesmo na dúvida sobre continuar ou não.
Eles vão entender, porque estou deprimido depois da morte do Karl, e vão me dar o
prazo que for necessário. Mas se esse emprego der certo, talvez não volte, talvez não
precise voltar.
— Você não quer voltar? — Livija pergunta. — Você quer ir embora para
sempre? É isso o que você quer?

80
— Eu não sei o que eu quero, mãe. Sei que não quero continuar o mestrado, isso
eu sei. Neste momento, quero aceitar o emprego, ou melhor, já aceitei, e ver para
onde ele vai. A vantagem é que vou poder ler muito enquanto estiver por lá.
— Você vai ficar numa jaula? Dentro da jaula? Em exposição? — August fala.
— É, pai, numa jaula. Quem estiver visitando o zoológico, vai me ver lá, numa
das jaulas. Sentado num sofá, lendo um livro. Nada demais.
— Isso é um absurdo — August comenta. — Isso é inadmissível. E você diz que
não é nada demais. Deve ter uma lei contra esse tipo de coisa. Você está louco de
aceitar um emprego desses, se é que se pode chamar isso de emprego. Você está
arrumando uma confusão que vai te perseguir pelo resto da vida. Essa é uma
aventura que não vai acabar bem.
— Pai, é oficial, tem um contrato legal, vou receber dinheiro, não tem nada
demais nessa situação. Vai acabar bem, eu vou voltar para cá.
— Meu filho, tem jeito de reverter esse contrato? — Livija pergunta. — Tem
jeito de voltar atrás? De cancelar a viagem?
— Mãe, eu não quero cancelar a viagem, nem quero cancelar o contrato. Você
sabe quanto eles vão me pagar?
— Não sei nem quero saber, não me interessa — ela diz. — Pode ser até o seu
peso em ouro, pode ser vinte vezes o seu peso em ouro. Não vale. Não tem dinheiro
nesse mundo que valha isso a que você está pensando em se submeter.
Andrei começa a ficar irritado, acuado, e o mau humor tende a prevalecer,
nesses casos.
— Pois é bom vocês irem se acostumando com a ideia, porque eu já aceitei o
emprego, já assinei o contrato e não tem nada que vai me fazer voltar atrás. Achei
que vocês fossem me apoiar, achei que iam gostar de saber que arrumei um
emprego de verdade, em vez de uma bolsa universitária, achei que iam ficar
contentes porque vou viajar para o exterior e angariar experiência, mas vocês só
estão me botando para baixo e me detonando. Achei que vocês iam estar do meu
lado.
— Estamos pensando no seu bem — August fala. — Você é quem parece que
não está entendendo a dimensão que esse negócio pode alcançar, o tipo de
repercussão que pode provocar na sua vida, não só no momento, mas para toda a
sua vida.
— Que repercussão?

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— Você pode nunca mais arrumar outro emprego, pode ficar estigmatizado para
sempre, é como se recebesse uma letra escarlate que te deixa à margem.
— Pai, isso que você está falando é a história de um romance do século
dezenove, a respeito de uma situação de um século ainda anterior. O mundo
evoluiu de lá para cá.
— Nem tanto assim como você pensa, nem tanto para certos assuntos mais
delicados.
— Meu filho, você devia escutar o que seu pai está te dizendo — Livija interfere.
— E o que você sabe sobre o estado do mundo? Você está lá enfiado naquele seu
trabalho o tempo todo, está só preocupado em permanecer entre as quatro paredes
da sua sala de trabalho, mal consegue dar atenção para a sua família.
— Sei um pouco mais do que você — August diz, sem alterar o semblante. —
Tenho mais experiência da vida, sei como as pessoas podem ser maldosas. Mas não
é sobre o meu emprego que estamos conversando, é sobre o seu.
— Talvez a gente devesse falar também a respeito do seu, talvez a gente devesse
falar sobre todos os empregos nessa casa.
— Meu filho, você está perdendo a calma — Livija diz.
— Sério, mãe? Estou perdendo a calma? Nossa, que bom que você notou isso.
Porque eu nem tinha reparado. E como é que não perde a calma com vocês dois me
atacando desse jeito?
— Não é sendo sarcástico que você vai melhorar ou resolver a situação, meu
filho — ela insiste.
— Ah, não? Pois parece, porque vocês não me escutam quando eu falo sério. A
solução talvez seja justamente eu usar sarcasmo, quem sabe isso faz vocês
perceberem que eu estou falando sério.
— A gente sabe que você está falando sério e é por isso que a gente está mesmo
preocupado — August intervém. — Porque você não está conseguindo enxergar a
dimensão desse emprego, a dimensão do estrago que isso vai provocar na sua vida.
E quando isso acontecer, você vai querer nos acusar de não ter te alertado. Mas,
bem, isso aqui somos nós te alertando. Entretanto, você é um jovem adulto. Tem
que arcar com as suas decisões e com as consequências que elas trouxerem para a
sua vida. Se você quiser se meter numa jaula e provocar todo tipo de reação, se
quiser ir para um país no fim do mundo e se perder por lá, o problema é seu, a
decisão é sua. Só não diga mais tarde que seus pais não te alertaram para o que

