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FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMACAO Bibliotecaria: Maria Licia Nery Dutra de Castro ~ cRB-82/ 1724 Pa87 Priticas teatrais: sobre presencas, treinamentos, dramaturgias e processos / organizacao: Renato Ferracini, Raquel Scotti Hirson e Ana Cristina Colla. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2020. 1, Dramaturgia. 2. Expressio corporal (Teatro). 3. Atores - Treinamento. I. Ferracini, Renato. Il. Hirson, Raquel Scotti. Il Colla, Ana Cristina, 1V, Titulo, cpp ~ 792 = 784,932 ISBN 978-65-86253-55-9 ~ 792.02 Copyright © Renato Ferracini, Raquel Scotti Hirson ¢ Ana Cristina Colla Copyright © 2020 by Editora da Unicamp Esta publicacio conta com o apoio da Fapesp (processo n. 2019/17993-9) As opinives, hipéteses, conclasoes e recomendagoes expressas neste livro sto de responsabilidade dos autores e néo necessariamente refletem a visio da Editora da Unicamp ou da Fundacio de Amparo a Pesquisa do Estado de Sio Paulo. Diseitos reservados ¢ protegidos pela lei 9.610 de 19.2.1998. £ proibida a reproducio total ou parcial sem autorizagio, por escrito, dos detemtores dos direitos. Toi feito o depésito legal Dieitos reservados & Editora da Unicamp Rua Sérgio Buarque de Holanda, 421 ~ 3° andar Campus Unicamp (CEP 13083-859 ~ Campinas ~ SP ~ Brasil ‘Tel: (19) 3821-7718 / 7728 wwweditoraunicamp.combr ~ vendas@editoraunicamp br 2 © CONCEITO/AGAO DE TREINAMENTO E SEUS DESLOCAMENTOS Renato Ferracini Muitas questées so levantadas a partir da palavra “treinamento”. No contexto teatral arriscamos dizer que nao se trata mais de uma simples palavra, mas de um conceito, um conjunto de praticas, uma operacio ética e estética que ainda causa confortos, desconfortos, ataques, defesas, confusées, pedidos de desculpas e aquele gesto tao comum em falas de conferéncias dos dedos das méos fazendo a mimese linguistica das aspas para significar corporalmente: “Pois bem, estou falando essa palavra, mas nao é bem isso o que quero dizer, porém, neste momento, nao achei outra melhor”. Em face dessa confusao conceitual reinante, podemos ter, como pesquisadores, ou a postura de desistir da palavra e buscar criar outro conceito ou conceitos que deem conta da ampliacao e do multifacetamento do ato ou do efeito de treinar, ou a postura de repensar, deslocar, problematizar e ampliar essa ideia. Ambas as agGes sao potentes, a meu ver. Este pequeno texto adota a segunda postura, com a abertura de recorrer a primeira se for parcialmente necessario. Nao procuro, de forma alguma, resolver a questdo conceitual do que é “treinar” respondendo ao que acredito sejam falsos problemas: treinar é acumular conhecimento ou gerar experiéncia? Treinar vem antes da encenacao? O treinamento estd conectado ou nao com a estética espetacular? Esses problemas mal colocados territorializam o pensador/fazedor de teatro na suposta necessidade de escolha entre dois ou mais termos de territérios polarizados. Nao resolvemos nenhum problema com essa postura; somente somamos um nome a mais ou a menos numa das pontas da polaridade dos que sao a favor ou contra esse territério conceitual/conjunto de praticas, Sim, 37 0 CONCEITO/AGAO DE TREINAMENTO E SEUS DESLOCAMENTOS porque a real questo com 0 termo “treinamento” é muito menos conceitual e mais sobre como atualizar dispositivos de conjunto de praticas para 0 corpo do ator coadunado com seu plano de experiéncia poética. Nao vejo, como pesquisador, nenhuma postura criativa e potente nesse tipo bastante estranho de pratica do “escolher um dentre dois ou trés ou mais lados”. A questao deste texto é buscar pistas de como podemos problematizar, ou seja, buscar bons problemas com 0 conceito/conjunto de préticas do/no ato de treinar. Buscar bons problemas nao é, em hipétese alguma, encontrar asolucao das questées comumente postas sobre 0 conceito e 0 ato de treinar, mas deslocar 0 termo para possiveis outros terrenos mais férteis e potentes do que o “contra ou a favor” ou do que a necessidade de escolha entre polos supostamente opostos. Deslocar também nao tem como fungio, neste texto, realizar uma mudanga topoldgica de ponto de vista, mas fazer esse panorama flutuar por um campo de poténcia de multiplicidade conceitual. Deslocamento pode ser entendido aqui como diluigo e busca de fluidez muito mais do que simples mudanga de visio. Para tanto, faremos deslocamentos/diluigées livres que possam nos conduzir a possiveis pistas para a criagdo dessa terra fértil. Primeiro um deslocamento etimolégico, depois outro ontoldgico e outro epistemoldgico. DESLOCAMENTO ETIMOLOGICO Ao pesquisarmos a etimologia do verbo “treinar” ou do substantivo “treinamento” no dicionario etimoldgico da lingua portuguesa’ e no Diciondrio Priberam da lingua portuguesa (on-line),2 somos remetidos a adestramento; preparagdo para uma