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MÉDICOS-EDUCADORES:

revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Daniela Leal (organizadora)


3
“A grande maioria dos casos representavam crianças, cujo estado não se podia
taxar de sadio, nem de doente, mas um estado intermediário entre a saúde e a
doença. Para os educadores estas crianças não pareciam sadias, para os médicos
elles não revelavam doença propriamente dicta. Dahi a dificuldade de trata-las.
Nem para os primeiros nem para os segundos, a sua pratica habitual não dava
margem a uma acção segura. Cada um entretanto interpretava-os de um certo
ponto de vista, na ausência da própria experiência; cada um entrava com sua
chapa, seu clichê: uns se revelavam convencidos endocrinólogos, outros
mostravam-se fervorosos adeptos da psychoterapia, outros ainda
incriminavam do mal a universal syphilis. Se deu também um facto bem curioso:
os educadores e os psychologos ficavam certos que a melhora das crianças
residia na medicina; os médicos, ao contrário, davam crédito sobretudo a
educação e a psychoterapia”.

Helena Antipoff1 (1937, p. 42, grifo nosso)

1Antipoff, H. (1937). Círculo de estudos medico-pedagógicos. Boletim da Secretaria da Educação e Saúde Pública
de Minas Gerais (Publicação a cargo da Sociedade Pestalozzi – A Infância Excepcional), Belo Horizonte, (20), 41-
44.
SUMÁRIO

Prefácio .................................................................................................................... 06
Raquel Martins Assis

Algumas palavras iniciais .................................................................................... 09

Capítulo I - Jacob Rodrigues Pereira: primeiro educador de crianças surdas


na França .................................................................................................................. 14
Kaciana Nascimento da Silveira Rosa

Capítulo II - Jean Marc-Gaspard Itard: o legado esquecido? ............................. 38


Aliciene Fusca Machado Cordeiro

Capítulo III – Edouard Séguin e o processo de escolarização de educandos


com deficiência intelectual ...................................................................................... 58
Kaciana Nascimento da Silveira Rosa

Capítulo IV - Um educador brasileiro esquecido: Manoel Bomfim (1868-


1932) ......................................................................................................................... 78
Mitsuko Aparecida Makino Antunes & Antonio Carlos Caruso Ronca

Capítulo V - Do consultório médico às escolas estatais vienenses: Alfred


Adler (1870-1937) e as “crianças dificilmente educáveis”................................. 94
Daniela Leal & Marina Massimi

Capítulo VI – Educação e Psicologia em Maria Montessori: da Medicina à


Educação Especial e à Pedagogia Geral .................................................................. 125
Kaciana Nascimento da Silveira Rosa & Mitsuko Aparecida Makino Antunes

Capítulo VII - Théodore Simon (1873-1961): un aliéniste au service de la


cause infantile .......................................................................................................... 152
César Rota Júnior, Sérgio Dias Cirino & Laurent Gutierrez

Capítulo VIII - Henri Wallon: uma visão integradora da pessoa ....................... 178
Mariana Batista Vieira & Laurinda Ramalho de Almeida

Capítulo IX - Ulysses Pernambucano e a Educação ............................................. 197


Fabiana Pereira, Silvana Matos & Janayna Emidio

Capítulo X - Arthur Ramos (1903-1949) e as “creanças problemas” nas


escolas do Rio de Janeiro ......................................................................................... 221
Daniela Leal & Andrea Soares Wuo

Sobre autora e autores ........................................................................................... 241

5
PREFÁCIO

Raquel Martins Assis

É com prazer que respondo ao convite para fazer o prefácio do livro


Médicos-educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia,
organizado por Daniela Leal. Acredito, de fato, que os textos aqui reunidos são
uma contribuição singular a pesquisadores e profissionais psicólogos e
educadores, especialmente àqueles que têm se ocupado da educação especial e
da educação inclusiva. Meus motivos para assim pensar estão relacionados à
minha experiência acerca da observação e da análise de obras, teses e
dissertações ligadas ao campo da Psicologia, da Psicanálise e da Educação. Há
algum tempo, a Faculdade de Educação da UFMG foi responsável pela seleção de
livros do Programa Nacional de Biblioteca na Escola – PNBE temático 2013. Na
época, eu fui convidada para ser uma das Coordenadoras Adjuntas da área de
Educação Especial/educação inclusiva. Tratava-se de um trabalho no qual, com
a ajuda de diversos especialistas, selecionávamos um grupo de obras para
compor bibliotecas de escolas públicas. Ficamos responsáveis, portanto, por
analisar uma boa quantidade de livros das mais variadas editoras, sendo que
muitos deles eram bons trabalhos. Mas independente da qualidade das
discussões, um aspecto que me chamou a atenção nessa edição do PNBE, e que
eu continuo a observar como avaliadora de dissertações e teses produzidas na
Pós-graduação, é um certo reducionismo e mesmo anacronismo presentes na
abordagem à história da educação especial e/ou inclusiva, seja no Brasil, seja em
outras partes do mundo. De forma geral, é comum que livros ou produções
acadêmicas tragam algo sobre o passado da área específica da qual se ocupam –
deficiências físicas, sensoriais, intelectuais ou os variados fenômenos
relacionados às crianças consideradas como um problema para as escolas - mas
as histórias são quase sempre as mesmas. É possível encontrarmos uma ou
outra breve narração sobre povos antigos que, muitas vezes, enfatizam o
extermínio da criança com deficiência a fim de autorizar discussões sobre
segregação. Os séculos XVIII e XIX, períodos em que é mais fácil encontrar
práticas educacionais voltadas para a especificidade da infância, quase sempre
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

estão presentes. Nessa perspectiva, destaca-se o empenho de Jean Itard ao


tentar educar o menino Victor, encontrado em Aveyron, na França. A ação
pedagógica de Itard, assim como outras informações, entretanto, na maioria das
vezes, é descrita por meio de fontes secundárias. A análise dessas diferentes
produções me levou a perceber que temos duas necessidades que impactam a
formação de educadores e de profissionais ligados à educação e à saúde:
carecemos de mais pesquisas históricas sobre a educação especial e a educação
inclusiva e precisamos fazer com que essas pesquisas cheguem ao público. O
desconhecimento histórico sobre a área em que atuamos pode propiciar uma
visão pouco crítica dos projetos educacionais que temos atualmente. Por isso, o
livro agora anunciado me parece uma contribuição original e necessária ao
contexto brasileiro.

Médicos-educadores reúne capítulos sobre a ação pedagógica de


importantes intelectuais, especialistas que foram vistos como inovadores pelas
pessoas de seu tempo. Além de trazer textos bem fundamentados sobre autores
internacionais renomados como Maria Montessori, Jean Itard, Édourad Séguin
e Henri Wallon, o livro apresenta figuras menos conhecidas ao público brasileiro
tais como Jacob Pereira e Alfred Adler. Saindo do lugar comum, vemos, por
exemplo, emergir Théodore Simon - amplamente conhecido, no Brasil, apenas
por sua parceria com Alfred Binet - como um personagem que colaborou
ativamente no campo da educação. Nesse sentido, a originalidade do livro agora
publicado é motivada por pesquisas em antropologia, história da educação e
história da psicologia. Por se basearem em pesquisas, os capítulos apresentam
citação de documentos que nos permitem vislumbrar as próprias ideias e
práticas dos médicos-educadores.

Outro aspecto a ser mencionado é a presença de capítulos sobre atores


brasileiros como Ulysses Pernambucano, Manoel Bonfim e Arthur Ramos. Se
conhecemos pouco a obra dos renomados Jean Itard e Maria Montessori, muito
menos sabemos a respeito de nossa própria memória. Esses educadores
nacionais, intelectuais muito ativos em suas épocas, seguem desconhecidos para
a maioria dos estudantes, dos profissionais e mesmo de pesquisadores que se
dedicam à investigação de temas em Educação e em Psicologia. Assim, é
gratificante poder considerar a atualidade das ideias de Manoel Bonfim em seu

7
desejo de transformações sociais pela educação ou o empenho de Arthur Ramos
em fazer da integração da criança à sociedade seu objeto de trabalho. É também
instigante encontrar um Ulysses Pernambucano humanista e plural,
interessante para a Antropologia.

Podemos afirmar que Médicos-educadores oferece uma proposta coesa em


sua diversidade de autores e de capítulos. Destacam-se, ao meu ver, três eixos
centrais presentes do começo ao fim da obra: 1. a atenção que esses educadores
deram às crianças, seja criando dispositivos para melhor observá-las, seja
aprendendo com elas as melhores formas de educá-las; 2. a ênfase no
desenvolvimento integral do ser humano como condição de uma educação
transformadora; 3. a posição ativa adotada pelos atores retratados diante dos
problemas e dramas de sua época. Os dois primeiros pontos são, ainda hoje,
essenciais para a construção de projetos educacionais que consigam, em alguma
medida, incluir a todos. O terceiro aspecto me leva a dialogar com a citação de
Helena Antipoff, colocada como epígrafe do livro: “os educadores e os
psychologos ficavam certos que a melhora das crianças residia na medicina; os
médicos, ao contrário, davam crédito sobretudo a educação e a psychoterapia”.
Os médicos apresentados nesse livro representam alguns daqueles que
arriscaram sair de suas práticas habituais por terem, provavelmente, se
interessado mais pelas crianças e pelo amor à investigação do que à defesa de
seus limites de saber. Desse modo, termino esse prefácio com apenas uma
recomendação: Aproveitem a leitura, pois se trata de um belo livro!
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

ALGUMAS PALAVRAS INICIAIS...

A instrução clássica, bem fadada no poder de catalizador das


humanidades, torna os médicos mais humanos. E pois, educadores são
alguns nos predicados de exceção, ainda que à revelia dos próprios
designios, nem por isto menos efetivos nos votos implícitos da
superioridade. São dessa conta e porte as figuras que estas páginas
recordam [...].
Clementino Fraga2 (1941, p. 11)3

As significativas palavras que dão início a esta escrita foram


“encontradas” na reta final de elaboração desta obra. Todavia, creio que no
momento certo para revelar, ainda com mais precisão, o que de fato
pretendemos expressar nos capítulos que se seguirão e com os médicos-
educadores que aqui apresentaremos. Afinal, assim como Clementino Fraga, na
década de 1940, ao descrever cada um dos médicos-educadores4 que marcaram
sua trajetória de vida pessoal e profissional, é exatamente sobre “predicados de
exceção” que nos ousamos a falar e escrever.

“Predicados de exceção” que buscarão revelar a história e a vida de


médicos-educadores que viveram entre os séculos XVIII e XX e que, para além
do olhar somente da higienização, da medicalização e do atendimento clínico-
hospitalar, apresentaram, cada uma a sua época, propostas inovadoras, que
contribuíram significativamente à educação. Apesar de terem como ponto de
partida a área médica e os estudos da mesma, todos possuíam um olhar muito
mais voltado à aprendizagem e ao desenvolvimento integral da criança, do que
a própria questão médico-higienista e/ou medicalizante tão comumente

2 Clementino da Rocha Fraga (1880-1971): médico, escritor, professor e político brasileiro. Dedicou-se
tanto aos problemas que afligiam tanto a saúde quanto a educação do país. Chefiou a campanha contra o
surto contra a febre amarela (1928); fundou o primeiro curso sobre Tuberculose no país; foi Secretário
Geral da Saúde e da Assistência no Distrito Federal, de 1937 a 1940; pertenceu às Academias Nacional de
Medicina de Paris e Buenos Aires, à Academia das Ciências de Lisboa e à Academia Brasileira de Letras,
ocupando a cadeira 36, de 1939 a 1971.
3 Fraga, C. (1941). Médicos-Educadores. Rio de Janeiro: A Noite Editora.
4Os médicos-educadores descritos por Fraga foram Carneiro Ribeiro, Francisco de Castro, Osvaldo Cruz,
Pacífico Pereira, Azevedo Sodré e Miguel Couto.

9
discutidas ao longo dos séculos e, em especial e com mais ênfase, a partir do
século XX.

Nesse sentido, buscar-se-á através do resgate histórico da vida e obra de


Jacob Rodrigues Pereira (1715-1780), Jean Marc Gaspard Itard (1774-1838),
Édouard Séguin (1812-1880), Manoel Bomfim (1868-1932), Alfred Adler
(1870-1937), Maria Tecla Artemísia Montessori (1870-1952), Théodore Simon
(1872-1961), Henri Paul Hyacinthe Wallon (1879-1962), Ulysses
Pernambucano de Melo Sobrinho (1892-1943) e Arthur Ramos de Araújo
Pereira (1903-1949), apresentar o olhar diferenciado à educação que todos
estes “médicos-educadores” tiveram em suas épocas.

Os capítulos que se seguirão, portanto, para uma melhor construção da


historicidade dos fatos, das teorias, dos conceitos e de seus pensadores, seguirão
uma ordem cronológica, partindo do século XVIII até chegar ao século XX. O que
não quer dizer que, tais concepções e pensadores não transitaram nos estudos
realizados por outrem em outros séculos. Pelo contrário, algum deles somente
foram descobertos, como é o caso de Jacob Rodrigues Pereira, por intermédio da
literatura de seus contemporâneos.

Para tanto, no primeiro capítulo, a autora Kaciana Nascimento da


Silveira Rosa, ao escrever Jacob Rodrigues Pereira: primeiro educador de
crianças surdas, trará uma das primeiras discussões no Brasil sobre o primeiro
educador de crianças surdas na França, além de um dos primeiros a
sistematizar um plano de ensino para o atendimento das mesmas; pois ao se
dedicar, desde os 19 anos de idade, ao estudo de métodos para ensinar as
pessoas surdas, Jacob Rodrigues Pereira permitiu, e ainda permite, pensar nas
condições escolares ofertadas a este público-alvo da educação, bem como
antecipa a noção de compensação (descrita somente no início do século XX) ao
focar-se no potencial da criança e não em sua deficiência.

No segundo capítulo, Jean Marc-Gaspard Itard: o legado esquecido?, a


autora, Aliciene Fusca Machado Cordeiro, apresentará o trabalho realizado por
Itard com Victor, o menino encontrado nos bosques do sul da França, no final do
século XVIII, e estigmatizado de “selvagem”. Ao acreditar que a educabilidade era
a melhor forma de trabalho/tratamento a ser utilizado, Itard demonstrou além da
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

importância de organizar ambientes de aprendizagem que proporcionassem


atividades favorecedoras de desenvolvimento cognitivo, afetivo e
comportamental que, principalmente, a medida da aprendizagem e do
desenvolvimento de uma pessoa só pode ser obtida quando ela for comparada a si
mesma.

Em Edouard Séguin e o processo de escolarização de educandos com


deficiência intelectual, terceiro capítulo desta obra, Kaciana Nascimento da
Silveira Rosa, apresentará e descreverá tanto a teoria quanto as propostas e
ações de Séguin junto às crianças com deficiência intelectual (com base em seus
escritos e obras em sua língua original, o francês5), com o intuito de revelar o
empenho do “educador-médico”6 em mostrar que todas as crianças, conforme
suas possibilidades, podem aprender.

O quarto capítulo, Um educador brasileiro esquecido: Manoel Bomfim


(1868-1932), de Mitsuko Aparecida Makino Antunes & Antonio Carlos Caruso
Ronca, como o próprio título anuncia, fará um resgate biográfico e histórico do
médico sergipano, marcado pela oposição às ideias hegemônicas de seu tempo.
Apesar do reconhecimento de Bomfim como pensador originalmente vir das
áreas de história e sociologia, foi, no entanto, à Educação que Bomfim dedicou
sua vida profissional; pois creia que por meio dela se conseguiria romper com a
herança colonial e contribuir para a construção da nação brasileira, baseada
numa democracia efetiva, alicerçada na liberdade, na justiça e na igualdade,
como ver-se-á.

No quinto capítulo, Do consultório médico às escolas estatais vienenses:


Alfred Adler (1870-1937) e as “crianças dificilmente educáveis”, das autoras
Daniela Leal & Marina Massimi, resgatar-se-á a teoria e a prática do médico
austríaco Alfred Adler ao dedicar-se ao trabalho com a educação das “crianças
dificilmente educáveis” nas Clínicas de Orientação Infantil, criadas por ele em
Viena, dentro da escolas estatais, bem como sua preocupação em trabalhar
muito mais com os professores que ficavam diariamente com essas crianças, do

5 Traitement moral, hygiène et éducation des idiots et des autres enfants arriérés e Idiocy and its
Treatment by the Physiological Method, ambas as obras sem tradução para a Língua Portuguesa.
6 A troca da ordem entre as palavras educador e médico, não foi um equívoco; ela fará sentido quando da
leitura do capítulo.

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que especificamente com as crianças dentro de espaços clínicos.

O sexto capítulo, Educação e Psicologia em Maria Montessori: da


medicina à educação especial e à pedagogia geral, de Kaciana Nascimento da
Silveira Rosa & Mitsuko Aparecida Makino Antunes, trará, inicialmente, uma
apresentação de cada uma das autoras, descrevendo como a “médica-
educadora” Maria Montessori afetou-as de diferentes maneiras, para, em
seguida, descrever sobre seu legado. Uma mulher, uma educadora ou, como
muitos a chamam, uma cidadã do mundo, que se colocou em defesa da dignidade
e da justiça, principalmente ao se dedicar à educação das crianças, pautada em
uma sólida formação teórica e prática.

César Rota Júnior, Sérgio Dias Cirino & Laurent Gutierrez, no sétimo
capítulo, intitulado Théodore Simon (1873-1961) : un aliéniste au service de la
cause infantile/Théodore Simon (1873-1961): um psiquiatra a serviço da causa
infantil, abordam o trabalho de Theódore Simon dedicado ao comportamento
humano, com base em uma perspectiva fenomenológica, principalmente, sua
preocupação com o ensino das crianças com “atraso de inteligência” (deficiência
mental) e a formação de profissionais para trabalhar com estas.

Em, Henri Wallon: uma visão integradora da pessoa, oitavo capítulo


desta obra, Mariana Batista Vieira & Laurinda Ramalho de Almeida,
apresentarão a história do teórico a partir de sua atuação enquanto médico,
psicólogo, educador e militante, com o intuito de apresentar ao leitor “os
profundos conhecimentos sobre o sistema nervoso que alicerçaram sua teoria
de desenvolvimento, [até à] importância do atendimento respeitoso, cuidadoso,
comprometido com as crianças que atendia”, assim como compreender que para
Wallon somente era possível descobrir a si próprio, quando se compreendia o
homem e sua humanidade.

No nono capítulo, Ulysses Pernambucano e a Educação, as autoras


Fabiana Pereira, Silvana Matos & Janayna Emidio, ao se deparem com o
trabalho pioneiro do teórico humanista em Pernambuco, principalmente na
literatura antropológica e em outras ciências, apresentarão as contribuições
significativas do médico-educador à renovação do ensino em Pernambuco,
principalmente relacionado à educação especial. De acordo com as autoras, o
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

educador, médico, psicólogo e antropólogo foi de encontro a preceitos


hegemônicos, tendo defendido o não internamento e priorizando à educação.

O décimo e último capítulo, Arthur Ramos (1903-1949) e as “crianças


problemas” nas escolas do Rio de Janeiro, escrito por Andrea Soares Wuo &
Daniela Leal, resgatará além do pioneirismo do médico alagoano no campo da
psicanálise e da antropologia aplicadas à educação, seu compromisso ético,
científico e humanista com as chamadas “crianças problemas”; deixando de
lado, assim, o ostracismo que sua teoria foi condenada, para retomar a
importância de seu trabalho em um dos primeiros modelos de atendimento à
criança com dificuldades escolares.

Boa leitura!

Daniela Leal

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CAPÍTULO I

Jacob Rodrigues Pereira: primeiro educador de crianças surdas


na França
Kaciana Nascimento da Silveira Rosa

Figura 1: Jacob Rodrigues Pereira com menina surda


Fonte: Salgueiro, 20107

7 Descrição da foto: Jacob Rodrigues Pereira segurando as mãos de uma menina surda, como se estivesse
lhe ensinando os sinais de comunicação. A menina veste uma longa bata com rendas e laços, enquanto
Pereira usa colete, um casaco grosso e com enchimento nos ombros, gola da camisa para cima e os cabelos
amarrados em um rabo, com uma fita da cor do casaco. Por ser a foto em branco e preto, não há como
identificar as cores.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Jacob Rodrigues Pereira não deixou nada escrito sobre o trabalho que
desenvolveu com crianças surdas. As informações expostas neste capítulo são
oriundas da primeira biografia, que se tem conhecimento, até o momento, sobre o
estudioso, intitulada Jacob Rodrigues Pereire. Notice sur sa vie et ses travaux et
analyses raisonnée de sa méthode précédées de l’Eloge de cette méthode par
Buffon (1847), escrita por Edouard Séguin8, e da última biografia, “Jacob
Rodrigues Pereira: homem de bem, judeu português do séc. XVIII, primeiro
reeducador de crianças surdas e mudas em França” (2010), escrita pelo médico
português Emílio Eduardo Guerra Salgueiro.

Antes de delinearmos o trabalho pedagógico de Jacob Rodrigues Pereira


com crianças surdas, traz-se, inicialmente, a história de sua família e os motivos
que os levaram a sair, em um primeiro momento, de Portugal e, em seguida, da
Espanha e migrarem para a França em 1741. A história de perseguição da família
de Pereira deve-se ao fato de ser uma família judia que viveu no período da
Inquisição portuguesa e espanhola. Nascido na Espanha, e batizado como
Francisco António Rodrigues Pereira, apesar de ter passado os primeiros anos
como “cristão-novo”, assumiu, aos vinte e seis anos, o judaísmo, passando a se
chamar Jacob Rodrigues Pereira.

A Família de Jacob Rodrigues Pereira e o judaísmo

Que os judeus se saiam destes reinos, e não morem, nem estem neles.9

O decreto real “Que os judeus se saiam destes reinos, e não morem, nem
estem [estejam, fiquem] neles”, de D. Manuel I, em 1496, mostrou a
intolerância, na época, dos portugueses cristãos católicos com os portugueses
judeus. D. Manuel justificou tal decisão de expulsão, alegando que por ser rei
tem mais obrigações do que qualquer outro cristão fiel à fé católica e, assim, não
se poderia mais tolerar o “ódio” dos judeus à fé católica de Cristo. Para Salgueiro

8 Professor e médico, nascido em 1812 e falecido em 1880, que fundou a primeira escola privada do mundo
para crianças e jovens com deficiência intelectual. Séguin conseguiu aliar o conhecimento médico ao
enfoque pedagógico, ao considerar que dar oportunidades de escolarização às pessoas com deficiência
intelectual seria um dos passos em direção a uma sociedade mais perfeita.
9Édito de expulsão dos judeus do rei D. Manuel I (1469-1521), decretado em Muge, em 4 de dezembro de
1496. Fonte: Originais da Câmara de Évora, Lvº73, “3º, Fº113, 1496. Arquivo Distrital de Évora.

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(2010), apesar de não deixar claro que “ódio” seria esse, o rei não tomou essa
decisão sozinho. D. Manuel apoiou-se nos seus conselheiros e letrados (a maioria
eclesiástica) para determinar que todos os judeus e judias, de qualquer idade,
tivessem que sair dos reinos, no prazo de dez meses, incluindo os muitos
milhares de judeus espanhóis, acolhidos três anos antes pelo próprio rei.

No entanto, D. Manuel sabia o valor e a capacidade de resistência e de


determinação dos judeus. Na época, os judeus eram importantes no campo da
economia e das finanças, além de contribuir para a renovação da ciência, como
a cosmografia, por exemplo. O rei temia que o rigor ético e religioso dos judeus
pudesse levar seus sucessores a “cair em tentação” e, de novo, ainda que
temporariamente, readmitissem os judeus na sociedade portuguesa, como
acontecera com D. João II e com ele próprio, em 1492, com os judeus expulsos
da Espanha. Nas Ordenações Manuelinas10, os judeus poderiam deixar os reinos
com todas as suas economias e com as dívidas pagas.

Salgueiro (2010) ressalta que, curiosamente, o édito de expulsão dos


judeus de Portugal surgiu quarenta anos antes do estabelecimento da Santa
Inquisição, em 1536, já com D. João III, enquanto, na Espanha, ocorrera o
inverso. O édito de expulsão dos judeus, determinado pelos reis católicos – D.
Fernando e D. Isabel –, em Granada, data de 1492, quase 14 anos depois da
implantação da Inquisição, em 1478. Para Salgueiro, o édito dos reis católicos
espanhóis, de 1492, de alguma forma, serviu de inspiração ou de modelo para o
Édito de D. Manuel.

O estilo dos reis Católicos é mais trabalhado e os argumentos que avançam


parecem mais consistentes e estão mais bem fundamentados do que os de
D. Manuel I, embora a mensagem essencial seja a mesma: tem que se estar
muito atento ao potencial de destruição para o cristianismo – e mesmo
para a própria matriz das sociedades espanhola e portuguesa – que o
judaísmo representa, pois que, postos em contacto um com o outro, o
cristianismo e o judaísmo, este último revela-se perigosamente atractivo
para o outro. (Salgueiro, 2010, p. 32).

D. Fernando e D. Isabel deram apenas três meses de prazo para os judeus


saírem da Espanha, enquanto D. Manuel I concedeu dez meses. Contudo, D.

10Ordenações Manuelinas (1513). Reprodução fac-símile da edição de Valentim Fernandes (Lisboa 1512-
1513). In: Salgueiro, E. E. G. (2010). Jacob Rodrigues Pereira: Homem de bem, judeu português do séc.
XVIII, primeiro reeducador de crianças surdas e mudas em França. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Manuel usou de grave malícia e da obtenção de um “efeito surpresa”, para


atingir os judeus no que eles tinham de mais valioso: os filhos. Ordenou a
separação forçada entre pais e filhos, impôs um verdadeiro sequestro ou rapto
dos filhos dos judeus, quatro meses após o édito, faltando ainda seis meses para
o fim do prazo decretado. D. Manuel pretenderia “salvar as almas” das crianças
dos efeitos do judaísmo e, talvez, segundo Salgueiro (2010), obrigar os judeus a
ficar, os forçando ao batismo em massa e à conversão em “cristãos-novos”:
“Tudo parece, pois, indicar, que D. Manuel queria que os judeus ficassem no
reino, desde que ‘limpos’ do crime de serem judeus” (p. 36).

Tornar-se “cristão-novo” significava aceitar os preceitos do catolicismo,


enquanto os judeus que se recusassem a tal conversão passariam a não ter
direitos, nem pátria. No entanto, ainda no reinado de D. Manuel e, mais tarde,
no de D. João III, levantaram-se suspeitas sobre falsas conversões. Alguns
judeus, denominados “cripto-judeus”, para sobreviverem em Portugal,
convertiam-se apenas na aparência e mantinham a crença judaica, praticando-
a na clandestinidade. Foi por isso que D. João III pediu ajuda à Inquisição. O rei,
na época, queria distinguir os verdadeiros convertidos à fé cristã católica dos
“cripto-judeus”, considerados a encarnação do mal, e que deveriam, por isso, ser
extirpados (Salgueiro, 2010). Para Souza (2011), por 285 anos, entre 1536 e
1821, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Portugal foi responsável pela
perseguição de mais de 40 mil pessoas em todo o império luso, que compreendia
terras da metrópole, ilhas do Atlântico (Açores, Madeira, Cabo Verde, São
Tomé), várias regiões da África (a costa ocidental, do Marrocos ao Cabo da Boa
Esperança, além de Angola e Moçambique), o Brasil, localidades na Índia (Goa,
Cochim) e no extremo Oriente (Macau, Malaca, Nagasaki). Homens e mulheres
foram investigados e condenados por crimes contra a fé (judaísmo,
maometismo, protestantismo, molinismo, deísmo, libertinismo, críticas aos
dogmas etc.) ou contra os costumes e a moral cristã (bigamia, sodomia,
feitiçaria, proposições heréticas). As sentenças, em sua maioria, eram lidas
publicamente em autos de fé e variavam de acordo com o grau de gravidade
imputado pelos juízes inquisidores aos delitos cometidos. Cerca de dois mil
indivíduos foram condenados à morte na fogueira e um número muito maior

17
sofreu duras penas como a obrigação de ouvir missas, o açoite, o degredo, o
confisco dos bens, o uso de hábito penitencial, a prisão perpétua, entre outras.

Assim, com a instituição da Inquisição em Portugal, no ano de 1536,


muitas famílias judias foram perseguidas por não aceitarem a conversão ao
catolicismo, acusadas de judaísmo. A família de Jacob Rodrigues Pereira foi
uma delas.

De Francisco António a Jacob Rodrigues Pereira

Jacob Rodrigues Pereira (1715-1780), conhecido na história também


como Perèire, nasceu em 11 de abril de 1715, em Berlanga (Espanha)11,
considerada, na época, uma vila com certa importância regional na província de
Badajoz. Batizado como Francisco António, foi o sétimo filho de uma família de
judeus, na condição cristãos novos.

Pereira, apesar de ter nascido na Espanha, é considerado português, como


afirma Eugène Pereire, seu bisneto, em uma carta dirigida a Ferreira Desdado,
em 1908:

Quanto à questão da nacionalidade do primeiro professor dos surdos-


mudos em França, posso certificar-vos que ele era português. De acordo
com os documentos autênticos que possuo, Jacob Pereire nasceu
efectivamente em Espanha, como dizeis – em Berlanga, na Estremadura –
mas não podemos ignorar que o seu pai e a sua mãe tinham ambos nascido
em Chacim, (perto de Bragança), onde sua família se tinha fixado desde o
fim do século XV; que aí tiveram vários filhos antes de entrarem em
Espanha à roda de 1698; e que o pai de Jacob Pereira vem mesmo morrer
em Portugal, na Moita, em 1735. Os pais do meu bisavô só passaram uns
anos em Espanha e não perderam a sua nacionalidade portuguesa durante
a sua permanência no estrangeiro. (como citado em Salgueiro, 2010, p.
120).

Em Portugal, após a instituição da Santa Inquisição, todas as famílias


cristãs, “cristãs-novas” e “cripto-judias” procuravam mostrar uma aparência de
observância dos costumes e das práticas católicas, no intuito de fazerem com
que os “Visitadores da Inquisição12” desistissem da perseguição.

11 Berlanga era uma povoação importante desde a época romana, pelas suas minas de galena argentífera,
destaque mineiro que se mantém ao longo dos séculos, a ponto do rei Filipe II, da Espanha, ter publicado
algumas ordenações com que pretendeu restringir essa atividade a favor da agricultura (Salgueiro, 2010).
12Os “Visitadores da Inquisição”, pelas pompas que os acompanhavam e pela autoridade que possuíam
para ditar sentenças, representavam uma figura de poder; no entanto, estes poderiam ter o poder
questionado pelas elites locais, ou seja, moradores considerados alvos da ação dos visitadores poderiam
encaminhar à Inquisição denúncias de “abusos” do agente inquisitorial; em sentido contrário, os
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Segundo Salgueiro (2010), esse clima de insegurança dos “cripto-judeus”


em Portugal ajuda-nos a entender o motivo da emigração de muitas famílias
judias, entre elas, a família de Jacob Rodrigues Pereira para localidades mais
seguras.

João Lopes Dias e Leonor Henrique Pereira, que eram primos distantes,
casaram-se em 18 de maio de 1690. Viviam em Chacim, numa casa perto da dos
pais de Leonor, tidos como “cristão-novos”.

João Lopes era mercador de profissão e não tinha uma boa relação com
seus sogros. Tal fato o levou a separar-se de Leonor por dois anos, período em
que ela viveu na casa dos pais, indo para a Espanha e adquirindo, no regresso, a
alcunha de o Castilho.

Com o retorno de João Lopes, o casal reconciliou-se e foi viver longe da


casa dos pais de Leonor. Nesse período, nasceram duas filhas – Mariana, em
1696, e Branca, batizada em 1698, figurando o nome do pai na certidão como
João Castilho.

Em 1698, João Lopes, Leonor Pereira e as filhas, ainda pequenas,


deixaram Chacim e foram para Lisboa. A ideia inicial era de embarcarem num
barco para Livorno13, na Itália, para começarem uma vida nova, sem riscos por
serem judeus.

Em 13 de abril de 1699, um grupo de quarenta e oito portugueses


embarcou no barco genovês “N. Snra de La Coronada”, com destino ao porto de
Livorno, na Itália. Após três dias de viagem, o Comissário do porto visitou e
inspecionou o barco devido a “informações” que obteve, de que este levaria
fugitivos a Livorno. Todos os passageiros foram presos. Eram vinte nove adultos

visitadores também poderiam ser alvos de denúncias por “complacência” (permitir que seus
acompanhantes viajassem em companhia de mulheres jovens, manter contatos amistosos com “cristãos-
novos”, conversar com mulheres mundanas etc.). A visitação inquisitorial também oferecia, a seus
agentes, a oportunidade de realização de negócios privados: visitadores aproveitavam as viagens a
diferentes partes do reino luso para adquirir escravos, ouro e outras mercadorias de valor, o que implicava
o aprofundamento dos contatos com mercadores que, não raro, eram cristãos-novos (Pereira, 2011).
13 Livorno era considerada como um porto seguro de refúgio, acolhimento e abrigo para os judeus
portugueses forçados a viverem o judaísmo na clandestinidade. Era a terra de recomeço para os “cripto-
judeus” que se sentissem em risco de poderem ser descobertos e perseguidos pela sua crença de origem,
após o édito de expulsão de D. Manuel I, em 1496 (Salgueiro, 2010).

19
– treze homens e dezesseis mulheres – e dezenove crianças – dez meninos e nove
meninas – de todas as idades, incluindo três bebês.

A Inquisição de Sevilha confirmou a prisão e a condição de “cripto-judeus”


dos passageiros, ficando detidos no Cárcere Real de Cádiz. Entre os presos,
estavam João Lopes Dias, Leonor Henriques Pereira, que estava grávida, e as
duas filhas, Mariana e Branca. Leonor deu à luz, em 2 de julho de 1699, a um
menino, o terceiro filho do casal, que recebeu o nome de Paulino, passando de 48
para 49 o número de passageiros presos.

Salgueiro (2010) afirma que a referência mais segura que se tem, nesse
período, do casal – João Dias e Leonor Pereira – data de 30 de outubro de 1707
e surge por meio de um registro de batismo de uma nova filha nascida em
Llerena e que recebera o nome de Beatriz Maria. Para o autor, a surpresa maior
desse registro está na identificação de Beatriz: “(...) hija de Juan Lopez y Leonor
Enriquez su mujer residentes em La carcel de la penitencia del Santo Oficio de
la inquisición desta dicha ciudad por quien es reconciliado el dicho Juan Lopez
y la dicha Leonor Enriquez (...)”14. Conclui-se, portanto, que, passados oito anos,
os futuros pais de Pereira e seus irmãos continuavam presos pela Inquisição,
agora, de Llerena. Contudo, curiosamente, as condições em que se encontravam
permitiram ao casal condições de gerar uma filha em cárcere.

Dois anos após o nascimento de Beatriz, em 1709, a família de Pereira é


posta em liberdade. Sem recursos financeiros, decidiram permanecer na
Espanha, distante do mar. Tal permanência serviu, segundo Salgueiro (2010),
para mostrar publicamente o arrependimento profundo por tudo o que tinham
feito contra a Igreja Católica, além de demonstrar que não tinham nenhuma
vontade de se aproximar de um porto de mar, nem de tentar uma nova fuga para
um lugar em que pudessem praticar o judaísmo.

O quinto filho, Manuel, nasceu em 1710, quando a família já estava em


Berlanga. Em 1713, ainda em Berlanga, nasceu Isabel.

14Archivo Parroquial de Llerena. Libro 10 de Bautismo. Parroquia de la Granada. Folio 626. In: Salgueiro,
E. E. G. (2010). Jacob Rodrigues Pereira: Homem de bem, judeu português do séc. XVIII, primeiro
reeducador de crianças surdas e mudas em França. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
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Após o nascimento de Isabel, em 11 de abril de 1715, nasceu Francisco


António, o sétimo filho do casal, que viria a ser, anos mais tarde, Jacob
Rodrigues Pereira. Nesse período, seus pais ainda se comportavam como
“cristãos-novos” e procuravam integrar-se à população cristã. No entanto, a
perseguição da família de Pereira pela Inquisição continuava. Seu irmão,
Paulino, quando completara 24 anos, fora preso e sentenciado pelos Autos da Fé
do Santo Ofício; com isso, para Salgueiro (2010), tudo parece indicar que a ida
da família para a França, em 1741, deu-se pela insistência de Francisco António,
na época com 26 anos, com o intuito de viverem tranquilamente sua condição
de origem sem as sombras da Inquisição, tanto portuguesa, quanto espanhola.
Esta é uma das hipóteses que apontam ter sido este o motivo que fez Francisco
António escolher Bordéus, na França, cidade que já conhecia e onde existia uma
importante comunidade de judeus vindos de Portugal e Espanha, para residir.
Foram com ele: a mãe, Leonor Henriques Pereira, e as duas irmãs mais velhas,
Mariana e Branca. Não há confirmação de que Isabel, na época com vinte e oito
anos, e Luís (que, mais tarde, mudou o nome para David), o irmão mais novo,
tenham ido com Francisco nesse momento.

O irmão Paulino, que permanecera preso pela Inquisição de 1724 a 1726,


também foi para Bordéus logo em seguida. A irmã Beatriz casou-se e fixou-se na
Espanha. Manuel, o quinto irmão, casou-se com uma espanhola e permaneceu
em Cádis, escolhendo a Espanha como sua pátria definitiva.

Sobre Isabel, como dito anteriormente, não há comprovação de sua ida


para Bordéus com Francisco António; as versões existentes na história sobre
sua vida são bastante contraditórias. Alguns acreditam que Isabel teria sido a
irmã surda citada por Pessotti (1984); outros, como Salgueiro (2010),
acreditam que ela foi para Bordéus, onde se casou e constituiu família.

Em relação ao oitavo irmão, André, na época com vinte e quatro anos,


pouco se sabe a seu respeito. De acordo com Salgueiro (2010), sabe-se que se
casou em La Rochelle e que teria tido uma filha. Desconhece-se, no entanto,
detalhes de sua possível ida para a França.

Sobre o irmão mais novo – Luis –, acredita-se que tenha migrado para os
Estados Unidos e, em seguida, tenha ido encontrar-se com a família em Bordéus,

21
em 1746, ajudando o irmão em seu trabalho com as crianças surdas, tornando-
se seu assistente.

Diante de todos esses fatos, percebe-se que Bordéus acabou tornando-se


uma referência muito importante para a família de Pereira. Foi na França que
Francisco António assumiu plenamente sua condição de judeu – sendo
circuncidado em 8 de novembro de 1741 – e passou a se chamar Jacob
Rodrigues Pereira.

Jacob Rodrigues Pereira e a educação de crianças surdas

Como já mencionado, em 1741, com vinte e seis anos, Jacob Pereira


decidiu mudar-se para Bordéus, na França, cidade que já conhecia e onde havia
uma importante comunidade de judeus vindos de Portugal e de Espanha. Em
Bordéus, assumiu plenamente a sua condição de judeu, abandonando o nome de
batismo Francisco António Rodrigues Pereira e tornando-se Jacob Rodrigues
Pereira.

Segundo Salgueiro (2010), as qualidades pessoais de Pereira – contato


fácil com todos, seriedade e empenho sem limites em tudo o que se propunha a
fazer – conquistaram a confiança da população portuguesa judia em Bordéus ao
ponto de considerá-lo, anos mais tarde, o representante dos interesses dessa
população em Paris. No entanto, como afirma Salgueiro (2010), durante os três
anos que decorreram até iniciar seu primeiro trabalho de reeducação pouco se
sabe sobre a vida de Jacob e da família em Bordéus.

Pessotti (1984) afirma que a preocupação de Pereira em desenvolver um


método para ensinar linguagem a surdos surgiu como um gesto de amor por uma
irmã mais nova nascida surda. Segundo o autor, a observação original e
genialmente explorada que desencadeou sua pesquisa teria sido a de que,
enquanto acalentada e abraçada pela mãe, a irmã emitia sons vocais, mas
quando acomodada no berço cessava qualquer vocalização.

Salgueiro (2010), após anos de pesquisa sobre a vida de Jacob Pereira,


aponta que não foi possível comprovar, ainda, a existência dessa irmã surda,
por isso não se pode concluir que o interesse de Pereira pela educação de
crianças surdas tenha surgido por causa de uma irmã nessas circunstâncias.
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(...) não é claro qual seria esta irmã, se a Mariana, a irmã mais velha,
nascida em 1696 ainda em Chacim, Portugal, se a Isabel, já nascida em
Berlanga, em Espanha, em 1713.
Não se encontra qualquer referência documental de que a Mariana tivesse
este problema; a irmã Branca, a 2ª filha, nascida em Chacim em 1688, terá
sido quem, mais tarde, acabou por ir para Paris ajudar o irmão, sobretudo
no seu trabalho com crianças do sexo feminino, sendo pouco provável que
não ouvisse nem falasse; a irmã Beatriz, a 3ª menina e 4ª filha, nascida em
Llerena em 1707, casa e constitui família em Espanha onde fica a viver,
nada constando sobre uma eventual surdês de nascença. Também não é
muito natural que se tratasse da irmã Isabel, que terá casado e tido filhos.
(p. 139).

Diante disso, o que se pode afirmar, segundo Salgueiro (2010), é que aos
19 anos de idade, em 1734, Jacob Pereira – ainda Francisco António – procurou
trabalhos sobre métodos de educar surdos, aproximando-se, por meio de
correspondências, de Jean Barbot, Presidente Perpétuo da Académie Royale des
Belles-Lettres, Sciences et Arts de Bordéus. Jean Barbot ficou admirado com os
conhecimentos que o jovem Jacob Pereira possuía sobre a surdez e recomendou-
lhe a leitura de Juan Bonet (1620), Willian Holder (1670) e Johan Conrad
Amman (1700).

Uma vez que quereis, Monsieur, que vos envie o que encontrar nos meus
documentos sobre os surdos e mudos de nascença, irei obedecer-vos (com
uma longa lista das obras consultadas sobre esta questão). Encontrei nos
meus documentos muitas outras coisas sobre os surdos ou sobre os mudos,
mas não dizem respeito aos que são de nascença.
Eis, Monsieur, os materiais grosseiros que encontrei nos meus
documentos; não são mais do que uma tabela, mas para um entendedor
como vós, basta uma meia palavra, e ultrapassareis facilmente os que vos
precederam.
De Bordéus, 23 de agosto de 1734.
Assinado, Barbot.
(como citado em Séguin, 1847, p. 17)15.

Infelizmente, Séguin, que foi o único dos autores consultados para esta
pesquisa a ter acesso ao conteúdo dessa carta, não transcreveu a lista de obras
indicadas na carta de Barbot. Assim, pouco se pode afirmar sobre quais obras

15Puisque vous voulez, Monsieur, que je vous envoie ce que je trouve dans mes recueils sur les sourds et
muets de naissance, vous allez être obéi (suit une longue nomenclature d’ouvrages à consulter sur cette
question). Je trouve dans mes recueils plusieurs autres choses sur les sourds ou muets, mais il ne s’agit
pas de ceux qui le sont de naissance. Voilà, Monsieur, les matériaux grossiers que j’ai trouvés dans mes
recueils; ce n’est qu’une table, mais, d un entendeur comme vous , il ne faut qu’un demi—mot, et vous
surpasserez aisément ceux qui vous ont précédé. De Bordeaux, ce 23 aoust 1734. Signé, Barbot.

23
foram consultadas e o porquê do interesse de Pereira pelos trabalhos dos
precursores espanhóis do ensino de surdos16.

No entanto, em relação ao nível de conhecimento de Pereira sobre a


surdez, Salgueiro (2010) mostra a forma como Pereira categorizou os níveis de
surdez para auxiliá-lo na avaliação da acuidade auditiva de seus alunos. O
quadro abaixo foi elaborado para visualizar melhor essa categorização, a partir
de dados referenciados em Salgueiro (2010).

16 Salgueiro (2010) lista alguns trabalhos da segunda metade do séc. XVII e início do séc. XVIII, sobre a
educação de pessoas surdas, na Europa: na Inglaterra, Philocophus, or the Deafe and Dumbe Man’s Friend,
1648 – primeiro livro sobre surdez escrito por um inglês – de John Bulwer; Grammatica linguae Aglicanae
cui praefigitur de loquela sive sonorum formationes, 1653, de John Wallis; Elements os Speech, with na
appendix concerning persons that are deaf and dumb, 1669, de William Holder; Didascalocophus, or the
Deaf and Dumb Man´s Discourse, 1680, de George Dalgarno; e Escola para Surdos em Edimburgo, 1760,
de Thomas Braidwood. Na Holanda, The Deaf and Dumb Man´s Discourse, 1656, de Anthony Deusinge; e
Surdus loquens, 1692, e Surdus loquens sive dissertatio de loquela, 1700, de Johan Conrad Amman. Na
Alemanha, Alphabeti vere naturalis Hebraici, 1667, de Francis Van Helmont. E, por fim, na Espanha,
Teatro crítico universal, 1730, de Jerónimo Feijóo y Montenegro. Salgueiro acredita que este último foi
lido por Francisco António ainda em Cádis.
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Nível Características
ü Os surdos absolutos, ou da primeira espécie, são menos frequentes;
ü É possível que nunca os tenha observado; mas parece-me mais provável que os tenha confundido
1ª Espécie ou Surdos com os da segunda classe, com os quais são parecidos sob alguns aspectos;
Absolutos
ü A privação total da audição não seria suficiente para impedir a percepção de alguns ruídos por
uma espécie de tato que, de algum modo, lhes substitui a audição e que, sem a sagacidade que só uma
longa experiência permite adquirir, é fácil de ser tomado como o próprio ouvir.
ü São incomparavelmente mais numerosos que os das duas outras espécies;
ü Inclui todos os que têm o órgão da audição mais ou menos acessível a diversas espécies de ruídos
2ª Espécie e são capazes de conhecer e de comparar, em certos casos, o grau da força e algumas outras qualidades
destes ruídos que, com frequência, ferem o seu ouvido, mas que, apesar disso, não conseguem perceber
nenhum dos sons que compõem a palavra, nem mesmo chegar a formar a menor ideia.
ü São os que não somente ouvem alguns ruídos de maior ou menor intensidade, mas, também, que
conseguem distinguir os sons de algumas vogais, ou pelo menos formarem uma ideia que os ajude a
distinguir estes sons, desde que sejam pronunciados com as precauções indicadas;
ü Esta classe seria a mais numerosa de todas se só se considerasse as crianças ainda ao peito até
3ª Espécie à idade aproximada de três anos, devido, sobretudo, a esta substância mucilaginosa que recobre as
paredes do canal interno do ouvido desde que vêm ao mundo, e fica lá colada em um tempo mais ou
menos longo; mas, no decurso destes três primeiros anos, muitas destas crianças morrem de doenças
que causam a sua surdez, e muitos se curam, de modo que não se encontram mais surdos desta espécie
entre os adultos.
Quadro 01: Níveis de Surdez segundo Pereira
Fonte: Salgueiro, 2010
Feita a avaliação do nível de surdez do aluno, Pereira traçava um plano
de educação.

Nos anos de 1744 e 1745, Jacob Pereira residiu em La Rochelle – a cerca


de duzentos quilômetros de Bordéus – para educar um menino surdo de 13 anos,
Aaron de Beaumarim. Aaron era de família judia e, desde o início, estabeleceu
uma boa relação com Jacob Pereira. Após alguns meses de trabalho, com
resultados positivos, foi pedido a Jacob Pereira que mostrasse em público o que
havia conseguido fazer com o menino (Salgueiro, 2010). Assim, no dia 25 de
outubro de 1745, na Academie Royalle des Belles-Lettres de La Rochelle, Jacob
Pereira demonstrou a todos, por meio de Aaron, o sucesso de seu método. Aaron
conseguira, com a ajuda de seu professor, conhecer e nomear as letras do
alfabeto, além de articular algumas frases (Séguin, 1847).

Dez dias após a apresentação pública do garoto Aaron, em 5 de novembro


de 1745, Pereira insistiu para que os resultados de seu trabalho ficassem
registrados em “ato notarial”, com a presença de sete testemunhas. De acordo
com Salgueiro (2010), isso indica que Pereira pretendia proteger-se de
acusações de “charlatanismo”, após mostrar os avanços evidentes de Aaron.

Nessas apresentações, estava presente M. d’Azy d’Étavigny, homem rico


e influente de La Rochelle, pai de uma criança surda. Segundo Séguin (1847),
esse filho já teria sido visto por todos os médicos célebres da Europa, sem ter
encontrado uma solução que fizesse seu filho aprender a comunicar-se. No
entanto, apesar de M. d’Azy d’Étavigny ter ficado entusiasmado com o que viu e
ouviu, preferiu adquirir o livro de Amman17, para economizar. O filho de M.
d’Azy d’Étavigny, desde 4 de outubro de 1743, vivia no internato do colégio de
Beaumont-en-Auge; após adquirir o livro, M. d’Azy d’Étavigny pediu ao prior
dom Cazeaux e ao beneditino dom Bailleul, reitor do colégio, que com a ajuda do
livro “(...) par eux, être fait au coût d’une éducation ordinaire, ce que Pereire
avait fait á La Rochelle”18 (Séguin, 1847, p. 21).

17Johan Conrad Amman escreveu dois livros sobre a educação de crianças surdas - Surdus loquens, em
1692, e Surdus loquens sive dissertatio de loquela, em 1700 -, no entanto, Séguin não cita o nome do livro
adquirido por M. d’ Azy d’Étavigny.
18“(...) lhe fizesse, pelo preço de uma educação como a de todos os outros, o que Pereira fizera em La
Rochelle”.
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Tudo leva a acreditar que as tentativas de escolarizar o filho de M. d’Azy


d’Étavigny não funcionaram, mesmo com a utilização da bibliografia sobre o
assunto disponível até aquele momento. Isso porque, após um ano de
experiências fracassadas, os dois beneditinos aconselharam M. d’Azy
d’Étavigny a confiar a educação do seu filho a Pereira, que, segundo eles, seria
“o único homem capaz de ajudá-lo19” (Séguin, 1847, p. 22). Assim, no dia 13 de
junho de 1746, foi assinada uma convenção entre Jacob Rodrigues Pereira e M.
d’Azy d’Étavigny sobre a maneira como iria ser desenvolvida a educação do
jovem.

Ficou ontem convencionado entre M. d’ Azy, tesoureiro real de cinco regiões


de impostos e eu, J. R. Pereire, que ensinarei ao Senhor seu filho, surdo e
mudo de nascença, a ler e pronunciar o francês, e para, além disso, a
conceber os nomes das coisas visíveis mais vulgares e necessárias à vida;
colocando-o em estado de saber pedi-las pela palavra sempre que desejar;
sobre o que me foi fixado o preço de 3.000 libras pelo dito Senhor. As 3.000
libras acima referidas deverão ser-me entregues em terços: o primeiro,
quando M. d’ Azy filho estiver em estado de dizer algumas palavras, de que
o tenha adquirido ao mesmo tempo a inteligência; o segundo, quando souber
ler, pronunciar e conceber a maior parte das coisas visíveis e vulgares, as
quais lhes serão mostradas, por alguém, de um livro; e a terceira, quando
tiver completado na sua totalidade o meu compromisso.
Ficou também convencionado:
1º que me será permitido tomar todas as precauções necessárias para
conservar o segredo da minha arte;
2º que não me será imputado como incompetência de M. d’ Azy filho cometa
erros na pronúncia de algumas sílabas, que umas vezes se pronunciem de
uma maneira, outras vezes de outra;
3º que serei obrigado a ficar em La Rochelle durante um ano; mas que depois
do dito ano, ainda que a educação não tenha ficado terminada, ser-me-á
permitido ira a Paris, onde M. d’ Azy deverá enviar-me M. seu filho para
continuar.
4º para que fique bem clara extensão do meu compromisso quanto às
palavras, em relação às quais para além da pronúncia, assumo a obrigação
de ensinar M. d’ Azy filho a inteligência; ficou também convencionado que
serão as palavras contidas e indicadas na lista seguinte, das quais ele se
servirá unicamente no sentido principal e mais simples.
Sobre emprego que os artigos devem ter, não respondo pela sua exatidão,
pelo contrário. Declaro que M. d’ Azy aí cometerá numerosas faltas, seja
utilizando algumas vezes o masculino no lugar do feminino, seja usando-os
no nominativo em vez de num outro caso qualquer, seja ainda enganando-
se entre os números no singular e no plural.
Sobre os nomes, M. d’ Azy filho terá a inteligência dos que denotam coisas
reais, visíveis, as mais necessárias à vida, e as mais comuns em serem
nomeadas, como: o pão, o vinho, a carne, a água, a casa, a cama, a mesa, a
rua, o jardim, a carroça.
Quanto aos adjetivos, conceberá os mais úteis, como: grande, pequeno, bom,
mau, negro, branco, alto, baixo, etc., etc.

19 “au seul homme qui eût du en être charge”.

27
Quanto aos particípios, compreenderá também alguns dos que podem ser
tomados como adjetivos verdadeiros, tais como, por exemplo: morto,
perdido, etc.
Sobre os nomes dos números, M. d’ Azy filho terá alguns conhecimentos
através dos algarismos ordinários; a sua ciência será muito mais limitada:
1º para os pronunciar estando escritos; 2º para os compreender estando
escritos por letras; 3º para se exprimir sobre este fato, de outro modo que
não seja por algarismo ou por sinais.
Sobre os pronomes, conhecerá os demonstrativos: este, isto, aquilo, assim
como os pessoais: meu, teu, ele, ela, eu, tu, ele, vós, eles, elas, embora com
mais frequência ele se servirá do meu, teu, dele, do que, do eu, tu, ele.
Quanto aos verbos, terá a inteligência dos infinitos simples, daqueles de que
nos sirvamos mais habitualmente, como: comer, jantar, dormir, passear,
subir, etc.
No que diz respeito aos advérbios, às preposições e às conjunções, é mais
difícil dar uma ideia justa. No entanto, proponho-me fazer compreender a
M. d’ Azy todas as dicções que se vão seguir: sim, não, muito, pouco, menos,
mais, demasiado, suficiente, um pouco, nada, bem, mal, rápido, devagar,
pouco a pouco, em frente de, atrás de, por cima de, por baixo de, aqui, acolá,
noutro lugar, onde, longe, hoje, esta manhã, esta noite, ontem, amanhã,
ontem de manhã, amanhã à noite, antes de ontem, depois de amanhã, a esta
hora, neste momento, em breve, em primeiro lugar, mais logo, de manhã
cedo, sempre, nunca, ao lado, à direita, à esquerda, à moda de, do meu jeito,
depois, quando, porquê, como é que, quantas, uma vez, duas vezes, etc. com,
em casa de, contra, dentro, desde, e, nós, nem, como, quer dizer, etc.
Quanto ao artigo 3 do presente compromisso, desde que não venha a ser
necessário prolongar o prazo de um ano que eu fixei mais do que por dois ou
três meses para aperfeiçoar a minha obra, submeto-me e consinto que assim
seja.
Assinado, PEREIRE, e escrito pela sua mão.
As ditas convenções transcritas em duplicado, de que um dos exemplares
foi entregue ao M. J. R. Pereire, e guardei o outro comigo.
Em La Rochelle, 14 de junho de 1746.
Assinado, D’ AZY D’ÉTAVIGNY, e escrito pela sua mão.
(Séguin, 1847, pp. 23-27).

Em julho de 1747, o Jounal des Sçavants20 disse que Pereira foi a


Beaumont-em-Auge em dia 13 de julho de 1746, para cumprir o contrato feito
com M. d’Azy d’Étavigny pai, contradizendo o artigo 3º da primeira convenção.
Nessa primeira convenção, Jacob Pereira comprometia-se a ficar em La
Rochelle durante um ano. Pereira acabou ficando, segundo o Journal, três anos
em Beaumont-em-Auge, intercalando diversas idas a Paris, onde passou a
residir definitivamente em abril de 1749 (Salgueiro, 2010).

20Le Journal de Sçavants [Journal des Savants] foi fundado em 1665 para noticiar “o que se passa de novo
na República das letras”, em especial das “novas descobertas que se fazem nas artes e nas ciências”
(Salgueiro, 2010, p. 176). Teria sido o primeiro periódico dedicado à cultura literária, artística e científica,
numa palavra, à cultura ‘savant’, e, de início, de periodicidade semanal. Em 1701, passou a ter o patrocínio
real e das instituições ‘savantes’ da monarquia francesa (Academia e Biblioteca do Rei) e, de algum modo,
antecipa a Encyclopédie, ou Dictionaire des Sciences, des Arts, des Métiers, que veio a ser publicada a
partir de 1751, coordenada por M. Diderot, da Academia Real das Ciências & Belas-Letras da Prússia e por
M. d’Allembert, da Academia Real das Ciências de Paris e da Sociedade Real de Londres.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Em julho 1747, o Le Journal de Sçavants, publicou um artigo intilulado


Observations remarquables sur deux enfants sourds et muets de naissance, à
qui l’on appris à articuler des sons21, no qual foram apresentados os processos
educativos de Aaron de Beaumarin e de M. d’Azy d’Étavigny Filho.

M. Jacob Rodrigues Pereire, Espanhol de origem, tendo a sua residência


habitual em Bordéus, onde a família se instalou, é o Autor deste prodígio.
Começou por dar em La Rochelle um ensaio da sua capacidade neste
gênero. Tendo criado amizade com um jovem de treze anos de família
judia, chamado Aaron Beaumarin, filho de Israel Beaumarim, Negociante,
e de Rachel Vidal, domiciliados em La Rochelle, surdo e mudo de nascença,
como consta de um ato notarial datado de 5 de novembro de 1745,
ensinou-lhe numa centena de lições, que tinha sido interrompidas pelo
trabalho manual em que o aluno empregava uma grande parte de seu
tempo, a conhecer e a nomear perante certos sinais a maior parte das
letras consoantes e vogais, e mesmo a articular muitas palavras, tais
como, Madame, chapéu, navio, o que é que quer? e etc. esta verdade é
notória na Cidade de La Rochelle, e constatado por provas reiteradas,
tanto na Sala dos Jesuítas destinada às lições de Hidrografia, como em
muitos outros lugares, na presença de pessoas respeitáveis, pouco
crédulas, e que se tinham precavido com uma justo desconfiança contra os
malabarismos e mesmo contra tudo que tenha a ver com o maravilhoso.
M. d’ Azy de Tavigny, tesoureiro real de cinco regiões de impostos em La
Rochelle, tomou mais interessante do que qualquer oura pessoa pelo
sucesso de M. Pereire; a razão é bem palpável. Ele tem a infelicidade de ter
um filho único surdo e mudo de nascença, cuja situação tinha sido dada
como desesperada por tudo o que há de hábeis Médicos e Cirurgiões em
França, na Itália e na Alemanha. Como consequência, o jovem Tavigny
tinha sido enviado para Amiens, para o fazer instruir, com vários
companheiros de infortúnio, por um velho surdo e mudo, que possui um
espírito ornado de conhecimentos de grande beleza, que lhe ensinou a
pedir por sinais coisas mais necessárias. Foi este o fruto de sete a oito anos
passado nesta Escola.
O jovem Tavigny foi seguidamente colocado como pensionista no Colégio
de Beaumont-em-Auge, fundado pelo Senhor Duque d’Orléans, Primeiro
Príncipe do Sangue, e entregue aos Beneditinos da Congregação de Saint
Maur, onde o nosso jovem chegou em 4 de janeiro de 1743, e onde foi
reconhecido como surdo e mudo até ter começado a terás lições de M.
Pereire; quer dizer, até 13 de julho de 1746, data em que ele [Pereire]
chegou a Beaumont, como consequência de um tratado feito com M. de
Tavigny pai, pelo qual se tinha encarregado de ensinar o filho a falar.
Parece, pelo certificado do Reitor do Colégio, poucos dias depois de o jovem
ter começado com as lições, articulava e pronunciava muitas palavras
como papá, mamã, Madame, castelo, etc., e que os progressos que fez
foram muito rápidos, porque no fim do mês de novembro seguinte
pronunciava aproximadamente mil e trezentas palavras, de que possui
atualmente a inteligência. Pronuncia todas as outras indistintivamente,
sem as compreender.
Sucessos tão felizes com os trabalhos e com o método de M. Pereire,
fizeram-no desejar que fossem constatadas por algumas Companhia, cujo
testemunho fosse acima de qualquer suspeita. Como consequência,

21Observação notável sobre duas crianças surdas e mudas de nascença, a quem se ensinou a articular os
sons.

