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• Autor: Drauzio Varella

• Publicação: 2022
• Período: Contemporaneidade
• Gênero: Memória / Crônicas
• Temas: Memória, formação médica, ética
médica, saúde pública, realidade
brasileira, desigualdade social, ciência,
educação.
• Livro de memórias dividido em 51 capítulos que podem, também, ser lidos
como crônicas.

• Assim como os temas da memória pessoal dividem espaço com reflexões sobre
o exercício da medicina e própria realidade social brasileira, a linguagem transita
entre o lirismo (principalmente no início do livro), o emprego de termos
técnicos e científicos (de modo muito didático) e a prosa jornalística.
Drauzio Varella nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em medicina pela
USP, trabalhou por vinte anos no Hospital do Câncer. Foi voluntário na Casa de
Detenção de São Paulo (Carandiru) por treze anos e hoje atende na Penitenciária
Feminina da Capital. Seu livro "Estação Carandiru" (1999) ganhou os prêmios Jabuti de
Não-Ficção e Livro do Ano. "Nas Ruas do Brás" recebeu o Prêmio Novos Horizontes, da
Bienal de Bolonha, e Revelação Infantil, da Bienal do Rio de Janeiro.
Drauzio recorda-se do dia em que passou no vestibular. Recebeu do pai, que estava ao
lado da madrasta no quarto, a notícia. Lamentou não poder partilhar o momento apenas
com o pai, que o criara sozinho. Sentiu-se encorajado a pedir um terno de um tecido
especial que o pai ganhara, mas não foi atendido
Não sei quantos minutos fiquei quase sem falar, incapaz de prestar atenção às palavras dela,
que preenchia com planos para o futuro médico os espaços de silêncio que meu pai e eu
deixávamos.
Lamentei não estar a sós com ele, talvez para lembrarmos do que tínhamos vivido juntos até
ali, para continuarmos quietos ou para que eu pudesse abraçá-lo e quebrar o embaraço que
a aproximação física nos causava. Ou para simplesmente lhe dizer muito obrigado por ter
sido ao mesmo tempo pai e mãe para mim, minha irmã mais velha e meu irmão mais novo.
O autor retoma as origens familiares.
O pai, José (Pepe), tinha sido registrado no Brasil, mas nascera na Galícia, história que ficara
oculta por muito tempo, pois trabalhava no DI (Departamento de Identificação), que não
permitia estrangeiros. O avô paterno era o filho mais velho de uma família de camponeses e
veio ao Brasil com a missão de ganhar dinheiro para sustentar a família após a morte do
patriarca. Trabalhou na lavoura do café, fez dinheiro, casou-se, tornou-se empresário e chegou
a voltar para a Espanha para tratar da saúde. Foi obrigado a permanecer na Europa por conta
da Guerra. Foi nesse contexto que nasceu Pepe, o pai de Drauzio.
A Mãe era filha de portugueses. O avô materno viera ao Brasil pelo medo que os pais tinham
que fosse recrutado para o exército colonial português. Aqui, casou-se com uma portuguesa
do Porto.
Os pais de Drauzio casaram-se aos 21 anos de idade e passaram a morar com a família dela. O
primeiro filho do casal morreu pouco depois do parto, feito em casa por insistência da avó
materna de Drauzio. O pai lamenta não ter imposto sua vontade naquela ocasião.
Drauzio foi o segundo de três filhos que vieram a seguir, todos nascidos na maternidade. A
mãe, no entanto começou a ficar debilitada após o terceiro parto e não tinha forças para os
cuidados com a casa e com os filhos. A solução foi entregar o caçula aos cuidados da avó
materna e uma mudança do restante da família para uma casa de cômodos ao lado da
residência dos avós paternos.
O tio Amador, irmão do pai de Drauzio estudava medicina e com acesso a especialistas
conseguiu um diagnóstico para a cunhada: miastenia grave, uma doença autoimune rara. O
único tratamento era uma medicação importada, de difícil aceso no contexto da Segunda
Guerra. O próprio Drauzio dava o remédio para a mãe nos momentos de crise. No princípio, a
medicação aliviava os sintomas, mas aos poucos o organismo se tornou resistente.
Drauzio perdeu a mãe aos 4 anos de idade.
Quando escrevi o livro infantil Nas ruas do Brás, caí num impasse. Como as histórias
que eu estava contando cobriam meus primeiros dez anos de vida, o tempo em que morei
no bairro, o narrador não poderia esconder o fato de ter perdido a mãe aos quatro anos,
mas como fazê-lo sem chocar os pequenos leitores? Também não queria dar a impressão de
tratar o acontecimento com descaso, com superficialidade.
O caminho que encontrei num sábado de chuva, sozinho em casa, foi descrever
exatamente como aconteceu.
Num domingo nublado, o movimento em casa começou mais cedo. Quando acordei,
minha mãe estava sentada na beira da cama, os pés inchados, com uma pilha de travesseiros
no colo, em cima dos quais repousava a cabeça sobre os braços entrelaçados. A respiração
estava mais ofegante e as veias do pescoço saltadas, azuis. No nariz havia um tubo ligado ao
balão de oxigênio. Lembro que tomei café e dei um beijo demorado em seu rosto pálido. Ela
não sorriu dessa vez, apenas voltou os olhos sem luz na direção dos meus. Eu quis ficar
sentado no tapete ao lado dela, mas ninguém deixou.
[...] De repente, o silêncio caiu lá dentro. Sem barulho, cheguei até a porta do quarto
e parei atrás da minha irmã. Entrava uma luz cinzenta pela janela. Todos permaneciam
imóveis em volta da cama. Debruçada sobre a pilha de travesseiros, minha mãe respirava a
intervalos longos. Depois, o braço despencou dos travesseiros, a aliança de casamento caiu
da mão, correu pelo assoalho e fez três voltas antes de parar.
Que força arrebatadora tem a literatura, capaz de nos fazer revelar experiências tão
pessoais, mantidas em segredo por mais de cinquenta anos.
Drauzio conta sobre sua primeira consulta com um pediatra. As crianças da época não
consultavam e não eram vacinadas. Doenças como sarampo e caxumba eram naturalizadas
como “doenças da infância”. O Dr. Issac examinou-o e deu o diagnóstico: “Glomerulonefrite
difusa aguda”.
O tratamento foi um longo período sem ingestão de alimentos ou água, para que os rins
“repousassem”. Drauzio questiona o regime de fome e de sede, baseado nas ideias de um
médico alemão da época, como tratamento para um quadro que poderia ser facilmente
resolvido com penicilina.
O episódio é ponto de partida para uma crítica à medicina que se fazia, até meados do
século XX, baseada em crenças ou na autoridade de algum médico, sem estofo em evidências
científicas.
Da Antiguidade aos anos 1990, passando pela fome e sede com que fui
tratado aos sete anos, a medicina foi praticada com base na experiência e nas
opiniões pessoais de professores e profissionais em posição de destaque,
característica que alguns chamam de “medicina baseada em eminências”. Colocar os
dados científicos no centro das discussões acadêmicas, das condutas e dos
procedimentos provocou uma revolução silenciosa na história da prática médica.
Aurélia, a avó paterna, assumiu os cuidados com Drauzio e sua irmã mais velha,
cumprindo um papel de mãe. Era carinhosa e dava liberdade ao menino, que conheceu
precocemente nas ruas do Brás, nas conversas dos vizinhos, as primeiras noções sobre o sexo.

