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Ceccarelli - As Possiveis Leituras Da Perversao
Ceccarelli - As Possiveis Leituras Da Perversao
1. Este texto faz parte de um projeto de pesquisa que conta com o apóio de uma Bolsa de Produtividade do
CNPq.
& SANTOS, 2009; 2010. CECCARELLI & entendida como parte da sexualidade adulta
SALLES, 2010). – jogos eróticos –, e quando ela deve ser con-
Quando analisamos certas manifestações siderada sintomática?
“patológicas” da sexualidade não nos passa
despercebido o quanto elas se revelam ser Caso Clínico
uma solução2 encontrada pelo Eu em consti- A pessoa que chamarei João tinha 35 anos
tuição, tanto para sobreviver psiquicamente, quando procurou-me, encaminhado por
quanto para (tentar) evitar sofrimentos psí- uma colega que tinha um amigo de João em
quicos insuportáveis. análise. João, que tinha uma prática sexual
Dinâmicas pulsionais rotuladas de “per- marcada pela corrente sadomasoquista, ha-
versas” podem representar a única possibi- via ido “longe demais”: num excesso de ex-
lidade de atividade sexual encontrada pelo citação, quase quebrou o braço de seu com-
sujeito na construção de sua subjetividade. panheiro.
Renunciar a tais práticas pode significar uma A princípio, João não achou que o ocor-
verdadeira ameaça de castração, no sentido rido fosse motivo para procurar ajuda. Por
de uma fantasia de uma perda total e perma- outro lado, esta seria uma oportunidade de
nente de toda capacidade sexual. Algo próxi- discutir com alguém um “sentimento de de-
mo daquilo que Ernest Jones (1950) chamou pressão” e de “vida vazia” que o acompanha-
de afânise: o desaparecimento do desejo se- va já há algum tempo. Às vezes, era acome-
xual. Frente a tal ameaça, tais práticas podem tido por crises de angústia, e sentia algo que
ser, por algum tempo, mantidas em segredo definia como “medo de tudo”.
até que um vínculo transferencial consisten- João começou a análise sem dar muito
te seja estabelecido para que o sujeito se sin- crédito ao processo analítico, que foi marca-
ta em segurança para analisá-las. Além disso, do por uma intensa transferência negativa.
por não constituírem uma fonte primária de Esta se manifestava por queixas e reservas
angústia, raramente tais práticas levam o su- quanto a eficiência da psicanálise e a compe-
jeito à procura da análise. tência profissional do analista. Como a aná-
Gostaria de ilustrar os meus pontos de lise de João era em francês, ele nunca perdia
vista a partir de pequenos fragmentos clíni- uma ocasião de “atacar-me” dizendo que não
cos de um trabalho analítico que durou qua- sabia o que estava fazendo ai, com um ana-
se 6 anos, em razão de 3 sessões por semana lista que não falava direito a sua língua e que
nos primeiros anos, e 4 sessões nos últimos. eu não valia o preço que cobrava; que seria
É importante frisar que pontos citados não mais uma despesa, assim como a empregada,
traduzem, em absoluto, a dimensão deste que lhe custava muito caro. Faltou a algumas
longo trabalho. Ou seja, não se trata de uma sessões dizendo que estava considerando se-
discussão clínica. Meu interesse, como o tí- riamente interromper a análise.
tulo sugere, é apenas discutir em que medida Entre ameaças de abandono e ausências
a referência teórica do analista orienta sua concretas – chegou a faltar várias sessões
escuta. sem avisar – João, aos poucos, estabeleceu
Durante este texto, uma pergunta nos uma relação transferencial. À medida que o
acompanhará: em quais circunstâncias uma trabalho analítico progredia, ele expressava
manifestação “perversa” da sexualidade, den- sua angústia dizendo que tinha muito medo
tro de um contexto cultural preciso, deve ser de mudar com a análise; de não mais se reco-
nhecer. “Meu grande medo”, disse após mui-
2. Entendo «solução» no sentido matemático do ter- ta hesitação, “é perder a minha sexualidade
mo: uma resultante, uma solução, de um sistema veto- que, afinal, me dá muito prazer” Este “medo
rial de forças que comporta inúmeras variáveis. de mudar” foi tema constante em sua análise.
do vazão a suas fantasias coprofílicas. “Defe- E o senhor estava dentro do aquário, no fun-
car em alguém, evacuar toda minha sujeira do, no meio da sujeira.” Esta entrada em uma
em cima da pessoa, é a pior humilhação que relação de objeto mudou completamente a
se pode infligir a alguém: este é o meu maior dinâmica do processo analítico. O discurso
prazer.” mudou, a agressividade diminui. Por algum
Para levar tais fantasias a cabo, ele partici- tempo, ele me ligava confirmando o horário
pava de “surubas escatos”, se bem que, segun- da sessão, como que em um movimento in-
do ele, nem sempre isto resolvia a questão: terno de reparação pelas agressões passadas.
