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Revista Educação e Contemporaneidade
Revista Educação e Contemporaneidade
Contemporaneidade
Revista da FAEEBA volume 29 - número 60 - out./dez. 2020
Psicanálise
e Educação
Psicanálise
e Educação
Reitor: José Bites de Carvalho; Vice-Reitor: Marcelo D’Ávila
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I
Diretora: Adelaide Rocha Badaró
Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC
Coordenadora: Mary Valda Sales
Conselho Editorial
Conselheiros nacionais Tânia Regina Dantas
Antônio Amorim Universidade do Estado da Bahia-UNEB
Universidade do Estado da Bahia-UNEB Walter Esteves Garcia
Ana Chrystina Venâncio Mignot Associação Brasileira de Tecnologia Educacional / Instituto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ Paulo Freire
Betânia Leite Ramalho
Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN Conselheiros internacionais
Cipriano Carlos Luckesi Antônio Gomes Ferreira
Universidade Federal da Bahia-UFBA Universidade de Coimbra, Portugal
Edivaldo Machado Boaventura António Nóvoa
Universidade Federal da Bahia-UFBA Universidade de Lisboa- Portugal
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Universidade do Vale do Rio dos Sinos-UNISINOS Universidade de Paris 13 – França
Jaci Maria Ferraz de Menezes Daniel Suarez
Universidade do Estado da Bahia-UNEB Universidade Buenos Aires- UBA- Argentina
João Wanderley Geraldi Ellen Bigler
Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP Rhode Island College, USA
José Carlos Sebe Bom Meihy Edmundo Anibal Heredia
Universidade de São Paulo-USP Universidade Nacional de Córdoba- Argentina
Maria Elly Hertz Genro Francisco Antonio Loiola
Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS Université Laval, Québec, Canada
Maria Teresa Santos Cunha Giuseppe Milan
Universidade do Estado de Santa Catarina-UDESC Universitá di Padova – Itália
Nádia Hage Fialho Julio César Díaz Argueta
Universidade do Estado da Bahia-UNEB Universidad de San Carlos de Guatemala
Paula Perin Vicentini Mercedes Villanova
Universidade de São Paulo-USP Universidade de Barcelona, España
Robert Evan Verhine Paolo Orefice
Universidade Federal da Bahia - UFBA Universitá di Firenze - Itália
Coordenador do n. 60: Maria Cristina Kupfer (USP); Maria de Lourdes Soares Ornellas (UNEB)
Revista da FAEEBA
Educação e
Contemporaneidade
Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 29, n. 60, p. 1-370, out./dez. 2020
ISSN 2358-0194 (eletrônico)
Revista da faeeba – Educação e Contemporaneidade
Revista do Departamento de Educação – Campus I
(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)
Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade
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cacional, científico e cultural. Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade
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Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.
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France. Site: http://www.inist.fr
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versidad y la Educación - México). Site: www.iisue.unam.mx
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Este número teve o apoio da Editora da Universidade do Estado da Bahia (EDUNEB) para impressão.
Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade / Universidade do Estado da Bahia,
Departamento de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun., 1992) - Salvador: UNEB, 1992-
Periodicidade trimestral.
Quadrimestral até o volume 28, n. 56 (2019)
Semestral até o volume 24, n. 44 (jul./dez., 2015)
ISSN 0104-7043 (impresso)
ISSN 2358-0194 (eletrônico)
1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título.
CDD: 370.5
CDU: 37(05)
6 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 1-370, out./dez. 2020
227 O IDEAL DA EXCELÊNCIA ESCOLAR E OS CONFLITOS VIVIDOS PELO ALUNO DE CLASSES
POPULARES
Luciana Santos
246 LinguÍstica, psicanÁlise, educação e os falantes de uma lÍngua de sinais
Cristóvão Giovani Burgarelli
259 TROIS OCCURRENCES D’AMOUR PATHOLOGIQUE PARENTAL?
Robert Levy
ESTUDOS
268 PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARES NA EDUCAÇÃO A PARTIR DE HABERMAS, FREIRE E
SANTOS
Lúcio Jorge Hammes; Jaime José Zitkoski; Itamar Luís Hammes
287 FREQUÊNCIA ESCOLAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PERCEPÇÕES DAS FAMÍLIAS E DOS
PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO
Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
308 PSICOMOTRICIDADE RELACIONAL SOB A ÓTICA DE CONCEITOS TEÓRICOS DE VYGOTSKY E
BRONFENBRENNER
Ângela Adriane Schmidt Bersch; Maria Angela Mattar Yunes; Susana Inês Molon
322 QUANDO “SER PROFESSOR” SERVIA ÀS ELITES: A ESCOLA NORMAL IGNÁCIO AZEVEDO DO
AMARAL (1950-1970)
Fábio Souza Lima
345 AS RELAÇÕES ENTRE A FORMAÇÃO DO PNAIC E AS PRÁTICAS DE ALFABETIZAÇÃO
Andreia Martinazzo Braga; Nadiane Feldkercher
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 1-370, out./dez. 2020 7
CONTENTS
psychoanalysis and education
12 PRESENTATION
Maria Cristina Kupfe; Maria de Lourdes Soares Ornellas; Elizeu Clementino de Souza
17 THE (IM)POSSIBLE TO BE EDUCATED IN TIMES OF CRISIS: PSYCHOANALYSIS AND CRITICAL
EDUCATION
Marta Regina Furlan de Oliveira; Cleide Vitor Mussini Batista
31 CONTEMPORARY CHILDHOOD AND CHILDHOOD EDUCATION IN PLANETARY SPINS
Larissa Ornellas; Maria de Lourdes Soares Ornellas
42 REFLECTIONS ON THE “EPIDEMIC” OF DEPRESSION IN ADOLESCENTS AND YOUNG ADULTS
FROM THE PERSPECTIVE OF THE RELATIONSHIP BETWEEN PSYCHOANALYSIS AND POLITICS
Viviane Neves Legnani; Sandra Francesca Conte de Almeida
54 OF THE SCHOOL, OF THE SCHOOLCHILDREN, OF THE INCLUSION
Carla Mercês Jatobá Ferreira; Angela Resende Vorcaro
67 PSYCHOANALYSIS, LITERATURE AND EDUCATION: A WRITING FOR DEPATOLOGIZING THE
SYMPTOM DISORTOGRAPHIC
Andréa Hortélio Fernandes; Claudia Maria Tavares Saldanha
84 THE PRESENCE OF PSYCHOANALYSIS IN THE UNIVERSITY: RESEARCH AND DEVICES FOR
TEACHING EDUCATION
Margareth Diniz; Marcelo Ricardo Pereira
102 THE TEACHER’S (UN)BODINESS IN TIMES OF PANDEMIC AND DISTANCE EDUCATION
Kelly Cristina Brandão da Silva; Kelly Cristina Garcia de Macêdo Alcantara
117 THE TRAINING OF TEACHERS INSPIRED BY PSYCHOANALYSIS
Jean Chami
127 FROM SOCIAL DISCONTENTE TO TEACHING DISCONTENTE: CONTRIBUTIONS FROM
PSYCHOANALYSIS
Yara Magalhães dos Santos
147 WORKING WITH TEACHERS: A BULWARK AGAINST NEW FORMS OF SUBJECTIVE TIREDNESS
Ilaria Pirone; Jean-Marie Weber
158 SUBJECTIVE TRAJECTORIES IN THE TRAINING EXPERIENCE
Carla Nunes Vieira Tavares
176 FINAL RESULTS OF THE APEGI RESEARCH (PSYCHOANALYTIC MONITORING OF CHILDREN IN
SCHOOLS, GROUPS AND INSTITUTIONS)
Maria Cristina Kupfer; Leda Mariza Fischer Bernardino; Diego Rodrigues Silva
191 SEEING THE INVISIBLE OF LITERACY
Cláudia Bechara Fröhlich; Janniny Gautério Kierniew; Simone Zanon Moschen
211 ANA, TEENAGER GRADE 10? REFLECTIONS ON THE PATHOLOGIZATION OF LEARNING
Cristiana Carneiro; Raisa de Paula Fernandes da Silva
8 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 1-370, out./dez. 2020
227 THE IDEAL OF THE SCHOOL EXCELLENCE AND THE CONFLICTS LIVED BY THE POPULAR
CLASS STUDENT
Luciana Santos
246 Linguistics, psychoanalysis, educaTION And the sign language speakers
Cristóvão Giovani Burgarelli
259 THREE INSTANCES OF PATHOLOGICAL PARENTAL LOVE?
Robert Levy
ESTUDIES
268 INTERDISCIPLINARY PERSPECTIVES ON EDUCATION FROM HABERMAS, FREIRE AND SANTOS
Lúcio Jorge Hammes; Jaime José Zitkoski; Itamar Luís Hammes
287 SCHOOL FREQUENCY IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION: PERCEPTIONS OF FAMILIES AND
EDUCATION PROFESSIONALS
Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
308 RELATIONAL PSYCHOMOTRICITY FROM THE PERSPECTIVE OF THEORETICAL CONCEPTS OF
VYGOTSKY AND BRONFENBRENNER
Ângela Adriane Schmidt Bersch; Maria Angela Mattar Yunes; Susana Inês Molon
322 WHEN “TEACHER” SERVED ELITES: THE IGNÁCIO AZEVEDO DO AMARAL QUALIFICATION
SCHOOL (1950-1970)
Fábio Souza Lima
345 RELATIONS BETWEEN PNAIC TRAINING AND LITERACY PRACTICES
Andreia Martinazzo Braga; Nadiane Feldkercher
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 1-370, out./dez. 2020 9
SUMARIO
psicoanálisis y educación
12 PRESENTACÍON
Maria Cristina Kupfe; Maria de Lourdes Soares Ornellas; Elizeu Clementino de Souza
17 EL (IM)POSIBLE DE EDUCAR EN TIEMPOS DE CRISIS: EL PSICOANÁLISIS Y LA EDUCACIÓN
CRÍTICA
Marta Regina Furlan de Oliveira; Cleide Vitor Mussini Batista
31 EDUCACIÓN INFANTIL Y INFANTIL CONTEMPORÁNEA EN GIROS PLANETARIOS
Larissa Ornellas; Maria de Lourdes Soares Ornellas
42 REFLEXIONES SOBRE LA “EPIDEMIA” DE DEPRESIÓN EN ADOLESCENTES Y JÓVENES
ADULTOS A LA LUZ DE LA RELACIÓN ENTRE EL PSICOANÁLISIS Y LA POLÍTICA
Viviane Neves Legnani; Sandra Francesca Conte de Almeida
54 DE LA ESCUELA, DEL ESCOLAR, DE LA INCLUSIÓN
Carla Mercês Jatobá Ferreira; Angela Resende Vorcaro
67 PSICOANÁLISIS, LITERATURA Y EDUCACIÓN: UN ESCRITO PARA DESPATOLOGIZAR EL
SÍNTOMA DISORTOGRÁFICO
Andréa Hortélio Fernandes; Claudia Maria Tavares Saldanha
84 LA PRESENCIA DEL PSICOANÁLISIS EN LA UNIVERSIDAD: INVESTIGACIÓN Y DISPOSITIVOS
PARA LA FORMACIÓN DOCENTE
Margareth Diniz; Marcelo Ricardo Pereira
102 LA (IN)CORPOREIDAD DEL PROFESOR EN TIEMPOS DE PANDEMIA Y EDUCACION A
DISTANCIA
Kelly Cristina Brandão da Silva; Kelly Cristina Garcia de Macêdo Alcantara
117 LA FORMACIÓN DE LOS ENSEIGANANTS A LA LUZ DEL PSICOANÁLISIS
Jean Chami
127 DEL MALESTAR SOCIAL AL MALESTAR DOCENTE: CONTRIBUCIONES DEL PSICOANÁLISIS
Yara Magalhães dos Santos
147 WORKING WITH TEACHERS: A BULWARK AGAINST NEW FORMS OF SUBJECTIVE TIREDNESS
Ilaria Pirone; Jean-Marie Weber
158 TRAYECTORIAS SUBJETIVAS EN LA EXPERIENCIA DE FORMACIÓN
Carla Nunes Vieira Tavares
176 RESULTADOS FINALES DE LA INVESTIGACIÓN APEGI (MONITOREO PSICOANALÍTICO DE
NIÑOS EN ESCUELAS, GRUPOS E INSTITUCIONES)
Maria Cristina Kupfer; Leda Mariza Fischer Bernardino; Diego Rodrigues Silva
191 VER LO INVISIBLE DE LA LITERACIDAD
Cláudia Bechara Fröhlich; Janniny Gautério Kierniew; Simone Zanon Moschen
211 ANA, ¿ADOLESCENTE DE 10º GRADO? REFLEXIONES SOBRE LA PATOLOGIZACIÓN DEL
APRENDIZAJE
Cristiana Carneiro; Raisa de Paula Fernandes da Silva
10 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 1-370, out./dez. 2020
227 LO IDEAL DE EXCELENCIA ESCOLAR Y LOS CONFLICTOS VIVIDOS POR EL ESTUDIANTE DE
CLASE POPULAR
Luciana Santos
246 LingÜística, psicOanálisIS, educaCIÓN Y Los HaBlantes de uNa lEngua de
SEÑALES
Cristóvão Giovani Burgarelli
259 TRES OCORRÊNCIAS DE AMOR PATOLÓGICO DE LOS PADRES?
Robert Levy
ESTUDIOS
268 PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARIAS SOBRE EDUCACIÓN DE HABERMAS, FREIRE Y SANTOS
Lúcio Jorge Hammes; Jaime José Zitkoski; Itamar Luís Hammes
287 ASISTENCIA ESCOLAR EN LA EDUCACIÓN INFANTIL: PERCEPCIONES EM FAMILIAS Y
PROFESIONALES DE LA EDUCACIÓN
Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
308 PSICOMOTRICIDAD RELACIONAL DESDE LA PERSPECTIVA DE LOS CONCEPTOS TEÓRICOS DE
VYGOTSKY Y BRONFENBRENNER
Ângela Adriane Schmidt Bersch; Maria Angela Mattar Yunes; Susana Inês Molon
322 CUANDO EL “MAESTRO” SIRVE ELITE: LA ESCUELA NORMAL IGNÁCIO AZEVEDO DO
AMARAL (1950-1970)
Fábio Souza Lima
345 LAS RELACIONES ENTRE LA FORMACIÓN DE PNAIC Y LAS PRÁCTICAS DE ALFABETIZACIÓN
Andreia Martinazzo Braga; Nadiane Feldkercher
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 1-370, out./dez. 2020 11
Apresentação
Apresentação
Psicanálise e Educação
O dossiê Psicanálise e Educação reúne ar- nalisar a Educação e passa-se a conceber o ato
tigos que refletem sobre aproximações entre educativo como um ato de desejo. Propõe-se
estes dois constructos na contemporaneidade. escutar os processos subjetivos que emergem
Psicanálise e Educação, campo que apresentou no interior da sala de aula com vistas a exercitar
os primeiros trabalhos no Brasil no fim da a passagem, tanto do professor como do aluno,
década de 1980, para vir crescendo exponen- para as condições de professor-sujeito e aluno-
cialmente desde então, exibe um vigor e uma sujeito, necessárias para entender a constitui-
marca que torna única a produção brasileira. ção de sujeitos movidos não pela completude,
O crescimento da produção vincula-se a mas pela falta. Em meio a toda impossibilidade
tendências que podem ser resumidas com os de se fundir Educação, Psicanálise e subjetivi-
termos utilizados por Voltolini (2001),1 quando dade, é certo que a tríade começou a “se olhar”.
se trata de aproximar a Psicanálise da Educa- O dossiê aqui apresentado é um exemplo elo-
ção, mediante dois tipos de abordagem: a da quente dessa triangulação implicada.
aplicação e a da implicação. Os textos resultam de escritas sobre estudos
O dossiê aqui apresentado inclina-se, sobre- advindos de pesquisas teóricas e empíricas.
tudo, na direção de conceber que a Psicanálise O dossiê reúne trabalhos que apontam para
e a Educação guardam entre si uma relação articulações importantes do enlace entre Edu-
de implicação. Quando se fala de implicação, cação, Psicanálise e subjetividade e, essencial-
a Psicanálise deixa de iluminar, e de pensar mente, provoca questões de aprofundamento
sobre a Educação; deixa também de se colocar a respeito do próprio processo educativo, das
em posição de exterioridade. Quando se adota relações transferenciais na sala de aula, do mal
a perspectiva da implicação, entende-se que
-estar da civilização, do sofrimento psíquico do
a conexão entre as duas disciplinas produz a
professor, das dificuldades do ato de aprender.
introdução do psicanalítico, ou, se quiserem, do
Os artigos representam, de certa forma, o vigor
sujeito, no âmago do educativo. Desta perspec-
do campo de conhecimento, relações de parce-
tiva, trata-se de supor um sujeito no aluno, e de
rias e cooperações acadêmicas, apresentando
ampliar o ato educativo de modo a nele incluir
reflexões significativas do que se produziu
o sujeito do desejo (KUPFER et al, 2010).2
nesse campo, confirmando as tendências que
Essa ampliação do ato educativo transforma
aí costumam delinear-se.
o campo educativo e o recria, transformando-o
A reunião dos artigos do dossiê revelou
em uma Educação para o sujeito.
ainda outras linhas de força e se configurou
Assim, deixa-se de lado a ambição de psica-
como uma amostra de alguns dos principais
1 VOLTOLINI, Rinaldo. As vicissitudes da transmissão da temas em que o campo das articulações entre
psicanálise a educadores. In: COLOQUIO DO LEPSI IP/
FE-USP, 3., 2001, São Paulo. Anais eletrônicos [...]. Dis- Psicanálise e Educação vem trabalhando nos
ponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo. últimos trinta anos. Os temas que o dossiê cap-
php?script=sci_arttext&pid=MSC000000003200100030
0036&lng=en&nrm=abn. Acesso em: 20 dez. 2020. turou foram, predominantemente, três: a) as
2 KUPFER, Maria Cristina Machado. Et al. A produção reflexões críticas sobre a escola na pólis; b) os
brasileira no campo das articulações entre psicanálise
e educação a partir de 1980. Estilos da Clínica, São artigos sobre formação docente; c) os estudos
Paulo, v. 15, n. 2, p. 284-305, dez. 2010. Disponível sobre o aluno e seu aprender.
em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1415-71282010000200002&lng=pt&nrm
O primeiro grupo de artigos aborda as re-
=iso. Acesso em: 20 dez. 2020. lações da escola no mundo contemporâneo,
12 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 12-16, out./dez. 2020
Maria Cristina Kupfe; Maria de Lourdes Soares Ornellas; Elizeu Clementino de Souza
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 12-16, out./dez. 2020 13
Apresentação
Dois artigos de autores franceses vêm se escola, as crianças fazem uso de identificações
somar à discussão sobre formação docente, que as constroem como sujeitos e dão as bases
de um modo que complementa os brasileiros, para seu aprender.
guardando, porém, sua posição diversa. Ilaria Cláudia Bechara Fröhlich, Janniny Gautério
Pirone e Jean-Marie Weber escrevem sobre Kierniew e Simone Zanon Moschen, em Ver o
Trabalhar com professores: um baluarte con- invisível do letramento, dão a ver o que a psica-
tra novas formas de fadiga subjetiva. No texto, nálise permite ver: que o tempo de passagem,
procuram demonstrar que uma nova forma na criança, da condição de não letrado à de
de fadiga difusa entre os professores pode ser letrado não é o cronológico, mas aquele que
pensada como um sintoma social, e que o uso Lacan chama de lógico. O uso desse operador
do dispositivo de análise clínica das práticas poderá ser, então, precioso para o professor
sociais pode permitir uma re-circulação da e lhe dar contornos para as angústias dessa
palavra entre os profissionais das profissões passagem.
humanas. Já Jean Chami, em A formação de pro- Ainda da perspectiva do aluno e seu apren-
fessores à luz da psicanálise, aborda a questão der, Cristiana Carneiro e Raisa de Paula Fer-
da subjetividade e da natureza dos “sujeitos” nandes da Silva, no artigo Ana, adolescente
da prática profissional. Em seu trabalho de nota dez? Reflexões sobre a patologização do
formação de professores, Chami observa neles aprender, mostram como o olhar da Psicanálise
a passagem das condutas irracionais e incons- pode subverter velhas categorias escolares e
cientes para uma ação mais racional. diagnósticas, ao discutirem a diferença entre
No artigo Do mal-estar social ao mal-estar a preponderância do organismo nas leituras
docente: contribuições da psicanálise, de Yara sobre entraves no aprender e sua relação com
Magalhães dos Santos, são apresentados os a patologização, permitindo uma nova com-
resultados de uma pesquisa com professores preensão sobre o aprender e sua relação com
do ensino médio, cujo objetivo foi o de com- a escola.
preender possíveis razões do mal-estar entre O ideal da excelência escolar e os conflitos vi-
professores, compreendendo-se o mal-estar de vidos pelo aluno de classes populares, de Luciana
uma perspectiva psicanalítica. Santos, é um artigo que procura compreender
Em seguida, o leitor poderá ler cinco arti- o ideal da excelência escolar e a relação entre
gos que discorrem sobre o aluno e seu lugar esse ideal e a história singular do estudante.
de aprendiz, pode-se dizer, no chão da escola. Considera alguns conceitos da Psicanálise,
Têm em comum o fato de se debruçarem sobre sobretudo eu ideal, ideal do eu e supereu,
o aprendiz, oferecendo chaves de leitura oriun- para analisar os conflitos vividos pelos alunos
das da Psicanálise e capazes de criar condições diante das demandas idealizadas presentes em
para o enfrentamento da angústia de estar, escolas de alto rendimento. Com isso, questio-
professores e alunos, às voltas com a impos- na e desnaturaliza o ideal de excelência, que
sibilidade de eliminar o mal-estar inerente ao angustia muitos alunos-sujeito.
ensinar e ao aprender. O tema da aquisição da escrita também é
Em Resultados finais da pesquisa APEGI caro ao campo das articulações Psicanálise/
(Acompanhamento Psicanalítico de Crianças em Educação. Para a Psicanálise, é o sujeito quem
Escolas, Grupos e Instituições), Maria Cristina comanda o letramento, o que obriga o profes-
Kupfer, Leda Mariza Fischer Bernardino e Diego sor a lhe dar voz. Assim, é bem-vindo o artigo
Rodrigues Silva apresentam os resultados de de Cristóvão Giovani Burgarelli, Linguística,
uma pesquisa de validação de um instrumento psicanálise, educação e os falantes de uma
que introduz um eixo de leitura pouco usual nas língua de sinais. No texto, o autor afirma que
escolas: o da relação entre pares. No chão da se deve privilegiar a elaboração lacaniana
14 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 12-16, out./dez. 2020
Maria Cristina Kupfe; Maria de Lourdes Soares Ornellas; Elizeu Clementino de Souza
em torno de uma teoria da escrita, uma vez porâneas da educação, notadamente no que se
que a experiência educativa com os falantes refere aos processos formativos, com ênfase
de Libras não pode deixar de interrogar-se a no perfil dos egressos dos cursos, necessida-
respeito das condições de fala dos educandos des e demandas da sociedade, destacando a
nela envolvidos. urgência de um conhecimento interdisciplinar
O dossiê fecha com o artigo de Robert Levy, e a responsabilidade ética e cidadã. Tais dis-
Três ocorrências de amor patológico dos pais?, cussões são ancoradas em princípios teóricos
voz solitária neste dossiê, que discorre sobre sistematizados por Habermas, Freire e Santos,
a não menos importante educação parental, e possibilitando aos autores compreensões sobre
sobre a qual um psicanalista pode falar com interdisciplinaridade, crise de paradigmas e
muita experiência. Mais do que isso: Levy põe as alternativas para o futuro em sociedade e
em cena o lugar do amor na educação dos filhos questões concernentes à formação cultural.
e examina o impacto que o desejo pode ter na Maria Beatriz Vasconcelos Silva e Lívia Fraga
fantasia infantil, perguntando-se sobre seus Vieira, no texto Frequência escolar na educação
efeitos na construção do sintoma. Fecha, assim, infantil: percepções das famílias e dos profissio-
o dossiê com chave de ouro. nais da educação, objetivam conhecer motivos,
Esperamos que o leitor encontre no dossiê fatores influenciadores e justificativas da in-
a oportunidade de ampliar seus horizontes frequência das crianças na educação infantil,
ao refletir sobre essa pequena porém valiosa ao analisarem diários de classes e respostas
amostra do vasto campo das aproximações de questionários aplicados aos familiares e
entre Psicanálise e Educação. São dois saberes profissionais da educação de três Escolas Mu-
distintos, no entanto, mesmo sabendo que os nicipais de Educação Infantil da Secretaria de
discursos marcam diferenças, podem se escu- Educação de Belo Horizonte, MG, selecionadas
tar e dialogar com as formações discursivas a partir do Índice de Desenvolvimento Humano
que enodam o processo de aprender e ensinar. Municipal do bairro.
O leitor poderá desvelar as trilhas labirín- No artigo Psicomotricidade relacional sob a
ticas do desejo presentificadas em cada letra, ótica de conceitos teóricos de Vygotsky e Bron-
o que lhe permitirá articular várias rotas fenbrenner, Ângela Adriane Schmidt Bersch,
possíveis para pensar a formação docente, o Maria Angela Mattar Yunes e Susana Inês Mo-
processo de ensinar e aprender e a instituição lon apresentam questões relacionadas à Psico-
escola; assim, poderá embriagar-se com essas motricidade Relacional (PR), ao tomarem como
letras escritas e inscritas nesse dossiê – epifa- referência conceitos da teoria sócio-histórica
nia de um novo tempo. de Lev Semionovitch Vygotsky e da teoria Bioe-
A seção estudo organiza-se a partir de cológica de Urie, ao enfatizarem disposições de
cinco textos que tematizam questões sobre aspectos lúdicos do brincar com movimento e
interdisciplinaridade e educação mediadas expressões corporal/artística/musical/verbal
por questões filosóficas, aspectos concernen- na perspectiva da PR.
tes à frequência escolar na educação infantil, O artigo de Fábio Souza Lima, intitulado
psicomotricidade e dimensões educativas, dis- Quando “ser professor” servia às elites: a Escola
cussões histórias sobre formação docente e ser Normal Ignácio Azevedo do Amaral (1950-
professor, finalizando com problematizações 1970), objetiva problematizar questões sobre
sobre formação docente, PNAIC e alfabetização. a formação de professores como interesse das
O texto Perspectivas interdisciplinares na elites cariocas, através da análise histórica da
educação a partir de Habermas, Freire e Santos, instalação da Escola Normal Ignácio Azevedo
de Lúcio Jorge Hammes, Jaime José Zitkoski e do Amaral no bairro da Lagoa, Zona Sul, entre
Itamar Luís Hammes, discute questões contem- os anos de 1950 e 1970, tomando como fonte
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 12-16, out./dez. 2020 15
Apresentação
16 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 12-16, out./dez. 2020
Marta Regina Furlan de Oliveira; Cleide Vitor Mussini Batista
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p17-30
O (IM)POSSÍVEL DE EDUCAR EM
TEMPOS DE CRISE: PSICANÁLISE
E EDUCAÇÃO CRÍTICA
Marta Regina Furlan de Oliveira (UEL)*
https://orcid.org/0000-0003-2146-2557
Resumo
A psicanálise comunga com a educação crítica a preocupação com a subjetividade
humana, uma vez que provoca investimentos e emoções que permitem reflexões
em tempos de crise, principalmente ao inspirar no professor um permanente
retorno a si mesmo, ou seja, a autorreflexão. Esse texto objetiva buscar, na relação
entre psicanálise e educação crítica, possíveis referências para além do olhar
psicologizante educacional que se firma em caminhos restritos da educação
e da formação docente. O aspecto fecundo desta relação entre a psicanálise e
a crítica da cultura evidencia o pensar educativo pelos limiares da ética e da
sensibilidade com/pelo o outro. A metodologia, de caráter bibliográfico, pauta-se
na apropriação de uma leitura frankfurtiana do pensamento de Freud, em que
denuncia a formação pautada na adaptação do sujeito e, pela relação entre as
bases teóricas, anuncia uma educação comprometida com ações emancipatórias
do saber escolar.
Palavras-chave: Educação. Contemporaneidade. Psicanálise. Teoria crítica.
ABSTRACT
THE (IM)POSSIBLE TO BE EDUCATED IN TIMES OF CRISIS:
PSYCHOANALYSIS AND CRITICAL EDUCATION
Psychoanalysis shares with critical education the concern with human
subjectivity, since it provokes investments and emotions that allow reflections
in times of crisis, mainly by inspiring in teachers a permanent return to
themselves, that is, self-reflection. This paper aims to seek, in the relationship
between psychoanalysis and critical education, possible references beyond the
educational psychologizing view that firms itself on restricted paths of education
and teaching formation. The fruitful aspect of this relationship between
* Pós-doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Doutora em Educação
pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professora associado do Departamento de Educação e do Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: mfurlan.uel@gmail.com
** Pós-doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e em Psicanálise pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora associado da Universidade
Estadual de Londrina (UEL). E-mail: cler.psico@gmail.com
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 17-30, out./dez. 2020 17
O (im)possível de educar em tempos de crise: psicanálise e educação crítica
RESUMEN
EL (IM)POSIBLE DE EDUCAR EN TIEMPOS DE CRISIS: EL
PSICOANÁLISIS Y LA EDUCACIÓN CRÍTICA
El psicoanálisis comparte con la educación crítica la preocupación por la
subjetividad humana, ya que provoca inversiones y emociones que permiten
la reflexión en tiempos de crisis, principalmente al inspirar en el profesor un
retorno permanente a sí mismo, es decir, la autorreflexión. El presente texto
tiene por objeto buscar, en la relación entre el psicoanálisis y la educación crítica,
posibles referencias más allá de la visión psicologizante de la educación que se
afirma en los caminos restringidos de la educación y la formación docente. El
aspecto fructífero de esta relación entre el psicoanálisis y la crítica de la cultura
pone de relieve el pensamiento educativo a través de los umbrales de la ética y
la sensibilidad con/por el otro. La metodología, de carácter bibliográfico, se basa
en la apropiación de una lectura francfortiana del pensamiento de Freud, en la
que denuncia la formación basada en la adaptación del sujeto y, por la relación
entre los fundamentos teóricos, anuncia una educación comprometida con las
acciones emancipadoras del conocimiento escolar.
Palabras clave: Educación. Contemporaneidad. Psicoanálisis. Teoría crítica.
Palavras iniciais
A Psicanálise não pode interessar à Educação salvo no Segundo Zuin (2012, p. 9), “[...] há uma
próprio campo da Psicanálise, isto é, pela psicanálise violência implícita no processo de ensinar e
do educador e da criança. (MILLOT, 1987, p. 157).
aprender. E o professor, pelos muitos anos que
Em tempos atuais, é nítido o incentivo o aluno permanece na escola, particularmente
para o desenvolvimento das competências e na sociedade contemporânea, é o representan-
habilidades em relação ao processo educati- te primeiro da polis para realizar essa função”.
vo e formativo dos sujeitos envolvidos. Essa A sociedade, por sua vez, segundo esse autor,
tendência educacional moderna, que aparen- estabelece e acompanha o que deve ser ensi-
temente é democrática por defender alunos nado, ou seja, por meio de costumes, normas
autônomos que buscam o conhecimento de e leis dá ao professor o suporte material para
maneira independente nos diversos recursos a condução do processo educacional.
existentes, auxilia na produção de sujeitos sem Ao considerarmos, pela ótica psicanalítica,
subjetividade. Desde seu início, a educação é a função materna como fundante da educação,
uma forma de (im)posição de novas maneiras compreendemos o ato educativo como estrutu-
de se comportar, de ver o mundo, de se adaptar rado a partir das experiências primordiais, sem
à sociedade em que se vive. as quais nossa existência ficaria comprometida,
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e não o ato educativo como ação que desenvol- e obstáculos existentes na realidade que dão
ve habilidades e competências e oferece forma- suporte aos tabus com se cercou o magistério”
ção em nível meramente institucional. Em Zuin (ADORNO, 1995, p. 114). Sobretudo, no que se
(2012, p. 10), “o aluno, desde criança, se desen- refere à formação docente “é necessário tratar
volve à contramão de sua natureza primeira, aqueles pontos nevrálgicos ainda na fase de
antes se adapta ao que lhe impõe a sociedade formação dos professores, em vez de orientar a
que constrói a autonomia de seu eu [...]”. Ainda, sua formação pelos tabus vigentes” (ADORNO,
é acometido de descrença e desencanto, cada 1995, p. 114).
vez maior, de que o processo educacional e Nesse sentido, refletimos que se ao esforço
formativo lhe possa de fato proporcionar uma da educação for aliada uma perspectiva psica-
melhor qualidade de vida. nalítica e crítica, pode-se pensar em um sentido
Dessa forma, indagamos: Qual seria o pos- parcialmente eficiente no que tange à formação
sível lugar da civilização e da educação na humana. Na esfera educacional somos desafia-
constituição do sujeito? A Psicanálise pode dos a refletir e atuar de modo comprometido
transmitir ao professor uma ética, um modo com a desnaturalização da concepção de sub-
de ver e de entender sua prática educativa? jetividade, com a ruptura da lógica patologi-
Este saber pode gerar uma intencionalidade zadora, instrumental e discriminatória. Cabe
de trabalho na ação docente? rompermos com os reducionismos, com visões
Para responder tais indagações, temos que adaptativas do conhecimento e tecer narrativas
pensar no debate sobre a educação em tempos outras.
de crise (século XXI) e nos reportarmos às Essa reflexão busca avançar na problemática
questões da instituição escolar enquanto um que a formulação do (im)possível de educar
dos espaços formativos contemporâneos e não nos delega em relação aos pontos de atravessa-
necessariamente o mais importante. Em Freud mento entre a educação e as práticas escolares
(1981e), há a compreensão de que, antes da es- humanizadoras do ensino. Freud, no Prefácio à
cola, a criança vivencia experiências psíquicas “Juventude Desorientada” de Aichhorn (FREUD,
por um tempo longo e significativo. Em Adorno 1980a) e no texto Análise Terminável e Inter-
(1995) há, também, a compreensão acerca da minável (FREUD, 1980b), alerta que educar,
formação a partir de uma determinada condi- psicanalisar, governar são “ofícios impossíveis”
ção social assumida pelo contexto histórico. porque se exercem nesse movimento necessá-
Adorno (1995), nesse sentido, deposita na rio, que não cessa de fluir, que escapa, portanto,
escola poucas possibilidades de emancipação a toda apreensão pelo conceito.
frente à barbárie civilizada. A psicanálise entende que é impossível que o
Esta barbárie civilizada direciona para dois ato de educar garanta um desempenho elevado
lados cruciais no processo educativo-formativo: e regular dos gestos profissionais; que a noção
De um lado, o sadismo pedagógico dos mestres, de competência é bastante vacilante para se
que desde tempos remotos sentem prazer em fixar como razão; que o fracasso do empreen-
castigar, diante de seus colegas de classe, os alu- dimento educativo é sempre constitutivo; que
nos que erram; de outro lado, os sentimentos de
amor e ódio dos discípulos em relação aos seus
toda racionalidade técnica e metodológica é
mestres, sentimentos que, igualmente, acompa- impedida de excluir o insucesso e o erro.
nham a profissão de ensinar desde seus inícios Lacan (2005, p. 58) salienta que “as pessoas
e que, em tempos de tecnologias da informação não percebem muito bem o que querem fazer
e comunicação, ganham destaques, intensidade quando educam [...] e são tomadas pela angús-
e dramaticidade. (ZUIN, 2012, p. 10).
tia quando pensam no que consiste educar”.
Por conseguinte, em relação aos professores, Na realidade, um professor vive essa angústia
“é necessário eliminar quaisquer limitações sob o signo da impotência ao estar diante das
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incertezas de seu ato, das pulsões, das mani- caráter bibliográfico, pauta-se na apropriação
festações da sexualidade de si e do outro, das de uma leitura frankfurtiana do pensamento de
ambivalências, das invariantes diagnósticas, Freud, em que denuncia a formação pautada na
das irrupções da violência, do desinteresse adaptação do sujeito e anuncia uma educação
e da apatia dos alunos, além de estar diante comprometida com ações emancipatórias em
de sujeitos em sua pura diferença, tendo que contraposição ao praticismo reinante nas in-
exercitar o legítimo imperativo social de fazê tervenções educativas e formativas.
-los incluídos. Ou seja, é como se o professor se Essa forma adaptativa da educação promo-
sentisse paralisado catatonicamente ao saber ve a crise ou falência do ensino que, ancorada
e ter de lidar com os afastamentos, os diversos por um ideal de sujeito, tem buscado um tipo
modos de aprender, a experiência subversiva de sociedade e de humanidade. Esta crise ou
da agressividade e da sexualidade e se afirmar: falência revela certa racionalidade sobre o indi-
“Não sei mais o que fazer! Não tem mais jeito! víduo, visando dominar e oferecer garantias à
Frente a isso me sinto impotente!”. ordem social e utilitarista. Em contraposição a
Assim, esses ofícios impossíveis se tornam este modelo de educação e formação, buscamos
possíveis sem, contudo, ter a garantia de que em Adorno (2010) a autoridade do professor
eles venham a obter resultados tangíveis e enquanto possível sustentáculo humano do
definitivos. E salientamos que aqui reside a processo educacional-formativo do aluno.
angústia: não ter a garantia. Ao contrário, os Por esse ângulo, a estrutura do texto se pau-
resultados têm a ver, de um lado, com o real, ta em quatro momentos didaticamente separa-
o impossível, portanto, o não mensurável e, dos, mas que no movimento do pensamento são
ainda, com a contingência, que é também im- correlacionados: a) contextualização da civili-
previsível. Em outras palavras, “isso requer zação na constituição do sujeito via psicanálise
processos formativos pautados no respeito às e educação crítica; b) reflexão sobre a escola
alteridades e práticas de liberdade entretecidos enquanto lócus do conhecimento dialético com
com a construção da ética, da cidadania, da de- o outro; c) a psicanálise, a educação crítica e
mocracia e referenciais de justiça” (SCHWARZ; o sentido de educar em tempos atuais; d) em
formato conclusivo, a psicanálise e a condução
BARBOZA, 2020, p. 119). Assim, para Adorno
da ética na educação.
(2010, p. 13):
Destarte, intencionamos apresentar e ca-
A formação devia ser aquela que dissesse res- racterizar à luz da reflexão crítica os ditames
peito – de uma maneia pura com seu próprio
espírito – ao indivíduo livre e radicado em sua
formativos estabelecidos, bem como a ausên-
própria consciência, ainda que não tivesse dei- cia do compromisso com a vida humana em
xado de atuar na sociedade e sublimasse seus sua subjetividade, que denomina no termo
impulsos. A formação era tida como condição utilizado por Adorno (1995) como crise da
implícita a uma sociedade autônoma: quanto formação. Ainda, a relação entre a psicanálise e
mais lúcido o singular, mais lúcido o todo. a educação crítica como momento de travessia
Desse modo, esse ensaio teórico tem como em busca de uma educação ética e compro-
objetivo principal buscar na relação entre metida com a formação íntegra dos sujeitos
psicanálise e educação crítica possíveis refe- sociais pelas confluências entre o espírito e
renciais formativos que vão para além do olhar a autonomia que, de certa forma, constitui o
psicologizante da educação e da formação conceito de formação (ADORNO, 2010). Desse
docente. Ao considerarmos o aspecto fecundo modo, o homem deve ser um cidadão de seu
desta relação é possível pensar a educação em tempo, integrando-se no conhecimento e no
tempos de crise, bem como construir horizon- desenvolvimento das potencialidades huma-
tes de sentido e de esperança. A metodologia, de nas. Ainda, precisa ser um crítico de seus dias,
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prio tabu. Posteriormente, a punição viria dos Ao retomar a civilização, no tocante ao cam-
deuses, a partir do momento no qual eles foram po educacional dos sujeitos, Freud, um homem
vinculados ao tabu. O tempo que culminou com da era vitoriana, pôde ver um grande fator para
a punição realizada pela própria sociedade a constituição da neurose; contudo, a cultura,
encontra-se próximo ao nosso sistema de leis e no mesmo golpe que faz instalar a neurose
normas, no qual a sociedade representada pelo como um dos impedimentos à satisfação da
judiciário dita a pena a ser cumprida pelo réu. pulsão, também funciona como uma abertura
Um outro exemplo reside na instituição mo- à atuação do princípio do prazer e do desejo.
derna escolar, marcada por normas escolares. Sobre esse assunto, Türcke (2010) considera
O tabu, assim como as leis da contemporanei- que essa neurose apontada por Freud nada
dade, encontra sua eficácia no temor causado mais é do que os fenômenos/efeitos do mundo
aos indivíduos. O tabu provocava temor ao contemporâneo, no caso. Ainda, situa o cotidia-
restringir o acesso ao que seria o prazer ou no social e cultural mais tangível em relação
a liberdade, dentre outras possibilidades de aos processos psíquicos e sociais imemoriais
satisfazer a pulsão (FREUD, 1980b). e, de certo modo, explica que as neuroses são
Ultrapassar as regras relativas ao tabu reflexos de compulsões de sujeitos à repetição
acarretava uma punição. O indivíduo deveria e ao sensacionalismo.
ser punido, pois o seu ato era a manifestação
de impulsos inconscientes que poderiam levar A Escola, o Conhecimento e o
a uma desordem capaz de desestruturar um
grupo; poderíamos acrescentar − uma institui- Outro
ção. O tabu emerge, portanto, como algo não Tal conhecimento não produz um efeito pa-
somente coercitivo, mas também como ele- ralisante; pelo contrário, ele mostra à nossa
mento de coesão. O responsável pela violação atividade a direção que deve tomar. (FREUD,
1981e, p. 29).
do tabu torna-se, ao mesmo tempo, um tabu;
essa medida procura garantir que os demais A escola é responsável por transmitir co-
não tenham ações de forma semelhante. nhecimento, mas parece que não só o acúmulo
O processo civilizatório impõe ao sujeito desse, de forma passiva, está em questão. A
uma renúncia pulsional, ou seja, o impossibi- demanda educativa pressupõe o trabalho de
lita da completa e derradeira satisfação. Sobre um sujeito do desejo que irá buscar o conhe-
isso, vemos em Adorno (1995) que é preciso cimento. A pergunta que fica para os alunos é:
contrapor-se à barbárie, principalmente no o que o professor quer de mim? Ou melhor, o
contexto educacional, a fim de construir e dis- que o Outro quer de mim? Contudo, satisfazer
seminar um novo olhar, um olhar adversário de o que o Outro quer do sujeito diz respeito a
todas as formas de barbárie, principalmente no uma condição objetal. Entretanto, a resposta
que se refere ao pensar no sujeito que está à à demanda do Outro pode se constituir como
margem. Considerar as minorias vexadas que um trabalho do sujeito frente ao Outro e à sua
ainda não superaram os processos pouco per- própria condição objetal que lhe é inerente.
ceptíveis impostos pelos detentores do poder. Assim, a demanda educativa pode pressupor
Por isto, é importante, do ponto de vista social, na criança um sujeito do desejo que seria capaz
que as instituições formativas assumam sua de metaforizar tal demanda. Assim, caberia ao
função emancipatória na formação humana, aluno transformar a demanda educativa em
auxiliando crianças, adolescentes e jovens na um modo próprio de se apropriar do ensino,
tomada de consciência do “pesado legado de transformando-a em desejo de outra coisa.
representações que carrega consigo (ADORNO, Entretanto, por vezes, a demanda educativa
1995, p. 117). na instituição escolar se mostra excessiva,
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linhas anteriores, temos o sujeito como efeito sua própria singularidade − o que pode ser um
da operação da falta no Outro, que leva consigo ponto de partida para a aprendizagem e para
a diferença que estava em questão no início do uma educação contra a barbárie.
processo educativo (entre aluno e professor).
Nessa direção, podemos inferir que a edu-
cação comporta uma transmissão, mas não se
Psicanálise, Educação Crítica e
exaure nela e, até mesmo, coloca-se em evi- o Sentido de Educar
dência quando as práticas pedagógicas “orto-
pédicas” entram em cena (FREUD, 1981e). Em O pensamento aguarda que, um dia, a lembrança
do que foi perdido venha despertá-lo e o trans-
sintonia com os limiares da teoria crítica e dos
forme em ensinamento. (ADORNO, 1995, p. 10).
pensadores da Escola de Frankfurt, há nesse
conceito – práticas pedagógicas ortopédicas A relação entre psicanálise e educação vem
– a fragilidade de uma cultura formativa ou a de longa data, principalmente no que se refere
educação convertida ao caráter antirreflexivo, ao interesse freudiano pela pedagogia na inten-
em seu praticismo, no sentido de permanecer ção de predispor uma melhor compreensão por
estanque em relação ao próprio conceito, ou parte dos professores sobre o desenvolvimento
seja, é a educação pautada na severidade, dis- da criança e do adolescente (FREUD, 1981b). À
ciplina rígida, dureza e indiferença ao outro, luz dos preceitos de Freud, afirmamos que os
próprios da produção material da vida refletida professores exercem grande influência sobre
pela barbárie. a criança por estarem investidos da relação
Desse modo, a educação precisa combater afetiva primitivamente dirigida ao pai. Os
a frieza produzida intencionalmente, conhe- sentimentos de admiração e de respeito são
cendo os aspectos que a produzem. Segundo transferidos do pai para o professor, assim
Adorno (1995, p. 136), “o conhecimento desses como a “ambivalência afetiva” que reside na
mecanismos é uma necessidade”. Contudo, por antítese amor-ódio.
mais que haja aproximações, faz-se necessária Mesmo sem nos ter deixado escrito algo
a diferenciação entre a pedagogia e a educação sobre a educação, realçamos que, em toda a
no que tange às consequências de ambas para obra de Freud há uma inquietude constante
o sujeito. Trata-se, pois, de uma crítica à falta com as questões desse campo formativo, no
de diálogo entre professor e aluno ou de res- sentido de que a psicanálise, nascendo de uma
peito à singularidade de cada um, junto com a prática clínica, constrói um corpo teórico fun-
possibilidade de o próprio professor aprender damentando uma nova concepção de mundo e
com o que o aluno pode vir a lhe ensinar numa de homem, como ser histórico, social e cultural,
relação dialética e humanizadora do ensino. e tenta compreender como se dá a inserção
Quanto ao lugar ocupado pelo professor, desse homem na cultura. Os textos Totem e
Ranciére (2005) propõe o de orientador de um Tabu (FREUD, 1981b), O porvir de uma ilusão
caminho apontado pelo próprio aluno. Trata-se (FREUD, 1981d) e O mal-estar na civilização
daquele que se situa em um outro lugar diante (FREUD, 1981d), de Freud, expõem sua visão
da obra, haja vista ela já ter passado em um evolutiva tanto do indivíduo como da cultura,
momento outro. A proposta de Ranciére (2005) considerando o desenvolvimento do homem
é a de que essa certa distância entre o profes- numa interação com o meio social.
sor e aquilo a ser transmitido pode vir a abrir Crochík (2011, p. 19), urdido dos funda-
possibilidades outras de leitura da obra. Pode- mentos frankfurtianos em sintonia com as
ríamos afirmar, no bojo da presente pesquisa, contribuições de Freud, revela que a “formação
que se trata da aposta de que o aluno/a criança do indivíduo ocorre na relação sujeito-objeto e
possa vir a inventar algo na escola a partir da a distinção entre esses dois polos e a predomi-
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nância de um deles sobre o outro apresentam desde seu início, deve ser apresentada ao mun-
problemas na sua constituição”. Há em nosso do e estimulada a mudá-lo pelo processo de
tempo, e até mesmo contexto da escola, a educação e emancipação que Adorno (1995)
dificuldade de identificação expressada pela tão claramente defende.
identificação negada e pela ausência de identi- Outra importante contribuição da psicaná-
ficação, ou seja, “se os homens não podem mais lise para a educação é encontrada em autores
se identificar por meio de suas diferenças, mas que foram influenciados também pela releitura
somente por meio de uma racionalidade que lacaniana da obra de Freud. Mannoni (1973)
de meio se converteu em fim, a identificação observa que, na relação professor-aluno, é
resultante é a negação da própria identificação” criada uma barreira entre o um professor “que
(CROCHÍK, 2011, p. 29). sabe tudo” e um aluno “que não sabe nada”, que
Ao relacionar essa negação do indivíduo garante e contém um conjunto de proteções e
com a educação, abstraímos do texto de 1927, resistências. A pedagogia funciona como um
O porvir de uma ilusão (FREUD, 1981d), a drama que repete muitas vezes situações da
preocupação freudiana em relação ao proble- família. Na escola, o desejo de saber do aluno
ma da educação e, desse modo, o texto é como se confronta com o desejo do professor, que
um testamento pedagógico. A pressão que a está ligado a um ideal pedagógico colocado por
sociedade exerce sobre o indivíduo desde sua ele mesmo, desde o início, e que se interdita
infância, a partir da educação, faz com que a ao mesmo tempo em que se mostra ao aluno.
criança se conforme a uma realidade, que é, de O professor espera do aluno um saber que lhe
regra, a de dissimular sua investigação e seu falta, e o aluno, por sua vez, se defende com
conhecimento de tudo o que possa se relacio- medo de se ver frustrado no produto do seu
nar à sexualidade. A finalidade da educação é a trabalho. O aluno se encontra numa relação
instauração do princípio de realidade, ou seja, é de poder, sujeito a um desejo inconsciente do
permitir ao indivíduo, submetido ao princípio professor, que pode chegar a ser bloqueador ou
do prazer, a passagem de pura satisfação das proporcionador do pensar e agir suprimidos.
pulsões para um universo simbólico, que faz Crochík (2011) afirma que a subjetividade não
referência a uma lei, a lei da castração, que se se desenvolve mais a partir da interiorização
associa ao processo de adaptação e impedi- da cultura como outrora, porque a experiencia,
mento da subjetividade humana. A entrada no no limite, foi suprimida.
universo simbólico se dá pela linguagem. É pela Assim,
mediação da palavra, à qual, desde sempre a A existência de um eu presente em cada refle-
criança encontra-se submetida, que é possível xão que permite a continuidade; e, portanto, a
a simbolização das relações afetivas (ARMAN- história individual é substituída pela mudança
contínua do indivíduo que deve se adaptar a
DO, 1974).
cada nova situação, abandonando o que sabia
É essa condição de ser submetido à lingua- anteriormente. É mais adaptável o que não tem
gem que diferencia o homem dos outros ani- princípios e convicções, o que percebe as regras
mais, caracterizando-o em sua especificidade, existentes em cada situação e as utiliza a seu
ao mesmo tempo em que permite a consti- favor para atingir seus objetivos, nem sempre
tuição de sua subjetividade. A psicanálise, ao racionais. (CROCHÍK, 2011, p. 18).
colocar a linguagem como marca do humano, Para Mauco (1979), o professor age sobre
possibilita uma aproximação com as questões a criança muito mais no nível do inconsciente
da educação, principalmente no que diz respei- do que do consciente. Ele não age apenas pelo
to à importância que o professor deve atribuir que diz ou pelo que faz, mas sim pelo que é.
àquilo que a criança diz e pensa, bem como ao As relações afetivas acontecem de formas
que é dito a ela. Em Arendt (2013), a criança, variadas. Cada um procura satisfazer seus de-
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sejos inconscientes. Todavia, a criança, por ser mas de propostas pedagógicas, principalmente
frágil psiquicamente, com um eu que deve se no que tange ao oferecimento à criança da
construir à imagem dos adultos em sua volta, é oportunidade de verbalizar suas tensões.
particularmente atingida pelos desejos incons- É dessa maneira que a psicanálise pode auxi-
cientes de seus educadores. Crochík (2011, p. liar o educador, possibilitando uma compreen-
18-19) nos direciona para o olhar as práticas são profunda e complexa do sujeito, no que ele
docentes que se amoldam e se expressam ao tem de mais pessoal e de mais íntimo. Para tal,
menos de duas maneiras: é necessário que a escola se distancie da rela-
[...] na ingenuidade e no oportunismo. Assim, ção submissa e passiva diante da “autoridade”
o ingênuo se adapta sem pensar, julgando que que, muitas vezes, é refletida no autoritarismo
sua atitude não tem consequências importantes docente. Sobre isso, Oliveira (2019, p. 79), ao
para os outros e para sim mesmo; o oportunista tratar da educação e do papel de professores
justifica essa mesma atitude definindo que os à luz dos fundamentos arendtianos, evidencia
‘homens são assim mesmo’, ‘todos têm de se
virar’ e, assim, deve-se, com certeza, ludibriar
que a questão da autoridade legítima docente
os outros para se obter o que deseja. não deve residir na violência e ou na força,
tampouco na persuasão, pois “persuadir im-
Sendo assim, ressaltamos que não basta a plica que a relação se estabeleça numa esfera
criança possuir uma inteligência e uma saúde de igualdade, haja vista que a eficiência da
física satisfatórias para se desenvolver e se ordem se dá pelo melhor argumento”. Desse
afirmar na aprendizagem escolar. É necessário modo, acrescenta essa autora que “uma relação
também que tenha uma educação afetiva que mediada pela violência angaria obediência, mas
lhe permita desenvolver uma sensibilidade uma obediência por medo, e não por respeito,
relacional com os outros, podendo se servir não pode ser considerada como um projeto de
de suas capacidades físicas e intelectuais. A autoridade e de educação” (OLIVEIRA, 2019,
escola é um meio de grande importância para p. 79). Para tanto, a relação professor-aluno
esse desenvolvimento das relações afetivas da depende, em grande medida, da maturidade
criança com os adultos, assim como também afetiva do professor. Se esta lhe permite re-
com as outras crianças da mesma idade. É tam- solver suas próprias dificuldades, ele poderá
bém na escola que a criança deve aprender a se ajudar a criança a viver e a resolver as suas
relacionar com o outro em diálogo permanente, angústias subjetivas.
se constituindo em trocas com todos aqueles a Mauco (1979, p. 167) ainda acrescenta que,
sua volta (PEDROZA, 1993). ao reagir afetivamente, “eles me põem doida”, o
Não obstante, há que se considerar que a adulto perde sua superioridade e a autoridade
criança, ao chegar à escola, traz consigo uma de sua função educativa, que exige, ao mes-
experiência relacional vivida com a família, mo tempo, “muito apego para compreender
com um inconsciente com todas as suas frus- a criança, e muito desapego para não reagir
trações e recalcamentos de seu drama interior, subjetivamente”. É numa relação de diálogo e
com seus desejos, sua história, se exprimindo de escuta que a educação será uma relação de
pela sua simbolização, e esses pressupostos respeito à pessoa da criança. Respeito e com-
freudianos dialogam com Adorno (1995) ao preensão ao seu comportamento e às etapas de
elucidar que a essência do homem é a diferen- seu desenvolvimento psíquico e afetivo.
ça. A pedagogia, portanto, poderia procurar se Para Bigeault e Terrier (1978), a contri-
articular com essa expressão simbólica de cada buição da psicanálise para a educação é um
educando em sua individualidade a partir das fato, como também o é para outros campos,
múltiplas situações oferecidas pelo coletivo como a arte e a publicidade, por exemplo.
educativo institucional e suas diferentes for- Segundo esses autores, a psicanálise deu uma
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nova visão para os seguidores de Rousseau, Ao retomar o objetivo geral deste texto,
os do movimento da Escola Nova, passando nossos desafios são postos para pensar o (im)
pela psicologia social. No entanto, ao mesmo possível de educar em tempos de crise. Quan-
tempo em que essas duas posições parecem do esse pensar tem um misto de psicanálise e
se aproximar, há entre elas um abismo. O que educação crítica, há um horizonte de possíveis
falta nas pedagogias modernas é considerar mudanças no campo formativo escolar. Essa
questões de grande importância para a psica- abertura possível para a mudança estaria
nálise, tais como a frustração, a agressividade, interligada a uma ética na educação e na for-
o conflito e o Édipo, como constituintes da mação de professores, ou seja, um modo de
estruturação da personalidade. Por outro lado, ver e entender a prática educativa por meio da
elas se aproximam, principalmente ao acentuar consideração do papel do desejo no aprender,
a importância da energia no interior do sujeito incluindo a curiosidade, sua origem e as rela-
e sua relação com o mundo exterior. ções que têm com a curiosidade intelectual.