A perda da avó foi muito sentida. Drauzio já tinha oito anos, mais consciência do que
tivera quando a mãe falecera. Aurélia adoeceu e o menino já podia intuir o que iria acontecer.
A avó morreu de dengue, aos 98 anos. Drauzio chorou abraçado ao pai e depois de ter contido
as emoções por um tempo, desabafou: “o que será de nós?”. O pai responde “Você esquece
que vocês têm pai?”
O pai surpreende Drauzio matriculando-o num colégio religioso. O garoto, com
catorze anos, imaginava que iria seguir na escola em que estava, com suas amizades e
em uma turma com garotas. O pai foi taxativo: não queria ter um filho ateu. Drauzio
realmente tinha uma desconfiança em relação às crenças religiosas desde os 10 anos
de idade.
Na última aula, a professora disse que ao recebermos a hóstia deveríamos levá-la
com a língua ao céu da boca e esperar que ela se dissolvesse. E advertiu: “Não mastiguem, a
hóstia é o corpo de Cristo. No norte da França, um menino que mordeu a hóstia ficou com a
boca cheia de sangue”.
Achei a história muito estranha, mas não tive coragem de testá-la na cerimônia da
primeira comunhão porque meu pai tinha me comprado um terninho de linho branco
que tive medo de manchar de sangue.
Um mês depois, um de meus tios fez bodas de prata. Antes da missa comemorativa,
precisei inventar dois pecados para o padre na confissão, exigência para poder comungar.
Ajoelhado junto ao altar, recebi a comunhão e voltei para o meu lugar. Mordi a hóstia
devagar uma, duas, três vezes. Senti só o gosto da farinha. Disfarçadamente,
levei o indicador à boca. Não havia sinal de sangue. Comecei a duvidar.
As regras de comportamento na nova escola eram diferentes. No vestiário, Drauzio
foi repreendido por um padre por não estar coberto com uma toalha: “cubra essas
vergonhas!”. Foi bom aluno em algumas matérias, mediano em outras.
No cursinho, Drauzio ficou impressionado com o desempenho dos “excedentes”
(aqueles que tinham sido “aprovados” no vestibular, mas não tinham atingido a
média para serem selecionados). Fez amizade com o interiorano João Guerra. Os dois
estudavam juntos. Não conseguiram passar na primeira tentativa e, no ano seguinte,
seguiram um plano de estudos com muita disciplina até a aprovação em medicina na
USP, em 1962. “Foi no cursinho que descobri o prazer de estudar e aprender”.
Drauzio tentava um emprego na Caixa Estadual quando foi surpreendido pelo
colega Di Genio convidando-o para dar aulas no cursinho. Em pouco tempo, os dois
tornaram-se os professores mais populares do “Nove de Julho”. Passaram a formar
grupos de reforço até que surgiu a ideia de formarem turmas de verão (as provas
eram em fevereiro e os cursinhos iam apenas até dezembro). A iniciativa foi um
sucesso. Eram mais de quinhentos alunos formando fila para a matrícula.
O diretor do Nove de Julho, antes apoiador do projeto, passou a vê-lo como
concorrência, exigindo que as aulas fossem dadas nas dependências do cursinho em
troca de um valor de hora/aula. Drauzio argumentou que não fazia sentido abdicar do
valor recebido com as matrículas para ganhar muito menos. Por que o fariam? “Para
ficar bem comigo”, respondeu o patrão. Drauzio retrucou: “para mim não vale a pena”.
Estava surgindo o Curso Objetivo, que em pouco tempo revolucionou o mercado
dos cursos pré-vestibular. Os concorrentes tentaram boicotá-los, mas acabaram
falindo por falta de alunos. Recursos como apostilas e circuito interno de TV foram
grandes inovações, mas, segundo Drauzio, nada supera o quadro negro em termos de
reter a atenção do aluno no professor e no conteúdo, nem mesmo as novas
tecnologias audiovisuais.
Anos mais tarde, Drauzio abdicou do cursinho, passando a viver da medicina,
mesmo consciente de que ganharia bem menos dinheiro. A administração do Objetivo
seguiu sendo conduida por Di Genio, que expandiu os negócios para escolas e
universidade.
No quarto ano da faculdade, Drauzio passou por um estágio na maternidade. A taxa de
natalidade nos anos 60 era alta e o trabalho incessante. O narrador recorda de algumas
experiências marcantes, como um parto que ele realizara dentro de um ônibus e a sensação, com
a criança nos braços, de que ele tinha sido “um enviado do Todo-Poderoso”.
O avesso dessa glória foi a noite em que teve de fazer um procedimento de risco,
improvisando o bombeamento do sangue em uma parturiente que estava tendo uma
hemorragia. Se fosse além do limite, o ar entraria nas veias da paciente, causando uma embolia
fatal e, por isso, era preciso estar atento ao momento exato para interromper a operação.
Ocorreu naquela ocasião um acidente: uma auxiliar de enfermagem e uma obstetriz se
chocaram, deixando cair recipientes com sangue, que se espalhou por todo o local. Não era
possível saber o que de fato tinha acontecido e Drauzio descuidou-se da paciente para socorrer
as colegas, acreditando que estivessem feridas. Quando percebeu que tinha sido uma trapalhada,
voltou correndo à parturiente, tendo quase perdido o momento de interromper o procedimento.
Ao constatar que poderia ter matado uma mãe de quatro filhos, culpou-se a ponto de cogitar
abandonar a faculdade.
Havia um resto de sangue no fundo do frasco. Arranquei a agulha da veia da paciente
sem sequer retirar o esparadrapo que a fixava ao antebraço dela. O sangue que ainda sobrava
no frasco esguichou na minha calça branca e no chão da enfermaria, acompanhado pelo ruído
do ar descomprimindo, idêntico ao de um pneu com a válvula aberta.
Minha boca secou. Precisei sentar para que as pernas parassem de tremer. Um colega
que havia acabado de entrar perguntou por que eu estava tão pálido. A paciente, que a tudo
assistira em silêncio, comentou candidamente: “Coitado do doutor, sujou toda a calça”.
Não me lembro de outro dia em que estive tão perto de chorar numa crise de
desespero.
Não sei como eu teria reagido se aquela mãe de quatro filhos morresse. O acidente com
as mulheres ensanguentadas não me serviria de atenuante. A julgar pela sensação de culpa que
sinto até hoje por esse desfecho quase trágico, acho que não teria conseguido suportar
tamanha carga emocional. Com 22 anos, tive certeza de que abandonaria a faculdade.
O autor observa que as decisões tomadas na medicina têm consequências mais
radicais do que em outras profissões, estando em jogo a própria vida, muitas vezes. Há
certas escolhas cujo efeito benéfico ou prejudicial só será conhecido muito tempo
depois, como no caso da oncologia. Certa vez, ouviu de um professor de cardiologia: “Mil
pacientes curados não servem de consolo para um caso mal encaminhado”.
Drauzio recorda do caso de um menino em que a anestesia parecia não surtir efeito.
Depois de algumas tentativas, o médico percebeu que o frasco da xilocaína vazio tinha
sido reaproveitado para soro antitetânico por alguém (prática condenada em qualquer
manual). O sentimento de culpa persiste até hoje: a expressão de dor do garoto e as
lágrimas silenciosas do pai ficaram na memória .
Outro episódio foi o de uma senhora com um câncer recidivado no lábio inferior. Drauzio
afirmou que o único tratamento para o caso seria a quimioterapia, mas que havia riscos para uma
pessoa debilitada como ela. A decisão da família foi pela quimio, pois o sofrimento dela por não
poder se alimentar ou mesmo dormir bem era insuportável. Em dois dias a lesão regrediu a
ponto de o médico dar alta à paciente. No retorno a família vinha agradecer pelo tratamento: a
mãe ficara feliz por poder fechar a boca e tomar a sopa. Havia falecido de septicemia (infecção
decorrente de uma reação exagerada do sistema imune), mas parara de sofrer. Mesmo assim, o
Dr. Drauzio se pregunta se poderia ter prolongado a vida da paciente, mesmo que contrariando a
vontade dela.
O autor comenta que quando jovem tinha mais “certezas”. A experiência fez com que a
complexidade das escolhas aumentasse e, com isso, a culpa diante de situações com desfecho
desfavorável. “As idiossincrasias e as diferenças fisiológicas entre os organismos introduzem
variáveis que tornam única a enfermidade daquela pessoa diante de nós. Não há certezas na
medicina, lidamos com probabilidades”.
O tempo não me ajudou a lidar melhor com a sensação de culpa; pelo contrário,
tornou-a pior.
No início da carreira, não me faltavam certezas. Acreditava que seria um bom
profissional se acompanhasse a literatura especializada e estudasse para adotar as condutas
recomendadas nos consensos internacionais publicados pelas sociedades médicas. Se, por
acaso, a evolução fosse desfavorável, ficaria livre de críticas e em paz com a consciência;
havia feito o que estava nos livros.
Com a experiência, veio um entendimento mais profundo dos processos patológicos,
das complicações possíveis, da influência da biodiversidade e dos anseios humanos que
interferem na evolução, na variabilidade da resposta terapêutica e nos efeitos indesejáveis
das
drogas e dos procedimentos técnicos. O medicamento que ajuda um prejudica outro com
diagnóstico igual; a cirurgia que cura um senhor de noventa anos com apendicite dá errado
na menina de dezoito anos operada pelo mesmo cirurgião no dia seguinte. As idiossincrasias
e as diferenças fisiológicas entre os organismos introduzem variáveis que tornam única a
enfermidade daquela pessoa diante de nós. Não há certezas na medicina, lidamos com
probabilidades.
Drauzio afirma não saber ao certo se sua escolha pela medicina teve alguma relação
com as perdas da mãe e da avó. Mas afirma que desde criança manifestava interesse
pela profissão. A dúvida surgiu quando teve de escolher a especialidade em que atuaria.
Optou pela saúde preventiva, algo novo no currículo da USP, mesmo em um país com
sérios problemas na área da saúde pública. Não era difícil estar entre os selecionados
para a residência na área, pois a maioria dos colegas buscava especialidades clínicas,
principalmente cirúrgicas. Ao concluir o curso de saúde pública, tendo sido regularizada a
carreira de sanitarista, procurou esse posto e deparou com a dura realidade: o salário
mal daria para pagar seu aluguel. Sentiu-se desorientado.
Fez estágio no Serviço de Psiquiatria por seis meses e constatou que não tinha
atributos para lidar com transtornos psiquiátricos. Frustrado, afastou-se da medicina por
um ano, dedicando-se ainda ao cursinho Objetivo. A roda de intelectuais e jornalistas que
frequentava os mesmos restaurantes falava sobre os problemas do Brasil na época da
ditadura. Em um desses jantares, encontrou Vicente Amato, professor especialista em
infectologia e expôs sua situação. O convite para trabalhar no Hospital do Servidor
Público no setor foi enfático: “Não tem cabimento, você sabe dar aulas. Vem trabalhar
com a gente no Servidor”.
Quando formado, Drauzio deparou com um quadro de saúde pública caótico:
pacientes com esquistossomose, malária, doença de Chagas, filariose, leishmaniose,
tracoma, bócio endêmico, tuberculose e ancilostomose vinham de todos os cantos do
país e lotavam o Hospital de Clínicas. A pediatria era repleta de crianças desnutridas, em
circunstâncias que encontraria cinquenta anos mais tarde em um campo de refugiados
no Líbano. A ignorância, a pobreza e a falta de saneamento básico eram determinantes
para uma expectativa de vida que não chegava aos 50 anos na década de 1960. A
melhora significativa dos indicadores ao longo das últimas décadas, segundo o autor, não
se deve exclusivamente a fatores como vacinas, antibióticos e saneamento básico, mas
também ao aumento progressivo da renda familiar e da escolaridade, à melhorias na
alimentação nas condições de moradia, e às pressões da população por maior
distribuição de renda.
Drauzio constata que os médicos recém-formados acabam sendo treinados no
atendimento aos pobres para ganhar experiência e acesso ao atendimento de pessoas de
maior poder aquisitivo, o que se reflete no descaso com que costumam ser tratados os
pacientes de baixa renda.