82
estava por vir, que eles não se interessaram por você, que não tentaram te impedir
de cometer uma loucura. Porque é isso que esse emprego é, uma loucura sem
tamanho. E uma pena que não seja o tipo de loucura que nos dá autorização para te
mandar internar num manicômio.
— Pai! — Andrei berra. — Você está me chamando de louco!
— Filho, não sei que outro nome dar a essa sua atitude maluca. É uma atitude
maluca, aceitar um emprego maluco. É isso que é, não tem outro nome para essa
coisa. Uma maluquice do começo ao fim. Essa história toda parece uma maluquice,
um sonho, eu nem acredito que a gente está realmente tendo essa conversa de
verdade. Acho que a gente está num sonho, só pode ser isso. E espero poder
acordar logo, o mais rápido possível. E se você quer saber, esse emprego nem é
emprego, de verdade. Porque você vai ficar sentado o dia inteiro, sem fazer nada.
Um emprego é uma atividade, uma ação, envolve fazer alguma coisa, ter uma
habilidade e usar para realizar algo. E esse negócio aí, por mais esquisito, não
envolve fazer nada. Só ficar parado. Ou lendo, ou olhando para a cara dos
visitantes. Isso não é emprego, me recuso a entender que isso seja emprego. É um
experimento, uma experiência, uma insanidade, uma coisa pensada por nazistas e
posta em prática. E não duvido nada que você e seus empregadores terminem de
fato presos, numa jaula de verdade, ou seja, numa prisão. O que ia ser muito
irônico, mas, pensa bem, meu filho, vai ser também muito sofrível para nós quando
isso acontecer. E a gente nem vai poder contratar um advogado para te defender.
Porque se você quiser continuar com essa loucura, vou te dizer, você está por sua
conta e risco. Não pode ligar mais tarde para a gente pedindo ajuda. Estamos
entendidos quanto a isso? Você está sozinho nessa.
— Caramba, não dá para conversar com vocês a sério. Simplesmente não dá. Eu
desisto.
Ele se levanta de maneira intempestiva da mesa, empurrando a cadeira com a
parte de trás da perna de modo que ela balança e quase cai e, em seguida, sai da
sala de jantar. Uma saída teatral, mas para ele uma saída indignada, decorrente da
injustiça e das ameaças com que a família o tratou nesse momento.
Nos dias que se seguem, Livija faz tentativas de se aproximar com cautela do
filho e puxar assunto a respeito da decisão, sempre pensando que talvez ainda seja
possível reverter o quadro, convencê-lo quem sabe a mudar de ideia e voltar atrás,
reconhecer que foi uma iniciativa infeliz e, pode ser, retomar os bons termos com a

83
vida. Ela tem consciência de que uma parte da decisão do filho foi tomada em
resposta ao absurdo aparente que foi a morte súbita de Karl Vanag. Mas por que
essa radicalidade toda, ela pergunta ao filho, sondando para ver até que ponto ele
será capaz de reconhecer que teve uma má ideia e, quem sabe, cancelar a viagem.
Mas começa a perceber também que Andrei parece muito determinado em manter
a posição, seja porque decidiu assinar o contrato para se livrar do luto, seja porque
radicalizou a postura diante da reação negativa dos pais e, quanto mais eles
insistem em alertá-lo para os perigos que se abrem a sua frente, mais ele se firma na
posição que adotou. É um impasse que não parece ter qualquer alternativa de
solução.
Depois da conversa com os pais, Andrei resolve o que está faltando. Arruma o
passaporte, toma as vacinas, faz uma última visita ao dentista para limpeza de
rotina dos dentes, visita o banco.
Ele não avisa aos amigos a respeito da proximidade da partida, o que talvez seja
indicação de que alguma parte dele sinta vergonha de participar do projeto, mas,
para todos os efeitos, o que pretende ao não comunicar a partida é não ter que
explicar o tempo todo o que faz no momento e onde está. O experimento deve ser
marcado pela solidão, Andrei se determinou, desde a conversa tumultuada com os
pais à mesa do jantar. Inclusive por esta solidão de não ser encontrado pelos
amigos. No dia da partida, despede-se dos pais ainda na porta de casa, eles decidem
não o acompanhar até o aeroporto, os ressentimentos de ambos os lados
permanecem. A mãe tem lágrimas nos olhos, mas o que é possível entender acerca
do sofrimento alheio, a ideia de compaixão, é um tanto estranha a Andrei. É como
se uma parte dele já tivesse se desligado dos pais para sempre antes mesmo desse
momento de despedida, tornando-os estranhos, e tornando a situação de ter de se
despedir de pessoas estranhas uma situação com um componente de
constrangimento.
A percepção que guarda desse período é a de ter embarcado não só num avião,
mas numa espécie de máquina do tempo, num sonho, talvez, numa nuvem mágica
que de certa forma alterou a realidade e o que decorre dela. Andrei adoraria poder
registrar todas essas impressões em textos benjaminianos, dar continuidade aos
ensaios que escreve. Mas tem a impressão de que isso não será exatamente possível,
porque o sonho tem uma sucessão de ambientes, situações, pessoas, que geram
emoções, impressões, sensações que não são passíveis de serem transformadas em

