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A Histo PeNsana, O CONCEIO DE HISTORIA UNIVERSAL (1831) A Historia se diferencia das demais ciéncias porque ela é, simulta- neamente, uma arte.’ Fla é ciéncia na medida em que recolhe, descobre, analisa em profundidade; ¢ arte na medida em que representa ¢ torna a dar forma ao que é descoberto, ao que é apreendido. Outras ciéncias se contentam simplesmente em registrar 0 que é desco- berto em si mesmo: a isso se soma, na Historia, a capacidade de recriacao. Enquanto ciéncia, ela se aproxima da Filosofia; enquanto arte, da Poesia. A diferenga esté no fato de que Filosofia ¢ poesia, de maneira andloga, se movimentam no plano das ideias, enquanto a Histéria nao tem como prescindir do plano do real." Caso fosse apresentada & Filoso- fia a tarefa de analisar uma cena ocortida no tempo, para penetrar suas causas ela abarcaria num conceito o niicleo do ser: e por acaso a filosofia, para a Histéria, nao € histéria ambém?” Tomasse a poesia por objeto a reconstituigao da vida nao mais existente, também ela seria histéria. Nao Por suas possibilidades, mas sim por causa de seu préprio material, dado ¢ condicionado pela empiria, € que a Histéria se diferencia da poesia c da Filosofia. Ela associa as duas em um terceiro elemento que Ihe é peculiar, A Histéria ndo é nem uma coisa nem outra, ela promove a sintese das forcas espirituais atuantes na poesia e na Filosofia sob a condigao de que tal sintese passe a orientar-se menos pelo ideal — com o qual ambas se ocupam — que pelo real. Ha nacoes que nio possuem a capacidade para apoderar-se desse elemento. Os indianos possuiam Filosofia ¢ poesia; todavia lhes faltava a Histéria [Geschichte]. N.'T: Leopold von Ranke, “Idee der Universalhistorie”, apud E. Kessel, “Rankes Idee der Unie versalhistorie'. Historische Zeitschrifev. 178, 1954, pp, 269-308. NTs No otighnal: “Ud it Philosophie der Gtichichteetwa nich auch Gachiehte?”. A frase per- ‘mite uma outra leitura, com a qual Ranke parece jogar: “E por acaso a Filosofia da Histria nio € histéria também?” 202 Loran von Rane (1795-1886) E de se notar como entre os gregos a Histéria se desenvolveu a partir da poesia, é derivada desta. Os gregos tiveram uma teoria da pesquisa histérica [Historie], a qual, embora seu exercicio nao possa ser igualado quando visto de hoje, sempre foi significativa, Uns tém destacado mais © cardter cientifico, outros 0 artistico; entretanto, nenhum apresentou 2 necessidade de unificar os dois, Sua teoria oscila entre ambos os elemen- tos, sem conseguir se decidir. Como diz Quintiliano: Historia est proxima poetis et quodammodo carmen solutum. Perdurando a diivida, nos tiltimos tempos tem-se ou dado énfase apenas 4 dimensio real ou insistido apenas na ciéncia como seu funda- mento. O que levou 4 redugao da Histéria a uma mera parte da Filosofia. Contudo, cla precisa ser, como foi dito, ciéncia e arte ao mesmo tempo. Ela jamais é uma coisa sem ser a outra. Entretanto, bem pode ora uma ora outra se tornar mais evidente. Naruralmente, em preleg6es ela s6 aparece como ciéncia; precisamente por isso é necessirio que nos ocupemos com seu conceito. A arte basta-se a si mesma: sua existéncia atesta sua validade, jd a ciéncia, bem como seus conceitos, tem de ser estudada em profundidade, e em seu nivel mais intimo ela deve ser clara. Dai meu desejo de esclarecer, no decorrer de algumas de nossas préxi- mas prelegdes, 0 conceito de histéria universal [Welthistorie]. A fim de que | cu me refira [...] ao principio histérico, a abrangéncia e [...]