You are on page 1of 6
Historia Uniainoe 26{1):159-164, Janeiro Ail 2022 Unisinos— doi 104019 2022.261.14 Escravidao, uma antiga serpente de multiplas peles Slavery, an ancient multi-skinned serpent Paulo Cesar Gongalves* efonnheseunepe ‘ORCTD: repo on /0000-0005-3122-0690 Na historiografia sobre os mundos do trabalho esta cada ver:mais evidente a necessidade de discuti alguns limites dos conceitos relacionados a “trabalho livre” e “eseravidao” em perspectiva global ¢ local. As temporalidades histGrieas dessas sclagées de trabalho também constituem elementos condicionantes do debate. Michael Zeuske, professor de Historia Tberica ¢ Latino-Americana na Universidade de Coldnia (Alemanha), em estudo ambicioso e instigante, traz importantes contribuigdes para arcjar essa contenda, Nos seis capitulos de Bs- lavitud: una bistoria de la humanided (2018) - tradusa0 espanhola do original em alemio publicado no mesmo ano —,0 historiados, apoiado em sdlida pesquisa documenta e bibliogrific, parte da premissa de que a historia da escravidio se confunde com a histéria da humanidade ¢ langa luz sobre alguns siléncios hhistoriograficos, em busca de uma abordagem mais integradora da HistSria, condigao essencial para desenvolver sua ipotese de trabalho, Zeuske observa a cocxisténcia de virios tipos de relagées laborais no marco do desenvolvimento capitalista,e mesmo antes, chamando a atenglo para a centralidade de diversos mecanismos de coerso extraccondmica no momento de recrutar e fixar a mio de obra em diferentes épocas e contextos histéricos. Sua abrangente definigio “histdrico-antropoldgica” da escravidio —“a disponi- bilidade sobre corpos humanos baseada em uma violéncia real exercida sobre esses mesmos compos ¢ a degradacio do status" — e dos eseravos “como capital de corpos humanos” (p. 36) — ultrapassa as dimensées juridicas vinculadas a0 dircito romano c tenta englobar todas as modalidades em que a apropriagao ¢ 0 secrutamento de forga de trabalho se realizam através da violéncia e da coesyio dirota. Aponta ainda os quatro motivos principais de esravidio:autoescravizagio ‘ou entrega (a principio ligadas ao endividamento), guerra, comécio enassimento como pessoa eseravizada Utilizando a metifora da “serpente de miiltiplas pees", ou seja, 0 réptil que troca muitas vezes de pele 20 longo de sua vida, Zeuske considera que no existe uma tinica sociedade eseravista em evolugio ao longo dos tempos, senso sociedades com escravidées mais ou: menos pronunciadas ¢ insttucionalizadas. Para caracterizar melhor cada uma delas, prope a delimitagio de cinco “mese- tas de esclavitud”, constituidas em diferentes tempos e espagos, que, a0 longo da historia global, se entrecruzaram ¢ ainda se entrecruzam, sendo, no livro, apresentadas ao leitor eronologicamente. A primeira (20000 a 8000 a.C.), a das {sebum aig aces ate, lenead pr Cee Commons Abas 0 reco RY 40), nga pain prin, apnoea gba ae Sutra ral ola Paulo Cesar Goncalves 160 cescravizayoes oportunistas, sem institucionalizagao, de mulheres, riangas¢ estrangeiros, € provavelmente a mais antiga da histriae a mais habitual, ligadas a necessidade de protegio ou de inclusio em um novo grupo. Os indi- viduos nessa situagio realizavam trabalhos desonsosos ou degradantes, servigos corporais, inclusive sexo forgado. A segunda (inicio em tomo de 4000 a.C.), a das “pecquenas escravidocs” no marco de assentamentos ¢ grupos familiares, também chamada de escravido omeéstica ou de parentesooligada agricultura,com o objetivo de aumentar a produgio de alimentos, Ainda que existssem rotas de co- mércio de eseravos com seus mercados e portos,a escravidio doméstica predominava. Esta “meseta” se caracteriza pelo considerivel aumento da violencia — guerra, pilhagens—e por escravizagSes especiais, como a escravidao eoletiva de pesos dervotadas em conflitos,aescravidio para sacifcis, as razias de escravos e a escravidio de elite. Em comum, todas se concentravam na “casa” (uma residéncia/edificio) «por status legal nao eram propriedade individual de