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palavras. Num dos sonhos, ele se encontra justamente com Benjamin, que está
parado do outro lado da rua e olha em sua direção de um jeito que parece
melancólico e ao mesmo tempo amuado. O que foi que eu fiz?, queixa-se Andrei
para si mesmo, no sonho e quando acorda repete novamente a pergunta, sem saber
bem a que ela se refere agora.
Quando acorda e se senta para começar a fazer qualquer registro, sabe que o que
sobrou de tudo foram apenas uns poucos resíduos do que a memória foi capaz de
captar. Escrever a respeito desses resíduos é trair o sonho, o que ele foi, o que
causou. Essa pequena lembrança que fica, a memória que a vigília pode acionar, é
nada, é pouco, muito pouco, diante do que foi o sonho. Mas é isso o que ele tem e é
com isso que precisa trabalhar.
Ao desembarcar no aeroporto Juscelino Kubistchek, em Brasília, Andrei tem a
impressão, num primeiro momento, de que está naquele ambiente mais ou menos
internacional que é qualquer aeroporto, a mesma sucessão de corredores e esteiras
por onde malas percorrem os mesmos trajetos, um ambiente de cansaço e
expectativas estranhas, o que muitos especialistas chamam de não-lugar, um
conceito que Andrei sempre teve dificuldade de entender, porque se há um grupo
de funcionários que trabalham ali todos os dias, então não pode ser considerado
um não-lugar. Só é um não-lugar para os passageiros em trânsito, mas é justamente
essa adoção de uma perspectiva, esse “esquecimento” que os teóricos promoveram
a respeito dos trabalhadores aeroportuários que incomoda tanto Andrei. Essa
arrogância do pensamento que exclui gente, ou a desqualifica, ou a diminui.
Poderia fazer um ensaio a respeito disso, ele faz uma anotação mental, enquanto
entrega o passaporte para o funcionário da alfândega. Tem um visto de trabalho
oficial, portanto nenhum problema. O passaporte é carimbado e devolvido, ele
ouve um bem-vindo em inglês e segue pelo portão de saída.
Do lado de fora, um sujeito atarracado o espera, com um pequeno cartaz na mão
onde Andrei lê o próprio nome. Aponta para o cartaz e para si mesmo.
— Oi — diz o homem em inglês, com um forte sotaque, um moreno sem pescoço
e com um terno de corte estranho, que parece ter sido feito para uma pessoa com
outra configuração corporal. Além disso, uma indumentária estranha para o clima,
que parece seco demais e bem mais quente do que Riga. — Sou Antônio e vou levar
o senhor até o zoológico.
— Andrei — ele se apresenta.

85
— Bem-vindo — o sujeito diz. — Quer ajuda com a mala?
— Não precisa, obrigado, eu dou conta.
— Por aqui.
Antônio o leva até o estacionamento e embarcam para um trajeto relativamente
curto, durante o qual Andrei observa a vegetação, bem diferente da que tem lá na
Letônia, e a amplitude do céu, que parece ter uma configuração diferente, mas ele
não sabe dizer no quê, exatamente. Tenta dizer alguma coisa a Antônio, mas logo
fica claro que o inglês do sujeito só é suficiente para os primeiros e mais
rudimentares contatos. Não será um interlocutor, alguém capaz de dizer algo para
Andrei que seja relevante. Apenas o transporta até a nova moradia.
Ele não imagina, ao embarcar, o quão solitário e estranho pode ser o ambiente
inóspito de um novo mundo. Agora, quando olha em volta de si nos momentos em
que o zoológico fecha aos visitantes e os tratadores começam a se revezar para a
chegada do turno da noite, Andrei sente que está imerso num ambiente cheio de
tranquilidade, mas ele mesmo atravessa uma nuvem de turbulência. Talvez essa
ideia de contrastes, mesmo que falsa, seja o resumo da sua vida no momento,
porque a tranquilidade ao redor também parece cheia de tensão, de algo que
observa e espreita, à espera do momento para agredir, como uma dessas feras
residentes, que dada a oportunidade ele tem certeza que atacam. Então lhe ocorre
que o contraste talvez tenha vindo da lembrança de ver na vitrine de uma livraria
de Riga, a Janis Roze, dias antes de embarcar, um livro a respeito da pintura de
Raimonds Strapans com o nome do pintor na capa e justamente essa ideia expressa
no subtítulo, a arte da tranquilidade e da turbulência.
A lembrança de uma tarde que agora lhe parece remota e que aparentemente
ocorreu em outra vida inquieta um pouco mais Andrei. Ele desconhece a palavra
saudade (embora tenha a expressão letã ilgojas para manifestar algo parecido, é
talvez a expressão que mais se aproxime), mas a sensação é idêntica, uma espécie
de vazio que parece crescer pelo corpo, uma inquietação, um tipo de angústia
abstrata, como se a vacância a se expandir dentro dele tivesse sido preenchida por
um sentimento desagradável que parece que vai durar eternamente.
Ao chegar ao novo ambiente de trabalho, ele sente o que há de verdadeiramente
estranho nesse experimento de que aceitou fazer parte. Até então, tinha apenas
imaginado, mas agora os olhos, a percepção, precisam se adaptar a nova realidade.