. Eu vou falar: 1. Do PRINCIPIO HisTORICO Tratar-se-4 aqui do que justifica, em si mesmo, o trabalho do histo- riador. Nao em relacao 4 vida. E um trabalho reconhecidamente neces- srio; sendo dispensdvel versar sobre sua utilidade, j4 que dela ninguém duvida. A sociedade, a relacdo entre as coisas exige-na. Porém, € necess4- tio que ascendamos a um ponto de vista superior. A fim de justificar nossa NT "A hist métrica. & proxima & poesia e dela se pode dizer que, de certo modo, ¢ um canto sem 203 ‘A Histon Pensapn, ciéncia frente as pretensdes da Filosofia nés procuramos nos reportar a0 que ha de mais elevado: buscaremos um principio ao qual possa ser atri- bufda sua prépria vida; para alcangé-lo, preferiremos ver a Histéria em sua oposicao & Filosofia. Falamos daquela Filosofia que chega a seus re- sultados por meio da especulacao, ¢ que alimenta a pretensio ao dominio sobre a Histéria. Mas quais séo essas pretens6es? Fichte, entre outros, as nomeou: “Se 0 fildsofo é capaz de deduzir os posstveis fendmenos da experiéncia a partir da onipoténcia do seu conceito prévio, entao ¢ evidente que ele nao necessita de experiéncia alguma para realizar sua tarefa, e, dentro de seus limites, dar-se a liberdade de desconsiderar qualquer experién- cia — simplesmente @ priori—, 0 todo do tempo e todas as épocas teriam de ser descritas a partir do mesmo a priori.” Ele demanda da Filosofia: um conceito abrangente para a totalidade de uma vida que se divide em diferentes épocas, as quais s6 sio concebidas de maneira confusa € puramente [...], bem como cada uma destas épocas singulares, por sua vez, precisa de conceitos unificadores para um periodo singular — ¢ que se manifesta nos mais diferentes fendmenos. Dai resulta que 0 fildsofo, partindo de um lugar completamente dife- rente, de uma verdade descoberta de uma maneira que lhe é propria, cons- tr6i a totalidade da Histéria —como se ela tivesse de ser deduzida a partir de seu conceito de humanidade. Em scguida, nao satisfeito em ter de verificar se seu conceito é verdadeiro ou falso.a partir do decurso do que realmente acontecet,, ele passa a adequar os eventos ao conceito, Ele reconhece a ver- dade da Historia [Geschichte] unicamente na medida em que ela se submete ao seu conceito. F isso o que se chama de construir a Histéria [Historie).”” Caso esse procedimento fosse correto, a Histéria perderia toda a sua autonomia: ela seria simplesmente regida por um teorema da Filosofia: N.T: Ranke sintetiza aqui uma passagemda primeira prelecio dos Findamentes da época atual (1804) de Fiche. Cf. Johann Goctlieb Fichte, “Die Grundziige des gegenwirtigen Zeitalres”, em Johann Gottlieb Fichte, Zur Politik. Moral und Philosophie der Gescbichee (Werke vt), Betlin, Walter de Gruytes, 1971, p. 5. N. Tz Antes do advento do construtivismo cm meados do sécile xx, 0 termo “construgso” [Konstruétion] tinha uma acepgao ligeiramente negativa no alemao, sugerindo algo como um meio termo entre “analise” e “especulacio”. 204 Leorouo von Rane (1795-1886) para com/a verdade deste, porém, ascender ¢ declinar. Todo seu interesse particular desapareceria. Tudo 0 que é digno de ser conhecido teria por objetivo apenas 0 saber em que medida o principium philosophieum se deixa comprovar. Em que medida se deu aquela continuidade do género humano concebida @ priori. $6 que nao haveria mais qualquer interes- se em nos aprofundarmos nas coisas do pasado. Queter saber como se viveu € pensou numa dada época. Tal interesse estatia posto apenas na totalidade de um conceito deduzido a partir dos fendmenos da histéria humana. Por meio do estudo da histéria nunca se poderia chegar a uma conviccao univetsal ¢ fandamentada. A tinica diversidade possivel con- sistiria num desdobramento dos conccitos, numa deducio feita de cima para baixo —suficiente para que a Histéria deixasse de gozar de autono- mia, sem interesse em si mesma, ¢ sua fonte vital se esgotaria. Praticamen- tendo valeria a pena dedicar-se a seu estudo uma vez que a possuirfamos no e por meio do conceito filoséfico. A Teologia jé havia tido tais pretensdes