competic¢ao ou para uma atividade; ensinar ou aprender determinada acao ou pratica; adestrar, acostumar; preparar ou preparar-se para uma prova, uma competicao ou uma atividade; tornar apto, adestrar, habilitar. Essas questées remetem claramente a uma nogdo quase militar da palavra “treinamento” ou do verbo “treinar” como adestramento psicossomatico, acimulo de habilidades, preparacao para a competigao, aprendizado de uma pratica. Esse parece ser 0 sentido de treinamento comumente criticado quando se trata da aplicacdo desse conceito na area de artes. Deve-se afirmar, inclusive, que essa critica, que se apoia 38 PRATICAS TEATRAIS na etimologia da palavra, parece ter raziio. A censura ao termo justifica-se mais ainda quando o que se busca na area das artes corporais presenciais é justamente gerar uma linha de fuga dos corpos adestrados e habituados, territorializando-os num terreno criativo, composto de outras intensidades e potencias dele mesmo. Adestrar o corpo, habitu4-lo, realizar um aprendizado como aciimulo de praticas técnico-mecanicas parece ser justamente 0 oposto do que se busca de um “corpo-em-arte”. Mas, curiosamente, a mesma etimologia da palavra nos leva para um territério pouco conhecid ‘reinar tem como origem adestrar a ave para a caga, e seria derivado do latim traginare e do substantivo treina, que era © animal dado ao falcio para o treinarem na caga. Uma rdpida pesquisa na internet sobre a etimologia da palavra traginare e o terreno se amplia: traginare significa “adestrar o falco a pegar a sua caga, levando-o a perder o medo de certa ave selvagem ao Ihe dar de comer uma galinha sobre uma ave domesticada da mesma espécie daquela selvagem, com isso o falcdo se habituava com as caracterfsticas daquela ave e quando fosse langado a caca da mesma ja nao mais lhe tinha medo” Treinar, etimologicamente, seria ensinar 0 falcdo a cagar uma ave que ele nao caga. Ora, ja ¢ lugar-comum entre os bidlogos a habilidade de caga dos falcdes. Portanto, traginare o falcio nao seria ensina-lo a cacar, jé que essa ave é uma cacadora nata, mas, sim, ampliar suas capacidades de caga para além daquelas que ele ja tem. A etimologia de treinar/treinamento parece nos remeter a um duplo paradoxal: seria tanto © adestramento como a ampliagao de uma capacidade jé existente, O falcio jd caca. Com o traginare ele amplia essa capacidade, intensifica sua aptidao. Ele nao gera ou cria uma nova habilidade, mas amplia a jé existente. Em Ultima instancia, com o traginare o falcao intensifica-se a si mesmo, amplia-se como falco sem deixar de ser falc4o: gera um “devir-outro-falcdo”. A palavra treinamento, nessa faceta etimoldgica especifica, nos leva a um territério lidades, acumular de intensificagio de si. Para além de aprender outras habi aprendizados técnicos estrangeiros, preparar-se para uma competicio, o treinamento, enquanto traginare, convida-nos a uma experiéncia de intensificagio de si. A mesma ativacio que ja nos pedia Stanislavski no inicio do século pasado: “Se um ator tem de ouvir, que o faca atentamente; se deve cheirar, que cheire com for¢a; se tiver de olhar para alguma coisa, use os olhos de fato”+ 39 © CONCEITO/AGAO DE TREINAMENTO E SEUS DESLOCAMENTOS A etimologia da palavra “treinamento” parece forcar o olhar para um territério duplo e paradoxal: ao mesmo tempo que nos leva para um aprendizado de habilidades, também nos leva para uma ideia e um conjunto de praticas que teriam como fungao uma intensificacao de si. Ao treinar, 0 artista cénico presencial parece, etimologicamente, estar num terreno movedi¢o e paradoxal de adestramento, por um lado, e intensificacao de si, por outro. Nao se trata, no entanto, de um desencadeamento amorfo das emoges. Aqui, a drasticidade fisiolégica une-se a artificialidade da forma, a literalidade do corpo & metéfora. A massa organica, tendendo a transbordar de qualquer forma, de vez em quando tropeca na convencionalidade e se coagula na composi¢ao poética. Essa luta entre a organicidade da matéria e a artificialidade da forma deveria dar a arte do ator, assim entendida, uma tensio estética interior? Fica clara, portanto, a pista que esse deslocamento etimoldgico nos da: o treinamento somente teria sentido nesse terreno paradoxal - aprendizado, acumulo de habilidades, por um lado, e intensificagao de si, por outro, numa correlaco e numa cocriagio -, paradoxo esse que gera e amplia 0 conceito de treinamento. Ao provocarmos uma transversalidade sobre esse paradoxo, poderemos relacionar os termos nos quais um se vincula ao outro: treinar 0 adestramento, o aprendizado, 0 actimulo de habilidades estaria intimamente vinculado a intensificagao de si e vice-versa. Portanto, a questéo, mesmo no nivel etimoldgico, nao seria descartar 0 habito em prol da intensificagao ou vice-versa, pois esses nao sao polos opostos, mas habitam o mesmo terreno