“sou obrigado, disse certa vez, a mostrar em Precisava saber que eu estava bem. Que sua
público as coisas que eu produzo. Entretanto, agressividade não tinha me destruído.
eu sempre tive a impressão que minhas fezes Outros pontos importantes na dinâmica
são mais limpas que as dos outros.” psíquica de João: suas roupas de cama, sem-
Todo seu prazer corria o risco de ser ani- pre das melhores marcas, eram utilizadas
quilado caso fosse o/a parceiro/a que tomas- apenas uma vez; quando deveriam ser lava-
se a dianteira. Isto é, se seu parceiro/a pedis- das após alguns dias de uso, João as substituía
se que João defecasse nele/a. “Nesta situação, por outras novas. Seu banheiro deveria estar,
sou tomado por uma grande angústia, pois sempre, imaculadamente limpo e sua em-
tenho a impressão que estou fazendo isto pregada era criticada quando algo não estava
para ele/a e não para meu próprio prazer.” como deveria ser. Seu trabalho profissional
Uma fantasia de “impotência fecal” aparecia exigia requinte, e João possuía conhecimen-
quando ele tinha problemas intestinais pois, tos artísticos, culturais e gastronômicos ad-
em tais circunstâncias, “as fezes podem estar miráveis.
líquidas. E aí, não tenho nenhum controle
sobre elas. Quando está sólida, pode-se con- O que é perversão?
trolá-la e limpá-la. Mas a merda líquida es- Bem antes da teorização freudiana sobre a
corre por toda parte. É impossível limpá-la”. perversão ser apresentada, este tema já tinha
Durantes vários meses as sessões de João sido abordado por muitos outros vieses, den-
consistiram em relatos detalhados de suas tro o contexto sócio-histórico no qual se ma-
práticas coprofílicas. No começo, evidente- nifestava (CECCARELLI & SALLES, 2010).
mente, sentia-me extremamente incomo-
dado com tais relatos, sobretudo por serem Lembremos, com Elisabeth Roudinesco,
apresentados de forma desafiante, provoca- que a perversão
dora, típica deste tipo de paciente que tenta,
o tempo todo, transformar o outro em ob- é um fenômeno sexual, político, social, físico,
jeto. Várias vezes, senti intensos movimen- trans-histórico, estrutural, presente em todas
tos contratransferências, pois ficava clara a as sociedades humanas: O que faríamos se não
intenção perversa de fazer-me participar de mais pudéssemos designar como bodes expia-
tais orgias. [Aqui, a palavra perversão deve tórios – ou seja, como perversos – aqueles que
ser entendida como uma imposição ao outro aceitam traduzir por seus atos estranhos as
algo que ele não quer: uma forma erótica do tendências inconfessáveis que nos habitam e
ódio]. que recalcamos? (ROUDINESCO, 2007, p.15)
A análise teve uma mudança radical
quando João trouxe um sonho que lhe an- Como sabemos, cedo Freud se interessou
gustiou muito: “eu estava em um local estra- pelas manifestações perversas da sexualida-
nho, escuro. Tudo muito sujo com um cheiro de. No início de sua teorização sobre o tema,
terrível de coisa podre. Em meio a tudo isto, ele apoia-se na questão do recalque orgânico,
havia um aquário muito grande e muito sujo. cuja importância ele nunca abandonou.
sagem sobre a qual, curiosamente, parece tras obtidas por sublimação, e de construções
não ter recebido a atenção que merece. Em destinadas ao refreamento eficaz de moções
uma nota acrescentada em 1915, Freud deixa perversas reconhecidas como inutilizáveis
claro que, assim como a neurose, a perversão (FREUD, 1905, p.246).