uma familia, mas sim do Estado. Segundo Zeuske, esse tipo de ceseravidao foi mais importante que atlantica oua segunda ceseravidio devido a sua amplitude, influéncia na historia slobale persisténcia até os dias de hoje; mas vale lembrar «que essas formas coletivas de depencléncia ede status, bem como 0 trabalho realizado no eram interpretadas pelos ‘coevos como escravido. As eseravid6es de propriedade, mais conhecidas melhor definidas juridicamente, compiem a terceira “meseta” (a partir do ano 1400), na qual se destaca a «escravidao atlantica ~ América, costa ocidental da Afiiea = 6 mais tardiamente, a costa leste aticana e as ilhas do Indico ocidental. Bsse conceito de escravidio baseado no direito romano, ou sea, na propriedade privada de pessoas, com. correspondente documentagao notarial de compra e venda, deu origem ao trifico de eseravizados como peitica intensiva para o abastecimento de grandes e pequenas plantagGes, atividades como a mineracio, a escravidio loméstica urbana ea escravidio estatal,interligando areas de origem ¢ destino. Trifico que foi intermediado pelos ceuropeus com a colaboragio das elites locais, e eujacarae teristica principal era o uso da violencia em todos os niveis, As duas outras “mesetas” sio mais dificeis de ca- racterizar diante do idedrio abolicionistaa partir do século XIX, motivo pelo qual, segundo Zeuske, esto ausentes nas representagies habituais da histéria da escravidio cem termos de continuidade. A quarta (a partir do ano 1800) apresenta diferentes combinagbes, relacionadas em cssncia ao surgimento das cadeias produtivas globais de novos recursos, que necesstavam integrar massas de tra balhadores na produgio colonial ~a “segunda escravi (Tomich, 2012) — ou acarretaram a expansio do trabalho sob contrato (indentured labor) apoiado na ideia de um Vol. 26 N° 1 - Janeiro/Abril de 2022 acondo entre duas partes. Por outro lado, o historiador alemao chama atensao para o expraiamento dasatividades eseravistas e do comércio de escravos (muitas vezes sob outro nome) para o hemisfério oriental, os oveanos Indico « Pacifico, onde as formas de escravido nao estavam de~ finidas pelos crtérios do direito romano ~ & excesio dos enclaves europeus ~ nem se chamavam escravidao. Nessa perspectiva, os atores do comércio mundial passaram a utilizar a denominagio cooles ou simplesmente *trabalha~ dor contratado” para aqueles que exam transportados em condigdes de escravidao e realizavam trabalhos de escravos. No século XX, influenciada pelos debates sobre cscravidao e trabalho foryado, a palavra “escravido”trans- formou-se em tabu ¢ foi substituida por termos com “bondage”, “servidio por divida’ ou “trabalhos foryados Em sintese, a quarta “meseta” € caracterizada pelo de~ senvolvimento capitalista das escravid6es modernas da terceira “mesets”, a segunda escravidao, pelas escravidGes do hemisfério orientale pelo fim do predominio europe, pois, partir de entio, os vinculos criados entre escravidao € capitalismo tornaram-se mundiais. Concorreram para isso, como motores da globalizagao, as novas formas de ‘transporte e comunicagao e a produgio em massa de bens is. No ambito ideol6gicn, os discursos abot demarcaram aideia de lberdade no ocidente, mas, no fundo, apenas obscureceram as formas de escravido na pritica,o que eutoriza Zeuske a considerara quarta “meseta” como o periodo da “desformalizacio" da escravidio a nivel global (p. 140), Como resultado, mantiveram-se as priticas escravistas, porém, entio envolvidas com contratos,ideologias de livre cemprego e discuros sobre civilizagao (p. 157). ‘A quinta “meseta” (a partir do ano 1900) € consi- derada mais incerta, apesar da magnitude das escravidées coletivas estatais e dos sistemas de trabalho forgado a sombra da progressiva ilegalidade da escravidio e do desenvolvimento do capitalismo. Zeuske parte de alguns pressupostos para defini-l: a redugio de status ¢ de anizagio ideolégica do outro, nfo apenas nas colénias dlistantes,e um contexto social legitimador da violencia di- zeta nas