no qual se pode gerar um corpo criativo. Quando Stanislavski nos mostra que devemos treinar nossos equipamentos fisicos até o limite de suas capacidades, por meio de uma “educacio corporal” com muito trabalho e perseveranga, nao seria dessa intensificagéo corpérea aliada ao habito que ele estaria falando? Portanto, o objetivo imediato foi o de treinar seus equipamentos fisicos até o limite de suas capacidades naturais, inatas. Terao de continuar a desenvolver, corrigir, afinar seus corpos até que cada uma de suas partes corresponda a tarefa predestinada ecomplexa que lhes foi atribufda pela natureza de apresentar sob forma externa seus sentimentos invisiveis. [...] Vocés tem de educar 0 corpo de acordo com as leis da natureza. Isso implica muito trabalho e perseveranga* 40 PRATICAS TEATRAIS E Grotowski, quando nos convida ao desafio, a ultrapassar as capacidades do corpo, quando convida “o corpo ao impossivel”, também nio esta falando dessa intensificacao? A outra abordagem ¢ desafiar 0 corpo. Desafié-lo dando-Ihe tarefas, objetivos que parecem ultrapassar as capacidades do corpo. ‘Trata-se de convidar 0 corpo a0 “impossivel” e de fazé-lo descobrir que se pode decompor o “impossivel” em pequenos pedagos e tornar possivel. Nessa segunda abordagem o corpo se torna obediente sem saber que deve ser obediente. Torna-se um canal aberto as energias e encontra a conjuncao entre o rigor dos elementos ¢ o fluxo da vida (“a espontaneidade”). O corpo entdo néo se sente como um animal domado ou doméstico, mas antes como o animal selvagem e digno? ‘Uma objecao que poderia ser feita neste instante seria a de que um atleta também tem esse objetivo paradoxal de actmulo de habilidades, adestramento ¢ intensificagao. O atleta - um corredor, por exemplo - adestra o corpo a fim de intensificar sua capacidade muscular de correr com 0 objetivo de ganhar uma corrida ou com 0 propésito maior de conquistar uma medalha olimpica. Ele também conclama seu corpo ao “ mpossivel” e o desafia até o limite de suas capacidades inatas. Seria, entéo, adequado comparar um ator, um dangarino, um performador a um atleta? Creio que sim, ¢ isso jé foi feito pelo proprio Artaud ao dizer que o ator é um “atleta afetivo”.’ O atleta, assim como © ator, adestra-se, habitua-se, enfim, treina para proporcionar um plano de intensificagao de si. Mas Artaud nos mostra claramente a diferenga: enquanto a intensificagao do atleta visa a uma ampliacao de poténcia muscular, aerdbia, mecanica, ou de certas habilidades fisico-mecanicas especificas, o ator (ou, de forma mais genérica, 0 artista cénico presencial) intensifica sua capacidade de afeto. Ele é um atleta do afeto e um profissional da intensificacao afetiva. Adestra-se, cuida de si, para intensificar sua capacidade afetiva. Outra questao também deve ser colocada. A intensificagao de si desse atleta afetivo nao pode ser confundida com uma superaco de si que talvez pudesse chegar, no limite, a uma rentincia de si, Essa é a diferenca colocada por Foucault entre o atleta da espiritualidade antiga ¢ o atleta cristio. O primeiro verifica que a arte da luta consiste em estar pronto, mantendo-se em alerta para nao ser derrubado, permanecendo ereto e nao se tornando menos forte com os golpes que a vida lhe der. Ja 0 atleta crist@o deve superar-se a si mesmo, renunciar au 0 CONCEITO/AGAO DE TREINAMENTO E SEUS DESLOCAMENTOS a sis ele tem um inimigo: ‘le mesmo, que sempre o manteré alerta. O atleta cristo luta contra o pecado. O atleta antigo luta com o acontecimento. O atletismo afetivo como intensificacao de si mantém-se em composi¢ao com o acontecimento: nenhuma rentncia ou superag4o, somente uma ampliacao da capacidade de composi¢ao. Mas, para problematizarmos o treinamento com 0 conceito de afeto, necessitamos partir para o segundo deslocamento. DESLOCAMENTO ONTOLOGICO O ator como “atleta afetivo”. Para adentrarmos nessa relagao sem cair em polaridades simplistas do tipo “afetivo” como contrario de “racional”, ou vinculado as emocbes, devemos pensar o “ser-corpo-do-ator”, seguindo uma clara assinatura de Espinosa,'° enquanto corpo relacional e como um grau de poténcia de afetar e ser afetado. O corpo é um conjunto de partes, e © termo “partes” deve ser entendido aqui como qualquer elemento extensivo ~ partes concretas, visiveis e atuais que o formam — ou elementos intensivos ~ partes singulares, econdémicas, sociais, culturais, invisiveis e virtuais que 0 atravessam. F a relacéo dindmica dessas partes intensivas e extensivas que compée e recompée um corpo em sua singularidade. Exemplo: meu corpo — singularizado como Renato - define-se por um conjunto de partes intensivas e extensivas que, em sua relacdo, compée este e somente este individuo/corpo Renato. A composicao que define um corpo esta, entio, deslocada da afirmagao cristalizante de um “eu sou” para uma pergunta dinamica do tipo “como compor afetivamente esse plano de forcas que nos atravessa e essas partes extensivas que nos formam?”