86
Entra por uma porta de madeira num pequeno apartamento com apenas dois
cômodos, um quarto com uma cama e um banheiro. As refeições serão fornecidas
pela equipe do zoológico e portanto o ambiente não carece de cozinha. Ainda bem,
porque Andrei Poruk é um cozinheiro muito amador e se tiver que se virar vai
encontrar grandes dificuldades. O espaço foi pintado num tom de verde tão claro
que parece quase branco e o banheiro é tão minúsculo que vaso e chuveiro
disputam o mesmo espaço e, ao lançar o olhar para ali dentro, Andrei imagina que
o vaso vai ficar encharcado toda vez que for tomar banho. A não ser que instale
uma cortina para separar as duas partes, mas com quem pode falar para resolver
isso é uma questão que ainda precisa ser resolvida.
Ele chega num domingo, no fim da tarde, e tem uma segunda-feira livre, antes
de o zoológico abrir para visitação, na terça. Passa o dia de segunda deitado, lendo,
e aprendendo a absorver a nova dimensão do tempo que se abre a sua frente,
extenso, largo, pastoso, um tempo que será preciso aprender a administrar, um
tempo tropical, específico, diferente.
No primeiro dia de trabalho, não sabe dizer se o que sente é ainda uma mistura
do jet lag com o assombro de estar do lado de dentro de uma jaula, num zoológico,
mas fica extremamente incomodado e, quando os primeiros visitantes aparecem,
uma turma escolar com meninos e meninas barulhentos, Andrei disfarça o
incômodo fingindo ignorar as pessoas e os comentários que fazem numa língua
estranha, diferente de tudo o que conhece.
Ele se senta na poltrona e lê, a forma que tem de disfarçar a inquietação. A
verdade é que não recebeu um curso preparatório que o ensinasse a posar na frente
de visitantes de um zoológico. Ele não faz a menor ideia de qual atitude deve adotar
diante de plateias rumorosas. Está com uma enorme dificuldade de se concentrar
na leitura, porque na visão periférica percebe o início do burburinho que está
causando entre as crianças e as duas professoras e, mesmo que não consiga erguer a
cabeça e olhá-los de frente, também não consegue mergulhar na leitura.

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8 Tranquilidade e turbulência

Para boa parte dos animais as transições de luz do alvorecer e do crepúsculo são
momentos delicados. Estão em jogo os perigos da escuridão que chega, com os
respectivos demônios à solta, ou os da exposição a que os corpos são submetidos
aos inimigos com a chegada da luz, por facilitar a localização dos oponentes. É
como se a transição anunciasse o potencial para a permanente condição mutável e
provisória da existência, o que desequilibra as coisas. O crepúsculo é especialmente
inquietante, com camadas de escuridão que parecem ao mesmo tempo sair do vazio
e trazê-lo consigo, no mesmo movimento, anunciando buracos na matéria,
ausências que apontam, por analogia, para a nulidade da existência. Esse momento
de transição de luzes é sempre inquietante para os animais de modo geral, que
ficam mais intranquilos, irrequietos, ou especialmente calmos e meditativos, o que
também é assustador, neste contexto, e o homem não consiste em exceção, nesse
caso.
Há algo de primitivo que parece vir à tona quando o sol desaparece no horizonte
e não está errado associar essa imagem com a volta regular do inconsciente e de
todas as forças que ele desencadeia, desdobrando-se como um manto para cobrir a
todos, como se fosse o grande e inevitável cobertor noturno. Aos poucos, o escuro
ocupa nichos que antes estavam repletos de claridade, uma doença que cresce a
olhos vistos, o que força os globos oculares a operar adaptações. Embora o
fenômeno seja corriqueiro e cotidiano, para um homem que agora pode olhar em
volta com calma e ver a natureza se desenrolar a sua frente, caso de Andrei Poruk,
isso chama a atenção de maneira especial, porque não fazia parte do seu repertório.
A maioria das pessoas do mundo contemporâneo passa parcela importante da
vida dentro de habitações, casas ou prédios públicos e privados, comércios, paredes
de proteção, em suma, espaços fechados. No trânsito entre a casa e o trabalho é
sempre possível se ver algo da cidade a céu aberto, mas de forma transitória e breve
e a verdade é que pouca atenção é dispensada a esses cenários, como se
constituíssem ameaça a ser evitada tanto quanto possível.
Assim, quando pode olhar a movimentação da natureza em volta, mesmo que de
um ponto de vista mais ou menos restrito, Andrei Poruk sente mudanças que