relagbes de trabalho nos sistemas penitenciirios ¢ eciucativos. O primeigo ponto pode ser exemplificado pelos campos de concentragio e trabalho forgado na Alemanha navista © nos gulags soviéticos, onde 0 papel do Estado {i relevante, ¢ na imposicao do trabalho forgado como castigo legitimo, Trabalho forcado, ais, que continuow ser utilizado nas eol6nias mediante uma série de justi- ficativas para diferencid-lo do termo “escravidio" a partir dos debates na Onganizagio Internacional do Trabalho (OFT) nas primeiras décadas do século XX. Zeaske sustenta que, atvalmente,o escavo como pro- priedade privada conforme os principios do direito romano no existe mais em nenhuma parte do mundo. Masa esera~ Escraviddo, uma antiga serpente de miiltiplas peles vidoes estatais ¢ outras formas de escravidho das diferentes “mesetas” permanecem enraizadas nas sociedades. Dentre essa permangncias, destaca-s¢ 0 racismo ~ uma redo de status tipica da “meseta’da escravidio por parentesco(p.175) — bascalo em falsos argumentos teéricos de superioridade, que permeou toda a terecira e quarta“mesetas”e atingiu seu jponto méximo em meados do século XX, portm sem deixar de existe ainda hoje. Nessa altura da argumentago, Zeuske ascevera que, nas escravidéesatuais®, nem o racismo nem a propiedad escravadesempenham papel importante (p-176). ‘Afirmagio que deve ser relativizada, pois se essa reduc de status no constitu condico inerente das eseravidées atu, 6 dificil negar sua presenga na maioria delas,em especial nas grandes soviedades eseravistas da tereira e quarta“mesetas” = Brasil, Estados Unidos ¢ Cuba, sobretudo quanto as trabathadoresafrodescendentes, como demonstram Cooper, Hilt e Scott (2005). No capitulo em que diseute “quanto valem os cor- pos humanos2”, Zeuske historiciza 0 valor dos compos das pessoas escraviradas. Na pré-histériae nas sociedades com caracteristicas similares, os eseravos eram capital como simbolo de status; na Antiguidade e na Idacle Média, os escravos possuiam valor de compra e venda assim como boise cavalos. Na terceira “meseta"da escravidio atlantica, porém, a relagio entre 0 valor do corpo de uma pessoa escravizada€ 0 valor dos animais domesticados rompeu-se © 0 prego dos escravos aumentou de forma considerivel, inclusive, transformando-os em medida de valor e meio de ppagamento, Nos dias atuais,em contraste,ressalta Zeuske, & possivel conseguir escravos-~eriangas ou mulheres — por valores muito baixos. (Outro aspecto fundamental abordado por Zeuske srefere-se as diferencaseinterseoyies entre otrifico eas es- cravidées nos hemisférios oriental e ocidental,jé apontadas 3 autores como Capela e Medeiros (1987)..No Oceano dico, na Asia central e oriental, mais especificamente na China, ¢ possivel identificar quase todas as“mesetasde esclavitud” juntas: militar, esata, prisionciros de guerras, escravidio de mulheres e de criansas, escravidio coletiva em certos temtiros, escravidio por dividas, concubinas. Entretanto, chama atengio a auséncia da tereeira“meseta” caracterizada pela escravidio de propriedade similar atlintica. Esta foi exportada para o oriente com a moder nidade escravista para suprira necessidade de mio de obra nas plansations a partir de meados do Oitocentos, encai- xando-se na quarta “meseta’ de tendéneia globalizadora, A China lis, foi uma importante regio de pro~ cedéneia de coolies enviados para Cuba e Peru, além de tertitérios do Indico. A diferenga da escravidao atlintica, no territério chinés nunca houve a condigao de escravo definida legalmente nem relacionada com a raga ou & cultura ¢,portanto,nunea exist uma escravidio a0 estilo do direito romano. Porém, também nunca houve 0 con- tririo, um ideal de lberdade pessoal. Razio pela qual se tornou invisivel aos olhos ocidentais(p. 326). Quanto aos amimeros, Zeuske defende a tese de que a quantidade de pessoas escravizadas no hemisfério oriental —costaleste da Africa, Asia central e leste, tertitérios do Indico e Pacifico ~ superou ada zona atlantica¢ cita Gwyn Campbell para afiemar 0 