." Um deslocamento pratico-ontolégico do plano das simples definigdes para um campo complexo das composigées. O corpo nao mais como uma demarcagao fixa, mas como um elemento relacional que se compée em dinamica e em gerdindio; mais uma cartografia de partes intensivas ¢ extensivas humanas e nao humanas do que uma esséncia fixa definidora. Ou seja, deslocamos qualquer acepgao de corpo para a relaciio dinamica das partes que o compéem, e nao para o simples conjunto delas. Outra questao importante € que os corpos se compéem em sua relagéo numa seta que tende tanto ao micro como ao macro.” Podemos pensar em um corpo como um corpo humano, mas o mesmo conceito se emprega para qualquer parte desse 42 PRATICAS TEATRAIS corpo, como, por exemplo, um olho: meu olho é um conjunto de partes que, em sua rela¢ao reciproca, compée e define meu olho es ele nessa dada relagdo (seta que tende para o micro), ou mais, a pupila desse olho é formada por um conjunto de partes que, em sua relagao reciproca, define essa pupila nessa dada relacao e assim por diante ao infinitamente pequeno. O mesmo se aplica para a seta macroscépica. Um coletivo, uma sociedade, uma cultura podem ser considerados corpos na medida em que a relagao reciproca entre suas partes intensas e extensas comp6e dinamicamente aquele coletivo, aquela sociedade, aquela cultura. “E necessrio dar-se conta de que o nosso corpo é a nossa vida. No nosso corpo, inteiro, sio inscritas todas as experiéncias.” Portanto, falamos aqui em corpos (singulares, sociais, culturais) que coevoluem e criam-se uns aos outros numa rede extremamente complexa de afetos. Falar em coevolugao significa dizer que ndo é apenas 0 ambiente que constréi o Corpo, nem tampouco 0 corpo que constréi o ambiente. Ambos sao ativos o tempo todo. A informacio internalizada no corpo nao chega imune. E imediatamente transformada €, como explicou Edelman, mesmo quando o tema ¢ a meméria (que sinaliza fluxo de informago com alta taxa de estabilidade), ha processos incessantes de recategorizagio. Nao hé estoque, apenas percursos transcorridos e conexdes jé experimentadas."* Esses corpos se compéem pela capacidade de afetar e ser afetados numa dinamica de composi¢ao absolutamente complexa. Nessa esteira de pensamento podemos dizer que o corpo do artista cénico presencial - assim como qualquer corpo — passa a ser ele mesmo um grau de poténcia de afetar e ser afetado." E nesse ponto que o deslocamento ontolégico toca o atletismo afetivo de Artaud. Uma estética afetiva enquanto ampliacao da capacidade de afetar e ser afetado numa rela¢ao positiva de contégio jé foi tratada por Quilici: A palavra afeto tem também aqui uma conotagao peculiar que nos remete & questo da eficdcia, Ela nao designa apenas a qualidade de uma experiéncia, mas um poder, o poder de afetar, uma forca que atua no e através do ator ¢ depois em relacao a0 espectador. O sentido transformador do teatro magico e ritual, o seu poder de contagio, relaciona-se a esse desencadeamento de relacées afetivas."* Ao treinar, etimologicamente, como ja vimos, 0 artista cénico presencial se territorializa em um terreno duplo e paradoxal no qual ele aprende e acumula 43 © CONCEITO/AGAO DE TREINAMENTO E SEUS DESLOCAMENTOS habilidades ¢ ao mesmo tempo ocasiona uma intensificagdo de si (como qualquer atleta). A primeira pista que esse deslocamento ontolégico pode nos dar ~ e que Artaud ja nos deu hd tempos ~ é que aquilo que o artista cénico deveria intensificar em seu treinamento é a propria poténcia de afetar e ser afetado. Podemos dizer que treinar significa um aprendizado, um conjunto de praticas que teria como fator uma possivel intensificagao tanto do afetar como do ser afetado, ambos em correlagao dinamica. Uma intensificacao de ser afetado como ampliacao da receptividade do corpo do artista cénico presencial (uma maior capacidade de escuta do espa¢o, do tempo, do outro; ampliago de uma porosidade) e também uma intensificacio de afetar como capacidade de atualizagao de acées fisicas no tempo e no espaco, ambos em cocriacao dinamica. A segunda pista que esse deslocamento ontoldgico traz é que 0 corpo do ator nao finda nele mesmo. Ja que os corpos sao partes que se afetam em coprodugio dinamica, numa rela¢ao ampla que vai do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, nenhum treinamento pode se restringir a uma intensificacao de afetos que finde somente no corpo singular do ator. Esse corpo singularizado e individuado é, sim, uma relacdo complexa de partes, mas também ésomente a parte de um corpo ainda mais complexo (cénico, espetacular, social, cultural), e ele - enquanto singularidade — tanto produz como é produzido por esses grandes corpos. Portanto, a aprendizagem