antigamente; também ela pretendeu — num entendimento, sem diivida, falso — dividir toda a histé- ria humana em perfodos de pecado, redengio ¢ império de mil anos; ou nas quatro monarquias profetizadas por Daniel aptisionar a totalidade dos eventos a partir de algumas frases do livro do Apocalipse. Tanto numa perspectiva quanto na outra, a Histéria perderia todo seu fundamento € cardter cientificos, ¢ de forma alguma poderiamos falar de um elemento que Ihe fosse préprio, ¢ a partir do qual viveria. Observemos apenas que a Histéria mantém-se em continua oposi- g40 a tais prerensoes, de forma que a Filosofia no teria podido exercer seu dominio. Pelo menos em obras impressas ndo encontrei filosofia alguma que sequet em aparéncia tivesse estendido seu poder sobre tal dominios que dedurisse a multiplicidade dos fendmenos a partir de um conceito especilativo — pois a realidade das coisas se afasea do, € escapa ao, con- ceito especulativo. ‘Ao mesmo tempo, observamos que a Histéria seguiu em frente im- perturbavelmente, ¢ se opés aquelas pretensdes com todo o vigor. Deste modo, ela demonstra o cardter particular do principio que a norteia, ¢ que ¢ oposto ao filoséfico. 205 ‘A Histon reNsADA Perguntemo-nos primeiramente quais sao as ages em que se mani- festa esse espitito, antes de o enunciarmos. Em primeiro lugar, sempre ocorrem & Filosofia as exigéncias das reflexdes mais clevadas; € & Histéria as condigées da vida; aquela coloca mais peso no interesse pelo universal, esta no interesse pelo particular; aquela entende 0 progresso como 0 essencial: toda especificidade s6 conta enquanto parte de um todo; esta também se volta para o especifico com simpatia; a atitude daquela é de recusa: 0 estado de coisas que a Filosofia poderia aprovar, ela 0 coloca bem & frente de sis por sua propria natureza, ela é profética, orientada para a frente; a Histéria vé o que é bom ¢ bené- fico no existente, 0 qual tenta captar, ¢ direciona seu olhar para tris. Tal oposigdo transforma-se num ataque direto de uma ciéncia [Wissenschaft] sobre a outra. Enquanto, como vimos, a Filosofia pretende submeter a Historia, por vezes a Histéria alimenta pretenses semelhan- tes. Ela quer ver os resultados da Filosofia néo como um absoluto, mas simplesmente como manifestagdes no tempo; ela supde que a Filosofia mais exata residiria na Hist6ria da Filosofia, isto é, que as teorias que se co- locam em evidéncia de tempos em tempos, por mais que se contradigam, conteriam a verdade absoluta reconhecivel ao género humano. Todavia cla vai além, ¢ advoga que a Filosofia, especialmente na sua modalidade conceitual, seria apenas a manifestagéo do saber de um povo subjacent & linguagem; de tal forma que ela nega a Filosofia qualquer validade absolu- taeaconcebe como submetida & Histéria. A seu lado ela tem até mesmo 05 filésofos que, em regra, atribuem a todos os sistemas antetiores a mera condigio de degraus, consideram-nos meros fendmenos condicionados e reservam validade absoluta apenas a seus préptios sistemas. Eu néo pretendo afirmar que as coisas sejam assim, pretendo apenas demonstrar que na perspectiva histérica das coisas atua um principio ati- Vo que se manifesta incessantemente e que se opde & perspectiva filoséfica. A questio é saber qual principio é este que fundamenta tal afirmacio. Enquanto 0 filésofo, observando a Histéria a partir de seu campo, busca o infinito por meio do progresso, do desenvolvimento ¢ da totali- dade, a Histéria reconhece o infinito em cada coisa viva, algo de eterno vindo de Deus em cada instante, em cada ser; é este seu princfpio vital. 