A premissa fundamental da psicanálise é a Ainda, nesse modo ético de pensar a educação,
diferenciação do psíquico em consciente e in- há a importância da vida humana e o funciona-
consciente. E sua grande utilidade é, sem dúvi- mento da transferência na relação pedagógica.
da alguma, a tentativa de trazer o inconsciente Contudo, é preciso lembrar que a Psicanálise
até o consciente, levando as repressões e preen- não “é uma construção intelectual que resolve
chendo as lacunas mnêmicas, pois, como Freud todos os problemas de nossa existência” e, sim,
(1981c) afirmou, seu objetivo era de traduzir “a fonte de um pensamento sobre o homem e
em teoria os resultados da observação, sem a condição humana” (CHILLAND, 1993, p. 19).
nenhuma obrigação de sua parte de alcançar, A obra Os condenados da terra, de Frantz
numa primeira tentativa, uma teoria completa Fanon (1968 apud FREIRE, 2014) é uma refe-
que se referende por sua simplicidade. Para a rência valiosa no que diz respeito à condição
psicanálise, toda e qualquer ligação do sujeito humana no mundo. Ao dar-se conta da grande
com o mundo significa investimento afetivo. contradição na condição humana (opresso-
Dessa maneira, são de grande importância para res e oprimidos), delineia uma perspectiva a
a educação os resultados das investigações psi- partir dos “condenados da terra”, objetivando
canalíticas, que reivindicam para os processos discutir e evidenciar os males sofridos pela
afetivos a primazia na vida psíquica. humanidade, que é cotidianamente negligen-
E, diante disso, inferimos que essa relação ciada, esquecida e roubada enquanto condição
entre psicanálise e educação potencializa a histórica e social. Deste olhar, a obra provoca
autorreflexão crítica a partir da qual a desbar- uma necessidade de consciência crítica que,
barização seja possível, principalmente no que pode ser revelada na relação psicanálise e edu-
tange à desarticulação da escola com a vida da cação, principalmente no que tange à luta pela
criança, adolescente e jovem na qual a conhe- humanização, pela libertação da opressão de
cemos, vivenciamos e perpetuamos. tantos que têm sua dignidade (desde criança)
tolhida, numa morte (castração) em vida, uma
existência apagada, esquecida e excluída na
Considerações finais: a condição de demitidos da vida.
psicanálise e a condução da Ante a desumanização social e escolar, há a
ética na educação esperança de que, por meio da transformação
ética, haja possibilidade de pensar a vida pelo
É hora de nos voltarmos para a essência desta processo de escuta sensível do outro e com o
civilização, cujo valor para a felicidade é posto outro. Quando os adultos conseguem “escutar”
em dúvida. (FREUD, 1981e, p. 32). a vontade de saber das crianças, é possível favo-
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O (im)possível de educar em tempos de crise: psicanálise e educação crítica
recer experiências prazerosas com o aprender. quico. Se o conflito move, do ponto de vista
Como resultado temos: a pulsão de investiga- cognitivo, pondo em funcionamento e fazendo
ção se refere ao entendimento de perguntar ao avançar toda uma série de hipóteses e teorias
outro e perguntar a si mesmo. que não só visam satisfazer necessidades, mas
O aprender passa pela via do desejo, ou são criadoras de necessidades, este mecanismo
seja, o desejo recorta os campos do aprender. deve ser valorizado na perspectiva eticamente
O que explica o sentido atribuído aos objetos pedagógica. Esta valoração vem por meio do
do conhecimento são os desejos do sujeito da estímulo do professor pelos limiares da tole-
aprendizagem. Um inventário de tais desejos rância e do movimento de busca daqueles su-
responde não só pelas escolhas, mas pela ên- jeitos (crianças, jovens e adultos) inconclusos.
fase dada a parcelas deste objeto, bem como a Uma concessão especial deve ser feita à vida
transformação que sofre para atender a estes subjetiva das crianças e alunos, sendo que,
desejos. Menos do que interpretá-los, deve o segundo Crochík (2011, p. 30), “a educação
profissional educacional considerá-los como deve ser voltada para a diferenciação”, que se
partícipes decisivos das posições assumidas dá pelas relações sociais e educativas, e, ainda,
por quem aprende. pela linguagem. Afirma esse autor que quanto
Para isso, o caminho formativo passa a ser mais rica a linguagem entre os sujeitos sociais,
esboçado como conquista desejosa da aprendi- aqui, no caso, professores e crianças, mais
zagem e não como imposição dela. Para tanto, experiências podem ser expressas e o indiví-
é necessário que haja a tomada de consciência duo pode ser mais diferenciado. Cada palavra,
crítica e sensível sobre esta realidade marcada portanto, implica a possibilidade da narração
por uma consciência hospedeira da opressão da experiência, que só se realiza na expressão
que tem provocado a dispersão, a acomodação, e comunicação para os outros. Sua importância
o ajustamento do oprimido que normaliza também é grande na atuação de quem ensina,
a submissão num cenário social e afetivo de pois na paixão de formar do professor estão
mutismo e de alienação. envolvidas as subjetividades de formação,
É preciso dar-se conta da falta de algo para de criação e de deformação que mobilizam e
termos a necessidade da procura (curiosidade, sustentam sua posição pedagógica, e nas quais
desejo) e isso constitui o primeiro passo para o radicam parte do êxito da aprendizagem de
jogar, o brincar. Quanto maior a entrega, maior seus alunos (SILVA, 2019).
a possibilidade de criação, pois a falta se amplia Desse modo, inferimos que a sensibilidade
a cada novo passo desde que se mantenha aber- e a ética na educação devem se voltar para di-
to o terreno da curiosidade. A interação abre ferenciar, entretanto, se elas buscam o sempre
espaço para perguntas, para conhecer o outro igual, então estão convertidas em frieza. Desse
com quem se tem interesse e relacionamento, modo, a liberdade enquanto possibilidade de
ao mesmo tempo em que cria condições de resistência à reificação da vida e das relações
que o indivíduo se mostre com suas diversas humanas deve ser exaltada onde se anunciar.
facetas. Em ambiente de liberdade, que é uma Uma de suas formas de expressão e de possibi-
conquista entre professores e alunos, promove- lidade de educar em tempos de crise é a crítica
se uma permanente busca que só existe no ato que não se limita a aperfeiçoar o existente por
responsável de quem a faz. meio de “moldes” educativos, mas se desper-
O caráter movente dos conflitos, das dú- ta para o papel dos sujeitos envolvidos pelo
vidas, dos anseios na evolução psicossexual compromisso de transformação e com enga-
descrita por Freud reforça a importância dos jamentos formativos em prol de um mundo
conflitos para o desenvolvimento em geral e, mais humanizado. Para isso, Benjamin (2016,
em particular, para o desenvolvimento psí- p. 244) contribui ao se referir à preservação
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Marta Regina Furlan de Oliveira; Cleide Vitor Mussini Batista
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Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
30 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 17-30, out./dez. 2020
Larissa Ornellas; Maria de Lourdes Soares Ornellas
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p31-41
RESUMO
Este artigo é fruto de estudos e pesquisas em psicanálise, as quais têm como
suporte pressupostos teóricos metodológicos na interface sobre a educação e
psicanálise através de dois grupos de pesquisas certificados pelo CNPq sobre a
infância contemporânea nas dissertações e teses construídas na universidade.
Discorre sobre a relação com o corpo e o aprender infantil no contexto da crise
planetária pandêmica, insere a escuta, atravessada pela escola e pelas tensões
presentificadas na ambiência da família, bem como a realidade que coloca o
sujeito a serviço do gozo ininterrupto dos objetos de consumo, não deixando
lugar para a subjetividade emergir. As novas configurações temporo-espaciais
para as crianças nascidas na era das tecnologias digitais subtrai o brincar livre e
é marcada pela hiperconexão, o que constitui uma das faces do sintoma fruto da
linguagem veiculada nas telas planas, obedecendo a lógica da instantaneidade.
Portanto, cabe aos pais e educadores da criança incitar o advir temporal da
condição subjetiva do ato de educar.
Palavras-chave: Psicanálise e educação. Criança. Educação infantil. Tecnologias
digitais. Pandemia.
ABSTRACT
CONTEMPORARY CHILDHOOD AND CHILDHOOD EDUCATION IN
PLANETARY SPINS
This article is the result of studies and researches in psychoanalysis which
are supported by theoretical methodological assumptions in the interfaceon
education and psychoanalysis through two research groups certified by CNPq
on contemporary childhood in dissertations and theses built at the university. It
* Pós-doutorado pelo Réseau Mondial Serge Moscovici – Maison desSciences de l’Homme. Doutora em Psicopatologia Fun-
damental e Psicanálise pela Universidade Paris VII – França. Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Líder
do Grupo de Pesquisa e Extensão Berç(A)rte – Grupo de Estudo do laço primordial mãe-bebê: estudos transdisciplinares.
E-mail: larissa.ornellas1@terra.com.br
** Pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Psicanálise e Educação na Pontifícia Universidade de São
Paulo (PUC-SP). Professora Titular Plena da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa
em Psicanálise e Educação e Representação Social (GEPPE-RS/UNEB). E-mail: ornellas1@terra.com.br
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Psicanálise, infância e educação infantil contemporânea em giros planetários
discusses the relationship with the body and children’s learning in the context
of the pandemic planetary crisis, inserts listening, traversed by the school
and tensions present in the family environment as well as the reality that
places the subject at the service of the uninterrupted enjoyment of consumer
objects, leaving no room for subjectivity to emerge. The new temporospatial
configurations for children born in the era of digital technologies subtract
free play and are marked by hyperconnection, which is one of the faces of the
symptom resulting from the language conveyed on flat screens, obeying the
logic of instantaneity. Therefore, it is up to the child’s parents and educators to
encourage the temporal arising of the subjective condition of the act of educating.
Keywords: Psychoanalysis and education. Child. Early childhood education.
Digital technologies. Pandemic.
RESUMEN
EDUCACIÓN INFANTIL Y INFANTIL CONTEMPORÁNEA EN GIROS
PLANETARIOS
Este artículo es el resultado de estudios e investigaciones en psicoanálisis
respaldados por suposiciones metodológicas teóricas en la interfaz sobre
educación y psicoanálisis a través de dos grupos de investigación certificados por
el CNPq sobre la infancia contemporánea en disertaciones y tesis construidas en
la universidad. Discute la relación con el cuerpo y el aprendizaje de los niños en
el contexto de la crisis planetaria pandémica, inserta la escucha, atravesada por la
escuela y las tensiones presentes en el entorno familiar, así como la realidad que
pone al sujeto al servicio del disfrute ininterrumpido de los objetos de consumo,
sin dejar espacio para que surja la subjetividad. Las nuevas configuraciones
temporoespaciales para niños nacidos en la era de las tecnologías digitales restan
el juego libre y están marcadas por la hiperconexión, que es una de las caras del
síntoma resultante del lenguaje transmitido en pantallas planas, obedeciendo la
lógica de la instantaneidad. Por lo tanto, corresponde a los padres y educadores
del niño incitar el surgimiento temporal de la condición subjetiva del acto de
educar.
Palabras clave: Psicoanálisis y educación. Niño. Educación de la primera
infancia. Tecnologías digitales. Pandemia.
Este artigo é fruto de estudos e pesquisas pertinente avançar na proposição de como vem
realizadas em psicanálise, as quais têm como sendo veiculado o ensino, a transmissão e a
suporte os pressupostos teóricos-metodo- formação em psicanálise e como se reinventam
lógicos sobre a psicanálise e educação, que na universidade. Essa trilha constituiu-se me-
estão sendo aprofundados na universidade. taforicamente como um trabalho arqueológico
Inúmeras pesquisas referenciam-se no seu no dizer de Freud (1976):
método através de disciplinas nos cursos de
Mas assim como o arqueólogo ergue paredes
graduação e pós-graduação e implementam a do prédio a partir dos alicerces que permane-
formação acadêmica nas pesquisas teóricas e ceram de pé, determina o número e a posição
empíricas em busca de consolidar o tripé en- das colunas pela depressão do Chão e reconstrói
sino, pesquisa e extensão universitária. Faz-se as decorações eas pinturas murais a partir dos
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Larissa Ornellas; Maria de Lourdes Soares Ornellas
restos encontrados nos escombros, assim, tam- importância, é tão pleno de esperanças para o
bém o analista procede quando extrai suas infe- futuro, talvez seja a mais importante de todas
rências a partir dos fragmentos de lembranças, as atividades da análise. Estou pensando nas
das associações e do comportamento do sujeito aplicações da psicanálise à educação, à criação
da análise. [...] já que dispõe de material que da nova geração. Sinto-me contente com o fato
não pode ter correspondente nas escavações, de pelo menos poder dizer que minha filha Anna
tal como as repetições de reações que datam Freud fez desse estudo a obra de sua vida e,
da tenra infância e tudo o que é indicado pela dessa forma, compensou a minha falha. (FREUD,
transferência em conexão com essas repetições. 1976, v. 22. p. 345).
A metáfora utilizada por Freud (1976) Essa revelação impulsionou, historicamente,
alicerça o entendimento da psicanálise como os estudos e as aproximações da psicanálise ao
prática clínica e permite pensar de que forma campo educativo nesta contemporaneidade,
sua inserção nos muros da universidade orga- através da produção de livros e artigos e, hoje,
niza-se, historicamente, como uma engenharia esses dois saberes, se bem encadeados, podem
complexa; estudos e pesquisas são realizados encontrar a dimensão da subjetividade, no seu
nessa interface, embora o laço ainda se encon- enlace entre saber e conhecimento, ao tempo
tre no campo da (im)possibilidade. em que contribuem para ampliar (im)possibi-
As especificidades dessas pesquisas vêm se lidades para além das fronteiras que delimitam
consolidando na universidade, no campo da seu horizonte. Enodar psicanálise e educação
psicanálise e educação, através de dois gru- é não perder de vista que ambos operam em
pos de pesquisa certificados pela CNPq, com seus lócus de modos distintos, portanto, não
crianças em idades que marcam a passagem da se espera o encontro, mas um (des)encontro. É
primeira para a segunda infância. O par psica- possível que esse processo frente ao ato educa-
nálise e educação possibilita pensar que esses tivo da criança construa saberes constitutivos
dois saberes articulados podem dizer sobre a visando à educação subtrair a repetição para
criança e a educação infantil. Observa-se, nas dar lugar à criação. Nesse sentido, Maria de
últimas décadas, que pesquisadores da área Lourdes Ornellas (2019, p. 68) metaforiza o
ofertam espaços de debate e interlocução in- par psicanálise e educação:
terdisciplinares quando realizam investigações A psicanálise e a educação são como a imagem
pela trilha de uma transferência de trabalho do tecelão, alguns fios parecem partidos, outros
através das dissertações e teses na esteira da estão unidos, desenhando, em seu trajeto, uma
psicanálise e educação como cenário de escuta, peça do diverso necessariamente interminável.
criação e autonomia. E assim podemos nos apaziguar ante a possi-
bilidade de encontrar nessa aproximação de
Faz-se preciso pontuar que as esperanças
saberes, o olhar e a escuta, mesmo sabendo que
de Freud na Educação, enunciadas no seu texto a angústia afeta o laço possível.
Novas conferências introdutórias sobre psicaná-
lise (FREUD, 1976, p. 341), são tecidas à luz das Este escrito tenta indagar qual seria o lu-
preocupações com a educação, embora ele se gar e a posição da psicanálise e da educação
mostre reflexivo quanto à possibilidade e per- face à realidade contemporânea, que coloca
tinência de uma educação psicanaliticamente o sujeito a serviço do gozo ininterrupto dos
orientada. Nesse ponto, o mestre se posiciona: objetos de consumo, não deixando lugar para
a subjetividade emergir. Para se aproximar de
Existe um tema, todavia, que não posso deixar
uma possível resposta a essa indagação, não
passar tão facilmente – assim mesmo, não por-
que eu entenda muito a respeito dele, e nem se pode ignorar que o debate contemporâneo
tenha contribuído muito para ele. Muito pelo acerca da temática da subjetividade está per-
contrário: aliás, desse assunto ocupei-me muito meado de construtos psicanalíticos, obrigando
pouco. Devo mencioná-lo porque é da maior ao alongamento de fronteiras epistemológicas,
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Psicanálise, infância e educação infantil contemporânea em giros planetários
com repercussões em diferentes campos do mostra “uma topologia que permite desenhar
conhecimento. Não se trata de saber se ela é homologias”. Essa similaridade topológica
ou não ciência, ainda que os cânones da ciência sustenta a operacionalização com o grafo no
tradicional não se submetam; todavia, impõem que concerne à alienação do sujeito, do Eu, e
seu discurso, com uma nova forma de enuncia- do Outro, na construção subjetiva.
do científico. O discurso psicanalítico difere, Nessa construção é possível que a psicanáli-
essencialmente, do metafísico e do filosófico, se e a educação inscrevam insígnias pulsantes
mantendo, porém, com esse último, uma rela- para que o aluno possa fazer a torção do ades-
ção de estreita colaboração. Nota-se, hoje, que tramento, para a imersão no seu desejo. De for-
no interior das universidades, nas diversas ma similar, para mergulhar no mundo infantil, é
instituições analíticas, espaços autodefinidos necessário o exercício de novos operadores que
em torno do saber freudiano/lacaniano, não se contribuam com a escuta, o olhar, o corpo, os
pode desconhecer a busca desse estudo para a ditos e dizeres, os gestos, os silêncios. A escuta
educação infantil. não se prende ao discurso que está sendo dito,
Lacan (2003) inscreve o professor como encoraja a criança a colocar-se diante do seu
aquele sujeito incompleto, barrado, e que além próprio discurso, na aposta que a singularida-
de ocupar o lugar daquele que transmite, ofer- de e subjetividade emerjam no ato educativo
ta o lugar da fala e, portanto, da falta. Nessa escolar. É nesse viés que Kupfer (2000, p. 34)
concepção, diz: “o professor se produz num faz a leitura da escola:
nível do sujeito, tal qual como o articulamos Uma leitura que inclua o discurso social que
com o significante que o representa por outro circula em torno do educativo e do escolar [...]
significante.” (LACAN, 2003, p. 305). estará produzindo uma inflexão na ação do psi-
Pergunta-se: será que a psicanálise tem algo canalista e o levará a uma prática que não coinci-
a dizer e fazer no ato educativo com crianças? de mais com uma clínica psicanalítica ‘ortodoxa’,
pois ele terá de se movimentar o suficiente para
É essa inquietação o motivo do convite da psi-
ouvir pais na escola. Isso amplia o campo de ação
canálise para este encontro com a educação do psicanalista, que passa incluir a instituição
infantil. Frente a este desafio de enlaçar psi- escola como lugar de escuta.
canálise e educação, perguntamos: o que falta
Por essa trilha, afirma-se ser a escuta uma
em um é o que está no outro? Essa indagação
ferramenta específica para que a criança
encontra algumas pistas na fala de Larissa Or-
possa se inscrever numa cadeia significante
nellas (2016, p. 137), com a qual a autora busca
com a qual possibilita deixar deslizar seus
o enlaçamento da psicanálise com a educação:
desejos, afetos e identificações. Essa escuta é
[...] quando falamos em um possível enamora- atravessada pelo social, pela transferência e
mento da psicanálise com a educação, colocamos pelas tensões presentificadas na ambiência da
a psicanálise no lugar daquela que convida o
família. Não é facil colocar em exercício uma
educador ou a escola a uma relação com o sa-
ber que é sempre produzido pelo inconsciente. educação capaz de reconhecer a escuta como
Saber esse como bem o situa Lacan no ‘Grafo do um princípio que possa orientar a criança no
Desejo’. Destacamos, nesta lógica, que o processo seu processo educativo, na busca de encontrar
ensino-aprendizagem não se resume à absor- entre a autoridade e o afeto um jeito novo de
ção operatória de conteúdos depositados pelo educar. A citação a seguir expressa como devem
professor no ato de ensinar seu aluno, mas na ser pensadas as condições para essa escuta:
possibilidade de fazer emergir nesse aluno, em
momentos precisos desse processo, o sentido Desse modo, podem ser criadas as condições mí-
engendradodo que pode causar-lhe desejo. nimas, um espaço para ‘metabolizar’ a angústia
que comparece no lugar da falta, reduzindo, o
Observa-se que a primeira parte do “Grafo mal-estar na educação e abrindo brechas para
do Desejo” que Lacan (1999, p. 421) escreve que algo de novo, criativo e singular, e mesmo
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Larissa Ornellas; Maria de Lourdes Soares Ornellas
prazeroso, possa advir no campo das relações O reconhecimento da imagem de seu corpo pela
e das práticas educativas. Assim, talvez, como criança necessita da mediação do Outro, incar-
uma resposta possível, à angústia, ao enigma, à nado pela mãe ou seu substituto. Este adulto,
interrogação sobre ‘o que o outro quer de mim?’ que fez da criança objeto de seu olhar e de seu
Algo inesperado, sublime, que possa nos sur- desejo, estabelece a relação de posse da criança
preender no ensino da psicanálise a educadores. em relação a sua imagem (‘este é você’). O eu se
(ALMEIDA, 2003, p. 22). constitui pela identificação da imagem do corpo
no espelho, sua consistência é então aquela de
A indagação sobre “o que o Outro quer de uma imagem. Esta operação funda o narcisismo
mim?”, simbolicamente escutada pela criança, do sujeito, dá sua matriz ao eu e delimita o lugar
seja na sua ambiência familiar ou na escola, do ideal do eu, que ficará como um ponto de
merece uma ética, um saber e um estilo por identificação para o sujeito. O eu-ideal é a ima-
parte de pais e educadores, na condição de gem designada como desejável, no momento do
estádio do espelho, pelo adulto, situado no lugar
escutantes, e configura-se na modalidade de
do ideal do eu. No futuro, o sujeito tentará fazer
uma fala não toda, inscrita no que escapa, no coincidir sua imagem - quer dizer seu eu- com o
que tropeça no Real da criança. seu eu-ideal, se baseando a partir do seu ideal
A pós-modernidade tem trazido novas con- do eu. (MOREL, 2004, p. 21).
figurações temporo-espaciais para as crianças
Entendemos que o fenômeno das novas
nascidas na era das tecnologias digitais. Nesse
tecnologias digitais se configura, então, como
sentido, como situarmos o tempo de ser criança
manifestação de linguagem produzida pelo
dentro de um cenário pós-moderno marcado
humano, o que vem a constituir o universo do
pelas acumulações e acelerações no qual a hi-
simbólico virtual. Como o próprio nome diz, o
perconexão constitui-se como uma das faces do
virtual apela para uma lógica da bidimensio-
sintoma social? Como diz Alfredo Jerusalinsky
nalidade, pois revela-se na dimensão de telas
(2007, p 251-252), no que se refere a crianças
planas nas quais projeta-se o tráfico de códigos,
e o modo como se inserem no contexto escolar
letras, mensagens e linguagens. Vale lembrar,
e familiar,
igualmente, que a linguagem veiculada nas
A infância encontra-se hoje em condições telas planas são moduladas para cada vez mais
inéditas de vulnerabilidade e risco para a sua passarem pela condensação dos seus conteú-
estruturação subjetiva: a miséria artificialmente
gerada e as migrações forçadas em massa que
dos, substituindo as narrativas por símbolos,
causam forte desterritorialização dos recursos abreviações e condensações, obedecendo à
familiares para oferecer adequados cuidados lógica da instantaneidade e, portanto, do não
primários a crescente terceirização das funções limite temporo-espacial. Como diz Michel Ser-
maternas. No Brasil temos um incremento de res (2012), encontramo-nos face à geração do
150% de matrícula de bebês em creches nos pequeno polegar, aquela que aprende desde
últimos 10 anos.
cedo a dedilhar nas telas planas na lógica, da
Nessa perspectiva, este artigo se reporta a ausência de tempo, de distância e de limite. Por
traçar o tempo da primeiríssima e primeira in- isso, sem o amparo dos outros primordiais, os
fância na qual o infans, recém-nascido humano, próximos cuidadores, que vêm a figurar para
é convidado a estrear no mundo vivente pelo a criança como lugar de referência e suporte
banho de linguagem. Sendo linguagem o que se imaginário e simbólico, estabelecendo contor-
refere ao universo simbólico sociocultural en- nos e limites ao fluxo incessante de conteúdos
volvendo a condição do sujeito humano. Nesse veiculados pelo espaço virtual, a criança ficaria
contexto, como pensar a infância contemporâ- como num barco a esmo, sem direção, o que
nea, a relação com o corpo e o aprender infan- pode a vir engendrar impasses constitutivos
til no cenário da crise planetária pandêmica significativos desde o ponto de vista da cons-
Covid-19? trução da sua imagem corporal e sua percepção
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Psicanálise, infância e educação infantil contemporânea em giros planetários
de si como sujeito no campo do Outro. Nesse de subjetivação por um pertencimento a uma massa:
sentido, corrobora-se com uma passagem de uma individuação antes que uma individualização,
uma maneira de exigir, de poder contar-se como
Lebrun (2009, p. 148-149) quando afirma: um dentro de um rebanho, ao em vez de impor-se o
Fazendo impasse sobre o ‘caráter fundamen- trabalho de sair do rebanho e assim realizar-se como
talmente decepcionante da ordem simbólica’, sujeito autônomo e singular. (LEBRUN, 2015, p. 49).
o simbólico secretado pelo discurso da ciência, O tempo imposto pela pandemia da Covid-19
seria ele, a propriamaente dizer, ainda um sim-
pode ser compreendido numa visão dialético-
bólico? Não seria, antes, a um pseudo-simbólico,
a um simbólico travestido que nós estamos lhe filosófica como matéria-prima da vida. Dizer
dando na contemporaneidade? A elisão deste isso parece um contrassenso, contudo, quando
traço estrutural não o desnaturalisaria, não o se dá conta da estúpida e inefável existência,
devolveria, por este fato, ao puro imaginário? defronta-se face a um real, inexorável, colo-
Este simbólico, que não o é mais verdadeiramen- cando o ser humano diante da própria fini-
te, nós propomos chamá-lo de um ‘simbólico
tude. Assim, aprende-se que a constante luta
virtual’. A palavra virtual foi emprestada do
latim escolástico virtualis, este saído de virtus, contra o tempo cronológico na lida cotidiana
potência, força e quer dizer ‘o que existe apenas é uma realidade com a qual, muitas vezes, não
em potência e não em ato’. Pierre Lévy adianta: apreendemos o sentido dado a cada uma das
O virtual tende a se atualizar sem ser passado, nossas vidas (ORNELLAS; ORNELLAS, 2020).
contudo, à concretização efetiva ou formal. A A crise enfrentada por todos no atravessa-
árvore é virtualmente presente no grão. Em todo
mento da pandemia pode se constituir como
rigor filosófico, o virtual não se opõe ao real, mas
ao atual: virtualidade e atualidade são somente um momento fecundo de reflexão; é no nó do
duas maneiras de ser diferentes. conflito que se cresce mais um pouco como
sujeito humano. Em alusão à crise, toma-se
Destarte, prende-se a um binarismo que
a imagem do caule do bambu como uma bela
rege a linguagem virtual, encontrando difi-
metáfora capaz de refletir na sua constituição
culdade para instalar a dimensão do ternário,
a ideia dos nós, ou seja, o filamento do bam-
garantidor de um simbólico que sustenta a
bu cresce quando consegue ultrapassar o nó
estrutura ou, ainda, devido a um inflacionismo
que se imprime em cada segmento do caule.
virtual impede o ser humano de pensar, porque
Dentro da própria substância do nó, encon-
pensar é suportar o lugar da diferença, da casa
tra-se a semente para o crescimento. Não há
vazia, do terceiro excluído, da falta que marca
transformação possível sem atravessamento
a condição mesma de sujeito falante.
de paradigmas. Essa metáfora do bambu e
Por este fato, nós estamos cada vez mais depen- seus nós ancora-se num livro chinês: Tao Te
dentes dos outros – dos ‘pequenos outros’ – que King. Através dos versos do original em fran-
nos circundam e que são os únicos a poder nos
cês (TSEU, 1994, tradução nossa), descrevem
renviar à nossa própria identidade. Nós nos
tornamos então usuários, livrados aos ventos e no pensamento oriental o rumo, a via, como
às marés das consignas coletivas e das opiniões caminho de vida inexorável. Às vezes, é preciso
mediatizadas. (LEBRUN, 2015, p. 45). saber parar, retirar-se para dentro de si, para
Nós vivemos numa sociedade-rebanho, como o atingir os fundamentos da vida, as verdades
compreendeu e o antecipou Nietzsche, quem viu, íntimas.
muito bem, esta perda da capacidade de produzir A particularidade dessa crise pandêmica,
uma diferença, e a tendência das sociedades ditas
‘individualistas’ a negar as exceções. Nossas socieda- diferentemente de tantas outras que a história
des pretensamente individualistas são na realidade da humanidade atravessou, é ser planetária,
perfeitamente gregárias. A aparição desta estrutura mundial. A crise atravessa fronteiras, barrei-
gregária, de rebanho, de massa, mais do que de
multidão, deste formigueiro como Stiegler aliás a
ras culturais, econômicas, políticas, sociais e
chama, tem, por efeito, empurrar o indivíduo-sujeito afetivas; coloca o homem face a face com sua
a evitar sua divisão subjetiva, a trocar sua trajetória inexorabilidade, sua impotência, sua pequenês,
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Larissa Ornellas; Maria de Lourdes Soares Ornellas
seu paradoxo, perante as forças atávicas da tativas para o advir e a anomia expressam-se
natureza que se manifesta ferozmente, dizen- alienadas pelo fato de o sujeito entregar-se às
do ser o homem o seu próprio lobo, ou seja, pulsões e ao excesso. Portanto, movidos pelo
ao tempo que ele pode produzir o pharmacon discurso capitalista, o sujeito evanesce em
como remédio, pode igualmente produzir o meio aos objetos, obedecendo ao imperativo
pharmacon como veneno letal (HEDEIGGER, categórico: goze!
1991). Pode-se pensar que a particularidade A economia capitalista neoliberal atingiu
dessa pandemia que paralisa o mundo, a li- um tal grau de degradação que as catástrofes
berdade do humano e o convida a retirar-se naturais sofridas pelo planeta, devido ao supe-
em casa, acorrentado numa relação de poder raquecimento global, não são suficientes para
de um vírus invisível constitui-se um sinal de fazerem o poder instituído rever esse ideal de
alerta para pensar a desintoxicação dos seus onipotência. Assim, um microrganismo invisí-
próprios excessos. Nessa esteira de formação vel aos olhos chega ameaçando a integridade
discursiva, Foucault (2001, p. 1056) nos ofere- física do ser humano, colocando-o face a face
ce uma fala que ilumina o debate: com sua própria finitude. O estado de angústia
Lá onde as determinações estão saturadas, engendrado pela impotência, em relação ao
não há relação de poder quando o homem está controle do vírus, atinge o homem na sua libra
agrilhoado (trata-se, então, de uma relação de carne, no dizer de Lacan, (2005), ou seja, o
física de coerção), mas justamente quando sujeito tem que ceder, consentir em perder essa
ele pode se deslocar e, no limite, escapar. Não libra de carne, pedaço de si que funciona como
há, portanto, um face a face do poder e da li-
moeda de troca com o Outro, e isso coloca o
berdade e entre uma relação de exclusão (em
toda parte onde o poder se exerce, a liberdade sujeito como um resto de ser.
desaparece), mas um jogo muito mais comple- A Covid-19 é o nome do sintoma inscrito
xo: nesse jogo a liberdade vai aparecer como no discurso social e, como todo discurso, sua
condição de existência do poder (ao mesmo função primeira é fazer laço. Esse mesmo laço,
tempo seu pré-requisito, pois é preciso que ele que rege o discurso capitalista a um mais de
tenha a liberdade para que o poder se exerça e
gozo pelos excessos produzidos no sistema,
também seu suporte permanente, pois se ela se
subtraísse inteiramente do poder que se exerça comanda também o nome do sintoma social,
sobre ela, este, de fato, desapareceria e seria fazendo a humanidade padecer pela revelação
preciso encontrar um substituto na coerção do furo, do buraco aberto, do irrepresentável
pura e simples da violência): mas ela aparece, perante a impotência humana de dar uma so-
também, como isso que apenas poderá se opor lução rápida e imediata na mesma velocidade
a um exercício de poder que tende no fim das
das acumulações e acelerações engendradas
contas a determiná-la inteiramente.
pelo próprio discurso do capitalismo selvagem.
É possível perceber nesse escrito de Fou- A partir desses pressupostos, como situar a
cault (2001) uma instabilidade, inquietude criança no contexto da educação infantil face
frente ao agrilhoamento do modus operandi a este cenário de impedimento de circular no
do sujeito pensar e se mobilizar no social e, espaço da escola, lugar representativo do pri-
portanto, faz-se necessário, em certa medida, meiro Outro Social para a criança? O princípio
ir ao encontro de saídas para esse impasse. primevo é exercitar a escuta dessa criança no
Para Bauman (2003), o sujeito é tomado por dizer de Françoise Dolto (1980, p. 8):
um sofrimento psíquico nomeado de mal-estar,
O psicanalista não acrescentará um novo dizer,
e ele afirma ainda que esse sujeito se encontra mas, sobretudo, possibilitará que o sujeito
em estado líquido. Em 1988, esse autor acres- encontre a verdade do seu desejo, não trará
centa que a liquidez emerge para descrever o soluções, mas permitirá a apresentação e conhe-
sofrimento psíquico. A alternância de expec- cimento da pergunta que os pais propõem por
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Psicanálise, infância e educação infantil contemporânea em giros planetários
meio de seus filhos, usando como instrumento seus cuidadores próximos, junto aos seus pro-
a especificidade do seu trabalho – a recepti- fessores e coleguinhas, em tempos de quarente-
vidade (disposição em acolher) e sua escuta na, deve ser pontual e restrita no que tange ao
aprofundada.
tempo cronológico. O suporte virtual oferece à
Quando a criança habita o espaço escolar, criança, apenas, o recurso da imagem, mediada
aprende a viver com as diferenças, a sair pouco pela voz, e um ver que, por estarem vinculados
a pouco da sua posição egocêntrica na busca a linguagem digital, refletem a dificuldade de
de escutar a si, ao outro e ao espaço comum da tradução da voz num ato de ouvir, e o ver que,
escola. No contexto da pandemia, a criança que muitas vezes, não se traduz em olhar.
se encontra na primeira infância, e já havia pas- Assim, o aprender infantil encontra-se aí dis-
sado pelo rito fundante de inserção no espaço sociado das dimensões sensoriais integradas
social escolar, é conduzida agora ao isolamento, na encarnação dos corpos, que é tão importante
a permanecer em casa e exercer suas atividades neste processo ensino-aprendizagem. A criança
escolares na companhia de familiares. vê-se privada, então, de um diálogo tônico-e-
Nesse movimento, a função dos pais em re- mocional que necessita da articulação entre o
lação à fala e escuta tem importância fundante, campo cognitivo-afetivo e o campo sensório-
considerando que a psicanálise postula que motor. No seu seminário 2, Lacan (1985, p. 226)
quando se fala de mãe e pai, não se fala da pes- elucida a dimensão alienante do racionalismo
soa física, mas de uma função, e esse encargo instrumental quando afirma:
nem sempre é vivenciado pelos pais. A máquina não tem nenhum meio de se colo-
No lugar de ser divinizada ou naturalizada, car numa posição reflexiva em relação ao seu
a família contemporânea se pretende frágil, parceiro humano. Em que consiste jogar com
neurótica, consciente da sua desordem, mas a máquina? A fisionomia da máquina, por mais
preocupada em recriar entre homens e mulheres agradável que a possamos supor, não pode, neste
um equilíbrio que não pode ser proporcionado caso, ser de auxílio algum. Não há jeito de sair-se
pela vida social. Assim, fez brotar do seu próprio deste por intermédio da identificação. Somos,
enfraquecimento um vigor inesperado. Cons- pois, projetados de entrada no caminho da lin-
truída, desconstruída, reconstruída, recuperou guagem, da combinatória possível da máquina.
sua alma na busca dolorosa de uma soberania Sabe-se que se pode esperar da máquina uma
alquebrada ou incerta. (ROUDINESCO, 2003, série de ligações, jogando com excessiva rapidez
p. 71). graças a estes sensacionais transmissores que
são as fases eletrônicas e, pelas últimas notícias,
Se o retorno para o seio familiar implica para graças a esses transmissores com os quais nos
a criança a possibilidade de aprender acom- azucrinam os jornais, num intuito sem dúvida
panhada das figuras parentais, e o contato da comercial, que, no entanto, não põe em causa a
criança com a escola em tempos de pandemia qualidade desses objetos.
restringe-se ao uso das tecnologias digitais Nesse contexto específico de isolamento
mediadoras, podemos pensar que o lugar da físico, a criança precisa significar o princípio
educação infantil nesses tempos de quarentena da não permanência, ou seja, estabelecer uma
pode ser aquele de uma justa medida entre o relação de causa e efeito entre o fato de estar
benefício de desfrutar da presença dos pais em casa por causa da ameaça de uma doença
em casa dando-lhes o suporte necessário ao contagiosa que ainda não se conhece como tra-
seu processo de aprender e, ao mesmo tempo, tá-la, e o impedimento de frequentar a escola
se exerce uma tentativa de não perder por como lugar de encontro e trocas.
completo o contato com a escola através do Trabalhar a alternância da presença em casa
espaço virtual. e ausência física da escola na temporalidade
É possível pensarmos que a entrada da da não permanência, ou seja, no tempo em
criança nas salas virtuais com o suporte dos que a crise pandêmica durar, ofertando o es-
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Larissa Ornellas; Maria de Lourdes Soares Ornellas
paço virtual como espaço intersticial, de ponte Para essa autora, o sujeito é singular e, por-
entre o privado, o íntimo, do que ela aprende tanto, a criança tem esse traço como princípio.
em casa e o espaço público-social da escola, Assim posto, em tempos de quarentena, o que
é possibilitar à criança se representar de um podemos fazer do educar infantil? Trata-se de
modo saudável e satisfatório na sua realidade fazer um parêntese, um arranjo, uma suspen-
presente. Por essa via, resgatar o tempo lógico são temporal, privilegiando o brincar no espaço
de Lacan (1998) é revisitar os três tempos: ver, do lar como um motor de aprendizagem, ofer-
compreender e concluir. O primeiro tempo tando à criança a possibilidade de enlaçar o
refere-se ao que se percebe ou ao que aparen- brincar com o aprender, mediado pelo suporte
temente é visto. O tempo de compreender é dos olhares parentais e da escola.
uma premissa que possibilita o sujeito saber No Seminário 11 (LACAN, 1998), nota-se que
de si, e o tempo de concluir é pensado a partir o exercício do brincar na infância não se remete
do modelo da descarga em uma referência ao apenas ao simbólico, mas sim ao Real. Lacan
princípio do prazer freudiano. (1998) enfatiza que a função do ato de repetir
Em O tempo lógico e a asserção da certeza no brincar não se configura por uma simples
antecipada, Lacan (1998) expressa a afini- repetição, mas ao Real que retorna ao mesmo
dade entre subjetividade e temporalidade lugar. Nessa linha, pode-se dizer que o repetir
quando associa a dimensão temporal à de- não se configura com o reproduzir, todavia se
dução lógica. reporta a um Real inapreensível. A escola, nesse
Sabemos, igualmente, que quando a criança momento, funcionaria como espaço intersticial,
se insere no espaço social da escola, reivin- orientando os pais em ideias e atividades a se-
rem desenvolvidas com a criança, suscitando
dica pouco a pouco o direito de preservar
o aprender dialógico a partir das experiências
também suas conquistas cotidianas rumo ao
cotidianas que a criança viverá no contexto da
seu processo de autonomia. Isso ela só pode
sua vida familiar. Usar a imaginação, o brincar
fazer mediante o luto da separação dos pais,
livre, fazendo falar os espaços ficcionais imagi-
ou seja, no momento que está na escola, e a
nários da criança. Exercitar o resgate do contar
reivindicação da preservação do que conquista
e narrar histórias infantis, fábulas, lendas,
como autonomia fora dos olhares muitas vezes
contos, literatura, música, arte e poesia como
invasivos das figuras parentais. O professor
mediadores fundantes no processo das aber-
da educação infantil ocupa, no imaginário da
turas dialógicas do aprender infantil. Propiciar
criança, o lugar da relação exclusiva de amor às
dinâmicas que possibilitem à criança se narrar
figuras parentais vivenciada no espaço íntimo
através do brincar livre, colocá-la no lugar de
familiar. Nesse sentido, a citação emerge: protagonista do seu aprender brincante.
Disto se encontra resquícios no discursopseu- No contexto da pandemia, mais do que nun-
do-humanitário sustentado por muitos educa- ca, o exercício do ensinar usando a ludicidade
dores, cuja bandeira é despertar o ser humano
e a criação, encenar criando personagens,
que há em todos nós e que confunde a ‘tentativa
de atribuição de um lugar para o sujeito no histórias capazes de fazer emergir o coletivo
discurso’ com liberação da subjetividade e com do inconsciente individual e grupal, possibli-
laisser-faire. E está presente também na pers- tando o resgate de uma civilidade humanizada.
pectiva de resgate de um sujeito que faz oposição Ocasião fecunda para se trabalhar a dialética
à objetivação do mundo de consumo, que diz não imunizar-se no combate a um vírus ameaçador
à transformação do aluno em mercadoria, não à
versus desenvolver espírito coletivo e solidário,
banalização pela inteligência emocional – bana-
lização que nivela, acachapa, o que no sujeito é cuidar de si para preservar o outro.
espesso, enigmático, dividido, não repetido, não O contexto pandêmico engendra um mal-es-
em série. (KUPFER, 2000, p. 228). tar social com o qual a angústia pode ser pen-
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Psicanálise, infância e educação infantil contemporânea em giros planetários
sada a partir do pensamento de Kierkegaard um desenho lógico, mágico. Para tanto, é pre-
(2010) não como um sinônimo de nada, porém ciso escutar que a contemporaneidade, como
pensar o nada como uma possibilidade de po- diz Agamben (2009), na sua singular relação
der. A angústia situa-se num ponto assintótico com o tempo em estilo diacrônico e sincrônico,
ao desejo, no qual o sujeito nela imersa apro- implica apreender o tempo contemporâneo na
xima-se do seu objeto causa de desejo. Pensar imbricação entre Cronos, tempo cronológico,
a angústia como potência criadora, motor do e Kairós, tempo lógico. Adiante, o autor am-
ato educativo. plia seu conceito dizendo ser contemporâneo
Lacan (2016), em seu Seminário: o desejo aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo
e sua interpretação, mostra que esse signifi- para nele perceber não as luzes, mas o escuro.
cante não pode ser confundido com vontade Percebe-se um deslizar de presença/ausência
ou instinto e não tem ligação com o inatismo. na dimensão temporal o qual convida o sujei-
Verifica-se no campo da educação uma torção, to contemporâneo a deambular com ditos e
visando a regulação do desejo, na tentativa, dizeres que remetem-a um “muito cedo”, que
por parte de muitos prefessores, de modelar o pode ser “muito tarde”, e se metarforseia num
desejo. Sabe-se o quanto o desejo circula por “ainda não”.
uma cadeia labiríntica, efeito da estrutura da Para não concluir, pode-se dizer que a crian-
linguagem, e a ela é submetido pela sua condi- ça e a educação infantil no contemporâneo
ção de sujeito da fala e da falta, simbolizado no planetário incitam fazer do escuro pandêmico
viés analítico e não na concepção humanista de uma reinvenção temporal, na aposta de repen-
pessoa. Trata-se do sujeito do desejo que está sar as práticas educativas contextuais ao tempo
para o inconsciente constituído com base nos presente tal como lampejo epifânico, na escuta
efeitos do discurso. É nessa referência de su- da subjetivação como motor primevo do ato
jeito extensiva à criança que os pesquisadores educativo.
dessa área exercitam esse trabalho laborioso
com a infância.
REFERÊNCIAS
Trazemos para o trabalho as nossas esperanças,
mas essas necessariamente devem ser contidas. AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo?
Mediante a observação, ora num ponto, ora E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro
noutro, encontramos alguma coisa nova: mas Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.
no início, as peças não se completam. Fazemos ALMEIDA, S. F. C. A ética do sujeito no campo
conjecturas, formulamos hipóteses, as quais educativo. In: ALMEIDA, S. F. C. de. Psicologia
retiramos quando não se confirmam, neces- escolar: ética e competências na formação e
sitamos de muita paciência e vivavidade em atuação profissional. Campinas, SP: Alínea, 2003.
qualquer eventualidade, renunciamos às convic- p. 179-194.
ções precoces, de modo a não sermos levados a
negligenciar fatores inesperados, e, no final, todo BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro:
o nosso dispêndio de esforços é recompensado, Jorge Zahar, 2003.
os achados dispersos se encaixam mutuamente, DOLTO. F. Prefácio. In: MANNONI, Maud. A pri-
obtemos uma compreensão interna (insight) meira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro:
de toda uma parte dos eventos mentais, temos Elsevier, 1980.
completado nosso trabalho e, então, estamos
livres para o próximo trabalho. (FREUD, 1996, FOUCAULT, M. Les rapports de pouvoir passent
p. 169-170). à L’intérieur des corps. In: FOUCAULT, M. Dits et
Écrits II (1976-1988). Paris: Gallimard, 2001. p.
As nossas esperanças devem ser contidas, 228-236.
contudo não devem ser desfeitas. A priori, as FREUD, S. Análise terminável e interminável. In:
peças podem estar perdidas, é preciso paciên- FREUD, S. Moisés e o monoteísmo, esboço de psi-
cia para encontrar algumas, e é possível criar canálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
40 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 31-41, out./dez. 2020
Larissa Ornellas; Maria de Lourdes Soares Ornellas
1996. p. 275-287. (Edição Standard brasileira das LACAN, J. O Seminário 2: o eu na teoria de Freud
obras psicológicas completas de Sigmund Freud, e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
vol. 23). Zahar, 1985.
FREUD, S. Novas conferências introdutórias LACAN, J. O Seminário 11: Os quatro conceitos
sobre psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1976. fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,
p. 341-345. (Edição Standard brasileira das obras 1998.
psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 22). LEBRUN, Jean-Pierre. Un monde sans limite:
HEIDEGGER, M. Conferências e escritos filosófi- malaise dans la subjectivation. Paris: Érès, 2009.
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Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 31-41, out./dez. 2020 41
Reflexões sobre a “epidemia” de depressão em adolescentes e jovens adultos à luz da relação entre a psicanálise e a política
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p42-53
RESUMO
O artigo tem por objetivo refletir sobre os impactos de um dos eixos da
neurocultura, que é a medicalização de adolescentes e jovens adultos. Discute
criticamente o diagnóstico médico de Transtorno Depressivo, à luz da relação
entre a psicanálise e a política, e discorre sobre a problemática da depressão
no contemporâneo como um sintoma social. Apresenta uma vinheta clínica
para ilustrar essa discussão e conclui destacando a importância de um
reposicionamento discursivo da escola por meio de processos de subjetivação
política em face da lógica adaptativa neoliberal, amplamente arraigada nessas
instituições.
Palavras-chave: Transtorno depressivo. Psicanálise. Política. Subjetivação
política.
ABSTRACT
REFLECTIONS ON THE “EPIDEMIC” OF DEPRESSION IN ADOLESCENTS
AND YOUNG ADULTS FROM THE PERSPECTIVE OF THE RELATIONSHIP
BETWEEN PSYCHOANALYSIS AND POLITICS
The article aims to reflect on the impacts of one of the axes of neuroculture,
which is the medicalization of adolescents and young adults. It critically discusses
the medical diagnosis of Depressive Disorder through a discussion between
psychoanalysis and politics and discusses the problem of depression in the
contemporary as a social symptom. It presents a clinical vignette to illustrate
this discussion and concludes by highlighting the importance of a discursive
repositioning of the school through processes of political subjectivation in the
face of the neoliberal adaptive logic, widely rooted in these institutions.
Keywords: Depressive disorder. Psychoanalysis. Politics. Political subjectification.
* Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade
de Brasília (UnB). E-mail: vivilegnani@gmail.com
** Doutora em Ciências da Educação pela Université René Descartes – Sorbonne – Paris. Professora aposentada do Instituto de
Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: sandrafcalmeida@gmail.com
42 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 42-53, out./dez. 2020
Viviane Neves Legnani; Sandra Francesca Conte de Almeida
RESUMEN
REFLEXIONES SOBRE LA “EPIDEMIA” DE DEPRESIÓN EN
ADOLESCENTES Y JÓVENES ADULTOS A LA LUZ DE LA RELACIÓN
ENTRE EL PSICOANÁLISIS Y LA POLÍTICA
El artículo tiene como objetivo reflexionar sobre los impactos de uno de los
ejes de la neurocultura, que es la medicalización de adolescentes y jóvenes.
Discute críticamente el diagnóstico médico del Trastorno Depresivo, desde la
perspectiva de la relación entre psicoanálisis y política, y discute el problema
de la depresión en lo contemporáneo como síntoma social. Presenta una viñeta
clínica para ilustrar esta discusión y concluye resaltando la importancia de un
reposicionamiento discursivo de la escuela a través de procesos de subjetivación
política frente a la lógica adaptativa neoliberal, ampliamente arraigada en estas
instituciones.
Palabras clave: Trastorno depresivo. Psicoanálisis. Política. Subjetivación
política.
Este artigo tem por objetivo tecer algumas políticas públicas de saúde e educação.
reflexões sobre a “epidemia” de depressão Um dos ancoramentos mais expressivos
que estaria acometendo adolescentes e jovens da neurocultura é a psiquiatria biológica, que
adultos na atualidade. Segundo dados da Or- ganhou destaque nas últimas décadas pelo
ganização Mundial de Saúde (2017), mais de prestígio social alcançado com as drogas psi-
300 milhões de pessoas sofrem de Transtornos cofarmacológicas. Nessa concepção de psiquia-
Depressivos no mundo. Tais quadros relacio- tria, o Transtorno Depressivo seria uma doença
nam-se com o aumento de casos de suicídio, crônica, com etiologia genética e refratária ao
sendo essa problemática considerada um desa- encorajamento da vontade e do pensamento
fio significativo para a saúde pública do nosso do sujeito. Este ficaria assolado por algo que
país, por ser a segunda causa de morte evitável estaria além da sua capacidade de reação, ca-
de adolescentes e jovens adultos na faixa etária bendo-lhe, então, manter a rotina de visitas aos
entre 15 e 24 anos (BRASIL, 2019). consultórios médicos para ajustes das doses de
Por meio da articulação entre psicanálise e psicofármacos (COPPEDÊ, 2016).
política, apresentaremos algumas considera- Para Lacan (1985a), o sujeito se orienta
ções sobre as queixas de sofrimento psíquico perante o discurso universal em que está ins-
relativas à depressão na cultura de uma so- crito, pois se encontra na linha “da dança desse
ciedade excessivamente medicalizada. Ortega discurso” e, nesse sentido, ele mesmo é esse
(2009) destaca a materialização do fenômeno discurso. Sob essa ótica, pode-se afirmar que
da neurocultura em nosso contexto social pelo os humanos modificam suas concepções sobre
progresso das tecnologias neurocientíficas, as si mesmos em virtude do conhecimento que
quais, invadindo o senso comum, atrelaram sobre eles é adquirido pelo campo científico
supostas disfunções e funções da atividade e ao qual eles têm acesso. À medida que esse
cerebral a quase todos os aspectos da vida conhecimento invade o campo das práticas
das pessoas, sendo crescente a percepção do sociais, surgem não somente novos objetos de
cérebro como “autor” das ações do sujeito no investigação e novos conceitos, como também
mundo. Com forte impacto nas mídias, rever- nascem formas diferenciadas de produções
bera hoje em todos os campos da sociedade, discursivas para descrever o sujeito e seu so-
ocupando espaço significativo inclusive nas frimento psíquico.
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Reflexões sobre a “epidemia” de depressão em adolescentes e jovens adultos à luz da relação entre a psicanálise e a política
Assim, cria-se uma forma de expressar o com a histeria no final do século XIX e começo
adoecimento que pode vir a ser considerado do século XX.
como um “distúrbio médico verdadeiro” e não
um logro ou uma produção psíquica do sujeito.