de habilidades que planeja uma certa intensifica¢do do corpo — ou seja, essa transversalidade do conceito de treinamento — deve ter como premissa uma multiplicidade de camadas, cada qual em si mesma uma multiplicidade heterogénea: uma camada de treinamento para uma intensificagio do corpo singular do ator (camada da potencializacao da atuagao); outra camada de intensificagao que se estabelece no corpo/cena singular com 0 outro ator ou os outros atores (camada da intensificagio da relacio intra/entre atores), e ainda outra que intensifica 0 corpo espetacular que subentende a relacio com o espectador (camada estética espetacular), e mais uma que se cria na intensificagao afetiva desse espetaculo com 0 corpo social € cultural no qual cle esta inserido (camada politica). E justamente no plano de composi¢ao dinamica e cocriativa desses corpos que se assentam as relacées estéticas, politicas e singulares que o treinamento pode trazer. Na agio de uma intensificacao singular do corpo do ator j4 se encontram o cerne e a base de uma reconfiguragao tanto cénica/espetacular quanto do corpo social, cultural e politico, na possivel ativagao de outros modos de afetar e ser afetado. PRATICAS TEATRAIS Claro que essas camadas nao sao necessarias nem precisam estar nessa ordem. A performance art ja treina sem muitas vezes incluir a primeira ou a segunda camadas. A questo positiva que se coloca aqui é que nao ha mais um espa¢o ou um tempo determinado para o treinamento. Ao pensarmos 0 treinamento nesse sentido ampliado, fugimos do conceito promulgado pela antropologia teatral de que o ato de treinar responde a uma relacao temporal e espacial de causa-efeito entre ele, 0 ensaio e 0 espetaculo. Se deslocamos etimologicamente o treinamento para o paradoxo habilidade-intensificagao somamos a esse terreno o deslocamento ontolégico, ampliamos 0 conceito de “treinar” para uma intensificagéo da capacidade de afetar e ser afetado como recriagao poética de corpos macro e microscépicos cogerados nessa relacao afetiva. Treinamos o corpo singular assim como treinamos a cena e o espetaculo, Em outras palavras: treinamento é intensificagao afetiva do corpo, da cena ¢ do espetaculo. Se ha intensificagdo na poténcia de afetar e ser afetado, entao, ha treinamento. E, nesse plano potente e alegre (no sentido de Espinosa de ampliacao de poténcia para a aco), se existirem dispositivos técnicos, mecnicos, musculares e/ou de habilitacao fisica, estes estarao sempre no campo da/para intensificagao de si. Alias, intensifica-se por meio desses dispositivos e desse conjunto de praticas. Talvez seja na tensdo gerada nesse terreno paradoxal entre dispositivos e técnicas na busca de intensificagdes que possamos disparar uma certa criatividade corporea que amplia o poder afetivo e gera uma dada vibracao diferencial potente e alegre. E nesse sentido que podemos ler Grotowski: “Vocés nao deveriam treinar, nem de modo ginastico, nem de modo acrobatico, nem com a danga nem com os gestos. Ao contrario, trabalhando separadamente dos ensaios, vocés deveriam confrontar 0 ator com a semente da criatividade”.” Ou ainda: “Falo de exercicios sui generis, de uma espécie de gindstica criativa. Os exercicios nao tém sentido algum se junto com eles e — por assim dizer ~ superando-os, nao se realiza a unica coisa essencial: a a¢do, o ato humano”.* E talvez nesse ponto que o ato de treinar toca a prépria vida e estimula uma certa criatividade vital. Intensificagao de afetos como um conjunto de praticas e dispositivos que geram uma estética da existéncia (Foucault). Jé podemos ler essa ampliacdo em Stanislavski: “A noite, quando jé estiverem deitados, com a luz apagada, treinem-se na recordacao de todo o seu dia, buscando incluir todos os detalhes concretos que puderem. Se evocarem uma refeigdo, nao se 45 0 CONCEITO/AGAO DE TREINAMENTO E SEUS DESLOCAMENTOS lembrem sé da comida, mas visualizem os pratos em que foi servida e a sua disposigao geral”. E depois em Grotowski: “Em casa, quando vocés estiverem fazendo alguma coisa, cantem! Cantem enquanto arrumam a casa, quando jogam, quando se divertem, quando o seu corpo est ocupado. Cantem, assim podem agir melhor com 0 corpo”? Os mestres nos convidam ao treinamento cotidiano como ampliacao dos afetos do dia a dia. Seja potencializando uma recordaao ou cantando numa atividade qualquer, podemos “agir melhor com o corpo” e, assim, intensificé-lo. O treinar no se restringe a um espaco-tempo organizado e capturado antes ou depois de um ensaio ou apresentagio, mas se condensa como uma acio cotidiana ampliada e deslocada de seu automatismo comum. Para os mestres acima, ao intensificar 0 corpo dessa maneira, intensifica-se também 0 fazer teatral. O conceito de treinamento amplia-se, dessa forma, para uma ética como estética da existéncia, e nesse deslocamento pode nos levar a uma aproxima¢ao