29
acompanhado por Dom Caseaux, prior da Abadia de Beaumont-em-Auge,
um dos acadêmicos supranumerários das Academia das Belas-Letras de
Caen e do Diretor do Colégio, apresentou o seu aluno a esta Academia, a
que presidia M. l’Evêque de Bayeux, que é o protetor, para aí ser
examinado.
A sessão abriu com um discurso pronunciado por Dom Caseaux, de onde
tiramos as particularidades precedentes e que ainda acrescentou que o
jovem surdo de La Rochelle não é o primeiro a ser beneficiado com o
método de M. Pereire; que ele, Père Caseaux e todos os Religiosos da
Comunidade, tinham constatado por todas as provas possíveis que o jovem
Tavigny era realmente surdo e que em quatro meses tinha aprendido a
pronunciar as letras do alfabeto, a juntá-las em sílabas e em palavras e a
juntar-lhes ideias, tais como as de quantidade, de muito, de pouco, de bom,
de mau, de afirmação e de negação.
Acabado o discurso, o jovem Tavigny apresentou-se perante M. l’Evêque,
dizendo-lhe: Monseigneur, desejo-vos um bom dia. É preciso, no entanto,
registrar que ele separava todas as sílabas, umas das outras, como se
constituíssem outras tantas palavras. Tendo o Prelado escrito numa carta
o Père Caseaux é bom, o jovem Tavigny, assim que o leu, respondeu-lhe:
Sim, acompanhando a resposta com um sorriso gracioso dirigido ao Prior.
O Prelado apresentou-lhe, então, outra carta onde tinha escrito estas
palavras: O Père Caseaux é mau, o jovem respondeu-lhe imediatamente
não. M. l’Evêque apresentou seguidamente um papel com as seguintes
palavras: Tavigny é mau, tendo-as lido, o jovem rejeitou o papel dizendo
não com um ar zangado. Várias pessoas pediram-lhe, seguidamente, por
sinais como se nomeava uma espada, uma camisa, um chapéu, etc.,
nomeou-os distintamente, separando sempre as sílabas, como já se
explicou mais acima. Este detalhe é retirado do certificado entregue a M.
Pereire pela Academia de Caen em 25 de abril de 1747.
O Reitor do Colégio Beaumont, datado de 6 de maio seguinte, acrescenta
que o jovem disse várias rases para exprimir o seu pensamento e que na
construção das que ele pronuncia melhor, só viola a regra da sintaxe
usando o infinito em todas as circunstâncias e transpondo certas palavras.
Disse, por exemplo, mim quer ir a Paris. Diante desses progressos,
concluiu o Pére Reitor e, parece que, com razão, que não há que duvidar
que M. Pereire não possa conduzir o seu Discípulo a um grau de perfeição,
suficiente para enunciar todos os seus pensamentos e pedir,
consequentemente, todas as suas necessidades.
Sublinhamos que o jovem tem dificuldade em articular, não que exista um
defeito na conformação que isso o impedisse, o que teria desviado M.
Pereire de empreender o fazê-lo falar, porque ele não a iniciou antes de ter
bem examinado a disposição orgânica do sujeito; mas dado que a língua
não adquiriu o hábito de formar movimentos tão delicados quanto o
necessário para articular os sons com uma precisão perfeita, ela só
consegue adquiri-los com um longo uso.
Ter-se-á, com certeza, curiosidade em saber alguma coisa do método
seguido por M. Pereire para instruir os surdos e mudos de nascença; mas
não nos é possível satisfazer os Leitores neste ponto. É um segredo que ele
guarda para si, porque considera-o como patrimônio pessoal. Tudo o que
sabemos, é que não se trata de um método que imortalizou Amman e
Wallis, que ele acha insuficiente e impraticável. Ele chega mesmo ao ponto
de atacar como falsidades, num discurso que pronunciou na Academia de
Caen, os prodígios operados por estes Autores.
Tem pouca importância entrarmos no exame destas histórias. Basta que o
M. Pereira tenha encontrado um método mais fácil do que os imaginados
até ele ter aparecido; seria mesmo suficiente que ele tivesse tido êxito
usando os métodos de Amman e de Wallis, para merecer um lugar ilustre
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

entre os benfeitores do gênero humano. Que pode ele ambicionar mais do


que ser capaz de ensinar aos surdos e mudos a articulação das palavras de
qualquer língua; e, o que é bem mais difícil e mais importante, de os fazer
compreender o sentido destas palavras, e de os levarem a serem capazes,
por eles próprios, de exprimirem, tanto verbalmente, como por escrito,
tudo o que constitua objeto de seus pensamentos.
Só nos falta fazer duas observações; a primeira, é que o método do M.
Pereire é doce que, de longe de conter qualquer coisa de rebarbativo para
as crianças, os Alunos ligam-se a ele com tanta força e tomam tanto gosto
por este gênero de estudo, que somos obrigados a distraí-los para
conseguirmos domar as forças do seu espírito; é disto que o jovem Tavegny
é um exemplo vivo. A segunda, é que M. Pereire parece agir com tanta
candura que caracteriza as pessoas mais honestas; porque, não somente
ele nada exige como adiantamento, só pedindo pagamento depois de
progressos bem evidentes e que correspondem a um sucesso satisfatório,
a que vão sendo feitos acrescentados, à medida que o Aluno faça maiores
progressos22.

Posteriormente, em 1949, Jacob Pereira apresentou-se na Academia de


Ciências, em Paris, acompanhado do seu aluno Azy d’Étavigny, levando consigo
uma “memória” escrita, contendo os conhecimentos adquiridos por seu aluno.
Pereira, mais uma vez buscava o reconhecimento e acolhimento de seu método
de educação e, também, para a sua condição de judeu.

Na Memória, afirmou que o jovem Azy pronunciava, embora com grande


lentidão, as letras, as sílabas e as palavras; que respondia, sem a ajuda do
professor, verbalmente ou por escrito, as perguntas familiares que lhes fossem
dirigidas, quer por escrito, quer pelo alfabeto manual ensinado por Pereira, sem
que fosse necessário juntar outros sinais; que ele próprio fazia perguntas e
pedia, oralizando, as coisas que necessitava no dia a dia; que recitava de cor os
Mandamentos, o Pai Nosso e outras orações e que respondia a numerosas
questões de catecismo; que já sabia gramática, aritmética, geografia e história
(Salgueiro, 2010). Também, observou-se que Pereira refere-se a si próprio, na
terceira pessoa, como Pereire. Acredita-se que foi por causa desse documento
escrito que Jacob Rodrigues Pereira ficou e é conhecido na história, também,
como Jacob Rodrigues Pereire.

22 Fonte: Pereire, J. R. (2010). Observations remarquables sur deux enfantes sourds et muets de
naissance, à qui l’on appris à articuler dês sons. Journal des Sçavans, Paris, (70), 435-438, 1747. In:
Salgueiro, E. E. G. (2010). Jacob Rodrigues Pereira: Homem de bem, judeu português do séc. XVIII,
primeiro reeducador de crianças surdas e mudas em França (pp. 177-179). Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian. (Originalmente publicado em 1747).

31
Com o sucesso das apresentações públicas de seus alunos e,
consequentemente, de seu trabalho, o próprio rei da França, Luís XV, concedeu
a Pereira uma pensão vitalícia para a continuidade de seu magistério e sua
sobrevivência, a partir do ano de 1750 (Séguin, 1847). Estudiosos
contemporâneos, como Buffon e Jean Jaques Rousseau, também
acompanharam os efeitos de seu método de ensino na comunidade científica da
época.

Jean-Jacques Rousseau, além de admirador de Pereira, foi seu vizinho


quando moravam na Rue de la Platrière. Dessa proximidade, surgiu uma grande
amizade. Para Séguin (1866/1907), quando Pereira estava preparando seus
alunos para a demonstração dos resultados de seu trabalho, ele estava em
comunicação com Jean-Jacques Rousseau. Pereira, nesse período, tinha uma
escola que atendia de dez a quinze alunos surdos e Rousseau tinha o hábito de
visitá-lo, de uma forma amigável. Ainda segundo Séguin, os dois amigos
possuíam personalidades bem distintas – Rousseau era muito tímido e Pereira
era modesto, mas muito individual –, no entanto, ambos possuíam o mesmo
objeto de estudo e preocupação, a educação.

De acordo com Séguin (1866/1907), ao analisar as obras literárias, tanto


de Pereira quanto de Rousseau, pode-se encontrar facilmente mais ideias de
Pereira no Discours sur I’Inégalité des Conditions do que ideias de Jean Jacques
Rousseau nas “memórias” sobre a educação dos surdos, inseridas na coleção da
Academia Francesa. No entanto, não se pode duvidar da influência recíproca
entre esses dois mestres. O livro Emilio, por exemplo, está cheio de experiências
sobre o ensino fisiológico, que muito provavelmente teria se originado na escola
para surdos de Pereira, bem como a semelhança das teorias presentes no Emilio,
com as práticas de Pereira.

Ainda segundo Séguin (1866/1907), o método elaborado por Pereira


parte de uma descoberta fisiológica; consequentemente, com base nessa
descoberta, Pereira teria demonstrado aos fisiologistas de sua época que todos
os sentidos são modificações do tato, ao ensinar seus alunos surdos a falarem
através da percepção da vibração provocada pelo som.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Salgueiro (2010) afirma que Pereira estabelecia uma forte relação com
seus alunos surdos. Buscava, inicialmente, o acolhimento do aluno, para em
seguida iniciar os ensinamentos; tinha sempre o cuidado de oferecer seu rosto,
para que a criança pudesse ver bem como cada emissão sonora era
acompanhada de movimentos específicos da face, lábios e garganta que, no
conjunto, produziam uma mímica expressiva característica.

As lições eram curtas, porém muito frequentes. Inicialmente, começava


por ensinar aos alunos a emitir corretamente os sons da língua francesa,
intercalando lições simples de nomeação dos objetos e de ações do cotidiano,
sempre com materiais concretos. Pereira apoiava-se na sua datilologia23 inicial
(uma espécie de silabário rápido), feita com uma só mão, contendo tanto as
posições dos dedos quanto os sons da língua francesa. No entanto, com a
datilologia, ele não pretendia ensinar letras, mas os sons que compunham as
palavras, alegando que um mesmo som pode corresponder a várias letras e uma
dada letra pode possuir diversos valores sonoros (Salgueiro, 2010).

Após a aprendizagem da datilologia, da posição espacial dos segmentos


digitais e das posições articulatórias ou fonatórias corretas de cada emissão
sonora, apoiada na “leitura” vibratória dos sons, Pereira iniciava o ensino da
leitura e da escrita propriamente ditas, de palavras e frases simples, dos
substantivos e dos verbos mais usados cotidianamente. De acordo com Salgueiro
(2010), essa fase inicial, ou da pronúncia, dependendo do aluno, demorava de
12 a 15 meses.

A fase seguinte, denominada “fase da inteligência”, durava vários anos.


Trabalhavam-se os adjetivos e, pouco a pouco, todos os outros elementos da
sintaxe verbal dos ouvintes – pronomes, tempos verbais, advérbios, preposições
e conjunções – até chegar à ortografia. Progressivamente, eram introduzidas as
ideias abstratas, ou de simbolismo complexo, próprias das ciências, poesia,
filosofia e religião (Salgueiro, 2010).

Pereira queria que os seus alunos falassem ou, pelo menos, pensassem por
palavras e não por signos ou gestos: “A palavra seria a expressão fiel e

23 Comunicação através de sinais feitos com os dedos.

33
incessantemente móvel do pensamento, móvel e plástica como ele próprio”
(Salgueiro, 2010, p. 203). Assim, para Pereira, os gestos ou signos seriam, por
natureza, rígidos e absolutos, à medida que as palavras seriam relativas e
infinitamente modificáveis.

Séguin (1847) explica que com os sinais convencionais só se podem


exprimir ideias convencionais, além de não existir concordância ou
transposição fácil entre a linguagem escrita e a linguagem de signos ou de
gestos. Para Séguin, os indivíduos surdos, sem acesso ao pensamento por
palavras e a leitura das palavras escritas, ficariam inevitavelmente afastados
da herança cultural, científica e literária dos ouvintes, além de ficarem também
limitados em suas possibilidades criativas autônomas.

Assim, observa-se que o método inovador de Pereira visava àquilo que


hoje seria denominado de “inclusão social” de pessoas surdas, o que, para a
época, deve ser considerado revolucionário. Ao proporcionar a inserção dos
surdos no processo dialógico com pessoas de seu meio, Pereira possibilitou que
seus alunos pudessem trocar ideias, falar de seus sentimentos, além de
compreender o que se passava ao seu redor. Contudo, pelos documentos
acessados por Séguin, observa-se que chegaram ao conhecimento do público
apenas alguns dos conteúdos programáticos e poucas situações de
aprendizagem para a aquisição da fala.

No dia 15 de setembro de 1780, Jacob Rodrigues Pereira faleceu


repentinamente, em sua nova casa na rue de Montmartre, em Paris. Com sua
morte perdeu-se todo um legado, pois, apesar de Séguin (1847) inferir uma
suposta intenção de Pereira deixar registrado seu método, ele não teve tempo
de escrevê-lo. Ainda, para Séguin, a falta de tempo talvez possa ser atribuída à
quantidade de horas que Pereira dedicava ao ensino dos surdos, com o objetivo
de aperfeiçoar sua prática educativa. Outra hipótese poderia estar associada
não somente à dedicação aos seus alunos, mas também ao êxito já alcançado nas
diversas apresentações públicas de vários alunos, em diferentes momentos da
sua trajetória como educador de surdos.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Algumas considerações...

As experiências pedagógicas elaboradas por Jacob Rodrigues Pereira


para a educação de pessoas com deficiência contribuem para a compreensão do
processo de constituição da própria educação especial a partir do século XVIII,
além de contribuírem também para a compreensão das bases de várias
propostas pedagógicas.

Desse modo, a exposição e a análise das ideias e práticas desse estudioso


tiveram a finalidade de aprofundar a compreensão das ações que envolvem a
prática pedagógica junto a alunos com deficiência.

Assim, em meados do século XVIII, o método elaborado pelo professor


Pereira (que partia de uma descoberta fisiológica) ajuda-nos a pensar nas
condições escolares que se deve oferecer ao educando surdo. As principais
conclusões do trabalho de Pereira foram: os sentidos, e cada um em particular,
podem ser submetidos a treinamento fisiológico, pelo qual sua capacidade
primordial pode ser indefinidamente intelectualizada; um sentido pode ser
substituído por outro, como um meio de compreensão e de cultura intelectual; o
exercício fisiológico de um sentido corrobora a ação, bem como auxilia as
aquisições de outras; as ideias mais abstratas são comparações e generalizações
da mente que são percebidos através dos nossos sentidos; educar os modos de
percepção prepara para o sustento do próprio espírito; as sensações são funções
intelectuais realizadas por meio de aparelho externo, tanto quanto a
imaginação, raciocínio etc., através dos órgãos mais internos; o professor
precisa oferecer todas as condições necessárias para promover a aprendizagem;
antes de qualquer intervenção pedagógica, o planejamento precisa ser tomado
como um instrumento de organização do trabalho escolar. Ora, a expressão
“fisiológico” nesse caso não significa a redução do processo educativo às funções
dos órgãos, mas da justa compreensão de seu funcionamento e de suas
potencialidades como uma das bases para a promoção do ensino. Vale dizer que
as ideias de Pereira antecipam a noção de compensação de Adler e Vigotski e a
ênfase no potencial da criança e não em sua deficiência, concepção esta tão
fundamental para um processo efetivo de inclusão escolar.

35
Também é no trabalho de Pereira que se encontra a primeira
sistematização de um plano de ensino para o atendimento de crianças com
deficiência. Na história da educação especial, o pioneirismo, no uso da
intervenção pedagógica com pessoas com deficiência pertencia, até o momento,
a Itard; no entanto, mostrou-se, nesta tese, que tal título deveria pertencer a
Pereira. Verificou-se que a convenção assinada por Pereira e o pai de um de seus
alunos surdos, nada mais era do que um planejamento de suas atividades, que
poderiam ser consideradas eminentemente pedagógicas. Ressalta-se, também,
que o título de pioneiro na elaboração de um plano de ensino pertencerá a
Pereira até que se encontrem documentos que atestem a existência de outro
educador mais antigo, o que é sempre esperado na história.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Referências Bibliográficas

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autres individus qu’on a trouvé dans les forêts, à différentes époques. Em T. Gineste.
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França (p. 25). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Originalmente publicado em
1513).

Originais da Câmara de Évora. Édito de expulsão dos judeus do rei D. Manuel I (1469-
1521), decretado em Muge, em 4 de dezembro de 1496, Lvº73, “3º, Fº113, 1496.
Arquivo Distrital de Évora (2010). In: Salgueiro, E. E. G. Jacob Rodrigues Pereira:
Homem de bem, judeu português do séc. XVIII, primeiro reeducador de crianças
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(Originalmente publicado em 1496).

Pereira, A. M. S. (2011). Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Capitanias


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Pereire, J. R. (2010). Observations remarquables sur deux enfantes sourds et muets de


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português do séc. XVIII, primeiro reeducador de crianças surdas e mudas em França
(pp. 177-179). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Originalmente publicado em
1747).

______. (2010). Mémoire que M. J. R. Pereire a lu dans la séance de l’Academie royale


des Sciences du 11 Juin 1749. Paris. In: Salgueiro, E. E. G. Jacob Rodrigues Pereira:
Homem de bem, judeu português do séc. XVIII, primeiro reeducador de crianças
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Pessotti, I. (1984). Deficiência Mental: da superstição à ciência. São Paulo: EDUSP.

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france (1744-1780). Notice sur sa vie et ses travaux et analyses raisonnée de sa
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Libraire de l’Académie Royale de Médicine.

Souza, G. M. B. (2011). Apresentação Dossiê Inquisição, poder e sociedade. Politeia:


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2016, de http://periodicos.uesb.br/index.php/politeia/article/viewFile/1601/1469

37
CAPÍTULO II

Jean Marc-Gaspard Itard: o legado esquecido?


Aliciene Fusca Machado Cordeiro

Figura 2: Jean Marc-Gaspard Itard


Fonte: Académie Nationale de Médecine24

24Descrição da foto: Busto de Jean Marc-Gaspard Itard, com os olhos voltados para cima; usando roupas
próprias da época (casaco acolchoado nos ombros e abotoado; colarinho da camisa virado para cima com
um grande lenço). Por ser a foto em branco e preto, não há como identificar as cores.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

O trabalho de Jean Marc-Gaspard Itard, com um menino encontrado nos


bosques do sul da França no final do século XVIII, posteriormente nomeado de
Victor por Itard, seria por si só tema de pesquisa e interesse para diversas áreas,
como psicologia, educação, medicina, antropologia.

Victor foi trazido à sociedade sob o estigma de selvagem. Capturado e


aprisionado, vítima da curiosidade popular, esperava-se que fosse educado
rapidamente para que pudesse contar sobre sua vida passada. Mas quando chega
a Paris o que se viu foi:

Um menino de uma sujeira asquerosa, acometido de movimentos


espasmódicos e muitas vezes convulsivos, balançando-se sem descanso
como certos animais do zoológico, mordendo e arranhando os que o
contrariavam, não demonstrando nenhuma espécie de afeição àqueles que
o serviam; enfim, indiferente a tudo e não dando atenção a nada. (Itard,
1801/ 2000, p. 130).

Philippe Pinel ao avaliar o garoto vindo do Aveyron, concluiu que ele era
acometido de “idiotismo”. Essa conclusão se deu por comparação à outras
crianças que já haviam sido diagnosticadas como “idiotas”. De acordo com Itard:

Essa identidade levava necessariamente a concluir que acometido de uma


doença até agora olhada como incurável, ele não era suscetível de espécie
alguma de sociabilidade e de instrução. Foi também essa conclusão que tirou
disso o cidadão Pinel [...]. Não compartilhei de forma alguma essa opinião
desfavorável; e apesar da verdade do quadro e da exatidão das
comparações, ousei conceber algumas esperanças. Fundamentei-as na
dupla consideração da causa e da curabilidade desse idiotismo aparente.
(1801/2000, p. 132, grifos do autor).

Itard optou pela defesa da educabilidade de Victor. Baseados nos mesmo


preceitos da filosofia de Étienne Bonnot de Condillac, cada um desses dois
médicos, Itard e Pinel, interpretaram os dados disponíveis, de forma a
transformar as diferenças comportamental, intelectual e emocional que Victor
apresentava em estigma de idiotia ou, como diria Itard, características que
mostravam “bem menos um adolescente imbecil do que uma criança de dez ou
doze meses, e uma criança que teria contra si hábitos antissociais, uma renitente
desatenção, órgãos pouco flexíveis e uma sensibilidade acidentalmente
embotada” (Itard, 1801/2000, p. 135), ou mais precisamente, um “idiotismo
aparente”. Assim, ao mesmo tempo em que a base sensualista e associacionista
de Condillac possibilitou Itard avançar com o pressuposto de que a aprendizagem

39
se dá pela experiência, a lógica restrita da forma como esta se dá, daria o limite
para o fim de seu trabalho com Victor.

De qualquer maneira, para lidar com as diferenças individuais de Victor,


ele abandonou a concepção classificatória hegemônica que se formava em sua
época e colocou para a medicina o desafio de ser a grande parceira da educação.
No caso de Victor, Itard procurou recolher os fragmentos da história de vida do
menino, para poder sustentar sua hipótese de educabilidade. Assim, em junho de
1801, escreveu ao prefeito do departamento do Aveyron, região onde Victor
havia sido encontrado, pedindo informações sobre o garoto retirado dos bosques.
Argumentava: “acontece todos os dias que algum fato precioso se perca para as
ciências por falta de detalhes circunstanciados próprios à valorizá-lo” (Itard,
1801/2004, p. 347). Itard formulou, então, seis perguntas: Foi a primeira vez que
a criança foi vista nos bosques quando deles a retiraram? Quais meios foram
necessários colocar em uso para pegá-lo? Quais eram, nos primeiros tempos de
sua detenção, seus hábitos, sua personalidade, seus gostos favoritos, as funções
de seus sentidos, a duração de seu sono, a disposição exterior de todo o seu corpo?
Qual era a natureza das produções alimentares e dos meios de abrigo que
ofereciam os lugares onde ele habitava? Esses lugares seriam inteiramente
desabitados, povoados de animais perigosos? Haveria nas regiões circundantes
suspeitas sobre as causas e mesmo os autores do abandono desse órfão?

Itard recebeu como resposta a sugestão de ler a Notice historique sur le


Sauvage de l’Aveyron (1800/2004), escrito por Bonnaterre, na qual poderia ter
as informações desejadas. A leitura deste e de outros registros oficiais dos
encontros pregressos com Victor levaram-no a crer que a forma como o garoto se
encontrava naquele momento era devido a uma vida de isolamento e abandono.

As intervenções realizadas no princípio do século XIX envolvendo o


“selvagem do Aveyron” ficaram imortalizadas nas palavras de Itard. Após nove
meses de trabalho, foi redigido o primeiro relatório, intitulado Da educação de um
homem selvagem ou primeiros desenvolvimentos físicos e morais do jovem
Selvagem do Aveyron (1801/2000). Nesse primeiro texto, Itard relata como
Victor foi capturado, seu itinerário antes de chegar a Paris, a avaliação feita por
um dos mais renomados médicos da época (Philippe Pinel) e a total descrença,
por parte da comunidade científica, na possibilidade de Victor ser educado. Ainda
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

nesse mesmo texto, descreve sua convicção na educação do garoto, explicitando


seu referencial teórico, descrevendo seu programa de ensino e relatando o
desenvolvimento e as aprendizagens de Victor.

O tom entusiástico do primeiro relatório desaparece na escrita do segundo


relatório. Relatório feito a Sua Excelência o Ministro do Interior sobre os novos
desenvolvimentos e o estado atual do Selvagem do Aveyron (1806/2000) começa
quase como um pedido de desculpas pelo que o leitor encontrará naquelas
páginas. Atribuindo a si mesmo muitos dos fracassos da experiência com Victor
e recomendando que seja lembrado o estado em que o garoto chegou a Paris,
solicita àquele que o lê que compare Victor apenas consigo mesmo. O segundo
relatório é tão rico em conteúdo quanto o primeiro, demonstrando o rigor com
que Itard julgou sua experiência e a apreciação enfática que considera mais os
resultados do que o próprio processo de aprendizagem e desenvolvimento de
Victor.

É importante ressaltar que não há dados para afirmar que Victor tenha
nascido com algum tipo de deficiência; contudo, quando foi encontrado
apresentava-se como uma criança “muda”, não surda, criada, provavelmente,
longe de toda a sociedade humana, na qual também estavam afetadas as funções
psicológicas superiores.

Adepto das ideias filosóficas de Condillac, Itard acreditava na educação


como principal vetor de desenvolvimento humano. Partindo do princípio de que
tudo que o homem sabe ele o aprende, Itard acreditou que a educação poderia
propiciar a Victor o integrar-se na sociedade. A convicção filosófica de Itard
permitiu que ele se dedicasse a esse empreendimento educativo com Victor,
afrontando a teoria das ideias inatas e contrariando importantes intelectuais de
sua época, como Sicard e Pinel que, ao avaliarem Victor após sua chegada a Paris,
desacreditaram-no em sua educabilidade, pressupondo uma “idiotia congênita”.

O homem torna-se humano nas e pelas relações com outros homens: o início
da educação de Victor

Com base principalmente nas ideias de Condillac, filósofo sensualista, Itard


estabeleceu cinco metas para seu programa pedagógico, todas elas envolvendo a
sensação e a percepção como vias para trabalhar os aspectos cognitivos e afetivos

41
de Victor. Para elaborar seu plano de trabalho, Itard foi incansável em suas
observações até determinar quais passos seguiria com Victor. Segundo Lane
(1986), ele determinou os componentes mais importantes das dificuldades de
Victor – sensorial, motivacional, verbal – e os classificou em áreas que iria tratar
com uma determinada ordem, começando pela atividade sensorial e seguindo até
a linguagem e o pensamento abstrato.

Ao chegar em Paris, Victor gostava de “dormir, correr, não fazer nada e


correr pelos campos”. Itard e a Senhora Guérin25 procuravam satisfazê-lo em
seus gostos para conhecê-los, Itard observava-o. No interior do quarto via Victor
“balançando com uma monotonia cansativa, dirigir constantemente seus olhos
para a vidraça e passeá-los tristemente no vazio do ar exterior” (1801/2000, p.
138). Mas se soprava um vento mais forte ou o sol saía de trás das nuvens, o
garoto dava ruidosas gargalhadas. Quando um dia amanheceu nevando, Victor
saiu do quarto vestido pela metade e soltava gritos agudos, comendo a neve com
uma avidez espantosa.

Mesmo com esses comportamentos inesperados, ações repentinas e


impulsivas, diferentes daquelas socialmente aceitas, Itard não registra no
relatório julgamentos que o classifiquem em uma categoria patológica. Ele estava
conhecendo Victor e sua forma de se relacionar com o mundo. Mediante tais
comportamentos, classificá-lo seria fácil, mas não era essa a meta de Itard.

Ao conhecer melhor os hábitos de Victor, Itard assume o objetivo de tornar


seus dias mais proveitosos para sua instrução. Foi assim que Itard elaborou sua
primeira meta, “interessá-lo pela vida social, tornando-a mais amena do que
aquela que ele então levava, e sobretudo mais análoga à vida que acabava de
deixar”.

Dentro dessa concepção, Itard constrói um período de transição para


Victor, por meio do qual ele passaria de uma vida errante nos bosques para uma
vida em sociedade. Procurou não exigir nesse momento algo que o garoto não

25A Senhora Guérin foi contratada a pedido de Itard para lhe auxiliar nos cuidados com Victor, mais
especificamente higiene, alimentação, lazer etc.
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fosse capaz de fazer. Ambos estavam se conhecendo, era o momento de construir


vínculos.

Se, na primeira meta, a base epistemológica adotada por Itard não se faz
tão evidente, o mesmo não se pode dizer da segunda meta: “despertar a
sensibilidade nervosa com os mais enérgicos estimulantes e algumas vezes com
as vivas afeições da alma”. Itard julgava que a sensibilidade de Victor era fraca
na maior parte dos sentidos, e colocou em seu plano dispor “os sentidos para
receber impressões mais vivas”, com o objetivo de “preparar o espírito para a
atenção” (1801/2000, p. 139). Ele baseava seus procedimentos nas concepções
de Condillac, para o qual as operações psíquicas são sensações transformadas e a
atenção deveria ser uma das primeiras faculdades a serem trabalhadas, já que
seria necessária para o desenvolvimento posterior de outras operações mais
complexas, como imaginação, memória e pensamento. Afirma Condillac que, “a
atenção que concedemos a uma percepção que nos afeta atualmente nos recorda
seu signo; este a outros, com os quais tem alguma relação; estes últimos evocam
as ideias a que estão ligadas, estas voltam a trazer outros signos e outras ideias,
e assim sucessivamente” (1746/1999, p.46).

Nesse início da convivência com Victor, Itard observou que o garoto tinha
uma tolerância diferenciada ao frio e ao calor; ficava horas acocorado no solo
úmido, seminu, sob chuva e vento frio; também era capaz de pegar carvão em
brasa na mão. Mesmo que Itard enchesse a cavidade exterior de seu nariz com
tabaco, ele não espirrava. O que mais espantava Itard era que nunca, mesmo em
situações adversas, tinha visto Victor chorando.

A audição também era direcionada para os mínimos ruídos provocados por


suas comidas preferidas, mas insensível a explosões de armas de fogo. Com o
objetivo de “despertar a sensibilidade nervosa”, utilizou os mais “enérgicos
estimulantes” como, por exemplo, administrar banhos com água em temperatura
“altíssima”, com duração de duas ou três horas ao dia. No final de algum tempo,
Victor mostrava-se sensível à ação do frio.

As “afeições da alma” também foram utilizadas como “estimulantes” para


“despertar a sensibilidade nervosa”. De acordo com Condillac (1754/1993), o par
prazer/dor constitui o único princípio que determina todas as operações da alma,

43
além de poder elevá-la gradualmente a todos os conhecimentos de que é capaz.
Dessa forma, o par prazer/dor seria a base para o desenvolvimento do ser
humano, pois sem ele não se tem necessidades; sem as necessidades não se
buscam novas experiências; sem experiências não há conhecimentos. Assim, a
partir do momento em que o ser humano começa a ter sensações já está
submetido ao par prazer/dor e, quanto mais conhece, mais necessidades tem. Tais
necessidades levam, em última instância, a desenvolver tanto as “faculdades
intelectuais”, como as “faculdades afetivas”. Partilhando dessa visão, Itard
detecta duas “afeições” suscetíveis em Victor para potencializar sua educação e
desenvolver sua inteligência: a alegria e a cólera. Esta última, Itard só provocava
a intervalos distantes

(...) para que seu acesso ficasse mais violento, e sempre com uma
aparência bem evidente de justiça. Notava então algumas vezes que, no
auge de seu arrebatamento, sua inteligência parecia adquirir uma espécie
de extensão que lhe fornecia, para tirá-lo do aperto, algum expediente
engenhoso. (1801/2000, p. 143-144).

Percebe-se aqui o entendimento da relação entre cognição e afeto. Itard


acreditava que ambos estavam interligados, o tempo todo, conjecturando mesmo
que determinados arroubos emotivos deixassem Victor momentaneamente mais
“inteligente”, pensando melhor sobre formas de lidar com situações-problema.

Depois de três meses, Itard atinge sua segunda meta, obtendo uma
“excitação geral de todas as forças sensitivas”. Relata o desenvolvimento do tato,
do olfato e do paladar. Victor, entre outras coisas, demonstrava prazer em passar
as mãos sobre o veludo e era incapaz de retirar as batatas da água fervente com
as mãos; espirrava à menor irritação causada nas narinas e não mais corria como
no começo. Entretanto, os resultados em relação ao desenvolvimento da
sensibilidade “não se estenderam a todos os órgãos. Os da vista e do ouvido não
participaram; decerto porque esses dois sentidos, muito menos simples do que os
outros, necessitavam de uma educação particular e mais longa” (Itard,
1801/2000, p. 146).

Embora durante todo seu trabalho com Victor, Itard desse importância à
linguagem falada, no princípio Itard não faz referência a diálogos com o garoto,
nem de sua parte, nem por parte da Senhora Guérin. Não que ele não usasse a fala
nas atividades iniciais com Victor, mas ela não aparece nos relatórios como meio
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intencionalmente utilizado para a ação educativa. Deter-nos-emos um pouco mais


na análise dos fatores que levaram Itard a postergar a introdução da mediação
verbal. Ele acreditava, como Condillac, que a linguagem oral é fundamental na
aquisição dos conhecimentos teóricos, isto é, para ir além dos conhecimentos
práticos que, guiados pelo hábito, só poderiam produzir poucos conhecimentos,
além de serem bastante limitados. Entretanto, considerava que

(...) leis as mais complicadas, condições as mais numerosas presidem o


exercício da palavra falada, devido a que não seja somente uma função,
mas uma arte da imitação. Do que se segue que o homem tenha
necessidade da troca com seus semelhantes para que lhe comuniquem
esta arte, com a participação de um outro órgão, do órgão da audição, para
fazê-lo ouvir as primeiras lições, da faculdade de imitar para facilitar-lhe
as repetições, e do grau de inteligência dado a sua espécie para fazê-lo
compreender e proporcionar-lhe os materiais, que são as ideias. (Itard,
1828/2004, p. 580).

Itard diria ainda que “um grande vício da educação é crer que ela deva ser
a mesma para todos os indivíduos. Ela deveria ser tão variável como é o espírito
humano nas suas modificações e à época de seu desenvolvimento” (1802/2004,
p. 466). Depreende-se de todas essas colocações que Itard introduziria a
linguagem falada quando Victor estivesse preparado para ela. Para aquele
momento era suficiente que Victor fosse “moldado” por meio das sensações e das
operações mais elementares.

A terceira meta que Itard propôs-se a atingir na educação com Victor foi
“ampliar a esfera de suas ideias dando-lhes necessidades novas e multiplicando
suas relações com os seres que o circundam”. E essa não seria uma meta fácil de
atingir, pois, segundo Itard (1801/2000),

Se os progressos desse menino para a civilização, se meus sucessos para os


desenvolvimentos de sua inteligência foram até o presente tão lentos e tão
difíceis, devo atribuir a culpa disso sobretudo aos inumeráveis obstáculos
que encontrei para cumprir essa terceira meta. (p. 147).

Uma das estratégias para atingir essa meta era utilizar jogos, brinquedos e
brincadeiras. Itard contou que apresentou vários brinquedos a Victor, inclusive
ficando horas inteiras a demonstrar seu uso, mas esses não lhes cativavam a
atenção; em verdade, se lhe apresentasse a ocasião, destruía-os ou os escondia. O
único jogo com o qual Itard obteve sucesso foi o jogo com copinhos. Itard escondia
debaixo de um copo de prata uma castanha e convidava Victor, por sinais, a

45
procurar a castanha. Aos poucos, Itard complexificava o jogo: trocava os copos de
lugar, depois realizava essa troca de forma mais rápida e Victor sempre conseguia
achá-las.

Itard lamenta não ter conseguido interessá-lo por outro tipo de diversão,
dizendo: “Estou mais do que certo que se o tivesse podido, teria tirado grande
sucesso delas; e essa é uma ideia para cujo entendimento deve-se lembrar da
poderosa influência que tiveram nos primeiros desenvolvimentos do pensamento
os jogos da infância” (1801/2000, p. 148-149).

Tal concepção, guardada as devidas proporções, antecipa-se a muitas das


teorias do desenvolvimento e da aprendizagem que demonstram a importância
da brincadeira para o desenvolvimento da criança. Contudo, Itard não consegue
elaborar hipóteses para a falta de interesse de Victor. Nossa hipótese é de que o
interesse pelo jogo de copinhos não era somente pelo apelo às “necessidades
digestivas”. Relatos realizados logo após a captura de Victor (Bonnaterre,
1800/2004) descreviam Victor guardando sobras de comida como suprimento.
Assim, parece-nos que esse jogo tinha muito mais sentido para ele, que já estava
habituado a esconder e procurar, do que outro tipo de jogo. Além disso, parece que
o jogo de copinhos proporcionava uma interação muito maior entre Victor e Itard,
no qual eles ficavam frente a frente, enquanto um escondia, outro achava. Itard
modificava o jogo, desafiava Victor e ele se superava.

Aos poucos foram descobertas outras coisas que davam prazer a Victor,
como sair de carruagem e passear nos jardins. Lentamente, Victor foi “tomando
gosto” por aquela nova forma de existência. Também desenvolveu grande afeição
por sua governanta. Itard dizia que a amizade que Victor tinha por ele era mais
fraca, e assim deveria ser.

Outra contestação que Itard (1801/2000) se via compelido a responder


era: se Victor não é surdo, por que não fala? Elaborou assim a quarta meta: “[...]
levá-lo ao uso da fala, determinado o exercício da imitação pela lei imperiosa da
necessidade” (p. 136).

Itard entendia que a fala era uma espécie de música, à qual, mesmo ouvidos
bem constituídos, podiam ser insensíveis, o que tornaria o indivíduo inapto para
imitar, nem que fosse uma só palavra. Mas este não era o caso de Victor;
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observando-o, percebeu que quando pessoas que estavam perto dele diziam sua
exclamação preferida – Oh!26 – Victor não ficava alheio, virava sua cabeça em
direção a elas. Para desenvolver a fala, Itard propõe-se a ativar a laringe “(...) com
a isca dos objetos necessários às suas necessidades”. Planejando uma situação
que pudesse levar Victor a imitá-lo e ao mesmo tempo tirar proveito de uma
necessidade que era obter água – eau27 – Itard tentou de várias formas fazer
Victor perceber que se pronunciasse essa palavra, ele receberia aquilo que queria.
Mas teve suas primeiras tentativas frustradas. Começou, então, a trabalhar com
a palavra lait28. Depois de quatro dias, Victor conseguiu pronunciar, a seu modo,
essa palavra. Entretanto, Itard interpretou essa fala não como um signo da
necessidade de Victor, mas como uma exclamação de alegria:

Se a palavra tivesse saído de sua boca antes da concessão da coisa


desejada, estava tudo certo; o verdadeiro uso da fala fora apreendido por
Victor; estabelecia-se um ponto de comunicação entre ele e mim, e os
progressos mais rápidos decorreriam desse primeiro sucesso.
(1801/2000, p. 159).

Itard não conseguiu o que pretendia com Victor, abandonando o método e


deixando “(...) o órgão da voz à influência da imitação”. Victor fez alguns
progressos espontâneos e repetia o monossílabo “lhi” e sempre com maior
frequência quando Julie29 (3), a filha da Senhora Guérin, estava em casa. Quando
estava alegre, Victor usava uma expressão que aprendeu com a Senhora Guérin,
“oh Dieu”! Mas para Itard essas expressões eram insuficientes para que ele
insistisse no desenvolvimento intencional da fala de Victor.

Outro aspecto importante a se considerar na dificuldade do


desenvolvimento da fala é que da mesma forma que se expressava por meio de
uma “linguagem com pantomimas”, Victor a compreendia.

Itard, porém, entendia que, para Victor desenvolver suas operações


mentais completamente, ele deveria fazer uso da linguagem oral. Essas idéias

26 Em francês se pronuncia “ô”.


27 A pronúncia em francês para eau é “ô”.
28 Leite em francês.
29É interessante observar que, em francês, Julie se pronuncia “Julhii”, dando a entender que Victor
pronunciava somente a última sílaba do nome da filha da senhora Guérin.

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eram concernentes às desenvolvidas por Condillac (1746/1999), que entendia
que a linguagem oral, composta por signos convencionais, seria mais que um meio
de comunicação, seria um fenômeno decisivo na reorganização das faculdades
mentais.

Itard, frustrado em seus objetivos, acreditava que seria necessário


multiplicar as necessidades de Victor para que ele começasse a usar novos signos
e ascender à fala. Entretanto, cabe ressaltar que as pessoas que conviviam com
Victor acostumaram-se a comunicar-se com ele por meio de gestos.

Apesar das dificuldades em desenvolver a linguagem oral em Victor, Itard


(1801/2000) entendia que todas as faculdades que deviam servir para a
instrução de seu aluno já estavam desenvolvidas. Iniciou, assim, a implantação
da sua quinta e última meta: “(...) exercitar durante algum tempo, a partir dos
objetos de suas necessidades físicas, as mais simples operações da mente e
determinar em seguida sua aplicação aos objetos de instrução” (p. 136). O
princípio dessa meta se daria com a utilização do método desenvolvido por Sicard
(1798/1984), o qual havia sido aplicado na educação de Massieu30, um jovem
surdo, de família humilde, que aprendeu a escrever francês em um ano.

Itard começou a instrução de Victor da mesma forma que Sicard iniciou a


de Massieu. Ele desenhou sobre uma prancha negra a figura de três objetos: uma
chave, uma tesoura e um martelo. Assegurando-se de que o garoto estava atento,
colocava os objetos em cima da figura; quando achou que Victor tinha estabelecido
a relação figura-objeto começou a apontar com o dedo as figuras dos objetos que
deviam ser buscados. As reações de Victor diferiam em muito das de Massieu,
pois Victor não trazia nada ou trazia os três de uma só vez. Observando que o
menino gostava de deixar tudo organizado, Itard utilizou-se dessa informação
para uma nova tentativa de instruir Victor e “exercitar a sua atenção”. Pendurou
com um prego cada um dos objetos embaixo do desenho e os deixou lá por algum
tempo; depois os objetos foram retirados e dados a Victor, e ele os recolocou
imediatamente no lugar. Mas Itard percebeu que Victor estava se utilizando mais
da memória do que do “discernimento”. Para lidar com essa situação, Itard

30O abade Roch Ambroise Sicard (1742 -1822) era adepto da linguagem de sinais na comunicação com
surdos e ficou famoso por conseguir educar um surdo chamado Massieu.
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complexificou a atividade, forçando Victor a recorrer à comparação do desenho


com o objeto para poder reordená-los. O resultado deixou Itard muito esperançoso
para seguir com o método aplicado a Massieu.

O segundo passo do método de Sicard era colocar o nome [“signos


alfabéticos”] do objeto junto deste, em vez de colocar o desenho. Contudo, Victor,
mesmo com uma prolongada exposição do objeto sob o nome escrito, não os
identificou. Com estes resultados, Itard abandonou o método de Sicard, buscando
encontrar outro “mais análogo ainda às faculdades entorpecidas de nosso
selvagem, um método no qual cada dificuldade vencida o elevasse ao nível da
dificuldade por vencer” (Itard, 1801/2000, p. 168). Ele adotou o seguinte
procedimento:

(...) colei numa prancha de dois pés quadrados três pedaços de papel, de
forma bem distinta e de cor bem contrastante. Era um plano circular e
vermelho, um outro triangular e azul, o terceiro de figura quadrada e cor
negra. Três pedaços de cartolina, igualmente coloridos e figurados, foram,
por meio de um buraco que tinham furado no meio e de pregos dispostos
para isso na prancha, foram, disse eu aplicados e deixados durante alguns
dias em cima de seus respectivos modelos. Tendo-os tirado depois e
apresentado a Victor, foram recolocados sem dificuldade. (p. 168).

Itard fez variações desse exercício, apresentando todas essas figuras com
a mesma cor, depois todas as figuras iguais com cores diferentes; ampliou a
variedade de figuras e a variedade de cores, colocou figuras e cores com
diferenciações pouco marcantes. Com a intensificação e a complexificação dos
exercícios, Itard viu reaparecer em Victor “(...) os movimentos de impaciência e
de fúria que irrompiam tão violentamente no começo de sua permanência em
Paris, quando, sobretudo, encontrava-se fechado em seu quarto” (1801/2000, p.
169). Com o passar dos dias, os movimentos de cólera tornaram-se mais
frequentes e violentos, chegando Victor até a convulsionar. Itard tomou uma
decisão; antes que Victor se tornasse um “infeliz epiléptico”, usaria um
“procedimento perturbador”, inspirado em uma técnica utilizada por um médico
holandês.

Assim, quando novamente Victor teve um ataque violento de raiva, Itard


procedeu da seguinte maneira: abriu com violência a janela do quarto de Victor,
situado no quarto andar, e aparentando estar furioso, agarrou-o fortemente pelo
quadril, expondo-o na janela. Após alguns segundos, Itard o puxou para dentro e

49
Victor, demonstrando claros sinais de amedrontamento, foi conduzido aos
quadros, tendo que apanhar todas as suas cartolinas e recolocá-las no lugar. “Em
seguida foi lançar-se na cama, onde chorou abundantemente” (Itard, 1801/2000,
p.171). Essa foi a primeira vez que Itard viu Victor chorar. A partir desse dia, sua
expressão de descontentamento nunca mais foi tão intensa e violenta.

Castigos, obrigações, horários... Victor foi submetido à disciplina de Itard.


Mas a que preço? Educar Victor passou a ser sinônimo de sofrimento, de ambas
as partes. Itard nunca se mostrou confortável num papel punitivo. Tentou outras
formas de interação, quis introduzir a brincadeira, os contatos sociais mais
amplos, mas tudo era indiferente para Victor. Levaria talvez mais tempo do que
Itard e a sociedade esperavam para que Victor se integrasse a essa cultura tão
nova para ele. O que poderia se esperar de um garoto que, acostumado a viver
tantos anos em um ambiente tão diferente, a sobreviver por seus próprios meios,
correr livremente, tivesse que ficar horas a fio comparando pedaços de papel?
Quão frustrante foi para Itard colocar toda sua iniciativa metodológica à
disposição de seu aluno e ter em troca choros e convulsões? Definitivamente,
Itard enredava-se em sua própria trama teórico-metodológica. Considerando-se
imobilizado, não conseguia se desvencilhar daquilo que prospectou ser o melhor
para seu aluno.

Mas ainda não seria o momento em que Itard desistiria da educação de


Victor e assim, avançou em sua instrução. Mandou imprimir em pedaços grossos
de cartolina vinte e quatro letras do alfabeto. Em uma prancha mandou talhar um
número igual de compartimentos, nos quais inseriu, sem colar, os pedaços de
cartolina, a fim de que pudessem mudá-los de lugar quando necessário. Construiu-
se de metal, e nas mesmas dimensões, um número igual de caracteres. Estes eram
destinados a ser comparados pelo aluno com as letras impressas e classificados
em seus compartimentos correspondentes (Itard, 1801/2000).

Ao propor exercícios com as letras do alfabeto, o objetivo era preparar


Victor para a escrita, ou seja, aquela que seria a forma de expressar as
necessidades que não eram comunicadas pela fala. Assim, em uma manhã,
quando Victor esperava seu leite, Itard escreveu a palavra LAIT, colocando as
quatro letras sobre uma prancha. A Senhora Guérin, já avisada do procedimento,
deu uma xícara cheia de leite para Itard. Itard repetiu o mesmo procedimento
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com Victor. Ele rapidamente recolocou as letras em ordem inversa (TIAL). Itard
indicava as correções, apontando o lugar correto de cada letra: “(...) quando essas
mudanças reproduziram o signo da coisa, não o fiz mais esperar” (1801/2000, p.
174).

Após oito dias veio a prova da compreensão de Victor sobre a relação entre
a disposição alfabética e uma de suas necessidades. Victor, ao sair, pegou por
conta própria as quatro letras em questão e as colocou no bolso. Chegando ao seu
destino, dispôs esses caracteres sobre a mesa, formando a palavra “lait”, numa
clara alusão a este alimento.

Após nove meses de trabalho com Victor, Itard conclui:

(...) o menino, conhecido pelo nome de selvagem do Aveyron, é dotado do


livre exercício de todos os seus sentidos; que dá provas contínuas de
atenção, de reminiscência, de memória; que pode comparar, discernir e
julgar, aplicar enfim todas as faculdades de seu entendimento a objetos
relativos à sua instrução [...] se concluirá daí que sua educação é possível,
se é que já não está garantida por esses primeiros sucessos. (1801/2000, p.
174, grifo do autor).

Victor aquém das expectativas de Itard e o final de uma experiência


educativa inovadora

No início de seu segundo relatório, escrito cinco anos após o primeiro, Itard
revela seu pessimismo: “(...) eu teria envolvido num profundo silêncio e
condenado a um eterno esquecimento trabalhos, cujo resultado oferece bem
menos a história dos progressos do aluno do que a dos insucessos do professor”
(1806/2000, p. 183). Itard parecia sentir-se derrotado; após anos de trabalho
diário com Victor, foi vítima de sua visão de homem. Em sua concepção, o aluno
seria a tábula rasa, a folha em branco, a pedra bruta, e o professor o escritor,
escultor, modelador. Justificam-se seus sentimentos.

No segundo relatório, para mostrar o desenvolvimento de Victor subdivide


seu relato: desenvolvimento das funções dos sentidos, desenvolvimento das
funções intelectuais e desenvolvimento das faculdades afetivas. Considerando
que muitas das atividades relatadas nesse documento já haviam aparecido no
primeiro relatório, serão destacadas duas passagens consideradas mais
evidentes das dificuldades encontradas por Itard, exemplificando os motivos que
o fizeram desistir de sua experiência pedagógica com Victor.

51
Itard, com base nos trabalhos de Locke e de Condillac, trabalhou
separadamente os sentidos de Victor, com intenção de desenvolver a faculdade
dos sentidos.

Ao trabalhar com a audição, que para ele era o sentido que mais favoreceria
o desenvolvimento das faculdades intelectuais, isolou esse sentido, privando
Victor da visão, colocando uma venda em seus olhos. Iniciando os exercícios com
sons fortes e bem distintos, seu objetivo não era só fazê-lo “ouvir os sons”, mas
também “escutá-los”. Quando Condillac fez a distinção entre ver e olhar, disse:
“(...) não formamos idéias tão logo vemos; formamo-las apenas quando olhamos
com ordem e método” (1754/1993, p. 173). Infere-se que a diferença entre ouvir
e escutar também seja que “escutar” um som requer “análise”. Nessa perspectiva,
Itard criou um exercício que consistia em estimular Victor a reproduzir um som
igual ao que ele havia emitido anteriormente.

Os sons utilizados no princípio eram bem distintos – o som de um sino e de


um tambor –, mas aos poucos foram sendo apresentados sons menos díspares,
mais complexos e aproximados. Em seguida, passou-se à percepção dos sons de
um instrumento de sopro, sons que, em sua opinião, eram mais análogos aos sons
da voz. Por último, introduziu o som de sua voz, considerado o último grau da
escala para tornar Victor sensível à audição da fala.

(...) punha meu aluno à minha frente, de olhos vendados, de mãos fechadas
e mandava-o estender um dedo todas as vezes que eu emitia um som. Esse
meio de prova foi logo compreendido; mal o som havia impressionado o
ouvido e o dedo se levantava com uma espécie de impetuosidade, e em
geral até com demonstração de alegria, que não permitiam duvidar do
gosto que o aluno fazia nessas esquisitas aulas. (Itard, 1806/2000, p.
188).

Itard achava estranho que seu aluno gostasse dessas “aulas esquisitas”.
Realmente, Victor parecia apreciar essas atividades; entretanto, questiona-se
que tal apreço fosse porque estivesse aprendendo a escutar o som da voz humana,
da forma mecânica proposta por Itard, talvez fosse muito mais pelo contato e
companhia do mestre, por conseguir compreender o que estava sendo solicitado
e poder fazê-lo.

Itard queria que, além de ouvir o som da voz, Victor discriminasse as


modificações e variedades de tons “que compõem a música da fal”. O exercício
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para atingir esse fim foi a comparação das vogais. Estabeleceu que para a emissão
de cada vogal um dedo específico deveria ser levantado. Victor teve dificuldades
iniciais, mas ao cabo de algum tempo foi capaz de diferenciá-las. Foi então que as
demonstrações de alegria de Victor reapareceram. Diz Itard: “Naqueles
momentos, todos os sons eram confundidos, e os dedos indistintamente
levantados, em geral até todos ao mesmo tempo, com uma impetuosidade
desordenada e gargalhadas realmente irritantes” (1806/2000, p. 190). Para
conter sua expressividade, a venda foi retirada. Por sua vez, Victor começou a se
distrair com os mínimos acontecimentos em torno dele e pouco adiantava o
semblante severo e até um pouco ameaçador de Itard. Ele resolveu recolocar a
venda e as gargalhadas recomeçaram.

Itard buscou outra forma de corrigir Victor e, cada vez que ele errava, Itard
batia com uma baqueta de tambor em seu dedo. Victor entendeu que essa era uma
brincadeira. Itard tornou-se mais severo.

Fui compreendido e não foi sem uma mescla de dor e de prazer que vi na
fisionomia entristecida daquele rapaz o quanto o sentimento de injúria
prevalecia sobre a dor da batida. Lágrimas saíram de sob a sua venda;
apressei-me em tirá-la; mas, seja embaraço ou temor, seja preocupação
profunda dos sentidos interiores, embora desvencilhado daquela venda,
ele persistiu em manter os olhos fechados. Não posso descrever a
expressão dolorosa, conferida à sua fisionomia por suas duas pálpebras
assim aproximadas, através das quais escapavam de tempos em tempos
algumas lágrimas. (1806/2000, p. 190).

Victor, que não chorava, mesmo tendo passado por situações em que havia
sido pressionado pela curiosidade alheia e importunado, agora chorava mantendo
os olhos fechados. Não se pode presumir o que os olhos cerrados de Victor
significavam para ele, mas essa cena denuncia o desgaste de Itard devido às
respostas lentas e imprecisas de Victor. Por outro lado, Victor, que via prazer e
divertimento nesses momentos com Itard, algo que não acontecia nos exercícios
com as letras, começou a ficar temeroso: “(...) um sentimento de temor tomou o
lugar daquela alegria louca (...) quando eu emitia um sinal tinha que esperar
durante mais de um quarto de hora o sinal combinado” (Itard, 1806/2000, p.
191).

O medo e a insegurança começavam a corroer a relação de confiança


construída pacientemente. Ao mais leve barulho, o menino espavorido tratava de

53
recolher o dedo e escolher outro para levantar com a mesma lentidão. Mesmo
depois de algum tempo, se Itard voltasse a tentar esse tipo de exercício, logo tinha
de abandoná-lo.

Contudo, Itard considerou que a série de experiências realizadas com o


sentido da audição não foi totalmente inútil. Atribuía a ela, e não à convivência de
Victor com ele, entender algumas palavras de uma sílaba só e distinguir as
entonações da linguagem, que exprimem reprimenda, amizade, desprezo, mesmo
que elas não viessem acompanhadas de pistas fisionômicas ou gestuais.

Mas o trabalho com os sentidos era somente a parte inicial do projeto


pedagógico de Itard; o segundo momento, a construção de um sistema de
representação da realidade por meio da palavra, seria muito mais relevante, mas
impossível de ser atingido sem o primeiro. Segundo Itard, a “representação dos
signos” não era parte do campo dos sentidos externos; era preciso recorrer ao
desenvolvimento da faculdade da mente.

Considerando a fala o “principal motor da educação”, resolveu investir no


“sentido da visão”. Para atingir seu objetivo, tinha de “exercitar os olhos para
apreender os mecanismos da articulação dos sons, e a voz para repeti-los,
mediante uma aplicação acertada de todas as forças reunidas da atenção e da
imitação” (Itard, 1806/2000, p. 215). Itard teve que estudar a melhor forma de
mostrar como se articulavam os sons, pelos movimentos dos músculos da face; e,
durante mais de um ano

(...) lá estão o professor e o aluno em frente um do outro, cada um


careteando mais que o outro, ou seja, imprimindo aos músculos dos olhos,
da testa, da boca, do maxilar, movimentos de toda espécie; concentrando
pouco a pouco suas experiências nos músculos dos lábios e, após ter
insistido muito tempo no estudo dos movimentos dessa parte carnuda do
órgão da fala, submetendo enfim a língua aos mesmos exercícios, porém
muito mais diversificados e continuados por muito mais tempo.
(1806/2000, p. 215).

Com esses exercícios mecânicos, Itard não conseguiu atingir os resultados


esperados. Victor emitiu nada mais do que alguns monossílabos, ora graves, ora
agudos. Depois de prolongar-se mais algum tempo em seu investimento e, não
tendo obtido aquilo que esperava, a fala, diz ele: “abandonei meu aluno a um
mutismo incurável”.
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O legado de Jean Marc-Gaspar Itard: rupturas, avanços e esquecimento

Partindo da hipótese de que o isolamento havia sido a causa da condição em


que Victor se encontrava, Itard iniciou um projeto pedagógico que valorizou
formas de transformar essa condição que, naquele momento, o colocava em
situação de desvantagem social.

A relação estabelecida entre Itard e Victor foi intensa. Dispor de um


referencial teórico-metodológico para analisar e pautar suas ações permitiu-lhe
apresentar algumas ideias que permanecem atuais e outras que carregam
limitações próprias da época em que viveu.

Itard condizente com a abordagem empirista-sensualista que adotou,


destacou a importância de organizar ambientes de aprendizagem, proporcionar
atividades favorecedoras de desenvolvimento cognitivo, afetivo e
comportamental. Ao utilizar questões para conhecer o que fosse possível da
história de vida de Victor possibilitou reflexões concernentes à prática
classificatória.

A partir da experiência pedagógica com Victor destacou que a medida da


aprendizagem e do desenvolvimento de uma pessoa só pode ser obtida quando ela
for comparada a si mesma. Pareceu compreender que, ao adentrar a área da
classificação sintomatológica (fosse ela da inteligência, fosse da doença mental),
estaria no domínio das objetivações. Pois quando classificamos pessoas, mesmo
que a história de vida desse sujeito seja considerada importante, o que é
realmente relevante são os sintomas e as categorias nas quais a partir deles se
insere aquele que os possui. Nesta lógica, ao buscar transcender o individual, em
direção à objetividade, daquilo que é comum nas doenças, nos transtornos, nas
deficiências, acaba-se por produzir a redução da compreensão das idiossincrasias
que são próprias da constituição do ser humano. Adotar essa forma de pensar na
área educacional além de restritivo é como preconizou Itard, algo que não suscita
a necessidade de compreensão da história daqueles que são considerados foram
dos padrões de normalidade.

No período em que estiveram juntos, Itard demonstrou uma enorme crença


na possibilidade de educar Victor; foi inventivo, criou métodos para atingir seu
objetivo, colocou o espírito científico e experimental da época a serviço da

55
educação. Ao abandonar o projeto educacional de Victor, triunfaram outras
concepções sobre os cuidados que deveriam ser dispensados às crianças
“alienadas”, tais como o asilamento e a segregação. Esquirol (1818, como citado
em Misès & Gineste, 1976) ao referir-se à educação de Victor demonstra a
descrença que recaiu sobre suas possibilidades de aprendizagem: “De todas essas
pretensões, de todos esses esforços, de todas essas promessas, de todas essas
esperanças, o que é que resultou? Que o médico observador [Pinel] havia julgado
acertadamente. O Selvagem não era senão um idiota” (p. 77). Bourneville (1904,
como citado em Misès & Gineste, 1976) citando Delasiauve apresenta o mesmo
discurso:

O selvagem de Aveyron foi o que de acordo com sua natureza doente devia
ser. Certas virtualidades não existiam (...). Seu nível estava marcado pela
mediocridade de seu julgamento e de sua sagacidade indutiva. Ele não tinha
nada além da intuição. Seu egoísmo não era mais que uma consequência
natural de sua organização incompleta. Em todos nossos idiotas, o instinto
comanda. (p. 77).

Tal enunciado denuncia o que uma visão estereotipada pode gerar, nele não
se considera nenhum dos avanços feitos por Victor, sua aprendizagem e seu
desenvolvimento no período em que ele convive com Itard. Não existe nenhum
questionamento das causas que o levaram a regredir, assim que Itard deixou de
ensiná-lo com a intensidade inicial. Opta-se pelo caminho mais fácil, pelo óbvio:
sua natureza é doente. Instintivo como os animais, ele, bem como os outros
“idiotas” devem ser institucionalizados e não educados.

Itard calou-se. Soterrado pela interpretação de seus contemporâneos que


viam nos fatos seu fracasso, sucumbiu. Entretanto, fez tudo o que pôde para que
Victor não fosse para Bicêtre, mesmo quando Victor atingiu a idade adulta.
Conseguiu que a senhora Guérin ficasse com Victor até sua morte, em 1828.

O legado de Itard foi esquecido, ou parcialmente reduzido à discussão das


práticas pedagógicas como técnicas de ensino. Perde-se, assim, o que ele tem de
precioso e que nos convida a reler sua obra: o entendimento de que o homem é um
ser de relações, para o qual a educação é fundamental para sua constituição como
ser social, histórico e cultural.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Referências Bibliográficas

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of the controversy between Pinel and Itard. Société médico-psychologique, France,
2(1), jun.73-80.

57
CAPÍTULO III

Édouard Séguin (1812-1880)


Kaciana Nascimento da Silveira Rosa

Figura 3: Édouard Séguin


Fonte: Yves Pelicier et Guy Thuillier31

31 Descrição da foto: busto de frente de Édouard Séguin, com rosto austero. Na época da foto estava com
uma longa barba e já apresentava sinais de calvície na frente e no centro da cabeça. Vestia um casaco
escuro, camisa branca, com gravata escura. Por ser a foto em branco e preto, não há como identificar as
cores. Legenda da foto: Pelicier, Y. & Thuillier, G. (1980). Édouard Séguin : 1812-1880 : "l'instituteur des
idiots". Michigan : Économica.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Edouard Onesimus Séguin nasceu em 20 de janeiro de 1812, em Clamecy,


na França, e morreu em 28 de outubro de 1880, em Nova Iorque, aos 68 anos.
Durante toda a sua vida, Séguin buscou superar uma medicina e uma educação
incapazes de considerarem a realidade dos alunos por meio de propostas e ações
junto a crianças e jovens com deficiência intelectual. A síntese das ideias de suas
principais obras – Idiocy and its Treatment by the Physiological Method
(1866/1907) e Traitement moral, hygiène et éducation des idiots et des autres
enfants arriérés (1846) – serão apresentadas neste capítulo, com o objetivo de
demonstrar todo o seu empenho em mostrar que todas as crianças, conforme as
suas possibilidades, podem aprender.

O Método Fisiológico de Séguin: Princípios Gerais

Nas primeiras páginas de Traitement Moral, Edouard Séguin orienta os


leitores de que sua obra não deve ser lida como um romance e promete que, em
poucas palavras, mostrará como “corrigir” quase tudo por meio do método
fisiológico.

De acordo com Séguin (1866/1907), o “método fisiológico” consiste na


adaptação dos princípios da fisiologia, através dos meios fisiológicos e
instrumentos, para o desenvolvimento da dinâmica, funções perceptivas,
reflexivas e espontâneas da juventude; no entanto, mais do que isso, o “método
fisiológico” de Séguin deve ser entendido como uso de atividades sensoriais para
o desenvolvimento cognitivo do aluno. Assim, no que se refere às experiências de
sucesso, por meio do conhecimento que possuía da fisiologia, Séguin aponta os
trabalhos de Jacob Rodrigues Pereira, que ensinou surdos congênitos a falar,
comunicando-lhes não apenas uma voz natural e uma pronúncia correta, e o
trabalho de Jean Marc Gaspard Itard com Victor, ambos apresentados neste
livro.

Séguin relata que as lições dos Hospitais dos Incuráveis e do Bicêtre, bem
como das escolas em Boston32 e Syracuse33, atraíam visitantes de diversos

32 Primeira Instituição Estadual, fundada em outubro de 1848, em Boston (SÉGUIN, 1866/1907).


33Primeira escola construída para crianças com deficiência intelectual, fundada em 8 de setembro de
1854, em Syracuse/ Nova York.

59
lugares com o intuito de levar alguns dos princípios ou instrumentos usados na
educação de pessoas com deficiência. Com isso, os médicos já não podiam escrever
sobre doenças de crianças sem enfatizar o tratamento moral ou funcional, nem
os professores deixariam de aplicar em suas escolas alguns exercícios da
ginástica sensorial, de imitação etc. Em tese, nesse período inicial de utilização
do método fisiológico, Séguin (1866/1907) afirma que “os idiotas eram os
médicos e os professores” (p. 57). As pessoas com deficiência ensinaram tanto
quanto poderia ser visto e compreendido em uma visita; além de mostrarem que
não são seres repulsivos, e qualquer lugar será abençoado se mulheres e homens
se dedicarem à tarefa de educá-los. Foi assim que, segundo Séguin, as instituições
de educação especial surgiram em todo o mundo e o “método fisiológico” foi
espalhado aos poucos em cada estabelecimento de ensino.

Assim, a educação proposta por Séguin, independente do sujeito, deve


proporcionar o desenvolvimento das funções do cérebro; das funções musculares;
das funções sensoriais; dos órgãos do movimento; do pensamento; das sensações;
das funções psicológicas34; da força de trabalho; e da inteligência e moralidade.