é acessível ao trabalho analítico pois, sendo
uma o negativo da outra, ambas são afetadas Os Três ensaios demonstram que não exis-
pelo recalque (Verdrängung). Em suas pala- te um fantasma especificamente perverso: a
vras: sexualidade humana é, em si, perversa pois
seu objetivo é o prazer e não a procriação;
Isto [o bloqueio do fluxo pulsional devido ao as perversões são “as forças motivadoras dos
recalque] não se aplica apenas às tendências sintomas neuróticos” (FREUD, 1905, p.246);
“negativas” para a perversão que aparecem a análise da disposição artística revela uma
nas neuroses, mas igualmente às perversões “mistura em todas as proporções, de efici-
chamadas positivas. Assim, estas últimas de- ência, perversão e neurose” (FREUD, 1905,
vem originar-se não apenas de um fixação de p.246). Ou seja, toda organização neurótico-
tendências infantis, mas também de uma re- normal, assim como na normopatia (FER-
gressão àquelas tendências como resultado do RAZ, 2002), é composta de traços, em pul-
bloqueio de outros canais da corrente sexual. sações energéticas diferentes, da sexualidade
É por este motivo que as perversões positivas polimorficamente perversa da infância.
são acessíveis à terapia psicanalítica (FREUD, Ainda nos Três Ensaios, Freud faz uma
1905, p.239; o grifo é meu). observação que mostra bem sua prudência
em relação a julgamentos expeditivos, e que
No Resumo, Freud transita entre neurose e retoma a questão do recalque orgânico:
perversão com a mesma terminologia: as his-
téricas seriam as “pervertidas negativas”, en- Em muitas dessas perversões a qualidade
quanto os perversos os “perversos positivos” do novo alvo sexual é de tal ordem que re-
(FREUD, 1905, p.244). Devido ao mecanis- quer uma apreciação especial. Algumas delas
mo do recalque, “a neurose toma o lugar da afastam-se tanto do normal em seu conteúdo
perversão, sem que os antigos impulsos sejam que não podemos deixar de declará-las “pa-
extintos”; quanto à sublimação, ela se apresen- tológicas”, sobretudo nos casos em que a pul-
ta como o resultado “de uma disposição cons- são sexual realiza obras assombrosas (lamber
titucional anormal” (FREUD, 1905, p.245), e excrementos, abusar de cadáveres) na supera-
que nossas virtudes, nada mais são do que for- ção das resistências (vergonha, asco, horror
mações reativas à nossa disposição perversa. ou dor). Nem mesmo nesses casos, porém,
As afirmações freudianas apresentadas pode-se ter uma expectativa certeira de que
no Resumo sugerem, não apenas que a per- em seus autores se revelem regularmente
versão é analisável, mas que é possível, atra- pessoas com outras anormalidades graves
vés do trabalho analítico, que um perverso ou doentes mentais. Tampouco nesses casos
se torne neurótico. Freud parece entender o pode-se passar por cima do fato de que pesso-
adoecer psíquico como um transbordamento as cuja conduta é normal em outros aspectos
do pathos, das paixões, das pulsões, das quais colocam-se como doentes apenas no campo
o psiquismo não consegue se defender: da vida sexual, sob o domínio da mais irre-
freável de todas as pulsões. Por outro lado, a
Aquilo a que chamamos “caráter” de um ho- anormalidade manifesta nas outras relações
mem constrói-se, numa boa medida, a partir da vida costuma mostrar invariavelmente um
do material das excitações sexuais, e se com- fundo de conduta sexual anormal (FREUD,
põe de pulsões fixadas desde a infância, de ou- 1905, p.151).
Com as formulações do complexo de Édi- seja por isso que Freud não apresente uma
po e um melhor entendimento da dinâmica formulação exaustiva sobre as perversões,
das identificações, Freud apresenta novos sustentando que elas não seriam analisáveis
elementos para a compreensão das perver- e, nem tampouco, uma diferenciação clara
sões: trata-se da fantasia sadomasoquista e definitiva entre as perversões e outras di-
descrita em Uma criança é espancada: uma nâmicas pulsionais. Freud refere-se ao O ho-
contribuição ao estudo das perversões sexuais mem dos ratos (FREUD, 1909) e a Dostoie-
(FREUD, 1919). Ali, a perversão é teorizada vski (FREUD, 1928), tanto como neuróticos,
a partir dos destinos do complexo edipiano. quanto como perversos. Ademais, ao privi-
O terceiro momento das formulações legiarmos o mecanismo da recusa, corremos
freudianas sobre a perversão se dá no artigo o risco de mascararmos outros movimentos
Fetichismo (FREUD, 1927), considerado por pulsionais importantes, presentes nessa di-
muitos como a única teorização válida sobre nâmica pulsional.