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acontecem no modo como ele percebe a vida. Mais ou menos restrito porque,
quando o zoológico fecha para os visitantes, e enquanto os outros animais
permanecem no espaço confinado de jaulas ou cercados, Poruk ganha liberdade de
circulação. Como não conhece ninguém e não fala a língua local, não vai longe.
Mas tem o espaço do zoológico em volta à disposição e decide fazer caminhadas
todos os dias, para ajudar na circulação e não virar um sedentário absoluto a mofar
dentro da jaula.
Adaptar-se ao novo cenário requer um envolvimento de partes da mente que
Poruk não está habituado a usar. No mesmo dia em que recebeu a visita de uma
turma escolar, ele foi obrigado a ver, mais tarde, outros visitantes, que apontaram
com frequência o dedo em sua direção. No meio da tarde, nota uma moça que vem
acompanhada de um dos funcionários da administração, a turma do jornalismo,
mas repara nela do mesmo jeito disfarçado como fez pela manhã com os alunos e as
professoras. Ela talvez seja jornalista, embora Andrei não possa ter certeza. Algo no
modo agitado dela parece indicar isso. É jovem como ele, pequena, um rosto
bonito, embora Andrei não tenha olhado diretamente. Somente mais tarde, quando
ela volta sem a presença do funcionário e fica parada muito tempo diante da jaula,
é que Andrei a certa altura ergue o rosto. O apelo parece irresistível e ele atende à
própria intuição, que lhe sugere que olhe para a jovem.
Quando os olhares se encontram, é como se ele recebesse uma ducha intensa de
água no sentimento de saudade, o que o confunde mais do que o alivia, porque
mistura uma emoção vinculada com pessoas, cidades, situações que já conhece e
que afetam a memória com a novidade de interagir com um ser humano
completamente novo e desconhecido. Ao mesmo tempo é acionado um mecanismo
interno de reconhecimento marcado por intensidade, um jeito de dizer
silenciosamente é você, como se houvesse entendimento antigo entre eles, como se
fossem velhos amigos desde sempre, ainda que seja a primeira vez que se vejam,
um reconhecimento que parece fazer parte integral da definição do que seja um ser
humano. Andrei nota que ela também percebe algo na mesma linha, talvez
exatamente igual ao que ele sente neste momento. Uma demora no desvio dos
olhares, porque isso se torna inevitável a certo ponto, um segundo extra de
manutenção do olhar antes do desvio é o que dá a impressão. Ele tenta abaixar a
cabeça e voltar à leitura, mas sente que um novo clique surgiu no sistema interno

89
responsável por fazer avaliações, ponderar tudo com maior ou menor cuidado e
tomar decisões.
Então ele toma a iniciativa mais inesperada, mesmo para si. Levanta-se da
poltrona, deixa o livro sobre o assento, e caminha pela grama diante da pequena
extensão do que internamente chama de varanda — um pequeno trecho de
madeira onde está localizada a poltrona —, até chegar ao vidro que o separa dos
visitantes e para diante da moça, olha diretamente para ela, em silêncio. A moça
sustenta o olhar e por um novo período curto que parece longo eles se encaram. Ele
então ergue o queixo, faz um movimento de cabeça que parece dizer, olá, estranha,
tudo bem? Como ela assente e balança de leve a própria cabeça, é como se dissesse
de volta, sim, tudo bem, e você, como está aí dentro?
Entretanto, ela se retira logo em seguida, deixa Andrei sozinho com as próprias
especulações. Uma delas é mais ou menos óbvia, ele acha que pode ter criado uma
identificação quando na verdade não houve, porque da parte da moça trata-se
apenas de curiosidade, enquanto ele mesmo está fragilizado pela distância, pela
ausência de pontos de referência confiáveis fornecidos por amigos e família e, por
fim, pela total novidade do emprego, além dessa descoberta de uma timidez que
não julgava que tivesse.
A moça volta no meio da tarde, daí a uns dias, e para novamente diante da jaula
de Andrei, que agora se sente mais à vontade para olhar os admiradores. Ele sorri
em reconhecimento, levanta-se mais uma vez e volta a se aproximar do vidro que os
separam. Dessa vez, ela trouxe um caderno consigo e escreveu nele, em inglês. Ela
ergue o caderno e o espreme contra o vidro, de modo que Andrei possa ler o que ela
escreveu. Antes de olhar para a frase, ele nota que ela tem algumas sardas no nariz,
que havia reparado da primeira vez, mas depois tinha esquecido.
— Você fala inglês? — pergunta, em inglês, o texto no caderno.
Ele tira os olhos do papel e os dirige a ela, balança a cabeça afirmativamente. Ela
sorri. Puxa de novo o caderno e vira a página, onde outra frase foi anotada.
— Aceita me dar uma entrevista? Gostaria de conversar com você para uma
matéria que estou escrevendo.
Novamente ele balança a cabeça em acordo. Ela volta a repetir o movimento de
puxar o caderno, virar a página, voltar a empurrá-lo contra o vidro.
— Vou falar com a administração para que me deixem entrar na sua jaula e a
gente possa conversar melhor.

90
De novo ele assente e o sorriso que trocam em seguida é cheio de esperanças,
para ele. Ao mesmo tempo, enquanto espera que ela vá negociar com a
administração do zoológico, uma ideia inquietante começa a se formar dentro dele,
algo interno e parecido com uma pequena pedra parece estar concentrando a
decepção, e ele se dá conta de que é porque o interesse dela é jornalístico, Andrei é
apenas mais uma pauta de trabalho, não foi por ele que a moça se interessou, mas
pelo tema que representa. Andrei volta a se sentar, mas a cabeça está tão acelerada
que não consegue mais ler ou escrever. Ele vinha fazendo anotações a respeito de
um ensaio sobre o esquecimento, a capacidade humana de desviar o interesse de
um assunto a outro e esquecer o anterior. Acresce que a hora de fechar para
visitação avança e a moça não aparece, o que lhe faz adivinhar que ela foi barrada
pela administração. Ninguém quer expor o novo habitante do zoológico ao
escrutínio da imprensa, talvez porque ninguém saiba controlar o resultado de uma
conversa entre as partes, Andrei de um lado, uma repórter de outro, representante
de um jornal e sabe-se lá com que tipo de perguntas que podem provocar sabe-se lá
que tipos de reação. O experimento é novo para todo mundo, certa hesitação
tateante começa a tomar conta. Então, antes que o crepúsculo comece a se
manifestar, um funcionário do zoológico, o mesmo que acompanhava a repórter na
primeira vez que ela veio se colocar diante da jaula, entra. Ele vem avisar que a
repórter foi autorizada a fazer uma entrevista com ele, desde que ele concorde, mas
ao mesmo tempo o sujeito parece interessado em sondar que tipo de respostas
Andrei Poruk vai fornecer ao jornal, sobretudo no que diz respeito ao novo
emprego. Andrei tenta acalmar, como pode, seu interlocutor, que tem um nome
impronunciável, lhe parece, Clôudionor, ou algo próximo a isso. E então acontece o
milagre. O funcionário sai e daí a pouco ele escuta a porta se abrindo e então ela
aparece, emoldurada pelo batente da porta, com um bloco de anotações na mão,
uma caneta na outra.
— Muito prazer — ela diz, em inglês. — Meu nome é Isabel, sou jornalista e
recebi uma autorização para fazer uma entrevista com você. Podemos conversar?
Ela sabe que ele vai concordar com a entrevista, na segunda vez que se viram e
se admiraram com um vidro entre eles, sabiam que um momento como esse iria
acontecer. Ele simplesmente abana a cabeça, em concordância, e então se põe de
pé, porque não há outro lugar onde se sentar na jaula. Aponta para a poltrona onde
estava sentado.