Este, ao falar, tenta produzir no outro, a quem
Eles cresceram e se
apela por ajuda, a convicção de que ele, o su- constituíram na neurocultura
jeito, também é merecedor de atenção, ou seja, A Associação Nacional dos Dirigentes das
o sofrimento psíquico se inscreve sempre em Instituições Federais de Ensino Superior
uma gramática de reconhecimento (DUNKER, (ANDIFES) levantou, em 2018, o perfil socioe-
2015). Surge, então, uma espiral na qual os su- conômico dos universitários, incluindo nesse
jeitos se informam sobre as doenças nas mídias levantamento questões sobre saúde mental
e passam a expressar sua angústia por meio dos dos estudantes. Os resultados mostraram que
amplamente divulgados indicativos psicopato- oito em cada dez estudantes de graduação re-
lógicos. Por outro lado, os meios de comunica- lataram problemas como tristeza, ansiedade e
ção apregoam os tratamentos “inovadores” e sensação de desesperança; mais de 6% apon-
supostamente eficazes, bem como a incidência taram ideias de morte e cerca de 4% já tiveram
(alarmante) de tal doença, legitimando ainda pensamento suicida (ASSOCIAÇÃO NACIONAL
mais a queixa artificialmente criada. DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDE-
Historicamente, as mudanças no sofrimento RAIS DE ENSINO SUPERIOR, 2019).
psíquico da histeria, por exemplo, constituí- Tratar-se-ia, portanto, de um quadro que
ram-se como uma prova de que as queixas dos assume em nosso contexto social um caráter
sujeitos são formuladas a partir dos significan- epidêmico, mas cuja leitura merece ser reali-
tes que circulam no campo cultural, embora zada criticamente ao consideramos a indústria
seja importante sublinhar que na estrutura de psicofármacos como coprodutora dessa
discursiva desse quadro há também um cons- “epidemia” (MACHADO; FERREIRA, 2014).
tante questionamento do saber médico ou de Os denominados Transtornos Depressivos,
qualquer outro que ocupe o lugar de poder, de na versão do Manual de Diagnóstico Estatístico
autoridade. Por isso, essa forma discursiva de de Transtornos Mentais: DSM 5 (AMERICAN
funcionamento psíquico costuma operar uma PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013), compare-
transgressão dos limites do discurso conven- cem subdivididos em inumeráveis subcatego-
cionalmente instituído para transcender os rias diagnósticas. Torna-se quase impossível
referenciais de conduta e pensamentos so- que qualquer sentimento de tristeza, padeci-
cialmente aceitos. Assim “a histeria do fim do mento ou de luto vis-à-vis a experiência de per-
século1 fez estremecer o corpo das europeias, da não receba um código numérico diagnóstico
sintoma de uma rebelião sexual que serviu de e uma prescrição medicamentosa.
motor para uma emancipação política” (ROU- Obviamente, não cabe aqui entrar no méri-
DINESCO; PLON, 1998, p. 338). to da eficácia da terapia medicamentosa para
Sem tal força contestatória, mas pelo elevado alguns casos pontuais e particulares, cujos
alcance de contágio social, o que denominamos riscos e danos para a prescrição de fármacos
hoje de “epidemia depressiva” pode também devem ser avaliados eticamente. Todavia, po-
nos sinalizar para uma resposta subjetiva do demos interrogar se o sofrimento psíquico de
arranjo contemporâneo das relações culturais, adolescentes e jovens universitários, que na
políticas e sociais, cujo mal-estar, que não cessa nossa concepção se articula com o mal-estar
de não se escrever (LACAN, 1985b), produz social, ao ser traduzido e nomeado pela psi-
uma queixa generalizada tal como aconteceu quiatria como Transtorno Depressivo e tendo
1 Os autores fazem referência ao século XIX. como resposta a terapêutica medicamentosa,
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Viviane Neves Legnani; Sandra Francesca Conte de Almeida
não provocaria um silenciamento subjetivo e população, como também poderia operar nas
uma cronificação do quadro. O sofrimento e crianças e adolescentes, e em suas famílias, um
as demandas do sujeito, coconstruídos sob a descompromisso subjetivo. De forma mágica,
influência da neurocultura em torno do alívio poderiam acreditar que as terapêuticas me-
da dor de existir, impediriam que se ele se au- dicamentosas eliminariam todo tipo de sinais
torizasse a outras formas de expressão de seu sintomáticos como fobias, timidez, obsessões,
malêtre psíquico e social (KAËS, 2012), contrá- ansiedade etc., por se tratarem meramente de
rias à posição que lhes é destinada nas atuais desordens da química do cérebro.
coordenadas sociais, políticas e econômicas da Tais crenças oportunizam a tendência de se
hipermodernidade. evitar novas posturas de reflexão e de ações
Na tese de doutorado intitulada Transtorno voltadas para efetivas mudanças na gestão do
de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDA/H): próprio sofrimento e mal-estar social. Subli-
uma leitura psicanalítica2 (LEGNANI, 2003) nhamos que o preço a ser pago pela evitação da
trabalhou-se o campo conceitual da psicanálise responsabilidade subjetiva seria a adequação
articulando-o a questionamentos acerca das aos intransigentes parâmetros de normalidade
produções discursivas da área médica em torno externos ao sujeito, apoiados em uma concep-
da descrição diagnóstica do TDA/H. ção biológica da mente humana, a qual não
À época da pesquisa já se detectava que deixaria opções para se criar estratégias que
não poucos pesquisadores eram defensores implicassem na participação ativa do próprio
do discurso médico e destacavam a terapia sujeito na reversão de seus sintomas, angústia
medicamentosa na infância e na adolescência e problemas existenciais.
com o metilfenidato (ritalina) como prevenção Ortega (2009) destaca que a popularização
de futuros comportamentos desviantes do que das práticas de neuroascese, isto é, de discursos
entendiam como o campo da normalidade. Per- e práticas de como operar sobre o cérebro para
cebeu-se que a lógica adaptativa da neurocul- aumentar a performance do sujeito, acarreta
tura era amplamente acatada pelas instituições formas de subjetivação em que os sujeitos
escolares. Mostrou-se que os diagnósticos que passam a ter relações consigo e com os outros
retornavam à escola, quase sempre despro- enquanto sujeitos cerebrais inseridos em um
vidos do devido cuidado ético com a posição contexto de governamentalidade neoliberal,
subjetiva da criança, ratificavam, muitas vezes, na qual cada um deve administrar e controlar
os mecanismos excludentes e de isenção da sua vida, saúde e bem-estar. Trata-se de uma
responsabilidade educativa que imperavam (e forma de rígido controle social que demanda
imperam ainda hoje) no sistema escolar. sujeitos aptos a se autocontrolarem, em cons-
A contraposição discutida na tese a essa tantes tentativas de aprimoramento para se
concepção supostamente preventiva e biolo- adaptarem às demandas de um mercado cada
gizante foi que ela não somente escamotearia vez mais competitivo e restrito em termos
nas escolas os conflitos socioeconômicos, de empregabilidade. Segundo esse autor, já
principalmente os que apareciam veladamen- existem, inclusive, práticas neuroeducativas
te na relação intersubjetiva de professores visando ao aperfeiçoamento cognitivo, a fim de
com os alunos das camadas empobrecidas da que os estudantes possam ser empreendedores
2 Tese de Doutorado defendida em 2003 no Instituto de Psi- de si mesmos e conquistem melhores posições
cologia da Universidade de Brasília, de autoria de Viviane nos rankings das escolas e de postos no mundo
Legnani, sob a orientação de Sandra Francesca Conte de
Almeida. Foi o primeiro estudo no Brasil que se debruçou do trabalho.
sobre o campo teórico da psicanálise para sistematizar Podemos acrescentar a essa visão outros
outros caminhos clínicos e educacionais com crianças e
adolescentes com queixa escolar de dificuldades nos cam- ditames e enquadramentos advindos de um
pos da atenção, impulsividade e hiperatividade (TDA/H). psicologismo depauperado, que apregoa ser a
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Reflexões sobre a “epidemia” de depressão em adolescentes e jovens adultos à luz da relação entre a psicanálise e a política
autoestima um quesito básico e essencial para inconsciente que não consegue ser escutada
não se enredar nos processos depressivos. pelo próprio sujeito, mas que o fragiliza por
Autoestima que se conquistaria por meio de não ser passível de controle pelo eu. A queixa
um estado de ânimo individual capaz de dar discursiva que melhor descreve esse estado
respostas à altura a todos os imperativos que subjetivo é: “Isso é mais forte do que eu”.
circulam na cultura: beleza mercadológica, Se o sintoma comparece sob a forma de
juventude e felicidade permanentes e acesso metáfora, o sofrimento, por sua vez, coloca-se
ininterrupto aos bens de consumo, sempre como uma narrativa que busca o reconheci-
reinventados pela publicidade. Rinaldi (2002) mento do outro, provocando neste o transi-
discute os efeitos ético-políticos desses dis- tivismo, ou seja, o outro passa a sofrer junto
cursos e o caráter ideológico que os perpassa. com seu interlocutor ou, ao menos, é capaz de
Assim, poder-se-ia situar os discursos oriundos compreender e legitimar sua dor. Quando o
de tais campos de conhecimento, que subor- sujeito que sofre não consegue a devida aten-
dinam a produção científica contemporânea ção do outro, passa a recorrer a um tipo de
acerca dos transtornos psicopatológicos aos sofrimento psíquico codificado ou respaldado
interesses econômicos e de consumo, próximos pelo discurso médico.
do que Lacan (1992) nomeou discurso do capi- No que se refere ao mal-estar social, Dun-
talista. Nessa lógica, o sofrimento psíquico deve ker (2015) destaca que é a indeterminação do
ser rapidamente eliminado para que o sujeito humano que o compõe. O sujeito, ao falar, se
não escape da engrenagem da produtividade indetermina, pois está para sempre apartado
capitalista neoliberal. do estado natural que supõe códigos certeiros e
O empobrecimento do que seria o sujeito da restritos para a sobrevivência. Assim, o sujeito
neuroascese, supostamente completo em sua desliza no discurso que o indetermina e que é,
autoestima imaginária, não é sem consequên- ao mesmo tempo, a fonte de sua liberdade, por
cias na esfera sociocultural e nos processos exemplo, para se reinventar. Contudo, também
de subjetivação. Podemos nos perguntar se a é a indeterminação fonte de angústia pela falta
alta incidência dos estados depressivos não de controle que traz em seu bojo e que reme-
apontaria exatamente para a denúncia de tais teria o sujeito ao desamparo ou mesmo à falta
mandatos idealizados e inalcançáveis e de no- de um telos que dê um sentido pleno à sua
vos modos de controle social. existência. É na contextura entre o mal-estar
social e o sintoma que o sofrimento psíquico
comparece; quando escamoteado e não escu-
Uma leitura da “epidemia” da tado desencadeia arranjos sintomáticos cada
depressão por meio da relação vez mais cristalizados.
Do ponto de vista da psicanálise, o senti-
entre a psicanálise e a política mento de impotência que perpassa o sujeito
Para Dunker (2015, p. 124), “diagnosticar é ao investir de forma desejante nos objetos
dizer como uma forma de vida se mostra mais privilegiados é o que arquiteta os estados de-
determinada ou mais indeterminada, como pressivos. O sofrimento reside na impotência
cria sua singularidade entre falta e excesso e decorrente do cálculo da distância entre o eu e
como se relaciona com outras formas de vida os ideais do eu. Não obstante, não se pode per-
por meio da troca e da produção”. Sublinha esse der de vista, ao considerar a alta incidência dos
autor que o sintoma, em Freud e em Lacan, é um estados depressivos, que, para Freud (1974a),
fragmento da verdade do sujeito que se repete o ideal é impossível de ser atingido, ninguém
em sua vida, ao mesmo tempo que lhe produz jamais tendo encarnado essa posição. Portanto,
uma satisfação não reconhecida. Satisfação a impotência sentida pelo sujeito é, na verdade,
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sujeito justamente a capacidade de produzir Haveria, assim, sempre um resto que coloca
e, por isso, medicar-se torna-se uma obrigação em xeque qualquer proposição terapêutica
moral ainda mais intensa, reificando, assim, o estandardizada de cura. Como destaca Fer-
discurso da neurocultura. retti (2011, p. 74), “a persistência do sintoma
é a própria política”. Segundo essa autora, a
clínica psicanalítica se depara com a impo-
O sintoma é a política tência da interpretação do sintoma que visa
É possível formular a hipótese clínica de circunscrevê-lo a um certo sentido. Há sempre
que a manutenção do estado de tristeza atre- a possibilidade de seu retorno, demonstran-
lado ao gozo da dor de existir seria uma forma do o que há de real em sua formação, pois o
de resistência aos ditames sociais, políticos sintoma escapa às tentativas de significação
e contemporâneos? Pode-se pensar o estado por se remeter a algo que não pode ser dito. A
depressivo entre alguns jovens e adolescentes ética advinda da clínica psicanalítica sustenta o
como uma resistência ao modo de vida propos- tensionamento em torno do sintoma como rea-
to pelo Outro no contexto neoliberal? lização disfarçada de desejo, como aquilo que
Leader (2009) pontua que numa sociedade do real não pode ser decifrado e que nenhuma
em que o sujeito é visto como uma mera carga interpretação é capaz de erradicar. Trata-se de
de energia para a produção, sustentar a per- uma ética que reconhece a verdade do sujeito,
da da energia vital decorrente da depressão que o sintoma porta, em si mesmo, embora não
pode significar um trabalho subjetivo político, tenha a ver com a verdade objetiva da doença
inconsciente ou não. Khel (2009) também assi- ou com o adoecimento do sujeito codificado
nala que a lentidão das ações do depressivo fica pelo discurso médico, mas com o significante
na contramão da urgência temporal da lógica recalcado que pode ser lido e interpretado no
capitalista. No entanto, resistir politicamente, sofrimento do sujeito.
adoecendo sob o signo da depressão, implica A seguir, ilustraremos com uma vinheta
em nova captura, pois, segundo essa autora, clínica o caso de um adolescente atendido em
uma das marcas do sujeito depressivo é a re- uma sessão única no Coletivo Psicanálise na
cusa do conflito, que impõe, em muitos casos, Rua, em Brasília, em 2019. Esse Coletivo, que
ceder do próprio desejo, o que acarretaria na surgiu em 2017 e reúne atualmente vários
manutenção do estado depressivo. psicanalistas, inspirou-se em outros Coletivos
Coser (2003), por sua vez, relata por meio de de Psicanálise que funcionam em espaços
sua longa experiência clínica junto a pacientes públicos e abertos em alguns grandes centros
com depressão que a maioria deles continua urbanos brasileiros. A proposta é de oferecer
numa busca sem trégua por novos tratamentos, uma escuta psicanalítica qualificada a qualquer
medicamentos e procedimentos terapêuticos um que queira ser escutado e falar sobre o seu
na tentativa de aliviar seu sofrimento. Isso que sofrimento. A oferta de escuta se faz nas praças,
se repete nos leva à proposição lacaniana de nos aparatos públicos e nas ruas com grande
que o inconsciente é a política (LACAN, 2005), movimento de trabalhadores, moradores de
pois há algo de ingovernável no psiquismo rua, estudantes e outros passantes.
que também reside no sintoma. E, como bem
enfatiza Izcovich (2018, p. 22), isso também O estado depressivo como uma
quer dizer “que o inconsciente é uma questão
de ligação com o Outro. Não há inconsciente se forma silenciosa de resistência
o discurso do Outro não advier ao sujeito. [...] o Sales (nome fictício) é um adolescente que
inconsciente é o discurso do Outro. Ele é o fato chegou à Praça Zumbi dos Palmares com uma
de existir um laço com o Outro”. mochila grafada com o logotipo Uber eats
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Reflexões sobre a “epidemia” de depressão em adolescentes e jovens adultos à luz da relação entre a psicanálise e a política
sários”. Sentia que não fazia parte deste mun- que sinaliza para uma resistência silenciosa
do e não tinha ânimo para fazer muita coisa: aos imperativos de gozo no contemporâneo
“não tenho ambição como vejo nos amigos da ao não se inscrever nos meandros de produ-
época da escola.” Passava os dias sozinho em ção/consumo de gadgets e não se submeter
casa, lendo, navegando nas redes sociais ou aos ditames do discurso do capitalista. Assim,
jogando games na internet. Seus pais não lhe enquanto na histeria o sujeito questiona o dis-
cobravam decisão sobre o futuro, preferindo curso do Mestre (do qual Lacan derivou o do
que primeiro se tratasse com os psicofárma- capitalista), na depressão o sujeito resiste a ele
cos receitados. Relata que sempre teve com e aos seus desdobramentos.
os pais uma relação respeitosa, de confiança e O sofrimento do jovem demarca uma ques-
sem maiores conflitos. Conta que ambos, por tão clínica ainda não capturada pelo discurso
serem professores, o incentivaram, desde cedo, de marketing que sustenta a propagação do
no hábito da leitura e a buscar uma profissão uso de medicamentos. Como aponta Silva Jú-
da qual pudesse realmente gostar: “meus pais nior (2016), nessa articulação o sujeito – como
nunca me cobraram nada e conseguem enten- responsável por si e por seus processos subjeti-
der que preciso de um tempo.” vos – fica excluído, mas sua participação como
Por ter falado de seu mal-estar com o re- consumidor de fármacos é cuidadosamente
traimento social, a analista pergunta-lhe se trabalhada pela publicidade especializada que,
vislumbrava alguma possibilidade de saída. de tempos em tempos, altera, inclusive, os crité-
Contou, então, que se sentia melhor quando rios de normalidade para criar e alastrar novos
estagiava em um órgão do judiciário, no ensi- Transtornos, de forma a aumentar o número de
no médio, pelo convívio com outras pessoas. consumidores/dependentes. Contudo, não há
“Nada era fácil ali, diz, mas o dia se engatava ainda uma estratégia publicitária, e tampouco
e eu esquecia dos meus problemas porque me será tarefa fácil inventá-la, que impeça, com
sobrava menos tempo.” Naquele momento, a uma solução medicamentosa, o advento de uma
analista faz o corte da sessão. Sales levantou-se, posição de resistência, inconsciente e silencio-
agradeceu pela escuta e disse que ao falar, ali sa, marcada por uma inapetência vital em face
na praça, percebeu a importância de retornar à das amarrações e contrassensos do Outro so-
sua antiga psicóloga. Apesar de reticente, pelo cial/político e de suas exigências de submissão
dinheiro que custaria à mãe, reconheceu que, à lógica produtiva cada vez mais acelerada do
ao falar e ser escutado pela analista, estava capitalismo neoliberal e suas injunções.
repensando a questão. Sales, ao falar e ser escutado, conseguiu se
reposicionar subjetivamente em relação ao tipo
de ajuda que necessitava para buscar novos
Breve discussão do caso investimentos pulsionais e se movimentar em
A narrativa de Sales aponta para um deslo- torno de suas questões, uma vez que o seu sofri-
camento dos modos de expressão da angústia, mento, ainda codificado e medicado, persistia.
por meio de uma nova relação pulsão versus Como portador da verdade do sujeito e como
cultura, inferida na queixa de falta de ânimo aquilo que de mais real ele tem, o sintoma do
para se realizar na vida, mas não sob a forma jovem apontava para a atualização da vivência
de submissão à lógica medicamentosa do mer- traumática de ter se percebido exposto em uma
cado, para a qual adoecer/se medicar constitui circunstância em que não pôde responder com
condição sine qua non para retornar ou se o corpo sexuado, o que provocou contínuas
inserir na produção/consumo, como acontece crises de um excesso pulsional, sobretudo da
com muitos casos de depressão. Sales produz dimensão do afeto, nomeadas pela psiquiatria
outra narrativa no contexto da neurocultura, como “crises de pânico”. O seu mal-estar de
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Reflexões sobre a “epidemia” de depressão em adolescentes e jovens adultos à luz da relação entre a psicanálise e a política
em que as escolas aderem ao discurso neoli- como condição para que aluno se aproprie do
beral educacional e a finalidade da educação seu próprio estilo singular e não se deixe ser-
se reduz a formar e a preparar os alunos para vilmente governar pelo Outro.
o futuro, isto é, para o mercado de trabalho.
Quanto aos professores, muitos são reticentes,
alguns mais resistentes, em estabelecer com
REFERÊNCIAS
crianças, adolescentes e jovens alunos uma ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS
relação interpessoal pautada nas negociações e INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR
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Nessa perspectiva, escolas e professores Perfil-Socioecon%C3%B4mico-e-Cultural-dos-as-
perdem a chance de desencadear processos de Graduandos-as-das-IFES-2018.pdf. Acesso em: 07
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produzir efeitos de uma leitura mais inventiva AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual
do mundo por meio de elaborações reflexivas diagnóstico e estatístico de transtornos men-
tais: DSM 5. Porto Alegre: Artmed, 2013.
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ideário de que a realidade social é fixa e imu- BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de
tável e de que o êxito e a felicidade do sujeito Vigilância em Saúde. Perfil epidemiológico dos
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dependem exclusivamente dos seus esforços e
óbitos por suicídio entre jovens de 15 a 29 anos
mérito. Nos espaços da escola, os alunos lidam no Brasil, 2011 a 2018. Boletim Epidemiológico,
diariamente com a diferença, a diversidade, a v. 50, n. 24, set. 2019.
alteridade, consequentemente, com as ques-
COPPEDÊ, Dulce Ricciardi. O discurso da de-
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Caso as escolas favoreçam o intercâmbio de Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto
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Acesso em: 20 maio 2020.
culados pela palavra, cuja potência simbólica
é transformadora. COSER, Orlando. Clínica, crítica e ética. Rio de
Considerando a expansão da neurocultura e Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.
da neuroascese, talvez a mais significativa con- DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofri-
tribuição da psicanálise à educação seja a força mento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil
política que dela pode ser extraída e transmi- entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
tida: o discurso do Mestre tenta calar o ingo- FERRETTI, Mariana Galetti Considerações sobre a
vernável, e o discurso do capitalista (o mestre ética e a política na psicanálise. A Peste, São Paulo,
v. 3, n. 1, p. 69-76, jan./jun. 2011.
decadente), por sua vez, opera para tamponar
a falta com a oferta de objetos, de gadgets. Já o FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma
discurso do mestre não-todo não ignora a força introdução. In: FREUD, Sigmund. Edição Standard
Brasileira das obras psicológicas completas, v.
do retorno daquilo que foi escamoteado, recal- XIV. 1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
cado. Por isso mesmo, como efeito da verdade Imago, 1974a. p. 85-119.
da castração do mestre, ao ensinar o que sabe
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: FREUD,
ele transmite o que não sabe, mas que é suposto Sigmund. Edição Standard Brasileira das obras
saber – a impossibilidade de controlar o aluno psicológicas completas, v. XV. 1. ed. Trad. Jayme
(o Isso sempre resiste) e a transmissão da falta Salomão Rio de Janeiro: Imago, 1974b. p. 249-263.
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Viviane Neves Legnani; Sandra Francesca Conte de Almeida
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 42-53, out./dez. 2020 53
Da escola, do escolar, da inclusão
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p54-66
RESUMO
O presente artigo tem como principal objetivo discutir aspectos conceituais e
estruturais da escola, do escolar e da inclusão. Sua construção está disposta em
três seções. Na primeira, discute-se elementos da escola pelo viés estrutural,
abordando as noções de forma e organização escolar e sua disseminação nas
instituições educativas modernas. Em continuidade com a seção anterior,
discorre-se sobre a noção/lugar do escolar atribuído às crianças na sua
inserção na escola e as possíveis transformações advindas da condição de
escolar, considerando a ruptura com formas anteriores de socialização para a
infância. Na última seção, contempla-se a inclusão escolar enfatizando aspectos
políticos como também mecanismos de resistências advindos na tentativa de
fazer cumprir as determinações legais no cotidiano das escolas. Aborda-se
manifestações por parte dos atores envolvidos com o processo de inclusão
educacional considerando que processos de formação reativa ao trabalho
educativo com crianças em situação de deficiência buscam se apoiar nas
estruturas da forma e organização escolares.
Palavras-chave: Escola. Escolar. Inclusão. Forma e estrutura escolares.
ABSTRACT
OF THE SCHOOL, OF THE SCHOOLCHILDREN, OF THE INCLUSION
The main objective of this article is to discuss conceptual and structural aspects
of the School, Schoolchildren and Inclusion. The text is constructed in three
sections. In the first, elements of the school are discussed from a structural
perspective, addressing the notions of school form and organization and their
dissemination in modern educational institutions. Continuing with the previous
section, we present and problematize the notion/place of schoolchildren
assigned to children in their insertion in school and the possible changes
arising from this condition, seen as a break with previous forms of socialization
in childhood. In the last section, school inclusion is addressed, emphasizing
political aspects as well as mechanisms of resistance arising from the attempt
to enforce legal determinations in the daily life of schools. Manifestations on
* Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Ouro Preto (PPGE/UFOP). E-mail: carlajatobaferreira@gmail.com
** Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: angelavorcaro@uol.com.br
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Carla Mercês Jatobá Ferreira; Angela Resende Vorcaro
the part of the actors involved in the process of educational inclusion are also
confronted, considering that reactive processes to educational work with
children in situations of disability seek to rely on the structures of school form
and organization.
Keywords: School. Schoolchildren. Inclusion. School form and structure.
RESUMEN
DE LA ESCUELA, DEL ESCOLAR, DE LA INCLUSIÓN
El objetivo principal de este artículo es discutir aspectos conceptuales y
estructurales de la Escuela, lo Escolar y la Inclusión. Su construcción se organiza
em ter tramos. Em el primero se discutem elementos de la escuela a través Del
enfoque estructural, abordando las nociones de forma y organización escolar
y su difusión en las instituciones educativas modernas. Continuando com el
apartado anterior, se comenta la noción/ lugar de lós escolares asignados a
los niños em su inserción en la escuela y los posibles cambios derivados de la
condición de los escolares ante la ruptura con formas previas de socialización
para la infancia. En el último apartado se enfatiza la inclusión escolar, enfatizando
tanto los aspectos políticos como los mecanismos de resistencia que surgen del
intento de hacer cumplir las determinaciones legales em la vida cotidiana de
las escuelas. Se abordan las manifestaciones de los actores involucrados em el
proceso de inclusión educativa, considerando que los procesos de formación
reactiva al trabajo educativo com ninõs em situación de discapacidad buscan
apoyarse em las estructuras de forma y organización escolar.
Palabras clave: Escuela. Escolar. Inclusión. Forma y estructura de la escuela.
Introdução
A escola é uma organização complexa e específico. Esse autor destaca que abordar a
sólida, que atravessa e responde a civilização. escola implica explicitar quatro determinações
Ao longo da sua presença nos agrupamentos essenciais: a primeira delas seria os saberes; a
humanos, as instituições escolares foram ad- segunda, dos saberes passiveis de transmissão;
quirindo atributos diferenciados relativos às a terceira seria sobre os especialistas encarre-
demandas surgidas durante sua existência, gados de transmitir os saberes; e a quarta situa
assim como ao investimento que cada nação a escola como uma instituição reconhecida
destina para a formação humana da sua popu- com a função de “reunir presencialmente, de
lação. Afinal, a escola moderna tem sua origem uma maneira organizada, os especialistas que
vinculada ao nascimento do Estado. Formar transmitem e os sujeitos para quem se trans-
cidadãos foi um dos seus objetivos primevos. mite” (MILNER, 2009, p. 13). Por conseguinte,
Milner (2009), no seu ensaio De l’école,1 ao se anunciar que a escola existe, anuncia-
assinala que falar sobre a existência da escola se, simultaneamente, a existência das quatro
é dizer sobre a existência de saberes transmi- determinações citadas, e em uma dimensão
tidos por um corpo especializado em um lugar inversa, ou seja, para se negar a existência da
escola, bastaria que uma dessas determinações
1 Traduzimos como Da Escola. Este ensaio é que nos inspirou deixe de existir.
para nomear o presente artigo. A tradução é das autoras,
tanto para esta obra como para as demais que estão refe-
Milner (2009) considera a permanente pos-
renciadas nas páginas seguintes. sibilidade de, à escola, acrescentar-se outras
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Da escola, do escolar, da inclusão
determinações àquelas citadas como essen- explicitam a impotência da escola para cumprir
ciais. Contudo esse autor ressalta a necessida- prerrogativas constitucionais democráticas da
de de considerá-las como secundárias, como escola para todos os cidadãos, testemunham a
acréscimos, pois pretender transformá-las elevação exponencial da exclusão que ela pode
em benefícios maiores significa “renunciar às inserir em seu território próprio. A despeito de
determinações essenciais. É desejar o fim da estarem matriculados na escola por força de lei,
escola” (MILNER, 2009, p. 14). não conseguem se tornar alunos; quando no-
Contudo, a escola moderna, ao abrir suas meados, são reduzidos à terminologia científica
portas às crianças do povo, logo foi adquirindo do “mal que os acomete” ou crianças/jovens
novas significações. Ao acolhê-las, no âmbito da inclusão. Assim adjetivados, não ganham
do seu modelo institucional, “impacientou-se”, a legitimidade para se inserir no terreno do
e logo inventou dispositivos para afastá-las aprender, tornam-se ilegítimos, mesmo que
(BINET; SIMON, 1907, 1909). Há saberes que tolerados no campo escolar.
não são para todos; atitudes de desconfiança Nossa inquietação com a condição das
e discriminatórias foram instaladas através crianças em situação de deficiência2, ou, como
de processos classificatórios dando lugar na nomeadas pela Política Nacional de Educação
historiografia da instituição escolar à noção Especial na Perspectiva Inclusiva (PNEEPEI)
de fracasso escolar (PATTO, 1993; PINELL; (BRASIL, 2008), alunos público-alvo da educa-
ZAFIROPOULOS, 1983; SOUZA, 1998). O tema ção inclusiva (PAEE), nos conduz às reflexões
atravessou séculos e à escola somam-se no- que abordamos no presente artigo. Sua cons-
vos significantes que dizem da sua ineficácia
trução está disposta em três seções, quando,
diante da função de educar a todos. Contudo,
inicialmente, buscamos discutir a instituição
as reações aos movimentos excludentes que
escolar pelo viés estrutural abordando suas
expulsariam as crianças das instituições esco-
noções de forma e organização escolar; em se-
lares não tardariam a se manifestar uma vez
guida discutimos a noção/lugar do escolar atri-
que discussões sobre a educação das crianças
buído à criança na sua inserção na escola para,
consideradas “anormais”, “idiotas”, “deficien-
então, finalizarmos tratando alguns aspectos
tes”, “excepcionais” ocorriam desde a segunda
da inclusão escolar, assim como os mecanismos
metade do século XIX (HUGON; GATEAUX; VIAL,
de resistências advindos na tentativa de fazer
1984; MUEL, 1975). A educação dos inadapta-
cumprir as determinações legais no cotidiano
dos ao sistema educativo regular vai se confi-
das escolas. Neste último tópico discorremos
gurando como um campo de lutas e disputas
sobre tais manifestações por parte dos atores
e seu percurso histórico comporta modelos
diversos, desde as escolas especiais às escolas envolvidos com o processo de inclusão educa-
inclusivas (JANNUZI, 2006; MAZZOTTA, 2005; cional, conjuntamente aos preceitos apontados
MENDES, 2010). Entretanto, como um traço que nas seções anteriores.
permanece nas lutas dos grupos historicamente
colocados na posição de excluídos, ao modelo 1 Da Escola
inclusivo já se acrescem efeitos de segregação.
Tornar a educação inclusiva (FÁVERO; FERREI- Dizer que a escola é moderna é dizer de sua
RA, 2009) denota não ser apenas um exercício relação com o tempo. É situar sua construção
de cumprir prerrogativas legais e dotar as esco- e sua emergência. Como assevera Rui Canário
las dos equipamentos tecnológicos necessários, (2005), que aqui nos referencia, nada é intem-
como têm assinalado diversos pesquisadores. poral no domínio escolar.
Assim, no mesmo movimento em que os di- 2 Conhecemos esta expressão com Plaisance. Ver Neves,
tos deficientes, delinquentes, doentes e loucos Rahme e Ferreira (2019).
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Não ignoramos a importância das origens Vale ressaltar que o autor nos esclarece
históricas da instituição escolar, já contempla- com respeito ao caráter permanente das insti-
das em vasta bibliografia tanto no nosso país tuições, ou seja, que para serem permanentes
(FREITAS; BICCAS, 2009; NASCIMENTO et al., estas também devem estar inscritas na transi-
2007), como no âmbito internacional (CAMBI, toriedade das criações humanas. Deste modo,
1999; LELIÈVRE, 1991; MANACORDA, 1996; sua existência é determinada historicamente e
PINTASSILGO et al., 2007). Não temos o intuito não cronologicamente.
de voltar a essas origens, aqui presentes como Abordemos então a escola, laica e raciona-
cenário necessário. Entretanto, focalizamos lista, recortando-a, através de alguns dos seus
nossa discussão no destaque à combinação dos elementos constitutivos responsáveis pela
termos: instituição educativa. maneira como a conhecemos na atualidade.
Freud (2010, p. 48) explicita a imprescin- Partamos de uma definição sobre a escola
dível relação da civilização com as institui- [...] uma invenção histórica, contemporânea da
ções: “civilização designa a inteira soma das dupla revolução industrial e liberal que baliza o
realizações e instituições que afastam a nossa início da modernidade e que introduziu, como
vida daquela de nossos antepassados animais novidades, o aparecimento de uma instância
e que servem para dois fins: a proteção do educativa especializada que separa o aprender
do fazer; a criação de uma relação social inédita,
homem contra a natureza e a regulamentação
a relação pedagógica no quadro da classe, supe-
dos vínculos dos homens entre si”, além de nos rando a relação dual entre o mestre e o aluno;
advertir sobre a necessidade das instituições uma nova forma de socialização (escolar) que
“para regulamentar as relações entre os indi- progressivamente viria a tornar-se hegemônica.
víduos e, em especial, a distribuição dos bens (CANÁRIO, 2005, p. 61).
obteníveis” (FREUD, 2014, p. 233). Balizando e A escola, já secular, vem atravessando o
provendo meios de controle pulsional humano, tempo. Como instituição moderna provoca
as instituições visam a garantir que possamos novos modos de socialização ao inventar
viver juntos. a relação pedagógica. A invenção é datada
Se, nas assertivas de Freud (2014), pode- historicamente e aporta com ela a noção
mos reconhecer certa sinonímia que inevita- de infância e a pedagogia como ciência. A
velmente aproxima instituição e educação, relação pedagógica marca sua especificida-
Dermeval Saviani (2005) ressalta que, mesmo de: acontecer em um lugar específico e com
apresentando uma diversidade de significa- tempo diferenciado das demais atividades
dos, a palavra instituição retém a concepção sociais (CANÁRIO, 2005, 2008; MAULINI,
de algo que foi constituído e organizado pelo PERRENOUD, 2005; VINCENT; LAHIRE; THIN,
homem e que 2001). Será a partir destas especificidades
[...] além de ser criada pelo homem, a institui- que discorreremos.
ção se apresenta como uma estrutura material Aprender passa a ser uma ação delimitada
que é constituída para atender a determinada pelo tempo e espaço institucionais. A escola,
necessidade humana, mas não a qualquer ne-
ao mesmo tempo em que inaugura novos
cessidade. Trata-se de necessidade de caráter
permanente. Por isto a instituição é criada para formatos para o aprender, também delimita
permanecer. Se observarmos mais atentamente a ação educativa. Há forma e organização que
o processo de produção das instituições, nota- lhes são próprias articuladas à estrutura de
remos que nenhuma delas é posta em função controle institucional. Se, no Ancien Règime
de alguma necessidade transitória, como uma crianças adquiriam os saberes nos espaços de
coisa passageira que satisfeita a necessidade
convivência por “ver-fazer” e “ouvir-dizer”, a
que a justificou, é desfeita. Para necessidades
transitórias não se faz mister criar instituições. escola moderna originaria práticas distintas
(SAVIANI, 2005, p. 28). (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001).
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rituais, da rotina, da divisão de tarefas como cidos possibilitados pela vivência infantil. A
estratégias garantidoras da presença do pas- criança que chega à escola está envolta em uma
sado nas instituições escolares tanto quanto rede de significados traduzidos pelos procedi-
buscam reduzir as incertezas do futuro. Este mentos e técnicas pedagógicas. A pedagogia
conjunto de elementos, associado às formas dará seu contorno a esta criança, agora, escolar.
de organização do conhecimento e modos de Um conjunto de elementos foi disposto e tra-
autorizar o acesso das crianças ao mesmo, as- duzia as novas formas de enxergar a criança.
sim como as modalidades avaliativas, “[...] têm Desde a imponente arquitetura das escolas do
sido identificados como práticas que obedecem século XIX ao conjunto de leis que obrigavam
a um conjunto de regras sumariamente estáveis as crianças a frequentá-las, se constituíram
que constituem o que alguns autores têm deno- diversas concepções sobre a infância com a
minado de gramática escolar ou componentes persistente recomendação de cultivar suas
duros do formato escolar” (BAQUERO; DIKER; capacidades. Esta concepção é destacada por
FRIGERIO, 2009, p. 8). Egle Becchi (1998) quando assinala o conjun-
Assim, a “gramática escolar” dita os modos to de ideias articuladas em torno da criança e
de inserção no universo escolar. Somada a seu desenvolvimento e sua aprendizagem da
um conjunto específico de modos de compor- leitura, da escrita, da matemática e das ciências
tamento disciplinar, produziriam efeitos de naturais, entre outras, e como também instruí
socialização na criança que, desta forma, se -la no cumprimento
transformaria no “escolar”. [...] dos seus deveres de cidadã, e isto não seria o
aspecto menos relevante, desenvolver seu corpo
2 Do Escolar para a ginástica, tudo isto é objeto de reflexões,
de articulação de programas, da colocação em
O termo “escolar” é definido pelo Dicionário prática de técnicas pedagógicas aperfeiçoadas,
UNESP do Português Contemporâneo (BORBA, ou melhor, adaptadas às capacidades da criança
2004, p. 526) como um adjetivo “referente e ao seu desenvolvimento, melhor controlado
pelo professor. (BECCHI, 1998, p. 193).
a escola”; “de escola”; “usado na escola”; “de
estudante”; “de ensino”; “da escola”; “que se O crivo pedagógico invadia a infância, ori-
dá na escola”. No Dicionário Houaiss da Língua ginando uma disposição reducionista para
Portuguesa (INSTITUTO ANTONIO HOUAISS, enxergá-la da qual nunca mais foi possível se
2012, p. 313), escolar é um adjetivo que apre- libertar. Com a pedagogia, a criança não seria
senta três significações distintas: a primeira mais a mesma (LAJONQUIÈRE, 1999). A supre-
significando “relativo a escola”, a segunda, “uti- macia do crivo “escolar” foi disseminada de tal
lizado na escola”, e a terceira, “estudante”. Para maneira que provoca alterações nas formas
o dicionário de Língua Francesa Le Nouveau de socialização e de aprendizagem, e como
Petit Robert (ROBERT, 1996, p. 711, tradução sublinha Rui Canário (2005, p. 66), “induzin-
nossa), écolier significa “aluno, estudante; do uma pedagogização das relações sociais, e
criança que frequenta a escola maternal ou desapossando alguns grupos sociais das suas
primária, seguida das pequenas classes de um competências e prerrogativas”.
colégio; colegial, aluno”. O processo de fazer da criança um “escolar”
Estamos particularmente interessadas na não ocorreu sem conflitos. O enquadramento
acepção “estudante” presente nas três refe- institucional da escola moderna provocava a
rências acima citadas. A acepção nos conduz fuga e o absenteísmo. A rigidez da disciplina
à escola. A escola (antes da disseminação dos assegurada pela aplicação de castigos físi-
berçários e creches) significou para a criança cos provocava nas crianças o desprezo pelo
um universo diferenciado dos até então conhe- universo da escola e seu sistema pedagógico
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Da escola, do escolar, da inclusão
(BECCHI, 1998). Exemplos da reação de fuga, advir como um menininho faceiro, participativo
do tênue interesse pelo mundo escolar e dos e cheio de perguntas pelos temas dos nossos
castigos aplicados pelos professores aos alunos projetos e vivências em sala.
encontramos na literatura brasileira no Conto Acreditamos que dominar o rito de passa-
de Escola, de Machado de Assis (2012); realça- gem é ter o entendimento do funcionamento
mos o excerto da narrativa quando o menino, escolar e, assim, poder se situar neste espaço
protagonista do Conto, ao sair de sua casa a como um aluno. Consideramos que há um pon-
caminho da escola, decide seguir outro rumo: to de enredamento dos dois lugares. O scholar
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de entrelaça-se ao alumnu. A operação tem sua
fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia complexidade e, assim, provoca efeitos sub-
ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo jetivos, como se a partir deste enredamento
o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do franquear-se-ia aberturas para se adentrar na
rufo; vinham, passaram por mim, e foram an- cadeia da transmissão dos saberes. Interessa
dando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive sublinhar que no Dicionário Etimológico da
o ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia
Língua Portuguesa, de Antenor Nascentes
estava lindo, e depois o tambor... olhei para um
lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar (1955), “aluno” é termo originário do latim
também ao som do rufo, creio que cantarolando alumnu, sendo definido por criança que se dá
alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola, para criar. Assim, o étimo explicita o caráter
acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela de cessão dos direitos, poderes e responsabi-
Saúde e acabei na Praia da Gamboa. (ASSIS, lidades inicialmente parentais para uma outra
2012, p. 133). instância, desta vez social.
Estar na escola significa introduzir-se em A construção histórica da escola e sua ex-
um território demarcado por uma gramática terioridade – relativamente ao mundo social
singular onde tempo e espaço possuem con- – conduziram ao aparecimento de uma nova
tornos próprios. Codificar os tempos, ler os categoria social, o aluno, como efeito de trans-
espaços e rotas de circulação, distinguir onde formação da criança e sua adaptação às regras
se deve estar diante das demarcações do tempo escolares (CANÁRIO, 2005).
são atributos do processo de reconhecimento
do universo escolar. O tradicionalismo pedagó-
gico não ignora esses atributos. Saber se reco-
3 Da Inclusão
nhecer nessa dinâmica e dominar a leitura dos As políticas para a educação inclusiva têm
tempos escolares não são conquistas fortuitas ocupado o discurso das conquistas democrá-
mas, sim, traduzem um rito de passagem, de, ticas desde as últimas décadas do século XX.
na capacidade de ler os códigos escolares, se Concebidas como proposições para combater
deixar conduzir. É o que ilustra uma lembrança tanto as desigualdades socioeconômicas como
da nossa prática docente com crianças peque- aquelas referentes ao acesso à formação esco-
nas: nosso aluno, ao cessar as lágrimas que lar, procura, através do seu ordenamento jurí-
lhe acompanharam durante as duas primeiras dico, garantir a matrícula escolar de crianças
semanas de frequência à escola, passou a ante- que, até então, por razões diversas, viveram
cipar os elementos da rotina. Quando se apro- apartadas da escola.
ximava, nos dizia com a voz baixinha, quase Ainscow (2009), em seu ensaio Tornar
um sussurro “depois a gente lancha... e depois, a educação inclusiva: como essa tarefa deve
é hora do parquinho”. Assim, ele permaneceu ser conceituada?, aborda o tema da inclusão
durante algumas semanas ocupado em traduzir educacional como questão desafiadora para
o novo espaço e sua rotina, para então poder o sistema escolar, ressaltando o crescente
dispensar essas condutas e, pouco a pouco, interesse por suas propostas em diversos
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preceitos e determinações numa lógica quan- pode seguir vias que interrogam o congela-
titativa que, ao embargar possíveis retomadas mento de concepções oficiais. Quem mais que
de posições no trabalho educativo, exige deles a os próprios educadores poderiam descobrir,
obediência aos ditames da lei. Como assinalam inventar e testemunhar práticas inesperadas
Moschen, Vasques e Frölich (2015), ao narra- de aprendizagem com as ditas “crianças da
rem sobre curso de formação de professores inclusão” em meio às demais do que aqueles
estendido ao longo de três anos, onde a escrita que, com elas, partilham o espaço escolar? A
e a leitura ocuparam posição principal como diferenciação de espaços físicos, a condição de
aposta que professores alcançassem uma po- modalidade especial e o distanciamento entre
sição enunciativa em suas práticas educativas: os professores envolvidos com a vida escolar
Nossa proposta de trabalho, ao contrário, das crianças em situação de deficiência pare-
aposta no tempo como ingrediente necessário cem mais responder à manutenção de fissuras
á constituição de um diálogo que, no curso em do que acenar para possibilidades educativas.
questão, desdobrou-se por meio da escrita dos Salientamos os efeitos das dificuldades e
professores endereçada a leitores atentos aos impasses vividos pelos professores diante das
modos singulares com que os impasses da edu-
cação de crianças, tidas como transtorno global
crianças que sofrem em sua experiência de
de desenvolvimento (TGD), inscreviam na vida aprendizagem (GIRALDI, 2009), uma vez que
desses docentes e das escolas em que atuavam. não contam com ferramentas conceituais que
(MOSCHEN; VASQUES; FRÖLICH, 2015, p. 18). lhes permitam inventar subversões à fixidez
O Atendimento Educacional Especializa- da organização escolar. Assim “desaparelha-
do (AEE) em sua configuração disposta na dos”, reagem na maioria das vezes de modo
PNEEPEI (2008) como dispositivo realizador inverso a suas funções, ativando o insucesso
da educação especial e que perpassa todos os das crianças nas atividades escolares, ou seja,
níveis de aprendizagem confere ao mesmo inscrevendo suas ações no campo das impos-
uma posição centralizada conduzindo a efe- sibilidades de compreender a gramática esco-
tivação da Política à sua operacionalização lar. O discurso das incapacidades emerge em
(RAHME; FERREIRA; NEVES, 2019). Outro as- outras vestimentas e, consequentemente, não
pecto presente na caracterização do AEE, como há apostas (LAJONQUIÈRE, 1999). As crianças,
modalidade de ensino realizado nas salas de ao se sentirem apartadas do trabalho escolar,
recursos, diz respeito às suas atividades quan- hesitam na busca pelo lugar de “alunos”. Perla
do acentua que estas “diferenciam-se daquelas Zelmanovich (2007, p. 2) diz que a aposta na
realizadas em sala de aula comum, não sendo relação educativa apresenta uma afinidade com
substitutas à escolarização” (BRASIL, 2008, o estabelecimento da confiança, “é uma apos-
p. 11). Dizer que o AEE é uma modalidade de ta, uma confiança de que algo de bom possa
educação especial dentro da própria institui- acontecer, ainda que não tenhamos a certeza”.
ção escolar e não franquear aos professores Permanecer à parte da sociabilidade inerente
espaços e condições profissionais que os às instituições escolares pode conduzir essas
permitam mudança de posição – é deixá-los crianças para a uma dimensão segregadora,
a sós – com os argumentos e preceitos do negando-lhes a escola como um ponto de re-
modelo médico para conduzir suas práticas; ferência. Esta posição apartada das relações
é repetir a ideia do exercício ancorado na cro- educativas impossibilita a entrada na cadeia
nometria da aula – é distancia-los, quase que de transmissões, como ressalta Lajonquière
de forma irredutível de um tempo outro que (2010, p. 149): “[...] para que uma educação ve-
alarga o horizonte, suspendendo a métrica – e nha a posteriori se revelar possível – a despeito
subverte a escuridão – é impossibilitá-los de da impossibilidade da educação – é necessário
pensar, junto aos seus pares, que o aprender que o adulto em posição de mestre ensine, mos-
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Da escola, do escolar, da inclusão
tre os signos, ao tempo que denegue a própria a criança numa relação de confiança, no ato
demanda educativa.” educativo.
A dimensão do tempo das políticas inclu- Problematizamos a invisibilidade do tra-
sivas no discurso político-educativo no nosso balho das crianças em situação de deficiência
país tem seus desdobramentos, e como não po- que se faz presente nas escolas inclusivas. A
deria deixar de ser, reclama pelo amplo debate; ideia de que com essas crianças o “trabalho
discussões que deveriam ocupar as instituições não acontece” orienta representações sobre
educativas sem a urgência da mudança. Encur- a impossibilidade da oferta do lugar de aluno.
tar a letra da lei e remeter para espaços histo- Entretanto gostaríamos de ressaltar que, a
ricamente segregadores não traduzem anseios despeito do rótulo de impróprias que ganham
democráticos, e desta maneira não podem ser imediatamente, as possíveis ações/respostas
considerados um empreendimento político. faladas e explicitadas pelas crianças com de-
Não ignorando tais premissas, enfim, remete- ficiência denotam um trabalho que, talvez, se
mo-nos a Freud (2018) ao pensar o trabalho de mostre em modalidades de expressão que não
análise, e consideramos a educação inclusiva se encaixam precisamente no enquadre que
como uma operação: a operação da Educação. os despreza. Há necessariamente que se fazer
furos nas expectativas imaginárias aprenden-
Considerações finais do a olhar e a ouvir por outros ângulos – para
que algo de reconhecimento seja transmitido
A chegada de uma criança à escola é um
–, isto que possa ser nomeado como “espe-
acontecimento que não deveria ser minimi-
cial”, como distintivo da espera pela resposta
zado. Seu enlace com a educação é tributário
correta. Apostamos que assim a escola, en-
deste ponto de partida. Frequentar uma escola
quanto reunião presencial e organizada dos
e experimentar o lugar de aluno provoca mu-
que transmitem saberes e daqueles para quem
danças subjetivas que exponenciam seu trânsi-
se transmite, poderá se construir como uma
to simbólico: desloca a criança de uma posição
escola para todos.
antes restrita à de filho no mesmo movimento
em que amplia seu universo ao ser convocada
a responder ao Outro social. Para as crianças REFERÊNCIAS
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quando bem-sucedido, ganha contornos maio- esta tarefa deve ser conceituada? In: FÁVERO,
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Recebido em: 15/08/2020
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Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
66 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 54-66, out./dez. 2020
Andréa Hortélio Fernandes; Claudia Maria Tavares Saldanha
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p67-83
PSICANÁLISE, LITERATURA E
EDUCAÇÃO: UMA ESCRITA PARA A
DESPATOLOGIZAÇÃO DO SINTOMA
DISORTOGRÁFICO
Andréa Hortélio Fernandes (UFBA)*
https:orcid.org/0000-0002-3730-2198
RESUMO
O artigo parte da premissa de que a contínua interlocução entre a psicanálise
e a literatura teria contribuído para a despatologização do conceito de sintoma
na teoria psicanalítica. Os questionamentos examinados no texto são: Em que
medida esse intercâmbio entre a literatura e a psicanálise pode ter ressonâncias
nas pesquisas com fundamentação da psicanálise e que se relacionam com outros
campos de saber, como, por exemplo, a educação? Um percurso pela interlocução
entre os dois campos poderia fornecer subsídios para uma despatologização
do sintoma em tempos de crescente ampliação e utilização de diagnóstico na
educação, em especial em torno dos transtornos de aprendizagem tais como
o sintoma disortográfico? Através de um recorte clínico, examina e defende
algumas contribuições da teoria da clínica psicanalítica que podem auxiliar no
manejo dos impasses com o saber durante a alfabetização que circunscreve,
também, o momento lógico de efetuação da estrutura psíquica da criança.
Palavras-Chave: Psicanálise. Literatura. Educação. Sintoma disortográfico.
ABSTRACT
PSYCHOANALYSIS, LITERATURE AND EDUCATION: A WRITING FOR
DEPATOLOGIZING THE SYMPTOM DISORTOGRAPHIC
The article starts from the premise that the continuous dialogue between
psychoanalysis and literature has contributed to the depatologization of the
concept of the symptom in psychoanalytic theory. The questions that are
examined in the text are: How far can this exchange between literature and
psychoanalysis have resonances in investigations based on psychoanalysis and
* Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise (Paris VII). Professora da Graduação e Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro do GT Psicanálise, Política e Clínica da Associação Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Analista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EP-
FCL-Brasil). Membro do Fórum do Campo Lacaniano Salvador. E-mail: ahfernandes03@gmail.com
** Mestra em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano
(IF/EPFCL-Brasil) e do Fórum do Campo Lacaniano Salvador. E-mail: cmtsaldanha@gmail.com
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Psicanálise, literatura e educação: uma escrita para a despatologização do sintoma disortográfico
related to other fields of knowledge, such as education? Could a path through the
dialogue between psychoanalysis and literature support a depatologization of the
symptom in times of growing expansion and the use of diagnosis in education,
especially around learning disorders such as disortographic symptoms? Through
a clinical approach, it examines and defends some contributions from the theory
of the psychoanalytic clinic that can help in the management of the callejones
without knowing during the literacy, which also circumscribe the logical moment
to affect the psychic structure of the child.
Keywords: Psychoanalysis. Literature. Education. Disortographic symptom.
RESUMEN
PSICOANÁLISIS, LITERATURA Y EDUCACIÓN: UN ESCRITO PARA
DESPATOLOGIZAR EL SÍNTOMA DISORTOGRÁFICO
El artículo parte de la premisa de que el diálogo continuo entre psicoanálisis y
literatura ha contribuido a la despatologización del concepto de síntoma en la
teoría psicoanalítica. Las preguntas que se examinan en el texto son: ¿Hasta qué
punto este intercambio entre literatura y psicoanálisis puede tener resonancias
en investigaciones basadas en el psicoanálisis y relacionadas con otros campos
del conocimiento, como la educación? ¿Puede un camino a través del diálogo
entre psicoanálisis y literatura sustentar una despatologización del síntoma
en tiempos de expansión creciente y el uso del diagnóstico en la educación,
especialmente en torno a trastornos del aprendizaje como los síntomas
disortográficos? Mediante un abordaje clínico, examina y defiende algunos
aportes de la teoría de la clínica psicoanalítica que pueden ayudar en el manejo
de los callejones sin saber durante la alfabetización, que también circunscriben
el momento lógico para afectar la estructura psíquica del niño.
Palabras clave: Psicoanálisis. Literatura. Educación. Síntoma disortográfico.
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Andréa Hortélio Fernandes; Claudia Maria Tavares Saldanha
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Psicanálise, literatura e educação: uma escrita para a despatologização do sintoma disortográfico
gramaticais e ortográficas e por ser regido por reiteradamente, emprestam uma aparência
uma sintaxe singular e escrita com as letras de fantástica similar às fantasias, aos devaneios
alíngua. Assim, o sintoma é disortográfico, pois e aos delírios.
o “inconsciente-alíngua” (SOLER, 2012a, p. 40) Nos sonhos, segundo Freud (1972b), é co-
é estruturado disortograficamente. mum encontrar uma técnica mais elaborada
Ao recorrer à etimologia da palavra disorto- que combina os traços de alguns objetos com
grafia, a presença do prefixo de origem grega uma nova imagem e, ao proceder assim, utiliza,
“dis” denota uma dificuldade (CUNHA; CINTRA, com habilidade, semelhanças que os dois ob-
2007), o que caracteriza o termo como uma jetos possuem na realidade. A nova estrutura
patologia. Logo, para as ciências que se emba- composta pode parecer inteiramente absur-
sam em um discurso pedagógico hegemônico e da ou provocar a impressão de um sucesso
biologicista, a disortografia, termo aplicado em imaginativo que faz, tantas vezes, o sonhador
sua forma substantiva, é um nome para o trans- afirmar que teve um sonho estranho. Nisso, a
torno de aprendizagem que envolve a escrita, deformação presente na formação dos sonhos
o que representa que o sujeito se encontra em se assemelha bastante às fantasias produzidas
dificuldade com a aprendizagem da ortografia. por sujeitos e a alguns textos de escritores.
Com a psicanálise, a disortografia assume o Freud, ao longo de sua obra, mostra como
estatuto de adjetivo por caracterizar o sintoma os sonhos, os chistes e os atos falhos guardam
do sujeito como disortográfico, uma leitura uma aproximação especial com a poesia por
que coloca em suspenso a marca de dificulda- também fazerem uso de truques linguísticos.
de presente na palavra. Desse modo, o campo O mesmo se produz com o esquecimento de
psicanalítico se apropria dessa nomenclatura nomes próprios. Acerca disso, cita o exemplo
de uso comum pelas ciências que se dedicam envolvendo o nome do pintor Signorelli para
ao tratamento das dificuldades e transtornos mostrar que o motivo atuante no recalcamen-
de aprendizagem e a subverte com o intuito de to está presente também no esquecimento do
revelar as especificidades que regem o incons- nome do pintor (FREUD, 1972c). Logo, o sinto-
ciente e o sintoma. ma, como outras manifestações do inconscien-
te, ou melhor, formações do inconsciente, como
propõe Lacan (1999), tende a fazer uso de certa
O sintoma na psicanálise e poesia para fazer passar o que do inconsciente
os truques linguísticos da insiste e resiste à interpretação.
literatura e da poesia Freud (1972e) aponta a necessidade de uma
verdadeira ars poética para que o sintoma pos-
A publicação de A interpretação dos so- sa extrapolar a dimensão de satisfação egóica
nhos por Freud (1972a) é tida como o marco que ata o sujeito a um mal-estar. Novamente,
inaugural da psicanálise propriamente dita. O faz uma aproximação com a literatura, no caso,
inconsciente, já explorado por outros campos com o escritor criativo, visto que o sujeito com
do saber, é interpretado por meio de elementos sintoma lida com o mal-estar a ele associado
novos, ao passo que o sonho é lido como a via através de deformações e disfarces linguísticos
régia, além do chiste, do ato falho e do sinto- utilizados também pelos escritores. A partir
ma, como afirma Fernandes (2012). Os meios dessa descrição feita por Freud, podemos
à disposição dos sonhos para manifestar os dizer que o sintoma do sujeito representa o
conteúdos inconscientes são sistematicamen- modo como ele lida, goza com o inconsciente
te aproximados por Freud (1972b) não só da na medida em que o inconsciente o determi-
poesia como também da fantasia. Para ele, na. Temos aí a definição de sintoma proposta
os sonhos criam estruturas compostas que, por Lacan (2020a), no Seminário R.S.I., que
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Andréa Hortélio Fernandes; Claudia Maria Tavares Saldanha
deve ser trabalhada, concomitantemente, à não existe, pois ela é o que se tenta elucubrar
definição do inconsciente estruturado como concernente à função de alíngua. Isso teste-
uma linguagem, a qual foi formulada quando munha a existência de um saber inconsciente
realizou o retorno aos fundamentos freudianos que escapa ao ser falante e que está para além
(LACAN, 1998c). da língua ortográfica por dizer respeito ao real
A psicanálise, desde sempre, constitui-se e ao gozo, o qual estrutura e se manifesta no
como um tratamento pela fala. Nos primórdios sintoma (SOLER, 2012a).
das suas elaborações, Freud costumava dar um O saber inconsciente é não todo, pois a divi-
tom romanceado à escrita dos seus casos clí- são subjetiva inerente ao falasser impõe uma
nicos. É possível aproximar tal fato da própria falta que o impossibilita de estar articulado a
concepção do sintoma enquanto retorno do uma verdade absoluta. Assim, o saber no hu-
recalcado que se repete e apresenta um tom mano se constitui para além do determinismo
romanesco. biológico, uma vez que é dada a possibilidade
O romance, concebido como uma composi- de fazer escolhas pela forma como subjetiva a
ção poética popular, durante o período medie- realidade.
val, era transmitido pela tradição oral. Na idade Por sua vez, o saber escolar se estrutura
moderna, o romance é um gênero narrativo em um idealismo do saber absoluto a ser
no qual, ao final, há um enfraquecimento na transmitido às crianças, por meio do discur-
combinação e na ligação de elementos hetero- so pedagógico hegemônico, com a função de
gêneos. Nisso, é possível aproximá-lo à descri- frear as pulsões ainda desorganizadas e de
ção do tratamento psicanalítico produzida por cifrá-las para se adequarem às normas do sis-
Freud (1972f), segundo a qual trata-se de fazer tema educacional (NOMINÉ, 2002; RESTREPO,
da miséria neurótica um sofrimento banal. 2014). Apesar dessa diferenciação, para que a
No início, é preciso trabalhar a demanda criança possa acessar o conhecimento inerente
para tornar o sofrimento do sujeito uma ques- à alfabetização, ela precisa advir como sujeito
tão ligada à sua existência, ou seja, à forma intérprete do saber inconsciente escrito no
como um ser falante constrói sua realidade texto da própria história, marco determinante
psíquica a partir daquilo que na sua história lhe para a efetuação da estrutura.