No fundo, éramos treinados no atendimento de pessoas pobres para ganhar


experiência e acesso às de maior poder aquisitivo. A consequência nefasta dessa
forma de preparação era a formação de profissionais que tratavam com descaso os
classificados como “indigentes”, enquanto bajulavam pacientes e familiares mais
influentes. De um lado, a postura autoritária, impositiva; de outro, a submissa. As duas
faces da mesma moeda.
Drauzio constata que os médicos recém-formados acabam sendo treinados no
atendimento aos pobres para ganhar experiência e acesso ao atendimento de pessoas de
maior poder aquisitivo, o que se reflete no descaso com que costumam ser tratados os
pacientes de baixa renda.
O médico comenta criticamente sobre a formação tradicional que teve, separando a
parte básica do curso da prática e do contato com os pacientes. As aulas de anatomia
exigem “sangue frio” diante de cadáveres mutilados e o risco desse tipo de formação é a
geração de profissionais pouco empáticos. Ao contrário do que dissera um professor, de
que os dramas pessoais do paciente deveriam ficar do lado de fora do consultório,
Drauzio acredita que os melhores professores e profissionais que conheceu atuavam de
forma mais sensível.
Ouvi de um professor de cirurgia: “Os dramas pessoais dos doentes devem
ficar para trás assim que vocês fecharem a porta do consultório”.
Os professores que mais admirei, porém, foram justamente aqueles que
agiam de maneira oposta a essa. O médico desinteressado dos problemas
emocionais, das angústias e das condições familiares e sociais em que vive seu
paciente está sujeito a equívocos graves na hora de escolher a conduta mais
adequada para aquele caso.
Embora tenha encontrado médicos personalistas, autoritários, vaidosos, que
usam a profissão para se aproximar dos donos do poder e ganhar prestígio social,
fui aluno de outros capazes de passar dez horas numa sala de cirurgia com um
morador de rua, o dia inteiro no ambulatório com uma fila interminável de gente
pobre à porta, a noite sem dormir para impedir a morte de um assaltante baleado. A
despeito dos maus profissionais, na medicina e na enfermagem encontrei as pessoas
mais altruístas que conheci.
Drauzio se formou em 1967. Um ano depois viria o AI-5. São Paulo crescia de forma
desordenada e não comportava a chegada de tantos migrantes. Junto com a pobreza e a
falta de condições básicas nas periferias, vinham as doenças infecciosas e parasitárias
conhecidas de perto pelo médico no Hospital das Clínicas.
O Dr.Drauzio observa algumas evoluções nos equipamentos e nas formas de
tratamento ao longo dos tempos. A campanha de vacinação contra a varíola erradicou a
doença; os arcaicos “pulmões de aço” foram substituídos por respiradores artificiais; a
invenção do soro caseiro, solução simples e barata chegou a ser considerado o avanço
médico mais importante do século XX.
Em meio a todos esses avanços, a saúde pública no Brasil ainda era precária,
deixando o jovem médico revoltado, quase chegando a dar razão aos extremistas de
esquerda na oposição ao regime militar.
No pronto-socorro, eu deixava os plantões deprimido, revoltado com a
perversidade da ordem social responsável pelo sofrimento anônimo daquelas
famílias, em dúvida se os extremistas não estariam certos ao pregar que a única
saída para o país seria a revolução.
A sociedade brasileira estava tão polarizada que só eram admitidas duas
posições políticas: ou éramos tachados de defensores da ditadura militar, ou
comunistas. De nada adiantava dizer que não nos enquadrávamos em nenhuma das
duas posições ideológicas, que era possível criticar os abusos dos militares sem ser
radical de esquerda nem apoiar a luta armada. Da mesma forma, para a esquerda
era sacrilégio admitir qualquer avanço do país sob o comando dos militares.
A divisão rancorosa entre esquerda e direita, praga que ainda hoje nos assola,
era utilizada pelos radicais de ambos os lados como justificativa tanto para a
brutalidade do aparelho repressor quanto para as ações violentas dos grupos que
pregavam a derrubada do regime pela luta armada.
Boanerges foi um colega de faculdade que ficou marcado na memória do autor.
Empreendedor e ousado, criou um programa de viagens para estudantes de medicina irem
à Europa durante o quinto ano da faculdade. Drauzio, que foi diretor do jornal estudantil
Bisturi chegou a apoiar a candidatura de Boanerges para a presidência do Centro
Acadêmico. Acabaram sendo derrotados nas eleições. Depois de formados, perderam
contato.
Anos mais tarde, Boanerges reapareceu pedindo ajuda de um dos colegas que se
tornara diretor de um hospital na zona sul de São Paulo. O amigo se surpreendeu ao
constatar que era um caso de ferimento a bala. Após a intervenção de emergência,
Boanerges disse que levaria embora o paciente, sob os protestos do diretor do hospital.
Constatou-se mais tarde, que o jovem baleado teria participado de um assalto a banco para
financiar a luta armada. Drauzio soube, anos após o episódio, que Boanerges, integrante de
um grupo revolucionário, havia sido capturado e executado pelo Regime Militar.
Em meio a reflexões sobre sua posição moderada diante da polarização ideológica da
época, Drauzio conta que certa vez foi alertado por um amigo sobre a necessidade de fugir.
O médico estava prestes a ser preso, segundo uma fonte confidencial. Ficou atônito. Não
compactuava com o regime, mas não tinha nenhuma relação com movimentos
revolucionários. No Objetivo, apesar da inquietação dos alunos, evitava-se o tema político.
Quando Drauzio, depois de dias de angústia já se convencera de que devia ter havido
algum engano, recebeu um envelope com a convocação. Tinha dois ou três dias para se
apresentar no DOPS. Lembrou-se com horror de Vladimir Herzog, que apresentara-se
voluntariamente e acabara torturado e morto. Na delegacia ficou horas a espera para ser
recebido por um oficial. O militar passou a verificar um caderno e disse: você não está na
lista”. Drauzio foi liberado e concluiu que a intenção era apenas assustá-lo.
No pronto-socorro, eu deixava os plantões deprimido, revoltado com a
perversidade da ordem social responsável pelo sofrimento anônimo daquelas
famílias, em dúvida se os extremistas não estariam certos ao pregar que a única
saída para o país seria a revolução.
A sociedade brasileira estava tão polarizada que só eram admitidas duas
posições políticas: ou éramos tachados de defensores da ditadura militar, ou
comunistas. De nada adiantava dizer que não nos enquadrávamos em nenhuma das
duas posições ideológicas, que era possível criticar os abusos dos militares sem ser
radical de esquerda nem apoiar a luta armada. Da mesma forma, para a esquerda
era sacrilégio admitir qualquer avanço do país sob o comando dos militares.
A divisão rancorosa entre esquerda e direita, praga que ainda hoje nos assola,
era utilizada pelos radicais de ambos os lados como justificativa tanto para a
brutalidade do aparelho repressor quanto para as ações violentas dos grupos que
pregavam a derrubada do regime pela luta armada.
Incentivado pelo professor Vicente Amato, Drauzio passou a estudar imunologia, campo
da medicina impulsionado pelas novas técnicas de transplante de órgãos. O jovem médico
começou a pesquisar sobre o assunto. Em seis meses começou a palestrar sobre o tema em
hospitais. Em uma das palestras, foi convidado a constituir um serviço de imunologia no
principal centro de oncologia de São Paulo.
Em seu trabalho, decidiu por em prática estudos que apontavam a eficácia de aplicações
de BCG para fazer regredir melanomas.
Seu Oswaldo foi o paciente que passou por essa experiência com o Dr. Drauzio. Homem
de meia-idade, já tinha passado por cirurgia por conta de um melanoma no braço e pelo
reaparecimento de nódulos metastásicos que levaram os médicos a cogitar a amputação.
Com a aparição de novos nódulos em outras partes do corpo, a cirurgia mutiladora foi
descartada.
Como o tratamento com BCG injetável dependia de importação, Drauzio tomou a
decisão de adaptar o tratamento empregando o BCG oral, mesmo sem evidências que
apontassem esse caminho, pois já não havia outro tratamento possível. A regressão tumoral
foi bem sucedida e a experiência resultou no primeiro artigo publicado por brasileiros na
revista da American Cancer Society.
A incerteza sobre o caminho profissional a ser seguido pelo jovem médico acabava ali.
No início dos anos 70, o câncer era um tabu na própria área médica. Era comum que os
médicos, em conluio com os familiares, ocultassem o diagnóstico do paciente. Drauzio se
arrepende de ter seguido essa orientação durante algum tempo após a leitura do conto “A
Morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói, em que o protagonista, ao adoecer, sente-se
completamente só e enganado pelos que o cercam. Mais uma vez, o autor afirma o poder
da Literatura.
Ficávamos enredados numa teia de mal-entendidos que faziam os pacientes perder
a confiança em nós no momento em que mais necessitavam dela: quando os tratamentos
perdiam a eficácia e o quadro se agravava.
Sem acreditar no que lhes diziam médicos, amigos e familiares, sem interlocutor
com quem compartilhar suas angústias, o doente vivia a solidão tão bem descrita em A
morte de Ivan Ilitch, por Liev Tolstói em 1886, nessa obra-prima da literatura russa.
O livro conta a história de um juiz entretido com a carreira que lhe traria prestígio e
ascensão social. Um dia, Ivan sofre uma queda que lhe deixa uma dor crônica de intensidade
crescente que os médicos não são capazes de diagnosticar nem de acalmar. Quando cai de
cama, percebe que a mulher e os filhos se afastam e que os médicos que vão vê-lo
respondem às suas indagações com evasivas e tratamentos inúteis. O único a permanecer a
seu lado é o criado Gerassim.
Na solidão do leito, Ivan avalia suas relações com a família, os amigos e o trabalho,
sem encontrar sentido na vida que levara. Enfrenta angustiado a consciência de que o fim se
aproxima, sem ter ao lado alguém capaz de entendê-lo e confortá-lo.
É incrível o poder transformador da literatura: um russo escreve um conto que cem
anos mais tarde influenciaria um jovem médico do outro lado do mundo, fazendo-o enxergar
com mais clareza o impacto nefasto no espírito da pessoa doente quando ela se dá conta de
que não pode confiar nas palavras dos que a cercam. E, pior, quando desconfia que todos
conhecem e escondem dela um segredo terrível.
A partir dos anos 1980, comecei a explicar aos familiares e aos colegas que me
encaminhavam pacientes que não havia como tratá-los sem colocá-los a par da realidade.
Ainda que fosse possível e desejável apresentar um quadro que não lhes tirasse a esperança,
era fundamental esclarecer a natureza da enfermidade.
Sob essa perspectiva, a prática da oncologia ficou mais razoável. Os pacientes
passaram a entender melhor o que acontecia com eles, a participar das decisões e da
escolha do melhor caminho possível.
A partir dos anos 1980, o médico passou a partilhar com sinceridade o diagnóstico com
os pacientes, permitindo que eles participassem da tomada de decisão sobre o tratamento.
Antes da imono-histoquímica, que permitiu identificar o órgão de origem e a natureza dos
tumores, a falta de preparo dos profissionais trazia muitos diagnósticos equivocados.
Drauzio conseguiu reverter muitos casos considerados incuráveis e dar sobrevida a outros
tantos pacientes.
Em pouco tempo, a clínica cresceu tanto que Drauzio preciou limitar os atendimentos
para manter a dedicação ao estudo, a outros interesses e também para ter tempo
disponível ao atendimento dos que não podiam pagar. Drauzio afirma que a medicina é
uma profissão “ciumenta”.
Os impactos do gás mostarda desde a Primeira Guerra levaram à intensa
pesquisa por um antídoto. Desses estudos, nos anos 1940, surgiu a ideia de usar
um derivado do gás para a redução do número de plaquetas e de glóbulos
brancos como forma de tratamento. Décadas depois, já havia mais conhecimento
sobre a toxidade para a administração mais segura de quimioterápicos.
Em 1989, o projeto do cientista ítalo-americano Renato Dulbecco, de
sequenciar o genoma humano como estratégia eficaz para chegar a cura do
câncer causou grande impacto. A biologia celular abriu novos caminhos para o
tratamento da doença, permitindo a a possibilidade de desenvolver moléculas
capazes de interromper a transmissão desses sinais e inibir a proliferação das
células cancerosas (terapia-alvo).
Outra revolução se deu no plano da informação, com a internet. O médico
deixou de ser detentor absoluto do conhecimento. Houve também um processo
de especialização: já não havia mais espaço para um oncologista geral. Drauzio
voltou-se para a subespecialidade do tratamento do câncer de mama.
Na faculdade de medicina somos treinados para curar, objetivo que vai ao
encontro das motivações do estudante ao escolher a profissão. Devolver a saúde a
alguém à beira da morte — se possível, em meio a manifestações de
reconhecimento de quem foi salvo, de seus familiares e da sociedade — faz parte
das fantasias das crianças e de muitos adultos.
No imaginário popular, a arte de curar está ligada a poderes sobrenaturais,
geralmente emanados de entidades divinas que grupos religiosos, charlatães e
curandeiros de toda espécie sabem explorar para arrebanhar adeptos e impor sua
autoridade sobre os crédulos.
O poder de salvar vidas ou de curar mexe com a fantasia das pessoas. Drauzio
questiona até que ponto podem chegar a prepotência humana e a credulidade
das pessoas, citando como exemplo o curandeiro “João de Deus”, recentemente
desmascarado em escândalos sexuais.
O ato de curar envolve um conjunto de medidas: formação médica, vontade
de estudar, discernimento para analisar dados científicos, interesse em ajudar seu
semelhante e dedicação ao ofício. A motivação para devolver a saúde a alguém pode
servir tanto de estímulo para o bom exercício da profissão quanto de esteio para
prepotência, narcisismo, autoritarismo, egolatria e demais características