206 Leoroto von Rane (1795-1886) Como poderia qualquer coisa existir sem o fundamento divino de sua vida? Por essa razio, como dissemos, a Histéria se inclina com simpatia para o especifico. Por esta razao, ela reivindica o interesse pelo particu- lar; reconhece o existente ¢ 0 que tem valor; opde-se ao mudancismo negador; ela reconhece até mesmo no erro a sua parcela de verdade; eis por que ela vé nas filosofias ja abandonadas, anteriormente vigentes, uma parcela do conhecimento eterno. Nao € necessario que demonstremos longamente que o eterno ha- bita 0 individuo. Este é 0 fundamento religioso a que nossos esforgos nos levam. Nés acreditamos que nada existe senéo por meio de Deus. A medida que nos libertamos das pretensdes de uma certa teologia limi- tada, percebemos que todos nossos esforgos brotam de uma fonte mais elevada, religiosa. Porém, deve-se rejeitara ideia de que mesmo a pesquisa histérica deva voltar-se simplesmente para a busca daquele princfpio mais elevado e que subsiste ao fendmeno. Nio, ela se aproximaria demasiado da Filosofia na medida em que este princfpio seria antes pressuposto que contemplado. O préprio fendmeno, em e por si mesmo, ser elevado & Histéria por causa do seu contetido — mais importante: serd salvo. A Histéria dedica seus esforgos ao concreto, € nao apenas ao abstrato que nele estaria contido. Uma vez que reivindicamos tal princfpio como nosso principio mais elevado, deve-se observar que exigéncias daf resultam para a pes- quisa histérica. 1. A primeira delas é 0 amor a verdade, Na medida em que reconhe- cemos nosso objetivo mais elevado no evento, no estado momentaneo de alguma coisa ou no individuo que queremos conhecer, adquirimos uma consideracio elevada por aquilo que aconteceu, se passou, se manifes- tou. O primeiro passo é reconhecer isso. Caso quiséssemos, por meio de nossa imaginagio, nos antecipar em algum lugar a tal objetivo, estaria- mos trabalhando contra ele, estariamos reconhecendo apenas o reflexo de nossas teorias ¢ de nossa imaginagao. Mas com isso nao se estd sugerindo que devamos apenas nos aferrar ao fendmeno, ao seu “quando” e ao seu “onde”. Com isso nos apossarfamos somente de uma manifestacao exter- 207 A Histon Fensapa nna, enquanto nosso prdprio principio nos remete ao que é interno. Por conseguinte, é necessério: 2. Uma inyestigagio documental, pormenorizada ¢ aprofundada. Primeiramente dedicada ao prdprio fendmeno, suas condigées, seu con- texto, sobretudo pela razao de que, procedendo de outra forma, nao esta- riamos capacitados para obter 0 conhecimento: — ¢, consequentemente, para o conhecimento de sua esséncia, de seu contetido.? Pois como qual- quer formagio é uma formacio espiritual, somente por meio de uma percepcio espiritual ela pode ser apreendida. Tal percepgio baseia-se na harmonia das leis que atuam no espitito do observador com aquelas por meio das quais o objeto observado se manifesta. Jé aqui pode haver maior ou menor aptidao. Toda alma coletiva baseia-se na harmonia do indivi- duo com 0 que é préprio da espécie. O prinefpio criador ea nacureza que conferem forma confrontam-se no individuo, 0 qual as reconhece, com- preendendo-se a si mesmo ¢ desvelando-se para si mesmo. Esse dom esta presente em todas as pessoas, em maior ou menor grau. Discernimento, coragem ¢ probidade 20 dizer a yerdade sio suficientes: imparcial e mo- destamente em seus estudos, devem todos transmitit ¢ fazer prevalecer aquilo a que se dedicaram. Mas o que ¢ imparcialidade [Unbefangenheit]? Ela conduz a rerceira exigéncia de nosso principio. 