Séguin (1846) explica também que, com crianças que não têm deficiência,
a educação, por meio do “método fisiológico”, irá regularizar a utilização de órgãos
saudáveis e ampliar o campo em que suas funções são realizadas livremente,
voluntariamente e quase sempre prontamente. Já para a pessoa com deficiência
intelectual, a possibilidade do surgimento de problemas inesperados como a
esquiva do aluno e a dificuldade de avaliar os sintomas externos, pode deixar uma
considerável incerteza sobre os resultados finais da utilização do método,
independentemente do sucesso inicial. Para Séguin, o surgimento desses
problemas dependerá da condição do sistema nervoso da pessoa com deficiência
intelectual; entretanto, isso não pode ser uma razão para se recusar a ensinar.
Nesse sentido, o sucesso da educação dependerá do método, da paciência e do
respeito que o professor deve ter com seu aluno.

A proposta de educação de Séguin envolve três princípios fundamentais,


que são: a atividade, a inteligência e a vontade. De acordo com Séguin (1846),
esses três aspectos do ser humano correspondem respectivamente ao

34 De acordo com os conhecimentos existentes nessa área na época.


Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

sentimento, à mente e à moral. Assim, a atividade é o sentimento traduzido em


ação, a inteligência é a função da mente e a vontade é a espontaneidade
moralizada.35

Segundo essa hipótese trinitária, teremos de educar a atividade, a


inteligência e a vontade, como três funções humanas, e não como três
entidades antagônicas. Vamos ter de educá-los, não como um objeto em série
(como a teoria de A. Comte), mas como uma unidade. (Séguin, 1866/1907,
pp. 58-59).

Essa é, portanto, a “Fórmula Especial” do método educacional de Edouard


Séguin.

1º Princípio: A atividade

O primeiro princípio fundamental do método educacional de Séguin é a


atividade. Séguin (1846, p. 345) explica a atividade como “uma série de funções,
de caráter geral ou particular, relacionada aos hábitos individuais e sociais, e que
precisam ser ensinados ou corrigidos em todas as crianças, especialmente nos
idiotas”.

De acordo com Séguin, antes de avançarmos para as especificidades do


método de educação, a individualidade36 das crianças precisa ser assegurada:
“(...) o respeito da individualidade é o primeiro teste da aptidão de um professor.
À primeira vista, todas as crianças parecem iguais; em seguida as inúmeras
diferenças aparecem como obstáculos intransponíveis, porém mais bem
visualizados” (1866/1907, p. 26).

Assim, para educar uma criança com deficiência intelectual, deve-se


começar com a avaliação diagnóstica correta de cada sujeito, pois assim poderão
ser planejadas atividades específicas para cada caso. Feita a avaliação
diagnóstica e a elaboração das atividades, coloca-se em ação as intervenções
pedagógicas; para que, em seguida sejam avaliados os impactos do tratamento em
cada sujeito e feitas as devidas correções, se houver necessidade.

Desse modo, a ginástica muscular do sistema de educação de Séguin tem


como objetivo criar um equilíbrio das funções, dando mais atenção ao sistema

35Esse termo tinha, na época, um sentido relacionado à regulação das atitudes, dos comportamentos,
sentimentos e hábitos.
36 Maria Montessori usará, mais tarde, esse princípio como um dos norteadores do seu sistema de ensino.

61
nervoso do que ao sistema muscular, haja vista que o primeiro é o mais
comprometido na deficiência intelectual (Séguin, 1866/1907). Com isso, Séguin
apresenta uma nova concepção de ginástica muscular, visto que a antiga tinha
como única preocupação apenas o desenvolvimento muscular e de nada
adiantaria sua inclusão em programas de educação.

As atividades propostas por Séguin foram baseadas em trabalhos diários e


em divertimentos comuns a todas as crianças (Rosa, 2012). São atividades
realizadas com pá, carrinho de mão, arcos, cavalo de madeira, martelo, bola etc.;
no entanto, Séguin (1866/1907) alerta que esses recursos devem ser usados com
moderação, e a tendência ao exagero deve ser evitada. Dessa forma, os exemplos
práticos contidos nos escritos de Séguin mostram, detalhadamente, as atividades
utilizadas para que os objetivos do programa educacional fossem alcançados.

Ao afirmar que “o idiota é uma pessoa desprovida de força muscular, cuja


força é desorganizada ou não existe” (Séguin, 1846, p. 355), Séguin indica os
primeiros passos do seu trabalho de organização dos movimentos e surgimento
da vontade.

Assim, Séguin (1866/1907) coloca como um dos seus objetivos propiciar a


“educação da mão”37. Para ele, “a mão é um órgão de preensão. Sua incapacidade
coloca uma barreira entre o idiota e tudo a ser adquirido” (p. 77).

Desse modo, educar a mão não é educar as palmas das mãos, cuja espessura
muscular, em sua grande maioria, já se encontra bem preparada para o
reconhecimento das propriedades dos objetos, mas educar a ponta dos dedos,
visto que essa parte mole é destinada a percepções mais delicadas. Assim sendo,
esse delicado poder tátil das mãos torna-se objeto de educação sensorial.

“Quanto menor o órgão, mais complexo são suas funções” (Séguin,


1866/1907, p. 87), considerando as diversas maneiras de usar as extremidades
das mãos (movimentos de apreensão, manipulação, modificação de objetos etc.)
com o objetivo de dar habilidade aos dedos. Séguin, apesar de descrever muitos
exercícios para a educação da mão em suas duas obras, informa que não
apresentou todas as atividades que foram utilizadas para esse fim. Ele indica

37Educar a mão foi considerado por Séguin e, mais tarde por Montessori, como necessário para o
aprendizado escrita.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

apenas algumas das que acreditava serem verdadeiramente de base fisiológica e


que poderiam ser utilizadas com pessoas com deficiência ou não. Algumas dessas
atividades, Séguin atribuiu o nome de “Ginástica Prática38”.

A Ginástica Prática são as várias funções que realizamos na vida cotidiana,


tais como: levantar, caminhar, correr, escalar, subir, descer, correr, cortar,
cortando, serrar, barbear, puxar, arrastar, rolar, semear, plantar, regar, colher,
cortar e costurar, laçar, desatar, abotoar, dobrar, reverter, lavar etc. Séguin
dispunha de um pequeno ginásio e um professor paciente para ensinar desde as
ações mais simples, pois muitas crianças com deficiência precisam de cada
minuto de destreza para lidar com um botão, um copo, um garfo, tesoura, caneta
etc., além de muita atenção e empenho (Séguin, 1846).

Séguin também indica a imitação como meio de educar tanto os


movimentos (educação muscular) quanto os sentidos (educação sensorial). Em
seu Traitement Moral, Séguin (1846) define a imitação como a capacidade
natural que os seres humanos compartilham com os animais. Para ele, a imitação
desempenha um grande papel em todos os atos da vida; é através dela que as
formas individuais (determinados gestos, certos hábitos etc.) são adquiridos
(Rosa, 2012).

Ainda sobre a imitação, Séguin afirma que somente quando a imobilidade é


obtida podemos começar com tais exercícios, e para ilustrar tal afirmação,
apresenta o caso de um de seus alunos.

A. H. era de uma petulância indomável, subindo como um gato,


escapando como um rato, não conseguia ficar em uma posição ainda
que fosse por três segundos. Eu o coloquei em uma cadeira, sentei-me
diante dele, segurando seus pés e joelhos entre os meus, uma das
minhas mãos fixadas em suas mãos, ambos sobre seus joelhos,
enquanto a outra retornava constantemente para mim seu rosto
móvel. Ficamos assim cinco semanas, fora as horas de comer e dormir,
mas, após esse tempo, A. H. começou a ficar de pé e quase imóvel.
(1846, p. 366).

38Montessori incluiu, anos mais tarde, essas atividades no seu sistema de educação dando-lhes o nome de
“Atividades de Vida Prática”.

63
Séguin também nos diz que é através da percepção dos estímulos que se
consegue realizar atos por imitação. Por isso, a educação sensorial é fundamental
para a aprendizagem das crianças com deficiência intelectual.

De acordo com Séguin (1846, pp. 375-376), “é através do sistema nervoso


e dispositivos sensoriais que chegam ao homem todas as sensações externas que
são, de longe, as mais numerosas na vida de relação e na vida social”. Em outras
palavras, Séguin, assim como Pereira e Itard, comungam da importância da
educação dos sentidos para a educação da criança com deficiência intelectual.

Para Séguin, sem a educação dos sentidos ele não conseguiria ensinar seus
alunos com deficiência intelectual, porque todos os sentidos são considerados
como modificações da propriedade tátil e receptores do toque de várias maneiras.
Na Audição, as ondas sonoras atingem os nervos acústicos; na Visão, a retina é
tocada pela imagem levada pelos raios luminosos encontrada no foco; o Paladar e
o Olfato são modificações parecidas e estão diretamente associados. Observa-se,
portanto, que a tarefa do professor é apenas propor atividades que favoreçam a
parte inicial da função do órgão do sentido, visto que a ideia é transportada pelos
nervos para os gânglios especiais, e os gânglios sensoriais, depois de percebê-lo, o
envia para ser registrado nos hemisférios (Séguin, 1866/1907). Desse modo, a
educação dos sentidos é fundamental para o desenvolvimento da inteligência.

2º Princípio: A inteligência

Em relação ao segundo princípio, a inteligência, Séguin explica que o


desenvolvimento das faculdades da mente será o objetivo a ser alcançado por
meio de exercícios específicos e especiais, especificamente os utilizados para a
educação e o conhecimento sensorial, visto que será por meio deles que a criança
alcançará noções positivas para pensar com precisão a ordem abstrata, como
será visto adiante.

Dessa forma, Séguin tratou, inicialmente, de exercícios para a


aprendizagem da fala. Em seus anos de experiência, ele verificou que a maioria
das crianças com deficiência intelectual fala de forma incompreensível ou
simplesmente não fala. As razões para esse silêncio são muitas, por isso ele opta
por não entrar na discussão das causas e nem das categorias que poderiam ser
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

estabelecidas sobre os defeitos da fala, no entanto, propõe meios de superá-las. A


esses exercícios, Séguin atribuiu o nome de “Ginástica da Fala”.

O sucesso do método de Séguin no Bicêtre se deu devido às muitas crianças


que ele ensinou a falar. O método é explicado, detalhadamente, em seu
“Traitement Moral” e consiste nos seguintes exercícios: Quando a criança já
adquiriu hábitos de imitar, o professor poderá chamar sua atenção para os traços
do rosto e, assim, focalizar a atenção no trato vocal. Apertam-se os lábios
horizontalmente, depois se introduzem na boca ligeiramente, dois ou três dedos
com os lábios abertos. Com isso, ouvem-se alguns gritos de alegria. Quando a
dificuldade não tem nenhuma relação com a língua e o palato, o professor deverá
mostrar o movimento da língua para fora da boca, para frente, para cima e para
baixo. Caso a criança não consiga fazer o movimento voluntariamente, ela pode
ter a ajuda da mão para levantar a ponta da língua e segurá-la. Se, mesmo assim,
ela não conseguir realizar esses movimentos, eles serão produzidos usando uma
faca de madeira ou uma colher de marfim para dar suporte à língua. Quando se
consegue a produção de sons, devem-se imitar os sons da voz humana para que a
criança faça o mesmo. A fala é determinada pelo comando e imitação (SÉGUIN,
1846).

Nota-se que, apesar de Itard não ter conseguido êxito na tarefa de ensinar
Victor a falar, Séguin inspirou-se nas atividades propostas por seu mestre em seu
plano educacional.

Assim, lá estão professor e o aluno em frente um do outro, cada um


careteando mais que o outro, ou seja, imprimindo aos músculos dos olhos,
da testa, da boca, do maxilar, movimentos de toda a espécie; concentrando
pouco a pouco suas experiências nos músculos dos lábios e, após ter
insistido muito tempo no estudo dos movimentos dessa parte carnuda do
órgão da fala, submetendo enfim a língua aos mesmos exercícios, porém
muito mais diversificados e continuados por mais tempo. Assim preparado,
o órgão da palavra parecia-me adequar-se sem dificuldade à imitação dos
sons articulados, e eu olhava esse resultado como tão próximo quanto
infalível. (Itard, 1806/2000, p. 215).

Após essa preparação, principalmente por meio da imitação, Séguin orienta


que se deve iniciar com o estudo de sílabas simples que terminam em uma vogal,
e não por vogais isoladas, como era feito normalmente, naquela época. Muitas
escolas acreditavam que a emissão de vogais seria mais fácil do que as consoantes
porque para a criança é mais fácil dizer “O” do que “MO”, “I” do que “BI” etc. Séguin

65
(1846) discorda, alegando que, se assim fosse, depois de ensinar a emissão de
vogais, a criança deveria aprender a articulação de sílabas compostas de uma
primeira vogal e uma consoante, para se deslocar do conhecido para o
desconhecido, do fácil para o difícil, do simples para o complexo. O fato é que
ninguém nunca pensou que é mais fácil dizer “MA”, “BO”, “NI”, do que “AM”, “OB”,
“IN”; por isso a emissão de certas consoantes tem que preceder a das vogais.

Como tudo isso é o contrário do que era ensinado na época, Séguin (1846)
traz algumas observações para corroborar seu ponto de vista.

Sob o apoio da minha primeira afirmação, eu observei que até que a criança
faça os sons A, I, O, ela não fala, grita ou canta.
Por segundo, eu lembro que a mesma criança não começa a dizer: AP, EM,
OB, mas PA, ME, BO.
Em terceiro, eu diria que essas sílabas são todas labiais, começando pelas
mais simples, MA ou BO, de acordo com a disposição relativa dos lábios. PA
sendo o primeiro articulado pelas crianças, nas quais a energia de sucção,
ou alguma causa semelhante, desenvolveu força contráctil dos lábios de
uma forma excepcional. (p. 400).

Torna-se importante ressaltar que os exercícios utilizados para a “ginástica


da fala” devem ser pensados e aplicados de acordo com cada aluno, respeitando o
princípio da individualidade.

A visão

A visão é descrita por Séguin como sentido ativo e requer também uma
educação mais metódica. Nas crianças com deficiência intelectual, Séguin
percebeu que a maioria delas executa funções involuntárias em relação ao sentido
da visão. Nas palavras de Séguin, “eles veem, mas eles não enxergam” (1846, p.
416), isso porque eles direcionam sua visão para uma direção que parece não
abraçar a sua linha de visão, além de serem mais lentos.

Séguin (1846) indica a visão como um dos sentidos mais difíceis de


trabalhar, porque “o olho é um órgão delicado envolvido em uma órbita rígida,
coberta pelas pálpebras, alertado pelos cílios, e, consequentemente, inacessíveis
para qualquer direção material: então como fazer?” (p. 416).

Entre os exercícios para a educação da visão, Séguin (1846) recomenda


atividades que tratem da distinção entre as propriedades físicas dos corpos, tais
como: cor, forma, tamanho, configuração, layout e desenho.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

a) Cores: aconselha-se que sejam cortados vários quadrados e


octógonos de papelão colorido. O professor colocará dois quadrados de papelão
em uma tabela, laranja e azul, e entregará à criança dois octógonos laranja e
azul que estão nas caixas, indicando-lhe e ordenando-lhe para colocá-los sobre
os quadrados da mesma cor. Caso a criança não compreenda, o professor
executa o exercício de uma cor, e o aluno repetirá o comando com a outra cor.
Se a criança consegue perceber a semelhança das cores e realiza a atividade com
sucesso, incluímos mais uma cor para aumentar o nível de dificuldade. Sugere-
se que se deve começar com o ensino das cores primárias.

b) Dimensões: São serradas vinte réguas39: a primeira com cinco


centímetros de comprimento, a segunda com 10, a terceira 15 etc., até a
vigésima, que tem 100. Cada intervalo de 5 cm é mostrado nos quatro lados de
cada régua, por uma linha com uma serra e lápis. O professor, mostrando os
extremos (a de 5 e 100 cm), pede à criança que pegue a maior e, em seguida, a
menor. As outras réguas são adicionadas progressivamente. Feito isso,
misturam-se todas as réguas, e pede-se que a criança pegue as réguas, uma por
vez e, a partir da voz de comando, da menor para a maior. Esse tipo de
comparação será aplicado a todos os objetos.

c) Configuração: são utilizadas várias placas em que são esculpidas as


formas (ocas para encaixe) que se deseja ensinar. Para cada forma oca esculpida
na placa, há outra móvel que se encaixa perfeitamente na placa. O professor
entrega para a criança uma forma móvel e ela deverá encontrar a cavidade
exata de sua forma na placa que está a sua frente. Caso ela tente colocar a forma
em outra cavidade, ela não terá sucesso, isto é, o material é autocorretivo; no
entanto, poderá tentar encontrar o lugar da forma quantas vezes forem
necessárias até encontrar a forma oca correspondente.

d) Layout: usam-se placas e imitação. O professor deverá colocar duas


placas em diferentes posições; em seguida, deve entregar também outras duas
placas para a criança e solicitar que ela faça a mesma figura. Depois se adiciona

39Material semelhante às “barras vermelhas e azuis” do Sistema Montessori de Educação; no


entanto, Montessori reduz o número de divisões para 10 (dez barras), a menor medindo 10
centímetros e a maior 1 metro.

67
a terceira, a quarta e a quinta placas na figura original e pede-se à criança que
faça a mesma coisa na sua combinação. Por fim, desorganiza-se a figura e
solicita-se à criança que a construa novamente.

e) Plano: o conhecimento das propriedades do plano dependerá de


exercícios como a montagem figuras, a situação relativa das linhas que formam
o desenho e a escrita, o contorno dos objetos, corte, modelagem e diversos modos
de expressar um significado por linhas no plano.

f) Imagens: álbum contendo imagens, cujos temas correspondam ao


conhecimento já adquirido, organizadas na seguinte sequência: linhas; formas;
aplicação das formas típicas, como desenhar um carro, casa etc.; distinção entre
os animais de acordo com seu tamanho, sua forma, cor, ferocidade, sua
utilidade, sua inteligência; e jogos e exercícios para crianças.

g) Desenho: traçar linhas de várias espécies; localizar as linhas em


várias direções e em várias posições em relação ao plano; e juntar as linhas para
formar figuras graduadas, do simples para o composto.

A Escrita e a Leitura

Para Séguin (1846), os conceitos que envolvem a leitura e a escrita são: 1º)
plano; 2º) cores; 3º) abstração linear; 4º) dimensões; 5º) configuração; 6º)
relação do nome com uma figura; 7º) relação da figura com o nome; 8º) relação
entre uma só emissão de voz ou sílaba e diversos sinais; 9º) relação de diversos
sinais a diversas articulações sucessivas; 10º) relação da palavra, escrita e
pronunciada, com a sílaba que ela representa. Assim, os sete primeiros
conduzirão ao conhecimento das letras; os dois seguintes (relação de uma só
emissão de voz ou sílaba com diversos sinais e a relação entre diversos sinais e
várias articulações sucessivas) iniciarão na leitura mecânica; e o último, relação
entre a palavra escrita e pronunciada com a ideia que ela representa, fará a
transposição do domínio das noções ao das ideias. Foi apoiado “no conhecimento
desses conceitos e nas indicações da história40” (p. 449) que Séguin projetou seu
alfabeto.

40Acredita-se que a principal inspiração de Séguin para a elaboração do seu alfabeto tenha vindo do
material elaborado por Itard para ensinar o alfabeto a Victor. Montessori também se apropria dessa ideia
para a elaboração de seu alfabeto móvel.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

O alfabeto elaborado por Séguin (1846) consistia em um armário, onde são


encontrados vinte e cinco caixas de papelão móveis, cada qual contendo uma letra
pintada que coincide precisamente com uma letra de metal. Esse armário foi
projetado para limitar o olhar da criança aos objetos que ele contém. Desse modo,
o alfabeto móvel era dividido em dois conceitos, a configuração de letras e os seus
respectivos nomes: “Esta divisão mais do que lógica, é necessária para todos os
idiotas, e indispensável para aqueles que ainda não falam” (p. 451).

Essa forma dual de educação para Séguin auxiliará na gradação do


desenvolvimento intelectual, na verificação dos alunos que conseguem
identificar as letras e dos que ainda não são capazes de citar as letras que
lhes são apresentadas. (Rosa, 2012, p. 94).

Para a ordem de apresentação das letras, Séguin (1846) indica três formas,
que são: por ordem alfabética, pela ordem de configuração e pela ordem da
articulação.

Na ordem de configuração, baseando-se nas leis de semelhança, Séguin


indica o ensino das letras “A” e “V”; “E” e “F”; “M” e “N”; “T” e “L”; “D” e “P”; “B” e
“R” etc.; com base na lei da diferença, Séguin indica as letras “I” e “0”.

No trabalho de nomear vogais, Séguin (1846) propõe a distinção por


articulação, e as consoantes por analogia, na seguinte progressão: “Labiais (B, P,
M); labiodentais (F, V); dentais (C, G, H, J, S, Z); dento linguais (D, N, T); linguais
(L, R); guturais (G, R, Q, C); gutural-linguais (G, J)” (p. 453, tradução da autora).

Desse modo, quando a criança começa a ler sílabas e avança na leitura, as


primeiras palavras devem ser escritas, ou melhor, impressas em cartões, e deve-
se solicitar, logo após a leitura, a associação com os respectivos objetos que
representam. Em seguida, apresentam-se os objetos com o objetivo de encontrar
o seu respectivo nome entre um grande número de palavras (Séguin, 1846).
Séguin enfatiza que o importante é que a criança não leia uma única palavra sem
entendê-la.

Com a aprendizagem da leitura e escrita, Séguin orienta para o uso de


atividades que favoreçam a compreensão das noções e ideias que uma palavra
comporta. De acordo com Séguin (1846), as ideias são fenômenos abstratos da
natureza da mente “muito menos problemática do que o corpo” (p. 458). A partir
desse princípio, Séguin tenta mostrar as diferenças entre noções e ideias.

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Para Séguin (1846), os sentidos são os agentes imediatos das noções e a
inteligência é o agente imediato das ideias. Contudo, a principal diferença entre
uma noção e uma ideia “é que a primeira aprecia as propriedades físicas das
coisas, e a segunda, suas relações; que uma aprecia a identidade do corpo, e a
outra sua correlação real e possível” (p. 459). Séguin também evidencia que a
noção é uma operação passiva ou de percepção, e a ideia uma operação ativa ou
de dedução. “A noção é a base das operações dos sentidos, enquanto a ideia é
produto do raciocínio” (p. 460). Assim, a educação de todas as crianças, deve
iniciar-se pelo estudo dos conceitos que abrangem todos os fenômenos
perceptíveis pelos sentidos.

O Ensino da Gramática

No ensino da gramática, Séguin indica atividades para a aprendizagem dos


substantivos, adjetivos, verbos e preposições.

a) Substantivos: para nomear objetos de acordo com seu gênero,


espécie e funcionalidade, indica-se uma ordem de sucessão, sempre do
conhecido para o desconhecido. Esta ordem consiste em: fazer a relação do
objeto com suas propriedades ou qualidades, que é o adjetivo; ser nomeado em
ação e susceptível quer por ele mesmo quer por um impulso externo, ou seja,
verbos ativos e passivos; fazer a relação entre as palavras, por meio da
preposição.

b) Adjetivos: as qualidades são as partes essenciais das coisas. “O


nome designa a espécie, sexo, especialidade, e o adjetivo exprime as
propriedades ou qualidades” (Séguin, 1846, p. 467). O amplo programa
desenvolvido para a educação dos sentidos auxilia a percepção das qualidades
dos objetos, além de possibilitar a elaboração de vários conceitos apreciados em
um único objeto.

c) Verbo: para Séguin, o verbo é a ação e sem ele nada se move. Indica-
se, portanto, o uso de verbos para a execução de comandos por parte do aluno;
no entanto, o professor deve observar se o aluno compreendeu a ordem dada ou
se a ação foi instintiva. Nesse sentido, para verificar se houve compreensão,
Séguin (1846) aconselha o uso de cartões ou fichas com várias ações escritas: o
professor diz o comando e o aluno deverá primeiro mostrar a palavra escrita
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

correspondente ao comando para, em seguida, produzir o movimento indicado.


Para os tempos verbais, Séguin (1846) diz que, no trabalho com crianças com
deficiência intelectual, o infinitivo parece ser o mais adequado para dar a ideia
absoluta do verbo, porque deixa clara a compreensão da ação.

d) Preposições: é a relação entre duas ou mais palavras. Por meio das


preposições, o professor pode ampliar o ensino da criança com deficiência
intelectual, estabelecendo diversas relações entre as mesmas coisas e/ou
pessoas e empregando o mesmo verbo.

Memória

A memória é apresentada no método educacional de Séguin no intuito de


mostrar a sua importância para o desenvolvimento intelectual do aluno. Desse
modo, trabalha-se a memória por meio de comandos, que partem dos mais simples
para os mais complexos; do uso de materiais de uso cotidiano do aluno; bem como
a utilização de músicas e discursos para exercitá-la. Para Séguin, o importante é
ensinar ao aluno coisas que deixam “as sementes das ideias” em sua mente.

Ao trazer atividades que exigem memória, observa-se, mais uma vez, o


trabalho de Itard como fundamento teórico-prático do método de Séguin para
ensinar alunos com deficiência intelectual. Séguin (1846), em Traitement Moral,
escreveu sobre o prazer em compartilhar das mesmas ideias de Itard no que se
refere às funções da memória: “Estou feliz em poder fazer aqui esta homenagem
ao meu mestre, Itard, que nunca entendeu de outra forma que eu as funções da
memória, e eu nunca me desviei de forma alguma a este respeito sobre sua prática
excelente” (p. 474).

Aritmética

De acordo com Séguin (1846), a aritmética é a ciência dos números e seu


objetivo é o cálculo; entretanto, o seu ensino para crianças com deficiência
intelectual não pode limitar-se apenas a apresentar as abstrações dos números,
porque é por meio do estudo da aritmética que os alunos irão familiarizar-se com
quantidades apreciáveis por eles na vida prática, além de favorecer a clareza do
raciocínio aplicado em situações do cotidiano.

71
Para meus alunos, 1, 2, 3, 4, devem ser coisas, antes de ser quantidades, a
ideia do número sempre anterior ao da figura, como acontece com as
crianças que conhecem as palavras antes de lê-las. Além disso, se esta teoria
do cálculo é invariável, a minha prática de ensino deve variar entre os
indivíduos a quem se dirige. (Séguin, 1846, p. 480).

Para o ensino do cálculo, de acordo com Séguin (1846), recomenda-se a


aplicabilidade na vida cotidiana. Uma das propostas de Séguin para a aplicação
de cálculos em situações do dia a dia é o uso de dinheiro em situações fictícias de
compras. Assim, ensina-se ao aluno o valor da moeda (revisando a nomenclatura
dos numerais), as primeiras noções de adição e subtração e o nome dos produtos
comercializados e consumidos no dia a dia. Séguin conclui que sua ambição “no
que diz respeito ao ensino da aritmética, não se eleva acima disso” (p. 492).

História da Natureza

A proposta de Séguin para o ensino de História Natural com crianças com


deficiência intelectual é ampliar o campo do conhecimento; contribuir para a
satisfação dos prazeres e necessidades dos alunos e limitar os objetos de
investigação aos fenômenos naturais que favorecem o desenvolvimento da
inteligência. Assim, por meio da análise e comparação da anatomia dos animais,
das classificações das plantas, minerais, etc., atribuem-se as noções já aprendidas
como as formas, as cores, as dimensões, as qualidades, sua utilidade ou prazer.
Segundo Séguin (1846), isso requer analisar os conteúdos das ciências naturais
por meio das manifestações mais extremas; das manifestações apropriadas às
suas necessidades; e das manifestações de forma, cor, beleza etc.

Assim, familiarizando a criança com o conhecimento sobre os animais,


plantas, minerais etc., estaremos, além de ampliar o vocabulário (nomes das
diversas espécies, condições de sobrevivência, características etc.) envolvendo a
criança para o surgimento de obrigações no que se refere ao cuidado para com a
natureza.

Cosmografia

Séguin (1846), para o ensino da Cosmografia, retoma as indicações de


atividades para o ensino das dimensões e das distâncias. Assim, ao medir um bolo,
um brinquedo ou calcular a distância de um passeio, a criança estará colocando
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

em prática os conceitos aprendidos por meio da aritmética. No entanto, a criança


com deficiência intelectual, geralmente, quando chega à escola, não possui uma
boa ideia do que sejam o sol, a terra, a lua, as estrelas etc. Desse modo, Séguin
orienta que se quisermos apresentá-los como hipóteses científicas, basta ensinar-
lhes que eles entenderão.

(...) por exemplo, o sol nasce na frente duma janela, e que ele se deita na
frente de uma outra, que ele sobe mais alto e se mostra mais nos longos dias
de verão que no inverno, e que a lua aparece e desaparece do mesmo modo,
que as partes iluminadas da sua superfície não são sempre totalmente
voltadas para a terra etc. (p. 500)

Todas essas explicações, para Séguin, devem ser demonstradas tomando a


natureza sob os olhos da criança. A grande arte é saber, simplesmente, aproximar
o nosso aluno do conhecimento que queremos ensinar. Não se deve limitar o
conhecimento, pois ele está em toda a parte.

3º Princípio: A vontade

O último princípio, da “Fórmula Especial” do método educacional de


Edouard Séguin, é a vontade. A vontade é apresentada como espontaneidade
moralizada por meio do tratamento moral.

O tratamento moral é a ação sistemática de uma vontade sobre a outra, no


intuito de levar à socialização da criança com deficiência intelectual. De acordo
com Séguin, ele dá um sentido social, uma influência moral de tudo sobre suas
ações. Essas influências, destinadas a dar impulso moral à própria vida da
criança com deficiência intelectual, planejam e dirigem todo o tratamento
(Séguin, 1866/1907).

Um dos cuidados de Séguin, durante a apresentação do seu método, foi o de


não misturar o tratamento moral com o método fisiológico.

De acordo com Séguin (1866/1907), muitas crianças e jovens com


deficiência intelectual não conseguem entender, nem seguir uma disciplina
particular expressa por ordens. Para ele, as ordens e regras escolares são mais
bem compreendidas por meio do contato com outras crianças. Observa-se,
portanto, que Séguin já indica o que hoje seria denominado inclusão escolar como

73
possibilidade de proporcionar avanços na educação de crianças com deficiência
intelectual por meio da socialização com as crianças sem deficiência.

A educação moral é nada mais do que uma revelação. Para Séguin, o seu
ensino às crianças pelos livros, ou até mesmo por linguagem comum, seria um
fracasso completo, pois a criança com deficiência precisa de tempo e exemplos
práticos para comandar uma ação e, assim, poder revelar em seu cotidiano o que
aprendeu.

Séguin (1866/1907) orienta que os materiais devem ser pensados e


planejados cuidadosamente para que a educação moral seja alcançada com êxito.
Desse modo, as solicitações para a atividade devem ser feitas quando há espaço
suficiente para a ação e quando as circunstâncias que os cercam proporcionem o
alcance do objetivo.

Deve-se lembrar que o ensino para a criança com deficiência não tem
nenhum valor prático se não oportunizarmos as melhores condições para a sua
realização. Assim, Séguin orienta algumas ações que devem nortear o trabalho do
professor:

(...) colocá-lo entre as outras crianças fazendo a mesma coisa; deixá-lo vê-
los até ele fazer por si só; fazê-lo imitar a coisa desejada mais próxima; fazê-
lo desejar o que desejamos que ele faça etc. A realização dessas ações, e
particularmente da última, implica a promoção da vontade nova, que será
parcialmente realizada pela disposição inteligente do tempo, do lugar e do
meio, tornando-se frequente devido à influência que as crianças exercem
entre si. (Séguin, 1866/1907, p. 151).

Essa formação moral das crianças, “uma por muitos, várias por um, todos
por todos” é uma das fontes principais da tarefa do professor. Séguin afirma que
se o professor não consegue estimular a criança, outra poderá incitá-la; o que o
professor não consegue explicar a uma criança, ela imitará a partir de outra
criança; o que um grupo não faz depois do comando do professor, será feito após
o exemplo de uma criança pequena. Diante disso, é um erro os considerarmos
incapazes de aprender, porque eles podem fazer o que propusermos observando
os exemplos dos outros.

Séguin também apresenta os princípios da autoridade e da obediência. De


acordo com ele (1866/1907), a autoridade do professor não deriva da
superioridade, mas do desejo de elevá-los ao nosso padrão.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Por isso, não devemos fazê-los sentir a autoridade como uma pressão, nem
a obediência como uma submissão, mas lhes dando todas as oportunidades
de exercer o primeiro [autoridade] nos limites de sua aptidão, bem como de
agir sob o impulso reflexo do segundo [obediência], sempre que o seu
impulso espontâneo apresentar-se deficiente. Quando tentamos socializar o
idiota isolado, não queremos dizer para ensinar-lhe música, leitura, etc; nós
pretendemos dar-lhe o sentido e o poder de estabelecer, nos limites de sua
capacidade, relações sociais. (p. 153).

No entanto, qualquer que seja a forma de autoridade, tendo como fim a


obediência, reside grande poder moral do comandante sobre o comandado. Esse
poder moral só poderá ser desenvolvido por meio do vínculo entre professor e
aluno.

Algumas Considerações...

Diferente do que se pensava sobre a trajetória profissional de Edouard


Séguin, observa-se que esse personagem importante para a história da educação
especial iniciou sua trajetória profissional como professor de crianças com
deficiência intelectual e dificuldades para aprender. Formou-se médico somente
aos 50 anos, quando já vivia nos Estados Unidos e, também, já possuindo uma
vasta experiência no campo da educação de crianças e jovens com deficiência
intelectual. No entanto, apesar de, por escolha própria, ter se formado
tardiamente em medicina, seus textos, relativos a seu trabalho como professor de
jovens e crianças com deficiência intelectual, mostram o domínio que ele tinha do
que era expressivo na área da medicina e também domínio de conceitos e
explicações que evidenciam o conhecimento da organização do trabalho escolar.

Dessa forma, Traitement Moral foi fruto de dez anos de estudos,


observações e intervenções pedagógicas com pessoas com deficiência intelectual.
Inspirado pelos trabalhos de Pereira e Itard – que defenderam a ideia de que o
homem é capaz de aprender quando submetido a um método de educação que
atenda a suas reais necessidades – Séguin apresentou na prática o que ainda era
considerado improvável na área da medicina e da educação – a possibilidade de
educar crianças e jovens com deficiência em um espaço escolar.

Séguin denominou de “método médico-pedagógico” sua proposta de


intervenção pedagógica junto às suas crianças com deficiência intelectual. Em
seu sistema educativo eram considerados os conhecimentos que cada criança

75
possuía e, a partir disso, planejava atividades que partiam do conhecido para o
desconhecido; do simples para o complexo.

Séguin indicou o trabalho com os sentidos como uma parte fundamental do


seu método de ensino. Ele aprofundou as práticas de ensino de Jacob Rodrigues
Pereira e Jean Itard e, de acordo com a necessidade de cada um dos seus alunos,
elaborou diversas maneiras de ensiná-los.

Verifica-se que Séguin, ao trazer os vários exemplos de sua prática,


apresenta os alunos pelo nome, atribuindo a importância do sujeito como ser
único, dotado de potencialidades, indicando já, naquela época, a necessidade de
não patologizar a aprendizagem. O educador enfatizou a realização de um
diagnóstico inicial, para identificar o nível de desenvolvimento real atual do
aluno; feito isso, partia para elaboração de um plano de ensino e a elaboração de
material científico adequado. Para Pessotti (1984), esse diagnóstico inicial era a
“semente” do método de Séguin. A partir dele, definia-se todo o curso do trabalho
pedagógico a ser realizado.

Destaca-se, ainda, que o material deixado por Séguin em suas duas grandes
obras eram, na verdade, relatos do dia a dia de um professor de educação especial,
contendo expectativas, dúvidas, anseios, preocupações, alegrias, culpas.
Sentimentos típicos de professores que trabalham com crianças com deficiência,
que comemoram cada avanço e buscam, diariamente, estratégias de ensino que
auxiliem em sua prática docente.

Após a morte de Séguin, em 1880, seu legado recebeu atenção especial da


médica italiana Maria Montessori. Maria Montessori fez do legado prático de
Séguin e dos relatórios de Itard uma das principais bases do seu sistema
educativo.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Referências Bibliográficas

Itard, J. M. G. (2000). Relatório feito à sua Excelência o Ministro do Interior, sobre os


novos desenvolvimentos e o estado atual do Selvagem do Aveyron. In: Banks-Leite,
L., & Galvão, I. (org.). A educação de um selvagem: as experiências pedagógicas de
Jean Itard. São Paulo: Cortez. (Originalmente publicado em 1806).

Pessotti, I. (1984). Deficiência Mental: da superstição à ciência. São Paulo: EDUSP.

Rosa, K. N. S. (2012). Toda criança é capaz de aprender: as contribuições de Edouard


Séguin (1812-1880) para a educação da criança com deficiência intelectual,
Dissertação de mestrado em Psicologia da Educação, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Séguin, E. (1907). Idiocy: and its treatment by the physiological method. New York:
Teachers College, Columbia University, 1907. (Originalmente publicado em 1866).

______. (1846). Traitement Moral, hygiene et education des idiots et des autres enfants
arriérés. Paris: Chez J. B. Baillière.

77
CAPÍTULO IV

Um educador brasileiro esquecido: Manoel Bomfim


(1868-1932)41
Mitsuko Aparecida Makino Antunes & Antonio Carlos Caruso Ronca

Figura 4: Manoel Bomfim


Fonte: Bomfim, 201642

41Este texto é uma versão modificada, revista e atualizada do capítulo Educação e Psicologia em Manoel
Bomfim (1868-1932), de autoria de Mitsuko Aparecida Makino Antunes e Antonio Carlos Caruso Ronca,
publicado em: Brait, B. & Bastos, N. (orgs.) (2000). Imagens do Brasil: 500 anos (pp. 31-50). São Paulo:
EDUC.
42Descrição da foto: Manoel Bomfim retratado olhando ao longe, somente mostrando seu busto. Tinha
cabelos espessos e escuros, bem como um longo bigode. Na vestimenta há um colete de cor clara, um casaco
de cor escura, camisa banca com gola para acima e uma graveta escura. Por ser a foto em branco e preto,
não há como identificar as cores. Legenda da foto: Bomfim, M. (2006). Pensar e Dizer: estudo do símbolo
no pensamento e na linguagem (2ª ed.) (Coleção Clássicos da Psicologia Brasileira). São Paulo: Casa do
Psicólogo.
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Manoel José do Bomfim é um intelectual brasileiro pouco conhecido. É


provável que a maioria dos leitores jamais tenha ouvido falar desse médico
sergipano, cuja obra abrange as mais diversas áreas do conhecimento, além de
muitos artigos para jornais da época, vários deles em defesa da educação para
todos como caminho para uma democracia plena.

Pode-se dizer dele que foi um pensador rebelde (Aguiar, 2000): radical,
original, polêmico, ousado. Esses são alguns dos adjetivos que têm sido usados
para se falar de Manoel Bomfim, um intelectual pleno, que permanece
praticamente desconhecido entre educadores e psicólogos brasileiros.

Darcy Ribeiro assim se refere a ele: “Lendo-o, me vi diante de todo um


pensador original, o maior que geramos, nós, latino-americanos. Um pensador
plenamente maduro (...). Desde então isso me intriga. Por que ninguém sabe
dele? Por que ele não exerceu nenhuma influência?” (1993, p. 11). Entretanto,
Manoel Bomfim teria declarado que gostaria de ser lembrado como educador43.
Esperamos, neste capítulo, trazê-lo ao conhecimento de um público mais amplo
e da maneira que ele desejou: como educador.

Sergipano, formou-se em Medicina, no Rio de Janeiro, em 1890,


abandonando a carreira médica em 1894. Tornou-se professor na Escola
Normal do Rio de Janeiro, na qual logo assumiria a cátedra de Pedagogia e
Psicologia. Foi, mais tarde, nomeado subdiretor do Pedagogium e, um ano
depois, em 1897, seu diretor-geral; nessa instituição criou e dirigiu o primeiro
laboratório de Psicologia no Brasil, organizou cursos e criou os periódicos
Educação e Ensino e Revista Pedagógica. Foi também diretor da Instrução
Pública do Rio de Janeiro e da Escola Normal da mesma cidade, na qual foi
professor. Para subsidiar seu trabalho nessa cátedra, viajou para Paris, em
1902, com a finalidade de aprofundar seus estudos em Psicologia, tendo lá
estudado com Georges Dumas e Alfred Binet, com este último planejando a
instalação do laboratório no Brasil.

43 Depoimento de Luís Paulino Bomfim, neto de Manoel Bomfim, a Mitsuko Aparecida Makino Antunes.

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Bomfim produziu obras sobre História do Brasil e da América Latina,
Sociologia, Geografia, Medicina, Zoologia e Botânica, além de ter escrito, em
coautoria com Olavo Bilac, livros didáticos de Língua Portuguesa.
Especificamente em Educação e Psicologia, escreveu, além de muitos artigos na
imprensa, nos quais defendia veementemente a causa da educação para todos,
os seguintes livros: O facto psichico (1904); Lições de Pedagogia (1915); Noções
de Psychologia (1916); Pensar e Dizer: estudo do symbolo no pensamento e na
linguagem (1923); O methodo dos tests (1928); Cultura e Educação do povo
brasileiro (1932), obra ditada por ele, já gravemente enfermo, a Joracy de
Camargo e premiada pela Academia Brasileira de Letras no ano seguinte, além
de outras publicações, como: Critica à Escola Activa e O respeito à criança.

Seu pensamento foi marcado pela oposição às ideias hegemônicas de seu


tempo, tendo sido um crítico contundente das condições sociais e políticas
brasileiras, buscando suas determinações na história da exploração colonial,
defendeu o republicanismo e o abolicionismo, opôs-se radicalmente ao
pensamento racista. Foi, enfim, um intérprete do Brasil só tardiamente
reconhecido, por intelectuais do porte de Antonio Candido, Octavio Ianni, Darcy
Ribeiro e Antonio Houaiss, entre outros. Entretanto, o reconhecimento de
Bomfim como pensador original tem vindo basicamente das áreas de história e
sociologia.

Foi, no entanto, à Educação que Bomfim dedicou sua vida profissional. Ele
acreditava na educação e na possibilidade de, por meio dela, romper com a
herança colonial e contribuir para a construção da nação brasileira, baseada
numa democracia efetiva, alicerçada na liberdade, na justiça e na igualdade.
Acreditava na educação para todos, pública, gratuita e laica como caminho para
a realização desse ideal e na contribuição da Psicologia como ciência
fundamental para a ação educativa.

O Médico

Bomfim nasceu em 1868, no Estado de Sergipe, filho de um próspero


comerciante, que se tornou também fazendeiro e usineiro, cuja expectativa era
de que o filho o acompanhasse na administração dos negócios. Entretanto, o
jovem Manoel José, contra a vontade do pai, concluiu os estudos preparatórios
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

e, no início de 1896, matriculou-se na Faculdade de Medicina da Bahia. Em


Salvador travou amizade com um colega de curso, Alcindo Guanabara (que não
se formaria em medicina e se tornaria importante jornalista), que o introduziu
em grupos políticos progressistas e o influenciou para que ele se mudasse para
o Rio de Janeiro.

Sobre essa época, diz Aguiar (2000, p. 122): “Manoel José sentia-se
perfeitamente à vontade naquele meio mais acadêmico que político na
Faculdade de Medicina da Bahia. Tinha, então, dezoito anos, mas nenhuma ideia
política exercia sobre ela grande atração”, embora participasse com os colegas
de reuniões abolicionistas e republicanas. Diz Aguiar:

Era ávido e eclético em matéria de leitura: gostava tanto de ler filosofia


como história, poesia como direito e literatura. No fundo julgava que a sua
participação nos atos públicos ou nas reuniões semiclandestinas dos
grupos abolicionistas e republicanos era totalmente dispensável: pouco ou
nada tinha a acrescentar aos argumentos e teses que justificavam a
abolição e a proclamação da república. Tinha, porém, a certeza de que a
escravidão (“iniquidade das iniquidades”, costumava dizer) e a monarquia
estavam prestes a ruir. “Ambas”, sentenciava, “estão podres”.
O fato é que Manoel José gostava mesmo de permanecer por longas horas
no laboratório, pesquisando e estudando relatórios de pesquisa. (2000, p.
123).

Certamente por forte influência de Alcindo Guanabara, em 1898 mudou-


se para o Rio de Janeiro, atraído pelo clima intelectual da cidade. Deu
continuidade aos estudos médicos na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
na qual se formou em 1890, doutorando-se com a tese Das Nefrites.

No Rio de Janeiro Bomfim foi apresentado a Olavo Bilac e a outros


intelectuais por Alcindo Guanabara, passando a frequentar o grupo ligado ao
jornal Cidade do Rio, de José do Patrocínio. Viveu, nessa época, uma intensa vida
intelectual, que lhe deu as bases para sua acurada e bem fundamentada análise
histórica e sociológica da realidade brasileira e latino-americana, mais tarde
tema de muitas de suas obras e artigos para jornais.

Formado e já casado, por necessidade financeira, assumiu o cargo de


médico da Secretaria de Polícia, logo passando a médico-cirurgião da Brigada
Policial, como tenente (Aguiar, 2000). Nessa época, participou de uma missão
no Rio Doce. Sobre isso, afirma Aguiar:

81
Manoel Bomfim permaneceu por dois anos nas fileiras da Brigada. Em
março de 1891, integrou uma expedição militar que percorreu o baixo rio
Doce, buscando verificar in loco a situação dos índios botocudos, os quais,
a partir da desativação dos aldeamentos, vagavam a esmo pelas matas.
(2000, p. 153).

Diz ainda Aguiar:

A excursão foi complicada, cheia de surpresas e perigos. De qualquer


maneira, do ponto de vista da sua formação humana e sociológica, foi o que
melhor aconteceu a Manoel Bomfim naqueles dois anos em que trabalhou
na Secretaria de Polícia. E isto porque o contato com os botocudos, índios
indomáveis e orgulhosos, nada mais fez que aumentar sua admiração e
respeito pelos indígenas – sentimentos que Bomfim deixaria registrado
nos seus livros, principalmente nos livros de maturidade, em belas e
densas páginas. (2000, p. 154).

Por sua militância política, contra o florianismo/militarismo e pelas


eleições diretas, teria sido decretada sua prisão, no Rio de Janeiro. Assim, em
1893, mudou-se para o interior de São Paulo.

Bomfim foi informado que iria ser preso na manhã de 28 de setembro de


1893, uma quinta-feira. Quem lhe trouxe a informação foi um anônimo e
agradecido oficial de polícia, cuja esposa fora tratada (e curada, presume-
se) pelo médico Manoel Bomfim. Como era próprio de seu temperamento,
Bomfim procurou agir, na ocasião, com calma e tranquilidade (...)
escreveu uma carta ao comandante da Brigada Militar, solicitando, por
razões de saúde, licença temporária e imediata, e procurou abrigo na casa
de um amigo. A intenção de Manoel Bomfim, manifestada à mulher, era
mudar-se o quanto antes para Mococa, nascente cidade do interior de São
Paulo, onde morava, já há um ano, seu irmão, José Augusto. (Aguiar,
2000, pp. 168-169).

Em Mococa, segundo Aguiar (2000), Bomfim “(...) dedicou-se unicamente


à clínica médica, evitando qualquer envolvimento com a política do lugar. (...).
Mas, e isso ele não podia evitar, procurou manter-se informado sobre os
acontecimentos políticos do país” (p. 171). Nessa cidade, sem saneamento
básico, entre outras doenças, a febre tifoide era endêmica. Sua filha foi
acometida de tifo e não sobreviveu à doença: “Na medida em que as horas
passavam, Manoel Bomfim sentiu-se dominar pela angústia – e por um
dilacerante sentimento de impotência e desespero diante do sofrimento da filha”
(p. 173). A filha morreu em outubro de 1894, após três dias de crise: “Manoel
Bomfim partiu de Mococa em dezembro de 1894. A cidade trazia-lhe tristes
lembranças, quase nenhuma alegria. Não tinha mais por que ficar ali” (p. 173).
Diz ainda seu biógrafo (Aguiar, 2000, p. 174): “Agora, em 1894, a morte
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

prematura da filha, que ele não pudera – ou não soubera, martirizava-se –


salvar, destruíra as suas ilusões quanto ao exercício da medicina. Sentia-se
derrotado e vazio. A medicina era, agora, uma vocação que ficou para trás”.

Aos 26 anos de idade, tinha que começar tudo de novo.

Manoel Bomfim retornou ao Rio de Janeiro: “numa decisão difícil e


particularmente dolorosa, (...) abandonará, para sempre, o exercício da
medicina, dedicando-se exclusivamente ao ensino e às questões da educação e
da sociologia brasileiras” (Aguiar, 2000, p. 149). Assume, inicialmente, o ensino
de Educação Moral e Cívica na Escola Normal do Rio de Janeiro e, logo depois, a
cátedra de Pedagogia e Psicologia. Suas ideias, suas atividades e produções em
educação e psicologia serão expostas a seguir.

A defesa da Educação

A partir da análise histórica da colonização da América Latina em geral e


do Brasil em particular pelos ibéricos (Bomfim, 1905/1993), Bomfim
considerava a espoliação e a exploração pela metrópole como responsáveis pela
precária situação educacional e cultural do país. Essa perversa herança
permaneceu no Império e se estendeu pela República, condenando o povo
brasileiro a permanecer no estado de ignorância imposto pelo parasitismo da
metrópole.

Bomfim considerava a educação como o instrumento fundamental para a


superação dessa condição e base para o estabelecimento da democracia, que
deveria alicerçar-se na liberdade. Diz ele: “Não há regime livre na ignorância;
para libertar os homens, o primeiro passo é desembaraçá-lo dessa ignorância e
entregá-los à posse da própria inteligência: uma democracia não tem razão de
ser senão para dar a todos liberdade e consciência de si” (Bomfim, 1905/1993,
p. 338).

A defesa da educação para Bomfim é diversa da de outros intelectuais da


época. Para Bomfim, a educação era um meio para a construção de uma
sociedade democrática, justa e igualitária. Para outros, como Miguel Couto e
Mario Pinto Serva, o atraso do país era atribuído à ignorância do povo; não
entendiam o analfabetismo como consequência das ações de um Estado que

83
servia aos interesses de um grupo, mas como a própria causa do problema.

Manoel Bomfim entende que a ignorância é um instrumento para impedir


as transformações sociais, que provocariam alterações nas relações de poder
estabelecidas, que “(...) se empenham por manter o povo na ignorância
primitiva, que lhes permite e favorece todas as opressões e explorações (...);
manter o povo nesse estado de cultura (...) lhes concede continuar a secular
espoliação” (Bomfim, 1905/1993, p. 334). O Estado é visto, portanto, como
dominado por uma determinada classe social, à qual interessa conservar a
realidade tal como está. Diz Bomfim:

Em verdade, o que se pretende (...) é que o Estado seja, apenas, um


proveito imediato para aqueles que dele se apoderaram. Os recursos do
estado convertem-se em patrimônio de uma classe; o poder do Estado é a
força com que essa classe mantém a política, absurda e criminosa, de que
se aproveita. (1905/1993, p. 24).

Em 1897, Bomfim apresenta uma pauta de reivindicações para a


concretização de seu projeto social e educacional. Conclama a sociedade para
uma campanha pela educação pública primária; pela liberdade e pela
democracia; pela unificação e nacionalização da escola; pela constituição de um
Congresso Pedagógico; pela conjunção de esforços coletivos (estado e sociedade
civil); pelo auxílio da União aos estados mais pobres.

Sua defesa da educação para todos é rigorosamente articulada a uma


concepção explícita de educação, da qual decorre uma visão de pedagogia e sua
relação estreita com a ciência, em particular a psicologia.

A concepção de Educação

Para Manoel Bomfim, a educação é uma condição necessária ao processo


de humanização: “O homem, como produto da natureza não existe: é a educação
que o forma, (...) é a educação que socializa o homem” (Bomfim, 1897/1932, p.
15), concepção esta, já presente nesse escrito de 1897, quando o autor assume
a direção geral do Pedagogium. Afirma ele:

A educação (...) corresponde a uma fase indispensável da formação dos


indivíduos, para que possam atingir e realizar as condições do viver
humano (...); no homem, os processos de adaptação ao meio e os recursos
de realização da vida de relação, em vez de serem simplesmente
instintivos e hereditários, são conscientes, inteligentes, susceptíveis de
variações e aperfeiçoamentos, e se transmitem às gerações sucessivas,
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

não como herança biológica, mas sob a forma de aquisições pessoais (...).
Essa ação sistemática, ou intervenção necessária e propositada, na
formação das criaturas humanas, é a própria educação (...); ela permite, a
cada indivíduo, o condensar, o aproveitar, no seu preparo pessoal, a
experiência geral da espécie. Graças à educação, cada personalidade nova
pode resumir o progresso moral e mental da humanidade. (Bomfim,
1897/1932, pp. 13-14).

Articuladas às concepções de homem, educação e sociedade, Bomfim


explicita sua concepção de criança e o papel da educação em seu
desenvolvimento e formação. A educação é vista como direito da criança e dever
dos pais e da sociedade; mais precisamente, é o Estado que deve garantir a
educação para todos.

Para Bomfim, o direito à vida tem um sentido amplo: “(...) esse direito
primordial da criança à vida não pode significar, apenas, a garantia da vida
orgânica. (...) A sociedade [deve] assegurar-lhe, à criatura infantil, a
indispensável nutrição do espírito, a saúde e o pleno desenvolvimento da vida
mental e moral” (1897/1932, pp. 16-17). A educação deve concorrer para o
processo de desenvolvimento e realização da criança:

A criança é, principalmente, um ser a realizar-se. A vida não lhe será


possível senão humanamente, moralmente, e, para tanto, é-lhe
absolutamente necessário ser convenientemente educada. A sociedade
(...) tem o dever de garantir e fornecer à criança as possibilidades de
realizar a vida nessas condições. Para ser implacável, como é, nas
exigências, ela tem de ser completa nas garantias.
A criança é, realmente, um potencial humano; dela tem de sair uma
pessoa, consciente das próprias forças, capaz de utilizá-las com o máximo
do proveito, para si e para a sociedade. (Bomfim, 1897/1932, pp. 18-19).

Nessa perspectiva, Bomfim (1897-1932) estabelece os fins da Educação,


afirmando que é necessário garantir os direitos para, em seguida, se estabelecer
os programas de ensino:

[Deve] tornar-se efetiva, para todos, a instrução elementar e geral,


indispensável a todo indivíduo para viver humanamente a vida de hoje,
conhecer a sua condição, conhecer as relações essenciais no meio em que
se encontra: realizar essa indispensável instrução em processos
nimiamente educativos – educação da inteligência, aquisição dos bons
métodos de se pensar, utilização racional dos conhecimentos, educação da
atividade, metodização dos esforços, incitamento à tenacidade e aos
empreendimentos, aceitação do trabalho, domínio crescente sobre os
impulsos, análise das possibilidades, compreensão do bem, entusiasmo
pelas ações generosas. (p. 35).

Para a realização desse projeto, a psicologia constitui-se num dos

85
fundamentos da educação. Para ele, é necessário que as escolas sejam: “(...)
realmente, centros estimuladores da atividade juvenil, escolas que, sem
sacrificar a saúde e a alegria da criança, a ocupem de modo interessante e
racional, como cultura do espírito e do caráter” (Bomfim, 1897-1932, pp. 35-
36).

Em sua defesa da educação, Bomfim apresenta mais do que simplesmente


uma pauta de reivindicações políticas, embora nesse âmbito chegue a sugerir
cotas do orçamento da União para investir na educação elementar. Sua
proposição envolve um espectro que vai da política e economia da educação à
formação de professores e às teorias que deveriam dar base à ação pedagógica,
em especial a psicologia. A articulação entre a ação educativa e a base
psicológica explicita-se em vários textos, muitos dos quais formulados
originalmente em 1897, como:

A escola é o professor; e este no desempenho de sua missão tem de (...)


voltar-se todo para a alma da criança, estudá-la, compreendê-la,
conquistar-lhe os afetos, sem dominá-la, em suma acompanhá-la, guiando-
a (...). Para isto o mestre tem de integrar-se na vida do aluno, conviver com
ele, assistir continuamente a expansão e a evolução da sua personalidade,
ajudá-la, para que ela adquira a consistência para resistir a todos os
embates futuros (...). (Bomfim, 1897/1932, pp. 64-65).

Percebe-se no trecho acima, escrito em 1897, um discurso muito próximo


dos pressupostos escolanovistas, embora sua proposta em termos gerais não
possa ser qualificada como tal, em que a preocupação com a formação do
professor está relacionada diretamente ao processo ensino-aprendizagem e sua
relação com o conhecimento sobre a vida infantil.

Alguns anos depois, tendo assumido a cátedra de Pedagogia e Psicologia


da Escola Normal do Rio de Janeiro, Manoel Bomfim vai para Paris, com o
intuito de estudar “Psicologia Experimental”, processo este que dá início a uma
visão mais ampla e profunda da área e que, articulada à prática docente do
autor, o levará a desenvolver uma concepção original de psicologia e elaborar
uma teoria psicológica que se constitui como a principal marca de sua
originalidade. Assim, a psicologia assume importância cada vez maior em suas
obras, adquirindo contornos que a definem como a principal base de sustentação
científica da Pedagogia.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Pedagogia e Psicologia

Para se compreender a função da psicologia na educação, faz-se


necessário explicitar as relações desta com a pedagogia, não apenas porque seus
conteúdos eram trabalhados numa mesma disciplina, Pedagogia e Psicologia,
mas, sobretudo, pelas estreitas articulações entre os objetivos de uma e o
potencial da outra para realizá-los.

No livro Lições de Pedagogia, Bomfim define Pedagogia como


sistematização teórica e corpo de doutrinas, cuja finalidade é dar subsídios à
educação, seu objeto de estudo, cujo caráter é eminentemente prático. Afirma
ele que a pedagogia não é uma ciência, pois não há uma ciência da educação, mas
ciência na educação. A pedagogia é a sistematização científica dos processos
educativos, cuja finalidade é a de tornar a educação uma prática metódica e
fundamentada no conhecimento científico. A educação, por seu turno, é uma
prática que visa à formação da personalidade, com vistas a preparar o indivíduo
para as condições da vida humana. Formar a personalidade implica criar
condições de desenvolvimento das capacidades adaptativas, cuja base é de
ordem psíquica consciente, determinada por fatores históricos e sociais. Diz ele:

Toda superioridade da espécie humana está, pois, nesse psiquismo


socializado, que permite condensar em cada individualidade, em cada
consciência, a experiência de todas as outras; e a educação vem a ser a
forma de transmissão psíquica dos processos e das capacidades
adaptativas. (Bomfim, 1915, p. 13).

A finalidade da educação é, para Manoel Bomfim, a de transformação


histórica e social, porém, sua ação deve incidir sobre os sujeitos concretos, por
meio das ações pedagógicas; estas, por sua vez, devem basear-se no
conhecimento científico, particularmente na psicologia, a ciência que se
ocuparia dos processos que ocorrem no âmbito do sujeito. Nesse sentido,
podemos dizer que Bomfim defende e produz conhecimentos que hoje seriam
denominados de psicologia da educação, ainda que naquele momento não fosse
esta a expressão correntemente utilizada. Afirma Bomfim:

(...) esses princípios têm de ser procurados nas ciências que estudam e
fazem conhecer, por um lado, a natureza da criança, e por outro lado, as
condições da vida humana (...); a pedagogia se deve inspirar em todas as
ciências – físicas, naturais, históricas e sociais. Destas, porém, há uma que
lhe dá os principais subsídios. É a Psicologia. (1915, p. 22).

87
O conhecimento sobre a criança e seu processo de desenvolvimento,
sobretudo a partir das mediações que são estabelecidas com o meio social,
constituem-se em bases para a prática educativa, que deve visar à formação da
personalidade em sua capacidade adaptativa. Para Bomfim, a adaptabilidade
confere ao homem a supremacia sobre a natureza, realizando-se por processos
conscientes, por meio da inteligência que, como função psíquica superior, é de
natureza psicossocial. Estabelece três instâncias de ação educativa: educação
física, educação moral e educação da inteligência.

Para se compreender a concepção de psicologia e o modo como ela se


relaciona à educação, serão apresentadas, a seguir, as ideias do autor sobre
personalidade; pensamento e inteligência; a função mediadora da linguagem; a
base neurológica das funções psíquicas e a proposta metodológica para o estudo
do psiquismo como fenômeno histórico-social.

O desenvolvimento da personalidade é dependente da ação educativa e é,


ao mesmo tempo, sua finalidade. A personalidade é entendida como harmonia e
síntese da atividade consciente, de caráter processual, em constante processo
de mudança e é eminentemente social. Diz Bomfim:

(...) a personalidade é uma síntese psíquica, autônoma e completa, (...) é a


individualidade consciente, associada e relacionada na harmonia do viver
social, e inteiramente dependente dele.
A formação da personalidade corresponde, justamente, à incorporação do
indivíduo no conjunto das relações que constituem a organização social.
(1915, p. 15).

A inteligência é considerada como a dimensão mais educável do ser


humano e a principal meta educativa. É vista como um modo superior de
apreensão, conhecimento e apreciação do mundo externo, sendo uma função
sintética, que se realiza por meio das representações e de sua organização, em
busca de elaborações posteriores. A inteligência é concebida como processo, cujo
desenvolvimento implica a passagem por diferentes fases, de forma ativa e
articulada. O autor elege dois fatores fundamentais na educação da inteligência:
conteúdo e método, sendo este último a orientação da atividade mental
propriamente dita. O conhecimento e a elaboração do pensamento são
instâncias relacionadas, base da inteligência, desenvolvendo-se nas relações do
sujeito com o meio. Bomfim (1916), define inteligência como: “capacidade de
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

usar a experiência; (...) chamam-se inteligentes os seres que são capazes de


conservar na sua organização certos efeitos resultantes das relações com o
meio, e de aproveitá-los, a esses efeitos, como indicações na reforma das suas
reações subsequentes” (p. 104).

O desenvolvimento da inteligência fundamenta-se nas articulações entre


pensamento e linguagem, abordados em sua dimensão social e concretizados
pela ação, instância responsável pela relação entre consciência e mundo social:
“(...) o pensamento tende para a ação, mas é essencialmente socializado. A
própria ação humana é sempre socializada, desde que tenha um caráter
inteligente [e] mesmo nos casos de execução imediata, o pensamento tende para
a expressão verbal” (Bomfim, 1916, p. 169).