é singular. No que tange à clínica psicanalítica A dificuldade de aprendizagem da criança
com a criança, a histoerização se dá, também, que adentra a escolarização formal com o in-
por meio da fala, além das produções lúdicas tuito de aprender a ler e a escrever é um tema
como desenhos e jogos. Se o psicanalista deve recorrente no campo da educação (MELO,
aprender a lição lá onde o artista lhe abre o 2016). Essa questão tem produzido mobiliza-
caminho, é possível dizer que a psicanálise ções em nível mundial para que seja alcançado
toma por direção o tratamento pela fala para o êxito na chamada “alfabetização universal”
objetivar o real, cuja elaboração se formaliza (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
pela conceitualização em torno das noções de A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, 2014,
letra e de alíngua (LACAN, 1985). p. 10), a qual é concebida como fundamental
para o avanço social e econômico. As metas e
as estratégias adotadas para que essa demanda
A alíngua e os impasses da seja sanada se direcionam à promoção de uma
criança frente ao saber em educação de qualidade que possa viabilizar a
meio à alfabetização participação escolar e a consequente alfabe-
tização universal “como caminho para uma
O conceito de alíngua foi criado por Lacan aprendizagem relevante e efetiva” (ORGANIZA-
(1985) para situar que a linguagem, de início, ÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO,
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Psicanálise, literatura e educação: uma escrita para a despatologização do sintoma disortográfico
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Andréa Hortélio Fernandes; Claudia Maria Tavares Saldanha
logos. É possível, então, analisar que, diante das trução do caso clínico de uma criança nomeada
intervenções massificantes e uniformizantes, como Lia, nome fictício escolhido por corres-
surgem os casos de crianças que desafiam o ponder ao verbo ler no pretérito imperfeito do
saber todo que orienta esses especialistas e indicativo, foram examinados os impasses com
que insistem em se fazer escutar. Trata-se da a leitura de algumas letras. Cabe ressaltar a ho-
“objeção do sujeito ao estabelecido, ao gozo mofonia entre as pronúncias do verbo “ler” e da
para todos, que é a reivindicação de uma sin- letra “lê”, a letra “éle” como era enunciada por
gularidade que torna a criança rebelde, por na- Lia, a qual permeava todos os nomes próprios
tureza” (RESTREPO, 2014, p. 401). São, então, da família da menina.
etiquetadas como crianças que não aprendem A construção do caso clínico trabalhou em
e que fracassam e que, por conta disso, são torno das marcas das letras de alíngua que es-
encaminhadas para diversos tratamentos a fim crevem o texto do sujeito e que se manifestam
de serem reeducadas e reintegradas ao sistema no sintoma disortográfico, revelando a partici-
escolar (COUTO, 2003). Pelo fato de a criança pação do saber inconsciente na formação desse
estar em um momento decisivo da efetuação sintoma. Para tanto, o termo “disortográfico”
da estrutura, essa lógica discursiva pode gerar foi circunscrito para caracterizar o sintoma
implicações para a sua estruturação subjetiva. da criança que se encontra em impasse com o
A psicanálise interpreta que a objetalização saber em um momento lógico de efetuação da
da criança e a patologização do sintoma disor- estrutura e de entrada no discurso alfabético.
tográfico são efeitos do discurso universitário Lia estava na alfabetização, sofria as exigências
que “faz proliferar doenças e doentes. Doenças da mãe para ler e escrever e encontrava difi-
sem marcadores biológicos evidentes, segrega- culdades com o saber escolar, pois se deparava
doras, que foracluem o sujeito, seu desejo, sua com as convocações do saber inconsciente, o
fala” (MELO, 2016, p. 262). Como adverte Sauret qual lhe demandava um tempo singular para
(1998, p. 30), “não se trata de negar a existência ser elaborado e interpretado.
de determinantes como o organismo, a socieda- O sintoma disortográfico, como todo sinto-
de, a história”, mas de responsabilizar o sujeito ma para a psicanálise, aponta para um modo
pelo o que ele faz com esses determinantes, o de gozar ao localizar o gozo perverso polimorfo
que se mostra como uma subversão da psica- que perdura na estrutura do falasser como
nálise perante outras lógicas discursivas que uma escrita, uma letra de gozo (SOLER, 2012a,
tomam a infância como objeto de investigação. 2012b). O conceito de disposição perverso
Assim, com a psicanálise, a criança pode encon- polimorfa, proposto por Freud (1972d), enoda
trar “um meio eficaz para lutar contra os efeitos o sexual ao pulsional e o aproxima do incons-
nefastos do discurso que domina o campo social ciente e do infantil, elaboração que permite
contemporâneo, esse misto de capitalismo e de defender a ideia de que a sexualidade preser-
ciência” (SAURET, 1998, p. 44). va o infantil. Dito de outro modo, a premissa
freudiana de que a polimorfia pulsional das
O caso Lia: as letras do experiências sexuais da criança persiste na vida
inconsciente-alíngua e o sexual do dito adulto enuncia que “a psicanálise
foi obrigada a atribuir a origem da vida mental
tratamento dado ao sintoma dos adultos à vida das crianças e levar à sério
disortográfico pelo discurso do o velho ditado que diz que a criança é o pai do
homem” (FREUD, 1972g, p. 218). Essa citação
analista é uma referência ao poema The Rainbow,2 de
Em uma pesquisa de mestrado (SALDANHA,
2 “O Arco-Íris. Meu coração saltou quando eu vi um arco-íris
2017) realizada por meio do método de cons- no céu: Assim foi quando minha vida começou; Assim é
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Psicanálise, literatura e educação: uma escrita para a despatologização do sintoma disortográfico
William Wordsworth (2017), um notável enla- que convoca o sujeito, frente ao real, a produzir
ce entre psicanálise e poesia. respostas, um caminho que não é atravessa-
Na relação com o Outro, representado pelos do sem equívocos e tropeços. Dessa forma,
semelhantes que lançam o infans num banho considera-se que a passagem do letramento
de linguagem, o acento é colocado na alíngua primário para o letramento secundário pode
ouvida que carrega os rastros do gozo desse acarretar na produção de um “sintoma tran-
Outro. À maneira de falar do Outro se acres- sitório” (LACAN, 1995, p. 292) para auxiliar a
centa a contingência do ouvir da criança que criança nesse processo de efetuação da estru-
capta esses traços de gozo, o que traz à tona tura e de entrada no discurso alfabético, pois
a questão da participação da criança em sua “o discurso analítico pressupõe que o real do
estruturação subjetiva (SOLER, 2012a). Lacan sexo produz impasses para os seres falantes”
(1985), então, articula a água da linguagem (CIRINO, 2001, p. 60).
que escreve os traços de gozo com as letras Isso faz pensar que “existem angústias quase
de alíngua ao trabalho de erosão das águas obrigatórias e que se resolvem, de certa ma-
que escoam e ravinam a terra, produzindo a neira, por si mesmas” (SOLER, 2012c, p. 212).
escrita do relevo, cuja definição é dada pelo Nesse sentido, o sintoma disortográfico é des-
neologismo lituraterra (LACAN, 2003b), o qual patologizado ao ser considerado uma resposta
equivoca com literatura. do sujeito frente a um impasse com o furo no
Devido à “sua constância e sua fixidez a um saber, ou seja, com a não relação sexual, o que
só tempo gozosa e incômoda, [...] o sintoma an- o faz assumir uma função primordial na estru-
cora, fixa, faz fixão” (SOLER, 2012a, p. 147) de turação da subjetividade, na medida em que
um elemento qualquer do inconsciente tornado serve como um anteparo à angústia da criança.
letra gozada. O sintoma é uma cifra de gozo e, A investigação acerca do sintoma disorto-
“por ser escrito em letras de inconsciente-alín- gráfico de Lia, quando ela contava cinco anos,
gua, é sempre ele próprio analfabeto, ignorante teve início com a elaboração de um enigma
da escrita ortográfica. É escrito sem ortografia sobre o mal-estar que a angustiava: “por que só
e sem sintaxe. [...] Logo, sempre disortográfico tem que ser dever de ler?” Com essa questão,
o sintoma, por definição” (SOLER, 2012a, p. 51). ela começou a elucubração de saber acerca das
Assim, tal qual o sonho, o ato falho e o chiste, letras de alíngua que, como cifras de gozo que
o sintoma disortográfico se utiliza de truques constituem uma holófrase,3 escreviam o seu
linguísticos que são explorados na literatura e
sintoma. Importante retomar o dito da menina
na poesia. Reitera-se que, em razão de o sinto-
carregado de letras e de cifras: “eu não consigo
ma ser “puramente o que alíngua condiciona”
ler! Não leio xaxa, xela, xai, o h com a, e, i, o e u.
(LACAN, 2007, p. 163), ele não é todo decifrável,
Também não sei escrever o x.”
e os pedaços lidos, suas letras, permanecem
Quando questionada sobre os significados
hipotéticas. Diante disso, “se o sintoma pode
de “xaxa”, “xela” e “xai”, disse literalmente: “são
ser lido, é por já estar inscrito, ele mesmo, num
palavras que têm o x com as vogais”. Diante dis-
processo de escrita” (LACAN, 1998b, p. 446), o
so, constata-se o equívoco de Lia ao não men-
qual corresponde ao letramento primário que
cionar o aparecimento da letra “l” em “xela”,
estrutura o falasser.
pois, nessas três “palavras”, as “vogais” não
Sobre a estrutura do falasser, engendra-se
estavam acompanhadas somente do “x”. Sendo
em um tempo lógico de elucubração de saber
assim, as palavras de Lia podem ser nomeadas
agora que sou um homem; Assim seja quando eu envelhe- como palavras do inconsciente-alíngua, pois
cer, Ou me deixe morrer! A Criança é pai do Homem; Eu
poderia desejar que meus dias fossem; Vinculado a cada 3 Segundo Lacan (2008), o termo holófrase diz respeito à
um por piedade natural.” (WORDSWORTH, 2017, tradução solidificação da primeira dupla de significantes, não ha-
nossa). vendo o intervalo entre S1 e S2., unidade básica da língua.
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Psicanálise, literatura e educação: uma escrita para a despatologização do sintoma disortográfico
do analista. Ao passo que é “responsável pela encontra cifrado no sintoma disortográfico. Por
presença do inconsciente” (SOLER, 2012b, p. isso, o “por que” de Lia não deve ser tomado
34), o analista, sustentado em seu lugar de como um testemunho de “uma avidez da razão
semblante de objeto a pelo desejo do analista, das coisas” (LACAN, 2008, p. 209), por estar na
é o “destinatário” (LACAN, 1998d, p. 848) da chamada “idade da razão” (SOLER, 2014, p. 69,
“carta/letra”4 (LACAN, 1998a, p. 26), a qual tradução nossa) e do aprendizado intelectual,
holofraseia o gozo e provoca angústia e sofri- e sim como uma pergunta que porta o enigma
mento por ainda estar ilegível. Logo, o desejo acerca do encontro do real ao experienciar a
do analista engendra a aposta de que o sintoma impossibilidade da relação sexual à medida
disortográfico escrito na carta/letra pode ser que se depara com a falta no Outro [S(Ⱥ)], o
lido por meio da elucubração de saber sobre as que engendra a sua própria falta.
letras de alíngua causada pelo desejo de saber. Sendo assim, o “x” do enigma de Lia não diz
A leitura da carta/letra é tributária da prática respeito ao “dever de ler”, mas ao “ler”, verbo
da letra, “um caminho ao avesso do momento que equivoca com o “lê”, a letra “l” emergida em
inaugural do parlêtre: da prática do blábláblá à “xela” e também tracejada no papel, um truque
prática da letra” (FINGERMANN, 2012, p. 118), linguístico que faz uso da homofonia e corrobora
uma referência à homenagem feita à escritora que “o verbo é inconsciente – ou seja, mal-en-
Marguerite Duras por Lacan (2003a, p. 200) ao tendido” (LACAN, 1981, p. 12, tradução nossa).
versar que “a prática da letra converge com o Nesse sentido, o “l”, letra que permeava o nome
uso do inconsciente”. Isso implica em dizer que próprio de Lia e de todos os seus familiares, é
o uso de gozo feito pelo inconsciente favorece uma letra de alíngua que cifra o gozo e que es-
a disortografia das letras de alíngua, já que o creve o sintoma disortográfico. Trata-se de um
inconsciente-alíngua produz ajuntamentos de traço de gozo que é transmitido entre gerações
letras que veiculam a disjunção do real com o vizinhas, entre pais e filhos, por meio da letra
sentido e com a ordem (LACAN, 1985; SOLER, “l”, e que, por isso, faz a relação sexual existir
2012a). Diante disso, a prática da letra, no dis- (LACAN, 2020b) pelo caminho da identificação.
curso do analista, orienta-se para o real e desve- Para adentrar na lógica da efetuação da
la que a letra de alíngua que escreve o sintoma estrutura, foi preciso que Lia se alienasse a
disortográfico pode ser lida ao pé da letra, na esse dizer escrito com a letra de alíngua, como
medida em que a letra a-borda e faz borda em também, foi necessário interrogá-lo para dele
torno do furo no saber que o real escreve. se separar e se estruturar intérprete. Nesse tri-
Para tanto, o analista empreende a soletra- lhamento, Lia se deparou com impasses frente
ção do gozo cifrado e escrito no sintoma disor- a esse saber inconsciente, e a resposta possível
tográfico a partir do corte no sentido realizado foi a produção do sintoma disortográfico: “eu
pela interpretação que visa o real (FINGER- não consigo ler!”
MANN, 2012). Assim, causado pelo desejo do Na medida em que “o sintoma é uma frase”
analista, é feita a aposta de que o analisando, (MAGALHÃES, 2013, p. 91), ele consiste em um
pela via do desejo de saber, possa bem-dizer dito que porta o enigma do “lê” como um dizer
e saber ler o sintoma para que produza uma a ser lido ao pé da letra. É nessa direção que
resposta singular para o enigma que o sinto- o discurso do analista convoca o sujeito a “ler
ma circunscreve. Isso conduz a pensar que a de outro modo” (LACAN, 2020b), o que implica
questão produzida por Lia, “por que só tem que em saber ler a falta no saber que aponta para
ser dever de ler?”, versa sobre o enigma que se o real da não relação sexual, apostando que da
impotência diante da impossibilidade possa
4 Referência ao equívoco realizado por Lacan (1998a) a
partir do duplo significado da palavra lettre em francês: advir uma elucubração que engendre a criança
carta e letra. como intérprete do saber inconsciente. É o que
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propõe Soler (2012c, p. 245) ao afirmar que o problemas sexuais, e talvez seja até despertada
confronto com a não relação sexual deve ser um por eles”, o que o leva a afirmar que “nenhuma
“starter” para que, do horror ao saber, a crian- criança [...] pode evitar o interesse pelos pro-
ça, como um “primeiro lógico” (MAGALHÃES, blemas do sexo nos anos anteriores à puber-
2013, p. 211), dê partida a um trabalho de in- dade” (FREUD, 2006e, p. 191). Sendo assim, “o
vestigação e de invenção de soluções possíveis interesse intelectual da criança pelos enigmas
que levem em conta o real e que a conduzam do sexo, o seu desejo de conhecimento sexual,
ao desejo de saber. revela-se numa idade surpreendentemente
Assim, diante da pergunta elaborada por tenra” (FREUD, 2006c, p. 125), revestido pela
Lia, “por que só tem que ser dever de ler?”, a curiosidade de descobrir o que os pais fazem
praticante da psicanálise se eximiu de enunciar para terem bebês. Tal curiosidade sexual,
uma resposta, que daria uma significação plena advinda das primeiras inquietações com os
de sentido, para dar o starter, “você queria que enigmas da origem e da diferença sexual, é o
fosse dever de quê?”, o que abriu a possibilida- que desperta a pulsão de saber e a consequente
de de a menina, em sua histoeria, descobrir-se fabricação das teorias sexuais, as quais são o
intérprete ao construir respostas, teorias e prelúdio da estruturação do infantil que perdu-
ficções a fim de fazer borda ao real do enigma ra na neurose e que participa da formação do
do sintoma disortográfico: “de pintar, mas só sintoma (FREUD, 2006e; MAGALHÃES, 2013).
tem que ser de ler e de escrever.” A relação da criança com o saber conduz
Freud (2006g) a concluir que o esclarecimento
sexual propicia não mais que a aquisição de um
O laço entre o saber novo conhecimento, pois a criança não sacrifica
inconsciente e o saber o interesse pelas pesquisas e pelas teorizações
para fazer uso do que lhe foi ensinado. Isso
escolar: uma escrita para a demonstra que, para a criança que está em um
despatologização do sintoma trabalho de engendrar-se intérprete, “o saber
que importa é o saber custoso” (FERREIRA, T.,
disortográfico
2000, p. 137), um saber singular produto da
A peça “O despertar da primavera”, de Frank “criança-intérprete” (SOLER, 2012c, p. 245)
Wedekind, foi objeto de discussão na Sociedade que é elaborado em um tempo lógico de efetua-
Psicanalítica de Viena, na qual Freud (1993, p. ção da estrutura ao ser mobilizado pelo desejo
101) declarou que “a obra tem grandes méritos de saber. Portanto, o saber inconsciente não
e que ficará como um documento, que interessa decorre da aprendizagem pedagógica, ainda
à história da civilização e dos costumes”. Segun- que esteja atrelado à curiosidade intelectual e
do ele, Wedekind mostra ter uma compreensão que impulsione o aprendizado do saber escolar.
profunda sobre a sexualidade humana, o que Ao se confrontar com questões que versam
teria impulsionado o estudo das teorias sexuais sobre o enigma da vida, da morte e do sexo, os
pela psicanálise, o que aconteceu, anos depois, mistérios do corpo falante, a criança se dá conta
nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade da impotência do seu saber e passa a buscar des-
(FREUD, 1972d). Nesse texto, Freud faz um velar a verdade a partir da suposição da existên-
paralelo entre as teorias sexuais infantis e o cia de um saber todo dirigido ao Outro. Diante
desejo de saber na criança, o que ressalta o da constatação de que o Outro também vacila
enlace entre psicanálise, literatura e educação. em seu saber, a criança se põe a produzir suas
Freud (2006b, p. 183) concebe que a crian- próprias teorias sexuais, que, embora “falsas”
ça “é atraída, de maneira insuspeitadamente (FREUD, 2006e, p. 195), portam um “fragmento
precoce e inesperadamente intensa, pelos da verdade” (FREUD, 2006e, p. 195), o que se
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Psicanálise, literatura e educação: uma escrita para a despatologização do sintoma disortográfico
mostra presente no enunciado de Lacan (1992, A partir disso, produziu novas articulações:
p. 175) de que “a verdade é trabalho de criança, “homem tem pipa, carrinho e leão, e mulher
ou seja, um parto”. Embora o exercício de produ- tem borboleta, boneca e flor”, construções, em
ção de teorias e de mitos fracasse ao pretender associação livre, que revelaram seu momento
alcançar a verdade toda, ele é pulsional e não lógico de elucubração do saber inconsciente
cessa de manter o sujeito em posição de desejar que versa sobre a diferença entre os sexos.
saber ao bordejar o furo no saber escrito pelo Mais adiante, o significante “pipa” retornou
real, o que engendra a escrita de uma ficção para em seu dito: “desenhei outra pipa”. Ao falar a
tentar dizer o impossível de dizer. palavra “pipa”, Lia descobriu com surpresa:
Com isso, as teorias sexuais da criança se “pipa tem as mesmas letras de papai, é só trocar
constituem como uma elucubração de saber de lugar!”. É importante sublinhar que Lia, no
sobre alíngua, um trabalho de interpretação início dos atendimentos, ao relatar que não lia,
que busca dar conta da impossibilidade da trouxe a dificuldade com a letra “x” presente
relação sexual, à medida que “o impasse sexual em “xaxa” e “xela”, que retorna, posterior-
secreta as ficções que racionalizam a impos- mente, em “xerecão”. Também se perguntou,
sibilidade da qual provém” (LACAN, 2003c, p. nas primeiras sessões, por que não podia ser
531). Assim, o furo da não relação sexual que desenho de pintar, e, assim, também a letra
marca a incompletude do saber lança a criança “p” retornou, promovendo a histoerização em
ao encontro da verdade não toda e a precipita análise como elucubração acerca das letras do
ao desejo de saber. inconsciente-alíngua.
Nessa perspectiva, Lia falou nas sessões Essas letras do inconsciente-alíngua não
sobre o fato de sua mãe estar grávida de gê- reenviam a um novo sentido, mas para o sa-
meos e seu desejo de saber sobre o sexo dos ber-fazer com o inconsciente-alíngua. Isso
bebês. Após compartilhar a revelação de que pode ser aproximado ao que Freud (2006d)
os dois irmãos seriam meninos, Lia contou uma elabora sobre as brincadeiras e os jogos serem
brincadeira que teve com uma amiga: “a gente a ocupação favorita e mais intensa da criança
estava brincando de pai e filho, e minha amiga e aproxima o brincar à criação poética, pois
achou um boneco, ele tinha um pinto, era um a criança e o poeta criam um mundo próprio
homem. Ela achou que era uma menina, mas repleto de fantasia para transformarem o que
não era, não tinha o xerecão de menina!” Lia há de doloroso no real em algo prazeroso. Com
também produziu suas teorias sexuais a partir isso, ele parece vincular a presença da repe-
do desenho de uma “pipa” (Figura 3), afirman- tição nas brincadeiras e desenhos infantis à
do que “tem pipa de homem e pipa de mulher”. função de elaborar o encontro do real: “é claro
que em suas brincadeiras as crianças repetem
Figura 3 – “Pipa de homem e pipa de mulher”
tudo que lhes causou uma grande impressão
na vida real, e assim procedendo, ab-reagem
a intensidade da impressão, tornando-se, por
assim dizer, senhoras da situação” (FREUD,
2006f, p. 27).
Dessa forma, o que importa não é a produ-
ção em si, “encadeamento dos jogos, os com-
portamentos e, especialmente, os desenhos”
(SOLER, 1991, p. 105), mas a insistência com
que o conteúdo retorna e as mudanças que nele
ocorrem (MAGALHÃES, 2013). Nesse sentido,
Fonte: Desenho produzido por Lia em uma sessão. cada manifestação da criança é um dito que
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porta um dizer que se revela em letras e sig- senvolvido até aqui sobre a alíngua. A alíngua
nificantes que escapam para serem pinçados conecta o gozo do Um, do significante Um fora
pelo analista. sentido, que é condição para que a criança, sen-
A partir da construção de Soler (2012a) de sível aos efeitos pulsionais de alíngua, adentre
que o sintoma do sujeito é disortográfico, o que na linguagem que, com Lacan, é definida como
a interlocução entre psicanálise, literatura e uma elucubração de saber acerca de alíngua.
poesia, desde Freud e com Lacan, já esboçava, Desse modo, a possibilidade de a criança
elabora-se que o impasse da criança com o saber manejar as letras do alfabeto para criar uma
em um momento lógico de efetuação da estrutu- língua singular é tributária da sua estruturação
ra e de entrada no discurso alfabético pode ser como sujeito intérprete e leitor das letras de
lido pela psicanálise como um sintoma disorto- alíngua que já estavam escritas no texto do seu
gráfico. Essa análise sustenta que as dificuldades romance como um letramento primário, porém
decorrentes da aprendizagem da leitura e da holofraseadas e ainda ilegíveis, visto que “o su-
escrita durante a alfabetização, muitas vezes, jeito só inventa o significante a partir de alguma
interpretadas e diagnosticadas como déficits e coisa que já está lá para ser lida” (KAUFMANN,
como transtornos, representam manifestações 1996, p. 473). No entanto, a realização dessa
do inconsciente-alíngua que apontam para a leitura necessita de tempo, um tempo lógico
participação da subjetividade da criança em de elucubração de saber sobre alíngua, a qual,
seu letramento secundário (DUNKER, 2011). como no caso de Lia, demandou, transitoria-
Sendo assim, o saber inconsciente e o saber es- mente, a produção do sintoma disortográfico
colar se enlaçam, revelando a suplementaridade como recurso para que viesse a desembaraçar-
entre ambos no que diz respeito à efetuação se dos impasses com o saber.
da estrutura da criança na passagem de objeto Por meio da histoeria da menina com as
interpretado a sujeito intérprete. letras, foi possível verificar o enlace entre as
letras do alfabeto e as letras de alíngua, na
medida em que a letra que é caligrafada sobre
Apontamentos Finais o papel se revela como suporte para a manifes-
O sintoma da criança, muitas vezes, é a via tação do saber inconsciente. Isso atesta que não
pela qual ela passa de interpretada a intérpre- somente o sintoma do sujeito é disortográfico,
te. Isso tem relação com a definição de Lacan bem como o inconsciente do falasser, pois este
(2003d) de sintoma como um acontecimento é escrito e escreve segundo uma lógica disor-
de corpo tal qual uma cantilena, uma lalação tográfica que é sujeita à equivocidade.
representada como a água da linguagem que O embaraço com a leitura do “lê”, letra de
banha o infans e que deixa marcas do gozo do gozo de alíngua, que, pela via do equívoco, fez
Outro. A lalação entoada como “l’on l’a, l’on l’a a menina ter um impasse com o ato de “ler”,
de l’air, l’on l’aire, de l’on l’a”, em francês, joga realça que Lia percorria um momento lógico
com a fonética jocosa, que pode ser cantarola- de efetuação da estrutura e de elucubração
da como “a gente o tem, a gente tem ares de, a de saber sobre os enigmas da vida, do sexo e
gente areja a partir do, a gente tem” (LACAN, da morte. Tal constatação é uma das contri-
2003d, p. 565). buições que a psicanálise tem a oferecer aos
O cantarolar da lalação, ao tratar o sintoma campos discursivos que também se debruçam
como um acontecimento de corpo, faz alusão sobre as questões que envolvem a criança e o
à afirmação de Freud (1972g) de que a psica- saber, visto que sustenta que o aprendizado
nálise foi obrigada a atribuir a origem da vida das letras do saber ortográfico está enlaçado à
mental dos adultos à vida das crianças, o que elucubração das letras do saber disortográfico
está diretamente relacionado ao que foi de- do inconsciente-alíngua.
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Psicanálise, literatura e educação: uma escrita para a despatologização do sintoma disortográfico
Foi, num tempo singular, permeado por São Paulo: Escuta, 2010.
enigmas e por impasses com o escrever, com o CIRINO, O. Psicanálise e Psiquiatria com crian-
ler e com o “lê”, com o “x” e com o “h”, que Lia ças: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte:
pôde dizer: “eu aprendi o alfabeto e juntei as Autêntica, 2001.
letras.” Fez, então, ajuntamentos e conseguiu COUTO, M. P. do. Da queixa escolar à demanda de
ler, escrever e se engendrar intérprete das análise: uma mudança de posição subjetiva diante
letras de alíngua e das letras do alfabeto. Lia do saber e da verdade. In: GUERRA, A. M. C.; LIMA, N.
também elaborou: “vi que é importante ler, L. de (org.). A clínica de crianças com transtornos
no desenvolvimento: uma contribuição no campo
aprendo muita coisa lendo. A pró mandava
da Psicanálise e da Saúde Mental. Belo Horizonte:
muito dever difícil, agora, é fácil.” Aqui, diante Autêntica/FUMEC, 2003. p. 149-167.
do reaparecimento do significante “difícil”, o
CUNHA, C. F. da; CINTRA, L. Nova gramática do
qual era recorrente enquanto a dificuldade
português contemporâneo. 4. ed. Rio de Janeiro:
com as letras se presentificava, foi questionada Lexikon, 2007.
sobre o que era o “dever difícil” e que, agora,
DUNKER, C. I. L. Transitivismo e letramento:
tornara-se “fácil”, afirmando: “dever difícil é o constituição do sujeito e entrada no discurso.
dever que não vem com a resposta.” 2011. Disponível em: https://www5.pucsp.br/
Isso atesta a pertinência da aposta na cau- linguagemesubjetividade/PDF/biblioteca_virtual.
salidade psíquica em detrimento de considerar pdf. Acesso em: 10 mar. 2015.
a entrada na leitura e na escrita como somente EDINGTON, V. L. T. A medicalização da infância:
uma aquisição de habilidades cognitivas pela uma leitura psicanalítica. 2012. 98 f. Dissertação
via de um adestramento escolar. A literatura e a (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia,
poesia, como exposto, fazem um uso da lingua- Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador,
2012.
gem no qual exploram os truques linguísticos e,
assim, adiantam-se no tratamento da questão FERNANDES, A. H. Psicanálise: interpretação?
de que todo sintoma é em si disortográfico, In: FERNANDES, A. H. (org.). A lógica da inter-
pretação. Salvador: Associação Científica Campo
o que contribui para a despatologização da
Psicanalítico, 2012. p. 52-61.
dificuldade de aprendizagem da criança. É
preciso, portanto, escutar e ler a singularidade FERNANDES, A. H. A psicanálise diante do DSM e
do capitalismo. In: PEREIRA, M. de F. A. (org.). Real,
nos impasses com o saber, uma recomendação simbólico, imaginário e sintoma na clínica psi-
que cabe aos educadores e aos profissionais canalítica. Salvador: Associação Científica Campo
da saúde e que pode conduzir à redução ou à Psicanalítico, 2013. p. 221-228.
eliminação dos diagnósticos apressados que FERNÁNDEZ, A. Y. Et al. Avaliação e intervenção
propagam a patologização e a medicalização da disortografia baseada na semiologia dos erros:
do sintoma disortográfico. revisão da literatura. Revista CEFAC, v. 12, n. 3, p.
499-504, 2010. Disponível em: http://www.scielo.
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Psicanálise, literatura e educação: uma escrita para a despatologização do sintoma disortográfico
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Andréa Hortélio Fernandes; Claudia Maria Tavares Saldanha
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
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A presença da psicanálise na universidade: pesquisa e dispositivos para a formação docente
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p84-101
A PRESENÇA DA PSICANÁLISE
NA UNIVERSIDADE: PESQUISA E
DISPOSITIVOS PARA A FORMAÇÃO
DOCENTE
Margareth Diniz (UFOP)*
https://orcid.org/0000-0001-6852-5389
RESUMO
O presente artigo apura a análise dos resultados da pesquisa Dispositivos de
formação docente que consideram a subjetividade. A metodologia usada na
pesquisa foi o registro escrito de professores/as psicanalistas a partir de duas
questões acerca da implicação docente e dos métodos usados na formação
visando os impactos na subjetividade docente. Como resultado, apuramos que
a conduta clínica implicada e a escuta qualificada de docentes em situações
de queixa e mal-estar se configuram como importantes dispositivos a serem
transmitidos na formação, reiterando a ineficácia de modelos prescritivos de
formação de professores/as que se baseiam no ensino de técnicas e informações
acerca de como o/a professor/a deve ensinar e trabalhar com seu aluno.
Reafirma-se assim a necessidade de tempo para a elaboração precisa das
experiências cotidianas para que estas possam de fato atravessar e marcar o
sujeito.
Palavras-chave: Dispositivos. Formação docente. Subjetividade.
ABSTRACT
THE PRESENCE OF PSYCHOANALYSIS IN THE UNIVERSITY: RESEARCH
AND DEVICES FOR TEACHING EDUCATION
This article analyzes the results of the research Teacher education devices that
consider subjectivity. The methodology used in the research was the written
record of teachers / psychoanalysts based on two questions about the teaching
implication and the methods used in teacher education aimed at impacts on
* Pós-doutorado em Psicologia, Psicanálise e Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora em Educa-
ção pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora do Programa de Pós-Graduação e do Instituto de Ciências
Humanas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). E-mail: dinizmargareth@gmail.com.
** Pós-doutorado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Educação Social pela Uni-
versitat Oberta de Catalunya (UOC). Doutor em Psicologia e Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do
Programa de Pós-Graduação e da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador Pq2
CNPq. E-mail: mrp@ufmg.br
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Margareth Diniz; Marcelo Ricardo Pereira
teacher subjectivity. As a result, we found that the clinical conduct involved and
the qualified listening of teachers in situations of complaint and malaise are
configured as important devices to be transmitted in training, reiterating the
ineffectiveness of prescriptive models of teacher education, based on teaching
of techniques and information about how the teacher should teach and work
with his student. Reaffirming the need for time for the precise elaboration of
everyday experiences so that they can actually cross and mark the Subject.
Keywords: Devices. Teaching education. Subjectivity.
RESUMEN
LA PRESENCIA DEL PSICOANÁLISIS EN LA UNIVERSIDAD:
INVESTIGACIÓN Y DISPOSITIVOS PARA LA FORMACIÓN DOCENTE
Este artículo analiza los resultados de la investigación Dispositivos de
formación docente que consideran la subjetividad. La metodología utilizada en
la investigación fue el registro escrito de docentes psicoanalistas basado en
dos preguntas sobre la implicación de la enseñanza y de los métodos utilizados
en la formación visando mirar los efectos en la subjetividad de los maestros.
Como resultado, verificamos que la conducta clínica involucrada y la escucha
calificada de los docentes en situaciones de queja y malestar se configuran como
dispositivos importantes para ser transmitidos en la formación. Reitera, pues
la ineficacia de los modelos prescriptivos de formación docente, basados en la
enseñanza de técnicas e informaciones sobre cómo el docente debe enseñar y
trabajar con su alumno, reafirmando así la necesidad de tiempo para elaboración
precisa de las experiencias cotidianas que realmente puedan tocar y marcar el
sujeto.
Palabras clave: Dispositivos. Formación docente. Subjetividad.
Introdução
O presente artigo visa descrever em linhas em Psicologia (ANPEPP),2 que identificou os/
gerais como desenvolvemos e analisamos os as pesquisadores/as brasileiros/as do campo
dados encontrados na pesquisa de pós-douto- Psicanálise e Educação que são professores/
rado intitulada: Dispositivos para a formação as de instituições de ensino superior e que
docente que consideram a subjetividade (DINIZ; desenvolvem investigações, extensões e orien-
PEREIRA, 2018), realizada em 2018/2019 jun- tações de graduandos e de pós-graduandos.
to ao Programa de Pós-graduação em Educação O referido banco de dados3 considerou: 1)
da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE
2 As produções dos/as pesquisadores/as já haviam sido
-UFMG), Linha de Pesquisa: Psicologia, Psica- examinadas por Maria Cristina Machado Kupfer, e seu
nálise e Educação, e que contou com a bolsa de grupo de orientandos da USP, com resultados publicados
na revista Estilos da Clínica, tendo como aporte a tradição
financiamento da Capes no Programa Nacional de investigação e de trabalhos desenvolvidos pelo Labora-
de Pós-Doutorado/Capes (PNPD) 2018.1 tório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais
sobre a Infância (Lepsi-USP) e pelo Lugar de Vida: Centro
O ponto de partida para o recorte da pes-
de Educação Terapêutica, de São Paulo – referências ex-
quisa realizada foi o banco de dados da Asso- pressivas para o GT na ANPEPP e para o campo, tendo sido
ciação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação identificados 277 trabalhos (KUPFER et al., 2010).
3 Marcelo Ricardo Pereira (UFMG), coordenador do GT
1 A pesquisa seguiu rigorosamente os trâmites do comitê de (2014-2016), junto à professora Maria Cristina Kupfer e
ética em pesquisa. seus orientandos da UFMG, desenvolveram um novo le-
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A presença da psicanálise na universidade: pesquisa e dispositivos para a formação docente
localização dos cursos e os programas de pós- Tal iniciativa seguiu as diretrizes do plano
graduação de psicologia, de educação e de áreas proposto pelo GT Psicanálise e Educação da
afins dos estados ou regiões em que o GT tem Associação Nacional de Pesquisa e Pós-gra-
representantes (São Paulo, Minas Gerais, Rio duação em Psicologia (ANPEPP), que visa
de Janeiro-Espírito Santo, Sul, Centro-Oeste, mostrar o que tem sido produzido na literatura
Nordeste 1 [Ceará, Maranhão e Piauí] e Nor- científica do campo desde a década de 1980, na
deste 2 [Rio Grande do Norte, Pernambuco, qual o campo Psicanálise e Educação ganha no
Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia]); 2) análise Brasil um recorte disciplinar independente da
das páginas eletrônicas dos cursos e dos PPGs, Psicologia do Desenvolvimento.6 O que o grupo
bem como os currículos Lattes de seus pro- de pesquisadores/as da ANPEPP concluiu é
fessores-pesquisadores-orientadores; 3) as que o campo cresceu em número absoluto de
variáveis como projetos, temas das publicações pesquisadores/as e de produções, e que vem
e temas das orientações, registrando aqueles se consolidando. Assinalam a importante con-
que trabalham ou trabalharam com pesquisa tribuição político-acadêmica do Laboratório de
(e/ou extensão) relacionada à psicanálise e Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacio-
educação;4 4) a identificação nominal desses nais sobre a Infância (LEPSI-USP) e do Lugar de
professores-pesquisadores-orientadores que Vida, considerando que a fundação do LEPSI,
compuseram, cada um/a, um pequeno quadro em 1998, e a realização de seus colóquios in-
com seus emails, projetos, temas de orientação ternacionais (anuais e depois bianuais) fez com
e de produção; 5) os currículos de seus alunos que o número de profissionais se multiplicasse
orientandos e pós-doutorandos, buscando loca- no campo. O LEPSI desdobrou-se e hoje reúne
lizar o maior número possível de pesquisadores pesquisadores/as da UFMG e da Universidade
e de assuntos do campo, garantindo uma maior Federal de Ouro Preto (UFOP), em Minas, que
consistência à cartografia organizada. O resul- se somam aos da USP e da Universidade Federal
tado desse trabalho demonstrou uma razoável de São Paulo (UNIFESP), além de agregar em
diversidade de temas e de pesquisadores em seus colóquios pesquisadores/as de todo o Bra-
todas as regiões geográficas do país (KUPFER et sil. O grupo ainda destaca que outros diretórios
al., 2010; PEREIRA; SILVEIRA, 2015),5 nas quais do CNPq indicam trabalhos de pesquisa direta
identificaram 157 profissionais que trabalham ou indiretamente associados ao GT Psicanálise
diretamente com Psicanálise e Educação ou e Educação da ANPEPP e também contribuem
têm este campo entre as abordagens que de- para o crescimento do campo, como o Nú-
senvolvem. À época do levantamento dividiram cleo de Pesquisa em Psicanálise e Cultura, da
o campo em seis temas e apontaram o número Universidade Federal do Rio Grande do Sul
de profissionais em cada um: 1) Adolescência, (NUPPEC/UFRGS), o Grupo de Estudos em Psi-
violência e socioeducação (21); 2) Infância, canálise, Educação e Representações Sociais, da
impasses com o saber, sofrimento e inclusão Universidade do Estado da Bahia (GEPPE-RS/
(58); 3) Docência e mal-estar na educação (40); UNEB), o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa
4) Linguagem, literatura e psicanálise (10); 5) e Intercâmbio para a Infância e Adolescência
Psicanálise, educação e conexões (20); e 6) Contemporâneas, da Universidade Federal do
Transmissão, ensino e aprendizagem (8). Rio de Janeiro (NIPIAC/UFRJ), o Grupo de Pes-
vantamento bibliográfico de acervo indexado (1987-2012), quisa Caleidoscópio, da Universidade Federal
encontrando 635 trabalhos. de Ouro Preto (UFOP), Outrarte (Unicamp, USP,
4 A educação aqui é pensada em seu sentido amplo, conside-
rando seu caráter de transmissão, para além de sua forma
UFMG, UFG, UdelaR), entre tantos outros.7
aplicada à pedagogia, a cursos de licenciaturas e afins. 6 Argumento melhor desenvolvido em Pereira e Silveira
5 Ambos estados da arte encontram-se também (2015).
publicados no site do Lepsi-USP: http://www3.fe.usp. 7 Tanto a pesquisa de Kupfer e outros (2010) como o de
br/secoes/inst/novo/laboratorios/lepsi/index1.htm. Pereira e Silveira (2015) apuram que temos hoje mais de
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Margareth Diniz; Marcelo Ricardo Pereira
Para a pesquisa de pós-doutorado em tela, encontra-se ligada a uma prática, como é o caso
destacamos os/as profissionais atrelados à da Medicina e do Direito, por exemplo, na qual
terceira temática indicada pela pesquisa de os psicanalistas terminam por restringir sua
Pereira e Silveira (2015): “docência e mal-es- presença na universidade apenas a momentos
tar na educação”, grupo que conta com 40 de ministrar aulas, dirigindo o restante de sua
profissionais. Destes, elegemos o subgrupo carga horária para o escritório, consultório
que discute mais especificamente a docência, ou instituição privada de formação. Segundo
não considerando nesse trabalho a questão essa autora, alguns professores-psicanalistas
do mal-estar docente por já ter sido objeto de beneficiam-se do contato com estudantes para
pesquisas realizadas em outras circunstâncias.8 atrair clientela para sua clínica e para sua for-
Interessava-nos no pós-doutorado buscar os mação paralela em instituições ou associações
dispositivos que nós, professores/as psica- de psicanálise; e afirma que as consequências
nalistas, temos usado na formação docente mais diretas desse desvio de função (quando o
considerando a subjetividade. Do grupo de 40 regime é de dedicação exclusiva) são: ausência
pesquisadores/as chegamos a 15;9 enviamos das reuniões de colegiado, sobretudo no nível
um formulário para 13 psicanalistas professo- da graduação; rara intervenção em debates aca-
res/as, contendo duas perguntas básicas: 1) Em dêmicos relativos à reorganização curricular e
que medida os psicanalistas estão inventando político-acadêmica; impedimento de assumir
novos operadores para atingir a transmissão cargos de gestão, o que, por sua vez, provoca
de uma formação que considere o sujeito pouca interferência nas questões relativas
do inconsciente? 2) Como você, professor/a ao curso, no acompanhamento e supervisão
psicanalista está implicado nessa conduta de dos estudantes e em decisões estratégicas
formação? Obtivemos quatro respostas que decisivas, como distribuição de vagas para
servirão de mote para a discussão e análise do concurso. Tais aspectos são apontados por Fon-
que encontramos na literatura e nas produções teles (2015) como justificativa para uma certa
de pesquisadores/as dessa temática no Brasil invisibilidade da psicanálise na universidade.
e fora dele. Antes de apresentarmos a análise das per-
Também buscamos em outros grupos de psi- guntas endereçadas a psicanalistas-professo-
canálise inscritos na ANPEPP os rastros e pistas res/as acerca dos dispositivos que utilizam na
sobre a questão da docência, ainda que estives- formação docente, é importante assinalar que
sem fora do escopo Psicanálise e Educação, mas
a pesquisa no campo da psicanálise, entendida
não encontramos nenhuma produção nesses
como um território de disputas de verdades e
outros grupos que fizesse referência à docência
saberes, apresenta princípios e orientações que
e à formação, indicando que a produção acerca
interrogam o discurso científico strito sensu.
da temática em questão é ainda tímida, embo-
ra vários psicanalistas sejam professores/as
universitários. Fonteles (2015) aponta que em O campo de pesquisa em
algumas categorias profissionais a docência Psicanálise: teoria, clínica e
40 diretórios de grupos registrados no CNPq cujo tema é
Psicanálise e Educação, ou o inclui.
método
8 A exemplo de Nem tão contemporânea assim: a mulher-pro-
fessora e seus tropeços diante da diferença (DINIZ; FERRAZ, A pesquisa em psicanálise coincide com a
2013) e O Nome atual do mal-estar docente (PEREIRA, própria gênese do campo e se confunde com
2016).
9 Incluindo Margareth Diniz e Marcelo Ricardo Pereira, su- a práxis analítica, na medida em que a clínica,
pervisor do projeto de pós-doutorado, como pesquisadores para Freud, é também pesquisa. O método
do grupo Docência e mal-estar docente e do subgrupo
Docência. Optamos por não responder às questões enca-
psicanalítico e sua aplicação têm sido objeto de
minhadas aos demais pesquisadores/as. polêmicas acerca do sentido e do real signifi-
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A presença da psicanálise na universidade: pesquisa e dispositivos para a formação docente
cado das pesquisas ditas psicanalíticas na uni- relação da psicanálise com a psiquiatria, com
versidade. A pergunta que geralmente fazemos a filosofia, com a literatura, com o direito, com
é: como considerar a lógica do trabalho clínico a psicologia e com a educação.
orientado pelo inconsciente na pesquisa? Boddin (1998) relata que a psicanálise co-
O conceito de inconsciente, trazido pela meçou a ser divulgada no Brasil desde o final
psicanálise para o âmbito das ciências e uma do século XIX por meio de psiquiatras das
nova forma de pesquisa com método próprio, faculdades de medicina, destacando-se, entre
caracteriza a especificidade deste campo que, eles, Juliano Moreira,11 Durval Marcondes,12
desde o início de sua constituição, pleiteia – e Porto-Carrero.13 A universidade foi o primeiro
realiza – inserção no ambiente universitário, lugar ao qual chegaram as ideias inaugurais de
juntamente com as demais disciplinas cientí- Freud, sendo defendido, em 1914, na Faculda-
ficas. De acordo com Coutinho e outros (2013, de Nacional de Medicina no Rio de Janeiro, o
p. 106): “A proposta de Freud para a sua ‘jo- primeiro trabalho acadêmico em psicanálise no
vem ciência’ [...] compreende os seguintes país, escrito pelo médico Genserico de Souza
elementos integrados: modelo de pesquisa e Pinto (1914).14
de tratamento, método e rede conceitual e de No Brasil, as relações da psicanálise com a
vocabulário.”
ser membro das sociedades existentes até então e nem
Ao longo da história, a psicanálise encontra professor universitário acabou esquecido pela história da
seu lugar perante as outras ciências, e é deste psicanálise, publicou vários livros, a partir da década de
1930, com abordagem pedagógica e acessível da psicaná-
lugar que ela pode interrogar e ser interrogada, lise, com amplas tiragens e em editoras de prestígio. Além
estando em posição de interlocutora e fazendo disso, escrevia colunas em revistas sobre temas psicana-
avançar as pesquisas por meio de seus concei- líticos, mantendo um programa na Rádio Nacional sobre
sonhos. Era autor de radionovelas de cunho psicanalítico
tos, da clínica e seu método, embora inúmeras e criou um curso de psicanálise por correspondência. Um
sejam as discussões em relação a seu estatuto, dos precursores da divulgação da psicanálise através dos
meios de comunicação e entre o público leigo, era também
gerando posicionamentos diferentes entre um defensor da análise leiga, criticando o dogmatismo na
psicanalistas e interlocutores. Sauret (2003) formação da IPA (MARCONDES, 2014; RUSSO, 2002).
11 Juliano Moreira, jovem docente psiquiatra baiano, negro,
destaca diferentes tipos de pesquisa em psi- erudito em alemão, citava textos de Freud em suas confe-
canálise: a) a que visa responder a questões rências, na Faculdade de Medicina da Bahia, e funda, em
colocadas pela psicanálise; b) a que busca 1928, a primeira Sociedade de Psicanálise no Rio de Janeiro,
com sede no Hospital dos Alienados, onde foi docente desde
responder a questões colocadas à psicanálise; 1903.
c) a que constrói uma teoria a partir da dou- 12 Durval Marcondes começa a atender pacientes aplicando
o método analítico, após ter iniciado sua formação, e
trina e da experiência; d) a que visa ampliar funda, em 1927, junto com Franco da Rocha, a Sociedade
o campo da experiência analítica; e) a que se Brasileira de Psicanálise, primeira do gênero na América
Latina. Franco da Rocha é também considerado precursor,
orienta pelo saber e, eventualmente, pela ética mas em São Paulo, sendo reconhecido como o maior ex-
da psicanálise. poente da psiquiatria local, sendo designado professor de
Clínica Psiquiátrica na Faculdade de Medicina, em 1919,
A utilização da teoria freudiana não visava e ministra uma aula inaugural intitulada Do delírio geral,
apenas ao tratamento nos anos de 1920 e transformada em artigo e publicada no jornal Estado de
1930, sendo compreendida como uma teoria São Paulo.
13 Inicia sua clínica na Liga Brasileira de Higiene Mental, em
aplicável à cultura e apropriada por diversos 1923, apresenta em 1924 um caso orientado pela psica-
campos científicos.10 Podemos destacar aqui a nálise na Academia Nacional de Medicina, sendo um dos
primeiros responsáveis pela historiografia do movimento
10 Os primeiros textos psicanalíticos do Brasil mostram psicanalítico lançado em 1929.
a intenção de introduzir a psicanálise em um contexto 14 A tese de Pinto (1914) inaugura um espaço para recepção
social mais amplo e desta forma esteve presente desde as e início da consolidação do campo no Brasil, já que nesse
ideias reformistas da Educação ao movimento de Higiene período a psicanálise não era conhecida no meio médico
Mental, passando pelo Movimento Modernista, sendo e muito menos do público em geral. O autor refere-se ao
difundida tanto entre intelectuais de vanguarda quanto “grande método terapêutico de Freud, diferenciando-se de
entre a população em geral. Gastão Pereira da Silva, um todos os métodos psíquicos até hoje empregados” (PINTO,
dos primeiros psicanalistas do Rio de Janeiro, que por não 1914, p. 87).
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A presença da psicanálise na universidade: pesquisa e dispositivos para a formação docente
maior recai sobre a pós-graduação, uma vez duz e interroga a teoria, relançando as bases de
que surge, de modo sistematizado, a proposta novos conhecimentos e marcando o importante
de pesquisa em psicanálise, trazendo a clínica lugar vazio da estrutura significante.
ao contexto universitário, ou de doutorado em Para alguns autores (CASTRO, 2010; LO
psicanálise, provocando desconfiança de as- BIANCO, 2003, ZANNETI; KUPFER, 2006), des-
sociações psicanalíticas que até então eram as de os primórdios da psicanálise, a direção da
detentoras da formação. pesquisa psicanalítica é dada pela experiência
Portanto, medicina, filosofia, literatura, di- clínica; portanto, o relato do caso e seus des-
reito, psicologia e educação são as áreas que dobramentos são instrumentais na construção
concentram a maior parte das teses psicanalí- do método e da pesquisa em psicanálise. O caso
ticas, sendo campos que sempre estabeleceram não é usado para confirmar a teoria ou para
relações com a psicanálise. Mais que encontrar demonstrar e exemplificar. Trata-se de um
respostas, a psicanálise busca discutir ques- conjunto teórico que sustenta relações com a
tões, mostrando a ruptura epistemológica que clínica e o que emerge dela. Por meio dessas
promove, diretamente relacionada à sua forma análises, obtém-se a renovação da teoria. O
de compreender a pesquisa e sua transmissão, caso interroga o pesquisador e essa singulari-
sobretudo na universidade, se colocando no dade não diz respeito somente ao analisando
campo da contingência, apontando para a im- e suas questões, mas à própria relação com o
possibilidade de um saber universal, contrária analista. A pesquisa não se reduz à observação,
à forma de operar da ciência que recalca este tampouco ao registro para posterior análise,
contingente e busca ingressar no campo do mas diz respeito a uma elaboração do trabalho
necessário, do determinismo, de acordo com na clínica. Mesmo pesquisas teóricas estariam
Pinto (2005). relacionadas com tal dimensão.
A psicanálise ainda encontra dificuldades no Lo Bianco (2003) afirma ainda que investi-
cenário acadêmico, considerando que a forma gações teóricas são necessárias para revisão
de fazer pesquisa empreendida por psicanalis- dos conceitos e, consequentemente, para a
tas vai de encontro aos ideais de ciência vigen- prática clínica. Seu exame permite conhecer
tes nas universidades, bem como à exacerbação elaborações já realizadas, mas que não se es-
da lógica produtivista presente nas universi- gotam. O retorno aos textos fundadores deve
dades de forma geral, e não só no Brasil. Para ser tomado num movimento de vai e vem, das
Birman (2013), a pesquisa seria, de forma questões clínicas para a teoria e vice-versa.
indiscutível, elemento estruturante da univer- Além disso, o pesquisador escreve a partir de
sidade, deslocando a posição dos/as docentes e sua experiência com a psicanálise, seja sobre
dos/as estudantes e instaurando-se um espaço sua análise pessoal, seja das análises que con-
de trocas, com lugares menos personalizados duz. Esses aspectos colocam não só a clínica,
ou centrados na figura do mestre. A pesquisa mas também a cultura como lócus importante
coloca o saber em uma posição terceira na re- de incidência da interrogação psicanalítica.
lação ensino-aprendizagem, favorecendo uma Para Aires (2013, p. 34, grifo do autor),
postura ativa pela construção e apropriação do podemos supor que cada analista ocupa e exerce
conhecimento, tanto do docente quanto do dis- de modo singular um lugar na universidade, um
cente, desempenhando um importante papel modo de transmissão da psicanálise no lugar
em que se encontra e nesse sentido, ao falar
no cenário político-acadêmico, de acordo com
como psicanalistas no âmbito da universidade,
Fontenele (2015). A pesquisa pode interrogar não falamos desde um lugar comum [...]. Para
tanto o conhecimento quanto a relação com o que uma fala tenha efeito de transmissão, deve
saber, este materializável na medida em que é necessariamente implicar o reconhecimento da
incorporado por alguém que, em relação, pro- alteridade.
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algo que vaza, é não todo, não há uma captura a minha ignorância e dar espaço para que cada
total, nos escapa. A informação não é saber, ela aluno retire de nossos encontros algo que tam-
só faz semblante de saber. Formar é diferente bém diga de si.
de informar, formar diz respeito à construção De acordo com Lo Bianco (2003), o incons-
de um lugar psíquico para suportar a falta de ciente, objeto da psicanálise, é apreendido por
informação ou seu excesso: “considero funda- meio da práxis. Sua especificidade está no fato
mental o como damos testemunho de nossa de que, ao tempo em que é elaborado, o objeto
castração em face ao não saber e a falta”. constitui-se na formalização da investigação.