3. Um interesse universal. H4 aqueles que se interessam apenas pelo estudo das instituigdes burguesas ou das constituigées, pelos avangos da ciéncia ou pelas realizagées artisticas ou pelos enredos politicos. A maior parte da historia escrita trarou até agora da guerra e da paz. Como, po- rém, tais campos nunca se dao apartados um do outro, mas esto sem- pre articulados ¢ até mesmo condicionando-se mutuamente — como, por exemplo, os diferentes campos cientificos influenciam tanto a politica externa quanto, e'sobretudo, a interna —, € necessdrio dedicar um inte- resse uniforme a todos eles. De outra forma nos tornarfamos incapazes de entender um por meio do outro, ¢ caminhariamos rumo a uma meta oposta & do conhecimento. Ai reside a imparcialidade a que nos referia- mos. Ela nao é uma falta de interesse, mas um intetesse no conhecimento puro, no turvado por opinides preconcebidas. Mas como? Tal esforco minucioso em busca da verdade levar4 ao esmigalhamento de todo um 208 LeoroLo Yon Ranke (1795-1886) campo do conhecimento? Nao nos ocuparemos senao com uma série de fragmentos? 4. A fundamentacio do nexo causal,’ Precisarfamos nos contentar e satisfazer com uma simples informacao, em si ¢ por si mesma, que corres- pondesse unicamente ao objeto. Para aquela primeira exigéncia jd men- cionada, bastatia que houvesse uma sequéncia entre os distintos eventos. $6 que entre eles existe um nexo. O que ocorre ao mesmo tempo se toca ¢ influencia mutuamente. O precedente condiciona o posterior. Existe uma articulacéo {intima entre causa ¢ efeito — mesmo que ndo possamos daté-la, 0 nexo causal nao esté menos presente. Ele existe, ¢, pelo fato de existir, devemos procuré-lo e conhecé-lo, Essa forma de estudo da histé- ria, derivada da telagéo entre causas ¢ efeitos, é denominada pragmitica. ‘Todavia, néo quetemos compreendé-la numa perspectiva convencional, mas, sim, de acordo com nossos conceitos. Desde a formagao da historiografia moderna, e na medida em que ela se concentrou no agir humano, o pragmatismo difundiu um sistema em que as motivacées profundas das coisas assentam no egofsmo e na am- bicéo de poder. © procedimento é corrente: apreendidas pela observacao livre, as agées dos individuos sio deduzidas, atribuidas, imputadas ique- las ou a quaisquer outras paixées. Desse modo, toda a percepeao histérica adquire uma aparéncia seca, itreligiosa, de falta de cardter, e que conduz ao desespero. Eu néo nego que tais motivagdes possam ser extremamente poderosas ¢ atuantes: nego apenas que sejam as tinicas. Primeiramente, deve-se investigar 0 mais exacamente possivel se somos capazes de desco- brir as verdadeiras razées nas informagées verdadeiras. Mais comumente do que se pensa, isso seré possivel. Somente entéo, quando no formos mais capazes de avancat, nos serd permitido dar espago as suposigdes. Nao se deve pensar que com isso estaria prejudicada a liberdade da obser- vacio. Nao; quanto mais documentada, exata, produtiva a investigagao, mais livremente nossa arte se movimenta. Somente no ambito da verdade imediata, impossivel de ser negada, é que tal arte chegaré a bom termo! Secas em si so apenas as causas aparentes. Causas verdadeiras sio va- riadas, profundas, passiveis de uma observacéo viva. Assim, tal como 0 conhecimento em geral, nosso préprio pragmatismo é documental. Ele 209 A HisTOR FENSADA pode até ser bastante discreto, contudo, é muito importante. Onde falam os préprios eventos, onde a composic¢io pura revela o nexo entre as coisas, nao hd necessidade de empregar demasiadas palavras a seu respeito. 5. Apartidarismo [Unparteylichkeis|. Na historia universal [Weltges- chichte| manifestam-se, em regra, dois partidos que se defrontam um com © outro. Embora as disputas mantidas por estes partidos sejam muito distintas, elas tém, contudo, um parentesco intimo. Vemos sempre um se desenvolver a partir do outro.4 Nao se deve cter que no decorrer do tempo estes partidos serao facilmente esquecidos. Hé nos homens uma feliz esperanga quanto ao julgamento da histéria, da posteridade, isso ¢ dito milhares de vezes. S6 que ndo é muito comum que isso seja feito de forma apartidéria. Em nés vive um interesse distinto do fugaz interesse de outrora. Muito fre- quentemente julgamos o passado a partir da situagao atual. Talvez isso nunca foi to grave quanto