indesejáveis ao exercício de uma atividade que exige empatia, respeito à
individualidade e humildade para reconhecer as limitações do conhecimento e
identificar as escolhas equivocadas.
A prepotência também é extremamente prejudicial no desempenho da
medicina. Drauzio relata ter visto um casal à espera de atendimento, o homem
estranhamente agachado. O cirurgião que o atendera apalpou seu abdômen e
disse: “A dor está na cabeça dele. Na semana passada eu tirei o tumor do
intestino e revisei a cavidade inteira. Não tem nada que justifique essa dor”.
Despediu-se e deu as costas ao paciente. O rapaz voltou-se para o Doutor Drauzio
e perguntou: “Se é coisa da minha cabeça, como eu faço para parar de sentir
tanta dor?”. Três dias depois, o paciente voltava com uma fístula que drenava um
líquido escuro onde a sutura se desfizera.
Embora não exclusiva da especialidade, a prática da cirurgia é fator de risco
para a onipotência porque o ato cirúrgico é, sobretudo, heroico. Com as mãos
enluvadas, bisturis, pinças e tesouras, cirurgiões manipulam órgãos internos, retiram
tumores, cortam alças do intestino para desviar o trânsito, bloqueiam e
desbloqueiam vasos sanguíneos, abrem a calota craniana e operam o cérebro
enquanto o paciente dorme, alheio ao que fazem com ele.
Nesse momento, o cirurgião tem poder absoluto. Um pequeno deslize pode
matar, uma manobra bem feita pode salvar a vida de alguém. Uma pessoa treinada
para essa função precisa de equilíbrio emocional, a fim de não se considerar senhor
da vida e da morte. A autoconfiança, no entanto, pode ser útil nas situações
extremas que deixam os médicos indecisos.
Certa vez, na enfermaria de cardiologia do Hospital das Clínicas, colocamos
no chão um doente em parada cardíaca para massageá-lo com mais eficiência.
Enquanto nos alternávamos nessa manobra, chegou um cirurgião de luvas e com um
bisturi na mão, pediu que abríssemos espaço, debruçou-se sobre o doente, cravou
o bisturi entre as costelas para afastá-las, introduziu a mão direita na cavidade
torácica e massageou o coração até voltar a bater por conta própria. Nunca havia
imaginado assistir a uma cena tão dramática.
Meses mais tarde, o mesmo cirurgião repetiria o procedimento num doente
em parada cardíaca que infartara no pronto-socorro do hospital. Dessa vez,
infelizmente, sem sucesso.
Resultados opostos como esses, obtidos pelas mãos da mesma pessoa ao
aplicar a mesma técnica ou executar manobra idêntica, são lições de humildade nem
sempre aprendidas pelo médico. O prepotente tem memória seletiva, habituada a
deletar fracassos.
Drauzio refere-se ao SUS como a maior revolução da história da medicina
brasileira.
O sistema anterior, o INAMPS, criado pelo Regime Militar, realizava a maioria dos
atendimentos pela medicina privada, permitindo desvios, e só atendia pessoas que
trabalhavam de carteira assinada, sendo excludente. Os interioranos e os pobres
eram atendidos por “caridade” e o descaso com os pacientes era flagrante.
Nos anos 1980, na gestão Hésio Cordeiro, foram feitas mudanças importantes:
convênios com estados e municípios deram origem aos Postos de Saúde que foram o
berço da atual Atenção Básica. Surgia o SUDS, Sistema Único Descentralizado de
Saúde. A VIII Conferência Nacional de Saúde, com participação da sociedade, lançou
as bases para o sistema universal que se consolidaria a partir da Constituição de
1988.
Apesar de ser uma conquista importante e um modelo estudado mundialmente
como referência, o SUS apresenta os seus problemas: financiamento insuficiente,
desvios, alta rotatividade de ministros muitas vezes sem competência técnica para
exercer o cargo.
Com tudo isso, temos os maiores sistemas gratuitos de imunização, de
transplantes e de hemodiálise, além de hemocentros e resgate com socorristas nas
grandes cidades.
A origem da Atenção Básica é anterior ao SUS. No início do século passado, a USP
criou os primeiros Centros de Saúde. No início dos anos 1940 surgiram os Serviços
Especiais de Saúde Pública (SESP), com papel importante no combate a endemias
rurais. Em 1989, o Governo do Ceará criou o Programa dos Agentes de Saúde,
embrião do que seria mais tarde o Programa Saúde da Família e seu sucessor, o
Estratégia Saúde da Família, com equipes de agentes de saúde atendendo nas
comunidades.
A experiência particular do Doutor Drauzio nos presídios exemplifica que boa parte
dos problemas podem ser resolvidos com uma cesta básica de medicamentos, sem
necessidade de recorrer a hospitais. “A atenção primária brasileira é a mais extensiva
do mundo, é a joia da coroa do SUS”.
A atenção primária brasileira é a mais extensiva do mundo, é a joia da coroa
do sus. Sobre ela escreveu em 2020 o British Medical Journal, uma das publicações
mais conceituadas da literatura médica: “O Programa Saúde da Família é
provavelmente o exemplo mundial mais impressionante de um sistema de atenção
primária integral de rápida expansão e bom custo/efetividade”.
E prossegue: “Os formuladores de políticas de saúde do Reino Unido têm
histórico de observar os Estados Unidos na busca de inovação e prestação de
cuidados básicos de saúde, apesar de seus resultados relativamente fracos e custos
altos. Poderiam aprender muito se voltassem seus olhares para o Brasil”.
Duvido que nos próximos cem anos a medicina brasileira passe por uma
revolução que chegue aos pés da criação do sus.
Já em 1965, um professor alertava Drauzio para oque seria o “fim da medicina
liberal”. Os médicos seriam empregados dos convênios de assistência médica.
Os planos de saúde surgiram nos anos 1950. O imigrante polonês Juljan Czapski,
demitido do departamento de saúde da Ultragaz após uma greve teve a iniciativa de
oferecer convênios de assistência médica para empresas. Algumas empresas, com
recursos próprios e de seus funcionários, financiavam a assistência de saúde.
Com subsídios governamentais e sem nenhuma regulamentação, o setor cresceu,
muitas vezes negando atendimentos e procedimentos, praticando aumentos
abusivos. Tornou-se comum a prática de retardar o pagamento dos serviços
prestados para, aproveitando-se da hiperinflação, pagar quantias irrisórias, obtendo
lucros exorbitantes.
Com o controle inflacionário e agência reguladora (ANS), a farra dos convênios
acabou. Permaneceu a lógica de profissionais mal remunerados, atendendo
apressadamente; da banalização da requisição de exames e da corrida ao pronto-
atendimento ao menor sinal de sintoma.
Drauzio considera que esse modelo de assistência médica, além de caro, é
ineficiente. Seria muito mais lógico investir em Atenção Básica e em prevenção.
No contexto da Guerra Fria, nos anos 1980, a medicina soviética era um mistério.
Drauzio tinha curiosidade em conhecer os prováveis conhecimentos científicos de
uma potência que rivalizava com os Estados Unidos. A visita de um grupo de médicos
brasileiros a Moscou foi planejada antes de um congresso em Budapeste.
A entrada na União Soviética foi cercada de vigilância: uma revista de Drauzio foi
apreendida (e depois devolvida com páginas que exibiam mulheres arrancadas); o
passaporte de todos ficava retido durante a estadia; um guia que acompanhava os
médicos acabou confessando ser um agente da KGB destacado para vigiá-los.
A visita ao Instituto Nacional do Câncer em Moscou revelou uma oncologia
atrasada em cerca de 20 anos em relação ao que se praticava no Brasil:
equipamentos ultrapassados, ausência de estatísticas confiáveis e práticas sem
fundamentação científica, baseadas na prática pessoal de cada médico.
Dráuzio observa o funcionamento da sociedade soviética: os médicos e
engenheiros recebiam menos do que um motorista de ônibus, pois aquelas eram
profissões “burguesas”. Muitos escondiam seus diplomas, pretendendo exercer
funções “operárias”, mais bem remuneradas. O abastecimento era precário, gerando
filas intermináveis para comprar alimentos básicos.
“Três anos depois, quando vi na televisão as imagens da queda do Muro de
Berlim, não fiquei surpreso”.
Narra a visita do Dr. Drauzio ao Japão na companhia da colega, Dra. Helena
Morioka. O Instituto Nacional do Câncer em Tóquio causou impressão contrária
àquela que Drauzio tivera em Moscou. Os japoneses eram referência em endoscopia
e foram responsáveis por aprimorar o procedimento com recursos de imagem mais
avançados.
A viagem teve sequência em Hiroshima, cidade em que Helena faria os exames
anuais que o governo oferecia aos hibakushas (sobreviventes da bomba atômica).
Drauzio palestrou no hospital da Universidade e conheceu casos de pacientes. Mais
tarde, ouviu os relatos da avó e da tia-avó de Helena sobre o dia da explosão
atômica.
A tia-avó e a avó da Helena contaram que elas moravam na periferia de Hiroshima
durante a guerra contra os Estados Unidos. Por volta das oito da manhã do dia 6 de agosto
de 1945, ouviram um estrondo ensurdecedor, seguido de uma nuvem em forma de
cogumelo que subiu aos céus e encobriu a luz do sol. Por coincidência, meu irmão nasceu
nesse dia. Eu tinha dois anos.
Um avião que sobrevoara a cidade tinha lançado uma bomba de urânio de três
metros de comprimento que explodiu a seiscentos metros do solo, formando uma bola
de fogo que criou um inferno com ondas de calor superiores a 4 mil graus Celsius. Os
incêndios duraram três dias.
O impacto foi equivalente ao de 15 mil toneladas de dinamite (um quilo de dinamite
faz um carro voar pelos ares). As pessoas que estavam nas proximidades do epicentro da
explosão desapareceram sem deixar vestígios. Num raio de cerca de dez quilômetros
quadrados, dois terços das edificações ruíram e os sobreviventes sofreram queimaduras de
terceiro grau.
Vagavam pelas ruas desesperados de dor e sede: com o calor liberado, toda a água
da cidade evaporara. No mesmo dia morreram entre 50 mil e 100 mil pessoas. Um médico
do hospital nos contou que seu pai, cirurgião numa cidade vizinha, foi ajudar no
atendimento dos feridos. Crianças, mulheres e homens de todas as idades apresentavam
queimaduras que dilaceravam a pele e os tecidos abaixo dela. Tinham náuseas, vômitos,
sangramentos, desidratação, queda de cabelo e muita dor, mas na cidade devastada não
havia analgésicos, material para curativos, instalações nem profissionais em número
suficiente para socorrê-los. Disse que os olhos do pai se enchiam de lágrimas quando falava
dos pacientes e da frustração com as mortes em série que se sucediam.
Convidado por um especialista sueco, Drazio passa por um estágio de 3 meses no
Instituto Karolinska, um dos centros mais importantes de oncologia da Europa.
Drauzio era fascinado pela sociedade sueca, um exemplo de respeito aos direitos
individuais e sociais.
A neurobiologia das compulsões só começou a ser descrita a partir dos anos 1980,
possivelmente pelo fato de que as drogas ilícitas passaram a impactar os jovens de classe média. A
política de “guerra às drogas” de Nixon só aumentou a violência e as populações carcerárias.
Drauzio descreve a compulsão associada ao ciclo de dopamina no cérebro. Os efeitos colaterais são
a redução da sensação de recompensa com os prazeres cotidianos e o mecanismo de tolerância,
que exige doses cada vez maiores para a obtenção de efeitos cada vez menos intensos.
O mecanismo é o mesmo verificado em comportamentos obsessivos como compulsão por
compras ou por jogo.
Na cadeia, Drauzio tomava medidas como afastar os dependentes de outros viciados e
recomendar o uso de maconha para acalmara a ansiedade provocada pela fissura (“redução de
danos”).
O próprio Drauzio relata ter sido viciado em cigarro, por isso, não faz julgamentos a respeito
dos seus pacientes.
O médico não é juiz, não cabe a ele julgar o comportamento de seus
pacientes. Para evitar julgamentos, ao atender um homem preso ou uma mulher
presa não quero saber a natureza do crime cometido, da mesma forma que não
pergunto se fez alguma falcatrua o paciente de terno e gravata que trabalha no
mercado financeiro.
Drauzio conta que começou a fumar com 17 anos de idade, numa época em que o
hábito era culturalmente associado à passagem para o mundo adulto. Para isso contribuía
o marketing da indústria tabagista. Imagens de caubóis nas montanhas acompanhados de
belas mulheres ou de esportes radicais associados ao hábito de fumar eram frequentes na
mídia. O público feminino passou também a ser alvo das propagandas e de estratégias
como cigarros “suaves” ou saborizados.
Sobre o lobby da indústria do tabaco nas estratégias para ocultar os impactos à saúde,
para rebater pesquisas científicas ou mesmo para coibir leis restritivas ao cigarro, o médico
afirma: “Descontada a escravidão, não consigo ver crime maior na história do capitalismo
internacional”.
Drauzio sentiu na pele a dificuldade em abandonar o vício e testemunhou casos de
pessoas doentes por causa do cigarro (câncer, enfisema, tromboangeíte obliterante) que
imploravam por uma tragada.
Na família do médico, o cigarro cobrou um preço alto: três infartos antes dos sessenta
anos de idade, um caso de enfisema, dois de câncer de pulmão, dentre eles, o irmão mais
novo, que faleceu aos 45 anos de idade. Entre os amigos de sua geração também se
apresentaram muitos com câncer.
A partir de 2000, deu-se a proibição da publicidade do cigarro nos meios de
comunicação de massa. O próprio Dr. Dráuzio participou ativamente de campanhas de
conscientização contra o tabagismo como os quadros que apresentou no Fantástico.
O médico atribui a grande queda no percentual de fumantes (de 60% dos adultos em
1967 para 10% em 2022) não apenas à proibição da publicidade, mas principalmente aos
esforços de conscientização. A reação da indústria tabagista, no entanto, preocupa, com a
migração para mercados como o africano e com produtos como o cigarro eletrônico,
aprJesentado como “menos nocivo” e com potencial para viciar um público cada vez mais
jovem.
Em 1981, a notícia sobre a disseminação de casos de sarcoma de Kaposi entre jovens
homossexuais na Califórnia deixou o Dr. Drauzio intrigado, pois era uma doença rara
associada à depressão do sistema imunológico. Desconfiou da coincidência de casos letais