Isabel respondeu: O professor(a)/pesquisador(a) está direta-
Penso que, como professores, precisamos partir mente implicado na emergência do material
justamente do conceito de inconsciente para de pesquisa: “É lidar sempre com o que sei,
pensar seus efeitos na aprendizagem e, conse- suportar a minha ignorância e dar espaço para
quentemente, nos processos formativos. Nesse que cada aluno retire de nossos encontros
sentido, incluir essa concepção na minha prática
algo que também diga de si”. Há que se ter um
pedagógica requer um constante questiona-
mento sobre as estratégias utilizadas em sala desejo decidido de dar lugar de protagonista
de aula, no modo como os alunos estabelecem ao aluno/a em formação, tecendo desta forma
laço comigo e com os conteúdos, e também nas a relação teoria/prática no campo da psicaná-
avaliações propostas em disciplinas que lecio- lise, o que revela o fazer clínico como lugar de
no. Incluir a noção de sujeito do inconsciente investigação, a qual, por um lado, possibilita a
implica suportar e sustentar modos outros dos
construção de generalizações teóricas e, por
alunos estabelecerem laços com os conteúdos
ministrados, laços esses que se estabelecem outro, exige sua reconstrução tendo em vista
ancorados em outros modos de pensar e se co- a transferência singular que se atualiza na re-
locar em sala de aula aquém ou além da razão, lação de cada aluno/a em particular.
da cognição. Para as aulas proponho temáticas, Pedro assim se posicionou:
textos, vinhetas de situações ou filmes a serem
Eu tomo minha prática em sala de aula na for-
analisados a partir da teoria. Acolho e insiro
nas disciplinas sugestões dos alunos de textos, mação de futuros professores como testemunho
filmes, séries. Ao comentar um texto e/ou con- de um trabalho analítico meu, o que para mim
ceito, tento fazer após um momento de escuta implica ‘numa possível bricolagem’ entre o que
dos alunos, sobre o que a leitura os provocou, já elaborei e consigo transmitir e a falta. Incenti-
persigo associações, proponho novas perguntas, vo meus alunos a fazerem um inventário escrito
instigo a irem em busca de outros materiais… do enxame de recomposições identitárias, de
instigo a escreverem e se inscreverem no que novas fabricações de alteridades e de análise
escrevem. Geralmente o semestre vai se cons- dos processos de metamorfose, hibridização e
truindo ao sabor do encontro com cada turma invenções das referências que eles vivenciam
e, nos momentos em que lecionei uma disciplina em seus contatos com a formação, com o outro,
para duas turmas diferentes, ao final recolhi com a escola, com o social e a cultura. A apos-
como resultado um processo singular tecido ta é que no a posteriori algo se elabore. Após
com cada um dos grupos. Sensibilizar a escuta, leituras por alguns discentes em sala de aula, e
fazer o exercício de escutá-los para fomentar comentários gerais destes escritos, minha po-
que eles façam isso nas suas atuais ou futuras sição é a de interrogar a escrita de cada um/a e
salas de aula. Provocá-los a pensar sobre o que também a de situar o risco das radicalizações e
ser professor e tornar-se professor implica, das clivagens observadas em seus enunciados e
atualizar marcas de suas constituições como assim vou configurando paralelamente a minha
sujeitos. Ao ler o que escrevi até aqui penso que própria pesquisa.
os operadores são menos estratégias (que não
A pesquisa/intervenção pode ser aplicada
são tão novas assim ou tão diferentes de outras
práticas interacionistas), mas o modo como tanto para problemas teóricos e/ou metodo-
me posiciono frente ao que ensino e aos meus lógicos, quanto nas vivências e nas narrativas
alunos. É lidar sempre com o que sei, suportar decorrentes dessas vivências; neste excerto
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A presença da psicanálise na universidade: pesquisa e dispositivos para a formação docente
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Margareth Diniz; Marcelo Ricardo Pereira
professor/a ter outra relação com o saber. O/a duta de formação?”, destacamos as seguintes
educador/a precisaria apostar um pouco mais respostas:
no seu aluno/a, navegar pelo não saber sobre Não tenho nenhuma conduta de formação QUE
si, pois o saber sobre o aluno/a não está cifrado NÃO SEJA implicar o sujeito em sua própria
no diagnóstico e demais certezas que lhe são formação. Isso que não posso fazer por ele,
dadas, principalmente no trato com crianças obviamente. Do mesmo modo que estou sujeito
ditas especiais. Esta formação de futuros/as ao campo da palavra e da linguagem, entendo
que A IMPLICAÇÃO COM O ATO DE EDUCAR se
educadores/as mostra que, inúmeras vezes,
mostra no ato de enunciação, isto é, como tomo
o/a educador/a permanece em um circuito a palavra no sentido de interrogar o saber que
de gozo, numa espécie de discurso de queixas, mobiliza uma formação: o que você quer? Por
paralisando o pensamento, fixando-se em um que se o professor for mais um burocrata de
circuito de impotência. A aposta então se coloca plantão, apenas irá piorar as coisas. Mas, se a
numa outra direção, num outro circuito, na cir- enunciação da palavra conduz a efeitos inespe-
culação da palavra e sua escuta, na transmissão rados, podemos acolher esse efeito ou retorno
de modo a mobilizar mais uma vez o sujeito
da experiência como um modo de se erguer o
(do desejo), de modo a conduzir uma formação
novo do sujeito e encontrar nele uma posição subjetivante. Caso contrário reproduzimos uma
de mestre possível dentro do impossível do formação alheia às questões que realmente in-
educar. teressam aos formadores, questões que passam
Sintetizando as quatro falas, acerca da per- por conhecimentos, obviamente, mas também
gunta “Em que medida os psicanalistas estão implica a questões que envolvem conflitos,
inventando novos operadores para atingir a angústias, prazeres etc. Nesse sentido, sempre
me interrogo, em nome do que formamos esses
transmissão de uma formação que considere o
professores? Há uma dimensão simbólica que
sujeito do inconsciente?”, e desprezando algum enlaça o sujeito no discurso, ou somos todos
possível tom idealizado das respostas, pode- impostores? Assim, penso que um modo heu-
mos destacar a fala da professora-pesquisadora rístico de lidar com a formação, mais do que
Isabel: “penso que os operadores são menos hermenêutico, pode conduzir a novas questões
estratégias (que não são tão novas assim ou tão ou mesmo interrogar o sujeito quanto ao seu
diferentes de outras práticas interacionistas), papel na própria formação. (HENRIQUE, grifo
do autor).
mas o modo como me posiciono frente ao que
ensino e aos meus alunos”. Afirmarmos que, A psicanálise realiza sua investigação cientí-
provavelmente, o mais importante não seja tão fica por um método que não é diverso daquele
somente o dispositivo em si, mas a posição de pelo qual ela põe em curso um tratamento e
quem dirige o dispositivo, uma posição desejo- ambos respondem ao critério da transferência.
sa, ética, implicada e que a partir do encontro Além disso, ressaltamos que toda a pesquisa
professor/a-aluno/a e de seus efeitos pode-se em psicanálise é uma pesquisa clínica, não no
apurar e depurar os restos que se produzem sentido de utilizar o espaço do setting, mas por
como o traço que marca o estilo do sujeito. Para considerar a premissa de que as produções
tal, faz-se necessário despojar-se de um saber do inconsciente, estejam em um espaço tera-
prévio capaz de decifrar todo e qualquer sujeito pêutico ou não, são passíveis de investigação.
e apostar que a posteriori este saber será cons- A pesquisa em psicanálise tem norteadores
truído a partir do trabalho com a fala, a escrita, que são os mesmos postulados para o exercí-
a pontuação no momento exato, levando-se em cio clínico, pois se trata da construção de um
conta o não-saber, os pontos cegos e uma certa campo de experiência no qual os fundamentos
paixão pela ignorância. epistêmicos e metodológicos não são diversos
Em relação à questão 2: “Como você, profes- daqueles que sustentam a ética em questão, a
sor/a psicanalista, está implicado nessa con- ética da psicanálise: o Henrique aponta “que
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A presença da psicanálise na universidade: pesquisa e dispositivos para a formação docente
um modo heurístico de lidar com a formação, a partir da marca de castração no Outro que
mais do que hermenêutico, pode conduzir a permite ao sujeito constituir seu desejo de
novas questões ou mesmo interrogar o sujeito conhecer. “Lembremos que a castração des-
quanto ao seu papel na própria formação”. peja o sujeito da posição da certeza para, ao
Segundo Elia (2009), qualquer que seja final, devolver-lhe o enigma inicialmente for-
uma metodologia de pesquisa em psicaná- mulado” (LAJONQUIÈRE, 1997, p. 28). Ao não
lise, ela deve incluir a transferência entre encontrar uma resposta pronta e totalizante no
as condições estruturantes (e estruturais) Outro, permite-se que o sujeito se interrogue
do estudo. A psicanálise, pelo dispositivo da e produza um conhecimento enquanto resto.
transferência, subverte o sujeito da ciência, Lacan (1985), em O Seminário, livro 20, passou
reinserindo a experiência do inconsciente a definir o sintoma não mais como um enigma
na pesquisa. Desta forma, a formação não se a ser decifrado, mas como um resto, que não
constrói pelo acúmulo de cursos, de técnicas, pode ser apreensível, totalmente capturado e
de conhecimentos, mas sim pelo saber cons- simbolizado na palavra. É o real que não cessa
truído pela via da experiência. Daí, perguntas de não se inscrever. Na transmissão, entra em
do tipo: “O que eu tenho a ver com isso?” ou jogo a produção de algo que inclui o sujeito
“Qual a minha implicação nos impasses que e o outro num mesmo movimento. Embora a
ocorrem no encontro com meus/minhas alu- interrogação seja singular, ela incorpora traços
nos/as?” apostam que, no momento em que
compartilhados, significantes, que no coletivo
o/a educador/a possa narrar suas experiên-
permitem que cada um elabore sua própria
cias acerca do trabalho com seus alunos/as,
produção.
talvez ele possa igualmente se dar conta de
Isabel assim respondeu:
que não existe um conteúdo formal de algu-
ma formação que solucione os impasses que Penso que a análise pessoal é de suma impor-
tância nesse processo. Olhar para o percurso
ocorrem no encontro educador/aluno. O/a
de cada semestre em um tempo a posteriori,
educador/a precisa intervir experimentando, aprender com cada semestre e cada turma que
acreditando, mobilizando, inventando, a par- finaliza para começar cada semestre diferente.
tir da construção diária com seus alunos/as. Sustentar que a formação se faz em outros es-
O nosso desafio consiste em como fazer essa paços para além da sala de aula, mas que nesses
transmissão nos cursos de formação. encontros eles (alunos) também precisam se
implicar. Afirmar que a formação requer res-
Voltolini (2006) diz que normalmente pen-
ponsabilidade partilhada e que um/a precisa
samos que “ensinar” é um gesto intencional, e constituir o seu caminho, retirando do que
de fato é (a raiz etimológica da palavra ensinar, aprendem o que lhes diz respeito, de forma ética
en-signar, significa colocar em signos); e é por e comprometida. Algo que não se ensina, mas
isso que se torna necessário chamar de “trans- tento transmitir a partir do meu testemunho
missão” o que se passa no âmbito do que não sobre a minha relação com os conhecimentos e
a minha própria formação.
se sabe, no equívoco da palavra. No dizer desse
autor, quando escutamos, quando falamos, Rinaldi e Alberti (2009) acreditam que
jogamo-nos na aventura da palavra diante de toda pesquisa em psicanálise é clínica, mas no
um outro, produzimos atos falhos, nem sempre sentido de clínica ampliada, inclusive a metap-
dizemos o que tínhamos programado (aliás, sicologia, pois é voltada para o sujeito. Isabel,
uma aula, por exemplo, sempre se descontrola em sua resposta, busca articular o trabalho na
do planejamento e a palavra fica desbussolada universidade com seu próprio processo ana-
diante de um outro). lítico e, por suposição, as questões da sala de
A transmissão se dá não pelo conteúdo aula e da análise a atravessam, colocando-a em
passado, mas por aquilo que falta, que se dá posição de testemunho.
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A presença da psicanálise na universidade: pesquisa e dispositivos para a formação docente
Para Benjamin (1987) – mestre na relação formar alguém, esta possibilidade estaria posta
entre experiência e narrativa –, uma vivência na condição compartilhada desta formação
pode se transformar em experiência ao ser no possível (des)encontro entre aquele que
narrada e transmitida, ou seja, ao ser compar- transmite um saber-não-saber conforme sua
tilhada. Nas suas análises, o filósofo tentou própria experiência e as (im)possibilidades
demonstrar o quanto o sujeito moderno vivia dos/as discentes em colocarem-se em posição
uma experiência esvaziada de significação de escritores e leitores de si mesmos. Concor-
compartilhável. Ele destacava o valor da discus- dando com Guski (2015, p. 109), “a experiência
são em torno da articulação do par conceitual dos pesquisadores-psicanalistas nos faz perce-
experiência/vivência. Para Benjamin (1987), ber que a oferta de um espaço de fala e escuta
já na década de 1930 a experiência estava em traz a possibilidade de forjar uma abertura ao
liquidação, pois via o seu declínio como corre- inusitado, como em um convite àquilo que do
lato da intensificação da vivência. Esse autor silêncio pode se transformar em algo novo para
conceitualizou, então, a Erfahrung como o co- o sujeito-professor”.
nhecimento obtido através de uma experiência
que se acumula, que se prolonga e se desdobra,
tal qual uma viagem. Esse seria o caso de um
Considerações finais
sujeito integrado numa comunidade que dis- “[...] sempre me interrogo, em nome do que forma-
mos esses professores?” (HENRIQUE).
põe de critérios que permitem sedimentar as
experiências no tempo. Em contraponto à Er- As relações entre psicanálise e universidade
fahrung, estaria a Erlebnis, que seria a vivência hoje buscam a marca da inserção de vários
do indivíduo privado, isolado, a impressão forte psicanalistas que querem ocupar certo espaço
que precisa ser assimilada às pressas e que social para além da clínica. Anteriormente ao
produz efeitos imediatos (BENJAMIN, 1987). atual governo de ultradireita (2019-2022),
Nesse sentido, Gurski (2015), que aproxima as que demonstra clara política de desmonte
ideias de Benjamin à psicanálise, vai dizer que a de nossos sistemas educacionais, podíamos
experiência seria como atravessar um caminho afirmar que havia, sim, certo status atribuído
durante uma viagem quando os rumos ainda ao professor universitário, incluso os psica-
não estão definidos, ou seja, a ideia do risco, da nalistas, e certa fonte de distinção e prestígio,
aventura, o advento do novo, portanto daquilo ainda que não monetário, no dizer de Birman
que pode nos transformar. (2013). Para esse autor, os cursos de mestrado
Elisa, nossa respondente, parece apostar e doutorado vêm dar conta de uma lacuna so-
que a recordação e recolocação das questões bre o ensino teórico praticado em instituições
vividas, sua repetição e possível elaboração psicanalíticas, constituindo-se a figura do/a
seriam suficientes para a produção de novas psicanalista-pesquisador/a, e a universidade
associações que ampliem as construções sub- pode se tornar objeto de disputas políticas
jetivas e que forjem um possível estilo. Essas entre tais instituições que buscam visibilidade
narrativas ganham força por estarem sendo social, marcando uma estratégia de relação de
reconhecidas e compartilhadas como uma ação poder entre elas e as universidades.
pedagógica. A pesquisa psicanalítica exercida por meio
O que depuramos dessas quatro falas que de disciplinas ministradas na graduação é pau-
respondem à questão “Como você, professor/a tada na conduta clínica, a qual permanece como
psicanalista, está implicado nessa conduta de referência nos relatos coletados, o que nos leva
formação?” recai na inexorabilidade da con- a concluir favoravelmente por sua aplicação
duta clínica. Tal conduta exige a implicação do efetiva na universidade. Cada professor-psi-
professor/a-aluno/a e, se há possibilidade de canalista aborda a prática da sua atuação de
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acordo com sua formação, trajetória intelectual zantes. Trata-se de uma formação calcada na
e profissional no campo, bem como seu estilo alteridade, no entusiasmo e na curiosidade.
próprio de ser docente, por uma ética sempre Que seja uma formação pautada na transmissão
marcada por incidências do inconsciente e de enquanto exercício do desejo que opera sobre a
sua implicação. falta, sobre o insabido. Dito de outro modo: na
A escuta apareceu em vários enunciados transmissão, trata-se de transmitir o que não
como um elemento que confere estatuto de se sabe (PEREIRA, 2016).
saber a esse fio discursivo invisível que liga A presença do inconsciente introduz entre
ou separa professor/a e aluno/a na formação educador/a e educando/a um “impossível” de
e em sua possível atuação futura como do- saber a priori sobre os efeitos desse encontro.
cente na escola. A intenção da escuta é a de Sendo assim, afirmar que educar é uma tarefa
acompanhar a circulação da palavra entre os/ impossível é partir de uma referência impor-
as que a enunciam e a construção de um saber tante: sempre haverá uma espécie de fracasso
acerca do enunciado, de modo que a própria na relação educador-educando, o que torna
escuta parece ganhar dimensão de dispositi- impossível atingir plenamente os objetivos
vo. Decorre desse reconhecimento da escuta idealmente desejáveis.
como dispositivo uma possível contribuição ao Seguimos, assim, o que o próprio Freud disse
campo das políticas de formação docente que a respeito do seu ensino: “Mas não entendam
poderiam se responsabilizar pela oferta aos este meu anúncio como se eu pretendesse dar
futuros docentes de espaços possíveis para a palestras dogmáticas e requerer sua fé con-
sua escuta laboral. dicional. Esse mal-entendido seria uma grave
A nosso ver, a experiência de psicanalistas injustiça contra minha pessoa. Não quero des-
na formação docente reitera a ineficácia de pertar convicções – quero fornecer estímulos
modelos prescritivos de formação de profes- e abalar preconceitos” (FREUD, 2014, p. 325).
sores/as que se baseiam no ensino de técnicas
e informações acerca de como o/a professor/a
deve ensinar e trabalhar com seu aluno, pois REFERÊNCIAS
reafirma a possibilidade de pausas no traba- AIRES, Sueli. Imagens do analista na universidade.
lho para a escuta qualificada de docentes em Trivium, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 30-38, jul./
situações de queixa e mal-estar, suplantando a dez. 2013.
pressa e a falta de tempo para uma elaboração ALBERTI, Sônia. O discurso universitário. Trivium,
precisa e necessária das experiências cotidia- Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 118-129, jan./jun. 2009.
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Belo Horizonte (PEREIRA et al., 2017), que, BIRMAN, Joel. Psychanalyse, politique et université.
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Margareth Diniz; Marcelo Ricardo Pereira
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A (in)corporeidade do professor em tempos de pandemia e educação à distância
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p102-116
A (IN)CORPOREIDADE DO PROFESSOR
EM TEMPOS DE PANDEMIA E EDUCAÇÃO
À DISTÂNCIA
Kelly Cristina Brandão da Silva (UNICAMP)*
http://orcid.org/0000-0002-3512-1481
RESUMO
O artigo percorre alguns elementos tradicionais e ordinários do trabalho docente
em sala de aula, no ensino presencial, para pensar os efeitos da educação
remota, proposta em tempos de pandemia pelo coronavírus (SARS-CoV-2), em
que escolas no mundo todo foram fechadas devido às medidas sanitárias de
distanciamento físico, como forma de não interromper o ano letivo. Objetiva-se
analisar, à luz da interlocução entre Educação e Psicanálise, os limites e impasses
provocados pela educação à distância emergencial, a partir da discussão de
algumas nuances referentes ao corpo, à presença e à temporalidade, os quais
dão sustentação ao trabalho docente. Alguns desdobramentos a respeito da
erotização da educação, da função da escola, da tradição e da transmissão são
apresentados e iluminam tempos tão extraordinários.
Palavras-chave: Educação à distância emergencial. Psicanálise. Corpo. Presença.
Temporalidade.
ABSTRACT
THE TEACHER’S (UN)BODINESS IN TIMES OF PANDEMIC AND
DISTANCE EDUCATION
The article addresses some traditional and ordinary elements of classroom
teaching, in face-to-face teaching, to think about the effects of remote education,
proposed in times of pandemic by the coronavirus (SARS-CoV-2), in which
schools worldwide were closed due to sanitary measures of physical distancing,
as a way of not interrupting the school year. The objective is to analyze, in the
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Kelly Cristina Brandão da Silva; Kelly Cristina Garcia de Macêdo Alcantara
light of the dialogue between Education and Psychoanalysis, the limits and
impasses caused by emergency distance education, starting from the discussion
of some nuances regarding the body, presence and temporality, which support
the teaching work. Some developments regarding the erotization of education,
the function of the school, the tradition and the transmission are presented and
illuminate times of exception.
Keywords: Emergency distance education. Psychoanalysis. Body. Presence.
Temporality.
RESUMEN
LA (IN)CORPOREIDAD DEL PROFESOR EN TIEMPOS DE PANDEMIA Y
EDUCACION A DISTANCIA
El artículo cubre algunos elementos tradicionales y ordinarios de la enseñanza en
la clase, en la enseñanza presencial, para pensar sobre los efectos de la educación
remota, propuesta en tiempos de pandemia por el coronavirus (SARS-CoV-2), en
el que las escuelas de todo el mundo han cerrado debido a medidas de salud de
distancia física, como una forma de no interrumpir el año escolar. El objetivo es
analizar, a la luz del diálogo entre Educación y Psicoanálisis, los límites y impases
causados por la educación a distancia de emergencia, a partir de la discusión
de algunos matices sobre el cuerpo, la presencia y la temporalidad, que apoyan
el trabajo docente. Algunos desarrollos relacionados con la erotización de la
educación, la función de la escuela, la tradición y la transmisión se presentan e
iluminan tiempos tan extraordinarios.
Palabras clave: Educación a distancia de emergencia. Psicoanálisis. Cuerpo.
Presencia. Temporalidad.
Introdução1
A pandemia deflagrada pelo coronavírus privação, castigo, perda, sacrifício e contrarie-
(SARS-CoV-2) impôs ao mundo globalizado dade. Até o momento, sem tratamento eficaz e
uma ruptura em nossa vida ordinária, escan- específico para a Covid-19 e sem vacina, nosso
carando a desigualdade e as condições de enfrentamento tem sido paliativo e precário.
vulnerabilidade social, causando morte, medo, No campo da Educação, essa crise sanitá-
insegurança e exigindo um trabalho de luto. ria mundial impôs o fechamento das escolas.
Esse excesso de estranheza expõe nossa fra- Segundo dados da Organização das Nações
gilidade humana e deveria nos alertar acerca Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
da necessária humildade diante da magnitude (2020), estima-se que mais de 1,5 bilhão de
dessa situação, cuja resposta exige solidarie- estudantes foram afetados, o que corresponde
dade. Medidas básicas de higiene e distancia- a 91,4% da população de estudantes do mundo,
mento físico são considerados imprescindíveis em 192 países. A utilização de plataformas de
para evitar a proliferação do vírus, apesar ensino à distância, a qual tem sido nomeada por
de despertarem sentimentos conflitantes de várias instituições escolares e redes de ensino
como “ensino remoto emergencial”, tem sido
1 Este artigo é um estudo teórico, resultado de pesquisa
cada vez mais frequente, dada a dimensão da
bibliográfica, e, por isso, não envolveu a obrigatoriedade
de submissão ao comitê de ética. pandemia. Em tempos extraordinários, atra-
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A (in)corporeidade do professor em tempos de pandemia e educação à distância
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Kelly Cristina Brandão da Silva; Kelly Cristina Garcia de Macêdo Alcantara
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A (in)corporeidade do professor em tempos de pandemia e educação à distância
erotizado e que erotiza outro”. Freud (1969b) marcas. Uma prova disso é a formação do eu, o
já indicava que a relação de uma criança com qual se constitui na base do desconhecimento,
seus cuidadores é permeada por sedução e nesta alienação ao olhar e às palavras do Ou-
excitação sexual. tro, bem como em uma colagem imaginária à
Nesse processo de libidinização e constitui- ilusão de completude que a imagem especular
ção psíquica, dois elementos merecem desta- fornece. Destaca-se ainda que essas operações
que e são imprescindíveis na discussão sobre de causação do sujeito – alienação e separação
o trabalho docente, quais sejam, o olhar e a – somente têm efeito a partir de uma alter-
voz, discutidos por Lacan (1964/1979) a par- nância entre presença e ausência do cuidador
tir dos conceitos de pulsão escópica e pulsão (KUPFER et al., 2009).
invocante. Olhar e voz, na tradição lacaniana, No tradicional trabalho docente, presencial,
são entendidos além dos órgãos sensoriais da todos esses elementos que nos constituem
visão e da audição. Em relação ao olhar, apre- psiquicamente estão imbricados. Apesar da
sentam-se múltiplas dimensões, como olhar, teorização da pedagogia contemporânea,
ser olhado, provocar o olhar e esconder-se. No como bem salienta Voltolini (2019), dese-
que concerne à voz, em que ouvido e boca estão rotizar a relação entre professores e alunos
implicados, há as dimensões do escutar, ser e também a relação com o próprio conheci-
escutado, provocar a escuta, falar e ser falado. mento, reduzido ao seu aspecto utilitarista,
Na introdução do infans na cultura, os cui- não é possível, tampouco desejável, apagar
dadores supõem um sujeito no pequeno ser, a o Eros da educação. Como sublinha esse au-
partir de uma ilusão antecipadora, a qual inau- tor, “O amor, enquanto Eros, não é, portanto,
gura algo que ainda não estava lá, mas que só um fator superficial na relação pedagógica,
pôde advir devido a uma suposição. O desejo do contingente.” (VOLTOLINI, 2019, p. 380). No
cuidador convoca o sujeito, através do toque, da valor imensurável da transmissão desejosa do
voz e do olhar, em um espaço compartilhado, professor se inscreve a questão: o Outro, o que
em uma temporalidade síncrona. quer de mim? Os conhecimentos formais vão
Na perspectiva psicanalítica lacaniana, é preenchendo o lugar dos não-saberes, mas é
no campo do Outro que o sujeito se constitui, o ato educativo que lança o enigma sobre o
efeito da ação da linguagem, a partir de um in- desejo do Outro, que carrega em si o impossí-
vestimento libidinal. É necessário alienar-se no vel de responder, assim como é impossível de
desejo e nas palavras de um Outro para poder findá-lo, como sublinha Lajonquière (2013).
ter existência simbólica:
[...] o sujeito não cria seu discurso, mas é causado
por ele, e existe apenas por causa do discurso
Educação em tempos de
e da linguagem. Só pode manifestar-se porque pandemia: urgente, mas sem
encontra na linguagem um substrato, um apoio,
uma forma que o cria e permite seu advento. O
pressa
sujeito precisa da palavra para existir e para Antes de discutir alguns limites e impasses
dizer-se. (KUPFER, 2010, p. 269).
do chamado ensino remoto emergencial, cabe
Inicialmente, a linguagem vai habitá-lo, salientar, a partir das argumentações de Fran-
marcá-lo e só depois o bebê terá a ilusão de ça Filho, Antunes e Couto (2020, p. 28), que
dominá-la, de tê-la “adquirido”. Ao se dar con- é “incabível tentar estabelecer uma distinção
ta de que o Outro não é tão absoluto, que algo real em termos teóricos, entre a EaD e o ensino
lhe falta, o pequeno ser começará a se indagar remoto, pois o segundo é simplesmente uma
sobre o desejo. Entretanto, apesar da necessá- versão do primeiro realizada de forma bruta
ria separação, a alienação é estrutural e deixa sem o romantismo do primeiro”. De acordo com
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Kelly Cristina Brandão da Silva; Kelly Cristina Garcia de Macêdo Alcantara
esses autores, há uma tentativa, a qual não se A fim de compreender os efeitos da repen-
sustenta, de diferenciar a educação à distân- tina interrupção das aulas presenciais nas
cia (EaD) do atual ensino remoto, afinal, este escolas e a consequente oferta de aulas em
se apresenta como uma prática improvisada, plataformas virtuais, é interessante apresentar
sem planejamento prévio, com o objetivo de algumas proposições do arquiteto e filósofo
atender às demandas imediatas de educação, francês Paul Virilio (1993), elaboradas muito
em razão do fechamento das escolas causado antes da pandemia, acerca das transformações
pela pandemia. na percepção de tempo dessa nossa era telein-
Os setores críticos à associação entre a formatizada. Esse autor discute que no ciberes-
atual prática emergencial e a EaD argumentam paço há um apagamento da separação entre o
que esta última obedece a uma organização próximo e o distante, além de superexposição,
curricular prévia, com a elaboração de mate- sem ocultação entre público e privado.
riais didáticos adequados, capaz de atender Nas palavras de Virilio (1993, p. 10-11), no
às necessidades educacionais do estudante à ciberespaço “privado de limites objetivos, o
distância. França Filho, Antunes e Couto (2020) elemento arquitetônico passa a estar à deriva,
salientam, de forma contundente, que essa a flutuar em um éter eletrônico desprovido de
oposição é falsa, mistificadora e apresenta-se dimensões espaciais, mas inscrito na tempo-
como uma tática de defesa dos favoráveis à ralidade única de uma difusão instantânea”. O
EaD. É necessária muita atenção, pois é muito tempo, nesta perspectiva, é um presente per-
provável, no horizonte pós-pandemia, que, manente, “ao tempo que passa da cronologia e
“aproveitando-se desta crise, capital e Estado da história sucede portanto um tempo que se
apresentarão como tábua de salvação nas ruí- expõe instantaneamente” (VIRILIO, 1993, p. 10,
nas do retorno à normalidade o seguinte recei- grifo do autor).
tuário: o EaD, o homeschooling e, sobretudo, Cabe aqui sublinhar a mudança, aponta-
o acesso à educação via vouchers” (FRANÇA da pelo autor, entre o tempo que passa e o
FILHO; ANTUNES; COUTO, 2020, p. 29). tempo que se expõe. Essa transformação não
Ciente desse alerta e das possíveis impli- é sem consequências no campo educativo,
cações nas políticas públicas, este trabalho principalmente para crianças pequenas, ain-
privilegia a expressão “educação à distância da em processo de constituição psíquica. Na
emergencial”, tanto para marcar as semelhan- infância, o tempo que passa é imprescindível
ças entre a atual atividade remota docente para a própria construção da noção de tempo.
com a EaD, quanto para sublinhar o caráter de Um “presente permanente”, o qual se expõe
urgência instaurado pela pandemia. Conforme instantaneamente, dificulta a instauração das
já indica o título dessa seção, urgente, mas sem operações psíquicas constituintes do sujeito.
pressa, visto que a Educação, como bem pú- É importante destacar que esse fenômeno
blico, é um direito humano fundamental e um das intoxicações eletrônicas na infância (BAP-
dever do Estado. Não obstante, o ineditismo TISTA; JERUSALINSKY, 2017) não é recente,
deflagrado pela pandemia exige desacelera- mas se exacerba na atualidade da pandemia e
ção, cautela e acordos coletivos, a fim de não ganha ainda mais impulso na modalidade de
exacerbar as profundas desigualdades que já educação à distância. Normalmente, a escola, o
aconteciam no campo educacional; provocar lugar tradicional da educação básica, servia de
discriminação e exclusão da parcela mais anteparo ao ciberespaço. Atualmente, a escola,
vulnerável da sociedade e, no caso específico justamente o lugar dos encontros presenciais,
da discussão deste trabalho, negligenciar as que se interpõe, de acordo com Arendt (2005,
diferenças estruturais e subjetivas entre a ati- p. 45), entre a “vida resguardada do lar” e a
vidade docente presencial e à distância. “impiedosa vulnerabilidade da vida na polis”,
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A (in)corporeidade do professor em tempos de pandemia e educação à distância
entre o privado e o público, cede espaço para císica da imagem corporal, tanto no processo
a tela, no ambiente doméstico. de constituição psíquica quanto como resto
Em tempos de aulas virtuais, uma pergunta infantil nos adultos:
parece sintetizar a difícil apreensão humana Para o homem, seu corpo, a partir de um mo-
dessa novidade: Afinal, onde nos encontra- mento inaugural e daí para sempre, restaria
mos, quando nos encontramos na tela? Qual comprometido com a imagem unificada dele,
seria esse espaço não simultâneo, tão inédito capturada no espelhamento que o outro que se
no campo educacional, principalmente em se ocupa do infans lhe possibilita quando simples-
mente olha para ele como um sujeito. Fascinado
tratando de educação básica? Esse novo terri- com a própria imagem retornada deste espelho
tório não se configura exatamente como um o humano não poderá jamais, ao longo de toda
lugar – no sentido antropológico – mas uma sua vida, deixar de apaixonar-se por ela, a ponto
flutuação, sem limites objetivos, como bem ca- de que em todas as suas futuras relações estará,
racteriza Virilio (1993). Trata-se de habitar um feito Narciso, ‘condenado’ a vê-la aparecer como
espaço, mediatizado pela tela, em que o distan- uma sombra que media a relação com o outro.
ciamento e o achatamento dos corpos impõem Outra alteração que se destaca, com o uso
novas configurações e invenções. Corpos que das plataformas virtuais, em aulas síncronas,
permanecem sentados e recortados, visto que é o inusitado fenômeno de ver a si mesmo,
somente os rostos aparecem. através da tela. Nos encontros presenciais,
Para o professor, tão acostumado a estar não vemos nossos rostos, a não ser pelo olhar
na cena escolar, na sala de aula, em posição do outro. Quais os efeitos dessa permanência
privilegiada e central, como um ator no palco, constante da nossa imagem? Tal como Nar-
a educação à distância emergencial exige uma ciso, nosso destino seria sucumbir?! Ainda
modificação profunda, imaginária. Se antes, a respeito da pulsão escópica, é necessário
seu olhar e voz convocavam os alunos, os quais sublinhar outro fator bem perturbador para
também respondiam – de forma interessada ou os docentes, qual seja, a presença de outras
não – através de olhares e vozes, em tempos pessoas no ambiente virtual. Pais de alunos,
de pandemia o professor se encontra, muitas familiares, coordenadores e tantos outros que
vezes, sem recursos para saber quais seriam os podem acompanhar as aulas, sem serem vis-
indícios virtuais de engajamento, cansaço ou tos, frequentemente assumindo uma postura
indiferença dos alunos. Isso se verifica tanto em de controle e vigilância. Quem me olha? Como
aulas síncronas quanto em aulas assíncronas. me olha? Quando me olha? Olhares múltiplos,
Nas primeiras, a qualidade da conexão impõe perturbadores e, por vezes, persecutórios.
aos alunos fechamento de câmeras e microfo- Além disso, o contato visual, garantia mínima
nes. Assim, o professor tem diante de si uma de estabelecimento de vínculo, não é possível
tela sem rostos. Os corpos, já tão apagados através das plataformas virtuais. Para que os
nessa modalidade à distância, desaparecem. olhares se encontrem, no ciberespaço, os olhos
Inclusive o silêncio dos alunos adquire um novo têm que se direcionar para a câmera. Difícil
significado. Desinteresse ou falha da conexão sustentar tal laço, tão inusitado.
da internet? Por isso mesmo é tão comum, em Esses excessos pulsionais relacionados ao
aulas síncronas, as frequentes perguntas dos exercício da docência no mundo virtual exigem
professores: Vocês estão me ouvindo? Vocês do professor, em tempos de pandemia, uma
estão me vendo? Interrogações que mal escon- necessária ampliação da jornada de trabalho a
dem o desejo de garantir a própria existência. fim de dar conta da súbita novidade. Ademais,
Voltolini (2007a, p. 125), ao analisar as rela- a urgência imposta pelo lema “a educação não
ções entre corpo, imagem, presença e distância pode parar”, em muitas instituições e redes
na modalidade EaD, enfatiza a importância nar- de ensino, obrigaram à rápida compreensão
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Kelly Cristina Brandão da Silva; Kelly Cristina Garcia de Macêdo Alcantara
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A (in)corporeidade do professor em tempos de pandemia e educação à distância
riência constitutiva para o sujeito. Figueiredo Tal substituição tem se verificado, frequen-
(2009, p. 130), a partir de um estudo sobre temente, em escolas públicas. As atividades en-
o cuidado, afirma que “a condução de um viadas para que o aluno faça em casa, ajudado
processo de psicanálise requer do analista a por seus familiares ou cuidadores, retornam no
capacidade de manter-se, simultaneamente, papel, opaco, o qual não diz e não ouve sobre
como presença implicada presença reservada”. as particularidades do encontro entre alunos,
O autor critica tanto as posições de neutralida- professores e o conhecimento. Acreditar que a
de, indiferença e silêncio, quanto a excessiva presença do professor não importa é reduzi-lo
implicação, que pode se tornar exercício de ao papel de mero portador de informações.
domínio. A presença do analista, para o autor, Freud (1976a), em seu texto de 1914, Algumas
situa-se em um lugar intermediário entre reflexões sobre a Psicologia Escolar, refere a im-
presença e ausência, de modo que lhe permita portância do professor para os efeitos da trans-
fazer as funções de acolhimento, sustentação missão do conteúdo escolar: “é difícil dizer se
e reconhecimento. o que exerceu mais influência sobre nós e teve
A partir dessa perspectiva psicanalítica e re- importância maior foi a nossa preocupação
fletindo acerca da importância dessa discussão pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela
no campo do EaD, Silva (2010, p. 65, grifo do personalidade de nossos mestres” (FREUD,
autor) sublinha que 1976a, p. 286).
[...] a noção de presença pode ser pensada no Em tempos de abismo entre a educação
plural, como presenças, o que nos indica que pública e a educação privada, os efeitos da pan-
não há um único modus de presença nem uma demia, os quais transformaram em remoto, à
presença ideal. As presenças podem variar em distância, o trabalho do professor, escancaram
diferentes possibilidades, conforme as neces- nossas velhas desigualdades e provocam novas
sidades e contingências da vida que, como tal,
situações de discriminação e exclusão.
incidem sobre a transferência.
Muito antes da pandemia, essa autora já
alertava, que “o índice de evasão em cursos via Do ideal ao emergencial: afinal,
EaD costuma ser alto, o que nos faz pensar que qual é o sentido da Educação?
o trabalho com o estabelecimento e a sustenta-
ção da transferência é um aspecto importante Silva (2016) aponta o quanto o discurso
nesse contexto” (SILVA, 2010, p. 62). pedagógico hegemônico se fundamenta em
Ao tratar da educação à distância emergen- um ideal de simetria, largamente difundido,
cial, em tempos de pandemia, também não se entre ensino/aprendizagem e professor/alu-
pode desconsiderar esse elemento estrutural. no. Nessa perspectiva, quaisquer percalços na
As plataformas online compradas pelas escolas empreitada educativa são entendidos como um
particulares possibilitam, apesar de inúmeras problema de gestão, facilmente equacionados
dificuldades, o “estar junto virtual”, tal como com novas metas, planejamento e avaliação
propõe Valente (2009), por meio da imagem dos resultados. Em um campo marcadamente
e da voz em sincronicidade temporal. Esses idealizado, como a Educação, o que se desvela,
encontros, ainda que virtuais, podem facilitar muitas vezes à revelia, é justamente o oposto,
a emergência ou a sustentação da transferên- ou seja, o fracasso.
cia. Todavia, a substituição total das atividades Voltolini (2001) sublinha a idealização
escolares presenciais por aulas assíncronas pedagógica, a partir da exigência de alta per-
ou atividades escritas negligencia o papel formance, a qual mal esconde suas ambições
fundamental da transferência nos encontros capitalistas, tanto do desempenho do professor
humanos. quanto do aluno, que também deveria desen-
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Kelly Cristina Brandão da Silva; Kelly Cristina Garcia de Macêdo Alcantara
É pelo fato de não sermos apenas seres naturais, sugerem independência dessas ordens; formas
mas também mundanos – constituídos de toda de ser em que o indivíduo não é simplesmente
a artificialidade daquilo que criamos, das he- um espécime de uma ordem mais abrangente”
ranças culturais que recebemos do passado, da
relação com os objetos e espaços que nos cercam
(BIESTA, 2012, p. 818-819).
e entre nós – que a educação e a política existem. Os filósofos Masschelein e Simons (2014)
lembram que o significante escola, a partir da
A partir dessa perspectiva, é possível argu- sua origem etimológica, scholé, significa tempo
mentar que devemos sim educar em tempos livre, ainda não determinado por demandas
extraordinários de pandemia. Todavia, o que externas. Esses autores criticam a crescente
é necessário reivindicar é o acesso aos bens transformação da escola em um lugar para
culturais públicos, ou seja, “conhecimentos, trabalho e produção e argumentam que ela de-
linguagens, expressões artísticas, práticas so- veria ser protegida das demandas da sociedade
ciais e morais, enfim, o direito a um legado de para que fosse possível praticar e tentar coisas,
realizações históricas às quais conferimos valor sem o compromisso com a eficácia. Biesta e
e das quais esperamos que as novas gerações Picoli (2018, p. 22) apontam “uma tensão em
se apoderem” (CARVALHO, 2004, p. 333). seu [da escola] próprio tecido: uma tensão
Biesta (2012) destaca que a questão da fina- entre a necessidade de atender às demandas
lidade deve sempre ter um lugar na discussão da sociedade e a necessidade de preservar-se
educacional. Ele critica o que tem nomeado destas”. Estes autores advertem que “a voz de
como “learnification” da educação, ou seja, a um dos mestres – sociedade – se tornou muito
ascensão e transformação de um vocabulário mais alta e muito mais dominante que a outra,
educacional em linguagem de aprendizagem. a voz que diz que a escola também tem algo
Segundo esse autor, aprendizagem é basica- para fazer que não é automática ou necessaria-
mente um conceito individualista, visto que mente útil para a sociedade” (BIESTA; PICOLI,
se refere ao que as pessoas, como indivíduos, 2018, p. 22).
fazem. “Contrapõe-se assim, nitidamente, ao Em tempos de pandemia, qual função da
conceito de “educação”, que sempre implica educação, a partir das reflexões de Biesta
relação: alguém educando outra pessoa e a (2015), deveria ser priorizada? Além das ade-
pessoa que educa tendo uma determinada quações metodológicas obrigatórias, devido à
noção de qual a finalidade de suas atividades” passagem do presencial ao remoto, não deve-
(BIESTA, 2012, p. 817). ríamos debater acerca dos fins da educação?
A educação, na perspectiva de Biesta (2012), Estaríamos, novamente, privilegiando a técni-
geralmente desempenha três funções diferen- ca em vez das indagações éticas em torno da
tes, mas relacionadas, quais sejam: qualifica- Educação? Tempos extraordinários, os quais
ção, socialização e subjetivação. Conhecimento, rompem com o acelerado cotidiano, não seriam
habilidades, disposições e formas de julgamen- propícios à discussão coletiva no que concerne
to que permitem às crianças, jovens e adultos ao sentido da Educação? E a escola, fechada em
“fazer alguma coisa” têm relação com a função tempos de distanciamento físico, continuará,
da qualificação. A socialização se caracteriza pós-pandemia, a servir à sociedade? Não é
pelas variadas formas pelas quais nos torna- tempo de discutirmos essas questões?
mos membros e parte de ordens sociais, cultu-
rais e políticas, por meio da educação. A função
de subjetivação é entendida como oposta à
Algumas (in)conclusões
função de socialização, visto que “Não se trata Na tradição psicanalítica, o conceito de
precisamente da inserção de ‘recém-chegados’ a posteriori, après-coup, indica que o valor
às ordens existentes, mas das formas de ser que traumático de uma experiência não pode ser
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A (in)corporeidade do professor em tempos de pandemia e educação à distância
pensado em relação ao fato ocorrido, mas à sentidos e movimentos no seu percurso pelo
lembrança elaborada ulteriormente. Ainda desejo de saber.
estamos no instante de ver a pandemia. É cedo As três fontes de mal-estar, propostas por
para analisarmos as significações que serão Freud (1976b), foram reatualizadas a partir da
construídas a respeito desse fenômeno global. pandemia. A finitude do nosso corpo, as forças
Este trabalho se insere na perspectiva do da natureza e nossas relações com os outros
tempo de compreender, com todas as limitações estão em pauta, absolutamente imbricadas.
de uma análise realizada no calor dos aconteci- No que tange à Educação, é imprescindível
mentos. Contudo, a magnitude da experiência considerá-la como um bem público, em que “A
coletiva exige, desde já, um trabalho de elabo- cria humana aprende fundamentalmente para
ração. Obedecendo aos preceitos psicanalíticos, participar de um mundo no qual ele ‘é desejado
não se trata de um trabalho prescritivo, em que e deseja’ participar, e pela mesma razão ela
professores, colocados em posição deficitária, às vezes não aprende o que se pretende que
encontrariam um manual de como agir e o ela aprenda. De qualquer modo não é para a
que fazer, em tempos de pandemia. Trata-se, sobrevivência que se aprende, mas ‘por amor’”
sim, de um convite à interrogação e à escansão (VOLTOLINI, 2007a, p. 137, grifo do autor).
da temática acerca da educação à distância Mesmo em tempos tão disruptivos, é importan-
emergencial. te lembrar que aprendemos por amor!
Sem adotar um tom apocalíptico ou catas- Sem o momento de concluir, o qual seria
trófico, optou-se por delimitar alguns elemen- apressado nas atuais circunstâncias, cabe
tos estruturais concernentes ao tradicional lembrar que será necessária uma transição,
trabalho docente presencial e discuti-los à nomeada como ensino híbrido, em que haverá
luz das contingências que têm se apresentado a educação presencial e a educação à distância,
durante a experiência de distanciamento físico de forma concomitante. Ainda há um longo
e aulas remotas. Psic-análise se opõe à sínte- percurso e muitas interrogações.
se e, exatamente por isso, novas indagações
foram surgindo, à medida que a temática foi Referências
interrogada. Erotização da educação, função
da escola, tradição e transmissão foram os des- ARENDT, H. A condição humana. Tradução:
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Mauro W. Barbosa. 6. ed. São Paulo: Perspectiva,
O momento atual coloca à mostra um im-
2009.
possível do ato educativo que se inscreve muito
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por mais promissor e resolutivo que possa São Paulo. Anais [...]. São Paulo: Feusp/Geepc,
ser nesse momento, representa apenas um 2013. p. 80-94.
dos elementos oferecidos pela escola, que é BIESTA, J. G. G. Boa educação na era da mensuração.
o conteúdo. Sabe-se, portanto, que a escola é Cadernos de Pesquisa, v. 42, n. 147, p. 808-825,
muito mais que o conteúdo e a escolarização set./dez. 2012.
formal: é no encontro com o outro e nos afe- BIESTA, G. J. J. Beautiful risk of education. London:
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Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 102-116, out./dez. 2020 115
A (in)corporeidade do professor em tempos de pandemia e educação à distância
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
116 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 102-116, out./dez. 2020
Jean Chami
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p117-126
RESUME
Cet article tente d’évaluer l’impact des méthodes inspirées par la psychanalyse
dans la formation des enseignants et des professionnels de l’éducation. Il
aborde la question de la subjectivité et de la nature des « sujets » de la pratique
professionnelle, le concret de la professionnalisation et de « l’identité »
professionnelle. Il observe le passage de l’acteur au sujet dans sa capacité à
transformer des conduites irrationnelles et inconscientes (bien que programmées
sur des modes opératoires) en une action plus rationnelle. Il fait ressortir une
spécificité de l’approche psychanalytique dans son processus de problématisation
qui influe d’une manière unique sur sa manière de poser inséparablement des
problèmes de pensée, d’action et d’existence. Dans ces conditions, l’approche
du sujet est inséparable de la nature de l’objet (épistémologie), elle induit une
réflexion sur l’agir et sur sa capacité à transformer le sujet dans et par l’action.
Enfin, cette approche repose sur la conception anthropologique freudienne des
pulsions, de leurs destins, et sur la capacité de l’homme à les maîtriser pour ne
point périr. L’article pointe les menaces qui pèsent sur cette approche lucide,
audacieuse et néanmoins prudentielle.
Mots-clès: Education. Psychanalyse. Analyse. Pratique.
ABSTRACT
THE TRAINING OF TEACHERS INSPIRED BY PSYCHOANALYSIS
This article attempts to assess the impact of specific methods, inspired by
psychoanalysisin the training of teachers and education professionals. It deals
with the issues of subjectivity and the nature of the “subjects” of professional
practice, the professionalization ans also the professional “identity”. It analyzes
the transition from actor to subject in its capacity to transform irrational and
unconscious (albeit operationally programmed) behaviour into more rational
action. The article highlights a specificity of the psychoanalytical approach.
Indeed, the problematization process influences uniquely the way the problems
of thought, action and existence are questioned. Under these conditions, the
approach to the subject is therefore inseparable from the nature of the object
1 Cet article reprend et développe une intervention au IV° colloque international de Psychanalyse et Education. Université
d’Etat de Bahia, Salvador, 29-30 août 2019.
∗
Psychologue, psychosociologue et formateur. Depuis trente ans, il met en œuvre l’analyse des pratiques professionnelles sur
de nombreux terrains, notamment en sciences de l’éducation à l’Université Paris-Ouest-Nanterre-La-Défense et Sciences-Po
Paris (professionnalisation des doctorants). E-mail: jeanchami93@gmail.com
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 117-126, out./dez. 2020 117
La formation des enseignants a la lumiere de la psychanalyse
RESUMEN
LA FORMACIÓN DE LOS ENSEIGANANTS A LA LUZ DEL
PSICOANÁLISIS
Este artículo intenta evaluar el impacto de métodos específicos, inspirados en el
psicoanálisis, en la formación de docentes y profesionales de la educación. Trata
los temas de subjetividad y la naturaleza de los “sujetos” del ejercicio profesional,
la profesionalización y también la “identidad” profesional. Analiza la transición de
actor a sujeto en su capacidad de transformar la conducta irracional e inconsciente
(aunque operativamente programada) en una acción más racional. El artículo
destaca una especificidad del enfoque psicoanalítico. De hecho, el proceso de
problematización influye de manera única en la forma en que se cuestionan
los problemas del pensamiento, la acción y la existencia. En estas condiciones,
el acercamiento al sujeto es, por tanto, inseparable de la naturaleza del objeto
(epistemología); conduce a una reflexión sobre la acción y sobre su capacidad de
transformar al sujeto en y a través de la acción. Finalmente, este enfoque se basa
en la concepción antropológica freudiana de los impulsos, de su destino y de la
capacidad del ser humano de dominarlos para sobrevivir. El artículo señala las
amenazas a este enfoque lúcido, atrevido y sin embargo cauteloso.
Palabras claves: Education. Psicoanális. Análisis. Práctica.
RESUMO
A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES A LUZ DA PSICANÁLISE
Esse artigo tenta avaliar o impacto dos métodos inspirados na psicanálise
na formação dos professores e profissionais da educação. O artigo aborda a
questão da subjetividade e da natureza dos “sujeitos” da prática profissional, o
lado concreto da profissionalização e da “identidade” profissional. Ele observa
a passagem de autor a sujeito na sua capacidade de transformar as condutas
irracionais e inconscientes (ainda que programadas sob modos operatórios) em
uma ação mais racional. Ele coloca em evidência uma especificidade da abordagem
psicanalítica no seu processo de problematização que influi de maneira única sob
a maneira de colocar inseparavelmente os problemas do pensamento, da ação e
da existência. Nessas condições, a abordagem do sujeito é inseparável da natureza
do objeto (epistemologia), ela induz uma reflexão sobre o agir e sua capacidade
de transformar o sujeito dentro e pela ação. Enfim, essa abordagem se ancora na
concepção antropológica freudiana das pulsões, de seus destinos, e a capacidade
do homem de os controlar para não perecer. O artigo assinala as ameaças que
pesam sobre essa abordagem lúcida, audaciosa, embora prudente.
Palavras-chave: Educação. Psicanálise. Análise. Prática.
118 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 117-126, out./dez. 2020
Jean Chami
Nous voulons évoquer un certain impact résitance, le rôle des identifications, des idéaux,
des démarches inspirées de la psychanalyse de la sublimation, ont été de puissants outils
concernant la formation des enseignants en pour comprendre et élucider les détours de la
France depuis 1971, c’est-à-dire depuis les relation pédagogique.
grandes lois mettant en place les dispositifs Pour réussir à sortir du cabinet de consul-
de formation continue dans tous les secteurs tation et du cadre de la cure-type en s’adres-
d’activité et notamment dans l’éducation na- sant à des institutions pour leur proposer des
tionale. Depuis cinquante ans, la formation dispositifs d’analyse et de formation, les psy-
des enseignants a subi de profonds boulever- chanalystes ont dû se plier à de nombreuses
sements dans la mesure où elle a été vivement transformations: modifications des cadres de
interrogée dans ses finalités, ses objectifs et l’analyse, complexité des niveaux d’interven-
ses méthodes traditionnelles. Les mutations tion, pertinence des interprétations, identifi-
opérées par la formation continue des adultes cation des demandes et des commanditaires,
a particulièrement changé les habitudes des finalité des actions engagées.
enseignants. L’importance de la psychanalyse L’impact de la psychanalyse dans le champ
dans l’approche des pratiques de formation a de la pédagogie et de la formation des ensei-
été très forte durant cette période et a permis gnants pourrait s’éclairer par trois axes de
de poser un certain nombre de problèmes sur réflexion:
les conditions de possibilité d’une formation • Le statut de la subjectivité dans son rap-
des enseignants inspirée par la psychanalyse. port avec la réalité « objective » toujours
De très nombreuses méthodes ont été utilisées : recherchée dans une démarche scienti-
observations, études de cas, jeux de rôle, psy- fique, et les difficultés de la référence à
chodrame, supervision, analyse de pratiques, l’approche « clinique » dans des milieux
démarche de projet, étude et résolution de ou dans des contextes institutionnels
problème. Le champ de la formation des ensei- fort éloignés d’une finalité soignante ou
gnants a été traversé par des démarches empi- ou d’une intention diagnostique. Dans sa
riques cherchant à expérimenter des méthodes conquête hors les murs (du cabinet), le
visant à former et à adapter les enseignants à psychanalyste s’est affronté à la réalité
leur futur métier. Les nombreuses expériences sociale concrète et aux institutions; la
que nous avons pu faire permettent aujourd’hui « subjectivité » s’est élargie à des sujets
de prendre un certain recul et de dégager des collectifs, à des groupes, des équipes,
problématiques théoriques, à la lumière égale- aux réalités de sujets immergés dans
ment des nombreuses recherches inspirées de des groupes où ceux-ci vivent et se
la psychanalyse qui ont été faites en sciences construisent. L’expérience de la forma-
de l’éducation. tion a obligé les psychanalystes à recon-
Sans doute, dans cet investissement du naître l’existence de sujets sociaux, non
champ de l’éducation et de l’enseignement, réductibles à leur dimension imaginaire
la psychanalyse disposait-elle d’un certain ou fantasmatique, et obéissant à des
nombre d’atouts spécifiques, parfois complé- systèmes de contraintes devant être
mentaires, par rapport à ses concurents comme affrontés de manière spécifique. Enfin,
le béhaviorisme, le cognitivisme, le construc- la dimension professionnelle, constitu-
tivisme, l’approche systémique, l’approche tive de l’identité, paraît incontournable
communicationnelle (PaloAlto): l’importance dans l’approche subjective et dessine les
déterminante des processus inconscients limites d’un cadre à l’intérieur duquel
dans la relation maître-élève, le repérage du doit se situer les investigations et les
transfert (et du contre-transfert), la force de la interventions de l’analyste.
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 117-126, out./dez. 2020 119
La formation des enseignants a la lumiere de la psychanalyse
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Jean Chami
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La formation des enseignants a la lumiere de la psychanalyse
paralyse la subjectivité. Dans le champ ne peut accepter, dans une approche véritable-
de l’enseignement et de la formation, ment psychanalytique, l’évacuation du sujet
la production de savoir mobilise et concret personnel au profit d’un sujet abstrait
construit un imaginaire collectif (KAËS allant souvent de pair avec la récupération
et al., 1976). Á l’interface de la subjec- d’une posture (imposture?) de maître assuje-
tivité des membres du groupe et de la tissant ses élèves ou disciples. L’intérioristation
réalité instituée se dessine un champ de ces postures de soumission par les prati-
de représentations sociales qui donnent ciens eux-mêmes, leur difficulté à parler et à
une nouvelle dimension à la subjectivité. écrire leurs expériences à leur place de sujets
La fécondité des approches psychanaly- indique la tâche à accomplir pour ceux qui
tiques dans le champ éducatif (et péda- sont en place d’enseigner : aider les praticiens
gogique) s’observe dans le foisonnement à faire parler les sujets impliqués dans les ex-
des productions imaginaires et dans la périences, à les faire advenir comme sujets de
construction (et déconstruction) des leurs paroles et de leur écriture, sans forcément
identités professionnelles. vouloir en produire un texte scientifique.
• La conception freudienne du « sujet »
place la psychanalyse dans un rapport
particulier à la scientificité. C’est jus-
Former des professionnels à
tement son approche particulière de devenir sujets.
la sujectivité qui interroge la place de
Avant d’être un mode de pensée, la pratique
la psychanalyse parmi les disciplines
analytique est avant tout une activité, définie
scientifiques et son introduction dans les
par une visée de transformation et non pas
pratiques pédagogiques. La psychana-
d’abord par une visée de savoir (pulsion épisté-
lyse « n’est pas une simple théorie de son
mophylique), qui elle, est seconde. Pour savoir
objet, mais essentiellement et d’abord
si une activité analytique est possible en milieu
activité qui le fait parler en personne »
pédagogique il ne suffit pas d’évaluer le désir
(CASTORIADIS, 1968, p. 55.) De ce fait,
de savoir (relativement universel) des parti-
l’objet c’est toujours le sens qui est visé
par un sujet. La discipline psychanaly- cipants, mais d’évaluer si une transformation
tique consiste à essentielle des sujets est possible. Cette activité
ne procède pas du désir de savoir de l’analyste,
traiter les sujets comme des sujets, même et
ni en l’application d’un savoir. Il s’agit d’une
surtout là où ils n’apparaissent pas comme tels,
à leur imputer leurs paroles et leurs symptômes, activité où le désir se mue en projet impliquant
à interroger sérieusement le contenu de leurs plusieurs sujets en présence. Ce projet se fonde
paroles et de leur faire au lieu de le dissoudre sur un ensemble de données de fait. Loin d’être
dans l’universel abstrait de l’anormal. (CASTO- d’emblée sujets de leur actes et de leur pensée,
RIADIS, 1968, p. 56) les futurs professionnels sont d’abord des
Cela signifie que l’approche psychanalytique agents invités à remplir des fonctions dans un
en éducation fait reposer le travail essentielle- ensemble institué et réglementé par des tâches
ment sur une pratique, inverse radicalement le prescrites. Ces agents, essentiellement mûs par
rapport traditionnel hiérarchique entre théorie la structure, peuvent devenir acteurs, à condi-
et pratique. tion d’être promus et reconnus comme sujets.
Cette approche remet systématiquement Les sciences sociales ont mis en évidence
en cause la division du travail entre ensei- ce processus : ce sont les situations de crise
gnants-chercheurs et praticiens. La mise à qui contribuent à faire évoluer le concept de
distance qu’implique la recherche académique sujet, à le dégager de la notion d’individu et à le
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Jean Chami
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 117-126, out./dez. 2020 123
La formation des enseignants a la lumiere de la psychanalyse
il est très important de rechercher les buts et imaginaires. Dans un monde pédagogique
(contraintes, prescriptions, objectifs extérieurs) surinvesti par les problèmes de savoir et de
et d’explorer les buts internes, ce qui nécessite connaissance, il s’agit de favoriser l’émer-
une réflexion sur les activités. On peut dire qu’il gence lente et contradictoire d’une capacité
y a problème quand il y a distance à certains de l’homme à la vérité. Il s’agit de lui permettre
buts (PALMADE, 2008). Par ailleurs, les buts de « s’assumer aussi comme sujet social et his-
ont toujours une certaine transitivité : ils dé- torique, dans un projet de transformation qui
bouchent sur d’autres buts. Si une action peut ici encore pourrait se formuler : où Personne
être entreprise dans l’espoir d’obtenir certains n’était, Nous devons devenir » (CASTORIADIS,
effets, il n’y a pas de causalité linéaire entre une 1968 p. 87).
action et son résultat. L’évolution des méthodes
de résolution de problèmes montrent un pro- Une anthropologie freudienne
cessus intéressant. Utilisées au départ pour
optimiser des process de production, elles se du sujet
sont ouvertes à « des recherches-actions et ce Le devenir processuel du sujet en éducation
en pensant un rapport de la science à l’action et en formation ne peut se saisir qu’à l’inté-
qui ne considère plus les acteurs comme des rieur d’une compréhension anthropologique,
objets d’investigation, mais comme des sujets, c’est-à-dire d’une vision de l’homme et de sa
sujets de leur action autant que de la construc- déstinée, que Freud a esquissée. L’éducation
tion de leur connaissance » (MICHELOT, 2016, montre l’exigence du détournement de but des
p. 206). pulsions vers des buts compatibles avec la vie
L’approche psychanalytique en milieu éduc- sociale, la culture et la civilisation. L’exigence
tatif n’explore pas seulement un espace où les de régulation sociale des pulsions suscite les
actes sont surtout agis et subis inconsciem- capacités de renoncement, de sublimation
ment par des acteurs constatant l’irrationnalité vers des buts plus élevés. Il s’agit à la fois d’une
de leurs actions, mais elle ouvre à une action exigence et d’une espérance face à la dureté
capable de rationnalité. Si l’objet se prête mal de la vie: - faiblesse naturelle de l’homme face
à la division, c’est peut-être que le sujet, divisé aux forces écrasantes de la nature (la maladie,
au départ (conscient/inconscient, sujet/autre) la mort), – l’homme fait souffrir l’homme, l’ex-
est capable de se tenir au corps à corps avec ploite comme travailleur et l’asservit comme
son objet sans le morceler. « Pour que là où le partenaire sexuel : homo homini lupus, (FREUD,
ça existe le sujet advienne, il faut la présence 1929, p. 65). – enfin, faiblesse de son moi dé-
d’un tiers écoutant et que cet autre ait une pendant de ses trois maîtres que sont le ça, le
discipline. Une méthode ? Ce n’est pas si sûr » surmoi, la réalité.