a perversão, no qual a recusa (Verleugnung) O interesse desta breve digressão é de
é apresentada como o mecanismo central insistir sobre a complementariedade de
da perversão. “O fetiche é um substituto do cada um destes três momentos de elabora-
pênis da mulher (da mãe) em que o meni- ção freudiana sobre as perversões. A clínica
ninho outrora acreditou e que - por razões nos informa das múltiplas faces da perver-
que nos são familiares - não deseja abando- são, algumas das quais não são sustentáveis
nar” (Freud, 1927, p.180). “A palavra alemã pelo mecanismo da recusa. Acredito que a
correta para a vicissitude da idéia”, continua perversão, assim como qualquer outro sinto-
Freud, “seria ‘Verleugnung’ [‘rejeição’]”3. ma, deva ser entendida, antes de mais nada,
Para que a recusa da percepção da ausência como o arranjo possível que o sujeito pôde
do pênis seja mantida é necessário a cliva- fazer em sua tentativa de sobreviver psiqui-
gem do Eu (Ichspaltung) que permitirá que camente (CECARELLI & SANTOS, 2009).
as duas atitudes – recusar e, ao mesmo tem-
po, perceber a falta – sejam mantidas lado a Depois de Freud
lado (FREUD, 1938). Após Freud, as publicações psicanalíticas
Entretanto, como já o observara Laplan- sobre o ‘fenômeno perverso’ variam signifi-
che & Pontalis (1968), não fica claro o que cativamente de um modelo teórico a outro,
está sendo recusado: a falta de pênis, neste deixando clara a falta de consenso relativo à
caso seria difícil falar de percepção, ou a pró- compreensão desta expressão da sexualida-
pria castração, o que implicaria, não em uma de (McDOUGALL, 1972, 1997; STEWART,
percepção, mas em uma teoria explicativa, 1972; STOLLER, 1975. 1984; KHAN, 1979;
isto é, uma teoria sexual infantil. Seja como CHASSEGUET-SMIRGEL, 1987; LACAN,
for, circunscrever a perversão a partir da re- 1994, 1998; DOR, 1991; KERNBERG, 1998;
cusa não apenas limita a sua compreensão, PEIXOTO JÚNIOR, 1999; FERRAZ, 2000,
como a torna ainda mais complexa: tanto a 2002; AULAGNIER-SPAIRANI, 2003; COU-
recusa quanto seu coadjuvante, a divisão do TINHO, 2004; QUEIROZ, 2004).
ego, estão presentes em outras organizações Como escrevi em outro local
psíquicas (FREUD, 1927; 1938; 1938). Talvez
A desarmonia entre as diferentes escolas de
psicanálise, tanto no uso da palavra “per-
versão”, quanto na apreensão e compreensão
3. Na Edição Standard Brasileira Verleugnung é tra-
duzido por rejeição e não por recusa, expressão bem do fenômeno é tão conhecida que dispensa
mais usada. No fetichismo ocorre uma recusa (da per- comentários. Cada modelo clínico propõe
cepção) da castração. uma interpretação diferente direcionando
las melhor: Wo Es war, soll Ich werden. Suas rior daquele corpo, não seria também sujo?
práticas sexuais tornaram-se menos compul- A partir desta fantasia fundamental ele com-
sivas e ele pôde encontrar outras formas de preendeu que as “scato parties” das quais par-
prazer em suas relações. Entretanto, quando ticipava tinham como objetivo principal sa-
“sentiu-[se] apaixonado pela primeira vez” ber se seus produtos, seu interior, eram mais
João foi tomando por uma grande angústia, sujos ou menos sujos do que as produções
pois foi-lhe difícil se reconhecer em sua nova dos outros. As fezes líquidas, tão temidas por
vida sexual: a fantasia subjacente era que, ao João, foram associadas, através de sonhos
mudar sua sexualidade, ele correria o risco e devaneios, ao leite maternal que nunca o
de perdê-la completamente. Aos poucos, o alimentara de fato: “este leite que vinha do
afeto que se manifestava em forma de angús- interior do corpo de minha mãe era, segura-
tia ligado ao medo de mudanças foi sendo mente, sujo.”