de pneumonia entre jovens homossexuais noticiados dias depois na mesma região. Era o
surgimento da AIDS, última epidemia do século XX.
Em alguns meses, casos de usuários de drogas injetáveis, pacientes hemofílicos, mulheres
heterossexuais, grande número de pessoas no continente africano foram dando à doença o
status de pandemia.
O Dr. Drauzio procurava ler todas as publicações envolvendo a doença que envolvia
imunodeficiência, infecções oportunistas e câncer, assuntos que mais despertavam seu
interesse como médico. O centro de toda a pesquisa estava nos Estados Unidos e o médico
conseguiu um estágio de três meses na clínica do Memorial Sloan-Kettering. Na época, o
dólar era muito caro e o acesso à moeda era limitado no Brasil. Foi graças à ajuda do amigo
Jô Soares, que havia recebido uma verba de publicidade feita para a Varig (companhia
aérea) em dólar, e a um empréstimo bancário, que Dráuzio conseguiu custear a viagem. Na
conexão no Rio de Janeiro, o Dr. Drauzio recebeu um aviso no sistema de som para
apresentar-se a um dos comissários. Logo imaginou ser algum problema com o governo
militar, mas foi surpreendido com um convite à sala vip providenciado por Jô Soares.
A enfermaria de aids era chocante. Pessoas, em sua maioria jovens, excessivamente
magras, desidratadas, com manchas na pele, olhos encovados. Os leitos ocupados por
pacientes com insuficiência respiratória, sedados, intubados. O tratamento administrado
era de alta toxidade e os efeitos colaterais maiores do que a baixa resposta clínica. O
preconceito contra os soropositivos era muitas vezes ostensivo.
No ambulatório, o Dr. Drauzio conheceu um professor de Literatura que recomendou
ao médico brasileiro que conhecesse de perto os locais onde se disseminava a doença: as
saunas e boates frequentadas pela comunidade gay.
Após a experiência em uma boate, o Dr. Drauzio teve a oportunidade de encontrar um
amigo brasileiro, artista plástico, que levou-o a um jantar. A mesa repleta de amigos, todos
homossexuais falando em clima de brincadeira sobre sua própria sexualidade. Chamou a
atenção do médico a ignorância sobre as formas de contágio do HIV e a recusa em
mudarem “seu estilo de vida”.
Subi a Quinta Avenida sozinho, com passos rápidos para espantar o frio,
tomado por um pressentimento terrível: rapazes como aqueles voltariam para o
convívio com as comunidades gays dos grandes centros. Não tardariam a aparecer
usuários de droga injetável infectados que, ao lado dos bissexuais, transmitiriam o
vírus às mulheres, fechando o círculo. Como ninguém tinha percebido?
Naquela noite gelada, tive a sensação de que eu era o único a saber que
aconteceria uma tragédia no Brasil.
A imprensa sensacionalista referia-se à aids como “peste gay”. O preconceito e a
desinformação levaram o Dr. Drauzio a se sentir mais comprometido a esclarecer a
população. Uma frase da Divina Comédia vista em um congresso em Estocolmo não saía da
cabeça do médico: “No inferno, os lugares mais quentes são reservados àqueles que
escolheram a neutralidade em tempos de crise”.
Drauzio passou a achar pouca a contribuição que dera ao escrever um artigo para o
Estadão. Um dia, o jornalista Fernando Vieira de Mello, da Jovem Pan, teve a ideia de
gravar uma conversa que estavam tendo sobre a doença que estava alarmando o mundo. A
repercussão da entrevista foi tão grande que Vieira de Mello decidiu reprisá-la ao longo da
programação em pequenos blocos.
Drauzio ficou incomodado com aquela exposição, incomum para “médicos sérios”
naquela época. Mas acabou convencido pelo amigo de que o esclarecimento da população
era mais importante do que “ficar bem com os colegas”. Vieira de Mello ainda profetizou:
“Um dia você vai fazer esse trabalho na tv Globo”, o que de fato passou a acontecer em
1999 no Fantástico.
Uma executiva propôs, em 1989, uma série de vídeos educativos para veicular em uma
rede de TV de Santa Catarina e em escolas e unidades de saúde do estado. Dráuzio colocou
uma condição: mostrar os lugares onde a doença se disseminava. Assim se deu sua entrada
no Carandiru.
Desde a infância a cadeia estava presente no imaginário de Drauzio, com os filmes
sobre o ambiente prisional e fugas. A experiência de documentar aquele ambiente para
a TV não saiu da cabeça do médico, que acabou se voluntariando para um trabalho de
pesquisa na Casa de Detenção.
O hábito de usar cocaína injetável e a falta de qualquer cuidado nas visitas íntimas
deixaram o Dr. Drauzio alarmado. Quando apresentou a iniciativa de distribuir
preservativos para os dias de visita, a ideia foi rebatida com preconceito.
Minha intenção era mostrar a irresponsabilidade de permitir a entrada de
mais de mil mulheres nos finais de semana para manter relações íntimas com
parceiros infectados, sem lhes dar qualquer informação e acesso a preservativos.
Quando levei esses dados a diversas autoridades do sistema penitenciário,
ouvi a resposta de que seria um absurdo distribuir preservativos gratuitamente para
“vagabundo fazer sexo na cadeia”. A insensibilidade aos dramas das mulheres
infectadas nas visitas se mostrava generalizada. Tive a certeza de que a má vontade
era por se tratar de mulheres pobres, além de, em sua maioria, pretas.
Ainda seriam necessários seis ou sete anos para conseguirmos distribuir,
regularmente, preservativos nos dias de visita em todos os pavilhões. Até então,
quantas mulheres da periferia tinham sido infectadas, quantas crianças ficado órfãs
sob o olhar irresponsável da sociedade?
Envolvido com o drama dos presos, Drauzio propôs um trabalho voluntário com
palestras, com foco na prevenção da aids. O diretor do presídio foi cético: os presos não
iriam frequentar, pois não tinham mais nada a perder. Drauzio respondeu: “Têm a vida”.
As palestras semanais tinham a frequência de centenas de detentos. Esse contato
fez com que fossem inevitáveis as consultas na saída. Os presos queixavam-se de não
ser atendidos na enfermaria do presídio e apresentavam desde problemas simples
como dores de garganta e resfriados até outros mais graves, como tuberculose ou
doenças oportunistas decorrentes da aids.Começou então um trabalho voluntário de
assistência médica no sistema prisional que já dura mais de trinta anos e que deu
origem à trilogia: “Estação Carandiru”, “Carcereiros” e “Prisioneiras”.
Foi no Carandiru que entendi a abrangência da dimensão humana da
medicina.
A tendência natural é a de nos aproximarmos de gente semelhante a nós. Se
possível, da mesma faixa etária, classe social, situação financeira, posições políticas e
gostos parecidos com os que temos. Se usarem roupas do estilo das nossas, votarem
nos mesmos candidatos e torcerem para o mesmo time, melhor. Entre elas, ficamos
à vontade, seguros da aceitação do grupo e confiantes de que nossos
comportamentos e estilo de viver jamais serão questionados.
Como a busca do semelhante e a rejeição ao estranho não deixam espaço
para o novo, o surpreendente e o contraditório, corremos o risco de nos aferrar a
princípios rígidos, a ideias preconcebidas, ao julgamento das ações alheias segundo o
binário certo/errado e a considerar ameaçadora qualquer visão do mundo
divergente da nossa. As consequências são a perda da empatia, o desinteresse pelo
outro, o conformismo, a falta de ousadia para afrontar normas sociais, o medo de
mudanças e a adoção do comportamento de rebanho.
O trabalho no presídio aproximou Drauzio do universo marginal. Chegavam para o
doutor examinar detentos esfaqueados, asfixiados, ou mesmo torturados (prática de
punição imposta a estupradores).
Drauzio passa a fazer analogias entre a realidade dos presos e estudos
comportamentais feitos com ratos e chimpanzés. A conclusão do Dr. Drauzio aponta
para o fato de que, ao contrário do que ocorria com os ratos, que em situações de
superpopulação ficavam mais agressivos e praticavam atos brutais como forma de
garantir território ou posições privilegiadas, os detentos se comportavam como os
primatas:
“Nas colônias de chimpanzés ou nas celas de uma prisão, o aumento da
densidade populacional gera duas consequências imediatas: 1) a força física perde a
primazia nas relações de poder. Na rua, o mais forte agride o fraco e vai embora sem
enfrentar consequências; na cadeia, o revide pode vir quando menos se espera; 2) o
comportamento social passa a ser regido por um código penal de aplicação imediata
que só admite três punições: desprezo social, agressão física ou pena de morte.
É impossível ter ideia dos valores morais de uma sociedade sem conhecer o pronto-
socorro dos hospitais públicos, os hospitais psiquiátricos e as prisões. É nessas instituições
que a desigualdade social expõe sua face mais perversa.
Em 2020, numa live, um líder comunitário da Central Unificada das Favelas (Cufa) me
fez uma pergunta que começava com a frase: “O senhor, que trabalha em favelas há mais de
trinta anos…”.
Eu o interrompi para explicar que o meu trabalho era em cadeias. Ele respondeu: “O
que é a cadeia senão uma extensão da favela, para onde os favelados vão e voltam?”.
Em sua origem, construídas para prender escravos, as prisões brasileiras
preservaram sua vocação elitista. Nas que frequentei em São Paulo e nas que visitei pelo
país, não encontrei um único prisioneiro oriundo das camadas mais ricas da população,
realidade que levou um ex-diretor da Detenção a colocar na parede de sua sala uma
placa de bronze com os dizeres: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha
do que um rico entrar preso na Casa de Detenção”.
A experiência mostrou ao Dr. Drauzio a realidade brasileira, extremamente desigual
e racista, de forma profunda. Foi o maior aprendizado que teve sobre a condição
humana.
Impressionado com os avanços da biotecnologia, o Dr. Drauzio constatou que no
Brasil não havia informação sobre o assunto. Tomou a iniciativa de realizar um
congresso e convidar um time de cientistas de renome, destacando-se o estadunidense
Robert Gallo, envolvido em uma disputa polêmica pela primazia no isolamento do vírus
HIV.
Para convencer nomes de peso a vir para o Brasil, Drauzio desenvolveu um plano de
oferecer uma expedição à floresta amazônica em um barco da UNIP. O evento foi um
sucesso.
Durante a expedição pelo Rio Negro, Drauzio aproximou-se de Gallo, que ficou
encantado com a biodiversidade da floresta, alertando para a necessidade de estuda-la,
o que levou o médico brasileiro a formar equipes de estudo com esse fim no Projeto Rio
Negro.
Drauzio passou a ser convidado para as conferências anuais organizadas por Gallo
nos Estados Unidos, com um grupo seleto de cientistas, como Maurice Hiller, maior
descobridor de vacinas e Stanley Prusiner, que viria a receber o Nobel por descrever os
príons, bactérias infecciosas relacionadas a doenças neurológicas degenerativas.
Em um dos congressos de Gallo, em 2001, a notícia do atentado às Torres Gêmeas foi
recebida em tempo real com consternação.
São Paulo era o epicentro da epidemia de aids no Brasil em 1983 e o Dr. Drauzio
trazia a experiência do estágio em Nova York. Os pacientes apareciam com os sintomas
dermatológicos conhecidos e, nos casos mais graves, com lesões hepáticas ou
pulmonares que poderiam levar à morte. O único tratamento era a quimioterapia e
precisava ser administrado com cautela, para não agravar a depressão imunológica.
O convívio com os pacientes, fez com que o médico entrasse em contato com o
contexto social dos homossexuais em São Paulo. O preconceito e a violência levaram à
organização de uma comunidade informal de mútua solidariedade. Lideranças
formaram o Grupo de Apoio e Prevenção à Aids, defendendo o direito à assistência
médica e previdenciária e lutando contra o preconceito que dificultava o acesso aos
cuidados médicos.
Na atuação médica, a frustração era grande, pois era comum que os pacientes
fossem a óbito por uma infecção banal mesmo depois de terem superado outro quadro
anteriormente.
Na cadeia o quadro era ainda mais dramático. Somava-se à aids o surto de
tuberculose e a precariedade das condições obrigava o médico a prescrever o
tratamento pela simples presença de sintomas, pois não havia tempo para esperar o
resultado de exames. O diagnóstico era certeiro porque o doutor já tinha visto muitos
casos.
Em 1994, Drauzio fez amizade com o infectologista estadunidense John Barlett, que
o colocou a par de um novo tratamento com inibidores de protease, que já tinha
passado da fase 3 de testes. A luta agora seria desburocratizar o processo para a
admissão desse tratamento no Brasil.
Até então, a aids era tratada com uma droga de cada vez. A abordagem inicial
era feita com o azt, um inibidor da transcriptase reversa indicado apenas no estágio
em que começavam as infecções de repetição. Quando não havia resposta ou a
doença progredia, substituíamos o azt pelo ddI, depois pelo ddC ou pelo d4T,
medicamentos da mesma classe. Os resultados eram pífios.
Entendi que aconteceria uma mudança radical do paradigma de tratamento,
mas que levaríamos tempo para incorporar esses conhecimentos na prática médica
no Brasil. Havia muitas barreiras, entre elas colocar os médicos a par desses avanços
e convencer as autoridades federais a autorizar imediatamente a comercialização
dos novos medicamentos no Brasil. O ddI, por exemplo, tinha levado mais de um ano
para receber essa autorização, período durante o qual só teve acesso a ele quem
pôde pagar os preços extorsivos que os importadores cobravam. Mas como divulgar
essas informações num país continental da forma mais rápida possível e como
pressionar as autoridades para aprovar as medicações com urgência?
Drauzio foi à televisão no programa do amigo Jô Soares para dizer em público sobre
a urgência da autorização para o novo tratamento. A pressão surtiu efeito: em menos
de uma semana a importação dos inibidores de protease foi autorizada.
A associação de drogas com mecanismos de ação distintos foi inspirada no
procedimento para o tratamento da tuberculose e foi muito bem sucedida. Os
resultados eram rápidos e visíveis.