Complementando, diz Bomfim que “(...) o próprio pensamento humano é


essencialmente social, não só pela generalização dos valores simbólicos, como
pela marcha dos processos cognitivos. As ideias são verdadeiros tipos
evocativos socializados” (1916, pp. 170-171).

Nesse sentido, a linguagem, dentre outros fatores, assume papel


primordial, pois é considerada como forma de expressão e elaboração do
pensamento, necessária para o desenvolvimento da capacidade de abstração,
cuja base é a simbolização. A concepção de Bomfim sobre as relações entre
pensamento e linguagem muito se aproximam das ideias de Vigotski, embora
sejam anteriores a ele. Para Bomfim:

A linguagem tem, pois, relações imediatas e absolutas com a elaboração


mental. Ela deriva do psiquismo socializado da espécie humana, mas
tornou-se condição do pensamento. A ideia é generalização como valor
representativo, e símbolo como evocação; o pensamento humano é próprio
para ser exteriorizado e realiza-se como reflexo, em cada consciência, da
experiência geral. As comunicações das consciências se fazem facilmente;
cada inteligência pode, então, assimilar os resultados da experiência geral,
e assim se estabelece uma verdadeira cooperação mental, no tempo e no
espaço. A inteligência existe como instrumento de ação; o pensamento é,
de fato, um momento entre a sensação e o ato; mas, na espécie humana a
própria ação é socializada.
(...). A atividade mental é incompatível com o isolamento da consciência;
o pensamento tende naturalmente para a exteriorização e a comunicação,
e formula-se como linguagem. (1916, p. 173).

Assim, pensamento e linguagem são inseparáveis e têm uma natureza


histórico-social. Bomfim concebe, pois, o processo mental como dinâmico e em

89
processo de transformação, mediatizado pela linguagem, cuja base é simbólica,
constituindo-se como fenômeno representativo. A linguagem tem papel
fundamental no processo de desenvolvimento do sujeito, não apenas no âmbito
cognitivo, mas também abrangendo outros aspectos da vida psíquica:

Tudo resumindo: a linguagem ou comunicação das consciências é


indispensável para a expansão e realização da vida afetiva; é condição
necessária para a formação da experiência mental humana e a capacidade
intelectual de cada indivíduo; e é o processo explícito de organização da
atividade humana, consciente e socializada. Antes de se realizar em ação,
o homem manifesta-se em linguagem, que, em si mesma, já é ação.
(Bomfim, 1923, p. 8).

A concepção histórico-social de psiquismo em Manoel Bomfim


fundamenta-se numa perspectiva materialista, tendo o processo
neurofisiológico como substrato. A inteligência depende, portanto, da base
neurológica e da socialização, em uma complexa trama de relações. Essa
concepção de Bomfim era muito diferente das ideias hegemônicas da neurologia
da época; defendia ele que o cérebro tinha um funcionamento complexo,
integrado, era dotado de plasticidade e não poderia ser mecanicamente
entendido a partir das localizações anatômicas das funções neurológicas.

Bomfim concebia o psiquismo como totalidade multideterminada e em


processo constante de transformação. As bases históricas, sociais e
neurofisiológicas formavam a tríade que constituiria a dinâmica do psiquismo.

Para dar conta de apreender a complexidade inerente ao objeto de estudo


da psicologia, afirmava ele a necessidade de extrapolar o conhecimento
especificamente psicológico, sendo necessário recorrer às várias áreas de
conhecimento para se apreender a dinâmica própria do psiquismo:

Fenômenos tão complexos, como esses, do espírito, têm que ser estudados
com recurso de todos os métodos possíveis, e racionalmente aplicáveis:
observação pessoal, experimentação de laboratório, crítica filosófica,
pesquisa linguística, investigação histórica (...). A produção artística, a
obra literária [...], instituições históricas, religião, linguagem [...] tudo
deve ser interpretado, e deve contribuir para que se compreenda e se
verifique a atividade do espírito. Finalmente, o estudo da natureza
psíquica, no homem, deve ser feito numa convergência perfeita de
sociologia, arqueologia, linguística, história, moral [...]. (Bomfim, 1923, p.
42).

Nessa perspectiva, Bomfim critica os “psychologistas exclusivos”,


apontando para a necessidade de transpor os limites disciplinares, ilustrando
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

sua argumentação com os mais significativos autores de diversas áreas de


conhecimento, demonstrando sua ampla cultura filosófica e científica. Assim, o
fenômeno psicológico não poderia ser apreendido em sua complexidade se não
fosse o indivíduo apreendido como totalidade. Diz ele:

A psicologia jamais será elucidada, jamais se definirão as suas leis, se


continuarmos a estudar o homem-espírito com o simples critério de
observação e experimentação, em individualidades isoladas, como fazemos
para definir os processos de pura fisiologia nutritiva. Temos indivíduo e
sociedade, psicologia e sociologia, fenômenos psíquicos e fenômenos sociais;
e tudo resulta das mesmas formas de atividade – a vida do espírito. (...) é
estulta e escassíssima essa psicologia que se faz contando, apenas, com as
consciências isoladas. (Bomfim, 1923, p. 20).

À Guisa de Conclusão...

A produção de Manoel Bomfim tem elementos certamente


contemporâneos e pode ser considerada como bastante avançada e capaz de
contribuir para a busca de caminhos para demandas educacionais que estão
colocadas ainda hoje. Sua produção abrange questões de ordem metodológica
(nas quais tece críticas à maneira como a pesquisa na área era então conduzida,
assim como aponta para concepções metodológicas que somente anos mais
tarde viriam a ser difundidas); questões acerca da natureza dos fenômenos
psicológicos (concebidos como eminentemente histórico-sociais e mediatizados;
isto é, constituídos nas relações que se estabelecem entre o sujeito e o mundo
social, pela mediação da linguagem) e questões relacionadas à prática
educacional, para a qual deveriam concorrer os referidos conhecimentos sobre
o psiquismo da criança. Longe de serem espontâneas e baseadas no bom senso,
suas ideias são fundamentadas numa ampla base teórica, que parte de um sólido
conhecimento de filosofia, história, sociologia, neurologia, literatura e,
sobretudo, àquilo que então se publicava e se desenvolvia na pedagogia e na
psicologia da época, incluindo não apenas a produção francesa, mas também a
de outros países da Europa e nos Estados Unidos. Sua cultura geral e específica
era não somente ampla, mas bastante atualizada e, por que não dizer, dirigida
para além daquilo que estava dado no momento, tanto é que suas ideias
anteciparam muito do que viria a ser produzido posteriormente. Vale dizer que
o conhecimento que temos dessas ideias tem sua autoria quase sempre marcada
por algum eminente autor estrangeiro; porém, o desconhecimento desse

91
intelectual brasileiro, que antecipou tantas ideias só mais tarde desenvolvidas,
continua sendo quase total entre aqueles que se dedicam à educação, à
psicologia e, sobretudo, à psicologia da educação no Brasil.

Esperamos ter contribuído para o reconhecimento da obra de Manoel


Bomfim para a educação e a psicologia, pois a memória é fundamental para que
o conhecimento do presente seja radicado em seu processo de constituição
histórica, o que lhe dá profundidade de compreensão, como condição para que a
construção do futuro, sobretudo por aqueles que estão comprometidos com a
educação e com a psicologia da educação, não seja entregue ao sabor do imediato
ou do fortuito, mas a um projeto deliberado de construção de uma sociedade
mais justa e igualitária.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Referências Bibliográficas

Aguiar, R, C. (2000). O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Rio de
Janeiro: Topbooks e ANPOCS.

Bomfim, M. (2006) Pensar e Dizer: estudo do símbolo no pensamento e na linguagem.


São Paulo, Brasília: Casa do Psicólogo, Conselho Federal de Psicologia.

______. (1993). A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.
(Original de 1905).

______. (1940). O Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional.

______. (1932). Instrucção Popular, em: República, 291, de 02/09/1897, in: ______.
Cultura e Educação do povo brasileiro: pela difusão da instrucção primaria. Rio de
Janeiro: Pongetti.

______. (1932). Dos sistemas de Ensino, em: República, 53, de 07/01/1897, in: ______.
Cultura e Educação do povo brasileiro: pela difusão da instrucção primaria. Rio de
Janeiro: Pongetti.

______. (1915). Lições de Pedagogia: theoria e pratica da Educação. Rio de Janeiro:


Francisco Alves.

______. (1916). Noções de Psychologia. Rio de Janeiro: Livraria Escolar.

______. (1923) Pensar e Dizer: estudo do symbolo no pensamento e na linguagem. Rio de


Janeiro: Casa Electros.

Ribeiro, D. (1993). Manoel Bomfim, antropólogo, in: Bomfim, M. A América Latina: males
de origem (pp. 3-16). Rio de Janeiro: Topbooks.

93
CAPÍTULO V

Do consultório médico às escolas estatais vienenses: Alfred


Adler e as “crianças dificilmente educáveis”
Daniela Leal & Marina Massimi

Figura V: Alfred Adler and Child


Fonte: Alfred Adler Institute of New York Gallery44

44Descrição da foto: Alfred Adler conversando com uma menina enquanto enfaixava sua mão, em uma
das Clínicas de Orientação infantil. A menina está em pé e de costa; seu cabelo está cortado em um Chanel
bem curto; usa um vestido estampado, sem mangas. Adler está sentado em uma cadeira de madeira, usa
um termo de cor clara, com camisa; como acessório, um relógio no pulso esquerdo e está de óculos. Nessa
época, seus cabelos já estavam brancos. Legenda da foto: “Depois de servir no Corpo Médico do Exército
Húngaro na Primeira Guerra Mundial, a reputação principal de Adler logo se estabeleceu no campo
aplicado da psicologia infantil. Ele estabeleceu clínicas de orientação infantil na Áustria, Londres e nos
Estados Unidos” (AAI-NY Gallery, tradução das autoras).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

É sabido que no exercício diário de sua profissão, os médicos – em


especial os pediatras – se veem, com frequência, diante de problemas
educacionais. Também é sabido que, a grande maioria deles não se acha
suficientemente preparado para resolver tais problemas. [Afinal, a]
educação não aparece nos planos de estudo das escolas de medicina (...).
Hoje, tal justificativa não é válida. O conhecimento alcançado pela
Psicologia Individual mostra, claramente, a legitimidade de ocorrer não
somente a colaboração, como também o contato pessoal entre o pediatra e
o educador. (...)
Essa relação é, certamente, recíproca: ao mesmo tempo que o médico não
deve deixar de lado o conhecimento pedagógico, a educação, apoiada na
Psicologia Individual, não deverá deixar de lado à cooperação médica.45
Olga Knopf & Erwin Wexberg (1957, pp. 45-46)

Com base em tal pensamento, entre os anos de 1919 e 1934, em uma


Viena Pós-Guerra, despontou na Psicologia e, principalmente, na Educação, o
trabalho do médico austríaco Alfred Adler (1870-1937) e de seu grupo, a
Sociedade de Psicologia Individual, que objetivavam contribuir com a reforma
escolar vienense: uma mudança radical tanto na organização quanto nos
métodos adotados na educação, com base nos ensinamentos/princípios da
Psicologia Individual.

Para atingir tal intento, o primeiro passo, foi o aceite de Alfred Adler para
dar conferências regulares em Volksheim, o Instituto de Educação mais
importante de Viena. O segundo, tornar-se membro da Faculdade de Professores
do Instituto Pedagógico. E, o terceiro, criar o grupo Erziehungsberatungsstelle
(Orientação Infantil, em livre tradução) que, estabeleceu, com o consentimento
das autoridades escolares, um número significativo de Clínicas de Orientação
Infantil, nas escolas estatais, com atendimento voluntário-gratuito às crianças
dificilmente educáveis”.46

Entretanto, antes de dar continuidade a descrição de como se deu o


trabalho de Alfred Adler na Educação, em especial nas Clínicas de Orientação
Infantil, faz-se necessário responder a duas perguntas centrais: Quem foi Alfred

45 Todas as traduções realizadas ao longo deste capítulo, são de responsabilidade das autoras.
46Eram consideradas “crianças dificilmente educáveis” às que apresentavam dificuldades no processo de
escolarização, algum tipo de deficiência e/ou insuficiência relacionada à saúde, bem como questões
relacionadas ao comportamento.

95
Adler? E, como que de médico, Adler voltou-se à educação das “crianças
dificilmente educáveis”?

Do nascimento ao jovem praticante: os primeiros passos de Adler na


medicina

Em 07 de Fevereiro de 1870, na aldeia de Penzing, subúrbio de Viena,


nasceu Alfred Adler, em uma casa que, segundo Bottome (1952), “era,
literalmente, a última da cidade, sob um céu que se estendia indefinidamente na
planície onde se pôs a capital” (p. 45).

Terceiro filho de uma família com 5 meninos47 e 2 meninas, Adler teve


uma infância muito difícil, pois desde criança sua saúde apresentou-se frágil:
nasceu com raquitismo, teve pneumonia aos 5 anos48 de idade, bem como sofreu
acidentes que foram comprometendo seriamente sua vida.49 De acordo com
algumas de suas biografias (Bottome, 1952; Furtmüller, 1935/1968), foi
exatamente por causa de sua frágil saúde que Adler decidiu ser médico: em uma
das ocasiões, quando contraiu pneumonia, ao receber a visita do médico de
cabeceira ou médico da família, o mesmo informou ao seu pai que não havia mais
chances. Nas próprias palavras de Adler (como citado em Bottome, 1952): “(...)
não valia a pena se preocupar comigo, já que não me restava nenhuma
esperança de sobreviver” (p. 54).

A fala do médico lhe causou tal pavor e pânico que, nos dias que se
seguiram, após se restabelecer, Adler (como citado em Bottome, 1952) decidiu
que carreira queria seguir: “(...) decidi definitivamente ser um médico para
dispor de uma defesa mais eficaz, da que tinha meu médico de cabeceira, contra
o perigo de morte e, também, de armas superiores para combatê-la” (p. 55).
Posteriormente, ao ser contestado pelo pai de um de seus amigos sobre o desejo
de se tornar médico, ao sentir que o mesmo, assim como ele, deveria ter passado

47 Um dos irmãos de Adler morreu no primeiro ano de vida.


48 A idade com que Adler teve pneumonia aparece diferente nos arquivos consultados; ora dizem que foi
com 4 anos, ora com 5 anos de idade. Optou-se por deixar a idade de 5 anos por ser a que está presente na
biografia escrita por Phyllis Bottome, encomendada pelo próprio Adler. Vale destacar que, Bottome foi uma
romancista e escritora britânica que, estudou Psicologia Individual diretamente com Adler, no período em
que viveu em Viena.
49 Apesar de vários lugares pesquisados citarem que Adler sofreu vários acidentes que comprometeram a
sua saúde, até o momento, nas biografias lidas, não encontramos nenhum relato mais preciso sobre que
tipo de acidente sofreu e qual a consequência do mesmo.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

por uma experiência negativa, pensou para si: “(...) serei um doutor como Deus
manda”! (p. 55). E mais, a partir desse dia, a determinação de ser médico nunca
mais lhe abandonou: “Já, não me imaginava abraçando outra carreira ou ofício
(...) e persisti; mesmo quando muitas e complexas dificuldades se colocavam
entre meu objetivo e eu” (p. 55).

Cabe destacar que, tanto a infância quanto a juventude de Adler foram


rodeadas pela cultura, tolerância e bondade vienense. Nesse período, Viena era
considerada o auge da civilização europeia, pois os austríacos além de
desfrutarem “de um desnível mínimo entre as classes mais altas e as mais
baixas da sociedade” (Bottome, 1952, p. 57), também contavam com uma das
maiores e melhores Universidades como fonte de conhecimento e nos círculos
culturais transitavam todos os tipos de pessoas, assim como ocorreu a melhora
dos escassos níveis da sociedade austríaca por meio da cultura judaica (sólido
senso comum israelita).50

Entretanto, apesar de toda efervescência cultura e das possibilidades que


sua família lhe ofereceu, Adler não conseguiu, segundo Bottome (1952),
alcançar boa aptidão para a vida sem antes passar por amargas lutas e fracassos
desastrosos. No período em que cursou a escola primária e o Gymnasium,
inicialmente, não se destacou como um dos melhores alunos. Pelo contrário, era
um aluno mediano, sem nenhum êxito notável, principalmente nas matemáticas
que, para Adler, era uma disciplina insolúvel, chata e solitária. E, foi exatamente
um professor de matemática que, “sugeriu que seu pai o tirasse da escola para
ser aprendiz de sapateiro, porque havia perdido o interesse pela escola e tinha
dificuldade em matemática” (Leal & Antunes, 2015, p. 15). Desafiado, ao
observar, certa vez, tristemente, seu professor, notou que o mesmo não tinha
convicção da solução que estava demonstrando no quadro-negro e logo pensou:

50 Ao estudarmos tal passagem da vida de Adler, inferimos que, tais vivencias podem ter contribuído,
incialmente, à criação futura do conceito de Gemeinschaftsgefühl, sem tradução para nenhum outro
idioma, mas que, por uma aproximação de seu conceito, pode ser traduzido como sentimento de
comunidade, interesse social, sentimento social ou sentido social. O sentimento de comunidade significa
assumir a necessária interdependência com o outro, como uma forma de vida (Lebensform), ou seja, “não
deve ser entendido como uma forma de vida superficial, como se não fosse nada mais que a expressão de
um modo de vida adquirido mecanicamente. É muito mais. Não estou em condição de defini-lo de forma
inequívoca, mas encontrei em um autor inglês uma frase que expressa claramente algo que poderia
contribuir com nossa explicação: ‘Ver com os olhos de outro, ouvir com os ouvidos de outro, sentir com o
coração de outro’. Por gora, me parece uma definição admissível do que chamamos de sentimento de
comunidade” (Adler, 1928/1968).

97
“‘Aqui há algum truque... Por que não posso dar a resposta, assim como ele’? E,
quando [Adler] descobriu essa nova possibilidade, a solução foi claramente
oferecida” (Bottome, 1952, p. 61):

Por um tempo, [Adler] foi incapaz de reunir a coragem necessária para


levantar a mão. Supunha que toda a classe gargalharia diante de sua
audácia, pretendendo resolver um difícil problema – cuja solução os
demais haviam falhado –, porque sabiam que ele era o pior estudante de
toda a classe de aritmética (...). No entanto, quando um dos melhores
alunos da classe falhou, em sua vez, [Adler] percebeu que se colocou de pé,
levantando à mão. Seus piores temores se tornarem realidade quando o
professor e os alunos caíram na gargalhada diante de tamanha presunção.
Mas, uma vez de pé, ele sustentou seu espírito de luta: explicou a solução
que ele acabara de encontrar por inspiração e, para seu alívio, pode ouvir
triunfante que tinha acertado.

A partir desse dia, Adler não teve mais dificuldades na escola, tampouco
com as matemáticas, tornando-se um “verdadeiro prodígio” e passando pelo
período da adolescência de forma segura e sensata, absorvendo tudo o que lia
em seus livros com o propósito de atingir seu objetivo: tornar-se médico.
“Durante essa época, segundo ele próprio costumava lembrar, dedicou-se a ler
seriamente e com esforço tudo o que lhe parecia servir a seu objetivo final”
(Bottome, 1952, p. 65).

Quando chegou à Escola Médica de Viena, devido ao auge e esplendor da


instituição, Adler estudou com especialistas de renome internacional. A
influência mais marcante foi a do médico internalista51 Hermann Nothnagel
(1841-1905), que creia que o médico deveria considerar o paciente como um
todo, e não como um órgão isolado ou uma condição isolada. Nas palavras do
próprio Nothnagel (1882): “Todo conhecimento alcança seu valor ético e seu
significado humano apenas pelo sentido humano em que é empregado. Só um
bom homem pode ser um ótimo médico” (como citado em Baas & Handerson,
1889, p. 966). De acordo com Furtmüller (1935/1968), foi exatamente este
Blink aufs Ganze (visão dirigida ao todo) “que se tornou característica de Adler
como praticante, como psiquiatra e como filósofo” (p. 289).

51 A medicina interna é a especialidade médica que avalia o doente adulto no seu todo, tendo em conta a
complexidade do organismo humano e a interação dos vários distúrbios que podem afetar o indivíduo. O
medico internista ou clínico geral é o mais indicado para tratar os pacientes que recebem vários
medicamentos simultaneamente, além de controlar doenças básicas e monitorar o surgimento de possíveis
efeitos adversos. O especialista nessa área pode ser chamado, também, de médico de cabeceira ou médico
da família, pois pode acompanhar o paciente por toda a vida (Fochesatto Filho, 2013).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Apesar de quase não se ter informações sobre a relação de Adler com seus
professores nesse período, sabe-se que para ele “a vida com seus companheiros
de estudo [era] tão importante quanto as conferências, os laboratórios e os
internatos” (Furtmüller, 1935/1968, p. 290). Até mesmo porque, nesse período,
Adler juntamente com uma minoria de estudantes, foram influenciados pelo
movimento socialista: esses estudantes “se reuniam para debates, que duravam
à noite toda, nos sótãos de restaurantes e cafés baratos” (p. 290), com um
grande “entusiasmo para preparar o mundo para um futuro melhor, muito
diferente da superficialidade com que o grupo nacionalista tratava os problemas
políticos e sociais” (p. 290). Com relação a participação de Adler no grupo,
Furtmüller descreve que era de um ouvinte, não de um orador.

Penso que as teorias econômicas de Marx nunca tiveram muito de sua


atenção. Na política, nunca foi ativo, mas um observador veemente e
lúcido, atento e com ânimo crítico (...).
Algo muito diferente ocorria com a concepção sociológica sobre a qual se
baseava o marxismo. Esta teve uma influência decisiva em todo o
desenvolvimento do pensamento de Adler. (p. 291).

Foi, também, durante esse período que Adler iniciou seus estudos sobre a
história da Psicologia. A princípio, sentiu-se descontente com relação ao
progresso da mesma enquanto Ciência. Entretanto, foram tais estudos que
deram fundamentação inicial às suas pesquisas sobre “como a natureza oferece
uma compensação aos órgãos lesionados (...)” (Bottome, 1952, pp. 65-66).
Ainda, de acordo com Bottome (1952), “o desenvolvimento do poder do ser
humano para transformar o ‘menos’ em ‘mais’, se converteu na base de toda a
obra adleriana” (p. 66).

Nos primeiros anos de sua carreira, sensível aos contatos humanos como
era, Adler não poderia ter escolhido outro lugar para estabelecer seu consultório
que o bairro de Praterstrasse. Um bairro, segundo Leal e Massimi (2017, no
prelo), “em sua maioria, de judeus e pessoas de classe média baixa, assim como
os garçons, os artistas dos espetáculos do Prater, o famoso parque de diversões
de Viena, que estava a cerca de seu consultório” (não paginado): “Todas essas
pessoas que ganhavam à vida exibindo sua força e suas extraordinárias
habilidades corporais, mostravam para Adler suas fraquezas e doenças físicas”
(Furtmüller, 1935/1968, p. 291).

99
Segundo Furtmüller (1935/1968), “Todo caso que não era inteiramente
rotineiro, tornou-se para Adler uma nova peça no desenvolvimento de sua
investigação científica” (p. 292) e, ao atender tais pacientes, Adler conseguiu
chegar ao desenvolvimento dos conceitos de sentimento de inferioridade,
compensação e supercompensação, bem como à publicação de uma de suas
principais obras: Studie über Minderwertigkeit von Organe52 (Leal & Massimi,
2017).

Concomitante às suas atividades no consultório, em 1902, Adler foi


convidado a ser uma das quatro pessoas a formar o círculo de Freud ou
Sociedade das Quartas-feiras53, com o objetivo de se reunirem, semanalmente,
na casa de Freud, para discutir questões de trabalho, filosofia e, em especial, os
problemas da neurose. De acordo com Furtmüller (1935/1968), o encontro
entre Adler e Freud “foi decisivo, não somente na vida de Adler, mas também na
história da psicoterapia e da psicologia” (p. 293); pois, se em um primeiro
momento Adler via que Freud abria uma fase nova no desenvolvimento da
Psiquiatria e da Psicologia, assim como oportunizava encontrar novos e
revolucionários métodos para o “estudo das leis formais dos fenômenos
psíquicos e o estudo dos conteúdos típicos da mente” (p. 294), com o passar dos
dias, meses de convivência, as divergências entre ambos começaram a ficar
cada vez mais evidentes, principalmente quando Adler passou a desenvolver
sua própria teoria.

A partir de então, a diferença entre os pontos de vista de Freud e de Adler


tornou-se cada vez mais acentuada e, apesar de ter apresentado
contribuições [significativas] à psicanálise e sua história, Adler [destacou-
se] muito mais por sua obra original nas áreas de psicoterapia e
[educação] do que na psicanálise propriamente dita. (Friedrich, 2009,
s.p.).

“Os integrantes do círculo de Freud, viam desde o início que Adler era um
pensador independente, não meramente um crítico negativo, mas um homem
que contribuía positivamente com o progresso da ciência” (Furtmüller,
1935/1968, p. 296). Consequentemente, após inúmeras e prolongadas

52 Estudo sobre a inferioridade dos órgãos (em livre tradução).


53Segundo Friedrich (2009), este foi considerado o “primeiro círculo da história psicanalítica e precursor
da Wiener Psychoanalytische Vereiningung [Associação Psicanalítica Vienense, em livre tradução], que
serviu de modelo para todas as sociedades posteriormente reunidas a partir de março de 1910 na
International Psychoanalytical Association (IPA)” (s.p.).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

discussões, nas quais Freud e Adler defendiam, cada um, seus pontos de vista,
assim como às insistentes críticas do primeiro em relação às posições do
segundo, em 1911, Adler deixa a Sociedade de Psicanálise54 (na qual era
presidente à época) e seu cargo de editor no Zentralblatt für Psychoanalyse,
periódico que fundará junto com Freud, para se dedicar a criação de uma nova
sociedade: inicialmente chamada de Sociedade à Investigação Psicanalítica
Livre e, posteriormente, de Sociedade de Psicologia Individual, juntamente com
oito de seus colegas que também participavam da Sociedade de Psicanálise (Leal
& Antunes, 2015).55

Medicina: um sonho ressignificado pela Psicanálise e pela Psicologia

Após o rompimento com Freud, não demorou muito para que Adler
mudasse seu consultório no Praterstrasse para à rua Dominikanerbastei, uma
rua que ficava no centro da cidade próxima à Ringstrasse, assim como desistisse
de ser médico da família para se especializar e dedicar-se somente à psiquiatria.

Com relação ao novo grupo, apesar de se sentirem aturdidos pelos


ocorridos, Adler ao perceber que não poderiam viver do passado e fundarem um
grupo preocupado apenas em fazer críticas a Freud, lembrava-os
constantemente do principal objetivo que os uniam: “Vocês deixaram Freud
porque não queriam tolerar a violação da independência científica. Agora,
demonstrem que são capazes de fazer um trabalho independente” (como citado
por Furtmüller, 1935/1968, p. 308).

Para tanto, enquanto Freud continuou mantendo exclusividade entre


seus seguidores e impondo uma certa formalidade aos seus pacientes56, Adler

54Para saber mais sobre o rompimento de Freud e Adler recomenda-se à leitura dos artigos das autoras
deste capítulo, indicados nas referências e: Handlbauer, B. (2005). A Controvérsia Freud-Adler (F. Lubisco,
Trad.). São Paulo: Madras Editora. (Originalmente publicado em 1984).
55 A mudança de nome se deu, em 1913, porque Freud e seu grupo afirmavam que o termo psicanálise
devia ser reservado exclusivamente às verdades e os erros da teoria difundida pela Sociedade de
Psicanálise, sob supervisão de Freud. E, acima de tudo, porque o nome da Sociedade deveria expressar a
ideia central da nova psicologia: uma psicologia que não via as “diferentes ações e ideias do indivíduo como
causalidade de poderes psíquicos isolados, ou como motivado por certas experiências isoladas, mas [sim,]
uma Psicologia que via as diferenças e/ou a unidade em relação com o todo, no retrato psicológico do
indivíduo”. (Leal & Massimi, 2017, no prelo).
56Enquanto Freud obrigava seus pacientes “(...) a deitarem-se e seu terapeuta ficar em silêncio e invisível
atrás deles” (IAPI, 2017, s.p), Adler “sentava-se à frente de seus pacientes, ambos em cadeiras
confortáveis, para que o tratamento tivesse um ambiente quase social” (s.p).

101
propôs um grupo que caminharia em outra direção: primeiro, não praticava os
ritos de iniciação nem os juramentos de fidelidade que Freud usava. Segundo, os
membros do grupo foram encorajados a apresentarem convidados às reuniões,
devido ao interesse, a experiência e/ou habilidade para se tornarem ou não um
membro da Sociedade de Psicologia Individual, bem como psiquiatras,
psicólogos e escritores que visitavam Viena (IAIP, 2017). Terceiro, ao enviar
cartas ao exterior explicando o ocorrido com Freud e o plano de um novo grupo,
Adler conseguiu a participação de muitos membros correspondentes da
Alemanha, França, Suíça, Grécia, entre outros países. E, por fim, tão importante
quanto os demais, todos os membros do grupo não poderiam ter princípios,
ideias ortodoxas

Não podia, a princípio, existir nenhuma ortodoxia, pois os novos membros


representavam posições bem diferentes. Mas, prevalecia uma ânsia, geral,
para estudar as ideias de Adler, confrontando-as com outras doutrinas,
para descobrirem quais contribuições poderiam adicionar aos diferentes
campos do pensamento. (...) Podiam falar livremente, sem medo que uma
palavra mais atrevida despertasse consternação em um grande e
respeitado erudito. Podiam expressar seus pensamentos a seu próprio
modo e buscar terminologias que revelassem melhor o que queriam dizer
(...). (Furtmüller, 1935/1968, p. 309).

Tal clima permitiu que, muitos investigadores, das mais diversas áreas,
mantivessem contato com o grupo, bem como os membros permanentes se
sentissem estimulados a aprender cada vez mais.

Durante os encontros, Adler “nunca ficava por muito tempo em um


raciocínio puramente teórico; preferia ilustrar com fatos o que ele queria dizer”
(Furtmüller, 1935/1968, p. 311). Adler acreditava que, ao fazer dessa forma,
estimulava e mantinha à atenção de todos que estavam a prestigiá-lo, fosse em
seu grupo ou fosse em grandes auditórios para pessoas laicas ou especialistas;
por esse motivo, nos cursos regulares que oferecia, centenas de ouvintes o
seguiam semestre após semestre, dizendo que havia “um fluxo de vida” entre
eles e Adler. Afinal, Adler sentia de imediato quando seu público não o
compreendia clara e completamente: “ele repetia detalhadamente a história de
um caso, expondo a história completa de um paciente, incluindo os resultados
do tratamento ou retomando o caso, em reuniões sucessivas, para mostrar como
o progresso do tratamento” (p. 312) estava se dando. Os que lhe escutavam,
afirmavam que conseguiam “ver como a personalidade de um indivíduo, a
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

princípio, um labirinto de características incoerentes e contraditórias, tornava-


se inteligível como uma unidade, assim como os sintomas de sua neurose
entravam em harmonia com o que o paciente e sua comunidade assumiam como
comportamento normal” (p. 312).

Em um informe publicado no periódico Individual Psychology


Veranstaltungen, de 1932, a respeito da forma de ensinar e tratar às pessoas,
um repórter que acompanhou uma das conferências de Adler na Polônia, o
descreve como sendo um excelente orador. E mais:

[Adler] fala absolutamente sem a ajuda de notas. É um prazer


acompanhar suas palavras, à medida que elas se formam no processo do
pensamento criativo, nascendo da improvisação precisa e da clareza
científica extraordinária. Ao mesmo tempo, é um professor excelente, que
além de apresentar sua matéria de forma clara, é apaixonado e
verdadeiramente cativado por sua área, atrai poderosamente o ouvinte,
desenvolve pensamentos complexos e abstratos com simplicidade
admirável, quase que como um jogo; no momento adequado, Adler ilustra
um ponto com um exemplo notável. Ouvindo-o, quase se é seduzido a
seguir seu pensamento e, de bom grado, penetrar em novos territórios
fascinado e sem tropeços. (como citado em Furtmüller, 1935/1968, p.
312).57

Pode-se dizer, dessa forma, que a vivacidade, a espontaneidade e a


franqueza com que Adler contava seus casos, exemplificando como era sua
relação com os pacientes, permitiu à grande maioria das pessoas que o
escutavam, em especial, os membros de seu grupo, adquirirem um
conhecimento íntimo de seus métodos, traçando desde as primeiras
manifestações do comportamento neurótico à sua origem, para ajudarem o
paciente a entender e corrigir seus erros (Furtmüller, 1935/1968).
Consequentemente, Adler deixava claro que nenhum psicoterapeuta podia se
utilizar de seu método, como todos os seus detalhes e nuances. Pelo contrário,
pelos princípios gerais da Psicologia Individual: “cada um teria que construir
seu próprio método individualmente, utilizando à maneira de Adler como um
exemplo, um guia inspirador” (p. 313), e um como um método absoluto.

57 Tal relato encontra-se em nas notas de rodapé inseridas pelos compiladores Heinz L. Ansbacher e
Rowena R. Ansbacher. Nas palavras dos mesmos: “nas notas completamos algumas das informações de
Furtmüller como indicado; apresentamos colaborações de outros e tomamos nota de pequenas
discrepâncias ocasionais com outras fontes” (Furtmüller, 1935, p. 287).

103
Diante de tantas experiências, o grupo começou a publicar monografias,
artigos, relatos de experiências, para mostrarem que, desde o início, não
aplicavam os métodos da Psicologia Individual apenas na psicoterapia, mas
também em áreas como a Filosofia, a Literatura, a Religião, entre outras. Como
exemplo de monografias encontram-se: Psychoanalyse und Ethik [Psicanálise e
Ética, em livre tradução], de Furtmüller (1912); Der Fall Gogol [O Caso de Gogol,
idem], de Kaus (1912); Henri Bergsons Phylosophie der Personlichkeit [A
Filosofia da Personalidade de Henri Bergsons, idem], de Schrecker (1912) e
Sadismus und Masochismus in Kultur und Erziehung [Sadismo e Masoquismo
na Cultura e na Educação, idem], de Asnaourow (1913), publicadas em uma
série intitulada Schriften des Vereins für freie psycho-analytische Forschung
[Escritos de Pesquisa da Associação Livre de Psicanálise, idem].

Com relação aos artigos, em 1914, Adler e Furtmüller reuniram um


número considerável de artigos deles próprios e dos demais membros do grupo,
no volume Heilen und Bilden [Curar e formar, em livre], marcando a
colaboração estreita do psiquiatra com o professor e o educador, assim como as
contribuições da Psicologia Individual aos problemas psicológicos da infância e
da adolescência, com o intuito de ser útil à vida diária da escola e da família e
não somente do atendimento psiquiátrico. Nas palavras finais ao volume em
questão, ao se referir à necessidade de médicos e educadores trabalharem
juntos, Adler (como citado em Furtmüller, 1935/1968) diz:

A Psicologia Individual é para nós um esforço artístico que nos capacita


para considerar todos os movimentos expressivos no contexto de uma
transformação consistente. O resultado é o seguinte pressuposto final à
prática da educação: aguçar o sentido da realidade por meio do
esclarecimento do plano de vida não reconhecido e, em seguida, mediante
sua revisão, eliminar as “abreviações” patológicas e associais com uma
mudança do sistema autocriado. (pp. 319-320).58

Anunciando, assim, uma evolução significativa que estava por vir na


Sociedade de Psicologia Individual.

Ainda no ano de 1914, o grupo conseguiu publicar o primeiro número da


Zeitschrift für Individualpsychologie – Studie in Bereich der Psychotherapie,

58Tal relato encontra-se em nota de rodapé, inserida pelos compiladores Heinz L. Ansbacher e Rowena R.
Ansbacher.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Psychologie und Pädagogik [Journal de Psicologia Individual – Estudos nos


Campos da Psicoterapia, da Psicologia e da Pedagogia, em livre tradução]:

Agora, o grupo sentia-se seguro de que sua voz seria ouvida


continuamente e com crescente atenção. A atividade de cada um e a
ambição literária foram estimuladas. Não foram somente planejados
artigos à Zeitschrift, mas, também, um número grande de livros, que logo
se colocaram a caminho. (Furtmüller, 1935/1968, p. 320).

Entretanto, apesar de toda efervescência do grupo, logo explodiu a


Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e, quase que imediatamente, o grupo
sentiu seus efeitos: “a maioria dos membros eram suficientemente jovens para
que fossem recrutados imediatamente. As reuniões semanais cessaram. A
Zeitschrift deixou de existir” (p. 320). E, quase um ano após o início da Guerra,
em 1915, Adler foi recrutado pelo exército austro-húngaro, como médico da
armada. De acordo com Furtmüller (1935/1968) e a International Association
of Individual Psychology (IAIP, 2017), Adler serviu primeiro em um hospital
em Viena, depois em uma província polonesa na Baixa Áustria e, por fim, nos
últimos meses da Guerra, regressou à Viena.

“Durante os anos de guerra, Adler desenvolveu ainda mais sua teoria,


descobrindo, a partir de sua observação perspicaz das vítimas de guerra, entre
eles muitos neuróticos, a importância primordial do interesse social” (IAIP,
2017, s.p.). Com absoluta clareza, ainda segundo os relatos descritos no site da
IAIP, Adler percebeu que, “não [devia] se contentar um curar doenças mentais,
mas [devia] se aplicar todos os esforços para a evitar” (s.p.). E mais, Adler tinha
a convicção de que a guerra não representaria apenas suas perdas pessoais,
mas, também e principalmente, mudanças importantes em sua perspectiva
tanto sobre os assuntos mundiais quanto sobre os problemas da personalidade
humana. Como relembra Furtmüller (1935/1968):

Quando a guerra estourou, Adler pensava que para a Áustria seria uma
guerra justa. Sempre inclinado ao paradoxo, gostava de dizer em
conversas particulares: “Vocês sabem, eu sempre criticava o nosso
governo e nunca esperei que pudesse estar certo. De maneira
surpreendente, desta vez tenho razão”! Uma aprovação formulada dessa
forma, tinha dentro de si raízes de uma reconsideração que levou tempo e
avançou passo a passo; mas, mesmo antes do término da guerra, Adler
tomará uma posição oposta. (...) Quando as hostilidades finalmente
cessaram, aceitou a dissolução da monarquia e o estabelecimento da
República Austríaca (...) não como uma derrota, mas como o princípio de
uma nova evolução, cheia de esperança. (p. 321).

105
Nesse sentido, pode-se dizer que, se a primeira mudança marcou sua
passagem de médico da família à psiquiatra, a segunda mudança, além de ser
independente da primeira, deu um novo pilar de sustentação à sua teoria, assim
como evidenciou ainda mais as diferenças entre Adler e Freud. Enquanto que
para o segundo o homem era originalmente um selvagem perigoso, para o
primeiro fazia-se essencial considerar a lógica da vida para, então, compreendê-
lo. Afinal, para Adler não se podia confiar em qualquer instinto social, mas sim
no desenvolvimento de um sentimento de comunidade que levasse à cooperação
entre os homens comuns.

Para tanto, com o fim da Guerra, depois de se envolver com o novo regime
político, servindo inicialmente, em nome do partido Social-Democrático, ao
Comitê Central dos Trabalhadores de Viena, por meio de funções
administrativas, Adler passou a dar mais ênfase à educação, por acreditar que
era um campo fértil e promissor para aplicação dos princípios de sua teoria, na
construção da nova sociedade que estava sendo formada, principalmente após
a retomada de seu grupo, apesar de não ser completamente o mesmo de antes
da Guerra, pois

(...) alguns membros nunca regressaram às suas casas; outros, durante os


cinco anos cheios de acontecimentos, dirigiram seus interesses
intelectuais para outra coisa e, outros, estavam demasiadamente
complicados com suas atividades práticas, para desempenharem mais
trabalhos no grupo. Mas, haviam muitos recém-chegados valiosos,
especialmente (...) um grupo de professores jovens e entusiastas.
(Furtmüller, 1935/1968, p. 326).

Acredita-se que tal fato se deu, primeiro, porque ao realizar visitas


recorrentes ao Hospital Infantil Pirquet, enquanto servia no exército, e se
deparar com um número expressivo de crianças enfermas em decorrência da
Guerra, Adler concebeu “pela primeira vez, seu projeto para reeducar tanto as
crianças quantos seus pais nas clínicas de orientação infantil anexas às escolas
públicas” (Bottome, 1952, p. 168).

Segundo porque, ao voltar à Viena, apesar dos êxitos da Guerra, Adler


notava que o sofrimento estava apenas começando: “Por debaixo das esperanças
superficiais inspiradas pelos triunfos militares, (...), havia um espírito inquieto”
(como citado por Bottome, 1952, p. 170). Adler previa que seriam significativas
as consequências a serem enfrentadas pela nova sociedade que estava se
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

formando. Consequentemente, “as enormes devastações materiais e morais


ocasionadas pela guerra exigiam do estado, das comunidades e das inúmeras
organizações sociais e beneficentes a prevenção da delinquência infantil e
juvenil” (Seidler & Zilah, 1957, p. 32).

E, terceiro, porque o período pós-Guerra demonstrou tanto para Adler e


seu grupo quanto para os professores e responsáveis pela educação em Viena
que, a cooperação da Psicologia Individual à educação parecia ainda mais
possível: “os princípios básicos da reforma escolar de Viena, a respeito dos
métodos de educação, tinham muito em comum com os ensinamentos da
Psicologia Individual” (Furtmüller, 1935/1968, p. 328), principalmente ao se
dedicar às discussões sobre a constelação familiar, os sentimentos de
inferioridade e o Gemeinschaftsgefühl (sentimento de comunidade).

Para tanto, quando o ministro da educação, Glöckel, em uma conversa


com Furtmüller59 (como citado em Bottome, 1952) expressou seu interesse em
ter um profissional que pudesse ensinar tanto as crianças quanto aos seus pais
a serem bons seres humanos, o segundo disse-lhe:

(…) isso não é impossível aqui em Viena, já que posso lhe apresentar,
precisamente, o homem que pode lhe ajudar. Há um médico chamado
Adler que não é somente o que você quer, mas quem sabe por quais meios
pode conseguir. Por que não o colocar para ensinar os professores? (p.
179).

Após essa conversa inicial com Furtmüller e diante da “magnitude” da


necessidade pedagógica que se instaurava, Glöckel, ao conhecer Adler
pessoalmente, além de permitir a criação de Clínicas de Orientação Infantil
anexas a mais de trinta escolas públicas de Viena, nomeou Adler como professor

59 Carl Furtmüller, nasceu em Viena, a 2 de agosto de 1880. Ingressou na Universidade no ano de 1898
para cursar Filosofia e doutorou-se em 1902 (período no qual, também, se uniu ao movimento social-
democrático). Foi professor nos: Gymnasium de Viena (1901-1903); Gymnasium de Kaaden (hoje, Kadan
– 1904-1909); de uma Realschule (1909-1919). Foi membro do Comitê fundador do Volksheim. Em 1919,
devido ao seu antigo interesse pela reforma das escolas de Viena, a convite de Otto Glöckel, então Ministro
da Educação da Nova República Austríaca, Furtmüller começou a preparar, junto à divisão de Educação,
os fundamentos para a reforma escolar e, em 1922, foi nomeado superintendente da Educação Secundária.
Além de suas atribuições com o cargo público que exercia, Furtmüller “escreveu sobre materiais
educacionais, psicológicos e sociais; deu conferencias sobre os problemas da educação e da psicologia para
psicólogos, educadores, pais e professores e deu cursos em Francês no Instituto Pedagógico” Adler,
1935/1968, p. 285, nota de rodapé inserida pelos compiladores Heinz L. Ansbacher e Rowena R.
Ansbacher). Em 1934, devido o poder dos austrofascistas, migrou para a França, depois para Espanha e
Estados Unidos, retornando a Viena somente em 1947, quando se torna, um ano depois (1948), diretor do
Instituto Pedagógico. “Mas seu coração não estava em boas condições. Morreu em 1º de janeiro de 1951,
poucos meses depois de seu septuagésimo aniversário” (p. 285).

107
do Pädagogische Institut der Stadt Wien, situado no Volksheim, o maior e mais
importante instituto de educação de Viena.

As Clínicas de Orientação Infantil: um novo olhar às “crianças dificilmente


educáveis”

O contato de Adler com um grande número de professores durante suas


conferências, juntamente com o fato de criar a Associação de Psicologia
Individual de Professores, proporcionou além da influência diretriz ao campo da
educação (desenvolvimento das escolas), uma ampla discussão sobre o
pensamento e os métodos pedagógicos utilizados por muitos professores.

Ao assistirem as conferências de Adler, os professores compreendiam


que, primeiro, ao discutirem seus casos individuais, ele lhes ensinava um
método para que utilizassem de suas próprias observações agregadas às
informações que seriam obtidas, posteriormente, com os pais. E, segundo, que a
prática proposta dava ideias/hipóteses do que estava acontecendo na mente da
criança e como esta reagiria ao trabalho subsequente que o professor a
submeteria. Nas palavras de Regina Seidler (como citada em Bottome, 1952):60

Um professor que tenha trabalhado uma vez com as teorias de Adler,


nunca adotará outras. (…) Não faria mesmo que quisesse. Isto porque,
Adler nos ensinou a compreender as crianças com base em seus interesses
e nos interesses de cada professor, e nenhum professor poderia esquecer
isso. (p. 180).

Nesse sentido e como descrito por Lazarsfeld (1932/2015), foram


professores os primeiros a visualizarem as vantagens da formação em
Psicologia Individual tanto para eles mesmos quanto para os alunos,
principalmente porque nesses espaços podiam discutir uma de suas principais
preocupações: “(...) os métodos habituais de instrução e educação não se faziam
mais suficientes para evitar às dificuldades de ajustamento ou eliminá-las, se
viessem a existir” (p. 1).

Nas conferências no Volksheim, portanto, encontravam-se além dos


professores e estudantes, pais (homens e mulheres de diferentes classes
sociais) inspirados, todos, em conhecer cada vez mais sobre a Psicologia

60 Professora e defensora da prática adleriana, dirigiu uma das Clínicas de Orientação Infantil.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Individual e suas contribuições à educação de crianças e jovens nas escolas e,


também, em casa. Nas palavras de Bottome (1952), “entre os anos de 1921 e
1934, todas as crianças de 6 a 14 anos tiveram acesso a uma reeducação
psicológica. E, os professores tiveram uma boa formação, participando dos
cursos que Adler oferecia quinzenalmente (...)” (p. 180).

Diante do exposto, foi reconhecido por uma grande quantidade de


professores, conjuntamente com o grupo de Adler, a necessidade de se criar um
espaço onde se pudesse discutir não somente a formação dos professores, mas
também que ajudasse as crianças que estivessem apresentando dificuldades.
Assim, entre os anos de 1920/1921, foi fundada e inaugurada a primeira das
trinta e duas Clínicas de Orientação Infantil de Viena.

(...) o estímulo para a fundação das primeiras clínicas de orientação


infantil vienenses chegou simultaneamente dos professores de Viena e de
Alfred Adler. No que diz respeito à Psicologia Individual, a demanda de
estabelecê-las nasceu de sua concepção teórica fundamental relativa à
influência determinante da educação sobre o caráter, assim como,
também, por ter chegado à conclusão de que as condições dadas, levariam
necessariamente às falhas educacionais. (Seidler & Zilah, 1930/1957, pp.
33-34).

Ao que diz respeito aos professores, ao se preocuparem com o novo


sistema educacional implantado nas escolas (Arbeitsschule)61, esses se viram
cada vez mais preocupados com a questão dos alunos que não conseguiam
avançar em seus estudos. “Muitos professores vienenses que eram responsáveis
por crianças atrasadas, se dirigiam a ADLER, (...) pedindo-lhe ajuda e conselho
para conseguirem cumprir sua árdua tarefa” (Seidler & Zilah, 1930/1957, p.
34).

Sob o nome de Erziehungsberatungsstelle, o grupo estabeleceu as Clínicas


de Orientação Infantil, completamente voluntárias, nas escolas públicas, para o
atendimento das chamadas “crianças dificilmente educáveis”. “Sem nenhuma

61 Arbeitsschule ou escola do trabalho “para KERSCHENSTEINER denotava uma escola ‘que por meio de
seus métodos e do tipo de estrutura geral liberava os valores imanentes dos alunos’” (Spiel & Birnbaum,
1930/1957, p. 72). Ou, como descrito por Lourenço Filho (1978): a escola que Kerschensteiner
preconizava, não era uma “escola de trabalho” no sentido manual; mas sim, uma escola em que o aluno
poderia aproveitar suas inclinações e interesses, por meio de três princípios básicos: 1º) enlace das
atividades educativas propostas com às disposições individuais do aluno, 2º) preocupação em conformar
as forças morais do aluno para examinar os atos de trabalho e 3º) ser uma escola de comunidade de
trabalho, onde os alunos além de se aperfeiçoarem, ajudavam e apoiavam recíproca e socialmente a si
mesmos e aos fins da escola, para chegarem à plenitude.

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pressão oficial e sem nenhuma publicidade, as clínicas logo ganharam a
confiança dos professores e familiares” (Furtmüller, 1935/1968, p. 332).

Todas as Volks- e Haupt-schulen na cidade de Viena trabalhavam em


conexão com os centros de orientação infantil. Todas as crianças que
nessas escolas se mostrassem com um atraso intelectual ou que tivessem
dificuldades em sala, era levada pelo professor à clínica mais próxima,
para sua orientação e tratamento. (Bottome, 1952, p. 180).

Em todas as Clínicas, sempre havia a colaboração de um médico


psiquiatra e, principalmente, de um professor – ambos dispostos a oferecer um
conselho, nunca um método estereotipado; esta era uma característica da
maneira adleriana de aplicar a Psicologia Individual. O atendimento somente se
dava quando a criança era acompanhada por um de seus pais, assim como pelo
professor(a).

As clínicas dirigidas por ADLER [eram] fundamentalmente clínicas para


professores, que [eram] especialmente atendidos por representantes do
corpo docente das escolas primárias dos diferentes distritos, bem como
por médicos, professores, assistentes sociais e estudantes dispostos à
aprender e cooperar sem nenhum interesse. No início do ano letivo, um
representante das clínicas distribuía, entre os vários corpos docentes,
uma circular chamando-lhes atenção sobre o trabalho realizado nas
clínicas e solicitando-lhes que [informassem] os casos de crianças com
atraso. A pedido do inspetor, as escolas de cada distrito [enviavam]
representantes para realizarem consultas nas clínicas pedagógicas para
professores. Depois os professores [contavam] ao corpo docente o que
[realizaram] na clínica. (Seidler & Zilah, 1930/1957, p. 36).

Duas vezes na semana, portanto, ocorriam reuniões na qual, logo após


o(a) professor(a) descrever o caso de seu aluno, dava-se espaço “à uma prolixa
discussão teórica, na qual tentavam responder à pergunta-chave da Psicologia
Individual frente à educação: “Como modificar a situação concreta a qual a
criança se encontra”? A resposta a esta pergunta era que, a Psicologia
Individual deveria “mostrar à criança seu plano de vida equivocado e como esse
foi traçado sob uma perspectiva falsa; incentivando-a e reintegrando-a ao lado
útil da vida, mediante uma formação adequada” (Spiel & Birnbaum, 1957, p.
77).

A aplicação de tal prática, segundo Spiel e Birnbaum (1957), permitiu aos


professores identificarem que a prática adotada por Adler, com base na
Psicologia Individual, “apresentava-se ali não como uma demanda [, uma
exigência], mas como um exercício prático” (p. 77), que lhes oferecia um dobro
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

benefício: primeiro, ao compreender a criança e suas fugas, ao captar o


significado do objeto fictício de superioridade e penetrar na dinâmica de sua vida
psíquica, o professor além de se tornar capaz de aprender “a considerar o
caráter humano como a expressão de um compromisso entre a autoafirmação e
os sentimentos sociais” (p. 78), aprendia à “compreender o profundo
pensamento de ADLER [que afirmava que]: o caráter humano nunca é para nós
uma base para a evolução moral, mas um fato social” (p. 78, grifo do autores).
E, segundo, o professor não adquiria somente a arte de investigar, interpretar e
harmonizar com inteligência as características mais contraditórias, mas,
sobretudo, aprendia “a descobrir os erros infantis vitalmente perigosos, a
quebrar suas defesas e, por último, a inspirar-lhes valor e começar sua própria
formação para a vida” (p. 79).

O sucesso desse formato de trabalho somente ocorria, se o professor


compreendesse que em sua prática diária em sala de aula, ele deveria exercer
sua própria ação educadora, com base nas ideias que lhe eram sugeridas, mas
nunca as exercer como o outro a faz, ou seja, tentando imitar alguém ou algum
outro método aplicado em outra criança (Seidler & Zilah, 1930/1957). Isto
porque,

O êxito da tarefa pedagógica – transformação da criança e a remoção de


seus problemas – depende, em grande parte, da compreensão e do
diagnóstico adequado. A partir daí o professor tenta influenciar os pais e
a criança, com os quais permanecerá em contato constante. (p. 37).

O atendimento à criança que necessitava e à sua família, ocorriam em dias


determinados, sempre nas primeiras horas da parte da tarde. Segundo os
objetivos estabelecidos, a criança apresentava-se obrigatoriamente apenas uma
única vez na Clínica, pois, durante a primeira visita,

(...) através de um amigável esclarecimento de suas dificuldades, o


assistente [tentava] ganhar à confiança dos pais e da criança. Dessa
forma, ele os [induziam] a frequentar espontaneamente a clínica, até que
a criança [aprendesse a] superar suas dificuldades. Por exemplo, a
criança [era] encorajada a realizar determinadas tarefas, e mais tarde ela
visitaria a clínica voluntariamente, para relatar o que [tinha feito].

O próprio Adler trabalhou em uma das Clínicas de Orientação Infantil e,


assim como no consultório, na educação estava sempre disposto a oferecer uma
palavra, um conselho para que a criança e/ou seus pais saíssem melhor do que

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chegaram. Na primeira etapa, Adler realizava alguns encontros com o grupo de
docentes, onde apresentava um ou dois casos como forma de demonstração e
discussão, respondendo a todos com paciência e cuidado, fossem esses
professores ou os pais da criança: “uma vez por mês Adler dava uma conferência
aberta á todos os professores, pais e demais pessoas interessadas pela educação,
no Volksheim, e nessas ocasiões a grande sala ficava cheia a ponto de
transbordar” (Bottome, 1952, p. 181).

Posteriormente a esses encontros, diante de um auditório não tão cheio


como o descrito anteriormente, Adler iniciava seu atendimento com a leitura do
relato feito pelo(a) professor(a) da criança que estava apresentando alguma
dificuldade. Essa primeira leitura permitia, além da conversa com o
professor(a), que Adler traçasse um desenho da personalidade da criança e de
sua família, com base nos conceitos da Psicologia Individual. Em seguida,
começavam as entrevistas.

Apesar de ser em um auditório, com muitas pessoas, Adler conseguia que


tanto as crianças quanto os adultos sentissem confiança em sua pessoa. O que
não significava que ele facilitava as coisas. Pelo contrário, “como o tempo era
precioso, Adler gostava de chegar à razão das dificuldades da criança com suas
primeiras perguntas e observações” (Furtmüller, 1935/1968, p. 333). Apesar
de tal postura, em sua prática, Adler nunca deu um conselho autoritário. Fazia
com que a criança estudasse o seu problema e lhe ajudasse a estabelecer um
plano para superar suas dificuldades. Nas palavras de Bottome (1952):

A criança sempre reagia imediatamente as perguntas de Adler. Às vezes,


respondendo com muita liberdade e com evidente satisfação; às vezes,
com reticências ou com um completo silêncio. O refúgio no silêncio era, em
si mesmo, o reconhecimento de que havia alcançado a dificuldade da
criança e que a situação começava a ser compreendida. (p. 181).

Cabe destacar que, anteriormente ao encontro com a criança, Adler


sempre discutia com os integrantes das Clínicas de Orientação Infantil quais
perguntas seriam propostas tanto aos pais quanto à criança em si, bem como
solicitava aos(às) professores(as) que observassem as reações que a criança
demonstrava durante “a sua entrada; a qual dos pais se dirigia primeiro; se era
acolhida pelo pai ou pela mãe ou se permanecia isolada; se avançava ou ficava
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

parada; se erguia à cabeça; se segurava às mãos ou às escondia”, etc. (Bottome,


1953, pp. 181-82).

O objetivo de Adler (1957b; 1959) ao conversar com a criança e lhe


oferecer uma possibilidade de trabalho para melhorar as questões
apresentadas, não era de “curar” a ausência ou uma enfermidade, mas sim,
conversar com a criança de forma pensativa e chegar à resposta juntamente
com ela, tal como fazia com seus pacientes no consultório ao relatar a eles, por
exemplo, uma grave doença. Diante da postura de Adler, segundo Bottome
(1953):

Era emocionante ver como a criança assentia quietamente ou sorria com


reticência, quando as perguntas de Adler descobriam as profundezas de
seu ser e, pela primeira vez, via a intenção de seu comportamento e
reconhecia como sua personalidade originara aquele comportamento
equivocado. (p. 183).

Para conseguir tais manifestações, geralmente, após a primeira pergunta,


Adler fazia uma longa pausa para que a criança não se sentisse acuada ou
ameaçada. Ele creia que a pausa permitia à criança tornar-se confiante e segura
para, consequentemente, discursar sobre o que estava sentido ou o que pensava
sobre suas dificuldades; tornando-se capaz, imediatamente, de contemplar suas
dificuldades a partir de um novo olhar, de uma luz mais agradável. Ao se
aproximar do final do encontro, Adler conseguia marcar uma data para uma
entrevista posterior, onde a criança diria como havia funcionado o plano
traçado.

A forma de atuar de Adler partia de um princípio metodológico


fundamental da Psicologia Individual: a descoberta imediata do estilo de vida de
seus semelhantes. Isto é, desde a primeira conversa com a criança, a pessoa que
estivesse conduzindo esse processo deveria ser despertada pelo “sentimento de
que à sua frente há um ser humano, o qual, em todas as circunstâncias, pode
depositar absoluta confiança nela” (Seidler & Zilah, 1930/1957, p. 39). E mais,
“com base em sua experiência como membro da comunidade, ele [deveria]
guiar/orientar à criança em direção à incorporação à sociedade humana” (p.
39). Nas palavras de Seidler e Zilah (1930/1957):

Uma vez estabelecidas as relações humanas entre o assistente e a criança,


o primeiro passo à experiência de comunidade tinha se dado. Outro fator

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que [funcionava] nas clínicas, particularmente eficaz para fazer a criança
sentir seu relacionamento como a comunidade, [era] que, em muitos
casos, o trabalho [era] realizado às portas abertas. (p. 41).

Ao término dessa primeira conversa com a criança, Adler iniciava a


entrevista com os pais.62 Nas palavras de Alexandra Adler (1957)63, tal postura
permitia revelar que, “a educação dos pais [era] tão importante quanto das
crianças” (p. 99), pois, já, no primeiro momento da conversa, ao interrogá-los
sobre as principais dificuldades que os levaram a consultar um dos profissionais
da Clínica de Orientação Infantil, Adler tentava descobrir desde quando as
dificuldades descritas se faziam observadas pelos pais, bem como a descoberta
desse fato melhorava à compreensão das dificuldades enfrentadas pela criança.

Adler sempre mostrava à criança o erro em sua atitude, mais que qualquer
falta significativa derivada da mesma. Se, por exemplo, a criança era uma
reconhecida mentirosa, circunstância muito frequentemente produzida
por um pai rígido, Adler não mencionava as mentiras da criança, mas
tentava fazê-la entender que era muito apreciada pelos pais e que a rigidez
era, simplesmente, um ansioso desejo por parte dos pais de que o filho
melhor e tinha boas relações com o mundo. Mostrava, então, à criança que
um pouco mais de coragem e de afeto, de sua parte, como resposta a rigidez
paterna aliviaria a situação para ambas as partes. Depois, quando
conversava com os pais, Adler tentava possibilitar a melhora da criança,
tentando suavizar a rigidez da atitude paterna, mas tentando não se opor
aos pais. “O que vocês têm feito até agora a seu filho”, dizia-lhes, “sem
dúvida, está muito bom de vosso ponto de vista. Mas, talvez agora,
deveriam tentar algo um pouco diferente e ver qual resultado terão”.
Assim, Adler mostrava à criança e a seus pais que a dificuldade dependia
de toda a personalidade e que era nela que deveria acontecer a primeira
mudança. Em seguida, o sintoma desaparecia por si só. (Bottome, 1952, p.
182).

Na última etapa, Adler realizava uma síntese, aos professores e pais, das
etapas vivenciadas, tomando-as como um exemplo para a elucidação de
problemas mais gerais e não somente como um problema particular. Assim,
“sempre era surpreendente, para o auditório, ver o quão perto Adler chegava do

62Cabe destacar que, no princípio, Adler chamava primeiro os pais, depois a criança. Entretanto, ao
suspeitar que tal prática causava na criança a sensação de mal-estar, por conversarem sobre ela às suas
costas, Adler decidiu mudar a ordem.
63Alexandra Adler nasceu, em Viena, no dia 24 de setembro de 1901. A segunda dos quatro filhos nascidos
de Alfred Adler e sua esposa Raissa Timofeyevna Epstein. Seguindo os passos de seu pai, Alexandra
recebeu seu diploma de medicina em 1926, pela Universidade de Viena. Especializou-se em psiquiatria,
completando seu estágio e residência no próprio Hospital de Neuropsiquiatria da Universidade, onde mais
tarde dirigiu o departamento de neurologia para mulheres, tornando-se uma das primeiras mulheres a
praticar neurologia tanto em sua Áustria natal quanto na América. Em 1934, encarregou-se de um Centro
de Orientação Infantil até seu fechamento; o que lhe permitiu dar continuidade as ideias, aos pensamentos
de seu pai após seu falecimento (Kemp, 2015).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

desenho da personalidade da criança, levando em conta desde o relatório inicial


ao quadro final oferecido pelas entrevistas” (Furtmüller, 1935/1968, p. 333). A
exemplo, segue o relato de Sofie Lazarsfeld64 (1932/2015), ao acompanhá-lo em
um de seus atendimentos na Clínica de Orientação Infantil.