(OLLIVIER, 1995, p. 265). Ce que la psycha- Freud assigne à la culture une tâche histo-
nalyse peut apporter au champ pédagogique rique qu’on peut décliner en trois buts complé-
aujourd’hui, ce sont moins des méthodes, des mentaires : ce que la culture promet à l’homme,
théories, que des chercheurs-consultants, des c’est d’abord le soulagement de son fardeau
personnes travaillées par la psychanalyse et les instinctuel, la réconciliation avec son sort le
sciences humaines, pouvant intervenir dans plus inéluctable (déréliction, maladie, mort), et
ce champ et ouvrir un espace d’écoute par des enfin l’espérance d’une récompense pour tous
dispositifs souples. ces sacrifices. L’enseignement et l’éducation
L’écoute, condition de l’expérience transfor- sont bien au centre de cette tâche historique de
mante, doit s’élargir aux données spécifiques la culture et de leur capacité à la mener à bien.
de l’école : son travail, son mode de production La tâche du sujet (moi) devant advenir
et de reproduction, ses significations sociales face à la réalité se heurte à la résistance du
124 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 117-126, out./dez. 2020
Jean Chami
narcissisme qui est une inaptitude à nous sivité. Celle-ci n’engendre plus seulement une
dessaisir de nous-mêmes dans la considéra- tension entre le moi et le surmoi mais se dé-
tion du monde et des autres. La tâche du sujet place sur l’arène sanglante de l’amour et de la
est d’abord économique, elle est comparable mort. Cette tâche apparemment insurmontable
à celle de l’analyste avec son patient: « à la trouve néanmoins une issue pour Freud dans
vérité le moi se comporte comme le médecin la réinterprétation du sentiment de culpabilité.
au cours d’un traitement analytique: il s’offre La culture met la mort au service de l’amour et
lui-même, avec l’attention qu’il prête au monde renverse le rapport initialement dominant de
réel, comme un objet libidinal pour le ça et vise la mort sur la vie. La culpabilité, intériorisée
à attirer sur lui-même la libido du ça ». (FREUD, par le surmoi, fait travailler cette violence in-
1923, p. 287). L’intervenant qui s’inspire de la terne contre la violence extériorisée. La tâche
psychanalyse en éducation promeut un sujet éducative, civilisatrice (suceptible d’éviter la
prudent, il représente le principe de réalité barbarie), consiste donc à transformer l’agres-
dans la mesure où il ne juge pas et ne prescrit sion par un retournement: faire travailler la
pas d’action morale. Il ne peut pourtant igno- mort contre la mort.
rer la destination morale de l’homme, mais Ce travail de retournement s’impose aussi
observe une prudence face à la complicité de au niveau des institutions, elles aussi traver-
la conscience morale avec la pulsion de mort sées par ce conflit pulsionnel (libido/inertie,
(RICOEUR, 1965). vie/mort). La destructivité peut donc être
L’enjeu institutionnel de l’éducation et de contournée par ce retournement de la culpa-
la formation tourne autour du pouvoir sur bilité. L’autre voie est représentée par la subli-
l’enfant (réel et intérieur) et sur l’homme mation, la capacité à créer un autre objet pour
futur, un pouvoir de fabrication, de mode- la pulsion. Cette création se fait aussi par un
lage, d’engendrement. Tous ces fantasmes de retournement, une négation de l’objet disparu.
pouvoir peuvent être objets de l’exploration. En ce sens, le travail conçu comme moyen de
L’introduction par Freud de la pulsion de mort production et de reproduction peut débou-
reconfigure la tâche de la culture et par consé- cher sur la création authentique d’une œuvre
quent de l’éducation. Celle-ci doit se prononcer par l’appropriation de l’acte de la disparition
dans la lutte qui oppose Eros à la mort. Car (Fort/Da).
cet antagonisme pulsionnel dépasse de loin le Les difficultés actuelles de l’approche psy-
champ conflictuel qui était jusque-là exploré. chanalytique en éducation se situent dans le
Les liens libidinaux qui d’ordinaire résistent à processus d’individualisation forcenée, mu-
la vie sociale et à la culture peuvent néanmoins tilant le sujet de sa dimension sociale, le dé-
être mises à leur service par la construction du pouillant de sa culpabilité et de son sentiment
lien social. Mais les pulsions d’agression, de de responsabilité. Les projets éducatifs éclairés
destruction, de cruauté, dressent une hostilité par la psychanalyse pourraient mettre en garde
primordiale de l’homme à l’égard de l’homme. contre le retour des agents, et viser à former
Désormais la signification de l’évolution de la des sujets concrets capables d’affronter leurs
civilisation cesse à mon avis d’être obscur : elle conflits d’ambivalence et leur agressivité. Ces
doit nous montrer la lutte entre l’Eros et la mort, projets pourraient aussi s’accomplir dans la
entre l’instinct de vie et l’instinct de destruction, consultation des groupes et des organisations
telle qu’elle se déroule dans l’espèce humaine. (ici pédagogiques et éducatifs) pour les aider
C’est en cette lutte que consite essentiellement
à surmonter leurs difficultés institutionnelles
toute vie. (FREUD, 1929, p. 78).
de plus en plus marquées par des processus
La tâche culturelle assignée à l’éducation de déliaison, de désocialisation, et de disqua-
est principalement le renoncement à l’agres- lification des sujets.
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 117-126, out./dez. 2020 125
La formation des enseignants a la lumiere de la psychanalyse
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
126 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 117-126, out./dez. 2020
Yara Magalhães dos Santos
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p127-146
RESUMO
Este artigo analisa o mal-estar entre professores a partir da perspectiva
psicanalítica. São apresentados resultados de uma pesquisa, realizada entre os
anos de 2011 e 2013, com professores do ensino médio, na cidade de Uberlândia,
MG, na qual foram realizadas entrevistas no intuito de compreender possíveis
razões do mal-estar entre professores. Compreendendo o mal-estar como
fenômeno social maior, buscamos analisar motivações relacionadas a sintomas
típicos do mal-estar docente, como apatia, sofrimento, adoecimento e outros.
Com apoio na Psicanálise Freudiana estabelecemos uma relação entre o mal-
estar social e fenômeno sociais que atingem o contexto escolar, e que eclodem
em sofrimento psíquico para muitos docentes. Verificamos que algumas razões
do mal-estar estão associadas às falhas do processo educacional enquanto
operador de interdição dos alunos e ambivalência de sentimentos em relação
à profissão, que ora assume contornos de culpa e autoagressão. Concluímos
que o cenário escolar aspira contribuições para reflexões acerca dos processos
de interdição social e da própria análise do mal-estar, enquanto dilema que
extrapola os muros da escola.
Palavras-chave: Mal-estar. Mal-estar docente. Psicanálise e Educação.
ABSTRACT
FROM SOCIAL DISCONTENTE TO TEACHING DISCONTENTE:
CONTRIBUTIONS FROM PSYCHOANALYSIS
This article analyzes the discontent among teachers from a psychoanalytic
perspective. Results of a survey, carried out between 2011 and 2013, with high
school teachers in the city of Uberlândia-MG, are presented, in which interviews
were carried out in order to understand possible reasons for the discontent
among teachers. Understanding the malaise tha resulted of this discontent
as a social phenomenon, we seek to analyze motivations related to typical
symptoms of teacher malaise, such as apathy, suffering, illness and others. With
support in Freudian Psychoanalysis, we established a relationship between
social discontent and social phenomena that affect the school context, and that
∗
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Realizou douto-
rado sanduíche na Universidad Complutense de Madrid (UCM). Servidora do quadro Técnico-Administrativo em Educação
na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: yara_msantos@hotmail.com
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 127-146, out./dez. 2020 127
Do mal-estar social ao mal-estar docente: contribuições da psicanálise
create psychological distress for many teachers. We found that some reasons
for the malaise y discontent are associated with the failures of the educational
process as an operator of psychic interdiction of students and ambivalence of
feelings in relation to the profession, which can represent guilt and self-harm.
We conclude that the school scenario needs contributions to reflections about
the processes of social interdiction and the analysis of teacher malaise itself, as
a dilemma that goes beyond the school walls.
Keywords: Discontent social. Teacher discontent. Psicoanálisis y Educación.
RESUMEN
DEL MALESTAR SOCIAL AL MALESTAR DOCENTE: CONTRIBUCIONES
DEL PSICOANÁLISIS
Este artículo analiza el malestar entre los docentes desde una perspectiva
psicoanalítica. Se presentan los resultados de una investigación, realizada entre
2011 y 2013, con profesores de secundaria en la ciudad de Uberlândia-MG. Se
realizaron entrevistas para comprender posibles razones de malestar entre
los docentes. Al entender el malestar como un fenómeno social, buscamos
analizar las motivaciones involucradas con los síntomas típicos del malestar
de profesores, como la apatía, el sufrimiento y enfermedad. Con el apoyo del
psicoanálisis freudiano, establecimos una relación entre el malestar social y los
fenómenos sociales que afectan el contexto escolar y que provocan angustia
psicológica para muchos maestros. Descubrimos que algunos motivos del
malestar están asociados con los fracasos del proceso educativo como operador
de interdicción psicológica de estudiantes y ambivalencia de sentimientos
en relación con la profesión, que supone culpa y autolesión. Llegamos a la
conclusión de que el escenario escolar necesita reflexiones sobre los procesos
de interdicción social y el análisis del malestar como un dilema que va más allá
de los muros escolares.
Palabras clave: Malestar. Malestar docente. Psicoanálisis y Educación.
Considerações iniciais
De todos os lados, por todos os meios de mal-estar fruto da impossibilidade de satisfa-
comunicação, em grande parte de nossas ex- ção pulsional plena.
periências contemporânea, somos invadidos Do século XIV até os dias atuais, a sociedade
por dilemas que, de uma forma ou de outra, se transformou, e aquela cultura repressora,
resvalam no mal-estar que a civilização hu- baseada na interdição do gozo a acompanhou
mana vive nessas primeiras décadas do século nessas mudanças. Não obstante, de maneira in-
XXI. Não foi diferente nas derradeiras décadas dividual e comunitária continuamos atingidos
do século passado. O termo “mal-estar” nos por diversos mal-estares que revelam novos
remete, sobretudo, à perspectiva freudiana, dilemas de nossa convivência social.
contemplada na célebre obra Mal-estar na Esse sentimento de mal-estar está pre-
civilização (FREUD, 1996c), de 1930, na qual sente de forma muito peculiar nos contextos
o autor fala sobre como a construção ordeira escolares. Não é incomum, ao presenciar uma
e pacífica da civilização nos coloca diante do conversa formal ou informal entre professores,
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duos” os homens continuam a sofrer mal-estar, dessas exigências foram denominadas de éti-
“qual necessidade direciona a civilização para ca. Para Raulet (2002, p. 79), os efeitos desse
essa via?” É o sobressalto do instinto de vida superego coletivo podem provocar “neuroses
sobre o instinto de morte, tal como explica nas escalas de civilizações inteiras”.
Freud (1996c, p. 126):
Agora, penso eu, o significado da evolução da Mal-estar na atualidade: o que
civilização não mais nos é obscuro. Ele deve
representar a luta entre Eros e a Morte, entre nos conta a psicanálise sobre o
o instinto de vida e o instinto de destruição,
tal como ela se elabora na espécie humana.
mal-estar contemporâneo
Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, É necessário descrever algumas ressalvas so-
e, portanto, a evolução da civilização pode ser
bre o momento histórico em que Freud (1996c)
simplesmente descrita como a luta da espécie
humana pela vida. escreveu sua obra O mal-estar na civilização
e sobre os dias atuais. A contemporaneidade
A civilização, portanto, é o “Eros canalizado não é caracterizada pela mesma repressão dos
e adaptado, transformado em cimento social”. anos vividos por esse autor. Assistimos outras
Contudo, estará sempre exposta “aos ressur- configurações sociais: o gradual declínio das
gimentos da agressividade” (RAULET, 2002, figuras externas de opressão e autoridade; a
p. 75). alimentação do discurso de liberdade; o rom-
A inclinação à agressividade, derivada do pimento com os valores tradicionais; o culto
instinto de morte, passa a assumir importância aos excessos e às compulsões; o imediatismo
nas reflexões freudianas sobre o processo de de uma cultura marcada por imagens estéticas
civilização, pois traz à tona uma nova direção do sucesso e do consumo, tudo isso contribui
para o mal-estar, diferente daquela que foca para novas configurações da subjetividade
a repressão das pulsões instintivas humanas. que muito se difere da sociedade europeia do
É a segunda perspectiva trabalhada por esse início do século XX. Para a psicanalista De Paoli
autor sobre as razões do mal-estar, na qual a (2005, p. 41), todas essas transformações so-
atenção passa “das forças reprimidas para as ciais e culturais apontam para o fato de que o
forças repressoras” (FREUD, 1996c, p. 122). superego, aquela instância antes repressora e
A inibição dos impulsos de agressividade, interditora do gozo sem limites, estaria igual-
que tende a ser direcionada para fora do sujei- mente em transformação.
to, mas que é reprimida para possibilitar a con- Matteo (2011, p. 284), psicólogo e filósofo,
vivência social, leva à introjeção de uma parcela afirma observar fortes indícios de que o “supe-
dessa hostilidade, que, quando internalizada, rego cultural de que nos fala Freud foi substituí-
ajuda a compor o superego. Esse, por sua vez, do por um novo tipo aparentemente mais fraco,
passa a atuar contra o ego do próprio sujeito e mais liberal, menos exigente e culpabilizador,
conta com a agressividade internalizada para mais tolerante e permissivo, mais afinado com
essa atuação. nossa sociedade de consumo”, igualmente mais
Ou seja, esse impulso agressivo e hostil não flexível e liberal.
se anula, mas, em parte, passa a operar contra De fato, a nova configuração social do oci-
o próprio sujeito, como agente de regulação dente, no século XXI, reflete uma sociedade que
através do superego. Freud (1996c, p. 144) saiu da extrema repressão para uma sociedade
também postula a existência de um superego das inúmeras possibilidades de gozo. Pereira
da comunidade “sob cuja influência se produz a (2009, p. 43) afirma que “há um transborda-
evolução cultural”. Esse superego desenvolveu mento de gozo na ordem cínica do mercado,
os ideais e as exigências da cultura e algumas na obsessão moral pela eficácia técnica e
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Do mal-estar social ao mal-estar docente: contribuições da psicanálise
disciplinar, no fundamentalismo religioso e não possuem tempo de ter acesso a todas. Es-
no paradigma apolítico do individualismo”. tamos sempre atrasados para as possibilidades
Individualismo alimentado pela fragmentação, do gozo que nos são exigidas e que exigimos ter.
que cria terreno para o surgimento de novas Eis, então, um novo terreno para o mal-estar.
formas de subjetivação. Diante de tantas possibilidades e da cobrança
Birman (2009, p. 23) afirma que, em todas social pelo gozo, o eu parece sentir-se impo-
as “novas maneiras de construção da subjeti- tente, nunca atende à expectativa, está sempre
vidade, o eu se encontra situado em posição aquém.
privilegiada”, é o “autocentramento” do eu. No
entanto, esse “autocentramento” não ocorre Do mal-estar Freudiano ao mal-
por vias de interiorização do sujeito, ao contrá-
rio, demarca uma nova configuração subjetiva, estar docente
em que o “autocentramento” passa a ter o “va- Ao adotarmos a Psicanálise Freudiana como
lor da exterioridade” (BIRMAN, 2009, p. 23). referencial teórico, concebemos o mal-estar
Isso significa que a construção de subjetivi- docente como uma expressão peculiar no
dades narcísicas também serve a um propósito contexto educacional de um mal-estar social e
de exibição ao outro. É a sociedade do espetá- cultural maior, que representa algo que funda
culo. O olhar do outro torna-se importante para a condição de sujeito em nossa sociedade.
a economia psíquica dos indivíduos, e o desejo Fora das instituições escolares, o mal-estar
passa a transitar por uma direção marcada parece expressar-se de diferentes maneiras.
pelo “exibicionismo” e pelo “autocentramento”, Para Pereira (2009, p. 43), psicólogo e pesqui-
contribuindo para a construção de subjetivi- sador das interfaces entre Psicologia e Edu-
dades esvaziadas, sem investimento em trocas cação, “nossa sociedade tem produzido, cada
inter-humanas (BIRMAN, 2009). Nesse cenário, vez mais, novas formas de sintoma e angústia,
o que resta a essas novas subjetividades senão espelhada em sua devoção aos excessos”. Ob-
o estabelecimento de “pequenos pactos em servamos o aumento dos fenômenos de vio-
torno da possibilidade de extração do gozo” lência, dos casos de vícios e dependências, da
(BIRMAN, 2009, p. 24), seja na relação com o procura por respostas imediatas ou ilusórias,
corpo alheio, com o capital, com o trabalho, ou como a busca por auxílios transcendentais, e o
outros? É a ordem do prazer barato e imediato. gritante aumento dos diagnósticos de transtor-
Se uma cultura mais flexível possibilitou o nos mentais, que exemplificam o que Pereira
surgimento de autoridades externas e internas (2009) denomina como os modos atuais do
menos rígidas, os ideais civilizatórios estão sintoma social.
cada vez mais presentes, transformados em Em sendo a escola uma parte do todo social,
ideias de “sucesso” no mundo atual. Há auto- esses modos atuais do sintoma social passam a
ridades internas e externas que continuam a ser observados em seu espaço de sociabilidade.
exigir, mas que, agora, exigem os ideais espe- Nesse cenário em que os professores parecem
rados em nossa cultura, sejam eles o capital, estar cada vez mais queixosos, desestimulados
o poder simbólico da academia, o sucesso, a e adoecidos, o mal-estar parece eclodir nas
popularidade, os relacionamentos afetivos, ou práticas pedagógicas.
seja, possibilidades imediatas sempre atrela- Ainda sim, nos parece necessário que nossa
das ao gozo como um “imperativo categórico”, análise se inicie a partir da própria proble-
exercido por um superego que ordena: “Goze!” matização do termo mal-estar. Tal discussão
(DE PAOLI, 2005, p. 449). mostrou-se necessária na medida em que, na
No entanto, são oferecidas tantas possibili- pesquisa de campo, quando procedíamos as
dades de satisfação pulsional que os indivíduos apresentações formais da pesquisa, muitas
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pessoas questionavam o que seria o mal-estar O mal-estar mencionado por Sigmund Freud
docente que pesquisávamos naquele momento. seria a angústia diante da configuração do mo-
Seria uma doença que atinge os professores? delo de civilização, caracterizado pela impossi-
Seria o reflexo da insatisfação docente? Seria bilidade da coexistência da satisfação pulsional
alguma síndrome, atualmente tão utilizada nos plena do indivíduo humano e a constituição
diagnósticos de mal-estar? ordeira e pacífica da sociedade moderna, e da
Ao longo da pesquisa de campo nos depa- angústia que surge em decorrência da operação
ramos com diversas reações ao uso da ter- de uma instância psíquica responsável pela
minologia, alguns professores consideravam regulação do sujeito frente às normas sociais.
que o termo carregava rastros negativos, que Desde a publicação do texto O mal-estar na
representava algo depreciativo, ainda que não civilização (FREUD, 1996c), em 1930, o termo
o fosse. Já outros professores consideravam a mal-estar vem sendo apropriado por discursos
expressão amena demais para denominar a de áreas distintas das da saúde ou da psicaná-
atual crise que os atinge. O termo burnout2 foi lise propriamente dita. Podemos citar, aqui,
frequentemente citado como uma espécie de discussões que fazem referência ao mal-estar
sinônimo desse mal-estar, algo que parecia de- no trabalho, na sociedade, na cultura geral,
nominar de maneira mais evidente o sofrimen- ao mal-estar do Capitalismo e, mais especifi-
to e desconforto que estavam a compartilhar. camente, o que interessa ao nosso estudo, a
De fato, quando se ouve o termo mal-estar apropriação do termo mal-estar pela Educação,
docente pela primeira vez, sem o conhecimento com a expressão mal-estar docente.
das designações terminológicas da palavra, o No campo educacional, discussões sobre um
pensamento imediato pode incorrer em associa- sentimento de mal-estar exclusivo da classe
ções, ou interpretações, quanto a possíveis in- docente começaram a ser levantadas na década
disposições físicas e incômodos que, de alguma de 1980 por pesquisadores europeus que de-
forma, estejam associados à profissão docente. nunciavam uma crise na Educação. Na Europa,
Apesar de figurar frequentemente no campo um dos maiores indicativos da crise referia-se
da saúde como referência às perturbações fi- à escassez de profissionais para suprir a de-
siológicas e corporais, não é recente que o uso manda de trabalho existente (ESTEVE, 1999).
do termo sirva a outras discussões importantes Para Esteve (1999, p. 25), o termo mal-estar
de campos distintos da saúde física, fazendo docente é utilizado para descrever “os efeitos
referência a um mal-estar de ordem subjetiva. permanentes de caráter negativo que afetam
É com Freud (1996c) que o termo é ressignifi- a personalidade do professor como resultado
cado como forma de designar um estado subje- das condições psicológicas e sociais em que se
tivo de sofrimento, um sentimento de falta que exerce a docência”. Aqui, nota-se uma restrição
marca a construção de nossa condição social. aos possíveis efeitos na personalidade, mas
Birman (2009) auxilia-nos a compreender a na obra desse autor é possível observar que
discussão psicanalítica em torno do mal-estar o termo mal-estar docente é utilizado para
ao afirmar que o texto freudiano trata de uma denominar todos os efeitos negativos que aco-
interpretação do mal-estar na modernidade, metem o professor em decorrência do exercício
que se inscreve no campo da subjetividade, e profissional, efeitos que atingem não apenas
que este é sempre matéria-prima para a pro- a personalidade, mas, sobretudo, a saúde e o
dução do sofrimento. trabalho.
2 Síndrome de burnout é um distúrbio psíquico categorizado Quando o termo mal-estar aparece no cam-
no Código Internacional de Doenças (Z73.0) como uma po da Educação, frequentemente é usado para
síndrome de esgotamento físico e mental decorrente do
exercício profissional (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚ- designar toda e qualquer manifestação negati-
DE, 2004). va que atinja o professor, sejam manifestações
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Do mal-estar social ao mal-estar docente: contribuições da psicanálise
físicas, psíquicas, econômicas ou sociais, e que que o sujeito deve fazer um trabalho infinito
denunciem algo de errado na organização do de gestão, justamente porque o desamparo
trabalho docente que precise ser reparado. originário da subjetividade seria incurável”
Isso se evidencia quando Esteve (1999) (BIRMAN, 2009, p. 130).
compara a expressão mal-estar docente com Nesse sentido, entendemos que o mal-es-
o termo síndrome de burnout. Ele afirma que tar docente, enquanto expressão peculiar de
a literatura anglo-saxã convencionou utilizar um mal-estar social no contexto educacional,
o termo síndrome de burnout, que tende a exige e exigirá de profissionais e pesquisa-
ressaltar o caráter patológico associado ao dores da Educação esforços que procurem
estresse, para designar o mal-estar que aco- compreendê-lo a partir de sua dimensão
mete os professores. Entretanto ressalta que, subjetiva, que o coloca no centro das discus-
apesar disso, o termo burnout corresponde ao sões psicanalíticas sobre nossa condição de
termo mal-estar docente se for considerada a sujeitos na sociedade.
amplitude conceitual a qual o termo se refere. Aguiar e Almeida (2008, p. 8) afirmam que
A expressão síndrome de burnout designa uma é impossível ao sujeito “‘produzir’ mal-estar de
patologia, classificada no Código Internacional forma individual, desvinculada das condições
de Doenças como uma síndrome de esgotamen- sociais de seu trabalho como docente e das
to profissional. Verifica-se a proximidade com relações interpessoais com o outro”. O mal-es-
o discurso médico, que elege o mal-estar como tar se expressa de diversas formas: no adoeci-
um sintoma patológico. mento psíquico, no desinteresse pela profissão
Consideramos, então, que o conceito de docente, na perda do sentido em ensinar, nas
mal-estar docente no campo da Educação recorrentes queixas em relação à profissão, na
algumas vezes não é fiel ao conceito do mal ausência de profissionais do ensino etc. Todas
-estar freudiano. Algumas vezes, será usado essas manifestações são indícios de mal-estar
para designar patologias, adoecimentos que, entre a classe. É possível observar a ocorrência
ainda que representem sintomas atuais para em que tais expressões acontecem: noticiários
o mal-estar, não constituem exclusivamente o de TV, jornais locais ou acadêmicos denunciam
mal-estar alvo de nossa pesquisa. cada vez mais a ausência de professores nas
Essa tem sido a perspectiva que tem guiado redes educacionais do Brasil. A ausência de
muitas pesquisas restritas ao campo da Educa- professores se configura não apenas pela de-
ção, que não se apoiam em uma interpretação sistência da profissão, ou pelos afastamentos e
psicanalítica do mal-estar. Nessas, as causas do licenças dos profissionais, mas principalmente
mal-estar tendem a ser colocadas no contexto pelo fato de que a carreira docente não tem
social, na precarização e nas formas de organi- atraído novos profissionais.
zação do trabalho, sempre em algo do campo O aumento da ocorrência dessas expres-
da realidade objetiva que deve ser reparado. sões do mal-estar entre professores sugere
Nossa perspectiva considera o mal-estar que cada vez mais docentes, sobretudo os que
como algo inerente à constituição do sujeito lecionam no ensino básico, experimentam a
social, e, assim, como consequência, inerente angústia do mal-estar no exercício profissio-
à experiência de profissionais da Educação. nal. Jesus (2004) afirma que na atualidade
No entanto, conceber o mal-estar como algo existe uma espécie de crise de desmotivação e
intrínseco à condição humana “não implica di- uma particular “crise de identidade” entre os
zer que o sujeito deve existir necessariamente professores, motivada pelas mudanças sociais
com perturbações do espírito, sejam estas da e culturais que levaram a docência a perder o
ordem da neurose, psicose ou perversão” (BIR- prestígio tradicional ao qual esteve associada
MAN, 2009, p. 130). Significa, sim, “reconhecer por muitos anos.
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Do mal-estar social ao mal-estar docente: contribuições da psicanálise
Resultados e discussão
Falhas do processo educacional como o que tende a se acentuar quando esses mes-
operador de interdição mos professores continuam a manter, de forma
Nos relatos dos entrevistados, verificamos rígida e coerente à ética social, o seu processo
como o mal-estar pode ser provocado pelas de regulação.
falhas no processo educativo de adaptação às Denominamos a falha dessa repressão de
normas sociais. Como citamos anteriormente, falha do processo educacional, porque nisto
o mal-estar entre professores, compreendido se resumem os fins educacionais: moldar in-
pelo viés psicanalítico, pode surgir a partir divíduos conforme a ética social. Dessa forma,
do que resta do recalque dos desejos que não a escola pode ser considerada como uma das
podem ser satisfeitos e da constante cobrança instituições mais expressivas criadas para
do superego. atender ao ideal civilizatório. Levisky e Taille
A primeira perspectiva, que compreende (2002, p. 109) consideram que, nas primeiras
o mal-estar como resultado do conflito entre relações do processo educacional, os sujeitos
sociedade e pulsão, elege essa angústia como criam “condições para o desenvolvimento de
aquilo que sobra da repressão de alguns im- uma identidade, de padrões morais e éticos,
pulsos, de modo que, na impossibilidade da das noções de liberdade e de democracia”.
satisfação plena dos mesmos, tem-se o mal Ou seja, a educação, dentro e fora das esco-
-estar. Podemos pensar em nossos docentes las, configura-se como um expressivo agente
inseridos nesse contexto que preza justamente de aprendizagem para a convivência social.
a não satisfação de impulsos importantes. No A escola é, portanto, uma instituição que, no
entanto, as entrevistas apontaram que o mal sentido geral, transmite alguns ideais culturais
-estar sentido pelos professores está muito da civilização, nesse processo de adaptação ao
mais associado às falhas desse processo de convívio em sociedade. Inspirado em Freud,
regulação, ou seja, quando não há a adequada quando este demonstrou como surge o dile-
repressão de impulsos condenados pela ética ma que resulta em mal-estar, o psicanalista
social, impulsos hostis, por exemplo, e esses Voltolini (2011, p. 39) afirma que “a educação
passam a ser direcionados aos professores por carrega em si a marca de um dilema que não é
parte dos alunos. Então, aqueles professores, outro senão aquele que existe entre indivíduo
alvo dos impulsos hostis, sentem um mal-estar, e a civilização”.
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Do mal-estar social ao mal-estar docente: contribuições da psicanálise
as entidades que têm falhado nesse processo, ram-se os valores, quais valores, os valores de
que atinge as escolas através de questões como orientar o filho. A gente trabalha com crianças,
falta de limites, não reconhecimento de auto- e eu trabalho aqui nessa escola, né, trabalho
com outras faixas etárias também, e, assim, você
ridade, manifestação de atos hostis e outras, percebe que não tem a menor, que o menino vem
como exemplificamos a seguir: pra escola, parece que a família cria e, assim,
[...] nós temos uma cultura que ela não valoriza vai deixando tocar a lei da natureza, entendeu?
mais certos elementos, que, que, como eu diria, E o menino chega na escola despreparado,
colocando em cheque se a educação é importan- mal-educado. Professor não tem, não tem auto-
te? Se você formar o caráter é importante, né? Já ridade, mas o professor só não tem autoridade
pensando na área que eu trabalho, a Filosofia, é porque a família perdeu a autoridade. A mãe,
a ética, cidadania, tudo isso hoje tem um valor a mãe, a gente chama às vezes, é, pais aqui na
secundário [...] Então, é isso que deixa a gente escola, [cita o nome da pesquisadora], e, quan-
um pouco... não desanima não, porque a gente do a família chega, você vê que você tem mais
não para por isso, mas é que torna o trabalho respeito do menino, entendeu? Que o menino,
muito mais difícil, entendeu? Porque você tem todo o desrespeito que você entendeu que ele
toda uma organização que ensina o contrário fez com você, ele ainda tá te respeitando mais
[...] (JOAQUIM). do que tá respeitando a mãe dele que veio aqui,
ou o pai. (SIMONE).
[...] a gente percebe nas famílias dos alunos. É
claro que na família o pensamento da sociedade, Esses relatos indicam que, na visão dos
então, isso que me dá um certo desânimo. Eu já professores, a família e a sociedade em geral
passei por situações em que o aluno tem proble- muitas vezes têm falhado na interdição dos
ma sérios de disciplina, mas é tipo de convívio
filhos, seja na interdição dos desejos, seja dos
social que aí não é só uma questão com um ou
outro professor ou com algum funcionário da impulsos hostis, e outros. A interdição é uma
instituição, é dentro do próprio ambiente onde marca do discurso civilizador e da ética social
ele vive. Embora você remeta isso à família, a para convivência comunitária. Dizer que a so-
família não acredita, acha que não, que isso aqui ciedade coloca sob suspeita a formação ética,
é problema da escola, acha que o aluno não está que a família tem se esquivado do seu papel
satisfeito. Não sei se ela não tem essa percepção,
de formação de caráter, ou que as famílias têm
ou se ela não quer enxergar esse problema, e
muitos querem, queremos, acreditam que nós educado os filhos à lei da natureza são relatos
temos que resolver esse problema, né. E muitos que remetem à Educação em seus princípios
querem que nós, acreditam que a gente que tem morais e que indicam a reivindicação dos
que resolver esse problema, que a gente tem professores por uma educação que consiga
que moldar o caráter do aluno, e não é assim. A imprimir nesses alunos a marca da interdição.
família tem um papel fundamental no papel do
Entretanto, porque requerer essa interdição
caráter do indivíduo, e isso é desde de cedo, no
início da vida da pessoa. O início dele é muito que também causa mal-estar se ela nos leva a
fechado dentro do convívio familiar. Eles abrem reprimir muitos de nossos desejos? Uma vez
mão disso e, quando os problemas surgem, já na que os homens aderem à vida em comunidade e
escola, eles querem que a escola resolva. Isso não a legitimam, essa condição passa a ser concebi-
procede, né. A escola não tem essa obrigação, da como ideal desejado. Por isso, por mais que
não é esse o objetivo da escola. (MARTA).
inconscientemente alguns professores sintam-
Eu acho, assim, não foi a escola que falhou se frustrados por estarem subjugados a tantas
primeiro. Quem falhou primeiro foi a família, interdições das normas sociais, eles requerem
e a família tá falida, sabe, seja pelas mudanças
do outro a mesma adaptação à essa ética social.
que ocorreram aí no mundo do trabalho, que a
mulher achou lindo sair de casa. Eu falo assim Nossas entrevistas sugerem que as falhas
porque eu sou filha, eu sou filha de uma criação desse processo de regulação têm sido mais
que a mãe ficou em casa, né, e eu acho que as comuns entre os alunos. Dessa forma, os con-
pessoas, nesse movimento, perdeu-se, perde- flitos da relação entre professor e alunos estão
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entre os aspectos mais citados para as causas são reprimidos para possibilitar a convivência
de mal-estar docente. social, leva à introjeção de uma parcela dessa
Em segunda instância, há também a cons- hostilidade, que, quando internalizada, ajuda
tante cobrança que impede o reconhecimento a compor o superego. Esse, por sua vez, passa
das fragilidades e limitações, exigindo o suces- a atuar contra o ego do próprio sujeito e conta
so o tempo todo. Os ideais culturais coletivos com a agressividade internalizada para essa
de sucesso navegam nesse universo simbólico atuação. Esse processo é claramente descrito
da docência. Dos professores têm sido exigidas no trecho abaixo:
muitas funções, dentre as quais estão uma boa Outra questão nos interessa mais de perto.
formação, qualificação constante, postura crí- Quais os meios que a civilização utiliza para
tica, engajamento político e funções educacio- inibir a agressividade que se lhe opõe, torná-la
nais que atinjam resultados associados a tantos inócua ou, talvez, livrar-se dela? [...] O que acon-
tece neste para tornar inofensivo seu desejo de
outros processos. E essas são apenas exigências
agressão? Algo notável, que jamais teríamos
profissionais, sem citar as demais, que passam adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio.
por planos pessoais dos indivíduos. Como se Sua agressividade é introjetada, internalizada;
alimentar de todas essas fontes? Os professores ela é na realidade, enviada de volta para o lugar
estão sempre atrasados, sempre aquém do que de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de
deveriam ser ou estar. seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte
do ego, que se coloca contra o resto do ego, como
Segundo a psicanalista De Paoli (2005, p.
superego, e que então, sob forma de ‘consciên-
42), há uma “busca incessante de gozo sem cia’, está pronta para por em ação contra o ego
limites como direito e também dever”, ou seja, a mesma agressividade rude que o ego teria
o gozo excede a categoria de direito e passa a gostado de satisfazer sobre outros indivíduos,
ser percebido como um dever constante, assim, a ele estranhos. (FREUD, 1996c, p. 127).
não tem como estar quite nunca. Da mesma Ou seja, esse impulso agressivo e hostil não
maneira, não tem como o professor estar quite se anula, mas, em parte, passa a operar contra
com tanto dever de satisfação que se apresenta o próprio sujeito, como agente de regulação
em seu exercício profissional. Dessa forma, há através do superego. Freud (1996c, p. 144)
uma tendência a autodepreciação, não revelada também postula a existência de um superego
por nossos entrevistados em nível consciente, da comunidade “sob cuja influência se produz a
mas por nós apontada como uma possibilidade evolução cultural”. Esse superego desenvolveu
para possíveis reflexões. os ideais e as exigências da cultura e algumas
dessas exigências foram denominadas de éti-
ca. Para Raulet (2002, p. 79), os efeitos desse
Culpa e autoagressão
superego coletivo podem provocar “neuroses
Retomando a questão apontada pela Psica- nas escalas de civilizações inteiras”.
nálise, do conflito indivíduo X civilização, algo No que tange à atuação do superego, pode-
parece resultar dessa equação, servindo de se afirmar que sua força e agressividade contra
base para tantas outras neuroses, tais como o ego aumentam a cada renúncia instintiva, a
evidenciaremos a seguir. Trata-se do sentimen- cada “agressão de cuja satisfação o indivíduo
to de culpa. No jogo das renúncias pulsionais desiste” (FREUD, 1996c, p. 131).
para convivência em sociedade, a instância do Com o superego, a vigilância em torno dos
superego assume posição central. desejos e a pressão para sua renúncia passam
No que tange à sua constituição, destaca-se a ser constantes. Tão logo o desejo se irrompe,
a introjeção de uma parcela de agressividade. A o superego assume a posição de atuar contra
inibição dos impulsos agressivos, que tendem ele, e o faz com a necessidade de punição, como
a ser direcionados para fora do sujeito, mas descrito no trecho a seguir:
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 127-146, out./dez. 2020 141
Do mal-estar social ao mal-estar docente: contribuições da psicanálise
A tensão entre o severo superego e o ego, que tentativa de investigar a origem do sentimento
a ele se acha sujeito, é por nós chamada de de culpa, Freud (1996a) retoma algumas dis-
sentimento de culpa; expressa-se com uma cussões descritas no texto Totem e Tabu para
necessidade de punição. A civilização, portanto,
consegue dominar o perigoso desejo de agressão
explicar uma suposta origem desse sentimento,
do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o que estaria relacionado ao complexo edipiano
e estabelecendo no seu interior um agente para que retomaria a morte do pai primevo. Dessa
cuidar dele, como uma guarnição numa cidade discussão freudiana, precisamos destacar sua
conquistada. (FREUD, 1996c, p. 127). conclusão: a de que os sentimentos de culpa e
O desejo é condenado e proibido por duas o remorso5 são, quase sempre, resultados de
instâncias: a externa ao sujeito e a instância um processo ambivalente, no qual o amor ao
interna, representada pelo superego. “A pri- objeto também participa.
meira insiste numa renúncia às satisfações Isso significa que, se por vezes o sujeito, to-
instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em mado do sentimento do ódio, destina impulsos
que faz isso exige punição, de uma vez que a agressivos a um objeto, fazendo alusão à figura
continuação dos desejos proibidos não pode edipiana, ao pai, esse mesmo sujeito, por ou-
ser escondida do superego” (FREUD, 1996c, tras vezes, também destina impulsos de amor.
p. 131). Ocorre que o ser humano é um ser Está posta a ambivalência daquele que odeia,
desejante, e se o desejo o atravessa, não é mas também ama. Disso podemos inferir que
possível se livrar da condenação do superego, a relação dos professores com sua profissão
que o condena pela culpa e pela necessidade também é marcada por essa ambivalência entre
de punição. o amor e o ódio.
Se o sujeito exerce em ato de agressividade
Percebemos agora em que relação a renúncia
contra o objeto, é possível que, após a agres-
ao instinto se acha com o sentimento de culpa.
Originalmente, renúncia ao instinto constituía o são, o amor retome o primeiro plano e, assim,
resultado do medo de uma autoridade externa: a culpa e o remorso surjam em função do ato
renunciava-se à própria satisfação para não se de agressão. Essa é a questão básica da qual se
perder o amor da autoridade. Se se efetuava essa estende a explicação do sentimento de culpa e
renúncia, ficava-se, por assim dizer, quite com a exigência da vida em comunidade.
autoridade e nenhum sentimento de culpa per-
A inevitabilidade da culpa e seu fortale-
maneceria. Quanto ao medo do superego, porém,
o caso é diferente. Aqui, a renúncia instintiva
cimento na vida em comunidade sugere que
não basta, pois o desejo persiste e não pode ser culpa e mal-estar estão intrinsecamente liga-
escondido do superego. Assim, a despeito da re- dos. O próprio Freud (1996c, p. 137) elege a
núncia efetuada ocorre um sentimento de culpa. culpa como “o mais importante problema no
Isso representa uma grande desvantagem eco- desenvolvimento da civilização”. Neste sentido,
nômica na construção de um superego ou, como em uma leitura do mal-estar de professores, po-
podemos dizer, na formação de uma consciência.
demos indagar se não há uma pungente culpa
Aqui, a renúncia instintiva não possui mais um
efeito completamente liberador; a continência por não exercerem suas funções docentes da
virtuosa não é mais recompensada com a certeza forma como desejariam realizá-las.
do amor. Uma ameaça de infelicidade externa – Todavia é importante destacar que, mesmo
perda de amor e castigo por parte da autoridade sofrendo, muitos professores ainda reafirmam
externa - foi permutada por uma permanente o seu desejo profissional, algo que revela a am-
infelicidade interna, pela tensão do sentimento
de culpa. (FREUD, 1996c, p. 131). 5 Freud (1996c, p. 139-140) define remorso como “um
termo geral para designar a reação do ego num caso de
Mesmo quando não satisfaz o desejo em sentimento de culpa. Contém, em forma pouco alterada
o material sensorial da ansiedade que opera por trás do
ato, o sujeito vivencia o sentimento de culpa, sentimento de culpa; ele próprio é uma punição, ou pode
na maioria das vezes inconscientemente. Na incluir a necessidade de punição [...]”.
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Yara Magalhães dos Santos
bivalência de sentimento em relação à própria Teve uma última, um último embate. Assim,
profissão e sua dinâmica. Essa relação, muitas não foi embate porque eu também não vou, eu
vezes marcada por amor e ódio, pode se vol- falo, não vou bater de frente no sentido de eu
me machucar, eu me desgastar, até, às vezes,
tar contra os próprios professores na mesma até fisicamente, né. Não quero perder a minha
proporção, de realização ou autoagressão. Ve- razão de bater boca com aluno, essas coisas.
jamos o relato a seguir como ilustração desse Eu prefiro ir embora ofendida do que pensar
apontamento: que eu dei um motivo pro aluno ter se sentido
ofendido. (SIMONE).
Tem sala, tem turma, que às vezes você tem que
ser mais, assim, incisiva, mais bruta, né, falar de Eu tô satisfeita com ele [trabalho] porque eu
uma forma assim. Então, às vezes, a gente fala acho que eu faço por onde, entendeu? Tô satisfei-
desse jeito. As vezes a gente usa mais o caminho ta comigo, da minha coragem de permanecer [a
da doçura. Eu, particularmente, eu sou mais da professora começa a chorar], da minha vontade
doçura, sabe, não gosto de perder, assim, o meu de permanecer. (SIMONE).
‘prume’, de alterar o tom de voz. Mas quando a
gente, quando isso começa a ter que acontecer, e
A professora afirmou que prefere não rom-
você reprimi isso, aí a gente vai ficando doente. per com a ética social e, assim, escolhe con-
Oh, você sente. Eu tenho, agora eu tô um pouqui- tinuar renunciando impulsos importantes, o
nho controlada, dei uma controlada, mas vindo que, num movimento natural, leva a uma ação
pra cá, os dias que eu venho pra cá, eu tenho contra si mesma. No ponto de vista freudiano,
disenteria. Só os dias que eu venho pra cá. E eu
a discussão sobre a repressão dos impulsos
sinto um mal-estar. Eu venho pra cá quarta. Ter-
ça eu já tô passando mal, eu penso assim: ‘Ai meu agressivos, orientada pela adaptação à civiliza-
Deus, aquela sala de aula, aquele povo, aqueles ção, indica uma via de interiorização da agres-
meninos, aquela sala específica.’ ‘Ai meu Deus, sividade. Freud (1996c, p. 116) afirma que,
agora eu vou.’ ‘Ai, que bom. Chegou a hora do “via de regra essa cruel agressividade espera
recreio; tem só mais dois horários.’ ‘Vou cumprir; por alguma provocação, ou se coloca a serviço
vou embora. Vou dar minha aula e vou embora’,
de algum outro intuito, cujo objetivo também
sabe. Porque chega um ponto que você pensa
assim: ‘Tô cumprindo, menos um dia.’ Porque vai poderia ter sido alcançado por medidas mais
ficando muito difícil. Então, assim, isso é razão brandas”.
de adoecer, sim. Professor adoece porque você Alguns professores citaram situações em
vai sentindo que toda aquela frustração, ela vai que romperam o vínculo com cargos que os fa-
materializando, né. (SIMONE, grifo nosso).
ziam sofrer, exonerando-se, pedindo demissões
Vejamos como esse relato evidencia uma numa tentativa de se desvincular das situações
professora que está sofrendo, e que esse seu de exercício do magistério que lhes causavam
estado é muitas vezes externalizado pela sofrimento. Contudo, a maioria dos entrevis-
somatização, mas, a princípio, mostra-se in- tados relatou não desejar romper com a atual
ternalizado pela renúncia da manifestação de dinâmica de sua prática profissional. Será que
algo importante em que ela sente a obrigação não há um gozo nesse exercício profissional
de calar. A própria professora reconhece que, que ora causa angústia, ora é uma fonte de
quando não manifesta seus impulsos hostis satisfação? Acostumados e cobrados a gozar
contra os alunos, essa repressão, essa inter- constantemente, os docentes parecem ter as-
nalização, a faz adoecer. Toda a entrevista foi sumido a dinâmica do gozo em sua profissão.
marcada por fortes indícios do mal-estar. No A autoagressão se confunde com a ambiva-
entanto, mais adiante a professora revelou lência de querer estar em sala de aula e sofrer
seu desejo em permanecer na profissão e na por isso. Está relacionada, ainda, à culpa por
mesma dinâmica: não dar conta, por não sustentar de maneira
[...] Mas olha só, [cita o nome da pesquisadora], adequada a escolha da docência como profis-
eles não me deixam ao menos falar com eles. são. Por isso, alguns professores relataram ser
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dos não têm conseguido lidar com esses impas- Imago, 1996a. p. 21-162.
ses no campo educacional, ou seja, investidos FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. In:
da expectativa de serem agentes de interdição FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira
dos alunos, se frustram por não conseguirem, das obras psicológicas completas de Sigmund
além de terem que lidar com os próprios Freud, vol. XXI. Tradução de Jayme Salomão. Rio
de Janeiro: Imago, 1996b. p. 15-63.
sentimentos de culpa que decorrem de suas
experiências formativas frustradas. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In:
Para superar esses impasses, é preciso con- FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund
siderar que a discussão em torno do mal-estar
Freud, vol. XXI. Tradução de Jayme Salomão. Rio
docente precisa ser desmistificada, avançando de Janeiro: Imago, 1996c. p. 73-148.
para a compreensão de como o mal-estar tem
HERRMANN, Fabio. O que é psicanálise – para
sido vivido e experimentado em nossa socie- iniciantes ou não. São Paulo: Psique, 1999.
dade. Aqui surge uma problematização sobre
HERRMANN, Fabio. Pesquisando com o método
o mal-estar, que assinalaremos segundo as
psicanalítico. In: HERRMANN, Fabio; LOWENKRON,
proposições do psicanalista Márcio Peter de Theodor (org.). Pesquisando com o método psi-
Souza Leite (2008), que afirma: “Se não há canalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. p.
cura do mal-estar, para que serve interpretar 43-83.
a cultura?”, e que de forma simples responde: instituto brasileiro de geografia e
“o psicanalista não pode prometer uma cura do estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por
sintoma social, nem um laço social adequado, municípios. Dados sobre ensino – matrículas,
nem satisfação, mas apenas uma ética outra docentes e rede escolar do ano de 2007. Rio de
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Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
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Ilaria Pirone; Jean-Marie Weber
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p147-157
RÉSUMÉ
Les expériences de recherche et de formation universitaire des deux auteurs
les ont amenés à constater une nouvelle forme de fatigue diffuse chez les
enseignants, qu’ils proposent de penser comme une sorte de symptôme
social. Cette proposition les conduit à analyser ce mal-être comme une
réponse subjective qui donne à lire une écriture à deux du lien social : R.I.,
Réel, Imaginaire. La lecture de ces expressions de « mal-être social » oblige la
psychanalyse à sortir d’une position anti-éthique de savoir pour continuer à
faire de sa pratique un appui permettant au sujet de rester connecté à son désir.
C’est la visée que les deux chercheurs donnent au dispositif d’analyse clinique
des pratiques professionnelles présenté, et qui a été construit pour permettre
une remise en circulation de la parole entre les professionnels des métiers de
l’humain, comme un rempart possible face aux risques de mélancolisation du
lien éducatif.
Mots-clefs: Enseignants. Ethique. Discours. Mélancolisation. Dispositif de
formation.
RESUMO
TRABALHAR COM PROFESSORES: UM BALUARTE CONTRA NOVAS
FORMAS DE FADIGA SUBJETIVA
As experiências de pesquisa e formação acadêmica dos dois autores os levaram
a observar uma nova forma de fadiga difusa entre os professores, que eles se
propõem a pensar como um certo sintoma social. Esta proposta os leva a analisar
este mal-estar como uma resposta subjetiva que dá uma leitura da escrita do
vínculo social: R.I., Real, Imaginário. A leitura destas expressões de “mal-estar
social” obriga a psicanálise a sair de uma posição antiética de conhecimento para
∗
Maître de conférences, departement de Sciences de l’éducation, Université de Paris 8. Psychologue clinicienne, psychanalyste.
E-mail: ilaria.pirone@univ-paris8.fr
∗∗
Maître de conférences, Institut d’Éducation et Societé (InES), Université Luxembourg. Psychanalyste. E-mail: jean-marie.
weber@uni.lu
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Le travail de parole avec les enseignants : un rempart face aux nouvelles formes de fatigue subjective
ABSTRACT
WORKING WITH TEACHERS: A BULWARK AGAINST NEW FORMS OF
SUBJECTIVE TIREDNESS
The two authors’ research and university training experiences have led them to
observe a new form of diffuse tiredness among teachers, which they propose to
think of as a kind of social symptom. This proposal leads them to analyse this
malaise as a subjective response that gives a reading of the writing of the social
bond: R.I., Real, Imaginary. The reading of these expressions of “social malaise”
obliges psychoanalysis to come out of an unethical position of knowledge in
order to continue to make its practice a support allowing the subject to remain
connected to his desire. This is the aim that the two researchers give to the
device for clinical analysis of professional practices presented, and which has
been constructed to allow a re-circulation of the speech (parole) between
professionals in the human professions, as a possible bulwark against the risks
of “melancholisation” of the educational bond.
Keywords: Teachers. Ethics. Discourse. Melancholization. Training device.
Ce qui distingue le discours du capitalisme est ceci: ou à force, les défis leur paraissent géants, ils
la Verwerfung, le rejet, le rejet en dehors de tous les aspirent alors à trouver de nouveaux concepts
champs du symbolique avec ce que j’ai déjà dit que
et de nouvelles stratégies. Ceux qui sont déjà en
ça a comme conséquence. Le rejet de quoi? De la
castration. Tout ordre, tout discours qui s’apparente fonction depuis un certain temps arrivent sou-
du capitalisme laisse de côté ce que nous appelle- vent dans nos formations pour se ressourcer et
rons simplement les choses de l’amour, mes bons pour sortir de certaines formes de répétition
amis. (LACAN, 2011, p. 96). du même. Ils espèrent trouver des réponses
Dans nos pratiques de formation à l’univer- dans les formations, notamment en sciences
sité et dans nos recherches, nous rencontrons de l’éducation.
souvent des enseignants qui sont dans une Nous sommes alors souvent confrontés à
recherche presque désespérée de solutions un état de fatigue de certains enseignants, ac-
pour faire face aux nombreux défis que leur compagné de plaintes récurrentes qui portent
pose leur métier dans une société qui offre sur le fait qu’ils ne savent pas/plus comment
de moins en moins d’appuis pour faire avec le faire, ou encore qu’ils ne peuvent pas faire ce
Réel. Ils sont souvent des « résistants », voire qu’on leur demande. Mais que leur demande-
des « combattants », qui essayent de garder t-on aujourd’hui? De savoir adapter la péda-
vivante leur mission principale, transmettre, gogie à chaque enfant pour une « égalité des
contre vents et marées. Dernière épreuve, le chances pour tous », individualiser, différencier,
temps de crise dû au COVID-19. Mais parfois, inclure; rendre l’enfant autonome; savoir exer-
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Ilaria Pirone; Jean-Marie Weber
cer son autorité avec bienveillance, apprendre retrouvent parfois disjoints, et à tort, dans nos
à gérer les émotions, les conflits, le groupe pratiques psychanalytiques. Nous soutenons
classe; mettre en place une évaluation positive qu’il ne suffit pas de se plaindre d’un discours
bienveillante; être toujours innovant; coopérer capitaliste qui tente d’exclure la psychanalyse
avec les familles, les partenaires de l’école, etc. du champ social. La psychanalyse doit montrer
Entre injonctions morales et injonctions péda- ce qui lui importe : travailler avec l’inconscient
gogiques, beaucoup d’enseignants se sentent qui est « le social », « le politique », comme
parfois à bout de souffle. l’affirmait Lacan. C’est dans ce sens que la prise
Capturé par un discours qui prône le tout en compte des questionnements, des désirs et
possible, la performance, le sujet se trouve pris du mal-être chez les enseignants nous porte à
au piège d’un état de frustration permanent, et repenser nos formations. Il s’agit d’actions, c’est
ne trouve parfois d’autres solutions que de (se) ainsi que les aurait peut-être définies Arendt,
laisser tomber. Il répond alors par une forme des actions pensées pour soutenir le travail de
d’impuissance, le fait de ne pas pouvoir, lié à lien, une forme d’engagement éthique et poli-
une dimension de manque imaginaire, man- tique qui ne se contente pas de constater son
quer de connaissance pour pouvoir. Ce qui est émiettement (BAUMAN, 2018), ni de se plaindre
alors mis hors-jeu par ces nouvelles formes de d’une forme de déclin sous couvert d’une posi-
mal-être, terme qui indique autre chose que le tion nécessairement à la marge. C’est en ce sens
malaise que Freud avait inscrit au cœur même que notre désir de nous engager nous porte à
de l’existence, c’est le travail de l’impossible. mettre au centre de nos enseignements à l’uni-
En nous inspirant de l’essai captivant du versité la question de l’éthique, d’une pratique
philosophe coréen Byung-Chul Han (2014), La de l’éthique que nous avons définie comme
société de la fatigue, nous proposons de penser une éthique de la rencontre. Nos dispositifs de
cet état de fatigue chez les enseignants comme formation visent à décompléter les discours afin
une sorte de symptôme social. Cette proposi- que quelque chose de l’impossible permette de
tion nous permet d’aborder deux questions en mettre un frein à la machine à performance, un
parallèle. Premièrement le fait que les plaintes os dans la gueule du crocodile, laissant la place
répétées de nos collègues enseignants, sont pour un lieu de différAnce (DERRIDA, 1972),
aussi parfois les nôtres en tant qu’enseignants lieu vide, à partir duquel la parole puisse à
universitaires. La répétition de la plainte reflète nouveau circuler.
les effets des remaniements des discours sur le
sujet. Cette position de fatigue, ce « se laisser Fatigue et discours
tomber » est une forme de position subjective
qui donne à lire une écriture à deux du lien La plainte répétée de beaucoup d’ensei-
social: R.I., Réel, Imaginaire, ce que Lacan, le gnants tourne autour de plusieurs thèmes:
7 janvier 1972, avait qualifié comme « le rejet autour de quelque chose qui ne serait plus
en dehors de tous les champs du symbolique » comme avant, comme une forme d’autorité per-
(LACAN, 2011, p. 96). Deuxièmement, en lien due; un lien perdu avec les parents avec qui ils
avec ce qui précède, ce type de « mal-être so- ne parviennent plus à « bien » communiquer;
cial », comme d’autres, oblige la psychanalyse à ou encore une incapacité à « gérer » tous ces
se pencher sur la réalité sociale et la dimension enfants différents, et plus précisément cer-
institutionnelle, pour pouvoir entendre le dire taines catégories d’enfants, comme les « per-
au-delà du dit et permettre ainsi au sujet de turbateurs », les « décrocheurs », ou encore
rester connecté à son désir, qui est toujours dé- les « autistes » (concernant les « dyslexiques »,
sir de l’Autre. Au fond, c’est une proposition qui avec eux ça passe plus facilement, parce que
renoue politique et éthique, deux bords qui se les enseignants disent savoir de quoi il s’agit
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Le travail de parole avec les enseignants : un rempart face aux nouvelles formes de fatigue subjective
et avoir les bons outils). Plus généralement puisque evidence based. Au nom du bien-être
ce mal-être se résume régulièrement par un de l’enfant, il construit un paradigme neuro-co-
sentiment de solitude et d’abandon de la part gnitivo-émotionnel (les émotions étant la seule
de l’institution, et une forme nostalgique de partie « molle » de l’homme acceptée dans ce
perte de sens de leur métier. Ce mal-être donne paradigme), qui doit expliquer comment fabri-
à voir un rapport au travail qui réduit l’homo quer un être performant et facilement adap-
faber, l’homme moderne qui œuvre, qui fa- table à la réalité, ce qui implique en miroir un
brique, déjà aliéné selon Arendt par rapport professionnel tout aussi performant et capable
à l’homme d’action, à celui d’animal laborans, de s’adapter à toute situation. Ce paradigme
celui qui travaille, qui fatigue, pour survivre.1 se soutient de trois actions qui composent
Cette idée d’œuvrer, et donc de fabriquer et ce que nous avons défini comme le tripode
créer par et dans le travail est ce à quoi Freud imaginaire contemporain de l’acte éducatif:
faisait allusion dans une petite note de Malaise diagnostiquer, connaître, gérer (PIRONE ; TIS-
dans la culture: SOT, 2020). Il est alors nécessaire de pouvoir
L’activité professionnelle, quand elle est libre- connaître toute atypie de l’enfant, de pouvoir
ment choisie, donne une certaine satisfaction repérer, diagnostiquer toute différence. Une
et permet aussi de mettre à profit, en les subli- fois l’atypie nommée et donc catégorisée, il faut
mant, des prédispositions existantes, des élans alors connaître tout ce que la science a trouvé
pulsionnels qui trouvent une prolongation dans
de cette atypie, puisque connaître permet de
l’activité ou s’en trouvent renforcés. Et pourtant,
les hommes font peu de cas du travail comme mieux gérer. Au nom du bien de l’enfant, ce
moyen d’accéder au bonheur. (FREUD, 2010, tripode imaginaire, diagnostiquer, connaître,
p. 67). gérer, forclos le cadre symbolique du lien édu-
catif qui se soutient lui des actes de nomination,
En effet se pose la question suivante: pour-
transmission, humanisation. Le danger est
quoi certains enseignants ont-ils du mal à se
alors l’exclusion. Exclusion des enfants, bien
positionner comme des « praticiens réflexifs »
sûr, qui pris dans ces logiques de gestion, où
qui jouissent de travailler dans un des « mé-
au fond le modèle d’inclusion scolaire risque
tiers de lien » (CIFALI, 1994). Si on suit Freud,
cette position risque au fond de décrocher de reproduire des écueils du modèle d’inté-
l’investissement professionnel du circuit du gration, une fois diagnostiqués et rangés dans
désir. Selon notre hypothèse ce phénomène une catégorie, deviennent invisibles. Mais ce
est favorisé par l’accentuation d’un processus qui nous intéresse pour cette contribution est
de transformation de ces métiers. Le discours le risque d’une forme de mélancolisation de la
scientifique se transformant en discours du position enseignante,2 mettant ainsi en échec
maître, met l’enseignant à la place de l’esclave, la construction du lien éducatif. Confrontés
comme l’expliquait déjà Hegel, et la technisa- aux multiples apports des sciences de et sur
tion se teint de moralisation. l’éducation – autrefois nommés pédagogie –
Chaque époque pédagogique s’est construite les enseignants risquent d’être pris dans un
sur des savoirs considérés comme mytholo- sentiment d’inadéquation, d’un jamais assez
giques, philosophiques ou scientifiques, mais ce bien, et pourrait-on dire, d’un jamais assez
qui semble caractériser notre époque pédago- bon face à un Grand Autre fantasmé. Assujetti
gique c’est une forme de discours scientifique à au seul discours scientifique certains ensei-
tendance totalitariste, se revendiquant comme gnants perdent ainsi de vue l’enjeu sûrement
unique, et porteur de vérités incontestables, immense et pourtant si simple: être présent à
l’enfant pour qu’un lien de transmission soit
1 Nous reprenons ici la distinction qu’Arendt fait dans sa
définition de la vita activa théorisée dans la Condition de 2 Nous nous inspirons de la proposition d’Olivier Douville
l’homme moderne (ARENDT, 1983). sur la « mélancolisation du lien social » (DOUVILLE, 2001).