com 0 “cuidado de si”, conforme noticiado por Foucault em suas pesquisas sobre os gregos. E, dessa forma, partimos para o terceiro deslocamento. DESLOCAMENTO EPISTEMOLOGICO. No texto Tecnologias de si, de 1982," Foucault nos traz a noticia de que existiam dois importantes principios no pensamento grego: 0 cuidado de sie o conhecimento de si. Coloca-nos que talvez.a tradi¢ao filosdfica ocidental tenha primado pelo segundo e esquecido do cuidado de si e do conjunto de praticas denominado epimelesthai saltou, que significa “cuidar de si”, “o cuidado de si”, “preocupar-se, cuidar de si mesmo”. Segundo o autor, hd duas razGes para esse esquecimento ea hierarquizacao do conhecimento de si sobre o cuidado de si. Em primeiro lugar, uma heranga da moralidade crista que faz da rentincia de si- em vez do cuidado de si — a ponte para a salvaco. Em segundo lugar, toda uma tradicao filoséfica, que vai de Descartes e Husserl, que faz 0 conhecimento de sie o sujeito pensante terem uma importancia sempre crescente numa teoria epistemoldgica. Nesse mesmo texto, Foucault nos apresenta o termo dskesis que, acredito, se aproxima da ampliagao de conceito de treinamento que proponho neste texto. Mas é no livro Hermenéutica do sujeito™ que o autor dedica mais tempo a essa questao. Foucault pergunta quais seriam os dispositivos, os tipos 46 PRATICAS TEATRAIS ‘ou os modos de pratica de si para si que promoveriam uma conversao a si. Nas palavras do prdprio autor: “Qual a pratica operatéria que, fora do conhecimento, é implicada pela conversio a si?”. O termo dskesis (ascese) responde a questo. No sentido cristéo, entendemos ascese como rentincia de si, mas, na dskesis grega e romana — que o autor passa a chamar de “ascese antiga” ~, trata-se, a0 contrario, de adquirir algo que nao se tem. Diz Foucault: E necessario dotar-se de algo que no se tem no lugar de renunciar a algum elemento que serfamos ou terfamos em nés mesmos. E preciso se dotar de algo que, precisamente, no lugar de nos conduzir a renunciar pouco a pouco a nds mesmos permitird proteger o eu e chegar até ele. Em duas palavras, a ascese antiga nao reduz: ela equipa, ela dota. Aqui poderiamos questionar: a dskesis, entao, nega 0 pensamento de Grotowski no que tange a via negativa, ja que, enquanto esse procedimento e esse conjunto de praticas desejam “tirar” do ator tudo aquilo que 0 atrapalha em seu livre curso criativo, a dskesis equipa, dota. Falso problema! Se Grotowski quer subtrair doxas corpéreas, é justamente para potencializar o ator em seu plano criativo e intensificar 0 ator em seus afetos. O mesmo faz a dskesis, que dotaria 0 corpo de praticas e ages outras para uma ampliacao de poténcia para estar no mundo. Tanto a via negativa de Grotowski como a dskesis, por meio de dispositivos diferentes, buscam a intensificagao de si como recriagao de sie do mundo. Temos duas quest6es importantes quanto a dskesis: 1. Faz o sujeito vincular-se 4 verdade (A construgao e A criagio de UMA verdade, e nao A verdade), e nao realiza uma ligacao A lei enquanto verdade predefinida. 2. O conjunto de praticas da dskesis tem trés grandes pilares: a escuta e o saber escutar; o saber ler e escrever; e 0 saber falar. Mas por que 0 cuidado de si e 0 termo dskesis nos levam aum deslocamento epistemoldgico? Primeiro porque deslocam a primazia do conhecimento de si para praticas de cuidado de si, o que, em Ultima instancia, nos transporta do plano da 47 0 CONCEITO/AGAO DE TREINAMENTO E SEUS DESLOCAMENTOS consciéncia intelectiva para um plano de experiéncia de praticas. Nesse sentido, © conhecimento adquirido no treinamento nao passa pela racionalizacao intelectual e consciente do conjunto de praticas e dispositivos técnicos, mas sim pela experienciagéo desse préprio conjunto. O treinamento leva a um conhecimento da pratica, e nao a uma reduco intelectual que vem antes ou depois de alguma coisa, e desloca 0 conhece-te a ti mesmo para o experiencia- -te a ti mesmo, O treinamento, portanto, como praticas de cuidado de si, gera um certo conhecimento especifico do/no/para 0 corpo. E nesse e com esse deslocamento epistemolégico que 0 corpo pensa.