Gostaria de acrescentar que, muitas vezes, a maneira pela qual uma


conversa com os pais começa, já revela a causa das dificuldades
reivindicadas. Uma vez, durante uma reunião com os professores,
tínhamos acabado de escutar o relatório de um professor, mas ainda não
sabíamos nada sobre os pais, tampouco tínhamos visto eles ou a criança.
Como conselheiro, o Dr. Adler concluiu, com base no relatório, que a mãe
da criança poderia ser excessivamente enérgica e dominadora. Era o caso
de um menino de 13 anos. Ele não estudava, não fazia os trabalhos de casa,
perturbava na hora das lições com perguntas fora do assunto, irritava
todos os professores, oferecendo-lhes objeto inúteis, etc. Ele era intruso e
grosseiro com as meninas. Nunca conseguia se dar bem com os pais. Até
aqui, o relatório do professor a partir do qual o Dr. Adler tirou suas
conclusões. Depois de convidar os pais e o filho, o Dr. Adler se dirigiu ao
pai, em particular. No entanto, antes que o pai pronunciasse uma palavra,
a mãe, em uma enxurrada de palavras, contou tudo o que fazia à criança.
Disse que ninguém no mundo poderia cuidar melhor do menino, pois ela
estava constantemente atrás dele. Quando o filho chegava em casa
contanto sobre os seus feitos malcriados, ela não hesitava em dar um tapa
em seu rosto. (...) Esse relatório deu ao ouvinte uma imagem clara de uma
criança que tinha sido privada de toda independência e autodeterminação
e os sentimentos tinham sido adormecidos com punições. Assim, o menino
acreditava ser inútil em tudo e sentia-se tão desanimado que nem sequer
tentava estudar. Preferiu se beneficiar ganhando prestígio por mal
comportamento, sendo implicante e insolente com os professores. (s.p).

Após identificar o problema de relacionamento com a mãe, “Adler tentou


descobrir um campo onde o menino não havia falhado completamente. E,
descobriu que era em ginástica. O professor desse assunto tinha sido
compreensivo e, nesta, o menino tornou-se modelo”. Mediante à descoberta,
Adler traçou com o menino, portanto, um plano de vida saudável, com o que ele
precisaria para de fato melhorar tanto nas relações com sua mãe quanto com
seus professores. “Então, a baixa autoestima foi restaurada e ele não precisou
mais ganhar prestígio por mal comportamento [, tampouco precisou retorna à
clínica com frequência]. Sua melhora foi rápida e duradoura” (Lazarsfeld,
1932/2015, s.p.). Afinal, ao conquistar sua confiança, o menino além de voltar
a confiar, aumentou sua autoconfiança e foi possível traçar com ele tarefas antes

64Treinada pelo próprio Alfred Adler, em Viena, Sofie Lazarsfeld (1882-1976) começou a praticar em
Viena, mas em 1938 mudou-se para Paris e 1941 para Nova York, países onde também trabalhou. Foi
autora de vários artigos e livros focados, principalmente, em questões feministas (Lazarsfeld, 1932/2015).

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não tentadas para a melhora de seus “problemas”. Demonstrando, assim, que a
técnica utilizada por Adler e todos os demais de seu grupo, objetivava orientar
a criança a eliminar todas as suas dificuldades por meio de seus próprios
esforços, e não por meio de visitas constantes às Clínicas, pois um bom
atendimento se dá quando se consegue que a criança se abstenha dos velhos
comportamentos e recupere sua coragem pela vida.

Entretanto, cabe destacar que, tais momentos, focados apenas na


dificuldade da criança eram breves, pois a atenção da Psicologia Individual
focava-se na totalidade da situação da criança. Ou seja, a olhava em todos os seus
espaços de convívio e com todas as pessoas a sua volta (família, professores,
colegas, etc.). Consequentemente, ao descobrirem juntos a origem dos
“problemas”, conseguir-se-ia adotar atitudes mais adequadas, métodos
pedagógicos mais apropriados e uma melhor compreensão da criança.

Apesar do sucesso alcançado, o caráter público adotado por Adler era


frequentemente atacado, principalmente por quem não conhecia a forma como
o mesmo se dava e creia que causava certa “timidez” e/ou retração da criança
quando colocada em público.

Entretanto, a experiência mostrou que a presença da criança diante de


uma grande plateia – ou seja, a natureza pública de nossa tarefa
educacional –, [exercia] um efeito encorajador sobre a criança, pois
[sugeria] que suas dificuldades não [eram] um assunto privado, mas que
[haviam] estranhos interessados nela. O que [despertava], ainda mais,
sua consciência social. A criança [percebia] que [estava] entre pessoas
que [estavam] muito interessadas em seu futuro e em seus problemas,
sem sentir medo ou obrigada a aceitar a ajuda que lhe [era] oferecida.
(Seidler & Zilah, 1930/1957, p. 41).

Demonstrando, assim, que o caráter público do atendimento além de


estimular o sentimento social da criança, também se constituía uma forma de
treinar os educadores na arte de formar seres humanos sãos e valorosos. Como
relatam Seidler e Zilah (1930/1957):

Quem passou por alguma experiência na clínica pedagógica confirma que


a natureza pública do tratamento, garante ajuda imediata – social, material e
mental – àqueles que vêm em busca de orientação. O que representa, sem
dúvida, um agente de alto valor educativo” (p. 42), como se pode observar no
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

próprio registro de atendimento realizado por Adler (1930/1957a),


conjuntamente com a Dra. Mariana Langer, em uma das sessões públicas.

Fritz65, menino de 12 anos, se apresentou em nossa clínica em vinte de


novembro, em companhia de sua mãe. A doutora MARIANA LANGER leu
o informe preliminar. (...)
Informe Interpretações
O menino tem carácter belicoso
[agressivo]; provavelmente foi
mimado durante a primeira
Fritz, doze anos, veio a clínica
infância (...). Não se sente bem e
porque sofre de enurese.
começa a exigir tanto de sua mãe,
que ela tem que atendê-lo, também,
durante a noite […].
(…)
A doença favorece
Há quatro anos ficou internado no
extraordinariamente os mimos.
hospital por sete anos, devido a uma
Depois da doença, os meninos
crise de osteomielite no quadril e na
sentem uma necessidade maior de
coxa.
receber mimos.
(…)
Devido a esta enfermidade não É evidente que sempre estava na
frequentou a escola entre os sete e companhia de sua mãe.
os dez anos.
(…)
Se o menino não é um “tolo” ou um
“idiota”, frequentar uma escola de
“retardados” implica no aumento
do sentimento de menos valia [de
Aos dez anos foi matriculado na
inferioridade]. Se é um débil
terceira série de una escola para
mental, é natural não perceber que
crianças “retardadas” e,
está sempre com “crianças
atualmente, está cursando a quarta
retardadas”. Se, por outro lado,
série, no mesmo estabelecimento.
envia uma criança normal a tal
escola, ela se sente humilhada e
tem muitas razões para julgar-se
inferior ou prejudicada.
Se ele é normal não deve
surpreender ele seguir em frente
na escola. Não há nenhuma
Está indo muito bem na escola.
vantagem para ele nisso. Não é
mérito ver com um olho, onde os
outros são completamente cegos.
(…)
Se fosse ensinado de forma
Tem algumas dificuldades em adequadas a fazer, provavelmente
aritmética. poderia calcular tão bem como os
demais.
(…)

65Cabe informar que, na obra consultada ora o nome do menino aparece escrito Fritz, ora Federico, por
este motivo preservamos ambos. Afinal, Fritz é o diminutivo alemão de Frederico (do teutônico Fridurik).

117
O que indica que é inteligente. Este
menino mimado também quer se
destacar. Seu hábito de urinar na
cama, é um meio para esse fim. Ele
Quando fazem uma pergunta a desempenha um bom papel na
algum aluno da classe, sempre ataca escola e provavelmente não está
com suas respostas. descontente, mas quer ocupar um
lugar de destaque, por isso
responde rispidamente (pp. 116-
126).

Adler e a Dra. Mariana Langer tentaram, por intermédio das informações


que foram surgindo ao longo da conversa com Fritz (Federico), condensar seu
trabalho nos 4 princípios fundamentais do atendimento nas Clínicas de
Orientação Infantil, com base na Psicologia Individual: 1) ganhar a confiança
daqueles que vêm pedir um conselho, 2) descobrir a origem dos erros
educacionais, 3) encorajar e 4) estimular os sentimentos sociais. Os dois últimos
princípios ficam ainda mais evidentes no trecho seguinte, quando da conversa
de Adler com sua mãe e com o próprio Fritz.

[Entrada da mãe]
ADLER (à mãe): Desejo falar de Federico. Ele não é o melhor aluno de
sua classe?
MADRE: Eu não diria isso.
ADLER: Não é um dos melhores alunos da escola de “crianças
retardadas?
MADRE: Está bem em tudo, exceto em aritmética. Outras crianças
estão mais adiantadas que ele. A professora diz que quanto ele lê
calmamente, a faz bem. Sempre tenta apressar-se.
(…)
ADLER: Como ele se sente na escola?
MADRE: Sente-se muito bem na escola; por algum tempo o enviamos à
uma escola particular, esperando que assim tornasse as coisas mais
fácil. Mas ali, não lhe deram muita atenção e o deixaram atrasar. Um
especialista em nervos, amigo nosso, descobriu que ele era normal nos
aconselho a enviá-lo a uma escola de “crianças retardadas”.
ADLER: E como são as crianças da escola de “retardados”?
MADRE: As crianças são terríveis; mas isso não o incomoda. Há
crianças horríveis, que estão muito atrasadas. Se eu soubesse que ele
teria esperança de seguir em frente…
(…)
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

(O menino entra na sala)


ADLER (para o menino): Como você está na escola?
FEDERICO: Bem.
ADLER: És um menino muito inteligente. Você poderia ser um distinto
estudante. Temo que és covarde, que não tem confiança em si mesmo.
Crê que isso que se chama aritmética é muito difícil para ti. A
aprenderás facilmente; eu cuidarei para que se torne bom em
cálculos... Então, podemos organizar as coisas para que você possa ir à
escola secundária. Também o ajudarei lá. Nós mesmos
providenciaremos isso e você verá que, me breve, as coisas caminharão
sozinhas. Gostaria que viesse aos nossos centros, onde poderá jogar e
fazer suas tarefas de casa. Você passará bons momentos… Eu também
era mal em aritmética, então, alguém me mostrou como fazia e, logo,
tornei-me um dos melhores. O que diria seu professor se você se
tornasse um dos melhores alunos em aritmética?
FEDERICO: Ele ficaria muito feliz.
ADLER: Gostaria de vê-lo feliz?
FEDERICO: Sim!
ADLER: Volte outra vez e não se preocupe de alguma criança lhe disser
alguma bobagem. Saibas que dizem essas coisas, porque são muito
“tontos”. Tampouco quando é criticado em casa, deve irritar-se
imediatamente ou molhar suas roupas. Deve ajudar-me. Posso confiar
em você?
(Se despede do menino)

Demostrando, assim, que os quatro princípios são indispensáveis para


assegurar o êxito no atendimento. Entretanto, como alertam Seidler e Zilah
(1930/1957):

A difusão significativa das clínicas […] [nos permitiu] manter grandes


esperanças. Naturalmente, [escapava] de nossas mãos preencher as
lacunas resultantes de uma organização humana deficiente ou a falta
de compreensão da importância da escola e do lar na educação e no
futuro da criança. A terapia e a pedagogia de encorajamento que
[oferecíamos] em nossas clínicas não [tinham] nenhum efeito se o que
[fazíamos fosse] compensado pela rejeição, o desprezo, a censura e o
desânimo que, frequentemente, [eram] submetidas à criança na escola
e em casa. (p. 43).

A medida que as clínicas iam se diferenciando e progredindo, até mesmo


por não terem espaço suficiente para o atendimento a todas as crianças com
algum “problema”, passou-se a trabalhar com os professores a “natureza
peculiar do trabalho coletivo na sala de aula” (Spiel & Birnbaum, 1930/1957, p.
82). Ou seja, passou-se a oferecer um outro tipo de atendimento voltado ao
aluno, vinculado às Clínicas de Orientação Infantil já existentes, mas que
ocorriam especificamente nas salas de aula. A este atendimento deu-se o nome
de Clínica Educacional de Sala de Aula. Nesses espaços, objetivava-se descobrir

119
as causas dos problemas e empenhar esforços para suprimi-los com base nas
próprias discussões realizadas pelo grupo da sala de aula.

Nas palavras de Spiel & Birnabaum (1930/1957): era chegado o


momento de tornar o ideal, em real; era necessário deixar de se resignar com o
fato de que haviam “defeitos”, para descobrir suas causas e empenhar esforços
para suprimi-los; era necessário, apesar do ideal de educação social não poder
ser alcançado, que o professor se ocupasse dos casos mais difíceis, com o espírito
de um autêntico educador. W., por exemplo, um menino odiado por todos os seus
colegas de sala de aula, é um bom exemplo do trabalho realizado na chamada
Clínica Educacional de Sala de Aula. Seus professores, ao notarem o
comportamento agressivo de W., começaram a trabalhar com ele e com os
demais o sentido de justiça diante de seus atos incorretos, principalmente por
meio de discussões dirigidas e pela análise da situação vivida por W. em sua
própria casa, e como esta refletia em seu comportamento na escola.

Infelizmente, apesar de ano de 1928, diante de todo o trabalho realizado,


ter se atingindo o número de 28 Clínicas de Orientação Infantil e, em 1932, cerca
de 32 Clínicas estarem em andamento, em 1934, o trabalho com as Clínicas de
Orientação Infantil chegou a um fim abrupto, quando os austrofascistas
tomaram o poder, implantando novas autoridades escolares e aniquilando a
reforma escolar e todas as atividades conectadas à antiga República Austríaca

Todavia, como afirmou Seidler (como citado em Bottome, 1952):

Há uma coisa que não podem fazer, embora possam retirar das crianças
todas as suas possibilidades de liberdade. O que não podem fazer, a menos
que destituam todos os professores da Gemeinde Wien, é arrebatar das
crianças o que seus professores aprenderam. O que Adler e suas teorias
nos ensinaram, isso fica. (p. 209).

Algumas considerações nessa longa jornada...

Chegado aqui, cabe destacar que, todo o trabalho desenvolvido nas


clínicas e nas escolas, para Adler (1929/1959), somente teria significado se
conseguissem descobrir não somente o que a escola significava na vida da
criança, mas, também, seu significado na vida de um povo, de uma sociedade.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Em uma de suas conferências aos professores de Viena, Adler ao falar


sobre os desafios enfrentados pelos professores, consequentemente sobre a
estrutura escolar, chega a afirmar que:

A escola cresceu organicamente ao lado das necessidades do povo. Essa


instituição, criada pelas necessidades da sociedade, sempre demonstrou
quão indispensável é na era do desenvolvimento comercial e técnico. Daí
a necessidade da escola primária. Esta tomou formas diferentes,
correspondendo às exigências dos poderes dominantes.
[Entretanto,] ainda estamos, hoje, diante do problema da organização da
escola. É indubitável que a escola deva ser concebida como a base da
educação total de um povo.
A finalidade da escola é formar homens capazes de agir na vida com
independência, sentido como próprio todos os requisitos necessários e não
como assuntos estranhos. (...) É notório que na família e na escola serão
tomadas medidas de tal natureza, que capacitem o indivíduo a sair da
escola para a vida social. (pp. 11-12).

Ou, ainda, como descrito por Bottome (1952):

Adler tinha a crença, cientificamente baseada, de que a criança devia ser


educada, desde os seus primeiros anos, com a ideia de ser útil à sua
comunidade, mais que com o desejo egocêntrico originado de seu próprio
prazer ou de seu êxito. Creia que a criança podia converter-se, sempre, em
um ser que dá e não em um ser que toma. E, quando o ideal de colaboração
em um bem comum é usado como objetivo da educação de cada indivíduo,
se consegue um ser humano cujo instinto social ou “o amor aos seus
semelhantes” lhe é tão natural como o respirar. (...) Adler não creia que a
política sozinha, a ciência sozinha ou a economia sozinha pudessem levar
ao melhoramento da raça humana, mas creia que, em vez disso, o homem
conseguiria essas melhores se colocassem em prática uma educação
cientificamente ética ao alcance de todos, desde os primeiros anos. Então,
a política, a economia e a ciência poderiam ser utilizadas para fortalecer
esse ideal em vez de explorar o egocentrismo presente (...). (p. 263).

Nesse sentido, ao dar continuidade à discussão, em uma outra conferência


aos professores, Adler (1929/1959) estabelece relação entre a alma e as
condições que são impostas pela sociedade, para explicar como se vive em
comunidade e como os sentidos estão relacionados a esse modo de viver. Em
suas palavras:

A alma desde o início deve contar com as condições impostas pela


sociedade. A estrutura somática indica até que ponto o homem está
relacionado com os demais. Nossos órgãos sensoriais falam a língua da
comunidade, sempre encontramos neles a lei superior sob a qual vivemos
e nos movemos: união, relacionamento, assumir posições em relação aos
outros. O mundo inteiro está, por assim dizer, compreendido em nosso
próprio corpo; estamos tão relacionados com a realidade, que esta se
encontra em nós. (p. 52).

121
Caberia, portanto, a educação, segundo Adler, buscar o caminho que
levaria a criança adiante e a transformaria em instrumento do progresso social,
bem como aumentaria seu círculo de ação e corrigiria os erros educativos do
passado.

Ao que se refere a atualidade, pincipalmente, ao se pensar que os maiores


debates e embates na educação são travados entre o os pressupostos teóricos e
legais, entre as políticas públicas e as práticas escolares, entre a distância
teórica da formação inicial e a prática em sala de aula e entre os entraves na
ação do professor da sala de aula regular e no professor da sala de apoio e/ou
órgãos de apoio, pode-se dizer, por fim, que ao resgatar a teoria e a prática
utilizada por Adler e seus companheiros nas Clínicas de Orientação Infantil
vienenses, acredita-se que estas permitem repensar e questionar quais seriam
as áreas e quem seriam os profissionais, nos dias de hoje, que poderiam dar
suporte aos professores durante o seu dia-a-dia em sala de aula, lhes auxiliando
tanto em sua formação quanto no trato com seus alunos. Mas, mais que isso,
acredita-se que tal discussão propícia um repensar ou uma nova(antiga) forma
de se realizar um trabalho em conjunto, aliando teoria e prática, bem como
diversos profissionais da saúde e da educação, dentro das próprias instituições
escolares, ressignificando à educação das crianças com algum tipo de deficiência
e/ou dificuldade no processo de escolarização, assim como o fez Alfred Adler em
sua Viena pós-guerra.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

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en 1930).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

CAPÍTULO VI

Educação e Psicologia em Maria Montessori: da medicina à


educação especial e à pedagogia geral
Mitsuko Aparecida Makino Antunes & Kaciana Nascimento da Silveira Rosa

Figura 6: Maria Montessori


Fonte: Instituto Pedagógico Maria Montessori66

66 Descrição da foto: Maria Montessori, já bem de idade, utilizando-se de um vestido e um caso bem grosso
de inverno, com chapéu (ambos em cores escuras), está sentada no pátio do Instituto Pedagógico, com um
livro na mão e com cerda de 8 crianças do seu lado direito, lendo e interagindo com ela. As crianças vestem
roupas de inverno, típicas da época: meninos com short, blusa de lã sobre camisa branca, casaco, meias e
sapatos. As meninas vestem saia com camisa e casacos de frio, com meias e sapato.

125
Maria Montessori foi grande: educadora, mulher, ser humano. Nosso
encontro com essa personagem e sua obra teórica e prática se deu por caminhos
diversos. Por isso, tomamos a liberdade de fazer duas (curtas) apresentações
neste capítulo, mostrando a amplitude de seu legado, que nos afetou de diferentes
maneiras pelas implicações de seus atos ao longo da vida.

Apresentação I (Mitsuko Aparecida Makino Antunes)

Meu primeiro contato com Montessori foi na graduação em Psicologia,


quando nos coube apresentar um seminário sobre sua proposta educacional. O
que deveria ser a organização de informações básicas para uma apresentação
tornou-se um trabalho mais amplo, com várias sessões de observação
participante no Instituto Maria Montessori, em São Paulo, e muitas conversas
com Irmã Valentina, uma das pioneiras na introdução sistemática da Pedagogia
montessoriana em São Paulo. Era o ano de 1977. Pouco mais tarde, já no
mestrado em Filosofia da Educação, a tarefa de escrever uma monografia para
uma disciplina, sobre as relações entre Filosofia e Pedagogia, me levou a
Montessori novamente; esse trabalho deu a base para a minha dissertação de
mestrado. Nesta, o objetivo era fazer a crítica aos pressupostos históricos,
filosóficos e pedagógicos da Escola Nova, a partir de um estudo de caso: o sistema
montessoriano de educação. Entretanto, quanto mais me aprofundava no estudo
da obra e, sobretudo, da mulher Montessori, dar continuidade ao trabalho ficava
mais difícil. A continuidade e a conclusão (em 1985) da dissertação só foi possível
quando me dei conta da contradição que me acometera: fazer crítica a uma obra
e, ao mesmo tempo, admirar a cada passo sua autora. A superação se deu pelo
reconhecimento da grande contribuição de Montessori à Educação e à Psicologia,
extrapolando em muito aquilo que se criticava do escolanovismo. Assim, desde
então, Montessori e sua grande obra continuam sendo tema de meus estudos e,
sempre que possível, de meus orientandos, como Kaciana Nascimento da Silveira
Rosa.

Apresentação II (Kaciana Nascimento da Silveira Rosa)

Meu contato inicial com as ideias de Maria Montessori se deu em 2001,


quando cursava o 2º período do curso de Pedagogia na Universidade Federal do
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Maranhão (UFMA). Nesse período, tive a oportunidade de estagiar


voluntariamente em uma escola particular no município de São Luís – MA, que
adota, ainda hoje, o Sistema Montessori de Ensino. Lembro de ter ficado
impressionada com o trabalho que era realizado, principalmente na sala da
alfabetização, com os materiais montessorianos e a forma como a aprendizagem
acontecia. Nessa sala havia duas crianças com deficiência auditiva que, devido à
interação com o ambiente e com o material montessoriano, já estavam lendo e
produzindo pequenos textos. Tal experiência serviu de base para a minha
monografia de conclusão de graduação (2005), intitulada “O Método
Montessoriano e o Processo de Aprendizagem de crianças surdas nas séries
iniciais do Colégio Apoio”. Nesse mesmo período, dando continuidade a essa
temática, apresentei a monografia de conclusão do curso de Especialização em
Psicopedagogia, fazendo um aprofundamento do mesmo trabalho e
acrescentando o trabalho de intervenção do psicopedagogo frente às dificuldades
de aprendizagem de crianças surdas. Tais pesquisas instigaram-me a aprofundar
conhecimentos por meio de estudos sobre a educação da criança surda e as
práticas pedagógicas do Sistema Montessori. Em 2010, durante uma pesquisa
pela internet, encontrei uma dissertação de mestrado intitulada “Estudo do
Sistema Educacional e da Psicologia em Maria Montessori: uma contribuição à
reflexão sobre a Concepção Humanista Moderna em Filosofia da Educação” de
Mitsuko Aparecida Makino Antunes, professora do Programa de Pós-Graduação
em Educação: Psicologia da Educação, da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Decidi, então, realizar o seletivo para ingresso na turma de 2010 / 2º
semestre, disposta a abandonar minha cidade natal e todas as minhas atividades
profissionais. Com a aprovação no mestrado, fui informada no ato da matrícula
que minha orientadora seria a professora Mitsuko Aparecida Makino Antunes, o
que me deixou muito feliz. Na primeira conversa/orientação, descobrimos algo
em comum: a paixão por Maria Montessori.

Introdução

Maria Montessori foi a primeira mulher a concluir o curso de medicina na


Itália. Logo após sua formatura, tornou-se assistente na Clínica Psiquiátrica da
Universidade de Roma, na qual foi principalmente encarregada de estudar o

127
comportamento de um grupo de jovens com deficiência intelectual; permaneceu
nessa instituição por dois anos. Montessori percebeu, nessa experiência, que as
necessidades e o desejo de brincar dessas crianças estavam preservados,
levando-a a buscar os meios para educá-los (Röhrs, 2010). Montessori descobriu,
assim, as obras de Jean Marc Gaspard Itard e Edouard Séguin, médicos franceses.

Por ter estudado sistematicamente as obras desses autores,


principalmente Séguin, é possível que Montessori tenha se apoiado também nas
ideias do estudioso português Jacob Rodrigues Pereira, pois o método de
educação de Séguin foi inspirado nas experiências de Pereira.

Partindo de sua experiência na clínica psiquiátrica com as crianças com


deficiência intelectual e do estudo das obras de Itard e Séguin, Montessori optou
por dedicar-se às questões de ordem educativa e pedagógica. Pode-se dizer que
Montessori fundamentou-se nas elaborações teóricas e nas experiências
pedagógicas de autores anteriores a ela, como Pereira, Rousseau, Itard, Séguin e
Pestallozzi, e em seus contemporâneos, como Freud, Piaget e muitos outros. Sua
obra não foi espontânea nem imediatista, mas profundamente arraigada no
conhecimento da época e em várias áreas do saber.

Sobre sua formação

Maria Tecla Artemísia Montessori, filha única de Alessandro Montessori


e Renilde Stoppani, nasceu na cidade de Chiaravalle, na província de Ancona,
em 31 de agosto de 1870. Começou, precocemente, a romper com os
preconceitos e estereótipos impostos às mulheres na educação, assim como viria
a superar, anos mais tarde, as barreiras entre educador e educando, redefinindo
no processo ensino-aprendizagem a relação entre eles.

Informações sobre a infância de Maria Montessori são escassas (Kramer,


1976). Sabe-se que Montessori cresceu em Roma, uma metrópole rica em
instituições culturais, como universidades, bibliotecas e museus. Aos seis anos,
foi matriculada numa escola pública de Roma, onde as escolas ofereciam o
ensino completo, mas diferenciada e separada para meninos e meninas. Não foi
uma aluna brilhante nessa época, mas quando percebeu que tinha um bom
desempenho acadêmico, decidiu que cursaria a universidade. A maioria das
meninas que seguiam além do ensino fundamental prosseguia no curso clássico.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Maria Montessori decidiu, porém, aos doze anos de idade, que iria para uma
escola técnica, ingressando na Regia Scuola Tecnica Michelangelo Buonarroti.
Nessa época, a entrada na universidade dependia dos resultados obtidos nos
exames regulares, determinando o futuro do aluno (Kramer, 1976). Formou-se
em 1886, com excelentes notas, continuando lá seus estudos até 1890. Estudou
línguas e ciências, destacando-se principalmente em matemática. Maria
Montessori, como seus colegas da Scuola Tecnica, planejava tornar-se
engenheira. Entretanto, próximo de sua formatura, por seu interesse pelas
ciências biológicas, decidiu estudar medicina, curso que nenhuma mulher na
Itália havia feito até aquele momento.

Parentes e amigos da família desaprovaram a decisão de Maria


Montessori de cursar medicina, principalmente seu pai, mas ela conseguiu uma
entrevista com Guido Baccelli, professor de clínica médica na Universidade de
Roma. Admitida, Montessori matriculou-se na Universidade de Roma, em 1890,
como estudante de física, matemática e ciências naturais. Aprovada nos exames
em 1892, obteve a licença para iniciar o curso de medicina; o único empecilho
era ser mulher. Para uma estudante de ciências ser aceita no curso médico não
era apenas difícil, era impensável (Kramer, 1976). Apesar da desaprovação de
muitos, Maria Montessori contou com o apoio de sua mãe e, devido a sua
persistência, foi aceita.

Enfrentou muitas dificuldades e a rejeição de professores e colegas, mas


Montessori impôs-se por sua seriedade e competência e, em junho de 1894, no
segundo ano do curso de medicina e cirurgia, ganhou um prêmio por mérito
acadêmico, obtendo uma bolsa de estudos.

Logo, Montessori destacou-se por suas realizações. Em 1895, ela passou


em um concurso para assistente no hospital da universidade, com a finalidade
de adquirir experiência clínica. Entre outras atividades, atuou na clínica
psiquiátrica, a Regia Clinica Psichiatrica. Montessori estava se tornando uma
especialista de doenças em crianças pequenas. Em 1896, apresentou sua tese,
com o título de Contributo clinico allo studio delle Allucinazioni a contenuto
antagonistico. Maria Montessori foi aprovada com louvor, tornando-se a
primeira mulher formada em uma escola de medicina na Itália.

129
Da Medicina à Educação

Montessori trabalhou incansavelmente após terminar a faculdade. No


final de 1896, foi nomeada assistente cirúrgico no Hospital Santo Spirito, onde
ela tinha sido médica assistente um ano antes; consultava mulheres; atendia em
hospitais infantis; estagiava em San Giovanni e atendia em seu consultório
particular. Segundo Kramer (1976), a maioria dos pacientes atendidos por
Montessori em seu consultório era das classes populares e, se não pudessem
pagá-la, ela os atendia de graça.

Em 1897, Maria Montessori tornou-se médica assistente voluntária na


Clínica Psiquiátrica da Universidade de Roma. Uma de suas responsabilidades
era visitar os “asilos de loucos” de Roma, para indicar quais tratamentos eram
mais adequados para serem realizados na clínica. Nos asilos, viu crianças com
deficiência intelectual que haviam sido mandadas para os asilos e não recebiam
nenhum tipo de atendimento, tendo um ambiente pobre ou desprovido de
estímulos, permanecendo em uma situação de inatividade. Montessori passa a
se interessar pelas crianças com deficiência intelectual e buscar alternativas de
assistência a elas. Segundo ela, suas mentes não eram inúteis; elas apenas não
tinham sido utilizadas.

Assim, entre as visitas aos seus pacientes particulares e o trabalho em


hospitais e clínica psiquiátrica, Montessori continuou a pensar nas crianças,
algumas das quais ela se propôs a tratar. Ela as observava e buscava formas de
ação para atrair a atenção das crianças e dirigi-las a uma atividade. Foi assim
que Montessori começou a pesquisar os trabalhos com crianças com deficiência
intelectual e descobriu as obras de Jean Marc Gaspard Itard e Edouard Séguin.
Nessas obras, Montessori encontrou as revelações que a levaram a novas
concepções e práticas.

Entre 1897 e 1898, quando começou a se voltar para a educação,


Montessori voltou à universidade e frequentou aulas no curso de pedagogia.
Nesse momento, ela entrou em contato com algumas das principais obras sobre
a teoria educacional dos séculos XVIII e XIX. As ideias encontradas nessas obras
deram a base para a elaboração de uma teoria própria.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Entretanto, se as principais raízes do pensamento de Montessori para a


educação de crianças com deficiência intelectual foram os trabalhos de Itard e
Séguin, não se pode esquecer a importância das contribuições de Froebel,
Pestalozzi e Rousseau, que foram fundamentais para ajudá-la a pensar a
educação de uma forma mais geral. Cabe ressaltar que ambas as raízes podem
ser encontradas em meados do século XVIII, no trabalho de Jacob Rodrigues
Pereira, contemporâneo e amigo de Rousseau.

Em 1898, ao participar de um Congresso Pedagógico em Turim,


Montessori apresentou o trabalho “Educação Moral”, no qual ela apresentava os
benefícios da educação para crianças com deficiência. Com isso, suas ideias a
fizeram ser convidada para uma série de conferências em Roma sobre a
educação de crianças com deficiência (Lagôa, 1981).

Após o Congresso em Turim, Maria Montessori foi encarregada, pelo


então Ministro da Instrução Pública, Guido Baccelli, a organizar um curso para
professores sobre práticas de ensino para crianças com deficiência. Segundo
Machado (1986), por meio desse curso, nasceu, como campo de aplicação, a
Escola Normal Ortofrênica, sob a direção de Maria Montessori. Em seguida, foi
fundado o Instituto Ortofrênico, de natureza médico-pedagógica, para pessoas
com deficiência intelectual.

A experiência na Escola Normal Ortofrênica, trouxe para Montessori a


preocupação com a formação de professores, o que a levou a dar atenção especial
à função do professor no trabalho com crianças, com deficiência ou não, ao
elaborar sua teoria (Angotti, 2007). Após sua saída da Escola Ortofrênica,
Montessori retomou os estudos sobre os problemas de ordem pedagógica,
diplomando-se em Filosofia, além de frequentar cursos de Psicologia
Experimental (Machado, 1986).

Segundo Machado (1986), depois das investigações sobre antropologia


pedagógica e dos métodos em uso em escolas elementares, Montessori assumiu,
em 1904, a cátedra de Antropologia Pedagógica na Universidade de Roma e
publicou a obra Antropologia Pedagógica. Sobre os resultados de suas pesquisas,
diz Montessori (1909/1965):

131
Quando, em 1898 e 1900, consagrei-me à instrução das crianças
deficientes, tive logo a intuição de que esses métodos de ensino não tinham
nada de específico para a instrução de crianças deficientes, mas
continham princípios de uma educação mais racional do que aqueles que
até então vinham sendo usados, pois que uma mentalidade inferior era
suscetível de desenvolvimento. Esta intuição tornou-se minha convicção
depois que deixei a escola dos deficientes; pouco a pouco adquiri a certeza
de que métodos semelhantes, aplicados às crianças normais,
desenvolveriam suas personalidades de maneira surpreendente. (p. 28).

O diretor do Instituto Dei Beni Stabili de Roma encarregou Montessori de


organizar escolas infantis no bairro popular de San Lorenzo, em Roma. Em 6 de
janeiro de 1906 foi aberta a primeira Casa dei Bambini.

Para Angotti (2007), a pedagogia científica de Montessori teve suas


raízes na experiência em San Lorenzo, com cerca de 50 crianças de 3 a 6 anos.
Após tal experiência, outras Casa dei Bambini foram criadas em Roma e, em
1908, em Milão.

Para Montessori, no Curso de Pedagogia Científica, realizado em Città di


Castello, ela não havia criado nada de novo na educação; apenas observara o
espírito infantil, que havia se revelado e ela o contemplou em sua plena
manifestação (Machado, 1986).

Tendo como foco a ajuda para o desabrochamento do espírito da criança,


Montessori deu continuidade ao método de observação da criança, como base
para sua educação. Foi assim que Montessori preparou um ambiente que, para
ela, deveria ser propício para o desenvolvimento e para a conquista de
independência da criança. Preocupou-se também com as atitudes do professor
relativos ao processo de aprendizagem da criança, bem como sua função de
propiciar à criança o sentimento de autoconfiança e ajuda mútua. Para Machado
(1986), tratava-se de dar condições de expressão àquilo que estava em germe
na criança, e que deu origem ao seu sistema educacional.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o fascismo retirou o apoio às


iniciativas de Maria Montessori e ela foi forçada a deixar a Itália. As escolas que
adotavam seus princípios foram gradativamente suprimidas, embora um
movimento clandestino desse continuidade à sua obra, por seguidores de suas
ideias. Durante os tempos de exílio, suas ideias difundiram-se pelo mundo
(Machado, 1986).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Também nesse período, o Ministério de Instrução Pública fechou a escola


estatal do Sistema Montessori, base para a formação de educadores, criado e
mantido por ela própria. Esse centro formava professores para a educação
infantil, a educação elementar e para muitas escolas do mundo todo. Também
foi extinta a Opera Nationale Montessori, de Roma, fundada em 1924 com a
finalidade de difundir o Sistema Montessori e propiciar as bases para sua
aplicação.

Maria Montessori, por dez anos, peregrinou pela Espanha, Inglaterra e


Holanda, sendo nesta última criada Associação Montessori Internacional. Ela
também viveu por longo tempo na Índia, estimulada por um encontro que teve
com Mahatma Gandhi, em Londres. Segundo Angotti (2007), Gandhi defendeu
a necessidade de educar todo um povo, em especial a “casta dos intocáveis”, que
era a classe mais pobre de seu país.

Com o fim da II Guerra Mundial, Montessori voltou à Europa, e meta de


construção de um mundo novo encontrou as condições propícias no pós-guerra
(Machado, 1986). Dedicou-se, então, a elaborar um projeto de Educação para a
Paz. Em 1947, o governo italiano conclamou Montessori para a restauração das
Opera Montessori, suspensas durante o regime fascista, recomeçando, então, o
trabalho para a difusão de sua obra.

Em 6 de maio de 1952, Montessori faleceu em Noordwijk, Holanda, onde


encontra-se enterrada em um pequeno cemitério católico de crianças.

Numa lista elaborada por Almeida (1984), com as obras de Montessori,


podem ser destacadas algumas relacionadas à Educação, tais como: Norme per
una classificazione dei deficienti in rapport ai metodi specialli di educazione
(1902); L’Antropologia pedagogica (1903); L’ezioni di antropologia pedagogica
(1906); La Casa dei Bambini, dell’ instituto Romano dei Beni Stabili (1907);
Metodo per insegnare scrittura (1908); Come se insegnare a leggere e a scrivere
nelle “Case dei Bambini” di Roma (1908); Il metodo della pedagogia scientífica
applicatto all’educazione infantille nelle Case dei Bambini (1909); Corso di
pedagogia scientifica (1909); Per una nuova pedagogia (1909); I principi
fondamentali del metodo (1914); Quando la scienza entrera nella scuola
(1915); Manuale di pedagogia scientifica (1921); La pace e l’educazione (1933);

133
Psico Gemetria (1934); Psico Aritmética (1934); Il secreto dell’infanzia (1938);
Reconstruction in education (1942); What you should know about your child
(1948); Educazione e pace (1949); Formazione dell’uomo (1949); La magia del
bambino (1949); La mente absorvente (1949); La scoperta del bambino (1950);
Educazione alla libertá (1950); Il segreto dell’infanzia (1950); La capacitá
creatice della prima infanzia (1950); Unione Nazionale per la lotta contro
l’analfabetismo (1951); La mente del bambino (1952). Acrescenta-se ainda à
lista de Almeida (1984), o livro Para educar o potencial humano (2004),
contendo transcrições das últimas palestras de Montessori sobre o seu sistema
de educação.

Uma Pedagogia Humanista e Científica

Montessori desenvolveu um sistema educacional fundamentado


filosoficamente numa concepção humanista, para o qual é proposta uma prática
pedagógica de base científica. Baseando-se na observação direta do
comportamento da criança, com a finalidade de apreender sua natureza,
Montessori contribuiu para que a criança fosse vista pela perspectiva da ciência
e, em especial, da Psicologia: “Na hora em que puderem ser reveladas as vias
naturais sobre as quais procede o crescimento psíquico do indivíduo, não estará
a criança colocada em condições de revelar-se a si mesma”? (Montessori,
1970/1949, p. 20). Para ela, é no conhecimento sobre a criança que se
descobrirá o homem. Essa postura revela seu vínculo com a filosofia humanista
e, ao mesmo tempo, com os saberes produzidos pela ciência.

Essa Pedagogia nasceu da necessidade de elaborar um sistema de ensino


que pudesse dar plenas condições de aprendizagem e desenvolvimento a crianças
com deficiência intelectual. Pensado inicialmente para o atendimento de crianças
internas em uma clínica psiquiátrica, o sistema de ensino surgiu de observações
e experiências práticas, apoiadas nos conhecimentos da medicina da época e, em
especial, da Psicologia, ainda muito relacionada à Medicina e aos médicos.

Montessori (1909/1965) percebeu que o problema da educação das


crianças internadas na clínica psiquiátrica era mais de ordem pedagógica do que
médica, indo de encontro à opinião de seus colegas médicos. No já referido
Congresso Pedagógico de Turim, Montessori afirma “ter tocado uma corda muito
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

sensível, pois esta ideia difundiu-se com a rapidez do relâmpago, passando do


meio médico ao círculo do ensino elementar” (pp. 27-28).

Em contato com as obras de Séguin, adotou a observação científica, que


permitiu a ela aproximar-se das particularidades de cada aluno para
empreender as atividades pedagógicas. Observando, porém, os equívocos dos
professores no uso mecânico das lições de Séguin, Montessori (1909/1965)
responsabilizou-se pessoalmente pelo ensino das crianças da Escola Ortofrênica
e pela formação de professores. Diz ela: “Trabalhava muito mais do que uma
professora elementar, ensinando as crianças, ininterruptamente, das 8 às 19
horas. Esses dois anos de prática constituem, verdadeiramente, o meu primeiro
título em pedagogia” (p. 28).

Montessori (1909/1965) tomou para si a instrução das crianças com


deficiência e, com sua saída da Escola Ortofrênica, dedicou-se aos estudos dos
métodos de ensino para estas crianças, mas começou também a pensar que
esses métodos, se aplicados às demais crianças, poderiam desenvolver suas
personalidades de maneira surpreendente. Afirma ela: “Guiava-me pelo livro de
Séguin, e as experiências de Itard constituíam para mim verdadeiro tesouro.
Além disso, baseada nesses textos, fiz fabricar riquíssimo material didático” (p.
31). Apoiada nos trabalhos dos dois médicos-educadores, Montessori passou a
se dedicar à elaboração de um método para a alfabetização de crianças. Com
isso, Montessori conseguiu que algumas crianças com deficiência aprendessem
a ler e a escrever corretamente; mais tarde, essas crianças obtiveram aprovação
e notas melhores que as crianças sem deficiência no exame das escolas públicas.

Montessori conclui, portanto, que se as crianças com deficiência haviam


alcançado as crianças sem deficiência nos exames era devido ao processo
pedagógico que a elas foi propiciado: “tinham sido auxiliados no seu
desenvolvimento psíquico, enquanto as crianças normais haviam sido, pelo
contrário, sufocadas e deprimidas” (1909/1965, p. 33). Entretanto, enquanto
todos admiravam os resultados das crianças com deficiência, Montessori
buscava as razões pelas quais as crianças sem deficiência tinham ido tão mal
nos exames.

135
Além disso, Montessori (1909/1965) sabia que Séguin, que havia
estudado crianças com deficiência por mais de trinta anos, entendia que seu
método deveria ser também aplicado a crianças sem deficiência. Montessori
considerava que a “voz de Séguin” a fez entender a importância de uma grande
obra que reformaria a escola e a educação.

Do interesse pelas crianças com deficiência, dos resultados de seu trabalho


com essas crianças e pela crítica à escola tal como existia na época, Montessori
passou, então, a se interessar pela educação em geral, ou seja, pela educação para
todas as crianças. À escola caberia promover o desenvolvimento das
manifestações espontâneas e da personalidade da criança, bem como ser
orientada por uma pedagogia calcada no estudo individual da criança. Nascia o
Sistema Montessoriano de Educação para todos.

Bases psicológicas do Sistema Montessoriano

Propondo-se a estudar o desenvolvimento infantil pelos métodos de


observação e de experimentação, Montessori (1971) afirma a capacidade de
autoconstrução da criança, que não é provida de caracteres inatos, mas de
potencialidades para desenvolver-se. Cabe ao ambiente contribuir com o
processo de desenvolvimento, produzindo as condições para que as
potencialidades se realizem. A criança é responsável por seu desenvolvimento:
“(...) porque ninguém pode realizar-lhe o trabalho atinente a construir o homem
(...), ninguém pode crescer por ela” (p. 42). Resumindo, ela conclui que a
criança, ao nascer, “traz potencialidades construtivas que devem desenvolver-
se à custa do ambiente”, em outras palavras, “Ela vem do nada no sentido de que
não tem qualidades psíquicas, (...) mas tem em si potencialidades que lhe
determinam o desenvolvimento, tomando os caracteres do ambiente que a
rodeia” (p. 74).

Uma das mais originais contribuições de Montessori foi o estabelecimento


de períodos do desenvolvimento humano, baseado em dados empíricos, a partir
das características apresentadas regularmente pelas crianças em diversos
momentos da vida, referentes a aspectos físicos e psicológicos, que são, segundo
ela, estreitamente relacionados. Montessori estabelece três períodos de
desenvolvimento. O primeiro período, de zero a seis anos, caracteriza-se pela
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

“mente absorvente”, e subdivide-se em “mente absorvente inconsciente”, de


zero a três anos, e “mente absorvente consciente”, de três a seis anos. O segundo
período, intermediário, correspondente à faixa etária de seis a doze anos. O
terceiro período subdivide-se em puberdade (doze a quinze anos) e adolescência
(quinze a dezoito anos).

O período da mente absorvente caracteriza-se pela absorção do meio


ambiente pela criança, que o introjeta por meio de sua vida sensorial, motora,
afetiva e cognitiva. Nesse período formam-se a inteligência e as demais
faculdades psíquicas e cria-se a personalidade do indivíduo. Esse é um período
criativo, em que a criança desenvolve tudo aquilo de que disporá no futuro:
consciência, vontade, personalidade e individualidade. Por ser um período de
construção da vida, esse é o mais importante no desenvolvimento da criança e
é necessário dar uma ajuda inteligente para que ele ocorra adequada e
plenamente. Não se deve dirigir ou tentar influenciar a criança, mas preparar o
ambiente de forma cuidadosa e apropriada para que ela possa agir livremente
sobre ele, de maneira espontânea e sem fadiga. Esse período é de caráter
criativo e construtivo; sobre ele constituir-se-á a psique da criança. Nessa fase,
a criança construirá a linguagem e absorverá a língua materna, hábitos,
costumes, memória, compreensão, raciocínio, sentimento religioso etc.

Pouco a pouco a mente consciente vai brotando da mente inconsciente. O


inconsciente aprende facilmente e facilita a aprendizagem consciente, servindo-
lhe de apoio. A fase da mente absorvente consciente vai dos três aos seis anos e
se caracteriza pela ação consciente da criança na absorção do ambiente; é o
mesmo tipo de psiquismo do momento anterior, diferindo apenas pela maneira
como ele se processa. Nessa fase, o movimento e a linguagem são de importância
crucial, pois serão meios para o desenvolvimento psíquico. É um período de
construção que dá continuidade ao anterior, pois a criança explora e absorve o
meio conscientemente, usando as faculdades desenvolvidas anteriormente,
como a memória, por exemplo. A Pedagogia montessoriana debruça-se
especialmente sobre essa fase, enfatizando a aprendizagem de habilidades. A
essa fase corresponde a educação pré-escolar, que se constitui, sem dúvida, na
parte mais elaborada e rica da proposta educativa, embora ela tenha

137
contemplado todos os níveis de escolarização, abrangendo em seus escritos até
o ensino universitário.

O período intermediário, que vai dos seis aos doze anos, caracteriza-se
pelo pequeno volume de transformações, embora a criança dê sequência a seu
desenvolvimento. A passagem da mente absorvente para o período
intermediário é bastante visível, não apenas no que se refere às mudanças
psicológicas, mas também no plano físico. A mudança da dentição é, para
Montessori um bom exemplo disso. Esse período caracteriza-se pela
estabilidade, tornando a criança mais calma, serena, forte, vigorosa física e
mentalmente, com grande potencial para o trabalho físico e mental; isso faz com
que a criança esteja num momento ótimo para a aquisição de informações
culturais e científicas.

O terceiro período é constituído pela puberdade e pela adolescência,


caracterizado por significativas transformações, tanto no plano físico como
mental. No final dessa fase, o indivíduo deverá atingir a maturidade, chegando
à plenitude de seu desenvolvimento, crescendo a partir daí apenas em idade
cronológica. Surge, nesse momento, a consciência social, isto é, o sentimento de
pertencimento a uma realidade mais ampla, o amor ao país, a ligação a
determinados grupos etc. Essa fase é subdividida em puberdade (12 a 15 anos)
e adolescência (15 a 18 anos).

É importante ressaltar que a psicologia do desenvolvimento é a parte da


psicologia à qual Montessori mais se dedicou, sobretudo porque é ela a base
teórica e prática da pedagogia construída pela autora. Várias e reiteradas são as
situações em que se demonstra a proeminência da psicologia do
desenvolvimento em sua proposta pedagógica. Dentre tantas possibilidades,
pode-se citar o material de ensino por ela proposto, talvez um dos mais
elaborados até hoje desenvolvidos pela pedagogia, cujo exame demonstra como
foi incorporado o saber sobre o processo de desenvolvimento e aprendizagem,
sendo considerado cada aspecto da personalidade infantil e da fase de
desenvolvimento da criança.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Entretanto, além de formular essa periodização para o desenvolvimento


da criança, Montessori buscou no conhecimento da Psicologia da época muitas
das bases para dar sustentação a sua proposta pedagógica.

Fundamentos e princípios da prática pedagógica

Vários são os elementos que compõem articulada e sistematicamente a


proposta pedagógica de Montessori. Serão apresentados a seguir, aqueles que
permitem caracterizar de forma resumida, para o leitor, o modo como se
concretiza o processo educativo.

Um dos pilares do Sistema Montessori é o ambiente preparado. Segundo


Montessori (1909/1965): “Quando falamos de ‘ambiente’, referimo-nos ao
conjunto total daquelas coisas que a criança pode escolher livremente e
manusear à saciedade, de acordo com suas tendências e impulsos de atividade”
(p. 59).

Montessori (1909/1965), com a formação médica da época e com suas


preocupações com a criança, preocupou-se, para começar, com uma mobília
adequada ao corpo da criança e, principalmente, com as necessidades
pedagógicas. Afirma ela:

Mandei construir mesinhas de formas variadas, que não balançassem, e


tão leves que duas crianças de quatro anos pudessem facilmente
transportá-las; cadeirinhas, de palha ou de madeira, igualmente bem leves
e bonitas, e que fossem uma reprodução, em miniatura, das cadeiras de
adultos, mas proporcionadas às crianças. Encomendei poltroninhas de
madeira com braços largos e poltroninhas de vime, mesinhas quadradas
para uma só pessoa e mesas com outros formatos e dimensões, recobertas
com toalhas brancas, sobre as quais seriam colocados vasos de folhagens
ou de flores. (p. 42 e 43).

Além do espaço físico, da mobília e dos materiais propriamente


pedagógicos, Montessori considera que o adulto também faz parte do ambiente, e
cabe a este estar atento às necessidades da criança, ajudando-a a ser autônoma
em suas atividades, permitindo seu livre desenvolvimento. É tarefa do educador,
portanto, preparar o ambiente para que a criança possa desenvolver suas
atividades, pela livre escolha e obedecendo a seus próprios interesses.

O professor deve ajudar a criança, orientando-a a partir dos interesses


dela própria e do uso específico de cada um dos materiais disponíveis; deve,

139
também, dar condições para que a criança desenvolva a autodisciplina,
deixando-a, porém, livre na escolha e na execução do trabalho.

O ambiente preparado, para Montessori (1909/1965, pp. 43-54), baseia-


se nos seguintes princípios:

Mobília: mesas, cadeiras e poltronas devem ser pequenas, leves e


transportáveis, permitindo à criança escolher a posição que lhe for mais
confortável, como princípio de liberdade e meio educativo.
Disciplina e Liberdade: a disciplina deve ser ativa67; a liberdade deve ter
como limite o interesse coletivo; o professor deverá ser mais passivo do
que ativo, desempenhando sua função precípua de observador.
Enfrentamento de dificuldades de ordem externa: noção do bem e do mal,
cuja finalidade não é disciplinar a atividade e não imobilizar a criança ou
torná-la passiva. Para Montessori, “(...) é dever da educadora impedir que
a criança confunda bondade com imobilidade, maldade com atividade; isto
seria retroceder aos antigos métodos de disciplina” (p. 50).
Independência: é um pressuposto da liberdade; a criança deve ser
orientada para a conquista da independência desde a tenra infância; o
professor deve colaborar para que a criança desenvolva sua
independência; propiciar às crianças, desde as primeiras atividades, a
autossuficiência e o respeito aos outros; qualquer auxílio inútil será um
obstáculo ao livre desenvolvimento das forças naturais.

O ambiente preparado é o espaço organizado pelo professor com a


finalidade de propiciar à criança o desenvolvimento de sua liberdade e
independência por meio da disciplina ativa. Ele é planejado para a criança, de
acordo com suas especificidades e necessidades. Faz parte do ambiente
preparado a acessibilidade dos materiais pedagógicos à criança. Esse ambiente
deve ser idealizado, planejado, preparado e organizado pelo professor.

Fazendo parte do ambiente preparado, o Material de Desenvolvimento é a


pedra de toque do método educativo. Composto por um elaborado e sofisticado

67 Montessori explica que “disciplina ativa” não é fácil nem de se entender nem de se praticar. A criança
disciplinada é o indivíduo que é senhor de si mesmo; é um indivíduo correto por hábito e por prática em
suas relações sociais cotidianas. Dessa forma, a criança deverá amoldar-se a uma disciplina que se não
circunscreva tão somente ao meio escolar, mas abarque igualmente o âmbito social.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

conjunto de materiais, desenvolvido desde os primórdios da experiência


pedagógica de Montessori e sendo incrementado ao longo do tempo, esses
dispositivos didáticos foram criados com base nas funções que se pretende
desenvolver no educando, obedecendo a princípios fundamentados numa
concepção de criança ativa e como ser em desenvolvimento. Muitos desses
materiais foram inicialmente inspirados nos dispositivos criados por Séguin, mas
depois desenvolvidos por Montessori, a partir das observações das crianças e das
teorias psicológicas por ela incorporadas ou por ela desenvolvidas.

Os materiais são autocorretivos, o que dispensa a intermediação do


professor e a consequente correção de erros, que iria de encontro aos princípios
do método. Os objetivos gerais desses materiais são: desenvolver os sentidos, a
atenção e a concentração, respondendo às necessidades internas que
impulsionam a criança ao desenvolvimento, permitindo a ela uma atividade livre
e, ao mesmo tempo, atenta e concentrada.

São três grupos de materiais de desenvolvimento desenvolvidos por


Montessori: a) Materiais de desenvolvimento para os exercícios de vida prática;
b) Materiais de desenvolvimento destinados à educação sensorial; e c) Materiais
de desenvolvimento para aquisição de cultura.

Materiais de desenvolvimento para os exercícios de vida prática

Para Montessori, a educação não pode se opor à vida cotidiana, mas esta
deve fazer parte do processo educativo, pois toda a educação deve estar ligada à
vida; ou seja, os gestos que as crianças fazem na vida cotidiana devem ser
orientados, educados.

Os “exercícios de vida prática” são constituídos de atividades da vida


cotidiana, pelos quais as crianças são incumbidas de tarefas domésticas,
realizando-as com empenho e responsabilidade. Eles englobam: quadros que
ensinam a abotoar, dar laços, fazer nós etc.; lavabos para as mãos; panos para
limpeza; vassouras e espanadores; escovas variadas para limpar sapatos e
roupas; tapetes que devem ser enrolados depois de usados; toalhas de mesa para
as refeições, que devem ser dobradas e recolocadas em seus em seus devidos
lugares; pratos e talheres, que devem ser usados, lavados e recolocados nos
armários etc. (Montessori, 1909/1965).

141
Materiais de desenvolvimento para a educação sensorial

Montessori (1909/1965) afirmava que antes de seu método para a


educação dos sentidos, “não existia método ativo para a preparação racional de
indivíduos às sensações” (p. 98), mas é importante destacar que Pereira, Itard e
Séguin elegeram a educação sensorial como base de seus métodos de ensino:

“Pereira, para ensinar crianças surdas a falarem, utiliza os sentidos para a


percepção das vibrações sonoras; Itard apresentou dois relatórios com exemplos
riquíssimos de atividades para a educação sensorial do jovem Victor; e Séguin,
deixou registrado em seu Traitement Moral exemplos de suas práticas com seus
alunos com deficiência intelectual” (Rosa, 2017, p. 153).

A afirmação de Montessori sobre não existir um método ativo para a


educação dos sentidos até o desenvolvido por ela, pode ser devido ao fato de que
ela o propôs para todas as crianças, com ou sem deficiência, diferente dos autores
citados que o desenvolveram para crianças com determinadas deficiências.
Acreditava-se, na época (e ainda hoje), que métodos desenvolvidos para crianças
com deficiência não teriam aplicabilidade para as demais crianças. Esse preceito
foi superado com os resultados obtidos por Montessori na Casa dei Bambini.

Montessori (1909/1965) afirma que “o desenvolvimento dos sentidos


precede o das atividades superiores intelectuais, e a criança, dos 3 aos 6 anos de
idade, acha-se num período de formação” (p. 98). Por isso, propiciar à criança o
desenvolvimento dos sentidos nessa fase, com uma cuidadosa gradação e
adaptação dos estímulos, ao que se acrescenta a formação da linguagem antes que
esta esteja completamente desenvolvida, é uma tarefa imprescindível da escola.
Diz ela:

O período de vida que vai dos 3 aos 6 anos de idade é um período de rápido
crescimento físico, ao mesmo tempo que de formação das atividades
psíquicas e sensoriais. Nesta idade, a criança desenvolve seus sentidos: sua
atenção, em decorrência, vê-se atraída para a observação do ambiente [...]
É, pois, esta educação fisiológica que prepara diretamente a educação
psíquica, aperfeiçoando os órgãos dos sentidos e as vias nervosas de
projeção e associação. (p. 99).

A educação dos sentidos é fundante para o desenvolvimento da criança,


pois é pelos órgãos dos sentidos que a criança apreende o mundo exterior.
Montessori dá um sentido especial à “mão”, órgão que permite a manifestação da
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

inteligência e o estabelecimento de relações especiais com o ambiente. Montessori


(1938) diz que “pode-se dizer que o homem apodera-se do ambiente com a mão e
o transforma sob a orientação da inteligência, cumprindo assim sua missão no
grande quadro do universo” (p. 94).

O material sensorial do Sistema Montessori é composto por um vasto


conjunto de objetos que se relacionam às mais variadas funções sensoriais, como
tamanho, cor, forma, som, grau de aspereza, peso, temperatura, odores, sabores
etc. Cada material obedece a rigorosos princípios de agrupamento, em níveis de
graduação e de acordo com o sentido a ser desenvolvido.

Cada conjunto de objetos (material de sons, material de cores, etc.)


representando uma graduação, compõe-se, pois, em seus pontos extremos,
de um “maximu” e de um “minimum” da série; eles determinam os limites,
que serão mais exatamente fixados pelo uso que a criança deles fizer. Estes
dois extremos, confrontados entre si, deverão apresentar a diferença mais
evidente possível de uma determinada série, atingindo o mais agudo
“contraste” cabível dentro de um mesmo conjunto. O contraste, sendo bem
visível, torna evidentes as diferenças, e a criança, antes mesmo de
exercitar-se com os objetos, sentir-se-á interessada por eles (Montessori,
1909/1965, p. 103).

Além disso, Montessori postula que cada um dos materiais deve despertar
o interesse da criança para ser escolhido e trabalhado. Cabe ao professor
despertar o interesse da criança para trabalhar com o material; para isso,
Montessori (1909/1965) elaborou orientações para a preparação do ambiente
escolar com os materiais pedagógicos, a partir das qualidades inerentes a eles.
São elas:

o Isolamento de uma única qualidade do material:

Se pretendemos preparar objetos que servem para fazer distinguir, por


exemplo, as cores, é necessário construí-los todos com a mesma
substância, formato e dimensões, diferenciando-se somente na cor. Se
queremos ter objetos cuja finalidade é fazer observar os tons da escala
musical, será preciso que esses objetos sejam perfeitamente semelhantes
em sua estrutura e formato; os sininhos, por exemplo, que utilizamos em
nosso sistema, deverão ter o mesmo formato e dimensão, apoiando-se cada
um deles num único tipo de base; percutidos, porém, com um martelinho,
produzirão sons diversos; esta será a única diferença perceptível aos
sentidos. (p. 104).

o Controle do erro:

É necessário que o material oferecido à criança contenha em si mesmo o


“controle do erro”; por exemplo, nos encaixes sólidos, os blocos de

143
madeira, em que se fazem buracos para colocar os cilindros de dimensões
graduadas, devem ter as cavidades proporcionadas às dimensões dos
sólidos cilíndricos. Tendo sido cometido um erro qualquer, já não será mais
possível colocar todos os cilindros em sua graduação perfeita; um ou ouro
cilindro ficará sobrando, denunciando o erro cometido. (p. 105).

o Estética:

É necessário que os objetos oferecidos às crianças sejam atraentes. Deve-


se atender também às cores, ao brilho, à harmonia das formas e não
somente ao material sensorial; tudo o que as rodeia deverá ser planejado
e organizado de molde a atraí-las. (p. 106).

o Possibilidade de auto-atividade:

É necessário que o material de desenvolvimento se preste à atividade da


criança. A possibilidade de entreter com interesse a atenção das crianças
não depende tanto da “qualidade” dos objetos como das possibilidades de
atividade que eles oferecem. (p. 106).

o Limites:

Finalmente, outro princípio comum a todos os “meios materiais”


construídos para a educação: o material deve ser “limitado” em
quantidade. Princípio esse do mais alto interesse pedagógico e até o
presente bem pouco compreendido. (p. 107).

Os materiais para a educação sensorial são divididos pelos sentidos que se


propõem a desenvolver: tato, paladar e olfato, visão e audição.

Materiais de desenvolvimento para a aquisição de cultura

o Leitura e Escrita

Foi com crianças com deficiência que Montessori realizou as primeiras


experiências de ensino da escrita.

Montessori (1909/1965) relata que teve que romper com a ideia de que se
deve iniciar a escrita com pequenos tracinhos, por entender que o
desenvolvimento da escrita deve fundamentar-se no estudo psicofisiológico, “isto
é, de um exame do indivíduo que escreve, não propriamente da escrita; do sujeito,
não do objeto. Até o momento sempre se organizou um método baseando-se no
objeto, isto é examinando a escrita” (p. 182).

Montessori (1909/1965) observou, quando exercia diretamente a


atividade docente com crianças com deficiência, uma menina de onze anos, cuja
mão tinha força e habilidade, mas não conseguia aprender a costurar, nem sequer
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

dar os primeiros pontos; ela não conseguia realizar o gesto de passar a agulha de
cima para baixo do tecido. Montessori recorreu, então, ao método da tecelagem
de Froëbel68, que após sua aplicação a criança conseguiu executar o exercício da
costura. Esse episódio a levou a entender que o ato de costurar havia sido
preparado sem costura; ou seja, os movimentos podem ser preparados antes de
começarem a ser executados. Montessori fez com que as crianças tocassem os
contornos das letras do alfabeto, tal como faziam com os contornos geométricos,
durante os exercícios de educação sensorial. Para Montessori (1909/1965), “A
criança que olha, reconhece e toca as letras no sentido da escrita, prepara-se
simultaneamente para a leitura e para a escrita” (p. 186). Assim, pode-se afirmar
que a educação sensorial, entre outras funções, participa da preparação para a
escrita. Diz Montessori:

Providenciei, pois, para que fosse feito um belo alfabeto em letras cursivas,
cujo corpo era da altura de 8 cm, em madeira envernizada, de uma
espessura de meio centímetro (as consoantes em azul e as vogais em
vermelho).
A este alfabeto, único exemplar, correspondiam muitas tabelas de papelão
bristol, em que estavam desenhadas as letras do alfabeto com igual cor e
medida que as letras móveis, agrupadas segundo os contrastes e as
analogias das formas.
A cada letra do alfabeto correspondia um quadro pintado em aquarela onde
era reproduzida a letra cursiva, nas mesmas cores e dimensões; ao lado,
bem menor, estava pintada a letra correspondente em grafia minúscula; em
seguida, as figuras do quadro representavam ainda objetos cujo nome
começava com letra indicada; por exemplo, para o M, estava pintada a mão;
para o C, a colher, etc. estes quadros ajudavam a fixar o som da letra na
memória. (p. 183).