150 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 147-157, out./dez. 2020
Ilaria Pirone; Jean-Marie Weber
possible, travail d’humanisation. Pouvoir être pour ensuite faire un pas de plus et relier le
présent suppose un travail de recherche pour trouble de l’ordre idéalisé à une explication
pouvoir créer et trouver un lieu de rencontre scientifique, les troubles du comportement.
avec l’enfant, son altérité, ses questions. Or la L’enfant troubleur de l’ordre a trouvé sa case,
fabrique des catégories de plus en plus poin- l’ordre se trouve imaginairement rétabli. Nous
tues d’enfants anormaux avec leur cortège de ne sous-estimons pas les difficultés auxquelles
dispositifs pensés pour permettre la « ges- sont confrontés les professionnels de l’éduca-
tion » pédagogique des anomalies, en arrive à tion, mais nous souhaitons pointer le risque
des points où les enseignants plus jeunes en d’un tel fonctionnement. Il peut produire des
termes de carrière n’osent pas penser qu’ils nouvelles formes de désengagement subjectif
peuvent proposer des choses eux-mêmes et avec des conséquences importantes dans les
prendre des initiatives. Ils sont tellement gavés processus de transmission, surtout chez les
de méthodes pendant leur formation, qu’ils enseignants les plus jeunes qui se tiennent
risquent de ne pas se sentir autorisés à tout par crainte au strict suivi des programmes
simplement créer face à la surprise de l’incon- dans les formes préconisées par l’institution et
nu, qui est le principe au cœur de toute relation n’osent pas transmettre leur savoir. Ils n’osent
éducative. Mais si le danger de ce processus de pas transmettre à partir de leur savoir, enten-
technicisation a été déjà pointé par nombreux du aussi comme savoir de la vie, savoir des
chercheurs d’orientation psychanalytique, ce impossibles et en fin de compte de leur vérité
qui a été moins surligné c’est la dimension de désir. Ces transformations font signe d’un
moralisante qui soutient aussi la traduction rapport de plus en plus normatif aux métiers
pédagogique de ce paradigme scientifique de l’éducation laissant peu de place à sa dimen-
neuro-cognitivo-émotionnel. Des formules sion éthique. Si on reprend le « nœud bo » de
comme la « gestion positive des émotions », Lacan, elles dessinent une forme de nouage
« école de la bienveillance », parmi d’autres, (intenable) à deux, Imaginaire-Réel, laissant de
illustrent comment le discours institutionnel côté le registre Symbolique: cela implique que
actuel est tout centré sur le « bien » et la « po- c’est par le registre Imaginaire qu’on essaye de
sitivité », où tout semble fait pour escamoter le boucher le trou du Réel. C’est cet imaginaire
danger d’une possible manifestation du conflit écrasant que nous retrouvons dans ce rapport
psychique, de l’ambivalence constitutive de normatif à l’éducation et dans cette morale de
tout lien entre êtres humains. Il est le résultat la bienveillance et de la positivité, qui essayant
d’une « psychopolitique néolibérale », qui « […] de voiler le Réel par des formes de l’imagi-
détruit l’âme humaine, qui n’est rien moins naire, empêche tout travail de liaison. Si dans
qu’une machine à positiver » (HAN, 2016, p. une classe, les effets de cette écriture peuvent
46). Ces nouvelles formules qui au nom du bien être une incapacité des enseignants à nouer le
de l’enfant mettent en permanence l’accent Réel avec le Symbolique, le pulsionnel avec la
sur le possible, au fond fabriquent des formes parole et la culture, à l’échelle sociale, ces écri-
écrasantes de culpabilité et tout son lot d’agres- tures du lien social, nous permettent peut-être
sivité, difficilement bienveillante. On retrouve de lire ces nouvelles formes de haine déliée
ce croisement entre technicisation et moralisa- qui sont en train de fragiliser nos systèmes
tion jusqu’à la création de nouvelles catégories démocratiques.
d’enfants anormaux comme par exemple celle
des « enfants perturbateurs. C’est une étiquette
née tout d’abord du néo-langage ordinaire
Faire de la place au vide
professionnel où l’on a commencé à définir les Ces réflexions issues de nos recherches et
enfants « agités », comme « perturbateurs », des rencontres avec les professionnels dans
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Le travail de parole avec les enseignants : un rempart face aux nouvelles formes de fatigue subjective
nos formations ne font que renforcer notre idée cas des conseillers pédagogiques qui forment
de tenir bon dans cette difficile position d’un les futurs enseignants au Luxembourg, mais de
enseignement universitaire qui se soutient trouver comment être présent à la rencontre de
du discours psychanalytique (LACAN, 1978) l’autre. Cette opération implique la nécessaire
dans le champ de l’éducation, à condition que prise en compte des impossibles qui cadrent
nos formations soient un espace de recherche notre existence et qui sont actuellement évités
toujours ouvert. Ce choix nous conduit à notamment par les discours techniques centrés
chercher sans cesse comment faire de nos sur les besoins, n’autorisant pas le sujet à écou-
enseignements ce lieu vide dont parle Lacan. ter et à parler, à entendre un bout de la vérité
Il s’agit de chercher comment transmettre à qui parle en lui et en l’autre.
partir du principe de division subjective, à par- Ce que nous proposons est un dispositif
tir donc d’une dimension de décomplétude qui d’analyse des pratiques professionnelles orien-
est le propre du savoir de la psychanalyse. Le té par la psychanalyse, où les participants par-
discours psychanalytique propose un modèle tagent dans l’espace du groupe des situations
opposé à ces savoirs scientifiques modernes professionnelles qu’ils ont vécues et qui leur
qui s’imposent dans le champ de l’éducation, paraissent énigmatique, ou bien qui les mettent
qui bercent les éducateurs dans l’illusion d’une en souffrance, et sur lesquelles ils désirent ré-
possible «gestion » du lien et d’une connais- fléchir. L’enjeu est de permettre que la parole
sance sans faille de ce qui constitue l’altérité puisse circuler à nouveau.
et fait donc différence, en permettant ainsi sa Comme c’est le cas pour beaucoup de nos
maîtrise, pire son adaptation. Les critiques collègues qui animent des groupes d’analyse
que Mannoni adressaient aux institutions des pratiques professionnelles en France à par-
éducatives dans les années 70 sont toujours tir d’une orientation psychanalytique,3 chaque
de grande actualité (MANNONI, 2008). L’enjeu séance est scandée par différentes phases, qui
alors d’une psychanalyse qui se veut présente peuvent légèrement différer selon l’approche
aux défis du champ social est de chercher et choisie pour la conduite du dispositif. Ce qui
trouver comment permettre aux enseignants change essentiellement entre les différents
en formation d’accepter de travailler sur le fil formats, c’est le sens attribué à chacune de ces
de ce savoir qui ne se sait pas, et de ce malaise phases, le type d’analyse, sans oublier le style
constitutif du lien à l’autre. Malaise et non d’animation. Toutes ces différences dépendent
mal-être! du rapport singulier que chacun de nous a
C’est à partir de ces analyses que nous avons tissé avec la psychanalyse et des références
construit un dispositif de formation (PIRONE; que chacun a choisies tout au long de sa for-
WEBER, 2018) permettant aux enseignants, et mation psychanalytique. Nous aimons rappeler
plus largement aux professionnels des métiers que c’est notre façon de concevoir le sujet de
de l’humain, de mettre au travail la question l’inconscient qui détermine le style de la ren-
du rapport au savoir, la vérité du désir et ses
3 Nous renvoyons le lecteur au chapitre 11 de l’ouvrage
enjeux de transmission, la relation aux élèves, de Francis Imbert, « Le groupe Balint dans le champ pé-
et leur rapport aux discours pédagogiques et dagogique » (IMBERT, 1997) et à l’ouvrage co-dirigé par
sociétaux. L’objectif est de pouvoir faire de Claudine Blanchard-Laville et Dominique Fablet (2001),
Sources théoriques et techniques de l’analyse des pratiques
la place, faire du vide, et au non-savoir pour professionnelles. Pour un panorama des différents usages
pouvoir laisser place à la parole. Il s’agit pour actuels de ce dispositif, le lecteur peut consulter l’article
co-écrit par Arnaud Dubois, Claudine Blanchard-Laville, et
nous de créer un lieu permettant aux profes- Sophie Lerner (2017), « Groupes d’analyse des pratiques
sionnels de ne pas simplement « gérer » la pour enseignants. Mise en perspective de trois dispositifs
inspirés du “groupe Balint” ». Dans le champ du travail so-
relation à l’autre, autre-élève dans le cas des cio-éducatif, le lecteur peut se référer à l’ouvrage de Joseph
enseignants, ou bien autre-stagiaire dans le Rouzel (2007), La supervision d’équipes en travail social.
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Ilaria Pirone; Jean-Marie Weber
contre. L’inconscient ne se réduit pas à un passé tout jugement, et l’obligation pour chacun de
ou à un déjà-là ou à quelque-chose dont nous présenter une situation, le travail commence.
pourrions devenir conscient. C’est le fait que Les phases alors se répètent de la même façon
les mots nous manquent pour dire ce que nous pour chaque situation présentée.
sommes en tant que sujet de désir, en tant que Dans un premier temps, un participant du
parlêtre. L’écoute de l’analyste doit permettre groupe présente une situation qu’il souhaite
un dire qui libère le sujet d’un savoir enfermant partager et qui le questionne. Une fois le récit
sur soi: « Pour que le sujet de l’inconscient terminé, le groupe pose des questions fac-
garde sa forme spécifique d’existence, il est tuelles pour que des éléments soient précisés.
nécessaire que la psychanalyse déploie les Suit un deuxième temps, où l’étudiant qui a
conditions de son opérativité » (RECALCATI, partagé la situation reste à l’écoute sans in-
2010).4 Cette citation permet de surligner au tervenir, pendant que les autres participants
fond le statut d’engagement nécessaire pour dégagent des pistes de lecture de la situation.
qu’une « rencontre » avec le sujet soit possible, Il reprend ensuite la parole pour revenir sur la
donnant à l’analyste une fonction très active. situation initiale à partir des retours du groupe.
C’est donc à partir de ces quelques fon- Ce n’est qu’à la fin, dans un troisième temps,
dements que nous avons conçu ce dispositif que les deux animateurs interviennent pour
d’analyse clinique des pratiques profession- surligner certains éléments amenés tout au
nelles, avec les références qui sont les nôtres. La long des échanges et éventuellement les relier
forme que nous allons présenter est détermi- à des aspects théoriques, un choix qui est pour
née aussi par le fait que ces groupes se tiennent nous dicté par le fait que ces groupes sont in-
dans le cadre de nos formations universitaires. tégrés dans des formations à l’université. C’est
Chacun de nous anime ces groupes dans ces une occasion pour que des notions qui ont été
propres cursus universitaires, mais nous avons abordées dans d’autres cours de la formation
pu faire l’expérience de la co-animation pen- soient reprises dans la pratique, permettant
dant deux ans consécutifs au Luxembourg, dans ainsi que « quelque chose de la psychanalyse »
le cadre de la formation des enseignants qui soit transmis à l’université (FREUD, 1984). Au
souhaitent devenir conseillers pédagogiques. début de chaque séance, les participants qui
Cette expérience nous a permis de partager et ont présenté une situation la fois précédente,
de co-construire une façon proche d’animer peuvent prendre la parole pour partager des
ces groupes, et de réfléchir ensemble aux défis éléments de réflexion, ou encore des questions
éthiques et politiques d’une psychanalyse à restées en suspens.
l’université. La scansion, lors de ces différentes phases,
a une fonction particulière et chaque temps
Prendre le temps de: voir, est porté par des actions différentes, ayant des
effets spécifiques. Mais pour toutes ses phases,
comprendre, conclure il y a un facteur commun: le fait de prendre
Nous présenterons dans ce qui suit les diffé- le temps, justement, pour créer un écart avec
rentes phases de ce dispositif en essayant d’en le temps accéléré de notre modernité (ROSA,
donner les enjeux. 2010), de la réaction à la place de la réponse,
Après avoir présenté le cadre du travail du tout et tout de suite de l’impératif à la jouis-
aux participants et rappelé les règles fon- sance. Ces phases5 permettent de travailler sur
damentales du fonctionnement qui sont la différentes opérations qui sont au cœur de l’art
confidentialité de ce qui se dit, l’abstention de d’enseigner et d’éduquer par les différences
4 Traduit librement de l’italien, version numérique de l’ou- 5 Nous avons décrit ce dispositif dans un article publié en
vrage. 2018 (PIRONE; WEBER, 2018).
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Le travail de parole avec les enseignants : un rempart face aux nouvelles formes de fatigue subjective
actions qui sont engagées. L’action de raconter, situations professionnelles qui les mettent en
celle que Ricœur appelait la capacité de faire ré- souffrance ou encore qu’ils ont vécues comme
cit (RICŒUR, 2004), avec les opérations qui en des échecs. Le travail d’élaboration doit per-
découlent: rassembler; s’inclure dans la scène mettre de dépasser une position de culpabilité,
vécue ; s’adresser à un autre. L’action d’écouter, parfois paralysante, parfois point de jouissance,
capacité d’écouter l’autre, et de s’entendre dire. pour essayer de comprendre autrement ce qui
L’action de partager: être avec les autres dans a pu se jouer à un certain moment et dans un
un groupe. Et pour finir, l’action de dire: faire lieu précis. Un des points importants de ce type
retour à soi, s’entendre parler; chercher des de travail est d’aider les praticiens à dépasser
pistes de lecture, non pas des interprétations, des formes de répétitions du même, où ça
non pas des bribes d’analyse sauvage, mais tourne en rond.
des propositions de lecture ouvrant sur la Mais ce que nous souhaitons pointer dans
suite symbolisant un point de désir au-delà. le fil de notre réflexion, c’est le fait que dans la
Ces opérations représentent pour nous des répétition du même, les sujets donnent souvent
temps logiques de subjectivation que nous l’impression de ne pas croire qu’ils ont d’autres
pouvons comparer aux temps logiques que choix, comme s’ils subissaient quelque chose
Lacan présente avec le fameux sophisme des d’inéluctable. D’où notre invitation à se situer,
prisonniers: l’instant de voir, le temps pour dans le sens d’expliciter l’événement qui a
comprendre et le moment de conclure (LACAN, marqué une rupture en faisant un travail de
1966). nomination. Le but en est de ne pas laisser
Le premier temps, c’est le temps du récit. « tomber » le sujet dans un espace imaginaire
Nous demandons au participant qui veut atemporel et sans contours, et par conséquent
mettre au travail une situation qu’il doit avoir sans possibilités de changement. Il s’agit de
vécue lui-même, de la raconter à la première convoquer le sujet dans ce lieu de parole. Ins-
personne, de la façon la plus détaillée possible. tant de voir.
L’invitation faite aux participants de « racon- Dans le deuxième temps, l’étudiant qui a
ter » une situation vise à soutenir ce travail raconté écoute, et ceux qui ont écouté peuvent
de rassemblement et d’adresse aux autres, et parler. Écouter sans forcément dire quelque
permet de soutenir un déplacement vers une chose, c’est un apprentissage, une action.
position active dans le dire. Souvent, dans une C’est une des capacités fondamentales dans
modalité peut-être aussi défensive, les partici- les métiers où la relation à l’autre est centrale,
pants choisissent de rapporter quelque chose capacité de laisser place à l’inconnu, à l’altérité,
qui se répète: nous leur proposons alors de à l’énigme. Le groupe est alors invité à proposer
choisir un moment précis dans la répétition. des pistes de réflexion. Pas de jugement, c’est la
Quand, par exemple, le participant dit « ça se règle du dispositif. Proposer activement, signi-
passe tous les jours », nous les invitons à faire fie ouvrir des perspectives et non pas réécrire
un effort fictionnel, et à choisir un jour en par- une histoire d’une autre façon. Être tourné
ticulier; ou bien encore à choisir un fragment, toujours vers l’avenir, c’est un enjeu éthique.
un événement précis, si la description prend Ce deuxième temps se termine avec la prise de
le pas sur la narration. Nous invitons celui qui parole du participant qui a partagé la situation
parle à dessiner les bords de la situation choisie et qui intervient suite aux pistes dégagées par
par des marqueurs temporels et spatiaux. C’est les autres étudiants. Temps de comprendre.
pour nous un acte de ponctuation, et c’est déjà Suit le troisième temps, les animateurs, qui
là, dès ces premiers instants, un travail de scan- ont jusque-là écouté et accompagné la scansion
sion permettant au sujet de s’entendre dire. Les entre les différentes phases, prennent alors la
participants présentent essentiellement des parole pour la restituer au groupe. Il s’agit de
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re-dire, dans le sens de refaire un tour dans les reurs lui ne les voyait pas du tout comme telles.
échanges, de pointer des signifiants, surligner Ses arguments ne convainquent pas le futur
ce qui a été dit avec d’autres mots. Il ne s’agit conseiller pédagogique. Les voilà alors dans
pas d’interpréter, et non plus de donner des une impasse, assujetti à un discours érigé pour
significations, d’expliquer, ou encore d’indiquer l’un en discours de maître et pour l’autre en dis-
comment agir. Surligner signifie pointer les cours universitaire, l’un contre l’autre, savoir
enjeux, et leur complexité. Moment de conclure, contre savoir, dans une forme spéculaire. Sans
temps d’ouverture. subjectivation et distance critique, on risque
Il s’agit dans ce type de dispositif de parier de ne plus tenir sa place, place de passeur, et
sur le sujet à-venir. À partir de ce travail sur une de bloquer toute transmission. Même un dis-
rencontre avec l’imprévu et sur l’expérience cours comme celui de l’autonomie peut finir
du trou dans le savoir, ce qu’on vise, c’est que par laisser l’élève ou le stagiaire abandonné
chacun découvre sa part de responsabilité par à soi-même, c’est-à-dire à sa jouissance. Tout
rapport à l’événement vécu. Une démarche qui le travail du dispositif d’analyse clinique des
va à l’encontre des processus de victimisation situations professionnelles consiste alors dans
et de déresponsabilisation subjective produits ce cas, à essayer de faire entendre cette position
par les nouveaux discours. C’est à partir de de maîtrise, de savoir-pouvoir, pour qu’une
cette écoute que nous accueillons les situa- rencontre à l’avenir avec les futurs stagiaires
tions amenées par les enseignants. Comme soit possible.
par exemple, quand un enseignant en for- Ces positions paradoxales du sujet tiraillé
mation pour devenir conseiller pédagogique, entre les discours éducatifs actuels et ses
raconte à une séance du groupe d’analyse des propres jouissances émergent très souvent
pratiques professionnelles les difficultés qu’il aussi dans les situations que les enseignants
rencontre avec le stagiaire qu’il accompagne, amènent autour des questions touchant à
et qui est donc en formation pour devenir en- l’inclusion scolaire. Voici un exemple parmi
seignant à son tour. Ces difficultés se répètent: d’autres: une enseignante nous raconte sa dif-
il devrait y en avoir seulement un qui sait, le ficulté à mener dans sa classe un travail d’inclu-
futur conseiller pédagogique, mais l’autre sion d’un élève diagnostiqué à haut potentiel. Il
n’en veut pas de ce savoir, il sait aussi. Nous présente, selon les dires de l’enseignante, des
encourageons l’étudiant à choisir un moment comportements de plus en plus dérangeants en
en particulier dans cette série qu’il raconte: il classe, et il a de nombreux suivis à l’extérieur de
décide alors de mettre au travail un moment l’école. Ce qui pose problème à l’enseignante,
d’échange entre lui et son stagiaire, après que c’est son indiscipline et le traitement différent
le stagiaire a tenu une leçon devant la classe, dont il bénéficie par rapport aux autres enfants.
c’est le moment dudit debriefing. En respectant Le groupe des étudiants que nous accompa-
les nouvelles injonctions à l’autonomie, qui gnons s’arrête longuement sur ce point, sur la
suivent leur cours en parallèle avec celles sur difficulté de cette enseignante de ne pas savoir
la bienveillance, l’accompagnateur essaye par comment expliquer aux autres élèves pourquoi
tous les moyens de faire réfléchir son stagiaire elle traite différemment cet enfant en particu-
sur certaines situations de sa leçon, il ne (le) lier. Difficulté probablement à dire l’impossible
lâche pas. Il faut qu’il trouve « de façon auto- qui se joue dans cette soi-disant différence,
nome » ses erreurs, et plus précisément ceux difficulté à lier par la parole les affects de cette
que l’accompagnateur a repérées. Joli exemple rencontre avec l’altérité. L’enjeu du travail a été
des paradoxes éducatifs contemporains! Sauf de permettre à l’étudiante de pouvoir exprimer
que le stagiaire aussi se positionnait comme son désir et d’entendre les défis qui se posent
quelqu’un qui sait comment faire, et ces er- face à cette altérité, point que les élèves de la
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Le travail de parole avec les enseignants : un rempart face aux nouvelles formes de fatigue subjective
classe où elle travaille n’avait pas manqué de nous engageons avec notre désir. C’est ainsi que
questionner. nous suscitons le transfert des participants.
C’est à travers la rencontre avec l’analyste et
S’engager, rencontrer les Autres que la demande et en fin de compte
le désir des étudiants sont suscités. La dyna-
Le travail sur des situations transféren- mique aide les participants à « dé-couvrir »
tielles complexes permet d’inter-peller les les trous, à s’approcher du vide originaire, à se
enseignants en formation pour qu’ils puissent rendre compte finalement de la pulsion de mort
trouver comment faire avec les interdits fon- (WEBER; VOYNOVA, 2020) qui déstabilise tout
damentaux, les impossibles, et pour qu’ils se système, tout semblant de Grand Autre. L’assu-
déplacent et s’ouvrent au désir. En se rendant mer, c’est une des conditions pour risquer vivre
compte des transferts, des dépendances quand des conflits et en débattre.
on met l’Autre à une place de sujet supposé Ce type de travail joint éthique et politique,
savoir ou de sujet supposé non savoir, les étu- et en effet, la démocratie se construit sur du
diants s’entre-aident pour sortir en commun vide, de l’incertitude (LEFORT, 1986, p. 29). À
d’une impasse. Ce travail psychanalytique nous d’inventer des parcours de vie et d’édu-
constitue un défi et un engagement éthique cation, à condition d’accepter de faire avec
pour tous ceux qui y participent. « Le statut de l’impossible, en passant d’un discours à l’autre,
l’inconscient […] est éthique », affirmait Lacan comme nous le propose Lacan.
(1973, p. 34), et nous en sommes responsables:
« là où c’était, le je dois advenir ». Voilà une des
raisons qui fait que l’être humain résiste à ce Bibliographie
travail analytique et préfère se laisser morali- ARENDT, H. La condition de l’homme moderne.
ser, voire sadiser, par des soi-disant certitudes. Paris: Calman-Lévy, 1983.
Se confronter au désir et au discours de l’Autre BAUMAN, Z. La vita in frammenti. La morale senza
aide les interlocuteurs à se positionner comme etica del nostro tempo. Roma: Castelvecchi, 2018.
sujet, à sortir de leurs enfermements et idéo- BLANCHARD-LAVILLE, C.; FABLET, D. (éd.) Sources
logies. La rencontre permet de sortir de ses théoriques et techniques de l’analyse des pra-
propres souffrances du langage, de s’arracher tiques professionnelles. Paris: L’Harmattan, 2001.
à cette souffrance en passant par la parole. Ou- CIFALI, M. Le lien éducatif: contre-jour psychana-
vert aux retours de l’autre nous finissons par lytique. Paris: PUF, 1994.
mieux comprendre notre propre jouissance en
DERRIDA, J. Marge de la philosophie. Paris: Les
jeu dans les échanges. Éditions de Minuit, 1972.
Le sujet ne se retrouve que là où l’être parlant
DOUVILLE, O. Pour introduire l’idée d’une mélan-
fait le pari du sujet, là où il ose être à l’écoute de colisation du lien social. Cliniques méditérra-
sa parole et de son corps. Ceci constitue un défi néennes, n. 63, p. 239-262, 2001.
singulier, au cœur de la tâche de l’éducateur.
DUBOIS, A.; BLANCHARD-LAVILLE, C.; LERNER, S.
En tant qu’être parlant adulte et professionnel, Groupes d’analyse des pratiques pour enseignants.
nous sommes des inter-locuteurs, ceux qui Mise en perspective de trois dispositifs inspirés du
aident l’autre à s’exprimer, à s’expérimenter, à “groupe Balint”. Revue de Psychothérapie Psy-
oser le pari de « dia-loguer », afin qu’un sujet chanalytique de Groupe, n. 1, p. 115-130, 2017.
de désir puisse émerger et poursuivre au-delà. FREUD, S. Doit-on enseigner la psychanalyse à
Il s’agit finalement de créer un lien entre sujets l’Université ? Dans Résultats, idées, problèmes
qui assument leur responsabilité par rapport I. Paris: PUF, 1984. p. 239-242.
aux discours, aux pratiques et à leurs actes. En FREUD, S. Malaise dans la civilisation. Paris: Payot
tant qu’analystes qui cadrent un tel travail nous & Rivages, 2010.
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Ilaria Pirone; Jean-Marie Weber
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
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Trajetórias subjetivas na experiência de formação
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p158-175
TRAJETÓRIAS SUBJETIVAS NA
EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO1
Carla Nunes Vieira Tavares (UFU)*
https://orcid.org/0000-0002-5156-0150
RESUMO
Abordando a formação docente por meio da divisão subjetiva, que impede a
integralização de conhecimentos ou a totalização de toda e qualquer prática
educativa, este artigo discute os resultados de uma pesquisa-intervenção de
orientação psicanalítica com professores pré-serviço e em serviço, apoiando-se
na articulação entre relação com o saber, experiência e transmissão, conforme
concebidas no campo da Psicanálise e Educação. Por meio da oferta da palavra
aos participantes em diferentes formatos, a pesquisa propiciou momentos
de suspensão de certezas subjetivas por meio de intervenções e pontuações,
objetivando permitir aos professores uma (re)apropriação da posição docente.
A análise do corpus contemplou os movimentos subjetivos nessa direção, por
meio do que denominei relatos de experiência. Por meio da narrativização das
intervenções e de seus efeitos sobre os participantes, os relatos cartografaram
os pontos em torno dos quais indiciou-se a construção de um saber particular
sobre a docência e a inscrição no sujeito de algo da ordem de uma transmissão.
Configurou-se, assim, a relação entre espaços de fala-escuta e a instauração da
experiência como desencadeadores de trajetórias formativas marcadas pelo
investimento subjetivo e, portanto, marcadas por uma significativa relação com
o saber.
Palavras-chave: Experiência formativa. Relação com o saber. Transmissão.
Formação de professores. Psicanálise
ABSTRACT
SUBJECTIVE TRAJECTORIES IN THE TRAINING EXPERIENCE
Approaching teacher training focusing the subjective division, which prevents
the integration of knowledge or the totalization of any educational practices,
this article discusses the results of a psychoanalytic-oriented research that
intervened in pre-service and in-service teachers. The theoretic premises are
supported by the articulation between the relation to knowledge, experience
and transmission, as conceived in the field of Psychoanalysis and Education. By
1 Agradeço a leitura detalhada e as sugestões da Profa. Dra. Nádia Laguárdia de Lima, supervisora do estágio de pós-doutora-
mento que resultou neste trabalho. Esta pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos (CEP)
da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em 2019.
* Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e em Ciências da Linguagem pela
Université de Franche-Comté, FR. Professora Associada do Instituto de Letras e Linguística, Programa de Pós-Graduação em
Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: carlatav@ufu.br
158 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 158-175, out./dez. 2020
Carla Nunes Vieira Tavares
RESUMEN
TRAYECTORIAS SUBJETIVAS EN LA EXPERIENCIA DE FORMACIÓN
Al acercarse a la formación del profesorado a través de la división subjetiva,
que impide la integración del conocimiento o la totalización de las prácticas
educativas, este artículo analiza los resultados de una intervención de
investigación orientada a la psicoanálisis con docentes pre servicio y en servicio.
Las premisas teóricas son guiadas por la articulación entre la relación con el
saber, la experiencia y la transmisión, tal como se concibe en el campo del
psicoanálisis y la educación. Al ofrecer la palabra a los participantes en diferentes
formatos, la investigación proporcionó momentos de suspensión de certezas
subjetivas a través de intervenciones, con el objetivo de permitir a los maestros
(re)apropiarse de la posición de enseñanza. El análisis del corpus contempló los
movimientos subjetivos en esta dirección, a través de lo que llamé informes de
experiencia. A través de la narrativización de las intervenciones y sus efectos
en los participantes, los informes mapearon los puntos alrededor de los cuales
se indicó la construcción de un conocimiento particular sobre la enseñanza y
la inscripción en el tema de algo del orden de una transmisión. Así, la relación
entre los espacios de escucha oral y el establecimiento de la experiencia se
configuraron como desencadenantes de trayectorias formativas marcadas por
la inversión subjetiva y, por lo tanto, marcadas por una relación significativa
con el saber.
Palabras clave: Experiencia formativa. Relación con el saber. Transmisión.
Formación del profesorado. Psicoanálisis
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pela pesquisa dava indícios da apropriação da quais o relato de experiência tal como propo-
posição docente como resultado de um (não) nho se constitui. Por fim, apresento um relato
saber, flagrando rastros das trajetórias subje- de experiência, resultado de meus gestos de
tivas traçadas pelos professores. Delineava-se interpretação sobre o corpus, no qual a narra-
no corpus uma articulação entre experiência tivização da experiência delineia as trajetórias
subjetiva e transmissão, que me convocava a subjetivas na construção dessa relação com o
discutir os modos particulares de apr(e)ender saber, diante das intervenções. Elas permitiram
o saber naquele processo de formação. Nascia, desalojar algumas certezas, instaurando um
nesta articulação, a possibilidade de analisar espaço de reflexão que ensejou a emergência
recortes desse processo de formação em forma de um outro saber sobre o sujeito e sobre os
de relatos de experiência. modos de apropriação da posição de professor.
Enquanto um gênero textual acadêmico,
o relato de experiência refere-se a um texto
descritivo de uma prática ou experimento em-
1 Experiência, transmissão e
píricos, cuja ênfase recai nos procedimentos da relação com o saber
pesquisa e seus resultados. Nas ciências huma-
Em uma conhecida proposição, Larrosa
nas, especificamente na Linguística Aplicada e
(2011, p. 5, grifo do autor) afirma que a expe-
na Educação, campos aos quais me filio como
riência é “isso que me passa”.4 Essa formulação
pesquisadora e professora, esse gênero é muito
interessou à pesquisa, porque a formação
comum em pesquisas etnográficas e narrati-
docente desencadeia processos de ensino
vas. A diferença entre o relato de experiência
-aprendizagem nos quais seja instaurada uma
tal como é discutido neste trabalho e aquele
relação do sujeito com o saber, marcada pela
encontrado nessas pesquisas é a consideração
incompletude, pelo laço com o outro e pela im-
da divisão subjetiva e a tentativa de bordejar
previsibilidade. Esses três fatores me parecem
o real por meio da imbricação do simbólico e
referidos na grafia do pronome demonstrativo
do imaginário em sua escrita, que materializa
“isso”, aludindo tanto a algo indeterminável e,
gestos de interpretação. Por sua vez, esses ges-
portanto, impossível de ser totalizado; como
tos também delineiam trajetórias e cartografias
ao substantivo Isso (Id, em alemão), em uma
que mapeiam e/ou indicam o entrecruzamento
clara remissão ao inconsciente e como ele é
da subjetividade na pesquisa.
referido na psicanálise freudo-lacaniana. De
Considerando a formação de professores
fato, Bondía (2002) e Larrosa (2011) propõem
como um processo que pode engendrar a
que a relação com o saber necessariamente
experiência implicada subjetivamente com o
demanda algo de uma experiência do sujeito
saber, sustentada no não-saber inconsciente, a
com o objeto de saber, pois é ela que possibilita
análise cartografada nos relatos de experiência
ao sujeito dar sentido “ao acontecer que nos
enfocou o trabalho subjetivo em jogo sobre o
acontece” (BONDÍA, 2002, p. 27).
conhecimento formalizado sobre a docência.
A noção de relação com o saber advém do
Neles trilhei os movimentos para a construção
trabalho dos pesquisadores ligados ao Centre
de um saber particular e a inscrição no sujeito
de Recherche Éducation et Formation (CREF)
de algo da ordem de uma transmissão. Por isso,
(BEILLEROT; BLANCHARD-LAVILLE; MOSCO-
neste artigo, abordo, inicialmente, a formação
NI, 1996) e vem sendo desenvolvida no Brasil
de professores sob a perspectiva da Psicaná-
no campo da Psicanálise e Educação. A relação
lise e Educação e das Ciências da Educação,
enfocando a articulação entre experiência, 4 Larrosa (2011) grafa o pronome demonstrativo indefinido
“isso” em itálico para referenciar o real, registro do ina-
relação com o saber e transmissão. Em segui- preensível e não representável pela linguagem, que retorna
da, discorro sobre as bases teóricas sobre as atravessando o sujeito e sua relação com o mundo.
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lação com o saber, muitas vezes resultante de escrita dos relatos perscrutou essa via faltosa,
intervenções. Seus efeitos foram analisados nos porém perceptível, focando dois vértices. O
relatos de experiência. primeiro buscou as regularidades discursivas
Os relatos de experiência propiciaram uma produzidas por meio do que era recorrente no
escrita que reflete meus gestos de interpre- material de análise e analisou o campo do dizer
tação sobre o corpus da pesquisa e estava produzido na pesquisa, a fim de problematizar
intrinsicamente afetada pela minha própria os modos pelos quais o sujeito se posiciona em
divisão subjetiva. Seguiram, portanto, uma relação a elas. O segundo vértice privilegiou o
orientação clínica psicanalítica e o recorte equívoco, o não-dito, o riso, o espanto, o es-
sobre o objeto da pesquisa, a circulação da tranhamento, enfim, marcas do não-saber na
palavra e seus efeitos sobre o sujeito foi dado a experiência de formação. A narrativização foi
partir de uma escuta analítica e de meus gestos a via que permitiu articular essas marcas do
interpretativos. Entretanto, embora fortemente material de análise, indiciadoras da experiência
influenciados pela indicação freudiana sobre na formação, pois, como afirma Reis (2015, p.
a escrita de casos clínicos (FREUD, 1996), os 23), com base nos trabalhos lacanianos:
relatos de experiência não constituem relatos [...] narrar é um modo de se aproximar dela [da
de caso, tais como concebidos pela psicanáli- experiência], de recriá-la ou de criar algo novo
se, pois não se construíram em torno de um a partir do reconhecimento de sua perda. ‘O real
enigma subjetivo e não se circunscreveram à é o limite de nossa experiência’ (LACAN, 1957,
teoria psicanalítica como foco.8 Eles discutem p. 52); e, assim, toda fronteira, toda demarcação
entre dois espaços, toda relação do sujeito com
os efeitos das intervenções realizadas durante
o outro, com os objetos, ao longo da vida, estará
o período de formação docente compreendido sempre afetada por essa dificuldade, por esse
pela pesquisa, dando ênfase ao percurso sub- inefável da noção de experiência, postulando
jetivo dos professores na relação com o saber. ‘a incoerência como condição da experiência’.
Trilham, ainda, os pontos em torno dos quais (LACAN, 1936/1998, p. 85).
foi possível configurar-se a experiência forma- A segunda questão a ser retomada quanto
tiva dos professores e os indícios de transmis- à experiência formativa concerne aos modos
são. Persegui, então, questões que emergiram como a relação com o saber podem afetar o
nos espaços de palavra acerca dos sujeitos e sujeito, transformando-lhe, fornecendo-lhe
sua relação com o saber, em torno das quais outros contornos, (re)acomodando traços não
fosse possível tecer não só articulações com a
simbolizados, ensejando, assim, a transmissibi-
teoria psicanalítica, mas, também, convocar a
lidade de algo da experiência. Contudo, nesse
Educação e a Linguística Aplicada para, assim,
processo, o sujeito pode experimentar a perda,
trilhar a experiência formativa dos professores.
como assinala Reis (2015, p. 18, grifo do autor):
Recupero, então, algumas questões da noção
de experiência mobilizada neste trabalho. A É importante destacar que o caráter transforma-
dor da experiência surge como signo também de
primeira refere-se ao seu caráter não integrali- uma perda. Algo deixa de ser como era e passa a
zável. Algo da experiência resiste à significação, existir, modificado e alterado. Portanto, a perda
permanecendo perdido. É justamente essa par- é signo da transformação assim como a trans-
cela indiscernível da experiência que provê as formação é signo da experiência.
condições de sua transmissibilidade, visto que Os fios narrativos do relato de experiência se
abre ao sujeito uma via para elaborá-la. Minha tecem, também, em torno da elaboração dessa
8 Zanetti e Kupfer (2006) e Franke e Silva (2012) defendem perda desencadeadora da transformação. O
que o relato de caso requer que sua escrita delineie um sujeito agarra-se à rede significante, indiciada
enigma do sujeito em foco, dele se valendo para fazer
operar a teoria psicanalítica por meio de seus princípios
pelas recorrências discursivas presentes no di-
norteadores. zer, apontando para as identificações nas quais
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justamente a falta da falta simbólica que a de- professores de língua inglesa. Ou seja, nem tudo
sencadeia (LACAN, 2005). Então, será que os é o que parece. Não há professor herói, nem um
professores em formação dariam conta de mo- fracasso total destituidor da escola.
dalizar o ideal, ou seja, disso que dele destoa? Na circulação do dizer nos espaços de pala-
Essa interrogação silenciosa ficou no ar nos vra, foi possível ver o deslocamento da posição
primeiros espaços de palavra e pode ter desen- de impotência dar lugar à dimensão da impos-
cadeado um primeiro momento de suspensão sibilidade (LACAN, 2005). A improbabilidade
da certeza quanto à imagem de professor. de um ideal ou de uma imagem idealizada
Remeto-me aos três tempos lógicos propostos implica que algo de possível acontece em sala
por Lacan (1998a) que se referem a momentos de aula. Essa constatação parece óbvia, mas
temporais do sujeito: os instantes de ver, o tem- não é, se considerado o quadro de desalento e
po de compreender e o momento de concluir. de cessão do desejo que assola professores na
Eles assinalam o papel fundamental da lógica educação pública (PEREIRA, 2016).
coletiva para precipitar uma asserção subjetiva. A partir desse primeiro instante, as inter-
Explico. venções dos professores e a decorrente con-
Antes das observações, ser professor versa sobre esses momentos nos espaços de
remetia a uma imagem caracterizada pela palavra proveram um furo nesse ideal de (im)
desorganização, ineficácia e insucesso. O que perfeição. As trocas linguageiras provenientes
se faz diante disso? Uma resposta possível é a de posições discursivas sujeito diferentes do
paralisação impotente. Entretanto, o processo sujeito – professor em formação e professor
de experimentar a sala de aula de uma outra em serviço – instauravam contraditórias lentes
posição, a de observadores e professores em sobre a imagem de professor e, consequente-
formação, possibilitou uma reconfiguração mente, presentificavam a falta no Outro. Nessa
dessa imagem, entretecida na surpresa diante rica troca de perspectivas instituiu-se uma
da prática do professor em serviço, seus re- dialogicidade na qual a imagem de professor foi
sultados e na remissão aos fios discursivos da desestabilizada e uma interrogação instituída:
formação do Curso de Letras. Afinal, o que é isso: ser professor? O que é isso:
Erigia-se ali um ideal, referido à educação ensinar uma língua estrangeira em uma escola
na modernidade, que apontava para o domí- pública? Essas foram questões que instauraram
nio, controle dos resultados e a produção de a condição para o tempo subjetivo de com-
conhecimentos. Ainda que tanto a imagem do preender a experiência de professor, segundo
fracasso como a do sucesso remetessem para tempo lógico do sujeito (LACAN, 1998a). No
a polaridade do “ou tudo ou nada” – o super exercício da docência compartilhado com o
professor ou o professor de mentirinha,10 o professor em serviço, os professores em for-
ideário de educação da modernidade, da ordem mação empreenderam movimentos na direção
do impossível (FREUD, 1996) –, não deixava de encontrar outros referenciais no campo do
de cumprir sua função, qual seja, propiciar Outro aos quais eles se identificavam como
um eixo identificatório em torno do qual os professores.
professores em formação pudessem investir. No primeiro espaço de palavra, após a pri-
O professor em serviço foi colocado como uma meira aula que Linda11 e Alba, sua parceira de
referência imaginária e simbólica de mestria, projeto, dirigiram em conjunto com o professor
em torno da qual os formandos puderam se em serviço, elas diziam estar muito satisfeitas
capturar em um primeiro instante de verem-se porque “tudo deu certinho, conforme a gente
planejou!”. Ao que perguntei: “O que mostrou
10 Sobre essa adjetivação do professor e os efeitos de sentido
que ela produz na memória discursiva dos professores em 11 Todos os nomes são fictícios para proteger o anonimato
formação, remeto a Tavares (2010). dos participantes da pesquisa.
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pra vocês que TUDO12 deu certo?” Em meio do professor no campo do Outro, provendo-lhe,
ao riso, Linda confessou: “Ah, que eu me senti assim, um sentido e uma entrada na assunção
bem.” E imediatamente corrigiu: “Não, que os da posição docente. A alienação, como uma
alunos estavam participando, que eles entende- das operações de constituição do sujeito, se
ram.” Em outra ocasião, rindo, ela confessa: “Ah, desencadeia pela falta radical de identidade.
quando a Carla e o X13 estão sorrindo é porque Cada vez que o furo na linguagem se eviden-
a gente tá fazendo certo.” Por fim, declarou: “Eu cia para o sujeito, confrontando-o com o real,
tenho um novo favorito!”: um aluno que nunca pode instalar-se no sujeito um movimento
participava das aulas, cujo nome o professor de alienar-se no Outro em busca de sentidos
em serviço teve dificuldade de lembrar. Bella e que lhe provejam uma ancoragem. A rede de
Claire, outra dupla de professoras em formação, significantes resultante da alienação provê um
também vibraram com o alcance da proposta campo imaginário com certa consistência que
pedagógica na primeira aula. Elas trabalhavam sustenta a constituição da instância egóica.
com tirinhas de histórias em quadrinhos (HQ) No caso dessa pesquisa, ver-se capturado pela
e Bella insistiu em falar em inglês o máximo aprovação dos alunos e dos professores su-
possível, convidando e motivando os alunos pervisores proveria uma primeira ancoragem
a responderem, valendo-se do que sabiam da para a constituição identitária de professor.
língua. Alguns conseguiram, os alunos “pro- A possibilidade de o sujeito constituir para si
blemáticos” deram algumas tréguas na “indis- uma imagem se dá pelo olhar do Outro, pela
ciplina” e a aula cumpriu muito do planejado. invocação desse campo endereçada ao sujei-
Outro ponto significativo na implementação to, provendo-lhe tanto uma imagem como um
da proposta delas foi a mudança abrupta da campo de significantes ao qual se alienar. As
dinâmica de regência. Havia sido combinado respostas de Linda parecem flagrar esse enla-
que os professores em formação dariam as ce do sujeito simultaneamente à imagem e ao
aulas em parceria com o professor em serviço, significante do desejo do Outro, provendo-lhe
pois o projeto não estava atrelado ao estágio uma possível entrada na posição de professora
supervisionado, impossibilitando-lhes legal- tanto pelo efeito que suas ações despertavam
mente assumir a regência. Entretanto, ao entrar nos alunos, como por um afeto indizível per-
na sala do 7º ano, Bella anunciou ao professor: ceptível em seu “sentir-se bem”. Entretanto, é
“Pode deixar que a gente vai fazer tudo.”14 O preciso lembrar que na alienação à aprovação
engajamento dos alunos, nestes casos, teve dos alunos reside o risco de ficar-se refém do
o valor de uma aprovação, uma chancela da Outro. Para sustentar-se na posição docente, o
ocupação desses professores em formação na professor precisa autorizar-se nesse lugar, por
posição docente. meio de sua relação com o saber, sua inscrição
A primeira vez diante de uma sala de aula nesse campo, pois sua prática também se cons-
presentifica um confronto com o inesperado, tituirá de frustrações. Assim, no percurso de
com o insólito desconhecido. “Como vai ser Linda, a separação precisaria incidir.
isso?”, se perguntava Claire. A aprovação e o Outro elemento significativo no percurso
engajamento dos alunos nas atividades pare- subjetivo dos professores em formação e que
cem ter constituído uma evidência de captura parece ter surtido efeitos no momento de com-
preender algo da docência foi o planejamento
12 A grafia em caixa alta indica uma ênfase na fala. das aulas. Ele aparecia como referenciador de
13 “X” refere-se ao professor em serviço, parceiro do projeto
e, também, participante da pesquisa. um primeiro movimento de apropriação de
14 É preciso dizer que o professor em serviço acompanhou algo dessa instância imaginária de professor. Os
todas as aulas, colaborou e interviu sempre que necessário.
Contudo, chama a atenção a ilusão de completude marcada
planos de aula resultantes desse momento da
pelo “tudo” na asserção de Bella. formação foram muito valorizados por alguns
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dos professores em formação, assumindo para sempre vai ter algo na escola com o potencial
eles a garantia de sucesso da aula. A valoriza- de ‘atrapalhar’ meu planejamento. E essas ati-
ção do planejamento resultou da percepção vidades que ‘atrapalham’ são essenciais para
os alunos também, a maioria delas tem algum
do trabalho árduo para executá-lo e de um potencial e propósito educativo; a escola é mais
possível engajamento compromissado com o que só a sala de aula.
saber para que fosse exequível e sustentasse,
de algum modo, as ações dos professores em Para Alba, foi possível encontrar, ao menos
formação em sua atuação. Além disso, os pla- nesse momento da formação, sentidos mais
nos de unidade e de aulas demonstravam seu plausíveis para a docência que não se prestar
esforço para efetivar propostas pedagógicas a agradar o outro e depender dessa aprovação
“prazerosas”. Consequentemente, quando as para sustentar sua posição, resultando na cons-
propostas não se efetivavam como esperado trução de um saber que considera uma falha
ou algumas aulas foram canceladas devido a estrutural em si mesmo.
atividades extraclasse promovidas pela escola, Em um dos espaços de palavra, outros pro-
os professores em formação experimentavam fessores em formação também se mostraram
a decepção, como expresso por Alba em seu descontentes por imprevistos nos planejamen-
memorial reflexivo: tos. Duas aulas, ministradas por Marcelo e a
dupla de Claire e Bella, respectivamente, não
Quando minhas aulas foram cortadas pela me-
“deram certo”, como eles avaliaram. Os alunos
tade ou canceladas eu me senti muito frustrada,
na minha cabeça era como se os planos de aula não conseguiram executar parte do que eles
estivessem indo por água abaixo, que eu teria propuseram devido à complexidade das tare-
que mudar tudo (eu realmente mudei algumas fas ou por decisões quanto à dinâmica de sala
coisas), que meu trabalho e esforço estavam de aula que produziram uma desorganização
sendo jogados fora. inibidora da produção prevista. As aulas fo-
Parece ter se configurado para Alba que ram marcadas por disrupturas na sequência
o professor não é indispensável. A imagem proposta nos planos. Ambas estavam baseadas
idealizada de professor e de ensino impossibi- em dinâmicas de trabalho em grupo. Todavia,
litava que ela lidasse com os impasses e com o na aula de Claire e Bella os alunos formaram
imprevisível, constitutivos da prática docente. grupos entre os amigos e houve muita conver-
Talvez aí possa ter se configurado uma primeira sa e dispersão. As professoras em formação
fissura na dependência de aprovação e na ima- tentaram motivá-los a se engajar na proposta,
gem idealizada de professor. Quando a palavra mas com pouco resultado. Essas são situações
falha em instituir a falta, a contingência pode comuns no dia a dia do professor, mas causa-
funcionar como intervenção e provocar um ram frustração nos professores em formação.
efeito subjetivante, como parece ter acontecido A indagação de abertura do espaço de pala-
com Alba, registrado em outro trecho de seu vra daquele dia partiu do professor em serviço,
memorial reflexivo: que, de cara, se dirigiu a Marcelo, Claire e Bella
Bom, agora eu percebo que foi inútil me sentir em tom polido, mas incisivo: “Vocês ficaram
assim, não era uma situação que estava nas satisfeitas com a aula?” Marcelo ficou silencioso
minhas mãos, um pouco de chateação é ok, mas e cabisbaixo, inconformado com sua atuação e
não da forma como me senti. Acho que foi uma com a resposta dos alunos. Seu silêncio dizia,
situação com a qual pude aprender muito. Vejo possivelmente, de uma decepção. Claire e Bella
que não é um comportamento sustentável para
abanaram a cabeça. Diante da negativa, per-
quando eu finalmente for professora, estiver
inserida na realidade escolar. Se todas as vezes guntei: “Por que não?” As justificativas eram
que um imprevisto acontecer eu ficar chatea- superficiais, inicialmente: os alunos estavam
da, minha carreira não vai durar muito, já que muito dispersos, não houve tempo, demorou
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muito para formarem os grupos, dentre ou- muito dependente do prazer que suas propos-
tras. A grande queixa de Bella era que ela não tas despertavam nos alunos. Permanecendo
queria que suas aulas fossem chatas, por isso nessa via, seu ensino alinhava-se à cultura do
tentava implantar dinâmicas em grupo e outras consumo, que associa a aprendizagem ao pra-
estratégias que tornassem a aula mais “legal”. zer, elide o esforço e a confrontação inerentes
Insisti perguntando os por quês de cada um dos ao processo, foca no imediatismo e no gozo,
exemplos dados para a aula ter sido qualifica- bem como promete entregar o conhecimento
da como “desorganizada”. O professor seguiu como produto integralizável. Não há espaço
minha abordagem até que Claire admitiu: “Por- para uma relação com o saber nessa posição.
que a falta de controle partiu da gente.” Esse A intervenção visava, ainda, mostrar o engodo
me pareceu ser outro tempo de compreensão da fixação do sujeito na posição de objeto de
sobre o ser professor, resultante de efeitos sub- aprovação do Outro, a importância de fazer
jetivantes das intervenções. Configurou-se ali avançar o percurso subjetivo na direção de
uma possível desidealização do planejamento apropriar-se de um modo particular da posição
e uma implicação subjetiva, na assunção da de professor calcado no saber legitimado sobre
responsabilidade pelas escolhas, decisões ela, ou seja, promover a separação do sujeito
ou falta delas. Era preciso, porém, fornecer de sua alienação.
aos professores em formação subsídio para Ao mesmo tempo, o professor em serviço in-
elaborarem as possíveis razões para a “falta sistia na necessidade de haver uma “rotina” na
de controle”, tanto da perspectiva pedagógica sala de aula que promovesse a aprendizagem.
como subjetiva. Entretanto, nesse momento, nossas vozes eram
Dirigi-me a Marcelo e à dupla Claire e Bella, dissonantes, porque enquanto eu apontava
tecendo considerações sobre a necessidade para a impossibilidade de uma utópica apro-
de didatizar o conteúdo da língua, apontando vação total e para o risco de se ficar preso no
para conhecimentos do campo da Linguística narcisismo pela demanda de reconhecimento
Aplicada (LA) sobre ensinar uma língua es- do outro na relação pedagógica, ele se referia
trangeira. Minha posição de coordenadora do à sua prática, como que justificando-a. Nesse
projeto e formadora falava mais alto do que a de entremear de falas, o que eu menos queria era
mediadora do espaço de palavra e eu agenciava fornecer um modelo de como ser professor.
o discurso da universidade (LACAN, 1992). Então, perguntei: “Por que tem de ser bacana
Nesta lógica discursiva, eu me posicionava o tempo todo? Aprender não pode ser chato
como intermediária entre o saber legitimado também?” Depois de um breve silêncio, Claire
sobre ensino-aprendizagem de língua inglesa parece ter concluído: “É, pode ser o melhor
e os professores ocupavam a posição de ne- professor do mundo! Vai chegar uma hora que
nhum saber. A intervenção, nesse momento, vai ficar chato, os alunos vão ficar entediados.”
agenciava o saber, intentando convidar os pro- Claire, Bella, Alba e alguns outros professo-
fessores em formação a se apropriarem de algo res em formação15 se reconheceram “professo-
desse campo que tornasse seus planos mais res” aceitando o enlace instituído na alienação
exequíveis, possibilitasse a eles uma inscrição à imagem idealizada de professor, em um pri-
subjetiva mais sustentada na lógica do saber meiro momento. Esse parece ter representado
legitimado. A autorização subjetiva derivada
da apropriação de uma parcela do saber do 15 Por se tratar de um relato de experiência formativa com-
prometido com a subjetividade, não é possível generalizar
campo da LA e seus efeitos poderiam emba- que todos os professores em formação compartilharam
sar as ações dos professores. O agenciamento essa trajetória, trilhada na narrativa dessas intervenções.