Minha geração testemunhou uma revolução no tratamento de uma doença viral,


pandêmica, que evoluía para a morte em 100% dos casos, talvez só comparável
à do impacto que os antibióticos tiveram na prática médica.
Em 1997, a ovelha Dolly surpreendeu o mundo: era o primeiro mamífero clonado a partir
de células maduras.
Drauzio resgata o histórico das pesquisas sobre o tema desde a década de 1960, quando
John Gurdon, da Universidade de Cambridge quebrou o paradigma de que o dogma de que as
células de um embrião se diferenciam logo depois das primeiras divisões, perdendo o poder de
formar embriões completos provocando polêmicas no campo da ética e da religião.
Mais de trinta anos depois,” os biólogos Ian Wilmut e Keith Campbell, extraíram o núcleo
de uma célula da mama de uma ovelha adulta e o injetaram num óvulo “vazio” de outra ovelha,
para depois implantá-lo no útero de uma terceira ovelha. Após 277 tentativas, Dolly nasceu no
ano seguinte”. A ovelha teve uma vida normal.
Em 2006, Shynia Yamanaka, da Universidade de Kyoto demonstrou que em ratos apenas
quatro genes se encarregam de reprogramar células adultas para retornar ao estado primitivo
de células-tronco, totipotentes.
.
Como lidaremos com o poder de moldar outras formas de vida para atender aos
nossos interesses? Teremos amadurecido a ponto de estabelecer limites éticos às
manipulações genéticas? O futuro dirá, mas, a julgar pela legislação que
conseguimos estabelecer em outras áreas da medicina, sou otimista. Se quando
dominamos as tecnologias dos transplantes soubemos criar leis para impedir que os
mais frágeis fossem doadores involuntários de seus órgãos, por que não seremos
capazes de estabelecer critérios rígidos para as manipulações genéticas?
Reflexões sobre a evolução.

“Nos últimos cem anos o esforço conjunto de geneticistas e geólogos confirmou que
os milhões de espécies de seres vivos existentes hoje descendem das poucas que
viveram há mais de 3 bilhões de anos, exatamente como previram os dois biólogos
ingleses anos antes do aparecimento da genética.
Este capítulo conta sobre o episódio em que Drauzio contraiu a febre amarela em uma
expedição pelo Rio Negro.
“Os exames mostravam um quadro de falência hepática aguda de evolução rápida que se
refletia no amarelo dos olhos, na sonolência irresistível, no estado de torpor, no
comprometimento da agilidade cognitiva e no desinteresse por tudo e todos”.
A experiência como médico levava Drauzio a interpretar o comportamento de médicos e
enfermeiras como sinais de que ele estava à beira da morte. Ele próprio entrou começou a
passar por um momento de aceitação.
Cinco dias de internação hospitalar foram suficientes para entender que a visita da indesejada
senhora era precedida por um período de aceitação gradual da sua chegada.
Era como se nada mais o ligasse ao mundo, nem mesmo as pessoas amadas.
No entanto, aos poucos recobrou a consciências e, duas semanas depois, já conseguia se
alimentar. Em casa, muito debiltado, foram mais três semanas de lenta recuperação.
O médico reflete:
“só quando já experimentamos na pele as agruras pelas quais passam nossos doentes
somos capazes de avaliar a extensão do sofrimento