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— Você quer se sentar aqui, por favor? — Andrei diz.
— Não, obrigado — ela responde. — Eu prefiro que a gente converse um pouco
do lado de fora da jaula, me explicaram que você tem direito de circular depois do
expediente.
— É verdade, sim, podemos caminhar um pouco, se você preferir. Eu acho
ótimo.
Eles saem.
— Então, Andrei — ela diz, pronunciando o seu nome com um sotaque
engraçado, uma voz que parece uma melodia saída de uma flauta, enquanto eles se
encaminham para o lado de fora. — Gostaria de saber antes de mais nada por que
você aceitou esse emprego de ficar numa jaula à vista de todo mundo.
Andrei para um pouco do lado de fora e faz o gesto que sempre repete ao sair da
jaula todo fim de tarde, ou seja, espreguiça-se longamente. Só então volta a
caminhar ao lado de Isabel e responde. Ela não anota nada, primeiro porque é
difícil tomar notas enquanto se caminha, depois porque está ficando cada vez mais
escuro e anotar se torna um exercício impraticável. Vai confiar na memória,
provavelmente, o que é bastante arriscado, tanto para ele como para ela. Ou será
que, sim, só então ele percebe que ela tem um gravador ligado e que o sustenta na
mão esquerda, no final de um antebraço parcialmente erguido, formando um V
com o braço, que permanece abaixado.
— Eu queria uma mudança de perspectiva na minha vida — ele começa a
explicar. Sente vontade de contar a ela algumas coisas a respeito de sua trajetória e
emoções, sente que pode confiar nela, como jamais confiaria em alguém se
estivesse ainda em Riga. É estranho, essa nova liberdade recém-conquistada nos
trópicos, uma liberdade em franca oposição ao dia a dia, passado numa jaula.
Enquanto narra a Isabel alguns acontecimentos de sua vida e os pensamentos que
tem a respeito desses acontecimentos e seus significados, ele aos poucos começa
também a fazer perguntas a ela, que responde sem qualquer tipo de restrição.
Claramente, para um observador um pouco mais experiente, estão no início de
uma paquera, quando revelações pessoais se misturam a avaliações e é possível
mais ou menos situar a outra pessoa em determinados padrões, morais,
sentimentais, existenciais. Eles fazem isso, ela atraída pelo estranhamento de lidar
com um estrangeiro que por decisão própria passa os dias atrás de uma jaula, ele
atraído pela energia dela, vibrante e arisca e estrangeira, um tanto aberta para o

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mundo. Enquanto procura as palavras certas para explicar a estranha decisão, ou
nem tão estranha assim, ele argumenta, quando você considera que poderia haver
uma espécie renovada de liberdade, a liberdade do tempo para leitura e para o
pensamento, enquanto simplesmente fica ali, à disposição de olhos curiosos,
entende, ele argumenta, meio que pergunta, não está seguro se está conseguindo se
fazer entender.
A história de amor que isto aqui poderia se tornar a partir de agora, no entanto,
não tem tempo para se desenvolver. Porque enquanto eles, Andrei e Isabel, estão
reciprocamente atraídos e arrulhando as questões eternas a que os jovens casais
normalmente se dedicam no começo de um relacionamento, a verdade é que o
interesse público pelo homem enjaulado passa por fases: o repúdio, as
manifestações, discussões acirradas, debates inflamados, o arrefecimento, a
mornidão, desinteresse, o início do esquecimento. As enormes filas que se
formaram no zoológico cedem com o tempo e o desinteresse crescente torna-se
inevitável.
É então que dentro do gabinete problemático de Adolfo Magalhães Passos, pela
cabeça sempre surpreendente do marqueteiro Joca Ferreira, uma ideia vem à luz.
Ela é tão estranha quanto mórbida e, em se tratando de gente com poder, que quase
sempre não sabe mais dosar os componentes da realidade e começa a pensar em
desdobramentos que ultrapassam limites sociais, sempre há risco envolvido,
embora pequeno, de algo sair muito errado, se os passos não forem dados em
determinada ordem e de acordo com o planejado.
O interesse pelo plano nacional de reformulação do sistema prisional, Joca
argumenta, voltará a ganhar novo insumo se por acaso um acidente acontecesse no
zoológico e, sem que ninguém saiba explicar bem como as coisas se
desencadearam, o jovem na jaula por acaso errasse o caminho na hora de voltar
para a sua e acabasse entrando sem querer na jaula de alguma outra fera, um
grande felino. Acidentes sempre acontecem, quem não se lembra de pessoas
entrando em áreas reservadas a animais perigosos para salvar crianças que foram
parar lá, Joca relembra numa reunião sigilosa com Adolfo, que não parece ser
totalmente avesso a essa modalidade de sugestão, tanto que pergunta se o
marqueteiro tem alguém de inteira confiança, mas realmente de inteira confiança,
que pode provocar esse tipo de acidente a que se referem. Ele se lembra de
mencionar que, qualquer que seja o resultado, aquilo jamais pode resvalar de volta