mesmo em relagio ao trifieo de escravizados, ressaltando quea maior parte doinfame comércio na Asia ‘corteu por via terrestre (p. 235). No hemisfétio ocidental, Zeuske revsita as escra- vidoes locais de indios nas Américas até a chegada dos ccuropeus¢, posteriormente,a conversio de corpos humanos «em capital. O niimero de escravos indigenas em territrios hhispano-americanos cos que seriam depois controlados por Inglaterra, Franga, Estados Unidos e Canada pode se esti- mado entre 2,5 € 5 milhdes até 1900 (p.242). Voltando seu olhar paraa Afiiea—importante eentro de capitalizasio de corpos humanos, sobretudo entre os anos 1700 ¢ 1850, em relagio ao Atlantico,mas também ao Indico 0 historiador alemao destaea 0 papel dos europeus no trifico negro transformado em grande e Incrativo negécio através da integragio paulatina das regies produtoras de commodities das reas fornecedoras de eseravos. ‘Apés evidenciar a importincia dos dados numé- ricos, Zeuske aponta para outra dimensio, considerada essencial em sua tese:*a conceitualizagio histricae trans- cultural dos corpos como capital éachave para entender a escravidio como um fendmeno histérico global” (p. 249). (Ou seja, sem a “produgao”e a “disposigao” do capital de corpos humanos, sem o contrabando e sem a polivaléncia deste capital hnmano nao haveria expansoes imperialista, colonialismo, cosmopolitismo e capitalismo tal fato,em sua ética,extrapola os beneficios estritamente monetirios. ‘Tratava-se, a principio, do capitalismo comercial de mer- cadorias, em cujo miicleo se encontravam os escravos, € que ficou conhecido como mercantilismo. O fundamental para Zeuske é a auséncia—salvo raras excegbes— da escra- Vidio, do comércio de pessoas e dos corpos como capital nas descrigies habituais do mercantilismo. Aspecto que aparenta ser uma imprecisio do historiados, pois trifico de escravizados e escravidio sio elementos centrais, por exemplo, nas anslses de Femando Novais (1979) sobre 0 Antigo Sistema Colonial”. so, porém, 0 invalid a ori= tae) Passo foead: (5) Natimal rca rae cao uae pa te) Tabuo eats as nas ce asta ou as Ts eae Histéria Unisinos 161 162 Paulo Cesar Goncalves sinalidade de sua tese sobre a existéncia, neste periodo, de dimensdes globalizadas de um capitalismo de corpos shumanos de uma mobilidade forgada ¢ violenta (p.250), que $6 aumentaram a galope do incremento do trifico de escravizados a partir do final do século XVI, passando pelo século do Huminismo (XVII) até meados do XIX (século da “civilizagao europeia"), com destaque para os ts tersitsrios com as escravidées maiores ¢ modernas (segunda eseravidio) — Brasil, Cuba e Estados Unidos. Em relagio 4 Afica,ciente de que as histérieas cestruturas e dinimicas do comércio de escravos no interior dlo continente foram abaladas pelas demandas do trifico atlintico e oriental (Lovejoy, 2002), Zeuske lembra que ‘o mercado interno de eseravos era no minimo tao grande quanto 0 transatlantico. A diferenga residia nas variadas formas de eseravidio e na maior quantidade de mulheres ceseravizadas (tendéncia geral da escravidao na histéria mundial) em contrapartida ao trifico transoceénico onde predominaram homens ecriangas. Desde o final do século XVIII as coldnias europeias de plantagbes do fndico — ‘Mauricio, Reunito, Mayotte ~ e a zona sul-afticana do ‘Cabo importavam eseravos procedentes da costa oriental “Mogambique, por exemplo,esteverelacionada ao comércio transatlintico, mas também exportou escravos, ainda que «em menor eseala, para Indico (Capela e Medeiros, 1987). A poibigio do trifico © depois a aboligio da cescravidio provocaram dois movimentos em relagio & cexploragio dos nativos afticanos: (1) acompra de escravos transformou-se em compra de liberdade,comprometendo © individuo a trabalhar para saldar a divida, através da assinatura de um contrato de prestagio de servigos por tempo determinado (Stanziani, 2012; Flory, 2011}; (2) sgradualmente a Africa deixou de ser um afluente de mo debra destinada a América ou Indico para se transformar nna vitima