Deve-se destacar a semelhança dos trabalhos de Itard e Séguin com o


material elaborado por Montessori, mas ela vai além, diferenciando as vogais das
consoantes por cores e no quadro com letras cursivas e objetos cujos nomes
correspondem ao som de cada letra.

Montessori também elaborou pequenas fichas em papel com uma palavra


do cotidiano das crianças, dispondo o objeto real a criança, como facilitador para
a interpretação da palavra a ser lida.

São muitos os materiais utilizados para o desenvolvimento da escrita, que


mostram a amplitude e o rigoroso planejamento do ensino a partir de um

68O método da tecelagem de Froëbel consiste em enfiar tiras de papel transversalmente entre outras tiras
de papel verticais, fixadas em cima e em baixo.

145
conhecimento que se desenvolveu a partir das observações acuradas das crianças
em situação de aprendizagem e do profundo, amplo e atualizado conhecimento
teórico de Maria Montessori.

o Matemática

Os materiais para o desenvolvimento de habilidades matemáticas baseiam-


se num amplo conhecimento da área, o que pode ser atribuído ao gosto e à
formação sólida de Montessori nessa área do conhecimento. Começa pelo
processo de numeração, com dez barras semelhantes às barras vermelhas
utilizadas na educação sensorial, que são graduadas de 1 a 10, com a diferença de
10 cm entre elas, coloridos alternadamente nas cores vermelha e azul.

São utilizados algarismos de lixa para a aprendizagem da numeração,


articulados com o exercício das barras vermelhas e azuis, em que cada algarismo
deve ser colocado na barra correspondente, fazendo a correspondência entre
quantidade e numeração.

Também são utilizados os fusos, para a compreensão de grupos numéricos


e que ajudam a fixar a sucessão de sinais de 0 a 9. Há nesse material a introdução
da noção de zero.

Muito conhecido e até hoje utilizado por escolas montessorianas ou não, é


o material dourado, para a aprendizagem do sistema decimal e correlacionado ao
senso geométrico das três dimensões espaciais. Ele é composto por mil cubinhos
de 1 cm2 (ponto), 100 barras com dez cubos (reta), 10 placas com cem cubos
(plano) e finalmente um cubo de 10 cm de lado (cubo, figura tridimensional). A
apresentação é feita do 1, 10, 100 e 1000, primeiro com a quantidade e em
seguida com a representação simbólica.

A Professora montessoriana: A Mestra

Embora possa parecer paradoxal, a professora, que deve ser


fundamentalmente observadora da criança e não interferir em seu trabalho, para
desempenhar com competência essa tarefa, precisa de uma sólida formação
teórica e prática.

Ao analisarmos o papel do educador no Sistema Montessori, Maria


Montessori (1909/1965) afirma com grande propriedade que o professor
montessoriano não é aquele para o qual a sua tarefa resume-se a ministrar
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

conhecimentos às crianças, tampouco é ensinar às crianças a servir-se, sem


erros, do material que lhes é apresentado nos diversos exercícios. Segundo
a educadora, isso seria reduzir o material montessoriano ao nível de outro
qualquer, sendo igualmente necessária, nesse caso, a colaboração
incessantemente ativa do professor, preocupando-se, apenas, em ministrar
seus conhecimentos, atarefado em corrigir os erros de cada criança, até que
cada uma tivesse acertado os seus exercícios. (Rosa, 2017, p. 165).

A educação montessoriana assenta-se na preparação do ambiente e na


mediação propiciada pelo mediador entre este e a criança. Diz ela: “A antiga
mestra ‘instrutora’ é substituída por todo um conjunto, muito mais complexo, isto
é, muitos objetos (os meios de desenvolvimento) coexistem com a mestra e
cooperam para a educação da criança” (Montessori, 1909/1965, p. 43). Essa
configuração permitirá à criança escolher os materiais pedagógicos e trabalhar
com eles em função de suas necessidades e interesses. Para Montessori, esse
conjunto, professora e materiais constituem-se em “meios de desenvolvimento”.

A função do professor é a de ser um guia, que mostra como se manuseia


corretamente o material, com palavras adequadas e exatas, como forma de
orientar o trabalho da criança; contribuindo também para que não haja
desperdício de energia e, se necessário, restabelecendo o equilíbrio entre a
criança e a situação (Montessori, 1909/1965).

Como já foi dito, para Montessori, essa atividade docente, que requer que
o professor seja um guia seguro e prático, implica muito estudo e exercício. As
atribuições da mestra podem ser ilustradas a partir de citações diretas da
Pedagogia Científica (1909/1965) de Montessori, que descrevem as atribuições
da “mestra” montessoriana:

Deverá explicar o uso do material:

Se quiséssemos resumir seu dever principal, na prática, deveríamos dizer


que a mestra deve explicar o uso do material. Ela representa, antes de
tudo, um traço de união entre este material e a criança. (p. 144).

Ter conhecimento do material:

Convém, pois, que ela conheça perfeitamente o material, tenha-o


continuamente presente ao espírito, e aprenda, com exatidão, tanto a
técnica da sua apresentação como a maneira de tratar a criança a fim de
poder mais eficientemente orientá-la. (p. 145).

Saber usar as palavras certas no momento das lições:

147
Uma lição será tanto mais perfeita quanto menos palavras tiver; será
mister um cuidado especial em preparar as lições, contar e escolher as
palavras que irá proferir. (p. 108).

Ser observadora:

A mestra observará, então, se a criança se interessa pelo material


apresentado, como ela se interessa, durante quanto tempo etc,; e cuidará
de jamais deixar de seguir a criança que pareça não ter se interessado
muito pelas suas explicações. (p. 108).

Sua tarefa é eminentemente prática:

Será difícil uma preparação ‘teórica’ da mestra; precisará ‘autoformar-se’,


aprender a observar, ser calma, paciente e humilde, conter seus próprios
ímpetos; sua tarefa é iminentemente prática; delicada sua missão. (p.
145).

Cuidado pela ordem:

A mestra, além de colocar a criança em contato com o material, deverá


também interessá-la pela ordem do ambiente que a envolve. Eis a regra
sobre que se baseia uma ‘organização exterior de disciplina’ muito
simples, mas suficiente para garantir um trabalho tranquilo. (p. 146).

Vigilância:

(...) a mestra “vigia” para que cada uma das crianças, absorta em seu
trabalho, não venha a ser perturbada por outra; este papel de ‘anjo da
guarda’ representa um de seus principais deveres. (p. 146).

Evitar o supérfluo, mas não deverá esquecer o necessário:

A presença do supérfluo e a ausência do necessário são dois erros


principais; a linha de demarcação entre esses dois extremos indica o nível
de perfeição. O fim a atingir é estabelecer com ordem a atividade
espontânea da criança. (p. 155).

Montessori desenvolveu também A técnica das lições, como ficou


conhecida sua proposta didática, e que se baseia na aplicação dos exercícios de
Séguin. A técnica das lições compõe-se de dois momentos: as Iniciações e as
Lições. Nas Iniciações, o professor deverá mediar o contato da criança com o
material; ele a introduz no manuseio do material. Nas Lições, o professor deverá
orientar a criança para que ela chegue ao conhecimento propiciado pelo
material (como nomenclaturas relativas às qualidades do objeto percebidas pela
criança). Essa técnica (das lições) é amplamente usada na educação dos
sentidos.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Outra herança de Séguin adotada por Montessori é a “Lição de Três


Tempos”, que tem o objetivo de ensinar a criança a associar palavra e imagem.
A “Lição de Três Tempos”, como está em seu nome, divide-se em três momentos:

Primeiro Tempo: exatidão da palavra e associação da percepção sensorial


com o nome. O professor deverá, inicialmente, pronunciar os nomes e os
adjetivos necessários, sem acrescentar mais nada: ele deverá pronunciar
as palavras bem separadas uma das outras, com voz bem clara, de
maneira que os sons que compõem a palavra sejam distintamente
percebidos pela criança.
Segundo Tempo: distinção do objeto correspondente ao nome. O professor
deverá sempre obter uma prova de que sua lição atingiu o objetivo
planejado.
Terceiro Tempo: lembrar-se do nome correspondente ao objeto. O terceiro
tempo é uma verificação rápida das lições ministradas.

Diz Montessori (1909/1965):

(...) por exemplo, fazendo a criança tocar o papel liso e a lixa nos primeiros
exercícios, a mestra dirá: ‘Este é liso!’; e: ‘Este é áspero!’, repetindo várias
vezes a palavra, com diferentes inflexões de voz, mas sempre claramente,
separando as sílabas: ‘liso, liso, liso’; ou: ‘áspero, áspero, áspero’ [Primeiro
Tempo] (...) Quando a mestra constatou que a criança compreendeu e que
ficou interessada, ela repetirá várias vezes as mesmas perguntas: ‘Qual é
liso?’ – ‘E...qual é... liso?’ – ‘Qual é áspero?’ [Segundo Tempo] (...) A mestra
pergunta à criança: ‘Como é liso?...’ E se a criança já estiver apta para
responder, dirá os nomes ouvidos antes: ‘É liso’; ‘É áspero’ [Terceiro
Tempo]. (p. 150-152).

A lição de Séguin é simples e psicologicamente perfeita, favorecendo o


aprendizado da criança na Casa dei Bambini, afirma Montessori. Ainda hoje, a
lição é muito usada nas escolas montessoriana, mas muitos educadores
desconhecem sua origem na educação de crianças com deficiência realizada por
Séguin.

À guisa de conclusão...

Falar de Maria Montessori em poucas páginas não é tarefa fácil. Muitas são
as perspectivas que podem ser adotadas para abordar a imensa obra construída
por ela, seja como educadora, seja como cidadã do mundo (como muitos a

149
chamam) que jamais deixou de se colocar na defesa da dignidade e a da justiça
para toda a humanidade.

Insistir em falar de Montessori neste século XXI que já vai adiantado não é
meramente um ato de rememoração ou celebração do passado. Trazer algumas
de suas ideias para o presente, considerando o que foi próprio de sua época e já
está superado, mas também o que continua inegavelmente contemporâneo, é um
dever de quem se preocupa com a formação dos professores que se dedicam ou
virão a se dedicar à educação de nossas crianças. É também um imperativo para
se pensar a educação nos dias de hoje, quando tantos problemas enfrentados por
Montessori (e por ela superados) continuam vivos nas nossas escolas, como se
não houvera busca e encontro de conhecimentos e práticas que deram conta de
superá-los, como o fez essa médica-educadora. É preciso que aprendamos e
reaprendamos as lições que ela nos legou e que não estão, absolutamente,
esgotadas.

Com a palavra, Maria Montessori:

Façamos de conta que a criança é um operário e que a finalidade de seu


trabalho é produzir o homem. (...) porque o trabalho das crianças não
produz um objetivo material, mas cria a mesma humanidade; não uma
raça, uma casta, um grupo social, mas a humanidade inteira.
Considerando-se este fato, avulta claramente que a sociedade deve
tomar em consideração a criança, reconhecendo-lhe os direitos e
providenciando suas necessidades. (...) Considero esta a última
revolução: uma revolução não violenta e tanto menos cruel que exclui
até toda a violência por mínima que seja, porque quando nela houvesse
qualquer sombra de violência a construção psíquica da criança seria
ferida de morte.
Montessori, em A mente da criança
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Referências Bibliográficas

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infância: dialogando com o passado: construindo o futuro. Porto Alegre: Artmed.

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São Paulo: Pioneira.

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______. (1970). A Formação do Homem. Lisboa: Portugália. (Originalmente publicado


em 1949).

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Röhrs, H. (2010). Maria Montessori. (Danilo Di Manno de Almeida & Maria Leila Alves,
Trad.). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana.

Rosa, K. N. S. (2017). Da “criança que não aprende” a “toda criança é capaz de


aprender”: Lições Históricas de Pereira, Itard, Séguin e Montessori. Tese de doutorado
em Psicologia da Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

151
CAPÍTULO VII

Théodore Simon (1873-1961): un aliéniste au service de la


cause infantile
César Rota Júnior, Sérgio Dias Cirino & Laurent Gutierrez

Figura 7 : Théodore Simon e Amélia Monteiro de Castro


Fonte : Rota Júnior, 201669

69 Descrição da foto: Théodore Simon está sentando na ponta direita da mesa, olhando diretamente para
a aluna. Ele veste um casaco, camisa branca com um lenço; era calvo e usava barba e bigode. Ao seu lado
esquerdo, estão Amélia (com um casaco preto sobre uma camisa branca) e a professora (de óculos,
aparentemente está vestida com um vestido escuro, com renda clara na gola). A menina está ao lado
esquerdo da professora, seus cabelos estão amarrados em uma trança e no topo da cabeça há um grande
laço branco. Legenda da foto: Em cima da mesa há vários papéis. Belo Horizonte, 1929. “Simon
acompanhado da Professora da Escola de Aperfeiçoamento Amélia Monteiro de Castro, uma professora-
aluna e uma criança, a quem, ao que nos parece, se aplica algum teste” (p. 64, como citado em Rota Júnior,
C. Recepção e Circulação de Testes de Inteligência na Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo
Horizonte (1929-1946). Tese de doutorado em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, MG, Brasil).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Aborder l’œuvre de Théodore Simon nécessite d’avoir mené, au

préalable, une enquête d’envergure relative à l’ensemble de ses activités


professionnelles au cours de sa carrière de médecin des asiles. Auteur
prolifique, il a publié de nombreux articles dans diverses revues et autres
bulletins médicaux. Ses collaborations, nombreuses et variées, se sont
attachées, pour l’essentiel, à étudier les mystères de l’âme humaine et de former
celles et ceux qui se destinaient à les prendre en charge. Ses travaux ont
également pour originalité d’aborder la complexité des comportements
humains selon une approche phénoménologique utilisant des protocoles
expérimentaux dont la rigueur méthodologique leurs garantissent la légitimité
scientifique. Formé à la science du diagnostic, le parcours professionnel de cet
organiciste convaincu va l’amener à s’intéresser au dépistage et à
l’enseignement de ces enfants qu’il nomme volontiers d’ « arriérés de
l’intelligence ». Si ses travaux avec Alfred Binet (1857-1911) sur la mesure du
développement des capacités intellectuelles des jeunes enfants, le consacre
parmi les psychologues les plus influents au début du XXe siècle, force est de
constater que son apport dans le champ de psychiatrie infantile mais aussi dans
celui de la formation des cadres infirmiers, n’a pas été étudié jusqu’à présent.
C’est pour réparer, en partie70, cet oubli que nous nous proposons dans cet
article de revenir sur le parcours de cet aliéniste en analysant, à chacune de ses
étapes, la manière dont il a investi les missions que lui octroyait ses nouvelles
responsabilités administratives. Nous aborderons ainsi ses prises de position en
matière de détection et de prise en charge des enfants arriérés mentaux dont il
se fut l’un des principaux spécialistes avant la Seconde Guerre mondiale.

Une vocation médicale précoce

Orphelin de père et de mère dès l’âge de douze ans71, Théodore Simon est
recueilli par l’un de ses oncles à Sens (Yonne) où il fait ses études secondaires.

70 En effet, nous avons dû nous résoudre à laisser de côté plusieurs aspects de son activité professionnelle
(médecin attaché au Service social de l’Enfance en danger moral du Tribunal de la Seine, vice-président de
l’école d’anthropologie de Paris, etc.) et extra professionnelle (Président de la Société Alfred Binet, chargé
des travaux pratiques de psychologie expérimentale auprès des élèves maîtres et maitresses au sein des
écoles normales du département de la Seine, etc.).
71 Peu de temps après, son frère aîné, jeune agrégé de philosophie meurt subitement à 23 ans.

153
Elève brillant, il entre à la faculté de médecine de Paris en 189272. Durant huit
ans, il fait son instruction médicale dans les services de Jean-Baptiste Dubief
(1850-1916) et d’Albert Charrin (1856-1907) puis de Le Breton et Paul
Moizard (1850-1910) à l’hôpital des enfants malades de Paris ; du chirurgien
Charles Monod (1843-1921) à l’hôpital Saint-Antoine ; du dermatologue Louis
Brocq (1856-1928) à l’hôpital de La Rochefoucauld et, enfin, auprès du
médecin-accoucheur Charles Maygrier à l’hôpital Lariboisière. Ces « années
fécondes, où l’esprit se forme, où l’activité se règle, où la volonté s’affermit, et
où le bonheur parfois aussi s’élabore73 » (Simon, 1900, p. 4), vont être décisives
pour la suite de sa carrière. En 1898, il est reçu 4ème au concours des hôpitaux
psychiatriques dans la même promotion que Roger Mignot, Gaëtan Gatian de
Clérambault (1872-1934) et Joseph Capgras (1873-1950). L’année suivante, il
débute son internat avec le Dr Adolphe Blin (1852-1915) à l’hôpital
psychiatrique de Perray-Vaucluse (Essonne). Il écrit alors à Alfred Binet (1857-
1911) et lui propose ses observations sur la colonie d’enfants anormaux
accueillis dans l’annexe de cet hôpital. Le rédacteur en chef de L’Année
psychologique accueille avec enthousiasme ces deux premières études de plus
de 40 pages chacune dans sa revue (Simon, 1899a, 1899b). Quatre autres
suivront sur l’arriération mentale à partir d’enquêtes menées sur ces enfants
arriérés (Simon, 1900a, 1900b, 1900c ; Simon, 1903). Le souci constant
d’objectivité scientifique est un trait de personnalité que semble partager les
deux hommes qui débutent alors une collaboration fructueuse qui prendra fin
avec la mort de Binet en 1911. Les 24 articles qu’ils publient ensemble dans
L’Année psychologique sur l’arriération mentale attestent de cette proximité
intellectuelle. L’adhésion de Simon à la Société libre pour l’étude psychologique
de l’enfant, fondée en 1899, participe de cet élan commun en faveur d’une
meilleure compréhension de l’esprit humain.

Invité par Alfred Binet à poursuivre ses travaux sur les enfants et les
jeunes adultes arriérés mentaux dans son laboratoire de psychologie
physiologique de la Sorbonne, Théodore Simon soutient sa thèse de doctorat en
médecine en 1900. Cette étude qui s’attache à établir la corrélation entre le

72 Il en profite également pour suivre des cours de philosophie à la Sorbonne.


73 Théodore Simon fait sans doute allusion, ici, à son mariage en 1898 avec Lucile Lhermite (1875-1972).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

développement physique et intellectuel à partir de mesures anthropométriques


admet que les idiots sont moins développés physiquement que les enfants
normaux. Il y a là, estime Simon, un rapport de cause à effet : soit l’impulsion
motrice cérébrale étant moindre et les mouvements imparfaits, le système
musculaire se développe mal ; soit que les lésions cérébrales entraînent des
troubles trophiques ; soit, comme c’est le cas dans l’idiotie myxoedémateuse,
une cause toxique qui altère en même temps les fonctions intellectuelles et celles
qui président au développement physique (Simon, 1900d, p. 65-68). Cette thèse
qui marque la dernière étape de ses études médicales n’est que le début de sa
carrière d’aliéniste qui va réellement débuter au contact du professeur Valentin
Magnan (1835-1916) au service d’admission de l’hôpital Sainte-Anne de Paris
à partir de 1901.

Organiciste convaincu

Vouant un véritable culte à celui qu’il considère comme son maître,


Théodore Simon étudie pendant huit ans (1901-1908)74 la science du diagnostic
auprès de ce « clinicien », spécialiste de l’anatomie pathologique. Il y développe
aussi « cet amour des malades (…) passion qui oriente toute une activité, et qui,
(…) donne l’énergie nécessaire (…) » (Simon, 1918, p. 21). Dans ce service qui
draine toute les misères mentales de la capitale75, le jeune médecin d’origine
dijonnaise voit passer près de 3000 malades par an. Sa connaissance poussée
des aliénés le conduit à identifier de plus en plus précisément leurs symptômes.
Organiciste convaincu, il met un point d’honneur à chercher d’éventuelles
lésions cérébrales chez ses patients avant d’établir les affections de leur état
psychopatique. Cette expertise l’amène, dès 1903 (il n’a alors que 30 ans !) à
proposer un tableau synoptique des divers types cliniques que l’on rencontre le
plus souvent dans les asiles (Simon, 1903, 1904). L’année suivante, il
entreprend avec Alfred Binet d’établir un diagnostic scientifique des états
inférieurs de l’intelligence qui les conduit à présenter de nouvelles méthodes

74 Reçu au concours national de médecin adjuvant en 1902, dans la même promotion de Joseph Capgras
(1873-1950), Théodore Simon est nommé médecin-adjoint à l’hôpital psychiatrique de Dury-les-Amiens
(Somme), le 6 juin 1903. Sur l’intervention de Magnan, il réintègre le service d’admission des malades de
l’asile Sainte-Anne, l’année suivante.
75Service dans lequel passent tous les aliénés du département de la Seine avant d’être répartis dans les
divers asiles où ils sont, ensuite, traités en fonction de leurs pathologies.

155
pour en mesurer le développement chez les enfants (Binet et Simon, 1905a,
1905b, 1905c, 1905d). Ces travaux visent, conformément à l’objectif que se
donne la commission Bourgeois (Vial et Hugon, 1998), à trouver des modalités
de scolarisation pour les enfants anormaux en application de la loi du 28 mars
1882 qui rend l’instruction primaire obligatoire pour les enfants des deux sexes
âgés de 6 à 13 ans révolus. Binet et Simon qui siègent dans cette commission
ministérielle entreprennent de nouvelles enquêtes en milieu scolaire76 visant à
apporter des solutions concrètes aux problèmes auxquels sont confrontés les
instituteurs (Binet et Simon, 1906a, 1906b). Dans le prolongement des
conclusions de la commission Bourgeois, ils élaborent un guide pour l’admission
des enfants anormaux destinés à être scolarisés dans des classes de
perfectionnement (Binet et Simon, 1907). Ils anticipent ainsi les questions de
mise en œuvre de la loi du 15 avril 1909 qui institue la création de ce type de
structure.

De son côté, le 24 mai 1906, Théodore Simon devient membre de la


Société médico-psychologique. Son nom apparaît désormais aux côtés de ceux
de Henry Beaunis (1830-1921), Alfred Binet, Benjamin Bourdon (1860-1943),
M. Foucault et Jean Larguier de Bancels (1876-1961) au titre des auteurs de la
rubrique « Analyses psychologiques » de l’Année Psychologique. Il entame
également une collaboration dans le journal médical, La Clinique, où il propose
une série de préceptes pour l’étude des maladies mentales et leur diagnostic. A
l’occasion du 15ème congrès international de médecine de Lisbonne (19-26 avril
1906)77, il présente une étude remarquée sur la nature et l’évolution de la
catatonie78. L’année suivante, il est récompensé du Prix Falret, par l’Académie
de médecine de Paris, pour un mémoire sur l’état mental du dipsomane79. Ses
travaux sur les symptômes psychiatriques le conduisent à aborder les
problèmes de la confusion mentale selon une approche phénoménologique

76La création du laboratoire de pédagogie expérimentale, dans l’école primaire du 36 rue de la Grande aux
Belles à Paris, date de 1905 (Ouvrier-Bonnaz, 2011).
77Au cours de ce congrès, Simon visite un asile portugais en compagnie du psychiatre allemand Kraepelin
(Simon, 1918, p.20).
78Forme d'expression de la schizophrénie. Ce syndrome psychiatrique s'exprime à la fois dans la sphère
psychique et motrice.
79Individu qui absorbe de grandes quantités de boissons toxiques (en général, de l’alcool) entre deux
phases d’abstinence.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

reposant sur une méthodologie psychogénique (Binet & Simon, 1908a). La série
d’études qu’il consacre avec Alfred Binet aux différents états mentaux de
l’aliénation selon leurs affections psychiatriques s’inscrit, une nouvelle fois,
dans le cadre d’une démarche qui vise à établir une nouvelle théorie
psychologique et clinique de la démence (Binet et Simon, 1909b) allant jusqu’à
questionner, sous un jour nouveau, la possibilité d’enseigner la parole aux
sourds-muets (Binet & Simon, 1909c).

Aliénation mentale et mesure de l’intelligence

Dans sa recherche de faits indiscutables, Théodore Simon reconnaît


néanmoins que ses tâtonnements ne lui permettent pas, voire qu’il est
dangereux, de faire le portrait d’une maladie mentale. « Etat mental » et
« maladie mentale » n’étant pas synonyme, une définition de l’aliénation mentale
reste risquée. Au mieux, peut-on délimiter les différents symptômes que
recouvrent les divers états mentaux de l’aliénation comme il s’attache à le faire
avec Alfred Binet dans une série de dix articles qu’il publie dans l’Année
Psychologique en 1910 et en 1911 (Binet et Simon, 1910a, 1910b, 1910c,
1910d, 1910e, 1910f, 1910g, 1910h ; Binet et Simon, 1911a, 1911b). Le
tableau récapitulatif qu’ils établissent à cette fin (Binet et Simon, 1910h) leur
permet de conclure provisoirement que la seule définition à laquelle ils peuvent
arriver est une distinction entre l’homme sain et l’aliéné en fonction de l’acuité
de leurs symptômes. On retrouve ces mêmes précautions dans les recherches
qu’ils consacrent à la détection des intelligences déficientes. Après la
publication d’une version remaniée en 1908 qui intègre désormais l’évaluation
de l’enfant d’intelligence ordinaire (Binet & Simon, 1908a), Alfred Binet publie,
en 1910, les résultats de nouvelles recherches sur « la mesure du niveau
intellectuel chez les enfants d’école » (Binet, 1910). Il faut attendre l’année
suivante pour qu’une version aboutie de 77 pages, réservée au bulletin de la
Société libre pour l’étude psychologique de l’enfant (Avanzini, 1969), soit
publiée sous leurs deux noms (Binet et Simon, 1911).

Si Binet signe, seul, l’article de 1910, ce n’est pas par désintérêt de la part
de Simon pour cette échelle métrique du développement de l’intelligence qu’il a
contribué à élaborer et pour laquelle sa collaboration est constamment

157
soulignée par Binet dans ses articles. La raison en est professionnelle. Le 1er
octobre 1908, Théodore Simon est nommé médecin à l’asile de Saint-Yon près
de Rouen. En plus de ses tâches quotidiennes, il devient rapidement une
personnalité locale en référence à ses travaux et à son investissement au sein
de l’hôpital. Elu membre de Société de Médecine de Rouen en 1910 (BSMR,
1911), il participe aux réunions mensuelles de la commission de surveillance
des asiles d’aliénés du département de la Seine-Inférieure80. Il s’investit aussi
dans la formation des personnels infirmiers à qui il consacre un ouvrage,
véritable vade mecum de plus de 400 pages (Simon, 1911). Sa notoriété
augmente encore lorsqu’il obtient le Prix Baillarger que lui décerne l’Académie
de Médecine de Paris en 1912. Prix qu’il aurait certainement souhaité célébrer
en compagnie d’Alfred Binet qui disparaît brutalement, le 18 octobre 1911,
d’une congestion cérébrale. Dans l’hommage qu’il lui rend dans l’Année
psychologique, Simon rappelle le but ultime que poursuivit Alfred Binet, au
cours des trente années qu’il consacra à la science : édifier une psychologie
générale, une synthèse de l’esprit humain (Simon, 1911). Le décès de Binet
laisse un vide. Simon est appelé à lui succéder à la direction du laboratoire de
psychologie physiologique de la Sorbonne ainsi qu’à la fonction de rédacteur en
chef de la, désormais célèbre, revue l’Année psychologique dont il contribue, par
ailleurs, à mettre sur pied le volume de l’année 1911 (Chapuis, 1997). Contre
toute attente, Henri Piéron (1881-1964) (Gutierrez, Martin et Ouvrier-Bonnaz,
2016) se voit attribuer ce poste et cette nouvelle responsabilité éditoriale
(Carroy, 1994). Quant au laboratoire de la rue de la Grange aux Belles, il
poursuit ses expériences de pédagogie expérimentale sous la direction de Victor
Vaney (1859-1938), grâce au concours d’Armand Belot, l’inspecteur de
l’enseignement primaire de cette circonscription.

Engagement professionnel

Sollicité par Henri Piéron pour poursuivre sa collaboration à l’Année


psychologique, Théodore Simon décline son offre : « (…) je ne collaborais à
l’Année qu’à cause de Binet. Je préfère actuellement me retirer entièrement

80A cette fonction, il gère les questions de l’achat des fournitures, du matériel de cuisine et des objets divers
de coutellerie et de quincaillerie, robinetterie, chaudronnerie, d’ameublement, d’habillement (ADSMR,
1908-1910).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

(…). J’ai contribué à mettre sur pied le volume de cette année. J’estime mon rôle
terminé »81. Pressenti comme le digne successeur d’Alfred Binet à la direction
de la Société libre pour l’étude psychologique de l’enfant, il intègre d’abord le
cercle de ses membres élus au conseil d’administration, le 28 décembre 1911
(SLEPE, 1911), avant d’être appelé à le présider lors de la séance du 21
novembre 1912 (Vaney, 1912). Les travaux qu’il publie dans le bulletin de la
Société, à cette époque, sont des plus éclectiques. En 1913, année où le nombre
de ses publications devient plus important82, il aborde respectivement les
questions liées à la détermination du degré d’audition des enfants, la rapidité de
la lecture et de l’écriture, l’observation des enfants à l’école maternelle ainsi que
l’étude des enfants anormaux. Sur le plan professionnel, accaparé par ses
tâches quotidiennes à l’hôpital psychiatrique de Saint-Yon, ses activités se
centrent désormais sur des cas cliniques à partir desquels il dispense des leçons
auprès des ses collègues de la Société de Médecine de Rouen. Lors de ses
interventions, il enseigne notamment la manière de dresser un diagnostic et
d’établir des conclusions nosologiques. Chacune de ses interventions est
accompagnée de présentations et d’interrogations de malades (NM, 1913).

Mobilisé à Sens puis basé à l’abbaye d’Igny où il a en charge le service


d’admission des soldats contagieux atteints du typhus durant la Première
Guerre mondiale, Théodore Simon trouve toutefois le temps de s’intéresser à
des questions de pédagogie expérimentale. Grâce au concours de plusieurs
membres de l’enseignement primaire public, parmi lesquels Victor Vaney,
Claire Mosès et surtout Madeleine Rémy (1882-1955), il élabore des tests de
lecture et d’écriture afin de déterminer la nature des difficultés qui entre en jeu
dans le cadre de ces apprentissages par les élèves. Le 7 mai 1917, Théodore
Simon est invité, sous les auspices de l’Institut Jean-Jacques Rousseau, à
donner une conférence à l’Athénée de Genève, sur l’œuvre de Valentin Magnan

81 Fonds Henri Piéron (Centre H. Piéron. Université de Paris 5 Descartes). Lettre du 29 mai 1912. Dans
une seconde lettre du 6 juillet 1919, Piéron le relance. Simon le remercie mais décline, une nouvelle fois,
l’offre : « (…) pour l’instant j’ai déjà plus de besogne que je n’en peux faire et ne vois réellement pas la
possibilité d’autres engagements ».
82Durant les treize premières années de la vie de ce bulletin (1899-1912), Théodore Simon y publie
seulement 5 articles en nom propre (1 en 1901, 1904, 1905 ; 3 en 1911 et 1 en 1912) et 3 en collaboration
(1906, 1910 et 1911), soit 10 au total. Pour la seule année 1913, le nombre de ses contributions
personnelles passe à 10.

159
(Simon, 1918)83. Devant le succès que remporte l’emploi des tests aux Etats-
Unis, la Société libre pour l’étude psychologique de l’enfant - qui devient lors de
son assemblée générale du 29 novembre 1917, Société Alfred Binet - décide de
publier sous la forme d’un fascicule de 75 pages, La Mesure du développement
de l'intelligence chez les jeunes enfants (Binet et Simon, 1917). Grâce au succès
commercial que remporte cette édition, la Société poursuit ses activités. De son
côté, reçu premier au concours de médecin en chef des asiles de la Seine84, le 26
juin 1920, devant Hubert Mignot et Maurice Ducosté (1875-1956) (Daumezon,
1961, p.631), Théodore Simon intègre, à sa demande, dès le mois d’août suivant,
la colonie d’enfants de Perray-Vaucluse85. Ce poste de médecin en chef dans
l’hôpital où il a débuté son internat lui permet de participer aux séances de la
Société médico-psychologique dont il devient membre titulaire, lors de son
assemblée générale du 10 décembre 1920, avec 19 des 23 voix des suffrages
exprimés86.

Les arriérés de l’intelligence

A partir de 1921, il y assiste régulièrement. Il y présente également les


travaux qu’il mène auprès des cent cinquante enfants arriérés âgés de 6 à 20
ans de la colonie de Perray-Vaucluse (Simon, 1927a). A la question « Peut-on
fixer une limite supérieure à la débilité mentale ? », Théodore Simon estime qu’il
est possible d’arrêter le domaine de la débilité mentale au développement de
l’intelligence à partir des résultats obtenus par l’utilisation des épreuves pour
les enfants de dix ans dans l’échelle des tests gradués de Binet et Simon. Il est,
toutefois, nécessaire, selon lui, d’en différencier deux degrés : la débilité mentale
proprement dite qui comprendrait tous les sujets dont l’intelligence dépasse
celle d’enfants de 7 ans mais qui n’atteint pas celle d’enfants de 9 ans et la
débilité mentale légère qui admettrait tous ceux qui dépasseraient le niveau des
enfants de 9 ans et n’atteindraient pas celui de 10. Au-delà, Simon propose de

83 Il en profite pour visiter la Maison des petits dont il ne manque pas de louer le caractère novateur
(Simon, 1917).
84 Concours rendu possible en vertu décret du 13 mars 1920 (AMP, 1920, p.285).
85 Nomination le 31 juillet 1920 (AF, 1933, p.69).
86 A cette occasion, Edouard Toulouse accède aux fonctions de Président et Henri Colin à celles de
secrétaire général (AMP, 1920, p.38).
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concevoir trois degrés pour l’intelligence normale ; le premier correspondant


aux épreuves de 10 à 12 ans ; le moyen de 12 à 15 ; le supérieur, seul, enfin,
dépasserait les épreuves établies pour l’âge de 15 ans (Simon, 1921)87. Avec
son homologue belge, Guillaume Vermeylen (1891-1943)88, il cherche à établir
d’éventuelles corrélations entre le développement intellectuel et le
développement physique des enfants (taille, poids mais aussi diamètre antéro-
postérieur et transversal de la tête). Si les résultats obtenus attestent parfois de
réelles relations, ils ne peuvent toutefois pas aboutir à de quelconques
conclusions (Simon et Vermeylen, 1921a, 1921b).

Sans abandonner les tests mais laissant de côté l’anatomie pathologique,


les auteurs cherchent alors à déterminer les divers degrés de l’arriération
mentale89. En août 1924, dans un rapport qu’ils présentent sur la débilité
mentale, à l’occasion du 28ème congrès des médecins aliénistes et neurologistes
de France et des pays de langue française à Bruxelles (Simon, 1924a), ils en
proposent les principales formes cliniques : les débiles pondérés, les sots dont il
convient de distinguer le « débile satisfait », le « débile vaniteux » et le « débile
facétieux », tous en général peu éducables ; et les instables avec les « débiles
puériles » et les « débiles émotifs ». Dans leurs conclusions, ils soulignent les
rapports, dans plusieurs cas, de la débilité avec la délinquance. Médecin chef de
la consultation médico-psychologique dans le service social du Tribunal pour
enfants de la Seine, Théodore Simon en profite pour présenter ce nouveau
service qu’il a contribué à créer en 1923. Les échanges avec le public et
notamment avec le Dr Ovide Decroly qui défend l’utilité des tests et la méthode
quantitative pour dépister les anormaux dans les écoles, donne l’occasion à
Théodore Simon de rappeler que si les signes neurologiques doivent être
préalablement et soigneusement recherchés, « il ne faut pas opposer les tests et
la clinique, mais les associer ; la clinique étant indispensable pour apprécier les

87 Lors de cette séance du 28 février 1921, le docteur Dupré fait remarquer les difficultés multiples de
l’évaluation graduée des états de débilité mentale, d’autant plus qu’avec l’activité de l’intelligence, il
faudrait aussi considérer les manifestations de l’affectivité et de la volonté » (L’encéphale, 1921c, p.155).
88Le docteur Guillaume Vermeylen est le médecin de la section pour enfants anormaux à la colonie de
Gheel (Belgique).
89 Ils excluent, toutefois, de leur étude, les troubles du caractère.

161
tests et tenir compte des troubles de la parole » (Simon et Vermeylen, 1924b,
p.235).

Dépister et enseigner aux enfants arriérés mentaux dans les les écoles

Tel est aussi l’un des objectifs que se donne Théodore Simon en ce début
des années 1920. Critiquant l’emploi de la notion d’anormalité (Simon, 1923a)
dans la détection de ces enfants, il s’emploie à informer les instituteurs et les
institutrices à les dépister selon une répartition en cinq catégories (Simon,
1923b) :

Catégories Limites de l’intelligence Description

Les enfants dont l’intelligence ne Arriérés incapables


1 dépassera pas le niveau de 2 ans ou d’aucune occupation
qui lui est inférieur. utile. Nous ne disons
Les enfants dont l’intelligence restera pas inéducables, car le
2 comprise entre les niveaux de 2 et 5 mot prête à confusion, et
ans. nous avons
Les enfants dont l’intelligence restera vu qu’on peut donner à
3 comprise entre les niveaux de 5 et 7 ces enfants certaines
ans. habitudes.
Les enfants dont l’intelligence restera
Arriérés susceptibles de
4 comprise entre les niveaux de 7 et 9
rendre des services.
ans.
Premier niveau normal.
Les enfants dont l’intelligence
Enfants peu doués
5 atteindra seulement le niveau de 10
toutefois pour
ans.
l’instruction
Tableau 2 : Catégoriation des élèves selon la description de leurs limites intellectuelles
Source : Simon (1923a)

Au-delà des différents modes d’assistance que l’institution publique met


en place pour ces enfants (établissements fermés pour les catégories 1 et 290 ;
établissements fermés selon le degré des troubles du caractère, internats91 ou
externats, à l’image des écoles ou des classes de perfectionnement, pour les
catégories 3 et 4 ; école primaire publique pour la catégorie 5), Théodore Simon

90 A l’exemple de l’hôpital Bicêtre et de la colonie de Perray-Vaucluse.


91Pour la Seine, par exemple, l’établissement d’Asnières dont une section est consacrée aux anormaux;
dans la Seine-Inférieure, l’établissement d’Yvetot.
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milite pour que les enseignants soient formés à la pédagogie expérimentale


(Simon, 1924).

Dans cette perspective, en collaboration avec plusieurs membres actifs de


la Société Alfred Binet92, il mène une véritable entreprise d’élaboration de tests
en tout genre (vision, audition, mémoire), au premier rang desquels des tests
d’instruction (lecture, écriture, orthographe, calcul, géographie, dessin), qui
renseignent sur le niveau scolaire atteint par les élèves dans plusieurs
disciplines. Constatant des différences entre les résultats que ces derniers
obtiennent au test d’intelligence et leur degré d’instruction, rapportés à leur
âge, leur taille et leur poids (Cf. Schéma ci-dessous) (Simon, 1926), il prône
l’instauration d’un livret scolaire afin de mieux identifier les progrès, à chacun
de ces âges, au cours de la scolarité des élèves.

Figure 8 : Différences entre élèves selon les résultats obtenus au test d’intelligence rapportés à leur taille
et leur poids permettant d’établir leur degré d’instruction
Source : Simon (1926)

Ce recueil d’informations permettrait ainsi de soulever des problèmes


pédagogiques liés à d’éventuels décalages mais aussi « de faire sortir du rang ces

92 Au premier rang desquels les institutrices : Madeleine Rémy, R. Maillard, S. Lavergne, Cl. Valy.

163
intelligences que l’instruction ne découvre pas, peut-être simplement parce
qu’elles n’ont pas la forme scolaire » (Simon, 1926, p.259). Président du jury
d’examen du certificat à l’enseignement des enfants arriérés, Théodore Simon
souhaite utiliser ce biais pour que les instituteurs et les institutrices de ces
classes aient recours à ce type de tests. Grâce à Henri Tinat93, mais aussi à
Mademoiselle Ganeva94, des tests sont élaborés, à partir de 1924, à la colonie
d’enfants de Perray-Vaucluse (« Tests P.V. »). Véritable manuel à l’usage des
instituteurs d’enfants arriérés, les 25 tests proposés par Simon doivent
permettre aux enseignants d’adapter leur enseignement aux divers degrés
d’intelligence et d’instruction de leurs élèves (Simon, 1928) et de parfaire ainsi
leur intégration au sein de la société95.

Un aliéniste renommé

A la fin des années 1920, Théodore Simon est considéré comme l’un des
meilleurs spécialistes français de l’éducation des arriérés. Il convient, toutefois,
d’admettre avec le docteur René Charpentier (1881-1966) que « sa méthode est
moins pratiquée en France qu’à l’étranger et, plus particulièrement [en]
Amérique, là-bas [où elle est utilisée] couramment non seulement dans les écoles
mais encore dans les établissements psychiatriques » (Charpentier, 1930,
p.392). Il n’est donc pas surprenant que Théodore Simon soit invité à présenter
ses travaux dans le cadre de « La journée psychiatrique »96 à l’occasion du 10ème
congrès des médecins de langue française de l’Amérique du Nord qui se tient à
Québec en septembre 192897. Il profite de ce voyage pour se rendre à Montréal,
Winnetka, Chicago, New-York, New-Haven et à Boston (Simon, 1929a, 1929b) ;

93 Instituteur à la colonie d’enfant de Perray-Vaucluse.


94« C’est sous une forme individuelle que ces tests ont été primitivement essayés notamment l’année
dernière à la Colonie de Perray-Vaucluse (d’où les initiales dont nous les désignons) par Mlle Ganeva,
professeur à Sofia, que nous tenons, ici, à remercier d’une façon toute particulière » (Simon, 1925, p.653).
95 « D’après une enquête faite en 1922 par les docteurs Roubinovitch et Deleray, sur 1136 élèves arriérés
sortis des classes de perfectionnement, plus de 77% étaient mis en état de gagner complétement leur vie
et, sur le reste, 9% pouvaient la gagner partiellement » (Balz, 1925, p.651).
96 Il donne quatre conférences au cours desquelles il aborde respectivement « Les degrés du développement
mental et les courbes de croissance intellectuelle », « La mesure du développement de l’intelligence par
l’échelle Binet-Simon avec démonstration », « Ecoliers anormaux » et « Les méthodes pédagogiques et la
pédagogie expérimentale. Un essai d’organisation scientifique de l’école ».
97A la suite de ces interventions, la Province du Québec éditera et distribuera gratuitement une brochure
rédigée par Théodore Simon intitulée « Ecoliers anormaux » (Simon, 1929c). Je remercie Marie Vergnon
d’avoir porté à ma connaissance ce document.
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villes dans lesquelles il visite plusieurs établissements scolaires ainsi que des
institutions de rééducation où sont utilisés des tests inspirés de celui qu’il a
élaboré avec Binet, vingt ans plus tôt98. Il constate avec étonnement que les
« batteries de tests », élaborés Outre-Atlantique, ont une visée essentiellement
sociale. Ils servent à mesurer ce que les individus sont capables de faire afin de
pouvoir apprécier le niveau de difficulté des tâches qui leur seront, ensuite,
confiées. Théodore Simon critique néanmoins, l’utilisation faite de ces résultats
aux Etats-Unis dans le cadre de comparaisons ethniques. Selon lui, les tests
psychologiques doivent être systématiquement adaptés aux populations locales
afin de leur conserver leur portée sociale et scientifique.

En 1929, à l’occasion d’un projet de coopération franco-brésilien, il est, à


nouveau, sollicité pour assurer une série de conférences et de travaux pratiques
dans le cadre de la formation des maîtres aux tests psychologiques (Gutierrez,
Bandeira de Melo, Freitas Campos, 2017)99. Là encore, il met en garde ses
auditeurs sur les dérives possibles liées à l’usage des résultats obtenus à ces
tests par les élèves brésiliens au regard de ceux enregistrés en France. Les
difficultés de transposition des tests français à l’étranger nécessitent des
adaptations qui limitent toute forme de comparaison. De retour en France,
Théodore Simon reprend ses activités au sein de la Société Alfred Binet mais des
difficultés d’installation dans l’école primaire de la rue de Belzunce, où sont
désormais poursuivis les expériences pédagogiques100, l’amènent à concentrer
ses efforts sur l’étude des enfants anormaux. Cette orientation s’explique aussi
au regard de sa nouvelle fonction de médecin-chef du service d’admission de
l’hôpital Sainte-Anne à Paris, à partir du mois de juin 1930. Décoré de la Croix
de Chevalier de la Légion d’Honneur pour l’ensemble de ses travaux, la même
année, il déclare, lors d’une manifestation de sympathie, organisée en son
honneur, en présence de Théodore Rosset, directeur de l’enseignement primaire

98 Aux Etats-Unis, les classes de perfectionnement portent le nom de Classes Binet et les classes des
niveaux inférieurs sont appelées Classes Seguin.
99Ce séjour à Belo-Horizonte (Simon, 1929d, 1929e) l’empêche de participer au 1er congrès international
d’hygiène mentale qui a lieu, à Washington, au mois d’avril. La France y est, toutefois, représentée par
Edouard Toulouse (1865-1947) (Huteau, 2002) et Georges Genil-Perrin (1882-1964).
100En 1924, les locaux de l’école de la rue de la Grange aux Belles (Paris, 10ème) étant jugés vétustes, les
travaux pratiques ont d’abord lieu à l’école de jeunes filles du 28 rue Saint-Jacques (Paris, 5ème), de 1925
à 1928, avant d’être hébergés dans cette école de Belzunce (Paris, 10ème) dirigée Madeleine Rémy,
secrétaire générale de la Société.

165
au Ministère de l’Instruction publique : « Je ne crois pas toujours à toutes nos
conclusions, je pense même que beaucoup seront sujettes à révision, mais j’ai
une conviction absolue dans les disciplines auxquelles nous nous astreignons
selon l’enseignement même que nous avons reçu de Binet, car ce sont des
disciplines d’observation, et nous cherchons moins le progrès dans des
affirmations ingénieuses que dans une connaissance objective des enfants, de
leurs intellectuels ou de leur savoir » (Simon, 1930, p.161).

Entre scepticisme et autorité

En ce début des années 1930, Théodore Simon intervient régulièrement,


seul ou en collaboration avec ses collègues, lors des séances de la Société
Médico-psychologique101. Il y discute du « niveau mental des paralytiques »
(Séance du 31 mars 1930), émet des « hypothèses sur la démence précoce » dont
la notion prête, selon lui, à contestation (25 avril 1932), propose un « essai de
contribution au vocabulaire psychiatrique » (Séance du 23 mai 1932). En 1933,
il en est élu vice-président102 avant d’en devenir le Président, l’année
suivante103 (Séance du 18 décembre 1934)104. A ces fonctions, Théodore Simon
intervient avec un certain scepticisme constructif en faisant, toutefois, preuve
d’autorité quand le sujet le requiert. Ainsi, à la suite de l’exposé de Georges
Dumas (1866-1946) sur « Mentalité paranoïde et mentalité primitive » (Séance
du 28 mai 1934), il intervient en ces termes : « Je crois que nous devinons,
plutôt que nous ne connaissons, la mentalité des aliénés. S’il est vrai qu’elle soit
individuelle et que la mentalité des primitifs soit commune à tous les individus
du même groupe, on doit reconnaître qu’il y a entre l’aliéné et l’homme normal
quelque chose de commun. Ce quelque chose est la survivance de logique que

101 Le compte-rendu des séances de cette Société sont publiés dans les Annales de la Société Médico-
psychologiques ainsi que dans le bulletin de l’association amicale des médecins des établissements publics
d’aliénés, L’aliéniste français.
102Lors de la séance du 19 décembre 1933, présidée par Georges Dumas, Théodore Simon est élu Vice-
Président de la Société Médico-psychologique, au second tour, avec 22 voix sur les 24 suffrages exprimés
(Charpentier, 1933, p.724).
103Le membre, élu, vice-président de la Société en devient, l’année suivante, le Président pour un an
(article 36 du Règlement intérieur). Quant au conseil d’administration, il est composé des membres du
bureau et des deux derniers présidents de la Société (article 5 des statuts).
104Pour l’année 1935, le bureau de la Société Médico-psychologique est composé de Théodore Simon
(Président), Claudius Vurpas (1875-1951) (Vice-Président), René Charpentier (Secrétaire général),
Lasthénie Thuillier-Landry (1879-1962) (Trésorière-archiviste), Paul Courbon et Paul Abély (1897-
1979) (secrétaires des séances) (Charpentier, 1934, p.822). Voir aussi (Mignot, 1935, p.107).
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l’on constate dans certains de leurs actes et de leurs raisonnements » (Simon,


1934a, p.761). Lors de la séance du 22 octobre 1934, il aborde, avec l’autorité
que lui confère l’expérience due à son ancienneté, la question des certificats
d’internements dont la rédaction « doit se borner à mentionner les symptômes
essentiels et les réactions auxquelles a donné lieu la maladie. Les prédictions
concernant les mesures thérapeutiques et la durée de l’internement doivent en
être exclues, car seule l’observation directe est capable de fournir des
indications certaines au médecin traitant. Agir autrement est entraver sans
raison l’action de celui-ci. Il doit s’abstenir de formules trop catégoriquement
indiscrètes : alcoolisme, paralysie générale, qui comprises par des profanes sont
une violation du secret professionnel » (Simon, 1934b).

Parallèlement à son investissement au sein de la Société Médico-


psychologique, Théodore Simon consacre une grande partie de son temps à
l’éducation des enfants arriérés. A cet effet, il organise un groupe d’études105 au
sein duquel se retrouvent des membres de la Société Alfred Binet, du Foyer
central d’hygiène de l’association Léopold-Bellan et de l’Amicale française des
instituteurs publics d’enfants arriérés. Cet essai de mise au point de quelques-
uns des problèmes liés à la prise en charge de ces enfants (Simon, org., 1931)
rencontre un certain succès à une époque où leur dépistage s’opère
généralement par « des procédés de fortune » (Simon, 1931a, p.204). Pour
pallier à ces difficultés, Théodore Simon poursuit sa chronique dans le Manuel
général de l’instruction primaire en proposant une série d’articles sur le
recrutement des élèves des classes de perfectionnement (Simon, 1931b, 1931c,
1931a, 1931b). Le 18 novembre 1932, Théodore Simon intervient devant les
candidats au concours de médecin-inspecteur des écoles à la demande du
département de la Seine (Simon, 1932c). Interpellé sur les aspects pratiques
que nécessite une prise en charge qui différencierait les modes d’enseignement
en fonction des divers degrés d’arriération des élèves accueilli dans ces classes,
il organise de nouvelles conférences sur la pédagogie des enfants arriérés106, en

105Celui-ci est composé de Madeleine Rémy, Mesdames Claveau, Créange, Favard, Foucambert, Lallemand,
Lambert, Meyniel, Rullier, Vaillot ; Messieurs Huet, Claveau, Fresneau, Gauthier, Guilmain, Janin,
Lebreton, Paris, Prudhomme, Schiber (Charpentier, 1931, p.324).
106Parmi les conférenciers, notons la présence de M. Guimain, Mme et M. Paris, M. Fresneau et Maurice
Chevais.

167
1933-1934, au Foyer central d’hygiène de l’association Léopold-Bellan (Simon,
1936, 1937a, 1937b, 1937c)107. Parallèlement à ces activités, Théodore Simon
milite simultanément pour une révision de la législation en faveur des enfants
arriérés ainsi que pour une meilleure prise en compte des recherches menées
en laboratoire dans les pratiques journalières des médecin d’asiles.

Réviser la législation et intégrer les données de la recherche

Le 30 novembre 1932, invité par l’Association des Médecins des


établissements publics d’aliénés, il livre avec le docteur Arsimoles, les
conclusions d’un rapport sur l’assistance aux enfants anormaux (Simon,
1932d). Cette esquisse d’une législation sur l’enfance anormale (Simon, 1932e)
le conduira, quelques années plus tard, à demander une révision des
dispositions prévues par la loi de 1838 et de son ordonnance de 1839 pour ces
enfants. Opposé aux quartiers d’enfants annexés à l’hôpital, Simon préconise la
création d’établissements autonomes dépendant de l’Assistance publique où
seraient organisées des consultations et divers modes de prises en charge en
fonction du degré des troubles diagnostiqués. Dans cette optique, il est favorable
à l’adoption d’une loi spécifique qui reconnaissance à l’enfance anormal un
statut spécial selon ses propres besoins (Simon, 1938a). Certes, cette question
n’est pas neuve tout comme celle des « consultations externes » ou des « services
ouverts » existants à titre d’initiatives locales, en marge de la loi de 1838
(Desruelles et Lauzier, 1934). Elle revêt, toutefois, une certaine actualité au
moment où il accède à la direction du service ouvert de l’hôpital Henri Roussel
en février 1936. En effet, à cette fonction, il se montre particulièrement vigilant
quant aux enquêtes qui tentent d’évaluer l’efficacité des « services ouverts » sur
la base du nombre de patients qui sont, ensuite, internés : « Une comparaison
globale des statistiques des divers services libres ne peut conduire qu’à des
conclusions erronées. A Henri-Rousselle, nous a-t-on dit encore aujourd’hui, il y
a 50% d’internements. Eh bien, en fait, c’est 90% ou même 95% dans la section
d’observation, qu’il faudrait dire, et moins de 10% dans la section de traitement

107Ces initiatives en direction des anormaux d’école interrogent aussi le sens d’une scolarité qui ne serait
pas faite pour eux. Au-delà des questions d’orientation et du choix du métier, la préoccupation des parents
reste liée à la durée des études (Et, donc, de leur coût ou, plus exactement, du manque à gagner qu’elles
représentent) et de la probabilité de succès aux examens de leur enfant.
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libre. D’autre part, j’entends déclarer par les chefs des services libres, nous
internons peu. Mais faut-il approuver cette tendance ? L’internement n’est-il
pas certaine fois une mesure préférable à une sortie prématurée ? Un alcoolique
est-il guéri au bout de quelques jours de traitement ? Il est des cas où il faut
savoir prendre des mesures d’autorité. En fait, la question capitale est celle de
la catégorie des malades traités » (Simon, 1936, p.599)108. Question qu’il aborde,
l’année suivante, dans un rapport dédié à « L’organisation et le fonctionnement
de l’Hôpital Henri-Rousselle [109], centre de prophylaxie mentale et service
ouvert pour malades mentaux » (Simon, 1938c) qu’il remet au Comité
permanent de l’Office international d’hygiène publique.

Contraint de partir à la retraite, pour avoir atteint l’âge maximal de 65


ans, après seulement onze mois d’activité à cette fonction (Collectif, 1973,
p.14), Théodore Simon fonde, avec Maurice Delaville110, la revue Laboratoire et
psychiatrie111 dans laquelle ils promeuvent l’étude des liens entre psychiatrie
et biologie. Partageant la même conviction selon laquelle « la clinique est, en
aliénation, la formation essentielle, (…) la base même du métier » (Delaville et
Simon, 1937, p.1), ils estiment que cette approche clinique « peut conduire aux
thérapeutiques morales » (Ibid.). Dès lors, « une fois brossé le tableau clinique, la
psychologie expérimentale peut en compléter certains aspects, et la biologie
chercher les bases organiques des troubles constatés » (Ibid.). A cette fin, les
auteurs espèrent que ce fascicule deviendra « un organe de liaison entre gens de
laboratoire et médecins d’asile » (Delaville et Simon, 1937, p.2). Dans le même
temps, Théodore Simon publie la seconde édition de L’aliéné, l’asile, l’infirmier
(Simon, 1937) et assiste à deux grandes manifestations scientifiques que sont

108 Tels sont ses propos à la suite des communications des docteurs Laignel-Lavastine et Georges
d’Heucqueville sur la « Statistique du service de psychiatrie d’urgence de la Pitié : rôle des services ouverts
des hôpitaux » et des docteurs Philippe Pagniez (1873-1947) et André Ceillier (1887-1954) sur
« Remarques et statistiques sur le service de psychiatrie d’urgence de l’hôpital Saint-Antoine » lors de la
séance du 27 avril 1936 de la Société Médico-psychologique.
109 En 1937, l’hôpital Henri Rousselle occupe les locaux, autrefois affectés au service de l’admission, de
l’asile clinique de Sainte-Anne. Détaché administrativement de cet asile, il comprend, outre des services
sociaux et un laboratoire, trois parties : 1° un dispensaire groupant des consultations fréquentées par des
malades du dehors ; 2° un hôpital pour le traitement des malades en cure libre ; 3° un service de pré-
internement pour les malades mentaux en instance de placement.
110 Chef de laboratoire à l’hôpital Henri Rousselle et à l’Ecole des Hautes Etudes.
111Ce modeste bulletin mensuel d’une douzaine de pages est imprimé sur les presses de l’imprimerie A.
Coueslant à Cahors qui édite depuis plus de 30 ans le bulletin de la Société Alfred Binet. Le gérant en est
Louis Parazines.

169
le 1er Congrès international de psychiatrie infantile (Simon, 1937d, 1938b ;
Boussion, 2016) et la 42ème session du congrès international des médecins
aliénistes et de neurologistes de France à Alger dont il assure, à cette occasion,
outre la présidence, le discours inaugural sur le thème de « L’homme normal »
dans lequel il dénonce ceux qui décrivent le normal comme une forme atténuée
du pathologique (Simon, 1938d, 1964). En septembre 1939, la Seconde Guerre
mondiale met un terme à cette activité. La publication de Laboratoire et
psychiatrie est stoppée après seulement une dizaine de numéros. En avril 1940,
le bulletin de la Société Alfred Binet cesse, lui aussi, de paraître112. Réintégré, à
sa demande, au poste de directeur du service de l’admission à l’hôpital Sainte-
Anne, au début du conflit, il est remercié quelques mois plus tard (Guesnon,
1939).

Conclusion

Théodore Simon vécu pleinement sa vie de médecin d’asile à une époque


où les personnels exerçant dans ces établissements étaient encore, pour
beaucoup d’entre eux, des gardiens que des infirmiers. Il consacra aussi une
grande part de son activité à la Société Alfred Binet et aux recherches portant
sur la pédagogie expérimentale. L’attention toute particulière qu’il apportait
aux personnes se destinant à ces métiers de l’humain témoigne de son souci
constant de les y préparer. Cette ambition, fondée sur l’acquisition d’une
posture et de techniques professionnelles, est perceptible tout au long de sa
carrière et même au-delà. Ainsi, en 1953, à 80 ans, alors qu’il rédige l’essentiel
des articles du bulletin de la Société Alfred Binet, il fonde et dirige une nouvelle
revue : L’infirmier psychiatrique113. Il y jettera ses dernières forces. Malade
depuis 1956, il est contraint de renoncer à ses activités en mars 1959. Alité, à
partir du mois d’avril 1961, il meurt, le lundi 4 septembre 1961, à l’âge de 88
ans. Conformément à ses vœux, ses obsèques furent célébrées dans l’intimité, le
jeudi 7 septembre, en l’église de Saint-Sulpice, à Paris. Son corps repose dans le
caveau de sa belle-famille, au cimetière monumental de Rouen, sur lequel on
peut lire : « Docteur Th. Simon, Président de la Société Alfred Binet de Paris ».

112 Il reparaîtra en décembre 1944 avec son numéro 366.


113 Ce bimensuel paraîtra à raison d’une douzaine de numéros par an entre 1953 et 1958.
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Sources

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français, Paris, 69.

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médico-psychologiques, Paris, 1, 285.

AMP (1920b). Variétés. Concours de médecin en chef des asiles de la Seine. Annales
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ASMR (Archives de la Société de Médecine de Rouen) – ADSM (Archives


départementales de la Seine Maritime. PEMED 1/3). Registre des délibérations de
la Commission de surveillance des asiles d’aliénés du département de la Seine
inférieure (Saint-Yon et Quatre Marres), 1908-1910.

Balz, A. (1925). A travers les congrès. Manuel général de l'Instruction primaire, Paris,
32, 651, mai.

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Binet, A. & Simon, T. (1905c). Méthodes nouvelles pour faire le diagnostic différentiel
des anormaux de l’intelligence. L’année psychologique, Paris, XI, 191-244.

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Binet, A. & Simon, T. (1906a). La misère physiologique et sociale. L’année


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177
CAPÍTULO VIII

Henri Wallon: uma visão integradora da pessoa


Mariana Batista Vieira & Laurinda Ramalho de Almeida

Figura 9: Homenagem a Henri Wallon


Fonte: Bulletin Internacional de l’Enseignement, juin 1950114
É contrário à natureza tratar a criança fragmentariamente. Em cada
idade, ela é um todo indissociável e original.

Wallon (1941/2007, p. 198)

114Descrição da foto: Wallon está sentado à frente de sua mesa, com jaleco branco por cima de um termo,
camisa branca e gravata. Está segurando uma caneta com a mão direita e sobre a mesa há alguns papéis.
No momento da foto, olhou para a câmera fotográfica. Legenda da foto: Wallon, H. (1950). « Allocution »
(comm. aux Journées d’études pédagogiques, 19-20 février 1950), en : Pour l’Ére Nouvelle, nº 7,
(Hommage à H. Wallon), pp.27-35 y en : Bulletin Internacional de l’Enseignement, juin (nº spécial
Hommage à H. Wallon), pp. 61-66.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

A epígrafe citada vale para a atuação de Wallon como médico, psicólogo,


filósofo, educador, militante. Tran-Thong, que foi aluno de Wallon e
posteriormente sistematizou sua obra (1969, 1987) afirma que desde jovem,
Wallon partiu à procura do homem e de sua compreensão, e a encontrou na
criança. Ao compreender o homem e sua humanidade, descobriu a si próprio.
Descobriu que compreender qualquer objeto de análise é conhecer seu estado
atual e seu passado, mas sobretudo, apreender seu futuro (Tran-Thong, 1969).

Essa compreensão ele a trouxe a partir de várias áreas: da Medicina (em


especial da Psiquiatria), da Filosofia, da Antropologia, da Psicologia da época e
desembocou em duas grandes áreas: Psicologia, elaborando uma teoria de
desenvolvimento e na Educação, cuja contribuição mais decisiva foi na
elaboração do Projeto Langevin-Wallon.

Henri Wallon (1879-1962) nasceu em Paris, onde passou toda sua vida.
Viveu um período de intensa turbulência na Europa que passou por duas
Guerras Mundiais, e participou ativamente dos acontecimentos de sua época: na
Primeira Grande Guerra (1914-1918) foi médico de batalhão e na Segunda
(1939-1945) atuou no movimento da Resistência Francesa contra o nazismo.