reinvestido em relações afetivas mais está- Por outro lado, acredito que a relação de
veis, menos persecutórias, o que o levou a João com a mãe, quando utilizavam o banhei-
investimentos não erotizados. ro, o salvou de soluções mais radicais como,
A tortura que infligia ao pênis dos parcei- por exemplo, da psicose: as únicas lembran-
ros era uma vingança e, ao mesmo tempo, ças de trocas afetivas entre ele e sua mãe que
uma defesa, contra seu pai e, por extensão, ele tinha, ocorrerem nestes momentos. Ou
contra os homens em geral. Por condensação seja, a erotização das fezes, e seu contrário,
e deslocamento, o pênis, objeto idealizado e o excesso de limpeza, criaram entre João e
persecutório, foi transformado em objeto sua mãe uma território privilegiado de tro-
total que ele pode, finalmente, controlar e cas sem que, no entanto, as fezes tenham
possuir. A supervalorização do objeto é uma sido transformadas em objeto fetiche. Isto o
forma de “provar a si mesmo e aos outros a levou a pensar que, apesar de tudo, suas fezes
superioridade da dimensão pré-genital sobre eram mais limpas que as dos outros, suge-
o universo do pai” (CHASSEGUET-SMIR- rindo que a relação com sua mãe tenha sido
GEL, 1987, p.129). suficientemente boa. Como isto, João pôde
Sua prática escatofílica foi associada aos obter o mínimo de afeto necessário para evi-
momentos quando, ainda criança, sua mãe o tar arranjos psíquicos mais catastróficos.
acompanhava ao banheiro, que se encontra- Finalmente, cabe ressaltar que a rigidez
va fora da casa, para seu “cocô matinal”. Sua dos padrões estéticos de João, bem próximos
mãe o esperava de fora e reclamava muito do de algumas exigências artísticas, são, comu-
frio. João se sentia obrigado a fazer um gran- mente, observáveis neste tipo de dinâmica
de esforço para evacuar rapidamente “toda pulsional, como já o observara Freud (1910).
minha sujeira e deixar minha mãe contente”. Com efeito, “se alguém que não soubesse do
Em seguida, era a vez de sua mãe utilizar o que se trata escutasse uma discussão sobre as
toalete. “Que coisa mais doida”, disse, “não condições necessárias à gratificação sexual
era eu que tinha vontade de fazer cocô, era perversa, ser-lhe-ia muito difícil distingui-la
minha mãe!” Para João, tudo que ele produ- de uma de discussão estética sobre os câno-
zia - sua capacidade de amar, de ser amado, nes de ‘belo’ e do ‘feio’” (CHASSEGUET-
de fazer amizades – estava condensado na SMIRGEL, 1987, p.131).
sua capacidade de fazer cocô; e tudo isto era
sujo como suas fezes. Por associação, o inte- A escuta do perverso
rior de seu corpo era também sujo. Escutar o perverso exige que o analista su-
A fantasia central de João era que toda porte o ódio que aparece na transferência
esta sujeira vinha de sua mãe, ou melhor, de sob várias formas, em particular como des-
seu interior. Porém João, que esteve no inte- dém pelo trabalho do analista, o que corro-
bora a posição de Stoller (1975) que entende do trabalho analítico um expediente para ex-
a perversão como uma erotização do ódio. plorar pontos não trabalhados em sua pró-
Há de se ter o investimento necessário para pria análise.
seguir os movimentos regressivos destes su- Nesta perspectiva, cabe perguntar se os
jeitos pela tortuosa, repetitiva e monótona ‘perversos inanalisáveis’ são realmente ina-
trilha da sexualidade pré-genital até os pon- nalisáveis, o que pode, de fato, acontecer, ou
tos de fixação da libido4. Uma das grandes se esta “inanalisibilidade” seria uma defesa
dificuldades na clínica da perversão é ter a do analista frente às dificuldades de escutá-
disposição necessária para suportar os movi- lo. Pode a clínica da perversão ser limitada
mentos transferências, pois estamos lidando pela teoria que a descreve e orienta sua escu-
com fixações libidinais prégenitais que im- ta? Toda perversão responde “a uma organi-
plicam em relações narcísicas, em um perío- zação definitiva na qual o perverso passa pelo
do no qual as relações de objeto estão, ainda, enquistamento de toda a economia do dese-
se constituindo. Ao analista, cabe, apenas, jo, que contribuirá para a instalação de uma
acompanhar aqueles que tentam entender a fixação psíquica irreversível” (DOR, 1991,
dinâmica psíquica que subjaz aos seus dese- p.30)? Se toda organização perversa é defini-
jos, aos seus atos e às suas “escolhas”. Nes- tiva e o objeto fetiche está ali para recuperar
te sentido, reconhecermos em nós mesmo o gozo proscrito pela lei, o que fazer com ca-
os traços do perverso polimorfo de outrora sos como o de João? Deveríamos não segui-
é condição necessária e fundamental para lo em seu trabalho analítico por tratar-se de
exercermos uma profissão, cujos pressupos- um “caso perdido”, posto que nada pode ser
tos de base repousam, essencialmente, sobre feito em relação a sua estrutura perversa?