Apesar de ser comum a ideia de que a experiência de quase morte seja


transformadora, o Dr. Drauzio seguiu sua vida da mesma forma:
No meu caso, talvez tenha me faltado sensibilidade para reflexões
transformadoras. Não enxerguei a luz no fim do túnel, continuei ateu, não notei
mudança nas minhas relações afetivas com a família nem com os amigos próximos,
não aprendi a controlar a ansiedade que me aflige quando as solicitações ocorrem
ao mesmo tempo, não quis me divorciar, mudar de casa, de profissão nem
abandonar trabalhos que fazia. A única decisão que tomei foi quase burocrática:
começar mais cedo o atendimento no consultório, para não chegar em casa às nove,
dez da noite.
Ter sido hospitalizado em estado grave fez com que Drauzio admirasse ainda mais o
trabalho da enfermagem, cujos cuidados fazem-no lembrar as presenças paterna e materna.
Drauzio reconstitui a história de Florence Nightingale, mulher inglesa de origem aristocrática
que atuou como enfermeira durante a Guerra da Crimeia e que ficou conhecida como “Dama
da Lamparina”. Foi a fundadora da escola de enfermagem do Hospital St. Thomas, em Londres,
e das próprias bases da enfermagem moderna.
Drauzio afirma ser injusta a forma como se concebe no Brasil a assistência de saúde
centrada na figura do médico: “É voz corrente que as enfermeiras nos ajudam a cuidar dos
doentes, uma inversão de valores injusta: nós é que as ajudamos; quem cuida são elas”,
citando-as no feminino por ter consciência de que a maioria esmagadora das profissionais de
enfermagem são mulheres.
O médico defende maior flexibilidade na regulamentação dos procedimentos de saúde,
entendendo que enfermeiros e farmacêuticos poderiam ter maior autonomia no controle de
doenças crônicas como hipertensão.
Se os controles da hipertensão e de outras enfermidades crônicas ficassem a
cargo da enfermagem e do farmacêutico que a legislação obriga a estar presente na
farmácia da esquina, em contato direto com os pacientes, não seria mais inteligente?
Não é ridículo obrigar estudantes a passar quatro anos nas faculdades de farmácia e
bioquímica para deixá-los de plantão em funções burocráticas nas drogarias?
É claro que não caberia a esses profissionais prescrever hipotensores,
hipoglicemiantes, antibióticos e outros tratamentos que exigem formação
especializada, mas explicar como os medicamentos devem ser tomados, quais os
efeitos colaterais mais comuns, as possíveis interações medicamentosas, e
encaminhar ao médico aqueles com má resposta à medicação prescrita.
Por fim, o Dr. Drauzio exalta o altruísmo e a coragem das enfermeiras durante a pandemia
de Covid-19:

Quando a pandemia do novo coronavírus abarrotou as utis dos países


europeus, os telejornais exibiam imagens de pessoas na janela de sua casa
aplaudindo a atuação dos médicos. Claro que meus colegas faziam jus ao
reconhecimento pelo trabalho realizado, mas a enfermagem merecia ainda mais.
Durante a pandemia, quantas enfermeiras se separaram de seus familiares e
ficaram sem ver os filhos, para não colocá-los em risco de se infectar pelo
coronavírus? Como elas lidaram com o medo de acabar na mesma situação dos
pacientes de quem cuidavam? E com o medo de morrer? Quando todos se
escondem do vírus, que motivação faz essas mulheres saírem de casa todos os dias
para ir aonde o vírus está? Quanta força pode ter a generosidade humana.
Drauzio observa as mudanças econômicas e sociais nas últimas décadas e seus
reflexos na medicina. A expectativa de vida aumentou, a população envelheceu e, com
isso, o perfil epidemiológico mudou. O país passou por um processo de urbanização e
as endemias deixaram de ser predominantemente rurais.
A expansão da indústria alimentícia e as novas tecnologias de conservação
acompanhadas do ingresso das mulheres no mercado de trabalho, modificaram a rotina
dos brasileiros que, acompanhando uma tendência mundial, passaram a consumir mais
alimentos processados, de baixo custo, altamente calóricos, mas de baixo valor
nutricional.
O fenômeno da obesidade é acompanhado do sedentarismo e do envelhecimento
da população, definindo um novo perfil epidemiológico com maior destaque para
doenças crônicas como diabetes e hipertensão.
A tríade obesidade, sedentarismo e envelhecimento criou as bases para a
mudança radical do padrão epidemiológico; migramos daquele das endemias rurais
para o das doenças crônico-degenerativas: hipertensão arterial, diabetes, doenças
reumatológicas, problemas ortopédicos, doenças pulmonares obstrutivo-crônicas,
degenerações neuropsiquiátricas, enfermidades crônicas associadas ao aumento do
risco de infartos do miocárdio, derrames cerebrais, insuficiência renal crônica, perda
de visão, obstruções arteriais, demências, transtornos psiquiátricos e outras
condições que demandam assistência médica continuada, exames laboratoriais,
imagens de apoio, tratamentos dispendiosos, hospitalizações frequentes e
abordagens multidisciplinares, com a participação de enfermeiras, fisioterapeutas,
psicólogas, fonoaudiólogas, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais.
Drauzio retoma os avanços da saúde pública com o SUS, mas aponta as contradições
de um sistema híbrido, em que, na rede pública há dificuldades para conseguir
consultas e internações e na rede privada, por sua vez, os pacientes queixam-se de não
receber atenção dos médicos, da demora para marcar exames ou mesmo da negação
de procedimentos.
O médico aponta o rápido envelhecimento da população como fator decisivo para
essa crise de despreparo das redes de saúde e reafirma a incoerência de um sistema de
saúde que não atua preventivamente.
Drauzio critica o modelo estadunidense que, apesar de altos investimentos, não
apresenta resultados. A expectativa de vida nos EUA em 2019 era de 78,8 anos, 10 anos
abaixo do Japão e um pouco menor do que em estados brasileiros como Santa Catarina
e São Paulo.
A vida no século XXI ficou medicalizada. A massificação do uso contínuo de medicamentos não
é apenas responsabilidade dos médicos, que prescrevem, mas também da indústria
farmacêutica.
A mudança do perfil epidemiológico de uma população envelhecida, com a prevalência de
doenças crônicas justifica, em parte, o problema. Outro fator que atua nesse sentido é o
próprio avanço da indústria farmacêutica na obtenção de drogas eficazes para as mais diversas
finalidades.
Outro fenômeno observado pelo Dr. Drauzio é a suplementação. O médico alerta para o
equívoco de julgar que complexos vitamínicos podem ser usados de forma indiscriminada sem
produzir efeitos colaterais.
Assim como a medida correta, ao invés da suplementação, é a alimentação adequada, em casos
de hipertensão, a simples mudança de hábitos com ajuste na dieta e aumento da atividade
física pode dispensar a necessidade do uso de medicação.
Termos como pré-diabetes parecem induzir ao consumo de medicações e produtos dietéticos.
O médico afirma que, quanto mais experiente ficou, mais evitou a prescrição de medicamentos.
A vida contemporânea, com os problemas da urbanização, com a aceleração do ritmo de
trabalho para satisfazer aos padrões de consumo e a presença opressiva ad tecnologia e o
consequente isolamento social fizeram aumentar consideravelmente os problemas de saúde
mental.

No Plano de Ação para a Saúde Mental 2013-2020, a Organização Mundial da Saúde


calculou que um em cada dez adultos desenvolveria transtornos psiquiátricos. Haveria 700
milhões de pessoas com enfermidades mentais e neurológicas, número correspondente a
13% do total das doenças existentes no mundo. Depressão, a mais prevalente delas,
afetaria 350 milhões de pessoas e se tornaria uma das maiores causas de incapacitação. A
partir da década de 2020, constituiria a principal justificativa para absentismo no trabalho.
A vida contemporânea, com os problemas da urbanização, com a aceleração do ritmo de
trabalho para satisfazer aos padrões de consumo e a presença opressiva ad tecnologia e o
consequente isolamento social fizeram aumentar consideravelmente os problemas de saúde
mental.

No Plano de Ação para a Saúde Mental 2013-2020, a Organização Mundial da Saúde


calculou que um em cada dez adultos desenvolveria transtornos psiquiátricos. Haveria 700
milhões de pessoas com enfermidades mentais e neurológicas, número correspondente a
13% do total das doenças existentes no mundo. Depressão, a mais prevalente delas,
afetaria 350 milhões de pessoas e se tornaria uma das maiores causas de incapacitação. A
partir da década de 2020, constituiria a principal justificativa para absentismo no trabalho.
Isolamento social, competição, pressão para cumprir metas no trabalho e na vida
pessoal, medo do desemprego, falta de tempo para conviver com a família e encontrar os
amigos, imposição de padrões estéticos que nem todos os corpos são capazes de atender, o
bombardeio incessante e agressivo das redes sociais e o
pavor de sermos considerados perdedores estão entre os fatores que nos transformaram em
seres estressados, angustiados, deprimidos e insones. Pegar no sono, necessidade fisiológica
que desde sempre se impõe depois de um dia de vigília, virou martírio para muitos.

Benzodiazepínicos e antidepressivos começaram a ser prescritos de forma indiscriminada,


gerando dependência e efeitos colaterais, tendo sido o quadro agravado durante o período
da pandemia.
Esses dados nos ensinam que fatores sociais, o despreparo da classe médica a
respeito das ações desses medicamentos, os interesses e a influência da indústria
farmacêutica, a crença em soluções farmacológicas para os problemas que nos
afligem, a busca exaustiva da felicidade como valor de prestígio e ascensão social nos
levaram à cultura da medicalização da vida cotidiana, legado que deixaremos para as
gerações futuras.
Drauzio relembra o surgimento do fax, inovação tecnológica que permitia ao
médico nos anos 1980 receber os exames laboratoriais impressos em casa. A aparente
comodidade, no entanto, acabou fazendo com que o médico trabalhasse mais.
A mesma lógica se impôs com os adventos do e-mail e do telefone celular.
Naquele tempo, andávamos com um bipe pendurado no cinto. O paciente
que precisava falar conosco telefonava para uma central, mencionava o número do
nosso bipe e a central anotava o telefone do paciente. O som repetitivo e enervante
do bipe nos avisava de que havia um recado para nós na central. Telefonávamos
para lá, anotávamos o número de quem nos procurava e ligávamos de volta,
operação que muitas vezes fazíamos nos telefones públicos espalhados pela cidade,
os orelhões. Para tanto, não saíamos de casa sem fichas telefônicas no bolso.
O celular resolveu os inconvenientes do bipe, mas criou a possibilidade de entrar em
contato com o médico por motivos irrelevantes, a qualquer hora do dia ou da noite,
na expectativa de que ele respondesse onde quer que estivesse. Fiquei tão
traumatizado que até hoje preciso refrear o ímpeto de atender meu celular quando
ouço, na tela da tv ou do cinema, o som de um telefone. Quando estou num
ambiente e um celular toca, sinto um tremendo alívio ao perceber que não é o meu.
O Dr. Drauzio aponta as consequências da onipresença das novas tecnologias de
informação na transformação de nossas relações interpessoais e na própria maneira
como lidamos com o tempo e o trabalho. É comum que médicos passem mais tempo
preenchendo formulários eletrônicos do que em contato com o paciente.

Uma pesquisa feita com médicos de grandes hospitais americanos mostrou que o
tempo dedicado ao paciente está reduzido em média a 30% do total do tempo da
consulta.