* Segundo porque esse cuidado de si, no conjunto de priticas da ascese (askesis), faz com que adquiramos algo para uma ampliacao de poténcia de afeto em vez de uma rentincia a alguma coisa que é 0 ponto final de uma certa superagao acética crista. Em outras palavras: a dskesis nos langa num jogo de praticas de composicio e criatividade, e nao num plano de exercicios de remincia ou nega¢ao. O mesmo acontece com o treinamento. Ele existe para uma intensificagéo do jogo de composicao de forgas no afetar e ser afetado, e o corpo, ao compor em treinamento, nao renunciaa nada, néo supera nada, apenas se inténsifica e amplia no poder de afetar e ser afetado. Treinamento, portanto, como dskesi E 0 terceiro elemento provindo da dskesis antiga que acredito ser fundamental para entendermos 0 treinamento é a importancia dada a escuta. Como entender essa escuta para 0 ator? Podemos dizer que nessa episteme deslocada é 0 afeto, e nao a ago consciente intelectiva, que produz a poténcia do corpo. Quanto mais poroso um corpo, mais potente ele seré. Convém dizer que essa capacidade de afeto, ou porosidade, nao é, em absoluto, a capacidade de diferenciagao macroscépica, mas microscépica e sutil, pois essa porosidade se encontra nos intersticios da preciséo do movimento, nos espacos entre a plasticidade desenhada da acdo e a capacidade de esse desenho projetar-se. A escuta é microscépica ¢ invisivel. Por isso, de certa forma, ampliar a capacidade da escuta é diminui-la no limite do extremamente sutil. A capacidade de afetar- -se pelo mundo - sua escuta -, e nao a capacidade de atuacdo consciente nele ~ um certo actimulo de conhecimento sintético racional -, é 0 que define um atletismo afetivo. E a capacidade de afetar-se, de ser poroso, que faz com que © corpo inicie seu processo de fluxo de diferencia¢ao aumentativa de poténcia ativa e receptiva coexistente, endo sua ago ativa consciente no espaco. Podemos dizer que, no ato de treinar, a poténcia de existéncia do corpo se relaciona mais 48 PRATICAS TEATRAIS com o seu poder de compor com as forgas externas para ampliar sua poténcia do que com a sua capacidade de agir racionalmente: podemos chamar isso de escuta ~ alias, chamamos isso de escuta bastante frequentemente em sala de trabalho. De fato, é na capacidade de composigao que o ator pode ampliar sua poténcia de aco. No atleta afetivo, no ato de treinar o agir se produz pelo afeto e por essa capacidade de composicao. O treinamento deveria focar o trabalho muito mais em sua capacidade de compor com as forgas ¢ linhas que atravessam o corpo, para dai gerar agao, do que em uma capacidade de agir tecnicamente ¢ de forma somente precisa no tempo-espa¢o. Esse poder de composi¢ao também no deve ser confundido com causa-efeito: o atuador nao se afeta para depois agir. Ele, em realidade, age com o afeto, no afeto, pelo afeto; compoe, negocia com o meio e age com ele; nesse processo, transforma-se e transforma sempre com o sentido ético de ampliar a capacidade de poténcia desse entorno coletivo relacional (alegria de Espinosa, sempre o sentido ético da alegria de Espinosa). Assim, composicio e relagdo nao podem ser entendidas, aqui, em sentido dialgico ou comunicacional: pergunta/resposta, escuta/agdo. Composicio e relacéo devem ser compreendidas como uma certa capacidade criativa para um aumento de poténcia coletiva. Gerar diferenga aqui passa, portanto, por uma questao muito mais qualitativa (criar aumento da capacidade de afeto) do que quantitativa (gerar em série miltiplas diferencas em relacZo ao mesmo). Epistemologicamente, treinar é um conjunto de praticas que nao se reduz a um mero agir intelectual, mas que se amplia num conhecimento corporal gerado na experiéncia de aumentar qualitativamente a poténcia. O treinamento, na esteira desses deslocamentos e novas possiveis terras, é entendido como 0 territério de um atleta que verticaliza suas agGes ao limite para promover uma intensificagao de seus afetos; um treinamento que nao passa pela racionalizacao de exercicios, mas pela experimentacio de processos e experiéncias de um conjunto de praticas; um treinamento que nao renuncia a dispositivos, mecanicas e técnicas, mas os coloca em tensao de intensificagao de si. O treinamento como um atletismo afetivo, dskesis, que nao acontece num tempo-espaco capturado, mas como experiencia de poténcia de vida. Um. treinamento que passa por uma ética de potencialidade criativa ao suscitar outros modos de vida — toda uma estética da existéncia -, seja na intensificagao do corpo singular ou na composi¢ao espetacular com 0 outro. Um treinamento entendido como estético-politico-afetivo. 49 © CONCEITO/AGAO DE TREINAMENTO E SEUS DESLOCAMENTOS DO DESLOCAMENTO CONCEITUAL A PRATICA Se, por um lado, esse modo de entender o treinamento parece responder a inquietagdes geradas por trabalhos excessivamente calcados na mecanicidade das técnicas, por outro, traz novas problematizacées dentro desse campo: se ampliamos 0 treinamento para fora do tempo/espaco da sala de trabalho, ¢ se tentamos considerar como parte dele os diversos aspectos que compéem a nossa existéncia, como definir em que momento estamos, de fato, treinando? Onde comega e onde termina o treinamento do ator? Em ultima instncia, 0 que diferencia um corpo cotidiano de um corpo cénico, considerando este Ultimo como horizonte de desejo de grande parte dos atores que se propéem a treinar? Esse é 0 territério neblinado e problematic que nos leva 4 ampliagdo do conceito de treinamento e a seus deslocamentos colocados acima. NOTAS Cunha, 