as vicissitudes da polimorfia da sexualidade É importante não nos esquecermos que é
perversa infantil, sempre pronta a fazer ir- a grade teórica que utilizamos que vai “diag-
rupções das mais variadas formas e em mo- nosticar” a dinâmica psíquica cuja manifes-
mentos imprevisíveis. tação estamos ouvindo e, muitas vezes, teste-
O que está em jogo, aqui, é a maneira munhando sua encarnação no corpo. Cada
através da qual o analista responde ao real, contexto sócio-histórico tem a sua psicopa-
aos restos não analisáveis, de sua sexualida- tologia (PESSOTTI, 1995), isto é, suas ten-
de perverso-polimorfa inconsciente, e aos tativas de “decompor” o sofrimento psíquico
riscos de respostas perversas devido ao po- em seus elementos de base para tentar com-
der que a transferência lhe confere (CECCA- preendê-los, classificá-los, estudá-los, enfim,
RELLI, 2004). Gabbard e Lester (1995), nos tratá-los. Com resultado temos, ao longo da
alertam sobre os perigos das “gratificações história, várias psicopatologia: vários logos
narcísicas”, através das quais o analista tenta (discurso, saber) sobre o patos (as paixões)
assegurar-se de sua “superioridade moral e que animam a psique (alma); cada uma com
intelectual” em relação ao paciente, fazendo referências próprias e diferentes perspecti-
vas teórico-clínicas. A “psico-análise” é uma
análise no sentido que a química dá a esse
termo. Para Freud, existe uma analogia en-
4. Se, no começo, era-me difícil ouvir os detalhados tre o trabalho realizado pelo químico e pelo
relatos de João sobre suas práticas coprofílicas, com o psicanalista, pois “os sintomas e as manifes-
passar do tempo o sentimento era de monotonia devi- tações patológicas do paciente, como todas
do à repetitividade dos relatos. Às vezes, a impressão
era de estar ouvindo uma criança fazendo birra na
as suas atividades mentais, são de natureza
hora de fazer cocô. Em suas práticas sexuais, esta mo- altamente complexa; os elementos desse
notonia podia ser observada na exigência de rigidez e composto são, no fundo, motivos, impulsos
imutabilidade presentes em seus cenários perversos. instintuais” (FREUD 1919, p.202).
Escutar a variedade das manifestações nós, no decorrer da vida a libido oscila nor-
perversas da sexualidade a partir de uma só malmente entre objetos masculinos e femi-
referência teórico-clínica, ou seja, adequar ninos” (FREUD, 1976, p.196).