93
neles. O plano que é apresentado ao candidato é tão sofisticado que envolve uma
droga administrada na refeição do jovem, algo que vai desorientar um tanto dos
sentidos dele, inclusive os relacionados com direção. Como bônus, fará com que
não sinta o terror que em condições normais as pessoas comuns sentem quando
percebem que estão prestes a serem mortas pelas garras de um animal feroz. Essa
morte, garante Joca, servirá a um propósito maior, o de reposicionar o interesse
nacional para o grande plano de salvação apresentado pela equipe de Adolfo
Magalhães Passos. Basta que ele sinalize que sim e a coisa anda. Há um
componente de risco, sempre há, mas vale a pena o investimento, terminam por
decidir. É muito simples e jamais, mesmo que a investigação chegue a algum lugar,
rebaterá no candidato ou mesmo no seu marqueteiro de campanha, eles podem
continuar a colocar a cabeça sossegados sobre o travesseiro, à noite, na hora de
dormir. Porque apesar de existir um ditado que menciona o sono dos justos, a
verdade é que os canalhas dormem muito bem à noite, sem remoer tanto aquilo
que o comum dos mortais costuma chamar de consciência. Funciona nas peças de
Shakespeare, em que os personagens ficam vendo fantasmas dos mortos e inclusive
interagem com eles. Na vida real a música é outra.
O curioso dessa proposta é que ela de algum modo encontra ressonância na vida
atual de Andrei, que está mergulhado no tédio da jaula, na paranoia que aflige a
todos os animais que são submetidos a contenção espacial. Em algumas horas do
dia, ele pode ser visto, não a ler, mas a caminhar para um lado e outro da própria
jaula, a aguardar o momento em que poderá deixar o ambiente e ir para um espaço
aberto. O confinamento é um problema que nenhum zoológico do mundo,
nenhuma prisão consegue resolver. Seria possível talvez falar em banzo, porque no
caso de Andrei há também algo de saudade de casa, da temperatura amena, dos
passeios que de vez em quando promovia pelas ruas de Riga. Há saudade até
mesmo dos pântanos, do imenso pântano em que o país parecia mergulhado. E,
claro, muita saudade dos pais, da comida caseira da mãe, dos temperos diferentes
ao paladar. E tudo isso se manifesta naquela reação em cadeia que faz com que
Andrei circule pelos limites da própria jaula, a caminhar de maneira paranoica,
para ver se consegue (embora seja inútil) extravasar um pouco da angústia que
sente.
Na última noite de vida, Andrei tem um sonho com Walter Benjamin, no qual
ele tenta, sem sucesso, impedir que Benjamin cometa suicídio. Andrei tenta falar,

94
sua voz não sai, ou sai e Benjamin não o compreende e mesmo estando presente
junto com ele no quarto em que o filósofo pretende provocar em si uma overdose
fatal, não parece haver nada que o constranja na determinação do suicídio. Quando
acorda, Andrei se lembra das palavras do pai antes de partir, lhe dizendo que essa
aventura não pode acabar bem. Pensa bastante também a respeito dessas situações
estranhas que a história proporciona a alguns personagens reais. Se não tivesse se
suicidado, Benjamin teria conseguido cruzar a fronteira e possivelmente teria
migrado para os Estados Unidos e continuado a carreira de ensaísta. Uma
dimensão do pensamento humano perdido que ninguém consegue contabilizar.
De modo que certo dia, pouco depois de dois meses que está no novo emprego,
Andrei Poruk sente uma espécie de torpor e leveza que o acomete depois da
refeição e, pouco ciente do que está acontecendo de verdade, é encaminhado por
alguém que lhe diz que vai ajudar a retornar para seus aposentos, nos fundos da
jaula, uma voz que escuta sem ouvir propriamente, que parece vir de algum ponto
muito remoto. E o fato de que se vê num lugar diferente não lhe ocorre que seja um
problema exatamente.
Andrei Poruk olha em volta desse espaço, bem maior do que o que tem em sua
jaula, é a primeira coisa que nota. Alguns animais recebem tratamento
diferenciado. Então ele percebe o cheiro forte que se espalha pelo ambiente, o
cheiro dos grandes felinos, e nota que o animal que está ali, leão, tigre, pantera, seja
o que for, percebeu sua presença antes mesmo que tivesse colocado os pés nessa
nova jaula, os instintos acionados por um mecanismo interno extremamente
eficiente e precavido. Ele não está sozinho e segundos antes de ser estraçalhado,
pensa justamente no contraste entre uma tranquilidade que parece se espalhar pelo
seu corpo como se fosse um tipo de ascese difícil de alcançar, a tranquilidade de
quem resolveu todos os imponderáveis conflitos que a vida tem a oferecer, e que ele
sabe que é apenas o prefácio da turbulência que está prestes a ser desencadeada,
uma espécie ancestral de consciência reptiliana que é acionada no último instante,
quando o animal está prestes a se atirar sobre ele com os dentes voltados para a
jugular e começar o trabalho em seguida de estraçalhar o torso.
A única coisa que tem tempo para se lamentar é o infortúnio de não poder falar
com os pais uma última vez e não explorar todas as possibilidades do
relacionamento recém-iniciado com Isabel. Mas não há terror ou pânico, há antes
uma espécie de calor agradável que começa a se espalhar um pouco pelo seu corpo,