Por outro lado, Drauzio não nega os benefícios da internet no sentido de facilitar a
circulação da informação e o acesso ao conhecimento.
Drauzio cita uma passagem da Divina Comédia em que Dante se compadece da sua amada
Beatriz, que havia perdido o pai. Ao chorar por ela, o poeta foi recriminado: “Por que choras, és
um homem”.
Na divisão cultural dos papeis entre homens e mulheres, o médico exalta a força das mulheres,
sempre presentes nos momentos cruciais: no nascimento, na doença e na morte.
As mulheres se submetem a exames de rotina incômodos como mamografias e os homens só
tomam cuidados com a própria saúde quando pressionados por suas companheiras. Não é à
toa que as mulheres brasileiras vivem em média sete anos a mais do que os homens.
As mulheres tendem a ser mais generosas e solidárias. É comum vê-las acompanhando alguém
nas salas de espera e nos hospitais, ao passo que os homens tendem a abandonar suas
companheiras à própria sorte. Na cadeia, o Dr. Drauzio testemunhou casos de mulheres que
passaram décadas visitando seus maridos presos, o que não acontecia com as detentas no
presídio feminino, abandonadas até mesmo pela própria família.
Quase sempre são as mulheres que arcam com a função de “cuidadoras”.
Drauzio cita uma passagem da Divina Comédia em que Dante se compadece da sua amada
Beatriz, que havia perdido o pai. Ao chorar por ela, o poeta foi recriminado: “Por que choras, és
um homem”.
Na divisão cultural dos papeis entre homens e mulheres, o médico exalta a força das mulheres,
sempre presentes nos momentos cruciais: no nascimento, na doença e na morte.
As mulheres se submetem a exames de rotina incômodos como mamografias e os homens só
tomam cuidados com a própria saúde quando pressionados por suas companheiras. Não é à
toa que as mulheres brasileiras vivem em média sete anos a mais do que os homens.
As mulheres tendem a ser mais generosas e solidárias. É comum vê-las acompanhando alguém
nas salas de espera e nos hospitais, ao passo que os homens tendem a abandonar suas
companheiras à própria sorte. Na cadeia, o Dr. Drauzio testemunhou casos de mulheres que
passaram décadas visitando seus maridos presos, o que não acontecia com as detentas no
presídio feminino, abandonadas até mesmo pela própria família.
Quase sempre são as mulheres que arcam com a função de “cuidadoras”.
O Dr. Drauzio fala sobre a importância de analgésicos e anti-inflamatórios no alívio do
sofrimento.
Relembra de um paciente que cometera o suicídio por não suportar o flagelo da dor.
Remonta a evolução dos analgésicos desde o ópio, passando pelo desenvolvimento do AAS, até
as substâncias mais potentes como a morfina.
Ironicamente, refere-se à condescendência com a dor alheia, citando o desprezo de
médicos pela dor das mulheres durante o processo de curetagem nos hospitais públicos ou a
realização de procedimentos como endoscopias sem anestésicos ou biópsias sem sedação sob
o pretexto de que a dor seria suportável.

Nós, médicos, temos muita responsabilidade nesses casos. Ao aceitarmos as regras


impostas pelos planos de saúde e pelos gestores dos hospitais públicos, tornamo-nos
cúmplices deles. Nunca é demais lembrar que a nossa profissão existe para aliviar as dores
humanas, não para agravá-las.
A oncologia colocou o Dr. Drauzio em permanente contato com a morte. Por isso, ele
aponta a falha na formação médica que apenas treina para curar, mas não para lidar
com os que vão morrer.
Ainda quando inevitável, a morte de alguém sob nossos cuidados é sentida por
nós como um fracasso pessoal. Ela nos coloca diante dos limites dos conhecimentos
que nos orgulhamos de ter, portanto afronta nossa onipotência, desconstrói nossa
autoimagem e nos reduz à condição do que realmente somos: seres frágeis muitas
vezes incapazes de alterar a ordem natural da vida.
A consequência desse despreparo para lidar com pacientes terminais é o impulso
de afastamento em relação ao paciente cujo quadro evolui mal.
Estar permanentemente lidando com a morte é também um desafio à manutenção
das relações pessoais fora do hospital. É preciso ter cuidado para não demonstrar
enfado diante das questões mais banais da vida no contato com amigos e familiares.
A necessidade de poupar os amigos e, principalmente, os familiares dos
momentos de desconsolo que se repetem na nossa prática médica nos leva a viver
em realidades paralelas nem sempre conciliáveis. De um lado, a vida e a morte, a
contradição filosófica suprema da humanidade; de outro, o convívio com os
acontecimentos fúteis do dia a dia e o empenho de manter o interesse por eles e
pelas pessoas que os relatam.
A oncologia colocou o Dr. Drauzio em permanente contato com a morte. Por isso, ele
aponta a falha na formação médica que apenas treina para curar, mas não para lidar
com os que vão morrer.
Ainda quando inevitável, a morte de alguém sob nossos cuidados é sentida por
nós como um fracasso pessoal. Ela nos coloca diante dos limites dos conhecimentos
que nos orgulhamos de ter, portanto afronta nossa onipotência, desconstrói nossa
autoimagem e nos reduz à condição do que realmente somos: seres frágeis muitas
vezes incapazes de alterar a ordem natural da vida.
É impossível não se sensibilizar diante do drama da perda. Drauzio recorda de uma
ocasião em que a esposa, antes de irem ao teatro, o flagrara às lágrimas diante do
espelho por conta da perda de uma paciente.
Drauzio define a medicina como uma ciência aplicada, sujeita a muitas variáveis. Por
isso, considera que o complexo processo de tomada de decisão na medicina constitui
uma verdadeira arte.
O Dr. Cita o caso de um residente que dizia sentir um enorme prazer no processo
cirúrgico, alegando no entanto, não suportar as demandas dos pacientes e familiares.
Poderia passar horas em um centro cirúrgico operando pacientes previamente
anestesiados sem trocar uma palavra. Dráuzio afirma que, nesse caso, não haveria
diferença entre esse profissional e um cirurgião veterinário.
O que consideramos ciência aplicada nada mais é do que o emprego dos
conhecimentos científicos na resolução de determinado problema prático. A lei da
gravitação universal é levada em conta nos cálculos do engenheiro para manter a
ponte em pé; o movimento de rotação da Terra é importante para estimar o horário
de chegada dos voos internacionais de longa duração. No caso da medicina, a
atividade não pode se limitar à aplicação dos dados científicos, porque sofre a
interferência de fatores que envolvem uma conjunção de empatia, compaixão,
atenção às dificuldades e limitações do outro, interesse por seus valores morais,
culturais e filosóficos, estilo de vida e a avaliação das interferências familiares e
sociais trazidas pela doença.
Sobre a declaração de um cirurgião em um programa de TV, afirmando que a
cirurgia-plástica era uma especialidade para artistas, Drauzio discorda. A arte da
medicina, segundo considera, é abstrata e não obedece a fins estéticos ou
mercadológicos. Daí aproximar-se mais da literatura do que das artes plásticas, como
vimos na referência anterior à obra “A Morte de Ivan Ilitch” (no capítulo “Oncologia).
Neste capítulo Drauzio faz um balanço da sua vida. Alegra-se pelo fato de ter ainda
saúde e disposição para o trabalho, citando as muitas atividades a que se dedica entre a
clínica, a pesquisa, a escrita, as palestras e a produção de conteúdos para a tv e para a
internet.
Entende que a maturidade ofereceu maior equilíbrio emocional, humildade e
empatia, essenciais ao exercício da medicina, reafirmando a profissão como um
exercício permanente da incerteza.
Esperava ter equilíbrio psicológico e sensibilidade para entender que a medicina deve
ser um eterno exercício de humildade intelectual. Nela não existem certezas, lidamos
com probabilidades, estatísticas, reações estranhas, idiossincrasias e respostas
inesperadas. Tinha medo de que o desgaste da atividade diária em condições
desfavoráveis me tornasse desinteressado e cínico. Empatia é planta sensível, precisa
ser regada todas as manhãs.
Em sua experiência com a oncologia aprendeu que o momento mais difícil não é o
da morte de um paciente, mas o momento em que o médico vê a imagem radiológica
que acusa a incurabilidade de um tumor que o paciente já considerava curado.
No exercício da profissão, habituou-se à dura tarefa de comunicar a pacientes e
familiares sobre o câncer. Desenvolveu um cuidado cada vez maior com as palavras,
sabendo que elas jamais serão esquecidas.
Quando olho para trás, acho que só atingi a maturidade profissional quando deixei
de encarar a morte inevitável como a frustração suprema e passei a vê-la como o
período em que a pessoa doente e seus familiares mais necessitam do médico sensível
e preparado. Aplacar o medo, amenizar o sofrimento e conciliar os conflitos entre os
familiares para que aceitem a realidade com resiliência é o trabalho que melhor
traduz a razão de existir da medicina. Morrer em paz é o que desejamos ardentemente
para nós e para aqueles que amamos.
Fala sobre as filhas e netas, sobre a transitoriedade da vida e sobre a recente
decisão de aposentar-se do consultório. Segue em atividades que considera mais
instigantes, como a educação para a saúde e com seu compromisso social, atendendo
no sistema prisional.

Apesar das inquietações intelectuais e da indignação com a desigualdade do país,


sou um homem em paz.
Em sua memória familiar, recorda-se dos relatos da avó sobe a gripe espanhola,
pandemia que atingiu cerca de metade da população mundial e provocando dezenas de
milhões de mortes em uma época em que as estatísticas não eram confiáveis.
A confiança na tecnologia moderna talvez tenha contribuído para que a pandemia
de Covid-19 não gerasse tanto alarme quando surgiu. O histórico recente de síndromes
respiratórias SARS e MERS controladas fez com que não se soubesse dimensionar ao
certo o impacto da Covid-19.
A gravidade da doença, seu alto contágio e letalidade só foram percebidos em sua
verdadeira gravidade meses depois do aparecimento dos primeiros casos (dezembro de
2019, Wuhan), quando a doença chegou à Europa, em fevereiro de 2020. No mesmo
mês, tivemos os primeiros casos no Brasil e em março o primeiro óbito.
A filha de Drauzio, médica em Manhattan, contraiu a doença. Em São Paulo, a
estreia de um espetáculo de sua esposa, Regina, foi cancelada.
O Brasil não estava preparado. Nos hospitais faltava quase tudo: equipamento de
proteção individual, aparelhos de ventilação mecânica, medicamentos, leitos,
profissionais.
Drauzio aponta a responsabilidade do presidente à época, Jair Bolsonaro e de seus
seguidores, que teriam negado a gravidade da doença, combatido o uso de máscaras e
promovido aglomerações. Cita também a alta rotatividade de ministros na pasta da
Saúde e a falta de campanhas de prevenção e conscientização. Acusa o governo de
ter obstruído a vacinação negando-se a assinar contratos com a Pfizer.
O horror da pandemia persistiu com as notícias sobre novas variantes. A biologia
ensina que a evolução é imprevisível.
O médico segue sua vida tomando precauções, afinal, sente que ainda tem muito
por fazer.

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