Na família, conviveu com o pensamento democrático e republicano. Em


relato à revista Enfance, fundada por ele em 1948 (a qual dirigiu até seu
falecimento) fala da morte de Victor Hugo como uma de suas primeiras
recordações: na noite em que o escritor faleceu, seu pai leu trechos de Les
Châtiments (Os castigos – livro de poesias escritas durante o exílio) e na manhã
seguinte levou os filhos – Henri tinha então 6 anos – à casa de Victor Hugo para
prestar-lhe a última homenagem, explicando aos filhos que o escritor lutara
contra a tirania (Nascimento, 2010).

Seguindo a tradição da época, Henri Wallon ingressou na Escola Normal


Superior, em 1899, formando-se em Filosofia. Como Psicologia não existia como
campo autônomo, e era seu interesse tornar-se psicólogo e neuropsiquiatra,
cursou Medicina (Filosofia e Medicina eram os recursos para exercer a
profissão de psicólogo). Seu interesse pela Psicologia é claramente declarado
por ele próprio, conforme reporta Tran-Thong: “Minha inclinação para a

179
Psicologia fez-se independente de qualquer influência externa [...] foi antes de
mais nada uma disposição geral, uma questão de gosto, de curiosidade pessoal
pelos motivos e razões que levam a pessoa a agir” (1969, p. 24). Mas foi a
Medicina que o dirigiu para os estudos da neurologia e do corpo, como base
material do psiquismo, e contrapor-se à concepção metafísica, defendida pelos
psicólogos na época. Deu-lhe elementos para o estudo da pessoa em sua
totalidade, ou seja, evidenciar que o substrato orgânico, em sua relação com o
meio social, vai constituir a pessoa.

De 1908 a 1931 foi médico-assistente e colaborador do professor Dr.


Nageotte (1866-1948), de quem recebeu forte influência para aprofundar-se
nas estruturas nervosas. Trabalhou inicialmente no Hospital de Bicêtre e
posteriormente no Hospital da Salpêtrière, instituições psiquiátricas, que
atendiam crianças com deficiências neurológicas e com distúrbios de
comportamento. Psiquiatra infantil, atendeu crianças difíceis, com dificuldades
escolares, instáveis, agitadas, epiléticas, retardadas. O atendimento a essas
crianças forneceu-lhe elementos para escrever seu primeiro livro: A criança
turbulenta: estudos sobre os retardamentos e as anomalias do desenvolvimento
motor e mental. Algumas das concepções neurológicas registradas nesses
estudos vão ser revistas depois de atender feridos de guerra, servindo como
médico na Primeira Guerra Mundial. Percebeu, então, que certos
comportamentos apresentados por alguns feridos não eram decorrentes apenas
de desordens neurológicas, mas de circunstâncias vividas pelos feridos. Essa
constatação levou-o a questionar os efeitos da emoção sobre a razão e rever
alguns conceitos. Dantas, em A infância da razão (1990) considera que em A
criança turbulenta estão já contidas as principais teses da psicologia walloniana.
Nessa obra as análises de Wallon tomam duas direções: descrição dos estágios
de desenvolvimento psicomotor e o estudo das síndromes psicomotoras.
Descreve os primeiros estágios de desenvolvimento: impulsivo, emotivo,
sensório-motor e projetivo, evidenciando que os estágios são tipos de
comportamento, e que fixo na criança patológica, o estágio fica privado da
possibilidade de transformação, o que levaria a criança a não continuar em sua
direção evolutiva, impossibilitada de integrar os avanços daquele estágio nos
seguintes.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

“A criança normal é descoberta na criança patológica” (Wallon,


1925/2007, p. 289) é a primeira frase da Conclusão dessa obra que descreve,
em minúcias, os estágios referidos. E acrescenta:

Existem no desenvolvimento da criança certas datas cuja importância


nitidamente crítica aos observadores, partindo das funções mais
diferentes, estão de acordo em assinalar. A cada uma delas corresponde
uma renovação tanto biológica quanto psíquica (...). Estabilizando e
sistematizando as etapas da evolução normal, a psicopatologia infantil
permite captar-lhes o sentido e as relações. (p. 289, 293).

Afirma Tran-Thong (2007), ao prefaciar, em 1984, a reedição da obra


pela Presses Universitaires de France que,

(...) em A criança turbulenta, Wallon aparece como o fundador de uma


psicologia integral da criança em suas dimensões normal e patológica e em
sua dupla direção de uma psicologia genética geral, que tende a pôr em
evidência estágios, mecanismos, leis e fatores de desenvolvimento, e de
uma psicologia diferencial, que tende a captar variações individuais no
decorrer do desenvolvimento e a elaborar uma tipologia genética. (p. 39).

Nessa obra, a teoria da emoção já se esboçava, tendo como fundamento a


indissolução entre os planos motor e mental, unidos pela função tônica.

Vale lembrar que, no Brasil, A criança turbulenta foi traduzida pela


Editora Vozes, e foi a primeira obra que compôs a Coleção “Textos Fundantes da
Educação”, organizada pelo professor Dr. Antonio Joaquim Severino, o que
revela a importância da obra do médico-psiquiatra para a educação.

Segue-se a essa obra Psicologia Patológica, em 1926, trabalho de


sistematização, com o objetivo de mapear a psicopatologia em torno de seus
principais quadros mórbidos. Em 1930, Princípios de Psicologia Aplicada que
trata da Psicologia do Trabalho, enfocando vários itens, entre os quais, a
inadequação do uso de testes para caracterizar as funções, sem considerar
outros elementos.

Seguem as obras que fizeram dele o grande psicólogo do desenvolvimento:


As origens do caráter na criança, em 1934; A vida mental, em 1938 (o 8º tomo
da Enciclopédia Francesa); A evolução psicológica da criança, 1941; Do ato ao
pensamento (que teve a coragem de publicar quando se encontrava na
clandestinidade durante a ocupação da França pelo exército de Hitler);
finalmente, As origens do pensamento na criança, em 1945. Dois outros livros,

181
Psicologia e Educação da Infância e Objetivos e métodos da Psicologia são
reproduções de coletâneas de artigos publicados na revista Enfance, fundada
por Wallon em 1948.

A vasta obra de Wallon, além desses livros, muitos artigos publicados em


revistas e registro de conferências para professores, permitem a discussão de
três diferentes tipos de questões:

1- questões da teoria do desenvolvimento – como o psiquismo humano,


que desde o início é constituído pela integração genético-social
transforma-se constantemente;
2- questões da relação entre Psicologia e Educação – dois momentos
complementares da investigação científica;
3- questões de ordem epistemológica – referentes ao papel da Psicologia
como ciência.

Neste capítulo, abordaremos, sucintamente, os tópicos 1 e 2.

A teoria de desenvolvimento de Henri Wallon - Integração organismo-meio


e integração funcional

Com o objetivo de compreender as mudanças pelas quais a criança passa


até alcançar a idade adulta, Henri Wallon propõe o método da “análise
comparativa multidimensional”. O seu método tem como fundamentos a
psicologia genética e os pressupostos do materialismo dialético. Wallon afirma
que, “a psicologia genética estuda o psiquismo na sua formação e nas suas
transformações” (1956/1979, p. 51), ou seja, o psiquismo é estudado em sua
origem e em suas transformações não vendo apenas o produto final, mas todo o
seu processo evolutivo. Por sua vez, o materialismo dialético procura reunir
aquilo que em um primeiro momento parece ser inconciliável, abarcando a
personalidade total por meio das contradições apreendidas entre sujeito e objeto
(ZAZZO, 1978).

O método proposto consiste em realizar uma série de comparações: a


criança patológica com a normal; a criança normal com o adulto; o adulto de hoje
com o de civilizações primitivas; crianças normais da mesma idade e de idades
diferentes; a criança com o animal, entre outros. Estas comparações permitem
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

uma análise das várias determinações orgânicas, fisiológicas, neurofisiológicas,


sociais e a relação entre esses fatores, chegando à compreensão do processo de
constituição da pessoa.

O eixo da teoria walloniana encontra-se na integração organismo-meio e


na integração dos conjuntos funcionais. Na primeira, constata-se que a
constituição da pessoa se faz na interação do orgânico com o social, ou seja, a
concretização das potencialidades genéticas herdadas pelo indivíduo dependerá
do meio para se concretizarem ou serem por ele barradas. As condições
orgânicas e as condições relativas ao meio encontram-se intrinsicamente
ligadas, ou seja:

O meio é um complemento indispensável ao ser vivo. Ele deverá


corresponder a suas necessidades e as suas aptidões sensório-motoras e,
depois, psicomotoras (...). Não é menos verdadeiro que a sociedade coloca
o homem em presença de novos meios, novas necessidades e novos
recursos que aumentam possibilidades de evolução e diferenciação
individual. A constituição biológica da criança, ao nascer, não será a única
lei de seu destino posterior. Seus efeitos podem ser amplamente
transformados pelas circunstâncias de sua existência, da qual não se
exclui sua possibilidade de escolha pessoal [...] Os meios em que vive a
criança e aqueles com que ela sonha constituem a “forma” que amolda sua
pessoa. Não se trata de uma marca aceita passivamente. (Wallon,
1952/1975, pp. 164-167).

Juntamente com a integração organismo-meio Wallon estuda o


desenvolvimento da criança através da integração dos conjuntos funcionais, por
ele denominados: afetividade, ato motor, cognição e pessoa (Wallon,
1941/2007). Cada conjunto funcional é parte constitutiva dos outros e, em
consequência, a atividade motora terá ressonâncias afetivas e cognitivas, toda
disposição afetiva terá ressonâncias motoras e cognitivas, toda operação mental
terá ressonâncias afetivas e motoras e todas terão impacto na pessoa que, ao
mesmo tempo, garante essa integração e é resultado dela.

O ato motor vai além das contrações musculares que produzem o


movimento e os deslocamentos do corpo no espaço e, portanto, da relação com o
mundo físico; é também a base das atitudes humanas e desempenha um papel
fundamental para a compreensão da ação da pessoa sobre o meio físico e social;
é o primeiro recurso de sociabilidade da pessoa; por meio do ato motor se dá a
aproximação e a fusão com o outro, constituindo-se como um recurso

183
privilegiado para a construção do conhecimento, bem como para expressão de
emoções e sentimentos (Wallon, 1941/2007).

Por sua vez, a afetividade é definida por Mahoney e Almeida (2009)


como “a capacidade, a disposição do ser humano de ser afetado pelo mundo
externo e interno por meio de sensações ligadas a tonalidades agradáveis ou
desagradáveis” (p. 17). A afetividade apresenta três momentos em sua
evolução: emoção, sentimento e paixão. Na emoção predomina a ativação
fisiológica, ou seja, é identificada pelo seu lado orgânico; é a exteriorização da
afetividade. No sentimento não estão implicadas reações diretas e instantâneas
como na emoção; o sentimento é mais duradouro, menos intenso e procura
reprimir as emoções. Na paixão é ativado o autocontrole para que se possa
dominar uma determinada situação, silenciando a emoção e buscando um maior
equilíbrio entre afetividade e cognição, para atingir um objetivo.

A cognição é o conjunto funcional responsável pela aquisição,


transformação e manutenção do conhecimento que, primeiramente, se dá de
forma sincrética. O relacionamento da criança com o outro e com o mundo
acontece, principalmente, por meio da inteligência prática. Com as exigências
do meio e a necessidade de uma maior interação, o conhecimento vai se
transformando e se torna mais preciso e elaborado e, a partir da emergência e
da evolução da linguagem a criança se torna capaz de lidar com diferentes
símbolos e signos, além de representar e evocar as coisas que estão naquele dado
momento; o conjunto cognitivo permite que o indivíduo analise o presente,
reveja o passado e possa projetar possíveis futuros; as funções intelectuais
permitem o conhecimento de si mesmo e de seu meio (Mahoney, 2004; Wallon,
1941/2007).
Por fim, o quarto conjunto funcional, a pessoa, é o que garante e é o
resultado da integração do ato motor, da afetividade e da cognição; expressa a
singularidade e o modo de cada sujeito de estar no mundo. Dessa maneira,
compreendemos que a teoria walloniana se distancia de um raciocínio
fragmentário, pois o seu interesse é estudar a pessoa completa em todas as suas
dimensões: biológica-social e motora-afetiva-cognitiva.

Estágios do desenvolvimento
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Conforme já afirmado, a teoria de Henri Wallon busca compreender o


desenvolvimento da pessoa em todas as suas dimensões. Já em sua primeira
obra, a partir dos estudos com crianças que tinham algum tipo de distúrbio
mental, em A criança turbulenta: estudo sobre os retardamentos e as anomalias
do desenvolvimento mental e motor (1925/2007), baseado na observação de
crianças com diferentes tipos de distúrbios mentais e outros, o médico francês
identificou estágios do desenvolvimento que foram revistos e ampliados em suas
obras posteriores. Fundamentado em Wallon, Tran-Thong (2007) esclarece o
que se entende por estágio:

Relacionados com o meio e com as condições neurológicas, aparecem como


estruturas de relações, que resultam do equilíbrio entre as possibilidades
funcionais que permitem a maturação em cada idade e as circunstâncias
do meio que lhes correspondem. Os estágios são, portanto, sistemas de
relações entre a criança e o meio. Mas cada estágio não é senão um
momento do desenvolvimento em sua totalidade. Sua sucessão, aliás, não
é um acréscimo à maneira dos tijolos que são superpostos para construir
um muro cada vez mais alto. Por ocasião da passagem de um estágio a
outro, o sistema de relações do estágio anterior é dissociado, reorganizado
e integrado na estrutura do novo estágio, que lhe dá um novo significado.
E é no conjunto dos estágios sucessivos que cada um encontra sua direção
evolutiva. (p. 14).

Sobre a passagem de um estágio para outro Wallon (1941/2007) afirma


que não é uma mera ampliação linear, e sim uma reformulação, ou seja, é um
processo descontínuo, marcado por conflitos entre o antigo e o novo, rupturas,
retrocessos e reviravoltas, que podem ganhar a amplitude de crises; cada
estágio é “um sistema completo em si, isto é, a sua configuração e o seu
funcionamento revelam a presença de todos os seus componentes, o tipo de
relação que os une e os integra numa só totalidade: a pessoa. Temos, então, uma
pessoa completa a cada estágio” (Mahoney, 2004, p. 15).

A referida autora (Mahoney, 2010) complementa que na sucessão dos


estágios há uma alternância na predominância dos conjuntos funcionais, ou
seja, embora todos estejam presentes de forma recíproca e complementar, um
fica mais evidente que os outros em cada estágio. Também há uma alternância
de direção em cada estágio: centrípeta (para dentro de si mesmo) e centrífuga
(para o mundo exterior). Tratam-se, respectivamente, dos princípios de
predominância funcional e de alternância funcional. Aproximando estes dois
princípios, observa-se que quando a direção é centrípeta (para dentro) o

185
predomínio é do afetivo e quando é centrífuga (para fora) o predomínio é do
cognitivo. A atividade motora é considerada o suporte para o afetivo e o
cognitivo. Outro princípio é o da integração funcional, que descreve os estágios
como uma relação hierarquizada, ou seja, as atividades que inauguram um novo
estágio não suprimem e nem excluem as anteriores, o que foi aprendido é
integrado em um permanente processo de diferenciação em relação aos estágios
seguintes.

Ao apresentar as características de cada estágio, ressaltamos que as


idades correspondentes a cada um deles referem-se aos estudos feitos por
Wallon e correspondem ao momento e à cultura vivenciados por ele, portanto,
nos dias atuais, devem ser revistas.

Estágio impulsivo-emocional (de zero a um ano)

Predominam no primeiro estágio do desenvolvimento os conjuntos motor


e afetivo e a direção é centrípeta (para o conhecimento de si); esse estágio
apresenta dois momentos: o da impulsividade motora (0 a três meses) e o
emocional (três meses a um ano).

No primeiro momento, o bebê está voltado para si e suas atividades estão


relacionadas à exploração de seu próprio corpo. O bebê manifesta com
movimentos descoordenados e atos reflexos, suas sensações de bem-estar ou
mal-estar, que correspondem às sensibilidades internas e externas;
interoceptivas (viscerais), proprioceptivas (musculares) e exteroceptivas
(obtidas por meio das reações frente aos estímulos oferecidos pelo ambiente).

Os únicos actos úteis, que a criança possa então fazer, limitam-se a chamar
a mãe em seu socorro com os seus gritos, as suas atitudes e as
gesticulações. Assim, os primeiros gestos que são úteis à criança não são
gestos que lhe permitirão apropriar-se dos objetos do mundo exterior ou
evitá-los; são gestos virados para as pessoas, são gestos de expressão.
(Wallon, 1952/1975, p. 205).

Segundo Almeida e Mahoney (2011), a partir desses movimentos, são


selecionados aqueles que garantem a aproximação com o outro; quando o adulto
passa a perceber as necessidades do bebê e atendê-las, é construído um
repertório de significados comuns e o bebê começa a significar os seus gestos.
Inicia-se, assim, o momento emocional, no qual é possível distinguir padrões
emocionais para o medo, a alegria, a raiva, e etc. Afirma Wallon:
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Aos 3 meses, a criança sabe já dirigir-se às pessoas à sua volta,


particularmente à mãe, não só através de gritos em relação aos cuidados
materiais de que necessita, mas sorrisos e sinais de contentamento, que
constituem já um laço puramente afectivo entre ela e aqueles que lhe
correspondem. A partir dos 6 meses desenvolve-se o que denominei por
estado afectivo ou emotivo no qual a criança vive quase tanto das suas
relações humanas; as como da sua alimentação material. (1952/1975, p.
206).

Esse momento é caracterizado predominantemente pela afetividade; a


criança começa a distinguir as pessoas que estão ao seu redor pela função que
desempenham, mas há, ainda, uma simbiose afetiva entre a criança e o outro.

A criança está, pois, primeiramente ligada à mãe, mas este horizonte


social alarga-se muito rapidamente. Chega o momento em que certas
pessoas do seu meio são diferenciadas pela criança, não talvez como
pessoas, mas porque desempenham um determinado papel no seu
ambiente. O papel, por exemplo, que é exercido pelo pai. E a criança, como
sabem, começa por designar pelo nome de papá o pai e outros homens que
não são o pai dela. A sua representação das coisas não é ainda
diferenciada, é global, e a criança liga personagens diferentes, quando
estas personagens entram na sua pequena existência com características
comuns. (Wallon, 1952/1975, pp. 207-208).

Estágio sensório-motor e projetivo (de um a três anos)

Diferente do estágio impulsivo-emocional, nesta nova etapa do


desenvolvimento predomina a cognição e se caracteriza pela investigação e
exploração do meio externo, portanto, a direção é centrífuga. A exploração do
espaço físico se dá por meio de atividades como agarrar, manipular, apontar,
sentar, andar, entre outras. Essas ações são auxiliadas pela fala que, por sua
vez, é acompanhada de gestos; a criança começa a discriminar objetos e pessoas,
identificando-os.

Vemos a criança multiplicar os jogos a que chamei de alternância, isto é, jogos


nos quais ela é reciprocamente o autor e o objecto dum mesmo gesto. Por
exemplo, gostará do jogo da mão quente, de dar e receber uma pancada;
procurará esconder-se e mostrar-se, alternadamente, esconder a pessoa do
seu interlocutor e desmascará-la, jogará às escondidas, sendo ora aquele que
se esconde ora aquele que descobre. Assiste-se, assim, a toda uma série de
jogos espontâneos nos quais a criança mostra o interesse que tem pelos actos
susceptíveis de unir duas pessoas, ou melhor, dois papéis diferentes. (Wallon,
1952/1975, p. 208).

A partir do momento que começa a andar e a falar, o desenvolvimento da


criança passa por etapas rápidas, no entanto, o seu eu psíquico continua
indiferenciado, sincrético. Segundo Costa (2010), é com o fortalecimento da

187
função simbólica “que a criança se torna capaz de se separar do conteúdo de sua
percepção imediata e de distinguir sua personalidade da do outro, destacando-a
das situações particulares em que se misturam” (p. 38), alcançando o estágio do
personalismo, quando evolui a consciência de si.

Estágio do personalismo (de três a seis anos)

A afetividade predomina neste estágio e a direção é centrípeta (a criança


volta-se para si própria). Os indicadores da tomada de consciência de si
aparecem: a criança para de referir a si própria na terceira pessoa e passa a usar
expressões como “mim”, “eu”, “meu” como uma forma de diferenciar-se do
outro. Surgem expressões de ciúmes:

O ciúme é muito específico nesta idade, porque apresenta um estado ainda


mal diferenciado da sensibilidade. Consiste ao mesmo tempo numa espécie
de alienação de si frente ao rival e na pretensão de substituir-se a ele.
Existe ainda alguma confusão entre ela e os outros, uma participação
indivisível em situações que não são nossas. O ciúme é uma causa de
ansiedade frequente nesta etapa da vida afectiva. (Wallon, 1952/1975, p.
211).

Esse período se configura como um momento de conflitos, contradições e


crises e se divide em três fases: oposição como busca de afirmação de si por meio
de atitudes de diferenciação em relação ao outro; sedução em que há a
necessidade de chamar a atenção e de ter admiração e aprovação do outro, nesta
fase alternam-se graça e timidez, maneirismo e falta de habilidade; imitação,
momento em que o outro se torna referência e modelo para a criança ampliar
suas competências. Quando não bem orientadas pelo adulto, atitudes de
frustração e de insatisfação e os sentimentos de angústia e de decepção podem
marcar de forma prolongada o comportamento da criança e as relações que ela
estabelece com o ambiente e com o outro e essa etapa é decisiva para o
desenvolvimento (Wallon, 1952/1975).

Estágio categorial (de seis a onze anos)

Neste estágio o predomínio é da cognição e a direção é centrífuga (para o


conhecimento do mundo exterior). É um período marcado pela diferenciação
nítida entre o eu e o outro e, tal fato, faz com que a criança tenha maiores
possibilidades de explorar o mundo exterior. Além desses aspectos, os
indicadores deste estágio são: disciplina mental, conhecida como atenção; gestos
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

mais precisos e localizados, planejamento mental do movimento e previsão das


etapas e consequências do deslocamento e superação do sincretismo por meio
de duas etapas, isto é, o período é dividido por Wallon em dois momentos, em
função do pensamento que a criança pode operar: pensamento pré-categorial
(até cerca de 9 anos) e pensamento categorial (a partir dos 9 anos).

Na primeira etapa o pensamento é ainda marcado pelo sincretismo e por


pares, ou seja, para a criança, um objeto, fato ou situação existe em relação ao
outro: “os pares podem se formar por um encontro perceptivo fortuito, pela
vivência da criança, por um sentimento de contraste ou parentesco de uma coisa
em relação a outra” (Amaral, 2010, p.54). Aos poucos, a criança vai superando
o pensamento por pares e passa a distinguir novos planos, por exemplo,
diferencia o que pertence à realidade e à fantasia e, ainda, estabelece hierarquia
nas operações mentais (nomear, agrupar e comparar). Utiliza com mais
segurança as categorias intelectuais e seu pensamento deixa de ser sincrético,
entra-se na segunda etapa: o pensamento categorial.

À medida que o pensamento se torna mais capaz de resolver


diferenciações, de identificar, comparar e classificar os objetos, de
determinar as condições de existência das coisas ou de explicá-las por
meio das relações de tempo, espaço e causalidade, a criança vai tomando
consciência dos papéis que ocupa o outro com relação a si e ela mesma com
relação ao outro. (Amaral, 2010, p. 57).

Segundo Almeida e Mahoney (2011), com a clara distinção entre o eu e o


outro, a criança percebe-se como uma unidade e, portanto, pode entrar ou se
retirar dos grupos conforme os seus interesses, no entanto, ainda apresenta
dependência em relação ao adulto e aos pares mais velhos, necessitando de
relações mais igualitárias; o trabalho em equipe, por um lado, pode desenvolver
características de iniciativa e de cooperação e, por outro, pode provocar
rivalidades e preconceitos.

A emulação na realização de um trabalho é o meio que têm de se avaliarem


uns aos outros. O campo de suas rivalidades é o de ocupações. Disso resulta
uma diversidade de relações de todos com todos, da qual um tira a noção
de sua própria diversidade conforme as circunstâncias e, ao mesmo
tempo, de sua unidade por meio da diversidade das situações. (Wallon,
1941/2007, p.197).

Por fim, vale destacar que o estágio categorial corresponde aos anos
iniciais do ensino fundamental e o meio escolar deve oferecer um clima

189
favorável e de tranquilidade para que a criança avance para o pensamento
abstrato e para o raciocínio simbólico, criando possibilidades da plena utilização
do cognitivo com a contribuição da afetividade e do ato motor (Almeida &
Mahoney, 2011).

Estágio da puberdade e adolescência (dos onze anos em diante)

Novamente o campo afetivo é predominante e a direção é para dentro de


si, ou seja, centrípeta. Por volta dos 11 anos, a estabilidade adquirida no estágio
categorial é rompida bruscamente e inicia-se um período de crise que marca a
passagem da infância para a adolescência. Nesta fase, em decorrência do
amadurecimento sexual, ocorrem modificações fisiológicas tanto na menina
quanto no menino e essas mudanças corporais são acompanhadas de alterações
psíquicas.

A puberdade é o período em que, sob o efeito de secreções novas,


originadas em particular pelos órgãos sexuais, produzem no rapaz e na
rapariga modificações chamadas caracteres secundários do sexo e que
tendem a diferenciá-los um do outro. No rapaz aparece o bigode, a barba,
modificações da voz, isto é, alargamento da laringe; na rapariga aparecem
os seios, alargamento da bacia, etc. Simultaneamente a estas modificações
morfológicas, produzem-se modificações de ordem psíquica. A criança
sente-se como desorientada em relação a si mesma, tanto do ponto de vista
físico como do ponto de vista moral. (Wallon, 1952/1975, p. 218).

A desorientação em relação a si mesma é acompanhada de um forte


descontentamento e de um desejo de mudança; instala-se um período de
oposição em relação ao adulto e ao sistema de valores que ele representa, no
entanto, no início da adolescência existe ainda uma dependência da criança em
relação ao adulto e tal fato faz com que a criança ainda não saiba como agir; suas
atitudes e sentimentos tornam-se ambivalentes, traduzindo o desequilíbrio
interior, em outras palavras, no comportamento exterior o jovem tem o desejo
de atrair a atenção do outro, há a “necessidade de surpreender os outros, mas
existindo ao mesmo tempo uma atitude de timidez, sentimento de vergonha, de
dúvida acerca de si próprio” (Wallon, 1952/1975, p. 219). Apesar desse estágio
se caracterizar por uma vida afetiva intensa, Wallon afirma:

(...) estas divagações sentimentais não atingem o mesmo grau em todas as


crianças. Podem ser refreadas pelas exigências da vida prática e pelo
contacto directo com as realidades da vida quotidiana, em particular com
uma atividade profissional precoce. (1956/1979, p. 67).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

O sentimento de estranheza traz consigo a consciência de que o jovem está


se transformando; sua personalidade, fruto de exercícios de incorporação e de
oposição em relação ao outro nos períodos anteriores, torna-se mais rigorosa. O
jovem começa a questionar-se sobre a sua origem e o seu futuro; é na relação
com o outro e no exercício de voltar-se ao passado trazendo-o ao presente e
projetando passado e presente no futuro que o jovem vai organizando a noção
de tempo psíquico e cada vez mais, a infância é deixada para trás; o jovem toma
consciência das possibilidades que o futuro lhe oferece ao mesmo tempo que
também se torna consciente das limitações impostas pelo meio social.

Conforme o jovem vai assumindo compromissos relacionados ao trabalho


e aos estudos, a adolescência vai sendo deixada para trás; “o que caracteriza sua
passagem para a vida adulta é a definição clara de seus valores e o compromisso
de que serão indicadores centrais de suas escolhas futuras” (Almeida &
Mahoney, 2011, p. 106).

A idade adulta corresponde ao equilíbrio entre os conjuntos funcionais; o


equilíbrio razão-emoção, o que não quer dizer que o desenvolvimento se encerra.
O desenvolvimento é um processo que ocorre durante a vida inteira.
Afetividade, cognição e ato motor estão sempre em movimento e de forma
dialética ora se opondo, ora se complementando em todas as atividades do
indivíduo no decorrer de sua vida.

Wallon educador

Henri Wallon não foi um pedagogo, no sentido de criar teorias


psicológicas, mas sua importância na área da educação foi significativa: em
1927, fundou com Paul Langevin e Henri Pierón o Grupo Francês de Educação
Nova; em 1929, participou da criação do Instituto Nacional de Orientação
Profissional; em 1937, foi eleito presidente da Sociedade Francesa de Pedagogia;
em 1944, introduziu na França a Orientação Escolar nas escolas; em 1944
iniciou a participação junto a uma Comissão de 20 ilustres educadores nomeada
pelo Ministério da Educação Nacional para elaborar um plano de reforma do
ensino francês, que ficou conhecido como Plano Langevin-Wallon (o físico
Langevin era presidente da Comissão e com sua morte, Wallon assumiu a
presidência); o plano foi entregue ao Ministério da Educação Nacional em 1947.

191
Embora nunca tenha sido implantado, esse plano, elaborado no final da Segunda
Grande Guerra, continua referência para debates que até hoje se fazem sobre o
ensino, por sua coerência e fundamentação democrática.

Quanto à Educação Nova, Tran-Thong (1969) atesta a importância de


Wallon na discussão do ideário dessa Educação:

Henri Wallon é um partidário convicto da Educação Nova. Mas ele não foi
criador de sistemas educativos novos ou de técnicas pedagógicas originais
como Madame Montessori, o filósofo Dewey, o Dr. Decroly ou os pedagogos
Cousinet e Freinet. Sua contribuição ao movimento da Educação Nova não
é, no entanto, menos importante, mas ela se situa em outra perspectiva.
(p. 33).

A contribuição que dá é a análise criteriosa que faz aos pioneiros da


Educação Nova, pelo fato de privilegiarem ora o indivíduo, ora a sociedade. Para
Wallon, apenas dois educadores conseguiram fazer essa integração indivíduo-
sociedade, concretizando na prática a unidade criança-meio: Decroly (1878-
1932), belga, e Makarenko (1888-1939), soviético.

No Plano Langevin-Wallon pode expressar suas ideias sobre a


possibilidade dessa integração e o papel que a escola deve desempenhar para
uma sociedade mais justa e democrática. O Plano está assentado em 4
princípios:

1º) Justiça: qualquer criança, qualquer jovem, independente de suas


origens familiares, sociais, étnicas, tem igual direito ao desenvolvimento
máximo, cuja única limitação é a de suas próprias aptidões.

2º) Dignidade igual de todas as ocupações: todas as ocupações, todas as


profissões têm igual dignidade; a educação não deveria alimentar o predomínio
da atividade manual ou intelectual em função de razões de origens sociais ou
étnicas.

3º) Orientação: o desenvolvimento das aptidões individuais exige


primeiro orientação escolar, depois orientação profissional.

4º) Cultura geral: não pode haver especialização profissional sem cultura
geral, pois só uma sólida cultura geral libera o homem dos estreitos limites da
técnica; a cultura geral aproxima os homens, enquanto a cultura específica os
afasta.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Dos escritos de Wallon sobre a Educação Nova, do Plano Langevin-Wallon,


das conferências que proferiu para professores, é possível extrair princípios
explícitos para uma Pedagogia. Mas é possível extrair também princípios para
uma Pedagogia implícita, extraída de sua psicogenética, porque esta é muito
fértil para profissionais da educação. Wallon introduziu uma renovação no
pensamento psicológico e com ele, uma renovação no campo pedagógico, mas
esta renovação começa já na área médica, enquanto procedimento para estudos
e observações com as crianças no seu laboratório de Biopsicologia.

No escopo restrito de um capítulo apresentamos contribuições do médico-


educador para a ação educativa.

1. O início de qualquer aprendizagem se caracteriza pelo sincretismo, por


uma fusão de elementos diferentes, sem se perceberem os traços
específicos de cada um. Há todo um caminho a percorrer para se
chegar à diferenciação, e compete ao professor facilitar a caminhada
do sincretismo para a diferenciação.
2. A imperícia, cujo aparecimento é natural em qualquer início de
aprendizagem, promove interferências nas dimensões cognitiva,
motora e afetiva, e quando não observadas atentamente pelo
professor, pode impedir um bom desempenho escolar.
3. O ato educativo exige, da parte do professor conhecimento do aluno e,
desse último, consentimento. “O principal estímulo da atenção é o
interesse. Suscitá-lo deve ser, evidentemente, o objetivo essencial do
educador (...)” (Wallon, 1952/1975, p. 370).
4. As situações às quais a criança reage são as que correspondem aos
recursos de que dispõe naquele momento de desenvolvimento.
5. Uma dificuldade de aprendizagem, via de regra, é um problema de
ensino. É importante o professor refletir sobre sua prática.
6. A reflexão sobre a prática implica em observar cuidadosamente seus
alunos. “Observar é registrar o que pode ser verificado. Mas registrar
e verificar é ainda analisar, é ordenar o real em fórmulas, é fazer-lhe
perguntas” (Wallon, 1952/1975, p. 16).
7. Cada aluno tem possibilidades e limitações próprias, portanto,
diferentes ritmos de aprendizagem, em cada um de seus conjuntos:

193
afetivo, cognitivo, motor, o que precisa ser levado em conta pelo
professor.
8. A emoção é contagiosa e se alimenta dos efeitos que produz nos que a
rodeiam. Quando o professor se deixa contagiar pela emoção do aluno,
não age de forma equilibrada. Espera-se que o professor, adulto mais
experiente, com mais recursos para controlar emoção e sentimentos,
possa colaborar para resolver conflitos que são normais na rotina
escolar, e não acirrá-los.
9. Afetividade, cognição e motricidade só são estudadas separadamente
para fins didáticos. A atividade que interfere em um dos conjuntos,
interfere nos demais.
10. A imitação é um recurso poderoso de aprendizagem para crianças
e adultos. O professor, queira ou não, é um modelo para seus alunos.

Para finalizar...

O que expressamos neste capitulo é uma ínfima parcela do legado de


Wallon para médicos, psicólogos e educadores. Da clínica médica trouxe, além
de profundos conhecimentos sobre o sistema nervoso que alicerçaram sua
teoria de desenvolvimento, a importância do atendimento respeitoso,
cuidadoso, comprometido com as crianças que atendia. Da Psicologia trouxe
para a Educação, entre outros, o lembrete: “A formação psicológica dos
professores não pode ficar limitada aos livros. Deve ter uma referência perpétua
nas experiências pedagógicas que eles próprios podem pessoalmente realizar”
(Wallon, 1952/1975, p. 366).

Para sermos fiéis ao seu entendimento da integração indivíduo-sociedade


encerramos este capítulo com suas palavras:

Qual o papel do professor? Este papel parece-me essencial. Dir-vos-ei


claramente: não penso que o professor cumpra completamente o seu dever
quando diz: “recebi a missão de instruir as crianças, não sairei da minha
escola, as únicas coisas que me interessam são as coisas da escola”.
Um professor, que tem verdadeiramente consciência das
responsabilidades que lhe são confiadas, deve tomar partido das coisas da
sua época. Deve tomar decisões, não cegamente, mas fazendo o inquérito
que a sua educação e a sua instrução lhe permitem fazer. Deve tomar
decisões, não só no seu gabinete de trabalho e não só pela análise das
situações económicas ou sociais da sua época e do seu país; deve tomar
decisões solidariamente com os seus alunos informando-se de quais são as
suas condições de vida. Não deve ser o mestre que lhes vem dizer: ignoro
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

qual a vossa condição social. Ignoro o que sereis amanhã. Não acredito no
futuro senão através de vossos êxitos na escola. (pp. 223-224).

195
Referências Bibliográficas

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para a educação. In: Azzi, R. G., & Gianfaldoni, M. H. T. A. (orgs.). Psicologia e
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Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

CAPÍTULO IX

Ulysses Pernambucano e a Educação


Fabiana Pereira, Silvana Matos & Janayna Emidio

Figura 10: Ulysses Pernambucano


Fonte: Joaquim Nabuco Foundation Librarian115

115Descrição da foto: O jovem Ulysses Pernambuco aparece na foto usando o que aparenta ser uma beca
de formatura, com olhar para o horizonte. Por baixo da beca há uma camisa branca, está de gravata; usa
óculos com armação arredondada. Seus cabelos são densos e encaracolados.

197
Êle [Ulysses] vinha senhor da ciência do seu tempo, de tudo que de mais
moderno havia, não só no tratamento da doença, mas no que existia de
procura e pesquisa psicológica. A ciência que êle tomava para base de seus
estudos, era coisa de profundidade. O mestre Ulysses já era uma realidade
nos começos de sua carreira.
José Lins Rêgo (1945, pp. 289-290, como citado em Melo, 2004, p. 186)

O convite para a escrita deste capítulo se deu num momento inusitado, em


que as autoras estavam debruçadas sobre suas pesquisas a respeito dos
“personagens” que contribuíram para a formação da Antropologia
pernambucana.116 Vasculhando arquivos, nos deparamos com o trabalho
pioneiro de Ulysses Pernambucano nos terreiros de Pernambuco. Embora se
tratasse de um autor de tamanha envergadura, a literatura antropológica o
invisibilizava completamente. A partir dessa constatação, fomos buscar
referências em outras ciências, como na Psiquiatria, na Psicologia e na
Educação. Constatamos que o autor em questão é bem mais reconhecido nestas
áreas, embora ainda existam muitas lacunas a serem pesquisadas, como, por
exemplo, o legado deixado por Ulysses aos seus discípulos. Estes sim, em grande
parte, muito mais visibilizados do que o mestre.117

O título do artigo remete, propositalmente, a outros textos escritos por


dois discípulos do nosso autor: Ulysses Pernambucano: renovador do ensino em
Pernambuco”, autoria de Waldemar Valente (1959) e “Ulisses Pernambucano,
educador”, de Anita Paes Barreto (1992).

Embora nosso objetivo principal seja tratar das contribuições de Ulysses


para a Educação, não podemos deixar de mencionar que Pernambucano antes
de tudo, foi um humanista. Influenciado pelas ideias culturalistas de Gilberto

116 Fabiana Pereira e Silvana Matos estavam fazendo pesquisas de Pós-doutorado em Antropologia,
vinculadas ao Projeto “A geopolítica acadêmica da antropologia da religião no Brasil”, financiado pela
CAPES. Janayna Emídio de Lima foi voluntária na pesquisa. Parte do material coletado foi utilizado na sua
monografia a respeito de Ulysses Pernambucano. Atualmente faz mestrado em Antropologia, dando
seguimento aos seus estudos iniciados na graduação, num trabalho ligado à Antropologia histórica,
levantando dados sobre o processo histórico e político de Pernambuco e do Brasil, utilizando Ulysses
Pernambucano como personagem central da pesquisa.
117Pernambucano contribuiu bastante para os primeiros estudos com adeptos das religiões afro em
Pernambuco, no entanto é um autor muito pouco mencionado na Antropologia. René Ribeiro foi um dos
poucos assistentes que alcançou maior reconhecimento. Pesquisas recentes apontam a importância de
estudar a obra de Ulysses bem como de seus discípulos, como Gonçalves Fernandes (Matos, 2017; Souza,
2017), Pedro Cavalcanti (Matos, 2017), Waldemar Valente (Germano, 2017), entre outros.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Freyre, soube como ninguém, pôr em prática uma visão interdisciplinar, plural
e ampliada no que diz respeito ao ser humano (Cerqueira, 1945).

Figura 11: O mestre118


Fonte: Acervo FUNDAJ

O mestre foi um grande reformador do ensino e incentivador de pesquisas


(Valente, 1959; Rocha & Costa, 1985). Enquanto reformador, nosso autor criou
importantes instituições em Pernambuco, implementando serviços inovadores,
como o Instituto de Psicologia, a Escola de Anormais, o Serviço de Higiene
Mental, etc. Também se destacou em cargos de direção. Foi Diretor Geral de

118Descrição da foto: Gilberto Freyre (segurando um chapéu em suas mãos) e Ulysses Pernambucano (de
braços cruzado) estão de pé e, ambos, vestindo terno e gravata. Ao fundo se observa um lugar cheio de
árvores.

199
Saúde Pública de PE119, do Ginásio Pernambucano120, da Escola Normal, do
Instituto de Seleção e orientação profissional121 e do Hospital da Tamarineira.

Nosso autor foi professor de várias disciplinas, tendo ensinado na Escola


Normal e no Ginásio Pernambucano, assim como na Faculdade de Medicina,
atual Universidade Federal de Pernambuco, onde foi nomeado para algumas
cátedras.122

Nas palavras de Otávio de Freitas: “Foi professor catedrático de Clínica


Neurológica desde os primórdios da fundação da nossa Faculdade, sendo suas
aulas de um sabor e de uma erudição muito grandes. Foi um ótimo mestre e
um excelente clínico” (2010, p. 266, grifo nosso).

René Ribeiro (1983/1984, p. 86), que também foi seu aluno e assistente,
afirma que Ulysses costumava citar os livros emprestados por Gilberto Freyre,
como The Mind of Primitive Man, de Frans Boas, Casa Grande & Senzala, e
outros.

(...) na biblioteca central [dessa] instituição [se refere à Tamarineira],


então das mais completas, sobre psicopatologia, psicologia geral e
experimental, serviço social, sociologia, antropologia e método de
pesquisa (científica e social), [... tinha ...] à disposição o Tratado de
Psicologia de Georges Dumas ... a coleção em tradução espanhola, das
obras de Havelock Ellis ... e Regras e Conselhos para a Investigação
Científica, por Ramon y Cajal, o livro normativo, por excelência, para todos
quantos quisessem a essa época se dedicar à investigação científica séria.
(Ribeiro, 1990, como citado em Motta, 1993, p. 233, grifos nossos).

119Sua gestão foi tão eficiente que ocupou esse cargo por 3 vezes: em 1911, em 1920 e de 1927 a 1930
(Freitas, 2010).
120 Ginásio Pernambucano é a instituição de ensino mais antiga em funcionamento do país, tendo
completado 190 anos em 2015. Até o ano de 1950 a instituição só aceitava homens, as mulheres passaram
a frequentar o Ginásio em 1955, em turmas exclusivamente femininas. Em 1970 as turmas passaram a
serem mistas. Em 1990 a instituição fechou suas portas devido às péssimas condições de infraestrutura,
mas hoje em dia o Ginásio Pernambucano é um exemplo em forma de ensino, servido de inspiração para
outras instituições em diferentes estados do Brasil (Nascimento, 2015).
121O instituto foi criado em 1925, com o nome Instituto de Psicologia de Pernambuco, transformando-se
em Instituto de Seleção e Orientação Profissional em 1929. No instituto eram realizados programas de
padronização de testes, avaliações psicológicas, seleção e orientações de profissionais. A esse respeito ver:
Andrade, M. C. Ulysses Pernambucano. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife.
Recuperada de <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>, em 02 fev. 2017.
122Otávio de Freitas (2010, p. 267) escreve que Ulysses começou a lecionar na Faculdade de Medicina já
em 1920, tendo se efetivado em 1938. As cátedras assumidas por Ulysses foram: “Clínica neuriátrica e
psiquiátrica”; “Clinica neurológica”. Antes de se efetivar, lecionou em um curso de especialização em neuro-
psiquiatria infantil, a cadeira de “Semiótica Neuropsiquiátrica”. Também deu aulas de “Química” e de
“Fisiologia”.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Ulysses também se destacou como pesquisador. Durante a época em que


criou (1931) e dirigiu (de 1931 a 1935) o primeiro Serviço de Higiene Mental
da América Latina, houve uma série de estudos e pesquisas realizadas por
parte de seus assistentes e incentivadas por Ulysses. Algumas delas foram
realizadas dentro dos terreiros com os adeptos às religiões de matriz africana.
Naquela época, muitas daquelas pessoas eram internadas em hospícios e até
presas em delegacias. Essas pesquisas foram extremamente importantes para
a Psiquiatria e para a Antropologia, elas marcam o início dos trabalhos com essa
população.123

Foi através de Ulysses que os médicos assistentes do Serviço de Higiene


Mental se sensibilizaram para estudar as manifestações, como transes e
possessões em contextos religiosos, que durante muito tempo estiveram
associadas a um tipo de transtorno, denominado de “loucura espírita”. Sua
atuação com os adeptos das religiões afro foi tão importante, que em 1934
presidiu o I Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Recife e organizado por
Gilberto Freyre juntamente com alguns pais de santo e outros estudiosos do
tema. Foi um espaço de discussões e debates sobre o negro e suas manifestações
religiosas, numa época em que predominavam pressupostos racistas e
eugênicos, em que estas manifestações eram condenadas. Com uma proposta
completamente diferente do que se costumava ver, o Congresso abriu espaço
para que temas fossem discutidos por diversas áreas, desde a Medicina,
passando pela arte, folclore, Sociologia, Psicologia Social, Etnografia, etc.

Com a entrada dos médicos, os terreiros passam a ter licença de


funcionamento, abrindo espaço, entre outras coisas, para estudos e pesquisas
inéditas sobre os negros e com relação a certos fenômenos ocorridos em
contextos religiosos, como transes e possessões. 124 Vale a pena salientar que

123Gilberto Freyre (1944) considerou o trabalho realizado por Ulysses como de Antropologia aplicada.
Mitsuko Antunes (2015, p. 54) afirma que o trabalho de Ulysses com os africanos no Brasil “o fez conhecido
também como antropólogo”. A esse respeito consultar Pereira, Campos & Lima (2017).
124O trabalho de Ulysses vai impulsionar a abertura de um campo de estudos inéditos sobre o negro,
podendo-se destacar o material publicado nos Anais do I Congresso afro brasileiro, além de outras obras,
como: Xangôs do Nordeste, escrita por Gonçalves Fernandes, em 1937; A Tese de Doutorado de René
Ribeiro, “The afrobrazilian cult-groups of Recife: a study in social adjustment” (defendida em 1947). Anos
mais tarde, em 1955, Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro, escrita por Waldemar Valente, etc. São estudos
pioneiros que influenciaram, por sua vez, outros trabalhos.

201
nessa época, a Liga Brasileira de Higiene Mental considerava que as práticas
espíritas induziam quadros patológicos, como histeria e loucura (Dalgarrondo,
2007). Esse viés foi defendido até o início dos anos de 1950, sobretudo por parte
do psiquiatra paulista Pacheco e Silva.125

Não se pode deixar de mencionar a produção científica por parte do autor,


que segundo Medeiros (Sd, p. 201), é ampla, multidisciplinar e original.
Medeiros (Sd) salienta a grande quantidade de artigos publicados, alguns
bastantes originais para a época, com temas pouco explorados pelos
profissionais da área. Muitas dessas publicações estão nas revistas criadas pelo
próprio Ulysses: os Arquivos de Assistência a Psicopatas e a Revista de
Neurobiologia.

A primeira teve a sua edição inicial em outubro de 1931, como parte das
reformas empreendidas no Hospital da Tamarineira. Ligada ao Serviço de
Higiene Mental, o médico José Lucena (1937), contemporâneo de Ulysses
Pernambucano, informa que esta revista serviu para tornar conhecidos os
resultados das investigações de um grupo de discípulos e que, a produção da
Escola Psiquiátrica tinha a marca e orientação de Ulysses Pernambucano.
Segundo Lucena (1937), essas produções não tinham apenas como foco a clínica
mental, mas o esforço de Ulysses Pernambucano

(...) sempre visou alargar tais limites, realizando uma verdadeira


integração das diferentes ciencias do espirito e afastando
deliberadamente as barreiras artificiais que separam esse dominio em
varios compartimentos estanques. (...) Contra essa estreiteza de
horizontes a Escola sempre reagiu. Sempre buscou Ulysses Pernambucano
promover a utilização de ciências conexas. (p. 22).

Esta revista publicou artigos variados sobre higiene mental, religiões


afro-brasileiras, a situação dos egressos do Hospital da Tamarineira, etc, e
contou com publicações de Ulysses Pernambucano, Pedro Cavalcanti, René
Ribeiro, Eulina Lins, Helena Campos, Dinice C. Lima.

A revista Neurobiologia, segundo Zuleica Campos (2001, p. 91) “veio


preencher uma lacuna deixada pelo desaparecimento de Arquivos de
Assistência a Psicopatas, extinta um ano após a sua demissão da

125 A esse respeito consultar Pereira, Campos & Lima (2017).


Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Tamarineira”.126 Neurobiologia é uma publicação trimestral, editada pelo órgão


oficial da Sociedade de Psiquiatria, Neurologia e Higiene Mental do Nordeste
Brasileiro e existe até hoje.

Nesse texto, procuraremos abordar o viés educador de Ulysses


Pernambucano, mas já diante mão alertando ao leitor que também daremos
ênfase a esse Ulysses humanista e plural que atuava de forma interdisciplinar
(Freyre, 1944; 1978; Cerqueira, 1945; Valente, 1959; Ribeiro, 1982). Um
Ulysses que não só contribuiu para a área da Educação, mas foi além, levando
seus ensinamentos enquanto educador para a Medicina, para a Psicologia, para
a Antropologia, para a Assistência Social, etc.

Ulysses, um homem que trafegou por distintas ciências

Nascido em 1892 no Recife, Ulysses Pernambucano de Mello Sobrinho, foi


estudar Medicina no Rio de Janeiro, graduando-se no dia 30 de dezembro de
1912, aos 20 anos de idade.127 Para colar grau, apresentou a Tese intitulada:
“Sobre algumas manifestações nervosas da heredo-syphilis contribuição
pessoal ao seu estudo” (Moreira, 2010, p. 23). Uma de suas primeiras vocações
foi a Psiquiatria, durante o tempo de estudante fez suas práticas no Hospital
Nacional de Alienados (Sá, 1975/1976), antigo Hospício Pedro II, considerado
um asilo modelo da época, onde contribuíram, entre outros médicos, Nina
Rodrigues (Antunes, 2015) e onde o renomado psiquiatra Juliano Moreira
trabalhou como diretor durante 23 anos (Moreira, 2010).128

Embora Ulysses tivesse adquirido uma prática importante como médico


generalista,129 o exercício da Psiquiatria propriamente dita se iniciará em 1916,
quando é nomeado médico assistente do Hospital de Alienados (Freitas, 2010,

126 Muitos arquivos foram queimados, conforme aponta René Ribeiro (1948).
127Muitos estudantes de Medicina iam estudar no Rio de Janeiro, onde foi fundada a primeira Faculdade
de Medicina do Brasil.
128 Jurandir Freire Costa (2006) salienta que a gestão de Juliano Moreira foi considerada bastante
inovadora para a Psiquiatria brasileira daquela época. Entre outras coisas, ele organizou a maior biblioteca
de Psiquiatria da América Latina. Ver também: Pereira; Campos & Lima (2017).
129Antes de ser psiquiatra, Ulysses exerceu a clínica médica no interior do Estado de Pernambuco, tendo
trabalhado com diversos tipos de problemáticas. Esse aspecto foi bastante abordado por Frederico
Pernambucano de Mello, seu neto, em ocasião de uma entrevista realizada com ele para fins de pesquisa
de Pós-doutorado em Recife, no ano de 2016.

203
p. 266), na época administrado pela Santa Casa de Misericórdia, no Recife. Um
ano depois começa a trabalhar no Hospital da Tamarineira.130

Durante a década de 1930, notadamente em 1931, Ulysses reformou o


Serviço de assistência a psicopatas. Inconformado com o modelo de atendimento
e com a estrutura asilar, ao assumir a direção do Hospital da Tamarineira,
implementou serviços considerados inovadores e mais humanitários, tanto
para os pacientes internos, quanto para aqueles que haviam recebido alta.131
Foram abolidos os calabouços e passaram a ser praticados diferentes tipos de
terapias, além de oficinas de arte, ludoterapia, aula de música, etc. 132

Influenciado pelo culturalismo e pela perspectiva humanista do primo e


amigo Gilberto Freyre, Ulysses filiou-se a importantes Movimentos que
aconteceram em Pernambuco, a exemplo do Regionalismo, liderado por Gilberto
Freyre e do qual participaram intelectuais de peso, como José Lins do Rêgo e
Manuel Bandeira.133 Juntamente com Gilberto, Pernambucano pôde agrupar
em torno dele médicos, psiquiatras, psicólogos, educadores, antropólogos,
folcloristas, etc. (Chacon, 1989).134

Nesse contexto, criou a Escola Psiquiátrica do Recife, também


denominada de “Escola Psiquiátrica do Nordeste”.135 Freyre (2009), no prefácio
à primeira edição brasileira de Sociologia da Medicina, escreve que a Escola de
Psiquiatria social de Ulysses Pernambucano foi pioneira no Brasil, destacando-
se pela “significativa realização neste setor” (p. 32). Ulysses influenciou toda
uma geração de médicos espalhados por todo país, embora a grande maioria se
concentre, sobretudo, na região nordeste (Sá Júnior, 2010).

A perspectiva humanista de Ulysses foi inovadora na Psiquiatria, sendo


um dos primeiros a praticar o que hoje se considera por Psiquiatria ampliada,
humanista, social ou Transcultural. René Ribeiro (1978) e Arnaldo Di Lascio

130 A esse respeito ver: Pereira; Campos & Lima (2017).


Serviço para doentes mentais não alienados – ambulatório e hospital aberto; 2. Serviço para doentes
131

mentais alienados – hospital para doenças agudas e Colônia para doentes crônicos; 3. Manicômio judiciário.
132 Ver: Pereira; Campos & Lima (2017).
133Ulysses chegou a participar do Congresso Regionalista do Recife, organizado em 1926 por Gilberto
Freyre. A esse respeito ver: Freyre (1978; 2009); Pereira (2017);
134 Sobre a Nova Escola do Recife, ver: Pereira (2017).
135 Denominação dada por Gilberto Freyre na Sorbonne. A esse respeito ver: Othon Bastos (2010, p. 257).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

(1991) utilizam o termo “Psiquiatria Transcultural,” ao considerar a relação da


saúde com as condições socioculturais. René atribui esse entendimento a
Ulysses Pernambucano.136

A chamada “Psiquiatria transcultural”, segundo Ribeiro (1978), leva em


conta não só o saber médico, mas igualmente os métodos tradicionais de cada
local, rompendo com a visão biológica e eugênica que imperava nos
pressupostos da Liga Brasileira de Psiquiatria, da qual faziam parte a grande
maioria de psiquiatras brasileiros na época (Costa, 2006).

Segundo Freire Costa (2006), “o pensamento psiquiátrico da Liga


Brasileira de Higiene Mental identificava-se à Psiquiatria nazista” (p. 43). Na
LBHM as principais ideias propagadas estavam diretamente relacionadas com
os princípios higienista e eugênicos. E em relação à eugenia, se pregava a
purificação da raça. O objetivo era eliminar aqueles que não se enquadrassem
nos padrões tidos como “adequados” (Boarini & Souza, 2008, p. 273).

Embora Ulysses estivesse ligado à LBHM, foi um dos poucos psiquiatras


que caminharam na “contra-mão” desses pressupostos, implementando no
Recife um modelo diferente do hegemônico, que priorizava a humanização da
assistência aos doentes mentais, como apontam Fabiana Pereira, Roberta
Campos e Janayna de Lima (2017). Esse modelo se incorporou à Liga
Pernambucana de Higiene Mental, criada por ele em 1933, dez anos depois da
Liga brasileira. Othon Bastos (2010a; 2010b.), afirma que era uma organização
autônoma e independente da Liga Brasileira.

Um dos aspectos que diferenciavam as duas ligas era o caráter


interdisciplinar da Liga Pernambucana. Através de profissionais de diferentes
áreas – médicos, sociólogos, juristas, professores, religiosos e outros – era

136 Apesar do pioneirismo de Ulysses, a literatura especializada considera que E. D. Wittkower (1899 –
1983), um Professor Emérito do Departamento de Psiquiatria da Universidade McGill, no Canadá, foi quem
sistematizou a Psiquiatria Transcultural, lhe atribuindo os seguintes conceitos: “1. Cultura é o conjunto
das formas de existir que distingue uma sociedade de outra; é o esquema de comportamento, de
pensamento, de sentimento, que se oferece ao filho do homem; produto da história, é transmitida
relativamente inalterada de uma geração à outra; 2) Psiquiatria Cultural é o ramo da Psiquiatria Social
que se ocupa da doença mental em relação ao ambiente, dentro dos limites de uma dada unidade cultural;
3) Psiquiatria Transcultural consiste na aplicação e conceitos colhidos no estudo precedente, de uma
cultura para outra” (Martins, 1962, p. 142).

205
possível abordar a doença mental sob uma perspectiva ampliada e não
puramente psiquiátrica (Brito, 2012).

É importante salientar que neste mesmo ano (1933) Freyre publica Casa
Grande & Senzala.137 Na época, uma das grandes influências que vigoravam no
Brasil era a de Nina Rodrigues, que via na mestiçagem uma das ameaças para o
desenvolvimento do País.

(... ) o mulato, por exemplo, seria inferior tanto ao branco quanto ao negro
que o constituíram; o mameluco, ao índio e ao branco; o cafuzo, ao negro e
ao índio. Para um país como o Brasil, cujo índice de mestiçagem é
altíssimo, isso constituía uma condenação inelutável e irrecuperável.
(Gomes, 2012, p. 170-171, como citado em Pereira, Campos & Lima,
2017).

Paralelamente às inovações na Psiquiatria, Ulysses também atuou na


Educação. Fez carreira acadêmica, ensinou em colégios e criou instituições, que
serviram de exemplo no País. A prática clínica, associada à docência e às
pesquisas, levaram-no a criar alguns serviços em prol de populações
consideradas “marginais”, portanto excluídas das sociedades, como
considerados “loucos”, os adeptos às religiões afro e as crianças com
deficiências, ou necessidades especiais na época chamadas “anormais”. A essas
últimas Ulysses desenvolveu um trabalho direcionado que em muito contribuiu,
sobretudo para as áreas da Educação e da Psicologia.

Ulysses e a Educação

O envolvimento de Ulysses Pernambucano com a área da Educação,


propriamente dita, ocorreu um ano depois de formado, em 1918 quando ele se
candidatou ao cargo de professor para reger a disciplina de “Psicologia e
Pedagogia” na Escola Normal Oficial do Estado de Pernambuco, instituição de
ensino dedicada à formação de professoras. Na ocasião apresentou sua tese,
intitulada: “Classificação das Creanças Anormaes. A Parada do
Desenvolvimento Intelectual e suas Formas; A Instabilidade e a Asthenia
Mental”. Segundo o historiador Isaías Pessotti (1984), a dissertação de Ulysses
Pernambucano é o primeiro trabalho publicado no país que leva em

137Freyre (1944) afirma ter lido e discutido com Ulysses trechos de Casa Grande & Senzala, antes mesmo
de o livro ter sido publicado.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

consideração as crianças portadoras de necessidades especiais. “Nessa


dissertação podem ser detectadas, embrionariamente, duas preocupações que o
viriam a caracterizar intensamente: a criança excepcional e a psiquiatria social.
Tais preocupações se tornaram linhas mestras de sua ação e de sua vida”
(Menezes, 2004, p. 5). É um dos trabalhos que vai ver a criança anormal numa
conjuntura biopsicossocial e, conforme aponta Figueira da Silva (2014), foi o
próprio Paulo Rosas quem considerou esse trabalho de Ulysses como “o marco
inicial da psicologia do Recife” (p. 18).

Mesmo sendo aprovado em primeiro lugar, Ulysses não assume o cargo.


Fica com 15 pontos, mas, por motivos políticos, o governador Manoel Borba
indica o segundo lugar, Gaspar Loyo, que teve a pontuação de 14,3, tendo
Ulysses ficado com o cargo de professor substituto. Após essa decepção, se
candidata, no mesmo ano (em 1918), ao cargo de professor das disciplinas
“Psicologia e Lógica” e “História da Filosofia” no Ginásio Pernambucano, uma
das grandes instituições para secundaristas (o atual Ensino Médio), à época.138
Mais uma vez passa em primeiro lugar e dessa vez assume o cargo, no dia 22 de
abril de 1919. Aí, se inicia a carreira docente do mestre.

Como já foi apontado, além de docente, Ulysses Pernambucano também


foi diretor do Ginásio Pernambucano e da Escola Normal Oficial, duas das
principais instituições de ensino no Recife. Nesta última, foi nomeado em 17 de
abril de 1923, cujo mandato durou 4 anos, durante o governo de Sérgio Loreto,
realizando grandes transformações na escola e consequentemente no ensino
como um todo. 139

Já no Ginásio Pernambucano, Ulysses Pernambucano foi nomeado diretor


em 4 de agosto de 1928, onde continuou realizando grandes inovações no campo
educacional, tendo ficado aí até 1930 (Freitas, 2017, p. 267). Nesse período, o
Ginásio passava por muitas dificuldades, “insuficiência de verbas, má

138Brito, H. T. S. (2012). A Odisséia de Ulysses Pernambucano: dos Primórdios ao Legado Histórico de um


Mito. In: Academia Pernambucana de Medicina Anais: 2011-2012: Sapientia in profundis/Academia
Pernambucana de Medicina (229-251). Recife: APM.
139Ulysses sempre esteve inspirado pelos ideais da Escola Nova (Lucena, 1978), movimento pedagógico
de grande importância na história da Educação no Brasil, que se baseava em preceitos liberais, em prol do
“ensino público e gratuito, sem distinção de sexo” (Fausto, 1996, p. 339, como citado em Melo, 2004, p.
187).

207
administração, queda na qualidade de ensino, falta de disciplina” (Rocha, p. 28.
2003). Rocha (2003) aponta que U. Pernambucano, já então reconhecido pelo
seu papel inovador na educação, foi chamado para tentar resolver os problemas
e as adversidades da instituição.

Dentre a reformas implementadas na Escola Normal, Ulysses


Pernambucano criou a “Caixa Escolar”, iniciativa que visava ajudar os alunos
pobres com o fornecimento de roupas, calçados, livros e passagens para o
deslocamento a escola. Outras reformas que merecem destaque foram: a
implementação da merenda escolar, já que muitos alunos faltavam as aulas em
decorrência da fome, além da assistência dentária, e do serviço de visitadoras
escolares.

Este serviço buscava uma interação maior entre a escola e a família do


aluno com intuito de diminuir a evasão escolar. Foi ainda iniciativa de Ulysses
Pernambucano, na Escola Normal, a instauração dos exames médicos nos
alunos, ao início do ano letivo. Visando mapear as condições anatômicas e
fisiológicas destes no que diz respeito à estatura, acuidade auditiva e visual, foi
possível mapear os déficits de cada um e alocá-los nas primeiras filas das salas
de aula, de acordo com as particularidades de cada aluno (Valente, 1959).