95
antes que a dor chegue, e, com ela, o fim de tudo, junto com uma última descarga
de adrenalina que não consegue romper qualquer barreira ou, quando o faz, é tarde
demais para qualquer tipo de providência que impeça o que está por acontecer. É
possível supor que entre os últimos pensamentos de Andrei o que passou por sua
cabeça foi apenas uma frase conclusiva: “Então é isso”. Embora seja apenas
suposição, tão boa ou ineficiente quanto qualquer outra.
Nos dias seguintes, a morte do ocupante da jaula é assunto de todos os jornais e
matérias de televisão. Como foi possível que ele errasse de jaula e não percebesse o
engano a tempo, como conseguiu atravessar o sistema de segurança que impede
que esse tipo de acidente aconteça no zoológico, quem estava por trás de um
potencial assassinato cometido de maneira deliberada, todas as hipóteses são
pesadas e consideradas, geram comentários, teses, argumentações, críticas,
conflitos de toda ordem. Editoriais, comentários, reportagens, ensaios tentam
esclarecer e aprofundar o assunto, sem chegar a qualquer resultado mais
significativo do que especulações. O corpo é rapidamente enterrado no Campo da
Esperança, mesmo, embora alguém tenha aventado a sugestão de despachá-lo de
volta à Letônia, para que os pais pudessem lhe dar um funeral adequado e de
acordo com as tradições locais, num cemitério de sua escolha pessoal. Do ponto de
vista oficial, um telegrama é enviado aos familiares, a única deferência de Adolfo,
em que se explica a morte e a necessidade de enterro imediato e apresentam-se
condolências que a despeito de estarem seguidas do adjetivo sinceras, não
convencem. Nem sequer as roupas e as anotações de Andrei são enviadas de volta à
família, e qualquer ensaio inovador que ele tenha produzido a respeito de qualquer
que seja o assunto é varrido do mapa. Um funcionário recolhe os papéis e lhes
destina à lata de lixo, sem pestanejar. Quando Isabel pensa em escrever alguma
coisa a respeito dessa herança de Andrei, é tarde, os papéis já se foram para sabe-se
lá que lixão. O descarte e a indolência caminham de mãos dadas e são mais
eficientes do que qualquer coisa remotamente organizada e racional.
Uma sindicância interna é aberta, uma investigação nos moldes brasileiros é
levada a cabo pela polícia civil, que por ter recebido promessas de abonos salariais
dos candidatos em disputa, sobretudo de Adolfo, mas também dos demais, recebeu
também a sinalização — repassada adiante na cadeia hierárquica com menos ou
mais sutileza, a depender do interlocutor — de não se aprofundar demais no
assunto, de modo que nenhuma conclusão chega a ser apresentada para a

96
sociedade e, com o passar do tempo e o acirramento da campanha eleitoral, que
afinal mobiliza muita gente para o processo decisório desenhado para definir o
futuro da nação, o assunto é por fim esquecido, embora alguns grupos tenham
tentado manter alarde em torno do tema justamente para evitar que isso
acontecesse. O sistema de abafamento e alarde, no entanto, continua a produzir os
melhores resultados, há um grupo que faz barulho e reclama, há um outro que
ignora e continua a agir como acha que deve. No fim, tudo termina como sempre,
sem que os verdadeiros culpados venham à tona, sejam apresentados, julgados,
punidos. Até porque os verdadeiros culpados, quem mandou matar, estão por trás
dos culpados mais óbvios, quem matou, e não raro em posições-chave de exercício
e manutenção do poder e portanto blindados ao alcance da justiça. De modo que
segue o baile, gira o carrossel.
Não deixa de transparecer em todo esse relato que a trajetória de Andrei Poruk
no Brasil se assemelha muito a um desenho feito na areia à beira do mar, que uma
onda vem e numa única pincelada apaga para sempre e é como se nunca tivesse
existido. Onda impulsionada por uma brisa que também colabora para o
esquecimento daquilo que um dia pareceu ter importância, colabora para a
renovação despreocupada e geral do clima, para a retirada de qualquer traço de
espessura do ar, aquela que havia se instalado junto com Andrei no dia em que
ocupou pela primeira vez a jaula. E como toda onda, essa também é substituída
pela próxima, que tem, se muito, apenas leves resquícios da anterior, mas que para
a maioria das pessoas é um movimento inteiramente novo.

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