atualmente, em que interesses proprios e que se estendem por toda a histéria universal ocupam a opiniao publica mais do que nunca ea dividem num grande embate Do ponto de vista politico, nao hé problema algum nisso. Mas do ponto de vista propriamente histérico, sim, Nés, que buscamos a verdade mesmo no etto, que vemos tudo o que existe atravessado por um prin- cipio vital origindrio, temos sobretudo de nos tornarmos livres interna- mente. Onde quer que haja uma luta semelhante, cada um dos partidos devera ser avaliado em sua situacéo prépria, em seu meio e, por assim dizer, em seu contetido interno particular. E. necessério compreendé-los antes de julga-los. Ser-nos-4 objetado que, todavia, também aquele que escreve, que compée uma exposicao, deveria ter sua opiniao, sua religiao, das quais ele nao teria como declinar. E ter-se-ia razéo, caso nos atrevéssemos a dizer quem tem razdo em cada conflito. E bem possivel que frequentemente saibamos bem em fa- vor de quem estariamos em meio ao conflito, em favor de que opiniao nos decidiriamos. £ bem possivel que aquele apartidarismo que normal- mente vé a verdade das disputas no ponto equidiscante entre duas opi- nides opostas seja impossivel ao historiador, na medida em que cle muito 210 Leoro.o von René (1795-1886) sertamente esti aferrado & sua opiniao; porém isso de forma alguma é 0 mais importante. Somos capazes de visualizar 0 erro, mas onde no have- fi erros? Com isso, porém, nao damos as costas & vida. Ao lado do bem reconhecemos 0 mal, mas este também reside em algo interior. Nao sio as opinides que nés colocamos 4 prova; 0 que nos interessa €a vida que sempre exerce a influéncia decisiva nos conflitos politicos € religiosos. Aqui clevamo-nos com a finalidade de obter uma visio da esséncia dos elementos opostos e-em lura, por mais complexa que ela seja. Nés simplesmente nao temos de julgar o crro ou a verdade. Destaca-se apenas forma junto & forma, vida junto a vida, efeito e contraefeito. Nos- sa tarefa ¢ penctré-los até o fundamento de sua existéncia ¢ apresenté-los com total objetividade. ia atualmente dois grandes partidos em luta entre si, para os quais as palavras movimento e resistencia como que se tornaram bandeiras. A His- ‘ria: ela se diferencia totalmente do [espitito de partido], tanto do que se quer manter eternamente aferrado a uma posigéo como daquele que quer manter-se em eterna mudanca, Algumas pessoas associam 0 primeiro 20 principio juridico. Elas identificam uma legalidade na defesa de uma situ- agao [...] reconhecida, de uma determinada lei. Elas nao quetem perceber que as coisas existentes se formaram através de remodelagdes — geradas Por lutas ~ ocorridas no seio das coisas antigas. Somente entéo chegaria a Historia a seu termo. Em algum outro lugar ela chegaria a seus obje- tivos: por assim dizer, nao seria possivel a existéncia de um estado nao legal, de nenhum estado que pudesse prejudicar a razao: uma conclusto impossivel. Tampouco, porém, pode a Histéria colocar abaixo aquilo que € antigo, como se fosse algo totalmente motto, imitil, sem consideracéo por lugares particulares e favordvel a interesses particulares.’ Se ela teme a violéncia na observacao, quanto mais no relato. Esse destruir, refazer € destruir novamente nao corresponde ao caminho da natureza. E um es- tado de desordem interior que se manifesta dessa forma. E um organismo que entrou em confronto consigo mesmo: certamente estranho, mas nao agradavel de se observar. E cetto que a Histéria reconhece 0 principio do Movimento, mas como evolucio ¢ néo como revolucéo; precisamente Por essa razo ela reconhece o principio da resistencia. Somente onde o 2411 A Histon penshoa equilibrio se mantém, sem que surjam essas lutas violentas ¢ que a tudo devoram, é que pode a humanidade prosperar.