cada ver mais direta do imperialismo europeu, através do qual as elites locais ¢ os governadores coloniais passaram a explorar os escravos dentro do proprio conti- nente (p-265), sob a justificativa da “missao civlizadora’, ‘No capitulo final, Zeuske analisa de forma bastante critica o conceito de aboligao coneebido e sedimentado nos séculos XIX e XX, nao sob a perspectiva da “liberda- de", mas da “falta de liberdade”/escravidio. Inicialmente, observa que entre 1808-1840, época das aboligdes formais do trifico de escravizados no Atlantico,surgiram processos de ocultamento, marginalizagao e nomeasao eufemistica de tudo o que se relacionava com o comércio ¢ posse de ceseravos € com as escravidies reais que continuavam exis- tindo. A galope do movimento abolicionist,forjaram-se conceitos € discursos culturais para descrever as escravi- does reais como tradigées independentes, quase sempre utilizando como marco a concepgio de“trabalho foryado’, a ser superado pela introdugao do modelo de civilizagao curopeu. Ou seja, a aboligio serviu como pretexto para a expansio imperialista ¢, enquanto instrumento deste objetivo, prestou-se a protelar o fim da escravidio ~ “el largo adi6s", na oportuna expressio de Seymour Drescher citada por Zeuske (p. 287). ‘Encaminhando-se para o fim do livro, Zeuske se pergunta: “Quando acabaram as escravidées realmente ¢ io s6 formalmente como nos discursos politicos ¢ textos juridicos?” (p. 296). A resposta nio € ofimista, mesmo enfatizando a agéneia dos individuos eseravizados na huta contra a degradaco de seu status e por condighes dignas de sobrevivéncia. Segundo o historiador,a aboligto das es- cravidoes complexas eestabclecidas egalmente eontribuit para perpetuar escravidées mais antigas, pequenas c locais ‘ou mesmo a favorecé-Ias. As escravides informais inca terminaram e se transformaram em formas de migragio Iahoral sob condigdes dificeis e violentas e com priticas analogas’ escravidio (transporte, castigosfisicos, trabalho eseravo,alimentagio e alojamento).1ss0 ocorreu em virt- de das novas nomenclaturas da eseravidao, dos interesses coloniais e das novas formas de produgio de recursos cada ver mais globalizadas. Em suma, nio acabaram a reduio de status, a escravidao por divida, a eseravido infantil, a prostituigéo forgada, nem outras formas de escravidio ‘moderna ou mesmo os escravistas. ‘A resposta passa também pelas referidas“mesetas deexclavitud” pois a complexidade dos provessos de escra~ viragio da histéria global! deve-se a continua evolugio de forma independente das *velhas mesetas” que continuam a ddesempenhar importante papel na eriago de novas formas (mesetas") de eseravidio, Os discursos mudasam,1as, via de regra, os trabalhos que os libertos deveriam executar para nfo morrerem de foe eram os mesmos,assim como seu status, e se seguiu exercendo a violéncia sobre seus corpos: priticas escravistas sem escravidao formal. Tudo somado, leva Zeuske a concluir que na historia global jamais houve a propalada dicotomia entre “liberdade” ¢ “escravidio”, Por outro lado, o historiador defende que © melhor dimensionamento da percepgio do sentido da Iiberdade viria com os estudos de micro-histéria sobre as experiéncias vividas por aqueles que softeram na pele a escravidio, 0 comércio de escravos ¢ a prépria aboliga0 (Roralén ¢ Zeuske, 2017), ‘Antes de concluir esta resenha, sob perspectiva critica mais ampla, seria importante inserir a histéria da Global do Trabalho, eseravidio de Zeuske na Histss pC amu aa que alae Se acne € ogee Ge PASH 35 Vol. 26 N° 1 - Janeiro/Abril de 2022 Escraviddo, uma antiga serpente de miiltiplas peles Suas “mesetas de esclavitud” permitem discutir algumas categorias de sujeitos que se deslocaram em grandes vo lumes ao longo dos séculos XIX e XX,ou mesmo nos dias atuais,no contexto do espraiamento global do capitalism escravos africanos, trabalhadores africanos e asiticos sob contrato, imigrantes europeus, trfico de criangas e mu~ Iheres. Um esforgo para apreender o feriomeno migratorio dos