a escuta a uma categoria nosográfica rígida, As manifestações da sexualidade, por mais
atesta um embotamento clínico que produz insólitas que possam parecer, são sempre
um marasmo teórico, fazendo-nos regredir únicas por traduzirem soluções aos confli-
ao modelo psiquiátrico clássico do sec. XIX tos - reais ou imaginários - presentes desde o
e anular a riqueza da descoberta freudiana. início da vida. A análise destas manifestações
mostra que estas “invenções” são, no fundo,
Afinal, qual é o “diagnóstico de João? rearranjos de velhos conflitos que, quan-
Histeria grave? Obsessivo? Perverso? Psicó- do criança, o sujeito teve que enfrentar na
tico? Estado limite? Caráter narcísico com constituição de sua psicossexualidade. Aqui,
profundas fixações anais? Estrutura perversa o conceito de neo-sexualidade é muito útil,
inanalisável? Mas, a que serviria rotulá-lo? pois descreve soluções psíquicas inovadoras,
Se conseguirmos ter a distância contratrans- resultados de arranjos libidinais, verdadeiro
ferencial suficiente e a ética da escuta, não teatro erótico, destinadas a proteger a crian-
veríamos ai simplesmente um sujeito que, ça contra uma angústia de castração esmaga-
em sua tentativa de sobreviver psiquicamen- dora (MCDOUGALL, 1997). Já a perversão
te, lança mão, não sem dor, angústia e afer- “seria a tentativa de impor a imaginação eró-
rado defensivamente à onipotência infantil tica a um outro que não consentisse nisso ou
própria do período prégenital, do arsenal de- que não fosse responsável” (MCDOUGALL,
fensivo adquirido na infância, para construir 1997, p.192). Nesta perspectiva, creio poder
uma forma de sexualidade? E ele sobreviveu, definir a “sexualidade normal”, que varia se-
malgrado os momentos de intenso pânico gundo cada sujeito, como aquela que resgata
devido às profundas angústias de aniquila- a polimorfia infantil, em uma relação de ob-
mento. jeto na qual o desejo do outro é levado em
Mais ainda: mesmo que concordemos contra, centrada na primazia genital.
sobre o uso do termo “perversão” para estes Análises como a de João nos mostram
casos, como ouvi-la? Na vertente estrutural que a fixação da libido em pontos conflituais
ou na vertente filogenética? Quais as conse- perpetua a sexualidade infantil, fazendo com
quências clínicas de cada uma? que a sexualidade adulta torne-se uma re-
As apresentações do sexual, esta alteri- petição empobrecida da infantil. Com João,
dade interna que nos lembra sem cessar que aprendemos sobre a dimensão assustadora
não somos senhores em nossa própria casa, da angústia que se esconde por trás da com-
traduz uma história libidinal, resultado de pulsividade da sexualidade perversa, e sobre
um percurso pulsional que repousa sobre as desesperadas tentativas de se chegar a um
as identificações - sempre em movimento - “acordo” entre as demandas pulsionais e o
constitutivas do Eu. É isso que determinará trabalho de cultura.
como o sujeito vive, consciente e inconscien-
temente, a sua sexualidade e como investirá, A angústia é a mãe da invenção
de maneira manifesta ou latente, os objetos no teatro psíquico
dos dois sexos, criando, imaginariamente, o Joyce McDougall
fantasma do sexo que ele não possui, e cons-
truindo a representação psíquica de corpo
próprio. A “saúde psíquica” reside no equilí-
brio dinâmico das tendências pulsionais ho-
mossexuais e heterossexuais, pois “em todos
Abstract Referências
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tions on the theoretical and clinical research
that he has been making for many years on AULAGNIER-SPAIRANI, P. A perversão como es-
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the different stages of Freud’s theory, and also
the way other psychoanalysts have theorized CECCARELLI, P. R. Don Quixote e a transgressão do
perversion. Then the author raises questions saber. In: Mal-estar e subjetividade. v.IX, n.3, p.879-
899, set./2009.
about listening to “perverted patients” and
the challenges of such listening that appear in CECCARELLI, P. R. A patologização da normalidade.
transference / countertransference. The au- In: Estudos de Psicanálise. Aracaju, n.33, p.125-136,
thor makes some criticism of the use that has jul./2010.
been made of the word perversion: a kind of
CECCARELLI, P. R. & COUTO, L. F. O gozo estático
fetish used to diagnose quickly behaviors that do expectador de uma cena perversa. In: Mal-estar e
cause distress and surprise, without a deeper subjetividade. v.IV, n.2, p.266-276, set./2004.
exploration of the dynamics of the drives on
the “perversion” presented. From there on, the CECCARELLI, P. R., & SANTOS, A.B. Perversão se-
author draws attention to the consequences of xual e ética psicanalítica. In: Rev. Latinoam. Psicopat.
Fund. São Paulo, v.12, n.2, p.316-328, jun./2009.
limiting the perverse sexuality to a theoretical
and clinical reference, to adjust listening to a CECCARELLI, P. R., & SANTOS, A.B. Psicanálise e
rigid nosography category. This can produce a moral sexual. In: Reverso – Revista do Círculo Psicana-
clinical numbing as well as theoretical maras- lítico de Minas Gerais. Ano XXXII, n.59, p.23-30, 2010.
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