2010. Disponivel em . Acesso em 18/6/2020. “A palavra treinar deriva do francés trainer (puxar, arrastar, carregar consigo), que deriva do latim tragindre e significa adestrar o falco a pegar a sua caca” (Kaneta, 2009, p. 67). Ou, ainda, a etimologia da palavra “treinar” tem origem no latim tardio tragiendre, derivado de tragere, trahére; no portugués, foi usada inicialmente como sindnimo de treino devolataria, que quer dizer “adestrar o falcio a pegar a sua caca, levando-o a perder o medo de certa ave selvagem ao Ihe dar de comer uma galinha sobre uma ave domesticada da mesma espécie daquela selvagem, com isso o falcdo se habituava com as caracteristicas daquela ave e quando fosse lancado 4 caga da mesma ja ndo mais Ihe tinha medo” (Dicionério Houaiss da lingua portuguesa, 2001, p. 2.760). Stanislavski, 2o10b, p. 258. Flaszen & Pollastrelli, 2010, p. go. Stanislavski, 2010, p. 366. Flaszen & Pollastrelli, 2010, p. 238. Artaud, 1999. Foucault, 2004b, p. 389. Espinosa, 1992. A teoria sobre 0 que € um corpo (ou entéo uma alma, dé no mesmo) encontra-se no livro Il da Etica. Para Espinosa, a individualidade de um corpo se define assim: “€ quando uma relagdo composta ou complexa [eu insisto nisso, muito composta, muito complexa] de movimento ede repouso se mantém através de todas as mudangas que afetam as partes desse corpo. E a permanéncia de uma relagdo de movimento e de repouso através de todas as mudangas que afetam todas as partes, ao infinito, do corpo considerado. ‘Vocés compreendem que um corpo é necessariamente composto ao infinito. Meu olho, por 50 a 2 “ 6 6 15 1 20 au 2 23 2 PRATICAS TEATRAIS exemplo, meu olho ea relativa constdncia de meu olho, se define por uma certa relacdo de movimento e de repouso através de todas as modificagies das diversas partes do meu olho; snas meu proprio olho, que jé tem uma infinidade de partes, ¢ uma parte entre as partes do meu corpo, ele é uma parte do rosto, ¢ 0 rosto, por sua vez, é uma parte do meu corpo etc, Portanto, vocés tém todos os tipos de relacdes que irdo se compo umas com as outras para formar uma individualidade deste ou daquele grau. Mas, em cada um desses niveis ou graus, a individualidade serd definida por uma certa relacao composta de movimento e de repouso. O que pode acontecer se meu corpo é feito desse modo, uma certa relacio de movimento e de repouso que subsome uma infinidade de partes? Podem acontecer duas coisas: eu como alguma coisa que eu adoro, ou ento, outro exemplo, eu como alguma coisa €caio envenenado. Literalmente, em um caso fiz um bom encontro, ¢, no outro, fiz um man encontro. Tudo isso refere-se & categoria do occursus. Quando eu faco um mau encontro, isso quer dizer que 0 corpo que se mistura com o meu destréi minha relagao constitutiva, ou teade a destruir uma de minhas relagoes subordinadas. Por exemplo, eu como alguma coisa e tenho dor de barriga, eisso nao me mata; mas isso destruiu ou inibiu, comprometeu ‘uma das minhas sub-relagGes, uma das relagdes que me compdem. Depois eu como alguma coisa e morro: nesse caso, isso decompés minha relagio composta, decompés a relacao complexa que definia minha individualidade. Isso ndo destruiu simplesmente uma das minhas relagées subordinadas que compunham uma de minhas subindividualidades, isso destruiu a relagio caracteristica do meu corpo. Quando eu como alguma coisa que me convém, se da o inverso” (Deleuze, “Curso sobre Espinosa”, 24/1/1978. Trad. Francisco Traverso Fuchs. Disponivel em ). Espinosa, 1992; Deleuze & Guatarri, 19979; Pelbart, 2008. “e até agora, concebemos um Individuo que nao é composto senio de corpos que s6 se distinguem entre si pelo movimento e pelo repouso, pela rapidez ¢ pela lentidao, isto & de corpos simplissimos. Se agora concebermos um outro composto de varios individuos de natureza diversa, verificaremos que pode também ser afetado de muitas outras maneiras, conservando, todavia, sua natureza. Com efeito, uma vez que cada uma de suas partes é composta de varios corpos, cada uma poderé, portanto, sem qualquer mudanga de natureza, mover-se ora mais lentamente, ora mais rapidamente. Se além disso concebermos um terceiro género de Individuos, compostos de individuos do segundo género, verificaremos que cle pode também ser afetado de muitas outras maneiras, sem qualquer mudanga em sua forma. E se continuarmos assim até 0 infinito, conceberemos facilmente que anatureza inteira é um sé individuo” (Espinosa, livro II, Proposigdo VII, Escélio), Grotowski, in: Flaszen & Pollastrelli, 2010, p. 205. Greiner, 2006, p. 43. Pelbart, 2008. Quilici, 2004, p. 38 Apud Flaszen & Pollastrelli, 2010, p. 170. Idem, p. 200. Stanislavski, 2010, p. 122. Apud Flaszen & Pollastrelli, 2010, p. 160. Disponivel em . Acessoem 27/5/2012. Foucault, 2004b. Idem, p. 387. Greiner, 2006, 2010b. 51

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