denominados “trabalhadores subalternos” de Marcel van der Linden (2013), tendo como ponto de partida a anilise expandida geogrifica e temporalmente sem, no entanto, relegar ao segundo plano as especificidades locais das relagdes de trabalho live e no livre, Evitando as amarras da dualidade “trabalho es- cravo/trabalho livre", a Histéria Global do Trabalho, desenvolvida como *itea de interesse” por Linden, trar elementos essenciais para a pereepgio de que 0 trabalho livre era muito menos livre do que se supe e, em muitos casos, aproximou-se da servidao e do trabalho coercitivo 1no mundo todo, inclusive nas reas centrais. Trabalho livre € nao livre, remunerado ¢ nao remunerado, organizagies formais e informais de trabalhadores constituem, assim, ‘os objetos em perspectivatransnacional e transcontinental das relagdes de trabalho em amplo arco temporal. Ou seja, uma histéria do trabalho que integre a histéria da escravidio. Linden, assim como Zeuske, observa que a historia do capitalismo, desde a expansio do mercado mundial no século XIV foi sempre ahistéria do trabalho compulsério, por coergo tanto fisica quanto econdmica, e os “traba- Tadores assalariados reais” abordados por Marx eram apenas uma das formas que o capitalismo encontrou para transformar forga de trabalho em mercadoria. A principal contribuigio dessa tese seria questionar 0 pensamento te- leolégico de que eseravidio, servidio por eontrato, trabalho autonome, doméstico, infantil e de subsisténcia seriam formas residuais de exploragio do trabalhador, nfo subor- dinadas logica da mercantilizagio capitalista e, portanto, fadadas ao desaparecimento. Visio em escala global que permite constatara eoexisténcia ¢ a complementariedade dessas formas de trabalho, vereda que Zeuske também percorre s6 que sob 0 “prisma da eseravidao”. A base comum a todos esses trabalhadores é a mercantilizagio coagida de sua forga de trabalho, o que toma importante inventariar os motivos que levam a0 uso desta ou daquela modalidade de exploragio da forca de teabalho, ou o impede ~ considerando célculos econdmicos, normas comportamentais, lepais,politicas e rmorais, Nessa perspectiva, os “trabalhadores subalternos” abarcam o trabalhador livre assalariado, os trabalhadores auténomos, arrendatarios, trabalho sob contrato © os eseravos. Sio aqueles euja forga de trabalho & vendida (ou alugada) a outra pessoa em condigées de compulsio cecondmica ou nao econdmica, independentemente de o portador da forga de trabalho vender ou alugar ele mesmo sua forga de trabalho,e independentemente de o portador possuir meios de produgio (Linden, 2013). ‘Alessandso Stanziani, com quem Zeuske dialoga no livro, também defende que a histéria das formas de trabalho “livre” esté intimamente ligada a do trabalho forgado. Enfocando o contexto do Oceano Indico oito- centista, observa que no existiam fronteiras claras entre a eseravidio eo trabalho assalariado, mas continuidade © coexisténcia de diversas formas de dependéncia e sub- missio, demonstrando que o capitalismo é compativel com o trabalho nao live. A tese do historiador italiano & de que, entre os séculos XVII e XX, formas de trabalho © escravidio por toda a Eurasia foram definidas e praticadas «em uma via de mo dupla. Uma ampla gama de configu- sages de dependéncia, eseravidio e trabalho existiu na Riissia, India e Indonésia, bem como no Japio, China, Gra-Bretanha, Franca, Prissia e no Oceano Indico. Tss0 correu nao apenas em areas especificas, deforma enrai- zada em instituigoes locais, valores e relagdes econdimicas, ‘mas também em escala global. Nas col6nias europeias, a pritica do trabalho sob contrato foi concebida como uma forma extrema de subordinagio do servigo doméstico ¢ da servidio na Europa. Ou seja, sem a identificagio do trabalhador como um servo na Gri-Bretanha, Franga ¢ Holanda, o trabalho sob contrato nessasfreas seria im possivel (Stanziani, 2013), Asestratégias de obtengio e controle de trabalha~ dores permitem identificar alguns aspectos associados a0

You might also like