° Exatamente por isso, pelo fato de que a Histéria reconhece ambos os principios, é que ela pode ser justa em relagéo a um ¢ a outro. Ela nao tem sequer de decidir teorica- mente 0 conflito, que seu passado ensina [...]; ela sabe perfeitamente que ele, tal conflito, serd decidido segundo a vontade de Deus. 6. Compreensao da totalidade. Tanto como 0 individuo e como 0 nexo de uma coisa com a outra, finalmente, existe também a totalidade. Trata- se de algo vivo, e assim apreendemos sua manifestagao: nés percebemos a sequéncia das condigdes que tornam um fator possivel por intermédio do outro, Mas isso nao é suficiente, hé af uma totalidade, hd um vir-a-ser, um set-eficiente, um faver-se valer, um desvanecer-se. Essa totalidade é tao certa como cada manifestagao em cada fator. Devemios dedicar-lhe toda a arengio, ‘Tratando-se de um povo, nfo é a todos os elementos individuais de suas ma- nifestagdes vivas, mas, sim, a0 conjunto de seu processo de desenvolvimento, de seus feitos, de suas instivuig6es, de sua literatura que nos fala a ideia que nés simplesmente nao podemos ignorar. Quanto mais se avanca, mais dificil, porém, dominé-la, Pois também aqui, somente através de uma investigagio rigorosa, aprendizado lento ¢ uuilizacéo de documentos, pelos quais realiza- mos algo; por meio de indugao do que jé é bem conhecido, isso significa divi- nagio e, por meio do que se pouco conhece, filosofema. Vé-se como a historia universal [U/iversalbistorie] € algo tremendamente dificil Que massa infinital Quantos esforgos diferentes entre si! Quanta dificuldade em captat uma in- dividualidade! Desconhecendo tantas coisas, como haverfamos de identificar por toda a parte 0 nexo causal? Para no falar em fundamentar a esséncia da totalidade. Realizar plenamente essa tarefa & algo a meu ver impossivel. Somente Deus conhece integralmente a hist6ria universal [Die Weltgeschichte weiss allein Gott}, Nébs conhecemos as oposigées; quanto as harmonias — que, como diz um poeta indiano, “sio conhecidas dos deuses, mas desconhecidas dos homens” =, s6 podemos lamentar por delas néo nos aproximarmos. Mas hé para nés, nitidamente, uma unidade, um avangar das coisas [Fortgang), um desenvolvimento [Ennwicklung).? Assim chegamos, pela via histérica, préximos da tarefa da Filosofia. Se a Filosofia fosse 0 que deve ser, caso a Hist6ria estivesse inteiramen- 212 Leorotn von Rane (1795-1886) te esclarecida © consumada, entdo elas coinciditiam integralmente. Com um espirito filosdfico, a ciéncia histérica penetraria seu elemento, Caso a arte histérica for capaz de infundir-Ihe vida, e de reproduzir com aquela parcela da forga poética que nao inventa algo novo, mas apenas reproduz © que é captado e'compreendido em suas feigdes verdadeiras, entio, como dizfamos no inicio, cla seria capaz de unificar ciéncia ¢ arte, de juntar ambas em seu ptéprio elemento. . Do ESCOPO DA HISTORIA UNIVERSAL Sao trés as formas de delimité-la: quanto aos desenvolvimentos em sequéncia, simulténeos ¢ isolados. Desenvolvimentos em sequéncia. A Histéria abrangeria, em si ¢ por si, © todo da vida da humanidade surgida ao longo do tempo. Todavia, é de- masiado o que dela se perdeu e que permanece desconhecido, Os primeizos perfodos de sua existéncia— bem como seus primeiros representantes — es- tao perdidos, sem que haja esperanca de um dia os reconstrui Podemos ver que significado tem a Histéria, Uma vex perdido um autor, perde-se também a expresso do individual, do tinico, Num livro de Histéria, contudo, nao se exprimem apenas o ser ¢ a visio de seu autor, Tal livro nos interessa muito mais por causa das outras vidas que contém. Muito do que foi escrito se perdeu; outras coisas jamais foram escritas. Tudo o que existe esté ameacado pela morte, Somente aqueles que a Histéria menciona nao morreram completamente, sua es- séncia e sua vida continuarao a exercer influéncia enquanto ainda forem compreendidos: é somente com 0 apagar da meméria que a verdadeira morte acontece.