Durante essa época, notadamente em 1925, Ulysses criou o primeiro


Instituto de Psicologia do Brasil onde também ocupou o cargo de direção
(Freitas, 2010, p. 267) e a Primeira escola de Anormais do país (Medeiros, p. 6.
2004). Além de pioneiras, essas ações estimularam estudos e pesquisas sobre
anormalidade em crianças.

Ulysses, o Instituto de Psicologia e a Escola de Anormais

Tendo sido o primeiro Instituto de Psicologia do Brasil, criado com apoio


do então governo do Estado, tinha como objetivo inicialmente medir o nível
intelectual da população de Pernambuco. Para tanto, vários testes de
inteligência e de aptidão foram estandartizados, tendo destaque especial a
meticulosa revisão da escala métrica de inteligência, a de Binet-Simon-Terman,
além da utilização do Psicodiagnóstico de Rorschach antes mesmo da
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

industrialização de suas pranchas e as médias de estatura dos escolares de


Pernambuco (Campos, 1945).

O Instituto de Psicologia permitia aos profissionais aperfeiçoarem os


estudos sobre crianças normais e anormais. Uma das pessoas que trabalhou com
Ulysses nesse serviço foi Anita Paes Barretto que durante 10 anos se dedicou ao
estudo para adaptação dos testes à realidade de Recife.140 Estas experiências
comprovaram um quadro assustador: a existência, em Pernambuco, de um
grande número de deficientes mentais. Foi a partir destes dados que Ulysses
criou a Escola para Anormais (Campos, 1945), pondo em prática o
desenvolvimento de uma educação básica voltada para crianças excepcionais
ou “crianças anormais”, como eram chamadas na época. Esse termo “anormais”,
se referia a crianças com grandes déficits de aprendizagem. Tendo sido
considerado impróprio por Helena Antipoff (1992), foi substituído por
“excepcional”. Sua sugestão era não se tomar como foco o tipo de aluno que se
pretende estudar, mas sim “a qualidade de tratamento a que os submeterá” (p.
142, como citado em Melo, 2004, p. 187).

A criação dessa escola (de Anormais) teve dois posicionamentos: o


privado e o público.141 No primeiro caso, Medeiros (2004) aponta que se
tratava de um trabalho voluntário, por parte dos membros da Liga de Higiene
Mental que atendiam crianças sub e superdotadas.142

A partir da própria experiência na clínica psiquiátrica, Pernambucano


montou uma equipe para trabalhar, treinando e orientando mulheres que
vinham da Escola Normal (Paulo Rosas, 2001, como citado em Figueira Da Silva,
2014, p. 22). Se tratava de uma problemática pouco estudada, então
Pernambucano foi buscar meios para conduzir esse trabalho, através da
pesquisa científica.

140Aqui se percebe a grande influência do seu primo Gilberto Freyre, na valorização da cultura local da
região.
141Medeiros (2004, p. 8) aponta que o desdobramento do ensino público se deu somente em 1941, através
da criação da Escola Aires Gama, no governo do Interventor Federal em Pernambuco, Agamenon
Magalhães, “o dispositivo legal fixava as características do ‘Externato Primário para Anormais Educáveis’.
(Medeiros, p. 8. 2004. Grifo do autor).
142O Serviço de Higiene Mental criado por Ulysses foi o primeiro da América do Sul. A esse respeito ver:
Pereira; Campos & Lima (2017).

209
Pela falta de recursos, havia muita campanha nos meios de comunicação
da época, nos Jornais e nas Revistas, como os Archivos de Asistência a
Psicopatas e a Revista de Neurobiologia.

Na realidade, como esclareceu a sua primeira diretora, a Profª. Anita Paes


Barretto (1978), a escola para anormais funcionou durante alguns anos,
mais como uma classe especial do curso de Aplicação anexo à Escola
Normal ou uma “cadeira” do ensino primário, do que como uma escola
propriamente dita. (Medeiros, p. 7, 2004).

A Escola, como salienta Barretto (1992), não chegou a funcionar


imediatamente como entidade própria, mas suas finalidades foram preenchidas
pelo Instituto de Psicologia que funcionava em estreita relação com a
Assistência a Psicopatas e a Liga de Higiene Mental de Pernambuco. No Serviço
de Higiene Mental, o Instituto de Psicologia realizava reuniões sob o comando
de Ulysses Pernambucano, onde os membros apresentavam trabalhos, como por
exemplo: “A ilusão do peso entre os anormais (Maria Leopoldina); “As bases
científicas da orientação profissional” (Alda Campos); “A situação em França
dos retardados e atrazados e anormais (Anita Pereira da Costa); “O indivíduo e
o meio no ponto de vista da Higiene Mental” (Helena Campos).143 Estas
mulheres (Anita Pereira Costa, Maria Leopoldina, Alda Campos144, Helena
Campos145, Dinice C. Lima146, Eulina Lins147) sofreram um processo de
invisibilidade ainda maior que Ulysses Pernambucano no que diz respeito às
contribuições na área de Educação e Psicologia. Foram elas que estavam à frente
de muitas das pesquisas no primeiro Instituto de Psicologia que se tem notícia
no Brasil, já em 1925. Também foram elas que adaptaram para os moldes
brasileiros os testes de inteligência e aptidão, orientação profissional, de

143 Consultar “Assistencia a Psicopatas”. Diário de Pernambuco. Recife, 20 de abril de 1932.


144 Foi Monitora do Serviço de Higiene Mental e juntamente com Alda Campos taquigrafaram as
entrevistas com médiuns feitas por Gonçalves Fernandes para o artigo "Baixo espiritismo: Seus espiritos
e médiuns” que faz parte do livro Sincretismo religioso no brasil (1941).
145Foi Monitora do Serviço de Higiene Mental e escreveu em 1932 com Ulysses Pernambucano o artigo "As
doenças mentais entre os negros do Pernambuco” (1932).
146 Foi Monitora do Serviço de Higiene Mental e a primeira pesquisadora ligada a este órgão a escrever
artigo sobre os xangôs e o espiritismo em Recife. Publicou “As investigações sobre as religiões no Recife:
Espiritismo" juntamente como J. C. Cavalcanti Borges (1932).
147Foi Assistente Social do Serviço de Higiene Mental e escreveu juntamente com René Ribeiro os artigos
“Situação dos egressos do Hospital da Tamarineira” (1935a) e “Quatro anos de atividade do serviço de
higiene mental” (1935b).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Rorschach, fazendo ainda pesquisas sobre crianças especiais, e o vocabulário


destas em idade escolar.

Ainda sobre a Escola para Anormais, Ulysses institui um exame de


seleção adequado para se ingressar na instituição, modifica a logística do local,
organizando de forma metódica as salas de aula, institui o serviço de merenda e
plano dentário, etc. (Brito, 2012,). Outra iniciativa do autor é a criação do
serviço de Visitadoras Sociais, precursoras das atuais assistentes sociais:

Atuavam as visitadoras, então, como uma ponte entre a escola e a família


de alunos que se encontravam em dificuldades de aprendizagem, ou outros
problemas, abrindo assim a possibilidade de uma intervenção
adequadamente nos mesmos. Essa ação das visitadoras se dava nas
escolas primárias que ficavam nas adjacências da Escola Normal e que
serviam de estágio prático às formandas. É interessante observar,
também, que posteriormente Ulysses expandiria essa ideia das
visitadoras sociais, para os serviços de atendimento aos enfermos
mentais, no contexto das amplas reformas que o mesmo desenvolveria na
década de 30. (p. 4-5).

Como se pode observar, esse trabalho de Ulysses também levou em conta


o fator social presente nos transtornos mentais. É uma das primeiras ações
considerada preventiva e efetuada em conjunto com a comunidade (Lucena,
1978; Silveira, 1992, como citado em Melo, 2004, p. 187). Seu funcionamento
efetivo demorou em acontecer.

Somente na ocasião do décimo aniversário de morte de Ulysses


Pernambucano (5 de dezembro de 1953), a escola de Anormais ganhou uma
sede própria, na Rua Cônego Barata, 195 (Medeiros, 2004). Segundo o autor,
em 1964 a Liga de Higiene Mental fez um convênio com a APAE (Associação dos
Pais e Amigos dos Excepcionais), transferindo a responsabilidade.

“A sua intransigente defesa de minorias marginalizadas - crianças


excepcionais, doentes mentais, adeptos de seitas africanas – começa a
incomodar e é denunciado como "subversivo” (Medeiros, 2004, p. 2).
Considerado “comunista”, chega a ser preso em 1935, interrompendo todo o
trabalho que iniciara anteriormente, em parte comentado neste texto.

211
Figura 12: Ficha Policial de Ulysses Pernambucano
Fonte: Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano148

Nas palavras de Luis Cerqueira (1945), um dos seus assistentes:

O ambiente político era, então, muito tenso e o mais inocente gesto poderia
facilmente ser taxado de comunista; exatamente este qualitativo foi
atribuído ao inquérito, por um professor integralista, ainda na fase da
colheita de dados. Desolado, procurei o mestre [se refere a Ulysses] e lhe
comuniquei que a pesquisa ia fracassar. Ouvi dele, então, estas palavras
que nunca esquecerei: “uma pesquisa nunca fracassará, desde que iniciada
honestamente, não se levando resultados preconcebidos ou esperados.
Esta nossa investigação, si não puder ser levada a termo, nem por isso
deixará de fornecer uma conclusão – a de que o nosso meio ainda não
comporta uma pesquisa social...” Foram mais ou menos estas as palavras
do professor que mais tarde seria preso por haver orientado um “inquérito
tendencioso”. (p. 300, grifo nosso).

148Na foto aparece um formulário de registro geral das pessoas que eram presas. A ficha consta da foto de
Ulysses Pernambuco de frente e de perfil, bem como dados pessoais, características físicas, endereços,
nome de pessoas e de investigadores que o conhecem.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Pouco tempo depois de sair da prisão, em 1936, criou o Sanatório Recife,


onde trabalharam vários de seus assistentes: Pedro Cavalcanti, René Ribeiro,
Arnaldo Di Lascio, Jarbas Pernambucano, Gonçalves Fernandes. A Escola de
Psiquiatria de Pernambuco passou a funcionar ali (Hutzler, 1987). Naquele
espaço, Ulysses também implementou uma Escola para anormais (Antunes,
2015). Em 1937 é forçado a se aposentar, “por conveniência do regime” (Artigo
177 da Constituição de 1937).149

Durante a prisão, muitos dos Arquivos do SHM foram queimados (Ribeiro,


1948), assim como passaram a perseguir novamente os pais de santo, que foram
presos e seus terreiros, destruídos (Pereira; Campos & Lima, 2017).

Ao se afastar do SHM, Ulysses passou a divulgar as suas ideias, através


de conferências pelo Nordeste do Brasil.150 Segundo aponta Chacon (1989),
muitas das conferências foram proferidas por Pernambucano juntamente com
G. Freyre. Numa reunião na Paraíba, em 1938, Ulysses salienta a importância
da interdisciplinaridade, chamando atenção para a perspectiva ampliada da
doença (Sá, 1975/1975, p. 43). Em 1940, participa da 2ª. Reunião da Sociedade
de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental em Aracaju, inaugurando um
Serviço de Assistência a Psicopatas em Sergipe, cujo modelo foi inspirado no do
Recife. Para a ocasião, convida Gilberto Freyre que pronuncia a “conferência
inaugural151” conforme aponta René Ribeiro:

(...) o convite transmitido ao sociólogo conterrâneo Gilberto Freyre para


pronunciar a conferência inaugural do Congresso de Aracaju visou por no
devido relevo, através da palavra autorizada de um dos mais lúcidos
estudiosos dos fatos sociais neste país e nesta região, a face social da
psiquiatria nas suas relações tão íntimas com a psicologia social e com
a sociologia. (1943, p. 6, grifo nosso).

Considerações Finais...

149 Segundo Vamireh Chacon (1989, p. 90), tratava-se de um tipo de punição que atingiu muita gente
durante o Estado Novo.
150 Estiveram na Paraíba, no Rio Grande do Norte, em Alagoas, em Sergipe, na Bahia e em Pernambuco.

151 A conferência é intitulada “Sociologia, Psicologia e Psiquiatria”, posteriormente é publicada na Revista

de Neurobiologia, em 1941. Entre outras coisas, Gilberto menciona a contribuição de Ulysses


Pernambucano para a Medicina social do Brasil. Também aponta a importância da interdisciplinaridade e
do aspecto regional na prática dos profissionais de saúde.

213
Como pôde ser observado ao longo do texto, o dinamismo de Ulysses
Pernambucano foi tamanho que, inicialmente, chegou a nos confundir. Parecia-
nos impossível que alguém tivesse conseguido fazer tanta coisa ao mesmo
tempo, mas era real. Para facilitar o trabalho dessa escrita, optamos, de certa
forma, pela perspectiva cronológica na trajetória profissional do autor, pois
acreditamos que tanto nos facilitaria como autoras, quanto o texto ficaria mais
accessível ao leitor.

Depois de tantas reflexões, nos foi possível perceber que embora Ulysses
tenha trabalhado com diferentes segmentos, como a docência, a pesquisa, os
cargos administrativos e a própria prática clínica, ele conseguiu deixar sua
marca por onde passou.

O legado de Pernambucano é imenso e inesgotável, aqui, nessas linhas,


tentamos mostrar e analisar apenas uma parte dele: o educador. Ora, não nos
foi possível prender-nos ao âmbito da Educação, pois para nós, autoras, ficava
claro, que Ulysses levou a Educação por onde passou, desde a Medicina, a
Psicologia, a Antropologia, etc.

Ulysses abre uma discussão mais ampla, que nos faz pensar sobre o
contexto da sociedade atual. A interdisciplinaridade presente na prática do
autor contradiz o discurso da especialização, cada vez mais forte.

O educador, médico, psicólogo, antropólogo, enfim, esse “Homem plural”,


se assim podemos chamá-lo lutou pelas minorias, foi de encontro a preceitos
hegemônicos, tendo defendido o não internamento numa época em que se
costumava levar ao hospício as pessoas que saíssem dos “padrões” impostos.
Como aponta Tarelow (2013, p. 14), não eram raros os casos de mulheres
encaminhadas ao hospício “por desrespeitarem os maridos”, assim como
“crianças mau comportadas, prostitutas, homossexuais, filósofos, artistas,
mendigos e vagabundos”.

Sua luta pelos mais necessitados o levou a prisão, alguns anos depois, veio
a falecer, aos 51 anos de idade. 152 Enquanto pesquisadoras, precisamos chamar
a atenção para autores, como Ulysses Pernambucano para que não desapareçam

152 Freyre (1944) atribui as causas da morte à prisão e à aposentadoria forçada.


Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

das nossas referências e, essa é nossa tarefa, publicar e dar voz aqueles que vão
ficando esquecidos, afinal eles precisam ser lembrados, e como!

Finalizamos esse ensaio citando Anita Paes Barreto (1992):

Embora não seja o aspecto mais relevante da obra do professor Ulisses


Pernambucano, quero salientar o pioneirismo de sua contribuição para o
estudo e a prática da educação especial no Brasil, a partir da tese
apresentada ao concurso para a Escola Normal, em 1918. Pioneirismo por
vezes contestado, atribuindo-se a Helena Antipoff os primeiros passos no
mesmo sentido. Reafirmado, no entanto, pela grande educadora, criadora
no Brasil do Instituto Pestalozzi - do qual se originaram as APAEs - e de
tantas outras iniciativas, de inquestionável alcance pedagógico e
psicológico: reafirmação que escutei pessoalmente da professora Helena
Antipoff, em seminários e congressos ocorridos no Sul e Sudeste do país,
dos quais igualmente participei.153 (p. 17).

Figura 13: Ulysses com Anita Paes Barreto154


Fonte: Acervo Diva de Mello

153 http://www.scielo.br/pdf/pcp/v12n1/03.pdf.
154Descrição da foto: Em um jardim, com uma fonte ao centro, as treze pessoas pousam juntas para a foto.
Alguns e algumas sorridentes; outros mais sérios. Todos os homens estão de termo e gravta, e as mulheres
de saia ou vestido. Legenda da foto: Da esquerda para direita, terceiro na foto: Gilberto Freyre. Da direita
para esquerda: José Antonio Gonsalves de Mello (filho de Ulysses Pernambucano), Anita Paes Barreto
(assistente de Ulysses Pernambucano), Lourdes Paes Barreto (irmã de Anita Paes Barreto), Albertina
Carneiro Leão (de vestido preto, esposa de Ulysses Pernambucano). Atrás de Albertina Carneiro Leão, de
óculos, Ulysses Pernambucano. Do lado de Albertina Carneiro Leão, Nair Seixas, atrás dela seu marido Luis
Seixas. Do lado de Nair Seixas Jarbas Pernambucano (filho de Ulysses Pernambucano). Autoria da foto e
data desconhecidos. Local: Solar de Apipucos, Casa de Gilberto Freyre.

215
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Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

CAPÍTULO X

Arthur Ramos (1903-1949) e as “creanças problemas” nas


escolas do Rio de Janeiro
Daniela Leal & Andrea Soares Wuo

Figura 14: Arthur Ramos


Fonte: Fundação Joaquim Nabuco155

155Descrição da foto: Com um vasto cabelo escuro, de óculos, sorridente, Arthur Ramos faz pose
segurando o topo de uma cabeça de resina, com as divisões cerebrais demarcadas.

221
Certamente não devemos alimentar a illusão que esses novos
methodos sejam definitivos, e infalliveis essas theorias. Elles nada
mais são que “hypotheses de trabalho” (para empregar uma
expressão consagrada), reflexos do espirito scientifico da epoca, a
nos impulsionarem para novas pesquisas. [...] Se a sciencia de
nossos dias infirma a exactidão de certos postulados da época [...],
nem por isso podemos deixar de reconhecer quão fecundos foram e
continuam a ser os resultados de suas investigações156.
Arthur Ramos (1940, p. 29)

Durante estudos ao acervo Arthur Ramos, na Biblioteca Nacional, no Rio


de Janeiro, para além do encantamento com o número de documentos que
revelam sua inquietude intelectual diante das explicações biologizantes, tão
comum em seu tempo, observa-se, principalmente, que “a história da
psiquiatria, psicanálise, psicologia, medicina legal, educação infantil, pedagogia,
não pode ser escrita em nosso país sem a leitura dos documentos escritos,
recebidos e lidos por Arthur Ramos” (Barros, 2004, p. 10). Isto porque, sua
produção e seus referenciais teóricos além de se tornarem de grande valor à
história da sociologia e da antropologia no Brasil, revelam que seus estudos
sobre métodos de tratamento às pessoas com problemas emocionais, assim
como sobre as influências “deformantes” do meio social e cultural nas chamadas
“crianças-problemas” e/ou “anormais” foram uma das primeiras tentativas de
olhar o sujeito por ele mesmo, em sua totalidade, e não unicamente por sua
condição.

Embora, como descrito por Garcia (2010), os postulados científicos de


Arthur Ramos tenham forte influência do positivismo, o mesmo “não concebia
seus trabalhos como a última palavra sobre os temas pelos quais se debruçou”
(p. 95). Pelo contrário. Como descrito na epígrafe inicial deste capítulo,
“certamente não devemos alimentar a illusão que esses novos methodos sejam
definitivos, e infalliveis essas theorias”, todavia, no momento em que foram
elaborados e aplicados mostraram-se, a nosso ver, importantes aos primeiros

156As citações referentes as obras de Arthur Ramos serão escritas tal como em seus livros, mantendo a
escrita da Língua Portuguesa de sua época.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

modelos de atendimento às crianças com dificuldades escolares, como ver-se-á


a seguir.

Uma breve biografia

Nascido na zona canavieira de Alagoas, mais precisamente na cidade de


Pilar (atualmente Manguaba), no ano de 1903, Arthur Ramos de Araújo Pereira
teve seu primeiro trabalho publicado aos 15 anos de idade. Tratava-se de uma
carta escrita em letra de forma a seu irmão, Nilo Ramos, redator-chefe do jornal
O Pilar.

Filho do também médico Manoel Ramos de Araújo Pereira e de Ana Ramos


de Araújo Pereira, desde cedo teve contato com muitos livros, especialmente na
biblioteca pessoal de seus pais. De acordo com Gusmão (1974, p. 23), Arthur
Ramos refugiava-se no sótão, onde ficava seu dormitório, passando “horas a fio,
deitado na rede, lendo junto à estantezinha onde guardava os livros preferidos”.
Ainda segundo Gusmão, além das leituras realizadas diariamente, Ramos
acompanhava o pai nas visitas e consultas – o que lhe deixava muito
impressionado.

Iniciou seus estudos primários em Pilar, completando-os em Maceió, no


Colégio São João e no Liceu Alagoano. Em 1921, ingressou na Faculdade de
Medicina da Bahia e, aos 23 anos de idade, defendeu sua tese de doutorado,
inspirada nos clássicos estudos de Levy-Brühl, Freud e Jung. Publicada no
mesmo ano (1926) pela Imprensa Oficial do Estado da Bahia, com o título
Primitivo e loucura157, a mesma recebeu elogios tanto de Sigmund Freud quanto
do famoso psiquiatra suíço Paul Eugen Bleuler. Outro fruto de seus estudos foi o
Prêmio Alfredo Brito, em 1927, em virtude de seus estudos sobre medicina legal,
na Faculdade de Medicina.

157Dividida em 5 capítulos, a tese de Arthur Ramos tratava de assuntos como: “esquizofrenia, paranoia,
distúrbios psíquicos da linguagem do alienado e do primitivo, além de propor algumas considerações de
natureza conclusiva [a respeito dos temas]” (Psicologia Ciência e Profissão, 2002, não paginado).

223
Figura 15: Aula de anatomia na Faculdade de Medicina da Bahia
Fonte: Biblioteca Nacional158

Logo após a conclusão do curso de medicina, Arthur Ramos exerceu


diversas atividades em instituições baianas: no Hospital São João de Deus, como
psiquiatra, estudou o fenômeno da possessão entre os negros da Bahia, e no
Instituto Nina Rodrigues, como médico-legista, “desenvolveu atividades
científicas, escrevendo sobre criminologia, medicina legal e psicopatologia
forense” (Gaspar, 2010, não paginada). De acordo com Garcia (2010),

Desde esta época já começava a despontar seu interesse pelo estudo


do comportamento humano. O interesse de Ramos pelos seus
pacientes ia muito além do diagnóstico médico. Segundo ele o
profissional da medicina em contato direto com os pacientes e as
famílias teria uma função mais ampla do que meramente medicar e
indicar terapias. (p. 75).

Para Arthur Ramos, o médico precisava penetrar na intimidade das


famílias e refletir sobre a origem de seus problemas, para tentar resolvê-los,
tanto como melhorar a saúde dos integrantes da mesma.

158 Descrição da foto: Na foto estão 7 estudantes de medicina e dois professores do curso atrás de uma
mesa com um corpo deitado de bruços, para estudo. Todos os estudantes estão vestidos de jaleco branco
enquanto os professores estão de terno preto com gravata na mesma cor e camisa branca. Legenda da
foto: Aula de anatomia na Faculdade de Medicina da Bahia, onde Arthur Ramos estudou de 1922 a 1926.
Arthur Ramos, da esquerda para à direita, é o segundo e ao seu lado encontra-se a psiquiatra Nise da
Silveira e, penúltimo à direita, o sanitarista Mário Magalhães da Silveira.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Posteriormente, no ano de 1928, além de ser nomeado como médico


legista do serviço Médico do Estado da Bahia (atual Instituto Nina Rodrigues),
Arthur Ramos defendeu sua tese de livre-docência, pela Faculdade de Medicina
da Bahia, em Clínica Psiquiátrica: A sordície nos alienados: ensaio de uma
psicopatologia da imundice.

Ainda durante o período que viveu na Bahia, Ramos participou da


Sociedades de Medicina e Psicanálise, onde eram debatidos casos clínicos e os
avanços na área. Nesse período e nos próximos que viriam:

(...) Ramos viveu uma fase de intensa atividade intelectual,


produzindo mais de 458 trabalhos (publicados e inéditos) que
incluíam livros, artigos em periódicos e jornais. Além disso, havia
uma quantidade considerável de palestras, cursos e conferências
que realizou no Brasil e no mundo. Para um país sem muita tradição
universitária, distante dos grandes centros intelectuais, trata-se de
uma atividade intelectual notável. Nesta fase de sua vida o médico
alagoano publicou: Estudos de psicanálise; Freud, Adler e Jung;
Psiquiatria e psicanálise; O negro brasileiro; Folclore negro no Brasil;
Introdução à Psicologia Social; Loucura e crime; As culturas negras
no Novo Mundo; A criança problema; Introdução à antropologia
brasileira (2 volumes) e A renda de bilros em parceria com a mulher
Luísa Ramos. Algumas destas obras foram traduzidas para outros
idiomas como o inglês, o alemão, o espanhol e o tcheco. (Garcia,
2010, pp. 77-78).

Em 1934, ao ser convidado por Anísio Teixeira para assumir a direção da


Seção Técnica de Ortofrenia e Higiene Mental do Departamento de Educação e
Cultura do Distrito Federal, Arthur Ramos transferiu-se para o Rio de Janeiro.
Sua produção tornou-se ainda mais intensa e diversificada, principalmente, com
a inclusão de temas como a educação, a higiene mental e a psicologia social. Em
1935, com a criação da Universidade do Distrito Federal, assumiu a cadeira de
Psicologia Social e, em 1937, a cadeira de Antropologia na Faculdade Nacional
de Filosofia.

Além de se tornar referência obrigatória para aqueles que queriam


estudar o negro brasileiro, Arthur Ramos passou a ser procurado por vários
pesquisadores estrangeiros que aqui chegavam, assim como “recebia e enviava
estudantes para estudos antropológicos, [e] trocava correspondências com
importantes estudiosos do mundo” (Garcia, 2010, p. 78).

225
Vale destacar que, embora sua formação inicial fosse em medicina legal,
Arthur Ramos nunca deixou de se inteirar das problemáticas sociais e
científicas de seu tempo, afinal, ao longo de sua vida, sempre “procurou se
desvencilhar de rígidos conceitos e posturas teóricas que conduziam a
explicações fechadas e ortodoxas” (p. 81).

Apesar da demissão de Anísio Teixeira da pasta da Educação, em 1937.


Arthur Ramos permaneceu no Serviço de Higiene Mental até 1939 quando, com
a instalação do Estado Novo e a perseguição política159, o levaram a pedir para
sair, principalmente por descordar das ideias políticas que estavam sendo
instauradas. A partir de então, passou a se dedicar intensamente tanto à luta
política contra o racismo quanto à reavaliação de sua obra, valorizando a
diversidade cultural do Brasil.

Diante de sua trajetória, de seu reconhecimento como autoridade


intelectual e referência para muito trabalhos, no ano de 1949, Arthur Ramos foi
convidado a assumir, como primeiro diretor, o Departamento de Ciências
Sociais da UNESCO. Cargo este, segundo Garcia (2010), que além de projetá-lo
ainda mais internacionalmente, lhe permitiu representar o Brasil em um órgão
internacional.

Mais do que uma importante conquista em meios aos conflitos pela


hegemonia na área, este cargo também representava a força de um
compromisso moral (Bastos e Rêgo, 1999) com as camadas mais
pobres e sofridas do seu povo. A perspectiva humana e
humanizadora do intelectual que Fiche (1999) previu ocorreria
quanto este assumia para si a tarefa de “elevação intelectual e moral
dos outros homens” (Bastos e Rêgo, 1999, p. 18). Isto se fazia por
meio de uma dedicação constante à ação educativa. Esta seria a mais
alta missão humana. Ramos e seu grupo de intelectuais nordestinos,
especialmente, tinham um compromisso maior do que pesquisar e
comunicar ideias. Mais do que isso se viam como verdadeiros
educadores capazes de transformar a realidade pelo ensino e
aplicação da ciência. (p. 89).

Em seus últimos dias de vida, de agosto a outubro de 1949, junto a Jaime


Torres Bodet, Jean Piaget, Maria Montessori, Bertrand Russell, Julien Huxley e
Otto Klineberg, Ramos, dedicou-se

159 Chegou a ser preso algumas vezes e fichado no DOPS.


Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

(...) às tarefas de aplicação da ciência ao processo de reconstrução


do mundo do pós-guerra. Para aquele grupo, o objetivo maior do
órgão era a utilização dos recursos educacionais de superação da
ignorância e da violência dos preconceitos raciais, a criação de
instituições de controle da fome (FAO), de promoção de saúde
(OMS), para se estabelecer a igualdade entre os povos,
concretizando o primeiro ideário da ONU, a Carta dos Direitos
Humanos. (Barros, 2004, p. 15).

Infelizmente, no dia 31 de outubro de 1949, em Paris, vítima de um edema


pulmonar, a vida de Arthur Ramos se esvaiu precocemente, juntamente com a
maioria de seu legado intelectual.

A Escola Nova e o Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental: as principais


experiências de Arthur Ramos com a educação

Boa parte das experiências de Arthur Ramos com a educação está


relacionada ao seu trabalho com o Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental
(S.O.H.M), junto ao Instituto de Pesquisa Educacionais (IPE), do Departamento
de Educação do Distrito Federal e, posteriormente, à Secretaria de Educação –,
durante a reforma Anísio Teixeira.

Nesse período, a chamada Escola Nova, fundada em um ideário liberal,


tinha como princípio que, “[...] a escola deveria atuar como um instrumento
para a edificação da sociedade por intermédio da valorização das qualidades
pessoais de cada indivíduo” (Abrão, 2001, p. 112). E, nesse sentido, fazia-se
essencial dar ênfase nas “peculiaridades da criança como um ser em
desenvolvimento, diferenciado do adulto e com uma lógica de pensamento
própria” (p. 112). Tal postura estava sendo adota porque, até esse momento, em
muitas áreas do conhecimento existia certa discriminação ao campo de estudo
relacionado à infância, principalmente, ao formularem todas as leis para “o
branco, adulto e civilizado”, como questionava Arthur Ramos.

Para o médico alagoano, “uma das funções mais importantes da escola e


da higiene mental era garantir a plena integração da criança à sociedade”
(Garcia, 2010, p. 98). E, ao coadunar com a reforma Anísio Teixeira, os
S.O.H.M’s forneceriam subsídios tanto para repensar o trabalho pedagógico
desenvolvido nas escolas quanto para reavaliar as ações do Departamento de

227
Educação. Afinal, a principal preocupação de Arthur Ramos era “não atravessar
o trabalho pedagógico desenvolvido em sala de aula” (p. 99), dizendo o que o
professor deveria fazer, mas, sim, “garantir o apoio necessário para que os
processos de ensino e aprendizagem transcorressem de forma adequada” (p.
99). Nesse sentido, ele creia que se fazia necessário estudos cientificamente
embasados e precisos para resolver os problemas identificados.

Surge, então, a possibilidade de a escola tornar-se um espaço fecundo à


introdução da psicologia social e da psicanálise no meio educacional; pois ao
compreender que a escola era um processo de socialização que visa “integrar o
indivíduo na comunidade, recapitulando os resultados da experiência social e
transmitindo-lhe os padrões do grupo social e cultural a que [pertencia]”
(Ramos, 1952, p. 252 como descrito em Garcia, 2010, p. 100), far-se-ia
importante compreender a escola como “um instrumento consciente de
aperfeiçoamento social” (p. 100). Consequentemente, compreender-se-ia “os
debates encarniçados sobre a finalidade da escola e o problema agudo da
pedagogia dirigida”, assim como o “trágico conflito da hora presente entre a
educação para os quadros democráticos, e a educação ‘dirigida’, para Deus, para
a Máquina ou para o Estado Totalitário (p. 100).

Ficando evidente, portanto, o apoio de Arthur Ramos tanto aos ideais


escolanovistas presentes na reforma Anísio Teixeira, quanto suas críticas ao
Governo Vargas – um governo marcado por períodos de liberdade e democracia,
mas também pela rígida centralização ao poder.

Tratava-se de um momento único na história brasileira em que as


possibilidades de avançar e adentrar na modernidade industrial e
urbana era possível, como também era admissível a manutenção de
um modelo tradicional de educação conduzido pela mão forte da
ditadura e apoiada pela Igreja Católica que como vimos firmou-se
como a alternativa adotada. A tão sonhada sociedade industrializada
também se implantou, porém timidamente democrática,
extremamente desigual e com uma educação repleta de rupturas, de
reformas infrutíferas e de precários resultados. (Garcia, 2010, p.
101).

Esboçando-se, assim, uma nova etapa que marcaria a inserção de novas


teorias no pensamento científico brasileiro, bem como o emprego de
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

conhecimentos teóricos sobre a criança, em uma proposta inovadora no


trabalho com a Higiene Mental Escolar.

Rompeu-se a imagem da criança como ser frágil que deve ser o tempo
todo vigiada, controlada e se necessário punida. Os meninos e
meninas eram vistos como seres ativos e que deviam ser estimulados
para desenvolverem plenamente suas habilidades mecânicas e
intelectuais. Nas escolas a ordem era substituir a mera transmissão
de conhecimento por atividades que permitissem aos pequenos
interagir entre si e como o conhecimento. O foco deixa de ser o ensino
e passa a ser a aprendizagem. O papel do professor também sofreria
uma mudança significativa, na medida em que ele deixaria sua
posição de detentor do saber para assumir a função de condutor do
educando. Ele, o mestre, deveria propor desafios e só intervir nos
momentos necessários, mas sempre com o compromisso de
despertar para a aprendizagem. (p. 102).

Desta feita, pode-se dizer que os ideias e os textos escritos pelos médios
desse período, incluindo os de Arthur Ramos, surpreenderam. Isto porque, além
da capacidade dos mesmos de rápida interação com o “que estava sendo
pensando e experimentado do outro lado do mundo, principalmente na Europa
e Estados Unidos” (p. 102), seus escritos também apresentavam ideias que
representavam a contemporaneidade: fossem nas publicações pedagógicas do
país, fossem nos textos das propostas de reformas educacionais. E, para atender
a tais nobres objetivos propostos, fez-se essencial a implantação de um sistema
de ensino completo, desde a pré-escola até o ensino superior, com base no ideário
do Movimento Escola Nova, encabeçado por Anísio Teixeira. O que não foi nada
fácil, pois:

Os primeiros resultados das avaliações indicavam que havia um


número muito alto de retenções e abandono da escola após os três
primeiros anos de escolaridade. Testes de Q.I. (quociente de
inteligência) aplicados neste período indicavam que mais da metade
dos alunos possuíam algum tipo de deficiência mental. Como os
testes se revelaram incapazes de avaliar o real desempenho dos
alunos foram deixados de lado e novas medidas foram anunciadas.
Entre elas a unificação dos procedimentos didáticos o que gerou
muitas contestações e a transformação do Instituto de Educação, que
formava professores em nível secundário, em Faculdade de
Educação dando ao futuro educador uma formação superior [...].
(Garcia, 2010, p. 106).

229
Diante dessa realidade e, principalmente, devido a cumplicidade entre
Anísio Teixeira e Arthur Ramos com os ideais dessa nova educação que se queria
e se propunha, assim como aos enfrentamentos dos problemas que surgiam, em
1933, o primeiro convidou o segundo a assumir a chefia da Seção de de
Ortofrenia e Higiene Mental. A escolha se deu porque, ao ver de Anísio Teixeira,
Arthur Ramos assim como outros pensadores brasileiros,

[...] inauguraram uma nova forma de conceber a infância [...].


[Consequentemente, o] primeiro passo para uma pedagogia nova
seria conhecer as particularidades das crianças para
posteriormente propor estratégias de aprendizagem que
estivessem de acordo com o seu nível de entendimento. (Garcia,
2010, p. 112).

Nesse sentido, visando proporcionar tanto o atendimento às crianças em


idade escolar e suas famílias, quanto oferecer formação aos professores, foram
criadas, no Rio de Janeiro, seis Clínicas de Orientação Infantil, distribuídas em
seis escolas da cidade. Como descrito por Abrão (2008):

A finalidade destes serviços não estava centrada unicamente no


atendimento àquelas crianças que apresentavam dificuldades no
âmbito escolar, [...] deveria abranger também um trabalho
preventivo. Neste sentido, figuravam também como metas da
Seção de Ortofrenia e Higiene Mental os seguintes objetivos:
formação mental do professor, educação do público através de
divulgação de informações por jornais e rádios, e formação e
orientação dos pais por intermédio de programa educativo
transportado ao lar. (pp. 42-43)

Pode-se dizer, assim, que foi por intermédio da proposta inicial de Arthur
Ramos que se conseguiu, “de forma pioneira no Brasil, um modelo de
atendimento à criança com dificuldades escolares [...]” (Abrão, 2008, p. 38),
bem como um paradigma às políticas públicas de educação da segunda metade
do século XX e a difusão de novas teorias.

Para a criação das Clínicas de Orientação Infantil, Arthur Ramos (1955)


partiu dos pressupostos iniciais de como eram vistos os trabalhos realizados
pela Seção de Ortofrenia e Higiene Mental – “estabelecer melhores meios de
assistência ao insano da mente e a apresentar técnicas de prevenção das
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

doenças mentais” (p. 5) –, para, então, compreendê-la como um campo de ação


muito mais vasto, a ser aplicado, também, à educação.

Em suas palavras, “A higiene mental [era] feita especialmente para os são


de espírito, ensinando-os a viver em sociedade, evitando e corrigindo os
conflitos e desajustamentos psíquicos [...]” (Ramos, 1955, p. 5). Ou, como ainda
complementa, “a higiene mental [era] um capítulo da higiene geral, uma parte
desta medicina do futuro, que previne a doença, forma funcionários da saúde,
em vez de médicos-funcionários da doença” (p. 7, grifo do autor). Visando,
assim, o ajustamento da personalidade humana não somente para o sujeito, em
suas particularidades, mas uma higiene mental que visava seu ajustamento aos
círculos de vida, considerando o ser humano “nos seus aspectos integrais como
uma personalidade atuante nos seus círculos de sociedade e de cultura” (p. 15),
daí sua extensão à educação.

A higiene mental penetra em todos êsses círculos. A sua atividade


é uma atividade que podemos chamar de ‘intersticial’. Ela reparte
os seus métodos de estudo e ação com várias ciências, entre as
quais se destacam a psicologia humana normal e patológica, a
sociologia, a psicologia social e a criminologia. (p. 16)

E, nesse sentido, o propósito da criação das Clínicas de Orientação Infantil


encontrava-se na conservação da saúde mental da criança e na prevenção da
eclosão de distúrbios nervosos e mentais na idade adulta, pois, segundo Ramos
(1955), o adulto já é um ser formado, com seus erros do passado e suas
incompreensões. “Para ajustá-lo à sociedade, [torna-se] necessário muitas
vêzes provocar um desmonte na máquina complexa das suas emoções, dos seus
instintos, da sua inteligência, para ajustá-los a novas situações” (p. 17). Quando
se pensa na criança, a situação é diferente, pois acredita-se que se pode
“prevenir o aparecimento dêsses conflitos e dêsses desajustamentos” (p. 17)
antes de sua instauração na fase adulta.

Outro pressuposto, ou melhor, outro conceito de fundamental


importância para Arthur Ramos que contribuiu para repensar as práticas
adotadas, bem como estruturar as práticas que seriam incorporadas à Higiene
Mental Escolar, consequentemente às Clínicas de Orientação Infantil, foi o
conceito de “anormal escolar”. Que, segundo Ramos (1939), somente foi

231
transformado e/ou ganhou outro olhar a partir do movimento da Higiene Mental
Contemporânea. Isto porque, ao longo do tempo e da história, o termo “anormal
escolar” ganhou inúmeras classificações. Cada autor, cada escola, em particular,
tinha a sua classificação:

Para uns, ‘anormaes’ seriam apenas os ‘fracos de espirito’,


divididos, como na Allemanha e na Suissa, em ‘educaveis’ e
‘ineducaveis’ (bildungsfähige, bildungsunfähige). Outros, como
na Belgica, incluiam na rubrica de anormaes as creanças com
disturbios da linguagem, os surdos mudos, os cegos, e os
‘atrazadospedagogicos’, e assim por diante... (p. XVI)

Tal classificação permitiu verificar, no entanto, um enorme percentual de


crianças classificadas como “anormais”, independente de possuírem ou não
alguma “anomalia mental”, como se denominava na época.

Inconformados com essa “anormalização” das crianças pelo meio, os


novos higienistas mentais passaram a discutir o aspecto social de tal
classificação, assim como seu uso nas escolas, como uma forma de rotular à
criança: “o eixo de estudo deslocou-se da creança ‘anormal’ para o da creança
‘normal’. [Afinal,] sabemos como em medicina organica e mental, são
imprecisos os limites entre o normal e o anormal. O conceito de sanidade physica
e mental é relativo” (Ramos, 1939, p. XVIII). Passando, assim, a pensar nos
aspectos sociais: ajustamento ou desajustamento social. O interesse, portanto,
deixa de ser no estudo dos “anormais” para ser no “estudo do psychismo normal
e das influencias deformantes do meio social e cultural” (p. XIX). Cria-se, assim,
o conceito de “criança problema”.

Nas palavras de Ramos (1939), “Creou-se o conceito de ‘creança


problema’, em substituição ao termo pejorativo e estreito de ‘creança anormal’,
para indicar todos os casos de desajustamento caracterologico e de conducta da
creança, ao seu lar, à escola e ao curriculo escolar” (p. XXI). Demonstrando,
assim, que o campo de ação da Higiene Mental Escolar era muito mais amplo do
que se imaginava.

O seu trabalho é duplo: preventivo e correctivo. Ella estuda o


desenvolvimento e formação de habitos na primeira e segunda
infancia, acompanha o escolar no periodo da escola primaria, assiste
ao desabrochar da adolescencia, prepara o jovem sêr para a perfeita
adaptação á vida adulta. (p. XXII).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Ou seja, em um período da história em que as explicações acerca dos


denominados desajustamentos de crianças centravam-se no modelo médico,
Arthur Ramos inova em, pelo menos, dois quesitos. Em primeiro lugar,
problematiza, diante da ínfima produção de conhecimento sobre a infância no
Brasil da época, as noções de normalidade e anormalidade no desenvolvimento
infantil. Em segundo, rompe com a eugenia ainda remanescente em alguns
ramos da Higiene Mental.

Para Dante Moreira Leite (1992, p. 239), o pioneirismo de Arthur Ramos


justifica-se por sua apropriação do conceito de cultura e a superação dos
discursos raciais ainda em voga:

Arthur Ramos [...] foi entre nós o grande divulgador do novo


conceito de cultura, um dos grandes adversários da doutrina da
superioridade racial dos brancos, o estudioso que não temia
descrever os sofrimentos do negro brasileiros [....]. Para quem foi
pioneiro, num país em que só na década de 1930-1940 se iniciavam
os estudos de sociologia e antropologia – e onde Oliveira Viana era
celebrado como sociólogo –, foi realmente uma tarefa extraordinária

Suas concepções não foram diferentes ao pensar a criança. Em “A Criança


Problema” (1939), assim como em “A saúde do espírito” (1955), Arthur Ramos
retoma as discussões sobre herança e meio na constituição do ser humano, e
atenta para os perigos tanto científicos, como políticos e sociais, das explicações
baseadas, exclusivamente, na hereditariedade e na genética:

Ao se estenderem ao homem as conclusões que o mendelismo


estabeleceu para as espécies vegetaes e animaes, os resultados teem
sido os mais deploráveis possíveis. Basta ver o desvirtuamento que
tem sofrido a Genética, em alguns paizes, onde os sábios sacrificam
sua sciencia, sujeitando-a a fins políticos, de dominação racial. O
assumpto é de palpitante realidade contemporânea, e já transcende
os próprios círculos científico... (RAMOS, 1939, p. 5).

Vale lembrar que, o ano de 1939, data da publicação de “A criança


problema”, marca o início da Segunda Guerra Mundial. O nazismo e o fascismo
alastravam-se pela Europa e o discurso da superioridade racial, embora já não
tão presente na ciência como em décadas anteriores, permeava os discursos
social e político como justificativa para o extermínio de povos considerados
inferiores, como os judeus: “quantos erros, quantos abusos cometidos” (p. 5)!

233
A ciência, fundamentada no darwinismo social e nas teorias raciais do
século XIX, previa quem seriam os criminosos, os delinquentes, os “débeis” e
definiam seu destino. No Brasil do início do século XX, buscava-se explicar um
país subdesenvolvido a partir da miscigenação, atrelando sua solução a um
suposto processo de branqueamento do povo, mediante o cruzamento das raças
(Schwarcz, 1993). A crítica de Arthur Ramos (1955) era feroz ao retratar tal
perspectiva higienista:

Todo o capítulo da “higiene racial” tem de ser revisto aqui. No Brasil,


especialmente, muito se clamou, pela voz de alguns teóricos
estrangeiros (e alguns nacionais!), que somos um povo inferior,
provindos de “raças inferiores”, que aqui cruzaram as suas
“hereditariedades desarmônicas”. O negro foi nossa perdição! –
clamaram alguns. Devemos voltar ao ariano! Só pelo cruzamento com o
branco voltaremos ao ariano – gritaram outros. Esses falsos cientistas
acharam ainda que a mestiçagem era um fator de “degenerescência”.
Uma das causas do nosso atraso estava no mestiço desarmônico,
incapaz e inferiorizado. (p. 30).

Afinal, para ele, o ser humano não era mero resultado de sua genética,
mas o “produto de sua civilização e de sua sociedade” (1955, p. 28).
Consequentemente, ressaltava a necessidade de se tratar de questões como
criminalidade, delinquência, alcoolismo em sua complexidade, uma vez que o
que se atribuía a um mal de raça verificou-se que era um mal de condições
higiênicas deficitárias: subalimentação, pauperismo, doenças.

Nesse sentido, pode-se dizer, com base em Arthur Ramos, que o estudo
sobre a criança não se limitava ao estudo de sua estrutura psíquica, orgânica ou
hereditária, pois seu desenvolvimento dependia, acima de tudo, de suas
“constelações familiares” e da “ação do meio social e cultural no seu sentido mais
largo” (p. 28):

O comportamento e o próprio pensamento humano variam no tempo


e no espaço. Não há, nunca houve uma maneira rígida de pensar e
julgar. A lógica humana varia nas idades e na geografia, como é
relativa a varias condições de ‘normalidade’ ou ‘anormalidade’,
neurose, psicose, sonho, distrações, emoções... (p. 28).

As noções de “normalidade” e “anormalidade” assumem em Arthur


Ramos (1939; 1955), portanto, um caráter fenomenológico, relacional e
dinâmico, condicionado ao tempo e ao espaço das instituições sociais. O
“anormal” não é uma entidade isolada, mas o produto da noção de “normalidade”
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

construída social e historicamente; uma questão de ponto de vista. Quanto à


criança “anormal”, seu parecer é peremptório ao conceber o universo adulto –
aquele que dita a norma social - como seu agente criador: “como o homem
primitivo cuja selvageria foi uma creação dos civilizados também na creança, o
conceito de ‘anormal’ foi, antes de tudo, o ponto de vista adulto, a consequência
de um enorme sadismo inconsciente de paes e educadores” (1939, p. XVIII). É
nesse sentido que Ramos chama a atenção para a mudança no eixo de estudo da
higiene mental, “da creança anormal” para a “creança normal”, pois afinal, “[...]
para que continuar chamando de ‘anormaes’ essas pobres crianças victimas da
incomprehensão dos adultos, do seu meio, da sua família, da escola?” (p. XVIII).

Desta feita, Ramos (1955) problematiza o conceito de normalidade,


questiona seus critérios – o estatístico, a patológico e o sociológico –, e anuncia
sua perspectiva, com base em Erich Stern:

É o sentido da ‘adaptação social´ do comportamento que deve ser


levado em conta num sentido normativo. É o que sentencia Erich
Stern, quando escreve: ‘psiquicamente desviado devemos chamar a
um homem quando não pode responder à exigências da sociedade
[...]. O conceito de enfermidade resulta, desse modo deslocado, em
grande parte, para o aspecto social. (p. 20).

A mudança não se resume à terminologia. O que antes era compreendido


como uma patologia, passa a ser visto como produto da relação indivíduo-
sociedade. Por isso, a higiene mental, na abordagem de Ramos (1939; 1955),
não se limita a investigação e tratamento da criança isoladamente, mas envolve
as instituições sociais que a cercam: a família, a escola, a religião e os diferentes
agrupamentos. A “higiene mental”, afirma o autor (1955, p. 29), “investiga
todos esses fatores, penetrando ‘intersticialmente´ na sua urdidura íntima”.
Diante de tal perspectiva, a origem do ‘desajustamento’ raramente está na
criança:

Qualquer um desses círculos sociais que exercem normalmente a sua


ação sobre o indivíduo pode apresentar desvios, contratações, e
passam a exercer influências nocivas. É o vasto capítulo dos ‘males
sociais’ e sua influência sobre o indivíduo. Esses males sociais têm,
na maior parte dos casos, sua origem em instituições legítimas que,
pouco a pouco, tiveram seus fins desvirtuados. (p. 29).

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A partir do conceito de criança problema, Ramos refuta a classificação
rígida das crianças por meio de rótulos e busca, na “psicologia normal e
patológica”, na psicologia social, na sociologia e na antropologia instrumentos
que permitam o estudo da complexa realidade da criança. Não descarta a
psicotécnica, que “procura estudar hoje as capacidades e habilidades humanas
para a sua adaptação a determinadas ocupações” (p. 24), mas ressalta sua
crítica aos excessos da técnica: “Infelizmente em muitos casos, esse problema
tem sido resolvido de modo aligeirado. Tudo se quer resolver pela aplicação
simplista e sumária, de testes ou provas isoladas de capacidades, em
quantidades simples, em máquinas automáticas de trabalho” (p. 24).
Considerando que não existe “criança problema” como um “tipo único de reação”
(1939, p. 18), mas diferentes “problemas de crianças”, Ramos propõe a adoção
de uma combinação de métodos – observação, método clínico, biografia, estudos
de caso, experimentação etc. – para que se estabeleça uma clara compreensão
de sua realidade. E, tal abordagem parece delinear uma nova concepção de
criança: de ser isolado, constituído biologicamente, passa a ser definida como
socialmente determinada, “uma entidade dinâmica, móvel, complexa, boiando à
mercê das múltiplas influências de seu meio” (p. 18). Anunciando, assim, a
urgência de transformação das condições sociais cujos desvios criam os
problemas das crianças.

Diante do constructo que Arthur Ramos apresentou a respeito das


“creanças problema”, pode-se dizer, primeiro, que a maioria das dessas que
chegavam aos S.O.H.M. não possuíam nenhum problema de natureza física ou
congênita que indicasse seu afastamento da escola. Pelo contrário, os
empecilhos que dificultavam à aprendizagem encontravam-se muito mais nas
péssimas condições sociais de vida e no despreparo dos docentes para lidar com
tal clientela, do que na criança em si. Segundo, por meio da experiência como
chefe do S. O. H. M., Arthur Ramos procurou:

(...) desfazer o mito de que toda criança tida como difícil e


desajustada tanto na vida social como escolar era “anormal” (...).
Não se tratava de menores com alguma patologia mental, mas que
apresentavam algum desajuste devido às condições do ambiente
onde viviam. (Garcia, 2010, p. 147).
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Terceiro, apesar dos S. O. H. M. terem em sua essência um maior controle


dos indivíduos, observa-se que a proposta de Arthur Ramos buscou tornar este
serviço como “um apoio importante ao trabalho educacional, reconduzindo as
crianças às escolas e criando meios para a sua maior adaptação” (p. 180). E, por
fim, em uma época considerada ainda muito conservadora, Arthur Ramos
conseguiu além de romper com o conceito inquestionável de anormalidade,
apresentar e utilizar a psicanálise na educação. Ou seja, ao contrário de muitos
outros, Arthur Ramos não restringiu sua atuação apenas no campo do discurso.
Pelo contrário, ele foi mais longe: “envolveu-se diretamente com as questões
educacionais nos S.O.H.M., escreveu inúmeros manuais e panfletos, orientou
pais, aplicou a psicanálise nas escolas e trabalhou na formação de professores.

Algumas considerações...

Chegado aqui, é inegável não perceber a contribuição de Arthur Ramos


aos estudos sobre a criança, em especial aquelas outrora denominadas como
“anormais”, “problemas”, “desajustadas”. Com base em um vasto repertório
teórico, da sociologia, da antropologia, da psicologia e da psiquiatria, o autor
rompe com perspectivas cristalizadas acerca da criança, como os
determinismos biológicos e a noção de normalidade. Assume a criança como ser
social e evidencia o papel da educação - familiar e escolar – na produção da
“criança problema”.

A história se constrói por rupturas e permanências. Leite (1992, p. 244)


observa que, apesar de sua crítica ao “evolucionismo linear”, Arthur Ramos, ao
estabelecer comparações entre as culturas tendo como referência a “cultura
civilizada”, tornou-se “vítima do mesmo esquema de pensamento”. No âmbito
do estudo sobre a “criança problema” e do papel da higiene mental, é possível
perceber os resquícios de um pensamento médico: Embora o desajustamento
seja construído socialmente, a tarefa da higiene mental é “manter a criança
normal, normal” e “ajustar a criança desajustada” (RAMOS, 1939, p. XXII) por
meio de um trabalho corretivo. A noção de desenvolvimento parece atrelar-se
a uma abordagem evolucionista que determina um padrão de normalidade
socialmente desejado. E, com isso, o papel, ora preventivo ora corretivo, da

237
higiene mental tende a reproduzir o modelo médico da cura, não apenas da
criança em si, mas também de sua família.

Entretanto, em sua análise dos diferentes problemas da criança tratados


na obra de Ramos (1939) – a criança mimada, a criança escorraçada, a criança
turbulenta, tics e ritmias, fugas escolares, problemas sexuais, as constelações
familiares – as rupturas com o pensamento de sua própria época e seus
antecessores são evidentes. Ramos inverte a lógica das explicações acerva da
“anormalidade” da criança. O problema não está na criança, mas nas
instituições sociais que a constituem. E, por isso, é necessário investiga-las e
transformá-las.

Referências Bibliográficas:

Abrão, J. L. F. (2008). A introdução das ideias relativas à psicanálise de crianças no


Brasil através da obra de Arthur Ramos, Memorandum, Belo Horizonte, 14, 37-51.
Recuperado em 10 de outubro, 2016, de
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a14/abrao01.pdf

Abrão, J. L. F. (2001). A História da Psicanálise de Crianças no Brasil. São Paulo:


Escuta.

Barros, L. O. C. (2004). Introdução. Em Faillace, V. L. M. Arquivo Arthur Ramos:


Inventário Analítico. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional.

Garcia, R. A. G. (2010). A Educação na trajetória intelectual de Arthur Ramos: higiene


mental e criança problema (Rio de Janeiro 1934-1949). Tese de doutorado em
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Gaspar, L. (2010). Arthur Ramos. Recife: Fundação Joaquim Nabuco. Recuperado em


11 de julho, 2017, de
http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&vie
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Gusmão, M. (1974). Arthur Ramos: o homem e a obra. Maceió: Dac/Mec.

Leite, D. M. (1992). O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo:
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Ramos, A. (1955). Saúde do Espírito (6ª edição). Rio de Janeiro: SNES.

Ramos, A. (1940). O Negro Brasileiro 1538 (2ª edição). São Paulo: Companhia Editora
Nacional. (Original de 1934).

Ramos, A. (1939). A Creança Problema – A hygiene mental na Escola primaria. São


Paulo: Companhia Editora Nacional.

Schwarcz, L. M. (1993). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial


no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Psicologia Ciência e Profissão. (2002). Arthur Ramos. Biografia. Psicologia Ciência e


Profissão, Brasília, 22(4), dez. Recuperado em 11 de julho, 2017, de
http://www.scielo.br/pdf/pcp/v22n4/12.pdf

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Sobre... Autoras e Autores

Aliciene Fusca Machado Cordeiro - Professora do Programa de Mestrado em Educação


da Universidade da Região de Joinville-Univille, com graduação em Psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, mestrado e doutorado em Educação:
Psicologia da Educação pela PUC/SP. Suas pesquisas estão direcionadas para área da
Educação, mais especificamente envolvendo temáticas da Educação Especial e da
Diversidade.

Andrea Soares Wuo - Professora do quadro funcional da Universidade Regional de


Blumenau – FURB. Possui graduação em Ciências Sociais (USP), mestrado e doutorado em
Educação: Psicologia da Educação (PUC-SP). Foi bolsista recém-doutora PRODOC/CAPES da
Universidade Federal de São João Del-Rei. Tem experiência na área de Psicologia e
Educação, com ênfase nos seguintes temas: educação inclusiva, diversidade, infância,
juventude e educação em direitos humanos

Antônio Carlos Caruso Ronca - Professor do Programa de Estudos Pós-graduados em


Educação: Psicologia da Educação da PUC-SP; foi reitor da mesma instituição e membro e
presidente do Conselho Nacional de Educação. Doutor em Psicologia pela PUC-SP.

César Rota Júnior - Professor das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros/MG.
Membro da Associação Brasileira de Psicologia Escolar/Educacional (ABRAPEE) e da
Sociedade Brasileira de História da Psicologia (SBHP). Pesquisa nas áreas da História da
Psicologia e da Psicologia Escolar/Educacional. Doutor em Educação pela FAE/UFMG, com
estágio-sanduíche na Université de Rouen, França, onde pesquisou sobre a obra de
Théodore Simon. Psicólogo.

Daniela Leal - Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro


Universitário Moura Lacerda (CUML). Líder do Grupo de Pesquisa NIEPHE (Núcleo
Interáreas de Estudos e Pesquisas em História da Educação). Membro da Associação
Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE). Pesquisadora em História da
Psicologia da Educação e da Educação Especial. Tem Pós-doutorado pela FFCLRP – USP.
Mestre e Doutora em Educação: Psicologia da Educação (PUC-SP).

Fabiana Pereira - Pós-Doutora em Antropologia pelo PPGA-UFPE. Doutora em


Antropologia pelas USAL-Espanha/UFPE. Graduada em Psicologia pela UNICAP-PE e
Mestre em Antropologia pelo PPGA-UFPE).

Janayna Emidio - Mestranda pelo PPGA/UFPE. Graduada em Ciências Sociais pela UFPE.

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Kaciana Nascimento da Silveira Rosa - Professora Assistente do Departamento de
Educação I da Universidade Federal do Maranhão. É membro do Grupo de Pesquisa em
História da Psicologia – NIEHPSI – da PUC-SP.Mestrado e doutorado em Educação:
Psicologia da Educação pela PUC-SP. Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional
(Faculdade de Santa Fé) e em Educação Especial, com ênfase em Atendimento Educacional
Especializado (UFC). Pedagoga pela Universidade do Maranhão.

Laurent Gutierrez - Maître de conférences à l’université de Rouen (France), ses travaux


portent sur l’histoire du mouvement de l’Education nouvelle et notamment sur la manière
dont la psychologie a accompagné l’histoire des sciences de l’éducation au cours du XXe
siècle. A cet effet, il a dirigé un numéro « Observer et orienter l’enfant » de la revue Les
Sciences de l’Education – Pour l’Ere nouvelle (2015) et un ouvrage, en 2016, avec Jérôme
Martin et Régis Ouvrier-Bonnaz, consacré à Henri Piéron (1881-1964): psychologie,
orientation, éducation (Octares).

Laurinda Ramalho de Almeida - Professora do Programa de Estudos Pós-graduados em


Educação: Psicologia da Educação e do Mestrado Profissional em Educação: Formação de
Formadores pela PUC-SP. É líder do Grupo de Pesquisa Bases da Psicologia na Educação.
Pesquisadora das temáticas: formação de professores, ensino-aprendizagem, Psicologia da
Educação, Ensino Fundamental, Ensino Público, Coordenação Pedagógica Educacional,
relações interpessoais, abordagem centrada na pessoa e Psicogenética Walloniana.
Mestrado e Doutorado em Educação: Psicologia da Educação pela PUC-SP. Pedagoga e
especialista em Orientação Educacional pela USP.

Mariana Batista Vieira - Mestrado e doutorado em Educação: Psicologia da educação


pela PUC-SP. Especialização em Literatura pela PUC-SP. Graduação em Pedagogia pela USP.
Integra o NIEHPSI (Núcleo do PED juntamente com o Grupo de Pesquisa em História da
Psicologia). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Psicologia da Educação,
atuando principalmente nos seguintes temas: timidez, identidade, exclusão-inclusão,
invisibilidade e assédio.

Marina Massimi - Professora Titular da Universidade de São Paulo. Presidente da


Sociedade Brasileira de História da Psicologia de 2013 a 2015 e atualmente Vice-
Presidente. Membro da Academia Ambrosiana (Milão). Coeditora da Revista
Memorandum: Memória e História em Psicologia. Pesquisas na área de Psicologia, com
ênfase em História da Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: História da
Psicologia Científica, História dos Saberes Psicológicos na Cultura Brasileira e Saberes
Psicológicos dos Jesuítas. Mestrado e Doutorado em Psicologia (Psicologia Experimental)
pela Universidade de São Paulo. Graduação em Psicologia pela Università degli Studi di
Padova (1979).

Mitsuko Aparecida Makino Antunes - Professora do Programa de Estudos Pós-


graduados em Educação: Psicologia da Educação da PUC-SP. Pesquisadora em História da
Médicos-Educadores: revendo contribuições à Educação e à Psicologia

Psicologia da Educação no Brasil. Mestre em Filosofia da Educação e Doutora em Psicologia


Social pela PUC-SP.

Raquel Martins Assis - Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal


de Minas Gerais e do Programa de Pós-Graduação em Educação: conhecimento e inclusão
social. É membro do Grupo de Trabalho em História da Psicologia da ANPEPP, da Sociedade
Brasileira de História da Psicologia e do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise
e Educação - NIPSE. Desenvolve pesquisas nas áreas de História da Psicologia com ênfase
nas relações entre Psicologia, Educação e Educação inclusiva. Doutora em Educação pela
Universidade Federal de Minas Gerais (2004) e Pós-Doutorado pelo programa de Estudos
Pós-Graduados: Psicologia da Educação (2013).

Sérgio Dias Cirino - Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de


Minas Gerais (UFMG). Coordenador do GT de História da Psicologia da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP). Membro da Sociedade Brasileira de
História da Psicologia (SBHP). Membro do GT de História da Psicologia da Sociedade
Interamericana de Psicologia (SIP). Membro da Rede Ibero-americana de Pesquisadores em
História da Psicologia (RIPeHP). Pesquisa nas áreas da História da Psicologia. Psicólogo,
Doutor em Psicologia (USP).

Silvana Sobreira de Matos - Pós-Doutora em Antropologia pelo PPGA-UFPE). Doutora em


Antropologia pelos PPGA-UFPE e ROMA-TER. Mestre em Antropologia pelo PPGA/UFPE e
em Sociologia pela ROMA-TRE. Graduada em Ciências Sociais pela UFCG.

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