® Feliz é a situagao em que restos documentais ainda existem. Estes, a0 menos, podem ser compreendidos. Mas e naquelas situacées em que nao for este 0 caso? Por exemplo, a pré-histéria? Eu sou de opinido que esta deve ser separada da Histéria, pela razio de que a primeira contraria o principio da segunda, que é 0 da pesquisa documental, 213 ‘A Hisronia rensapa Totalmente apartado deveria ser tudo o que, na histéria universal (Welshistorie], fax. mengio a articulagées e eventos geoldgicos da histéria natural sobre a formacao do mundo, do sistema solar e da terra; pelos nossos prdprios caminhos nada podemos saber de tais coisas. E permitido aqui reconhecer nossa ignorancia. Quanto ao mito eu nao gostaria, no geral, de negar que ele vez por olitra possa conter um elemento histérico. O mais importante, porém, € que cle corresponda & visio que um povo tem de si mesmo, sobre sua atitude em relagio a0 mundo ¢ assim por diante. Ele ¢ importante na medida em que depositou em si o universo subjetivo de um povo, seus pensamentos, ¢ nao na medida em que possa conter algo de objetivo. Na primeira perspectiva o mito é bastante confidvel para a pesquisa histérica, ali cla exerce seus direitos plenamente, mas nao na segunda perspectiva. Finalmente, s6 podemos dar uma atengao muito limitada aos povos que ainda hoje em dia permanecem numa espécie de estado natural, permitem supor que desde o inicio tal estado permanece o mesmo ¢ que o mundo primitivo neles se conseryou. A India ea China sio antiquissimas ¢ dispoem de uma cronologia muito abrangente. Mas mesmo os mais intcligentes elaboradores de cronologias s4o incapazes de se livrarem do estado natural. Seu passado mais distante é extraordindrio. Sua configu- ragdo pertence, antes, & histéria natural Tradugio: Sérgio da Mata Tradugao das passagens em latim e grego: Extevdo de Rezende Martins Notas Anotacio feita & margem ¢ exclulda: “Ela se distingue de ambas devido a um certo elemento real (escrito anteriormente e depois cortado: objeto) que Ihe & préprio”, Anotagio & margem do manuscrito: “Somente a critica, a separagio das fontes, a corresp (..)s somente aquilo que é fidedigno (originalmente, no lugar desta sltima palavra: digno de ser conhecido)”. 3 Escrito & margem posteriotmente: “Size fezeis hypothenuteogposcimaus er ab efcis progrediamur ad «ausas” *Conhecemos sem estar presos a hipéresesrigidas e, dos efites, progredimos is causas"). 214 {#0F010 Von Raves (1795-1886) “ Anotacio feta margem e depois excluida “Por meio desse caminho, a histéria enconcia.o prin. blo da evolugio [Foregang]e do progresso [Portchrit). Como jf dito, ela ama o anger tnas sem desconheoer que em tudo 0 que existe hd ura clemento de evolugio, de progress. Fla dead 3 e¥olusto; ela tem © progreso em alta carn Por isso ela se diferencia daquilo Ave alguns consideram seo prinipiajuridicor ests eae a micio caminho e veem na legalidade Fite i de mais eleva, sem rfetr sobre como ale surgiu. De um ponto de vista histGrico, a 4 tudo isso a urn estado no condicionada por lee Todavia, a Histéria reconhe- ena: “A rivaidade encre progreso ¢resisténcia originada em leis naxue ras, é vista com tensio (2) pela Histéria”, * Excluido do original: “Tadavia, de ‘qrando em quando, graces crises tm de ser neces ase inconclusa)”. Anotado & margem: “Ela nao Prova, cla indica. Scribitur ad nariandum, nom cid probandeam (Escteve-se para narra, nto para demonstrar”) © Anotado em grego na mazgern inferno Palavra (da poeta) vive mais do que os feitos que celebra, (Pindaro, Nemeia 4, 6)”. IN. T: Trata-se do 6° verso da 4* Ode Nemeia, Nessas odes, Pindaro celebradiveros vencedore dos jogos emeios], 2I5

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