Outros participantes da pesquisa e o próprio professor em
interpelava-os, também, quanto à legitimação serviço são contemplados em outros relatos, em elaboração
que buscavam pela via da aprovação do outro, no momento dessa escrita.
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Claire toma a palavra, tomada pela emoção: nas quais as certezas sustentadas em ideais
“Estava prestes a trancar o curso de Letras. imaginários foram sacudidas. Significaram,
Continuei só por causa do YY,16 porque isso ainda, momentos de compreensão de uma
aqui despertou alguma coisa, tipo que eu queria possível asserção subjetiva nesse tornar-se
seguir isso.” “Despertou o que?”, indaguei. “Eu professor, emoldurada por uma questão com
quero dar aula, isso!” valor de enigma: o que e como seria isso – ser
professor, ensinar, ensinar uma língua estran-
geira naquele contexto?
Considerações Finais Os espaços de palavra novamente foram
Se a experiência é isso que passa o sujeito fundamentais na instituição da experiência
(LARROSA, 2011, p. 5), atravessando-o desde na formação, pois a sustentação do não saber,
seu êxtimo e marcando nele seus efeitos, per- bem como a oferta de saberes já legitimados
ceptíveis na elaboração subjetiva que se dá em sobre a docência e sua prática, forneceram aos
sua narrativização, a formação compreendida professores em formação a possibilidade de se
durante a pesquisa intervenção de orientação interrogarem quanto ao saber, ensejando uma
clínica em tela neste artigo pode ser encarada relação com ele.
como tal. A demoção dos ideais foi um primeiro efeito
Primeiramente, porque fragmentou o ima- dos questionamentos levantados nos espaços
ginário compactado de insucesso sobre ser de palavra e das constatações decorrentes de
professor e ensinar inglês na escola regular e observações e das intervenções dos professo-
pública, abrindo o leque de significantes para res em formação em sala de aula. Procurando
a produção de novas significações. As observa- suspender os efeitos de sentido cristalizados
ções e atuações em sala de aula afetaram alguns nos significantes trazidos pelos professores
dos participantes da pesquisa, constituindo, para designar o que era ser professor e ensinar
em si mesmas, intervenções produtoras de -aprender, as interrogações proporcionaram
uma reorganização de sua realidade, desa- um desajuste entre a imagem que traziam e
lojando certezas, modalizando idealizações, outra mais plausível. Essa brecha instituiu
convidando à reflexão, que possibilitaram a outras possibilidades identificatórias, ense-
emergência do novo. Nesse sentido, acredito jando aos professores (dis)cernir modos de
que para alguns o encontro-confronto com a se apropriarem de algo da docência, ainda que
sala de aula na posição de professor e com a levemente marcados pelo desejo, como no caso
língua inglesa na posição de objeto a ser ensi- de Claire e Alba. Mesmo que uma imagem ideal
nado instituiu um instante de ver-se professor. outra possa ter surgido no lugar da anterior de
Nesse primeiro momento de (re)conhecimento insucesso, parece-me ter ocorrido uma mudan-
de uma imagem para si, ela se construiu na de- ça no sistema representacional quanto ao que
pendência da aprovação do Outro e da sedução é ser professor e a possibilidade de ensinar a
pedagógica. Entretanto, para se sustentarem na língua inglesa como fruto dessa experiência
posição de professor de inglês, esses professo- de formação.
res em formação precisariam desvencilhar-se A orientação da angústia de uma posição
da dependência do gozo advindo da posição imobilizante para uma posição produtiva con-
de objeto do Outro. Neste ponto, os espaços figurou-se um segundo efeito da experiência
de palavra configuraram um acontecimento de formação. Os espaços de palavra proveram
na experiência de formação de alguns profes- momentos para narrar as vivências dos profes-
sores, porque apresentaram-se como arenas sores, tê-las escutadas de outras perspectivas,
16 Nome do componente curricular do curso de Letras que
permitindo que elas fossem ressignificadas e
eles estavam cursando no quarto período. depuradas na experiência de formação. Contri-
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Trajetórias subjetivas na experiência de formação
174 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 158-175, out./dez. 2020
Carla Nunes Vieira Tavares
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Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
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Resultados finais da pesquisa apegi (acompanhamento psicanalítico de crianças em escolas, grupos e instituições)
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p176-190
RESUMO
No presente artigo, apresentam-se os resultados finais de uma pesquisa
para a validação do instrumento Acompanhamento Psicanalítico de Crianças
em Escolas, Grupos e Instituições (APEGI),1 bem como os eixos teóricos que
sustentaram a sua construção. O APEGI é um instrumento que tem como
base a teoria psicanalítica e busca proceder a uma leitura do processo de
constituição subjetiva articulado ao desenvolvimento da criança. Neste artigo,
descreve-se a segunda etapa da pesquisa, que ocorreu no período de abril a
junho de 2019, no qual foram aplicados 37 APEGIs em uma Escola Municipal
de Educação Infantil de São Paulo. Cada aplicação foi realizada por uma dupla
de pesquisadores, cujas aplicações foram confrontadas para depois ser gerada
uma terceira síntese, consensual. A expectativa de validação confirmou-se, e o
APEGI pode ser considerado um instrumento validado por meio de testes de
validade convergente entre avaliadores e da consistência interna do instrumento.
O instrumento APEGI propõe uma sistematização do conhecimento psicanalítico
adquirido em mais de cem anos de prática clínica com crianças, fazendo do
estudo de caso – método psicanalítico por excelência – um possível instrumento
de uso em pesquisas científicas.
Palavras-chave: Teoria psicanalítica. Validação de instrumento. Desenvolvimento
da criança.
* Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Professor titular sênior
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: mckupfer@usp.br
** Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Professora titular apo-
sentada do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). E-mail: ledber@terra.com.br
*** Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do curso de Psicologia da Universidade Anhan-
guera. E-mail: silva.diego@usp.br
1 Todos os procedimentos éticos foram considerados e a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres
Humanos da Universidade de São Paulo sobre o número 79446517.8.0000.5561.
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Maria Cristina Kupfer; Leda Mariza Fischer Bernardino; Diego Rodrigues Silva
ABSTRACT
FINAL RESULTS OF THE APEGI RESEARCH (PSYCHOANALYTIC
MONITORING OF CHILDREN IN SCHOOLS, GROUPS AND
INSTITUTIONS)
In this article, the final results of a research for the validation of the APEGI
instrument – Psychoanalytical Monitoring of Children in Schools, Groups and
Institutions – are presented, as well as the theoretical axes that supported its
construction. APEGI is an instrument based on psychoanalytic theory, and seeks
to read the subjective constitution process linked to the child’s development.
This article describes the second stage of the research, which took place from
April to June 2019, in which 37 APEGIs were applied in a Municipal School of
Early Childhood Education in São Paulo. Each application was carried out by a
pair of researchers, whose applications were compared before a third consensual
synthesis was generated. The expectation of validation was confirmed, and
APEGI can be considered as an instrument validated through tests of convergent
validity between evaluators and of the internal consistency of the instrument.
The APEGI instrument proposes a systematization of the psychoanalytic
knowledge acquired in more than one hundred years of clinical practice with
children, making the case study – psychoanalytical method par excellence – a
possible instrument for use in scientific research.
Keywords: Psychoanalytic theory. Instrument validation. Child development.
RESUMEN
RESULTADOS FINALES DE LA INVESTIGACIÓN APEGI (MONITOREO
PSICOANALÍTICO DE NIÑOS EN ESCUELAS, GRUPOS E
INSTITUCIONES)
En este artículo, se presentan los resultados finales de una investigación para
la validación del instrumento Monitoreo Psicoanalítico de Niños en Escuelas,
Grupos e Instituciones (APEGI), así como los ejes teóricos que respaldaron su
construcción. APEGI es un instrumento basado en la teoría psicoanalítica y busca
leer el proceso de constitución subjetiva vinculado al desarrollo del niño. Este
artículo describe la segunda etapa de la investigación, que tuvo lugar de abril
a junio de 2019, en la que se aplicaron 37 APEGI en una escuela municipal de
educación infantil en São Paulo. Cada aplicación fue realizada por un par de
investigadores, cuyas aplicaciones se compararon antes de que se generara una
tercera síntesis consensuada. Se confirmó la expectativa de validación, y APEGI
puede considerarse como un instrumento validado a través de pruebas de validez
convergente entre los evaluadores y la consistencia interna del instrumento. El
instrumento APEGI propone una sistematización del conocimiento psicoanalítico
adquirido en más de cien años de práctica clínica con niños, haciendo del estudio
de caso, método psicoanalítico por excelencia, un posible instrumento para su
uso en la investigación científica.
Palabras clave: Teoría psicoanalítica. Validación de instrumento. Desarrollo
del niño.
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Resultados finais da pesquisa apegi (acompanhamento psicanalítico de crianças em escolas, grupos e instituições)
Em 2018, foram apresentados os primei- (CARDOSO et al., 2012; CRESTANI et al., 2011;
ros resultados da pesquisa APEGI (KUPFER; JAQUETTI; MARIOTTO, 2012; KUPFER et al.,
BERNARDINO; PESARO, 2018), que já haviam 2009; LERNER; KUPFER, 2008; MORAIS, 2013;
mostrado um bom índice de precisão ou con- MOZZAQUATRO; POLLI; ARPINI, 2011; REIS,
fiabilidade do instrumento, além de apontarem 2011; TOCCHIO, 2013); a pesquisa IRDI nas
que ele caminhava em direção ao esperado para creches4 (KUPFER; BERNARDINO; MARIOTTO,
sua validação. Ao final da pesquisa, concluída 2014; MARIOTTO, 2009); a pesquisa Préaut na
em julho de 2019, a expectativa de validação França (ASSOCIATION PRÉAUT, 2010; LAZNIK,
confirmou-se e o APEGI pode ser considerado 2013); a pesquisa Préaut no Brasil; as pesqui-
um instrumento validado por meio de testes sas que utilizam a Avaliação Psicanalítica aos
de validade convergente entre avaliadores e da 3 anos (AP3) (MERLETTI; PESARO, 2010). São
consistência interna do instrumento. instrumentos que se baseiam em indicadores
O instrumento Acompanhamento Psicanalíti- fenomênicos, observáveis e quantificáveis.
co de Crianças em Escolas, Grupos e Instituições A partir de 2017, um novo grupo de pes-
(APEGI) propõe uma sistematização da leitura quisadores5 foi a campo para validar, como
do processo de constituição subjetiva da criança, instrumento, uma nova apresentação do ro-
articulado ao seu desenvolvimento.2 Essa siste- teiro psicanalítico que serviu de base para a
matização revelou-se adequada a seus fins ten- validação do instrumento IRDI. O antigo roteiro
do em vista os resultados estatísticos obtidos. foi chamado de Avaliação Psicanalítica aos 3
As noções de observação e de avaliação não anos (AP3), e agora, revisto e ampliado, trans-
fazem parte do método psicanalítico, e são formou-se no Acompanhamento Psicanalítico
substituídas pelas noções de transferência e de de Crianças em Escolas, Grupos e Instituições
acompanhamento. Nos tratamentos e pesqui- (APEGI).6 O presente artigo apresenta as bases
sas conduzidos com base na psicanálise, não há teóricas do instrumento, bem como os resulta-
conclusões diagnósticas, mas uma direção que dos finais da pesquisa de validação do APEGI.
procure levar um sujeito a dizer-se no singular
de sua posição desejante e inconsciente. A ideia
de estatística não cabe, e assim as pesquisas
O instrumento APEGI
psicanalíticas se baseiam sobretudo no estudo Construído com base na teoria psicanalítica,
do caso singular. o APEGI é um instrumento que busca situar
No entanto, não são poucos os pesquisa-
conduzir a pesquisa multicêntrica em diversos centros. O
dores psicanalistas que vêm se dedicando grupo foi constituído por Leda M. Fischer Bernardino, da
à construção de instrumentos baseados na PUC de Curitiba; Paula Rocha e Elizabeth Cavalcante, do
teoria e na prática psicanalíticas, quer para CPPL de Recife; Domingos Paulo Infante, Lina G. Martins
de Oliveira e M. Cecília Casagrande, de São Paulo; Daniele
uso em pesquisas, quer para uso na clínica Wanderley, de Salvador; Lea M. Sales, da Universidade
e em escolas. Exemplos dessas pesquisas Federal do Pará; Regina M. R. Stellin, da UNIFOR de For-
taleza; Flávia Dutra, de Brasília; Otavio Souza, do Rio de
são: as pesquisas que utilizam o protocolo Janeiro; Silvia Molina, de Porto Alegre, com coordenação
Indicadores Clínicos de Risco para o Desen- técnica de M. Eugênia Pesaro, coordenação científica de
Alfredo Jerusalinsky e coordenação científica nacional
volvimento Infantil (IRDI), criado pelo GNP3
de M. Cristina Kupfer. A pesquisa obteve financiamento
2 Desenvolvimento não deve ser entendido aqui no sentido do Ministério da Saúde, da FAPESP (Projeto Temático Nº
genético, mas em seu entrecruzamento com a estruturação 2003/09687-7) e do CNPq.
da criança, pois entendemos que os aspectos evolutivos 4 Pesquisas financiadas pela FAPESP – Processos
próprios à maturação e ao crescimento na infância só 2012/50156-4 e 2014/24678-9.
podem se organizar a partir dos aspectos estruturais que 5 Grupo que integra a linha de pesquisa “Validação e com-
regem o processo de constituição subjetiva (BERNARDINO, paração de instrumentos de acompanhamento do desen-
2004, 2006). volvimento psíquico à luz da psicanálise”, do Laboratório
3 A pesquisa foi realizada pelo Grupo Nacional de Pesquisa de Estudos Psicanalíticos e Educacionais Sobre a Infância
(GNP), grupo de experts convidados por M. Cristina Kup- (LEPSI), pertencente ao Diretório de Pesquisa do CNPq.
fer, do IPUSP, para construir o protocolo de indicadores e 6 Pesquisa financiada pela FAPESP – processo n. 2017/06830-6.
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Maria Cristina Kupfer; Leda Mariza Fischer Bernardino; Diego Rodrigues Silva
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Maria Cristina Kupfer; Leda Mariza Fischer Bernardino; Diego Rodrigues Silva
suas orelhas. Trata-se de uma demonstração deseja fazer valer sua vontade, em detrimento
de presença de esquema corporal, mas não de da frustração de respeitar uma limitação, uma
imagem corporal constituída. regra, seja porque quer ser vista, ouvida, e não
Uma imagem corporal constituída permite o consegue de uma maneira mais simbólica.
uma organização psicomotora, pois a criança Trata-se de um comportamento bem diferente
pode se movimentar no espaço e no tempo e da desorganização da criança, a qual revela ex-
a apropriação de seu corpo tem como conse- trema dificuldade em relação às regras, limites,
quência a aquisição de diversas habilidades ao funcionamento de determinado ambiente,
corporais, como a motricidade, a alimentação, demonstrando uma imagem corporal extre-
o sono. mamente frágil ou não constituída. Se na birra
Assim, dificuldades nesse eixo podem se a criança está, enquanto se movimenta, muito
apresentar, por exemplo, em alterações do atenta ao efeito de seu comportamento sobre o
sono, como falta de ritmo de sono e vigília, adulto e sobre o ambiente (ela não se joga em
intercorrências diversas no dormir da criança qualquer lugar, nem tem este comportamento
como acordar-se no meio da noite e não con- sem a presença de um público), na desorga-
seguir voltar a dormir, necessidade de dormir nização a criança não percebe o outro, não se
junto aos pais, necessidade de ter a presença cuida em relação às consequências físicas de se
do adulto durante o sono. jogar no chão, descontrola-se completamente.
As dificuldades alimentares também podem
surgir, como a alimentação seletiva: muito
mais do que revelar a qualidade nutricional Manifestação diante das normas
da alimentação da criança, o interesse é veri- e posição frente à lei
ficar a flexibilidade da criança com relação aos
diferentes tipos de alimentos, em termos de A observância de limites, a restrição dos
cores, consistência, formato. Nas crianças com próprios impulsos em concordância com a si-
encaminhamento autístico, por exemplo, pode- tuação, a permeabilidade do sujeito à marcação
se encontrar uma rigidez em relação à ingestão de tempos e atividades, sua capacidade de or-
de uma só classe de alimentos, ou alimentos de ganização no espaço, respondem de um modo
uma única cor ou consistência, demonstrando a geral à interiorização da interdição paterna,
extrema dificuldade da criança com relação ao que as diversas formas da lei podem adotar. Por
mundo externo, à questão da diferença, pontos isso, também de modo geral, podemos assina-
sinalizadores de dificuldades na constituição lar que a falta ou intermitência de tais atitudes
psíquica de sua imagem corporal. costuma ser demonstrativa da presença de sin-
As dificuldades relacionadas à movimenta- tomas clínicos, assim como formas de recusa,
ção corporal: hiperatividade, impulsividade, questionamento ou indiferença/ignorância
passividade, falta de destreza nos movimentos, em relação às normas (JERUSALINSKY, 2008).
por sua vez, demonstram o uso da movimenta- A relação com as normas e com a lei é uma
ção para expressão psíquica. Uma criança com importante indicação da inscrição ou da difi-
a constituição psíquica em curso apresenta culdade de inscrição da criança na cultura e na
uma harmonia psicomotora, isto é, consegue organização social. Essa Lei é originalmente a
conciliar sua intenção, seu desejo, com o movi- lei de proibição do incesto para os antropó-
mento corporal que permitirá uma ação eficaz. logos; para os psicanalistas, não se relaciona
O comportamento de birra, por exemplo, apenas com a interdição da mãe pelo pai, mas é
é um uso da expressão motora para buscar entendida como uma lei que interdita, “castra”
reconhecimento, a criança o utiliza para cha- e faz mais que isso: organiza a relação do su-
mar a atenção do adulto sobre si, seja porque jeito com os outros pelo fato de que esta é uma
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Resultados finais da pesquisa apegi (acompanhamento psicanalítico de crianças em escolas, grupos e instituições)
lei simbólica, isto é, põe palavra ordenadora no mente em uma posição de demanda ao outro;
lugar do impulso, incita o corpo a se submeter bem como há muitos pais que não conseguem
a outra ordem (simbólica) que não a do puro transmitir esta habilidade, não se implicando
funcionamento automático biológico. nesta função educativa.
A Lei do Pai é um conjunto de chaves de A partir do que foi recolhido no trabalho de
significação ou eixos ordenadores capazes de aplicação da AP3, bem como da experiência
orientar o trânsito da criança por essa rede de acumulada durante as pesquisas que sucede-
linguagem e de significações dadas pela cultura ram à pesquisa IRDI, dois novos eixos foram
e pelo desejo dos outros. acrescentados ao instrumento original.
Assim, se uma criança obedecer às regras,
isso indica não apenas que foi bem-educada.
Se observa os limites, sabe restringir seus pró-
Presença/reconhecimento de
prios impulsos, há indícios de que a Lei do Pai sujeito
ou função paterna está estabelecida. Neste eixo pretende-se verificar na criança
Espera-se que a criança demonstre uma a partir dos 3 anos se os quatro eixos da fun-
certa tensão no processo de aprendizagem ção materna,8 que deverão ter agido nos dois
do funcionamento familiar e social. A escola primeiros anos de vida, realmente operaram
é um dos campos férteis para esta tensão se no início do seu processo de constituição
expressar. subjetiva. Assim, busca-se observar se a Supo-
Não se espera de uma criança uma sub- sição de Sujeito (SS) realizada pelos agentes
missão total às regras, sem questionamento, do Outro para a criança tiveram como efeito o
pois não denotaria uma apropriação destas de surgimento de um sujeito falante e desejante;
modo subjetivo. Por exemplo, muitas crianças se a demanda realmente se estabeleceu (ED) e
que são tidas como “muito obedientes” apenas a criança distanciou-se do campo exclusivo da
respondem automaticamente a comandos do necessidade para entrar no campo relacional
outro, revelando uma aprendizagem de tipo e de linguagem, situando-se como falante e
mecânica, respostas esperadas e sem nenhu- interessada nos efeitos que produz nos re-
ma contestação. Isso demanda uma especial presentantes do Outro e nos semelhantes; se
atenção no campo escolar porque muito mais a alternância presença/ausência (PA) fundou
do que seguir instruções é importante saber se um campo de representação simbólica em
ela se apropriou das regras. que é possível para a criança se representar
Da mesma forma, uma desobediência ex- como separada do Outro; se a função paterna
cessiva denota que algo não vai bem na sua introduzida pelos agentes do Outro trouxe sub-
inserção cultural. sídios para a identificação de seu lugar familiar
Uma indicação importante de função pa- e preparou-a para circular em um universo
terna é a capacidade da criança de esperar, composto por regras e leis.
ou seja, conter seus impulsos, suas vontades, Assim, trata-se de verificar, do lado da crian-
para postergar alguma satisfação prevista. Uma ça, se há presença de sujeito: se a criança fala
criança que consegue esperar demonstra sua em nome próprio, manifestando suas opiniões
inserção na comunidade e um conhecimento e seu entendimento do que a cerca, se ela se
de que viver em sociedade requer ceder em identifica com seu nome, se ocupa um lugar
relação a demandas imediatas. Há crianças que singular na família ou na escola, se perante
não conseguem conter suas expectativas em seus semelhantes se diferencia, mesmo fazendo
relação a um acontecimento, que não sabem
8 Os quatro eixos da função materna foram sistematizados
esperar para receber um presente, uma gulo- pelo GNP para uso na pesquisa de validação do IRDI e se
seima, que por vezes revelam estar constante- encontram em Kupfer e outros (2009).
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Maria Cristina Kupfer; Leda Mariza Fischer Bernardino; Diego Rodrigues Silva
parte do grupo; se dá lugar à fala dos adultos ocupa um lugar próprio, com características
e respeita os turnos dialógicos. Por exemplo, a singulares, que fala em nome próprio e ma-
criança atende quando é chamada pelo nome, nifesta reações pessoais aos acontecimentos
quando faz um desenho de si mesma ou de sua que a cercam, dando-lhes uma significação.
família, quando na brincadeira inclui-se em Se, como resultado deste reconhecimento, a
situações, se está num grupo é reconhecida criança é respeitada em seus turnos de fala e
pelos colegas e os reconhece, na escola quando em suas manifestações próprias. Se estes adul-
entende e envolve-se com a atividade proposta, tos reconhecem no que a criança demanda algo
quando se manifesta a respeito do que os pais além do atendimento de uma necessidade, se
falam sobre ela, ou responde pessoalmente a oferecem a ela um espaço vazio convocatório
uma pergunta da professora. Procura-se veri- para que ela ocupe um lugar. Finalmente, se au-
ficar se a criança tem um dizer próprio. torizam-se a transmitir a ela regras e leis para
Uma criança profere um dizer quando situar o que esperam dela no espaço social. Não
expressa uma opinião própria sobre algum há reconhecimento de sujeito quando os pais
assunto, faz uma interpretação pessoal de um ou professores não atribuem um lugar para a
texto, emociona-se com algum acontecimento. criança; quando não reconhecem a presença da
Uma criança nessa posição enunciativa pro- criança, por exemplo, falando dela na sua fren-
cura se fazer entender pelo outro, expressa-se te, mas sem incluí-la no diálogo; quando não se
de modo fluente, utiliza-se da linguagem de dirigem a ela para pedir sua opinião; quando
modo pleno para expressar suas preferências, não consideram que ela pode pensar ou agir
suas dificuldades, seus anseios. diferentemente do que esperam; quando não
Não há presença de sujeito quando a crian- dão espaço em sua fala para a sua manifestação.
ça apresenta uma fala repetitiva e ecolálica,
repetindo mecanicamente os sons que escuta
ao seu redor, utilizando jargões ou jingles para
A função do semelhante
falar, ou não utilizando a fala para expressar Esse eixo impôs-se aos praticantes de gru-
suas opiniões ou vontades; quando não atende pos terapêuticos com crianças. Verificou-se
quando é chamada pelo nome, não reconhecen- que, atualmente, muitas crianças apresentam
do que o nome a representa; quando apresenta uma constituição subjetiva em curso e uma boa
uma fala apenas utilitária, para expressar suas relação com adultos, mas encontram grande di-
necessidades. Tropeços também são observa- ficuldade de estar com seus pares: ou recusam
dos quando a criança não participa do grupo esses laços, ou os desejam, mas não são bem-
na escola ou na instituição de modo ativo; sucedidas no contato com as outras crianças. Os
quando não opina ou não consegue interpretar laços entre pares precisam, assim, ser mais bem
de modo personalizado as situações que se conhecidos e avaliados, de modo a orientar o
apresentam a ela. Pode ainda apresentar uma trabalho que incide mais precisamente sobre
fala incompreensível, que precisa de um adulto as relações comprometidas entre crianças.
próximo para traduzir, sendo de extrema im- A importância da função do semelhante na
portância diferenciar a busca da interlocução constituição do sujeito foi apontada por Lacan
da criança – que sinaliza, ainda assim, a pre- (2003) no texto “A família”. Para ele, as crianças
sença de um dizer –, da indiferença da criança entre 6 meses e dois anos deixam transparecer
quanto à reação do outro a sua fala. um interesse dirigido ao semelhante no qual é
Do lado dos pais, ou professores, procura- possível localizar o reconhecimento de um rival
se verificar se há reconhecimento de sujeito: e, portanto, de um outro como objeto. Entre
se na sua relação com a criança há um reco- eles haverá, segundo esse autor, duas relações
nhecimento de que se trata de um sujeito que afetivas que se confundem – amor e identifi-
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Resultados finais da pesquisa apegi (acompanhamento psicanalítico de crianças em escolas, grupos e instituições)
cação –, cuja oposição deverá ser estabelecida de um estudo piloto com 6 crianças (duas em
em estágios posteriores. escolas, duas em instituições de tratamento e
Para Lacan (1966), há uma estreita relação duas em grupos terapêuticos) para ajustes do
entre a fraternidade e a gênese do eu (ego): instrumento, foi iniciada uma primeira etapa
o semelhante é essencial para definir uma de aplicação do APEGI com um grupo de 60
imagem própria, para definir um valor narcí- crianças entre 4 e 6 anos, colhidas aleatoria-
sico para esta imagem e para ter acesso a um mente nas Escolas Municipais de Educação
conhecimento sobre si. Infantil (EMEIs) Jardim Lapenna e Vila Nova
É esse semelhante em sua pequena diferen- União,9 situadas em São Miguel Paulista.
ça que permite ao sujeito saber mais sobre si Cada aplicação foi realizada por uma dupla
mesmo, pelo que ele mostra de estranho fami- de pesquisadores, cujas aplicações foram con-
liar: o irmão, o colega, este que está em uma frontadas para depois ser gerada uma terceira
relação no mesmo plano, convoca o sujeito a síntese, consensual.
encontrar sua posição, enquanto diferente da As primeiras aplicações foram submetidas
dele, para aí sim compor uma fraternidade com a um estudo estatístico para verificar a preci-
ele – não ameaçadora do narcisismo. Assim, são (ou confiabilidade) do instrumento. Esses
a união torna-se possível pela diferença, pela resultados encontram-se descritos em Kupfer,
alteridade que aí comparece e permite a cada Bernardino e Pesaro (2018).
qual ocupar um lugar próprio. No período de abril a junho de 2019, novos
A fraternidade – base da socialização – de- 37 APEGIs foram aplicados, desta vez na EMEI
pende da parentalidade: são os pais que dão Dona Leopoldina, em São Paulo.10
acesso, através de seu trabalho de orientação e Para essa etapa da pesquisa, um segundo
de significação, à possibilidade de uma relação tipo de validação foi proposto pelo estatístico
com o irmão. Trabalho depois sustentado em assessor da pesquisa:11 a validação com utili-
continuidade pelos professores, ao adminis- zação de padrão-ouro.
trar as relações – sempre difíceis – entre os Solicitou-se, para quatro psicanalistas
coleguinhas de classe, para frear a agressivi- de crianças já consagradas no campo12 – to-
dade entre os pequenos colegas sem inibir a mando-se aqui a metodologia do estudo de
autoexpressão, para poder realmente fazer do caso psicanalítico realizado por experts como
ciúme a gênese do sentimento social, como o padrão-ouro, na ausência de instrumento
propõe Lacan (1966). comparável ao APEGI no Brasil –, a realização
A localização desse laço e suas característi- de consultas psicanalíticas clássicas com as
cas será então o alvo das perguntas orientadas crianças e seus pais, avaliados pelo APEGI na
por esse eixo. Se a criança se mostra extrema- EMEI Dona Leopoldina. Nos meses de abril,
mente dependente de um semelhante para en- maio e junho, as psicanalistas contatadas pro-
contrar sua consistência, ou se, pelo contrário, cederam ao exame de 27 dessas crianças, cuja
tem extrema dificuldade de conviver com os conclusão diagnóstica foi traduzida nos termos
pares, ou se não consegue compartilhar brin-
9 Agradecemos a valiosa parceria com a Fundação Tide Se-
cadeiras com seus pares, estes sintomas são
túbal e o Instituto Pensi, que tornou possível a aplicação
indicativos de falhas na função do semelhante. do APEGI nas 60 crianças da amostra, na primeira etapa
da pesquisa.
10 Agradecemos a Márcia Covelo Harmbach, diretora da EMEI
A pesquisa APEGI: Dona Leopoldina, pela generosa acolhida à pesquisa aqui
apresentada.
procedimentos 11 Agradecemos a Shirley Lacerda pela realização do estudo
estatístico.
12 Ângela Vorcaro, Ana Beatriz Valério Coutinho, Mariângela
Após a formação dos 20 profissionais aplica- Mendes de Almeida, Maria Cecilia Pereira da Silva, a quem
dores para o uso do APEGI, e após a realização agradecemos a preciosa colaboração.
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Maria Cristina Kupfer; Leda Mariza Fischer Bernardino; Diego Rodrigues Silva
Legenda: Kappa: Menor que zero= Insignificante; entre 0 e 0,2= Fraca; entre 0,21
e 0,4= Razoável; entre 0,41 e 0,6= Moderada; entre 0,61 e 0,8= Forte e entre 0,81 e
1= Quase perfeita. ICC: Menor que 0,5= Pobre; entre 0,5 e 0,75= Moderada; entre
0,75 e 0,9= Boa e maior que 0,9= Excelente.
Fonte: Elaborada pelos autores deste artigo com base em dados da pesquisa.
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 176-190, out./dez. 2020 185
Resultados finais da pesquisa apegi (acompanhamento psicanalítico de crianças em escolas, grupos e instituições)
Legenda: Kappa: Menor que zero= Insignificante; entre 0 e 0,2= Fraca; entre 0,21 e 0,4= Ra-
zoável; entre 0,41 e 0,6= Moderada; entre 0,61 e 0,8= Forte e entre 0,81 e 1= Quase perfeita.
ICC: Menor que 0,5= Pobre; entre 0,5 e 0,75= Moderada; entre 0,75 e 0,9= Boa e maior que
0,9= Excelente.
Fonte: Elaborada pelos autores deste artigo com base em dados da pesquisa.
Legenda: Kappa: Menor que zero= Insignificante; entre 0 e 0,2= Fraca; entre 0,21 e 0,4= Razoável;
entre 0,41 e 0,6= Moderada; entre 0,61 e 0,8= Forte e entre 0,81 e 1= Quase perfeita. ICC: Menor
que 0,5= Pobre; entre 0,5 e 0,75= Moderada; entre 0,75 e 0,9= Boa e maior que 0,9= Excelente.
Fonte: Elaborada pelos autores deste artigo com base em dados da pesquisa.
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Maria Cristina Kupfer; Leda Mariza Fischer Bernardino; Diego Rodrigues Silva
Tabela 4 – Índices de confiabilidade dos eixos da APEGI avaliados pela consistência interna (alfa de
Cronbach)
Legenda: Alfa de Cronbach: Menor que 0,5= Inaceitável; entre 0,5 e 0,6= Pobre, entre 0,6 e 0,7= Questionável;
entre 0,7 e 0,8= Aceitável; entre 0,8 e 0,9= Bom e maior que 0,9= Excelente.
Fonte: Elaborada pelos autores deste artigo com base em dados da pesquisa.
Discussão
A partir dos resultados estatísticos, verifi- foram suficientes para validar o instrumento:
camos que se trata de um instrumento de tra- do ponto de vista de confiabilidade, os resulta-
balho que apresenta resultados significativos dos se mantêm entre Bom e Excelente (Alfa de
de validade e confiabilidade. Cronbach predominantemente entre 0,8 e 0,9).
Na comparação do APEGI com uma forma Os resultados mostram, portanto, que a
de avaliação já consolidada na área, ou seja, aplicação em uma dupla de profissionais me-
na comparação com o método de estudo de lhora a confiabilidade dos resultados. Disto se
caso considerado aqui como padrão-ouro, ob- extrai uma recomendação para a sua aplicação:
servou-se que este instrumento tem uma forte sempre que possível, é desejável que haja uma
capacidade de detectar entraves estruturais discussão dos resultados, de modo a fazer ajus-
(Kappa=0,619 e ICC=0,619) e moderada para tes ou complementações, principalmente se a
sintomas clínicos conclusivos (Kappa=0,407 aplicação tiver sido realizada em uma institui-
e ICC=0,418). Para a detecção de problemas ção na qual trabalhem equipes de profissionais.
de desenvolvimento, seus resultados não É esperado, ainda, que não haja uma con-
atingiram o esperado nessa comparação (Kap- cordância de 100%. É preciso, antes de mais
pa=-0,021 e ICC=-0,022). Portanto, o uso do nada, discutir o que significa uma medida de
padrão-ouro na presente pesquisa demonstrou precisão entre dois clínicos em uma pesquisa
um valor relativo, porém não determinante, de orientação psicanalítica. Estamos diante de
uma vez que as medidas de confiabilidade um cenário em que a confiabilidade total não
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Resultados finais da pesquisa apegi (acompanhamento psicanalítico de crianças em escolas, grupos e instituições)
é possível, mas ao mesmo tempo é necessário mas de desenvolvimento, uma espécie de zona
que não seja baixa, uma vez que estamos ado- de sombra da teoria. Por ocasião da pesquisa
tando um critério estatístico. IRDI, realizada de 2000 a 2008, buscou-se uma
A confiabilidade total não é possível porque definição de problemas de desenvolvimento
não se pode esperar que dois psicanalistas que fosse coerente com as bases teóricas da
avaliem de modo estritamente semelhante pesquisa, dada a sua fronteira com os proble-
uma mesma criança. É preciso dar espaço ao mas que são típicos da infância e não deveriam
equívoco, à interpretação, ao imprevisto e ao então receber o rótulo de “problemas”.
improviso, como dizia Mannoni (1978). En- O manual APEGI13 adotou uma resposta,
tretanto, em uma pesquisa de validação de um ainda que provisória, para a definição do que
instrumento, ele precisa funcionar como um sejam “problemas de desenvolvimento”:
guia orientador, uma referência para a noção Embora se saiba que a infância é marcada por
de desenvolvimento psíquico de uma criança, ‘crises do desenvolvimento’, que denotam jus-
e essa noção geral não pode diferir entre pes- tamente os diferentes e necessários movimen-
quisadores a ponto de levar a orientações de tos identificatórios da criança, sabe-se que há
trabalho muito diferentes. sintomas que incidem no desenvolvimento e
que devem ser considerados clinicamente. As
Quando foram examinados alguns resul-
formações do sujeito – sua entrada no campo
tados preliminares, na primeira etapa da pulsional, os impasses que se apresentam nesta
pesquisa, observou-se que alguns indicadores trajetória – incidem sobre a maturação, o cresci-
exibiram um índice de precisão considerado mento e o desenvolvimento da criança, de modo
entre inaceitável e questionável, o que levou o que as manifestações expressam as diferentes
grupo de pesquisadores a propor uma refor- conquistas da criança ou sua dificuldade nestas
conquistas. Consideramos, portanto, ‘problemas
mulação do instrumento, em especial de seus
do desenvolvimento’, sintomas que marcam o
indicadores de acompanhamento. Depois de entrecruzamento entre processos estruturais
feita essa reformulação, os indicadores com e evolutivos e que denotam um sofrimento psí-
baixa precisão, na segunda etapa da pesquisa, quico na criança sem que, contudo, esteja em
aumentaram seu score. Outros, porém, prosse- questão sua subjetividade. Muito ao contrário, é
guiram tendo baixa precisão, como o indicador sua subjetividade que está em jogo, é em defesa
de seu desejo e de seu dizer que a criança sinto-
“A criança aceita a intermediação de adultos em
matiza – servindo-se de suas funções corporais
caso de rivalização”. É possível que essa baixa ou de seu comportamento para sinalizar ao en-
precisão tenha advindo de uma quantidade de torno que não está conseguindo seguir em frente
marcações “não observado”, devido ao ambien- em suas identificações, ou seja: ela se utiliza de
te escolar em que as crianças foram avaliadas. defesas psíquicas ao seu alcance para sustentar
Finalmente, temos que nos debruçar sobre sua subjetividade.
os resultados obtidos na comparação com o A definição de “entraves estruturais para
padrão-ouro. Nessa comparação, houve coin- a constituição subjetiva” nomeia, por sua vez,
cidência entre as avaliações em relação aos uma paralisação ou extremas dificuldades
entraves estruturais: os avaliadores concorda- no processo de construção da subjetividade,
ram de modo significativo quando se tratava com a apresentação de sintomas que buscam
de apontar problemas graves na constituição proteger a criança do aniquilamento e de uma
subjetiva das crianças avaliadas. Entretanto, existência aquém do simbólico.
o apontamento de problemas de desenvolvi-
mento não foi significativamente concordante. 13 Como já foi esclarecido, este artigo traz os resultados finais
Aqui, é preciso avaliar a hipótese de que não de uma pesquisa para a validação do instrumento Acompa-
nhamento Psicanalítico de Crianças em Escolas, Grupos e
há concordância entre os psicanalistas com Instituições (APEGI), mas o manual ainda se encontra em
relação ao que devamos nomear como proble- fase de elaboração.
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construção da vinculação afetiva. In: JORNADA DE Aprovado em: 12/12/2020
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
190 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 176-190, out./dez. 2020
Cláudia Bechara Fröhlich; Janniny Gautério Kierniew; Simone Zanon Moschen
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p191-210
RESUMO
No trânsito rumo ao mundo letrado, muitas crianças respondem de modo pouco
consistente às demandas por dar mostras de suas aprendizagens – parecem
estar estancadas em um tempo em que sabem e não sabem ler. Do testemunho
dessa posição da criança e da angústia que ela gera nos docentes, a partir de
uma longa experiência de trabalho junto a redes de ensino público, derivamos
a pergunta que move este artigo: o que pode ajudar a armar as condições de
possibilidade para ver e dar passagem àquilo que é invisível no trânsito de uma
posição não letrada para uma posição letrada? Para operar com essa questão,
retomamos a proposição do tempo lógico de Lacan (1998b) e seu trabalho com
a fita de Moebius (LACAN, 2003), buscando coordenadas que ajudem a guiar os
docentes por um tempo que não se enfileira na cronologia do relógio e de um
espaço que não é mapeável pela geometria intuitiva. Encontramos na duração
do tempo de compreender – nos avanços e volteios que lhe caracterizam – um
operador que pode dar contornos à angústia dessas passagens.
Palavras-chave: Psicanálise. Letramento. Tempo lógico. Docência.
ABSTRACT
SEEING THE INVISIBLE OF LITERACY
In transit to the world of letters, many children respond in a little consistent
way to the demands to evidence their learning – they seem to be stuck in a time
in which they know and do-not-know how to read. For having witnessed this
position of the child and the teachers’ anguish generated by it, as well as based
on a long experience with the work with public education network, we have
derived the guiding question of this paper: what can help to set the conditions of
possibilities to see and to give way to what is invisible in the transit from a non-
* Pós-doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora na Faculdade de Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura
(NUPPEC/UFRGS). E-mail: claudiafrohlich@hotmail.com.
** Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Bolsista CAPES. Membro do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS). E-mail: janninyk@
gmail.com.
*** Pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Pós-Graduação em Psica-
nálise: Clínica e Cultura, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista Produtividade CNPQ – nível
2. Membro do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS). E-mail: simoschen@gmail.com.
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Ver o invisível do letramento
RESUMEN
VER LO INVISIBLE DE LA LITERACIDAD
Em el tránsito hacia el mundo letrado, muchos niños responden de modo poco
consistente a las demandas de que den muestras de sus aprendizajes; parecen
quedarse estancados em um tiempo em el que saben y no saben leer. Partiendo
Del testimonio de esa posición Del niño y de la angustia que genera em los
docentes y apoyándonos en una larga experiencia de trabajo em el ámbito de La
enseñanza pública, hemos extraído la pregunta que motiva este artículo: ¿qué
podría ayudar a instaurar las condiciones de posibilidad para ver y dar paso
a lo que es invisible em el tránsito de una posición no letrada a una posición
letrada? Para operar com esa cuestión, retomamos la proposición del tiempo
lógico de Lacan (1998b) y su trabajo com la banda de Moebius (LACAN, 2003),
buscando coordenadas que ayuden a guiar a los docentes com respecto a um
tiempo que no adhiere a La cronologia del reloj y um espacio no mapeable por
medio de la geometría intuitiva. Encontramos em La duración del tiempo de
comprender – em los avances y recodos que lo caracterizan – un operador que
podría dar contornos a la angustia de esos pasajes.
Palabras clave: Psicoanálisis. Literacidad. Tiempo lógico. Docencia.
Do trabalho como psicólogas próximo a Dentre as intervenções que nesse tempo con-
docentes de escolas públicas, ao longo de, pelo duzimos, como efeito dos próprios encontros
menos, dez anos, especialmente junto a pro- que tivemos nas redes de ensino, destacamos
fessoras alfabetizadoras, ainda no início deste dois grupos que armamos numa rede de
milênio, é que as linhas deste artigo emergem ensino num município afastado cerca de 70
com o intuito de trabalhar e de transmitir km da capital Porto Alegre: o Ateliê de Cria-
questões que nesse cenário se impuseram.1 ção (acolhimento de crianças encaminhadas
1 De acordo com a Resolução nº 510/2016 do Conselho pelas escolas por apresentarem dificuldades
Nacional de Saúde (BRASIL, 2016), em seu Artigo 1º, Pa-
rágrafo Único, VII: “Não serão registradas nem avaliadas
na alfabetização) e o Ateliê de Laboratórios
pelo sistema CEP/CONEP: [...] VII – pesquisa que objetiva (proposta de discussão e sustentação da
o aprofundamento teórico de situações que emergem prática de professores como coordenadores
espontânea e contingencialmente na prática profissional,
desde que não revelem dados que possam identificar o de laboratórios de ensino-aprendizagem),
sujeito.” O campo experiencial do qual provêm as cenas como potentes condutores dos estudos a que
que dão ensejo às questões problematizadas neste artigo
emergiram do trabalho como psicóloga, de uma das auto- nos propomos, num tempo depois, quando
ras, em municípios do interior do Rio Grande do Sul. Os já estávamos afastadas da experiência. O fio
recortes de cenas e falas foram recuperados dos diários
que as autoras escreveram, espontaneamente, em seus
orientador dos ateliês era a literatura e sua
campos de atuação. forte aposta no jogo das palavras; do literário
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Cláudia Bechara Fröhlich; Janniny Gautério Kierniew; Simone Zanon Moschen
nos chegava a trama capaz de, por diferentes pelo literário que propúnhamos no grupo, disse
modos, convidar alunos e professores a transi- o seguinte sobre um de seus alunos:
tar por um tempo menos ritmado pelo relógio No início do ano parecia que não conhecia as
e a habitar um espaço menos formatado do que letras. Umas semanas depois parecia que sabia,
o da sala de aula com seus modos tradicionais na outra já não sabia. Aí me perguntava: ele sabia
de tramitar o letramento. ou não sabia? Aí concluí que ele sabia algumas
Desses momentos, recolhemos muitos de- e outras ainda não. Então um dia ele olhou
poimentos de docentes alfabetizadores, em para a parede, onde tenho o alfabeto, e disse: o
‘R’ caiu! Me animei toda, espontaneamente ele
diferentes posições enunciativas diante dos
tava se interessando pelas letras e assim eu iria
alunos que não pareciam dar mostras de sua descobrir quais que ele ainda não conhecia. Na
alfabetização,2 sequer sinais de “por onde suas semana seguinte, pedi que ele me alcançasse o
cabeças andavam”. Para alguns, a angústia ‘R’ e ele ficou um tempão paralisado diante do
findava quando rapidamente concluíam: “não alfabeto... E eu esperando, aguentando aquele
sou educadora, sou alfabetizadora”, gesto que tempo longo... E ele disse, ao final da minha
apontava para um desresponsabilizar-se do espera: eu não sei!
lugar docente e da própria angústia que podia Ao escutar o testemunho da colega, o grupo
ser motor para o encontro de soluções. Outras de docentes destacou a importância do silên-
vezes, a suposição de uma saída poderia estar cio da professora, sua espera e paciência, sem
noutro profissional, talvez uma “falta de vita- atropelar o aluno em seu processo de aquisição
mina” esteja “bloqueando” a aprendizagem, das letras. Ainda que palavras pudessem ter
afinal “não precisamos saber de tudo, somente sido doadas como forma de dar um contorno
o número de telefone do médico do posto de à angústia da colega, restava, latejando, a per-
saúde”. Contudo, tantas outras vezes, uma pe- gunta, reiterada pelos pais e pela orientadora
quena abertura contida no modo de narrar os pedagógica: o aluno sabia ou não as letras? De
impasses de sala de aula pôde ser transformada nosso lado, como profissionais engajadas na
em uma demanda a qual não perdíamos a chan- interface psicanálise e educação, uma torção
ce de fazer circular por todo o grupo docente moebiana abriu um tempo de estudos silen-
para – juntos – erguermos algumas perguntas. ciosos para, mais adiante, retornar à mesma
E apareceram, num espaço formativo que se rede de ensino o que estávamos aprendendo;
inaugurou perante as angústias geradas nos não queríamos bancar as psicólogas quando
impasses do quotidiano escolar, muitas boas alguns escritores e escritoras pareciam des-
perguntas. Foi numa reunião no Ateliê de La- bravar nossos caminhos. Após alguns anos, e
boratórios, espaço em que aprendíamos juntos muitos caminhos teóricos percorridos, perce-
como implementar laboratórios de aprendiza- bemos que na sabedoria das falas de muitos
gem nas escolas, que uma professora, já tocada docentes, e nos reiterados paradoxos que o
2 Neste artigo, alfabetização e letramento são perspectivas ensinar lhes apresentava, havia uma riqueza a
que não trabalharemos de modo a conceitualizá-las exaus- ser compartilhada.
tivamente. Entretanto, a relação entre os dois processos –
alfabetização e letramento – é uma tensão que manteremos
Assim, testemunhamos que, de fato, a
no horizonte ao fazê-los se tramarem à constituição do criança vai conquistando o mundo letrado
sujeito letrado. Enquanto a alfabetização mantém relação num tempo que é muito singular para cada
com as estratégias utilizadas para a decifração do código
alfabético e numérico, o letramento, por sua vez, guarda sujeito. A pergunta “por onde anda a cabeça
relação com a linguagem, indicando uma imersão no mun- do aluno?”, nesse tempo de meditação em que
do letrado em que a criança já está inserida muito antes
de que lhe seja possível a decifração do código. Enquanto se entrega a seus devaneios, recuos, silêncios,
a alfabetização ocupa-se da aquisição da escrita por um talvez possa ser pensada junto com “quando
sujeito, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos
da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade
anda a cabeça do aluno?”, um convite a pensar
(TFOUNI, 1995). esse tempo – aparentemente – “invisível” como
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Ver o invisível do letramento
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Ver o invisível do letramento
modo singular como cada um se fará letrado idas e vindas, de um sujeito que emerge nas tra-
nesse percurso. mas da cognição e do desejo. A psicanálise tem
A singularidade da travessia de cada crian- especial afinidade com a lógica particular dos
ça na passagem da oralidade ao letramento paradoxos em que o “e” se faz conjunção muito
requererá a delicadeza de um olhar atento mais potente do que o “ou”. Dentro e fora, eu e
de um adulto que não se deixa atropelar pelo Outro, amor e ódio, saber e não saber são con-
tempo real, este em que corremos muito para jugações que têm pleno sentido na trama que
não sair do lugar, mas um olhar que escuta no permite a emergência do sujeito. Somos feitos
silêncio, que lê na ausência da letra... Ousadia e efeitos de linguagem, manchados com a cor
de jogar com o tempo, de retardá-lo, de escan- do O/outro muito antes de nosso nascimento
di-lo. Quando o jogo com o tempo não se ins- biológico. Somos um acontecimento discursivo,
taura e a prática docente localiza as crianças na corpo tatuado de marcas simbólicas; corpo
polarização das posições alfabetizado ou não atormentado pelos significantes para sempre
alfabetizado, a escola perde a chance de regis- “nossos” e do O/outro. Como lembra Galeano:
trar o que ocorre na passagem, os múltiplos “Texto provêm do latim textum, que significa
desdobramentos de uma criança que transita tecido. Com fios de palavras vamos dizendo,
em gerúndio pelas letras até enunciar-se como com fios do tempo vamos vivendo. Os textos
sujeito letrado. Difícil mesmo ver e qualificar o são como nós, tecidos que andam.”5
que ocorre entre a diástole e a sístole, entre o Se nas letras Calvino (2010) nos permite
fluxo e o refluxo do mar da linguagem. situar zonas intermediárias em que aparentes
Um certo relevo dessa travessia incerta e contrários se justapõem, nas artes, Escher,
oscilante pode ganhar destaque quando, ins- com seus desenhos, figura espaços impossíveis
pirada pela discreta ética do tempo e do olhar, regidos pela continuidade entre aparentes des-
é lida entre as linhas de Seis propostas para contínuos. Tomemos as imagens de Dia e noite
o próximo milênio (CALVINO, 2010). Conferir (Figura 2) e Moebius II (Figura 3), localizadas
relevo a uma superfície discursiva em ondula- neste artigo no item sobre a topologia. Apreciá
ção é como realçar a cor do tempo (FRÖHLICH; -las implica colocar-se em movimento, bailar a
MOSCHEN, 2017), paradoxo poetizado por posição do olhar e deixar-se navegar por suas
Quintana (2005)4 e tratado como indefinível e linhas. Para olhar quadros como esses, em que
não dicionarizável: acionar um relógio impre- a imagem não se dá a ver toda, de uma só vez, é
ciso de ver para localizar um tempo em que o preciso uma leitura circum-navegacional, como
aluno pode estar letrado e não letrado. nos diz Umberto Eco (1994); leitura em que
O valor de cada uma das seis propostas somos forçados a adentrar numa temporalida-
sustentadas por Calvino está no espaço aberto de “mais subjetiva”, num jogo do pensamento
pela tensão irreconciliável que mantém com (um esforço de raciocínio) com o olhar (sempre
seu oposto: “entre diferentes polos oscilam enganador, poético) que vai da antecipação à
alianças paradoxais” (CALVINO, 2010, p. 59). retroação. Ler os espaços paradoxais de Escher
É a possibilidade da sobreposição entre polos leva o pensamento a uma experiência daquilo
antagônicos como rapidez e lentidão, exatidão que não se pode registrar a partir de um olhar
e indeterminação, visibilidade e invisibilidade pontual, como fruto automático de um instante
– e não a sua suposta descontinuidade estável de ver, mas, sim, que precisa tramitar pelos vol-
– que dá condições de registrar os volteios, as teios que deslocar-se de ponto de vista permite.
4 “Há uma cor que não vem nos dicionários. É essa indefi- 5 Essa referência creditada a Eduardo Galeano é comumente
nível cor que têm todos os retratos, os figurinos da última citada como epígrafe em trabalhos acadêmicos e revistas.
estação, a voz das velhas damas, os primeiros sapatos, Entretanto, não foi possível localizar sua fonte primeira.
certas tabuletas, certas ruazinhas laterais: a cor do tempo.” Há indicações de que seja uma frase que foi proferida por
(QUINTANA, 2005, p. 97). Galeano durante uma entrevista e transmitida de modo oral.
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Trata-se de uma leitura que implica a susten- sua alfabetização – que aqui chamamos de jogo
tação de uma duração temporal em que o arco das letras –, que talvez pudesse até mesmo preo-
da produção da imagem (e do sujeito, repre- cupar seus professores. Calvino precisou de um
sentado por um significante a outro) se esgarça certo tempo, de uma parada distendida no ter-
e encontra seu fechamento quando é possível ritório da imagem-narrativa, até que emergisse
nele incluir paradas, oscilações, retornos. na posição de poder “colocar o preto no branco”,
Na pressa contemporânea, nem sempre fazendo com que a palavra escrita passasse a
sublinhamos esse tempo anterior/interior que contar a partir de uma certa queda das imagens.
precede o instante do eureca, no dizer de Maria Na vida psíquica o tempo é uma riqueza
Rita Kehl (2009), ou o momento de concluir, de que somos avaros, diz Calvino (2010). A
nas palavras de Lacan (1998b). Um tempo pressa só interessa à vida na medida em que se
de meditação, em que as coisas estão estra- alterna com diferentes maneiras de se retardar
nhamente fora de ordem e ainda desconexas a passagem do tempo. No seu dizer: “Não se
e que Freud (1969a), em A interpretação dos trata de chegar primeiro a um limite preesta-
sonhos, nos faz entender como sendo um tempo belecido; ao contrário, a economia do tempo
ocioso que antecede as descobertas criativas, é uma coisa boa, porque quanto mais tempo
os “achados” aparentemente espontâneos que economizamos, mais tempo poderemos per-
independem de nosso raciocínio. No processo der” (CALVINO, 2010, p. 59). Talvez a máxima
de criação artística, na pesquisa intelectual, no latina Festina lente (“Apressa-te, lentamente!”)
setting analítico e na escola, a tramitação por traduza a sobreposição rapidez e lentidão que
uma temporalidade que dura e o atravessamen- Calvino supunha ser bem-vinda a este milênio.
to de um espaço que se desenha em desconti- Na esteira do letramento, certa demora prepara
nuidade-contínua é condição necessária para o sujeito para uma outra posição na linguagem,
a emergência de um sujeito na relação com sua dá-lhe condições de enunciar-se na escrita.
obra, seu achado, sua análise, suas letras. Quando o professor endereça à criança
Calvino (2010) relembra que o momento sua demanda de leitura, ele dispara, do lado
que antecedeu sua alfabetização foi um tempo do estudante que com ele se enlaça de modo
em que a operação fundamental de alojar-se no transferencial, a pressa por uma resposta. Ao
intermediário, no nem ainda isso, nem ainda aluno não é concedido tempo infinito. O O/
aquilo, foi-lhe conferida pela sua paixão pelos outro, meus colegas e o tesouro simbólico que
quadrinhos – nem só imagem, nem só narrativa. atualizam, é bússola para meu trâmite e me
Ele era um devorador de comics que, em sua apoio nele para medir meus movimentos, mas,
infância, migravam dos Estados Unidos para a ao mesmo tempo, retardo a resposta, preciso
Itália, mas que ainda chegavam sem os balões de um tempo de meditação, preciso registrar
dos diálogos dos personagens. Tinha como pas- o que se move em mim e no mundo a partir do
satempo/pensatempo6 inventar as conversas, que meu professor demanda. Manchado pela
criar a história a partir dos desenhos. Os qua- cor do O/outro me preparo para, mesmo sem
drinhos foram para ele uma verdadeira “escola muita certeza, algo dizer, e me antecipo: sei ler!,
de fabulação, de estilização, de composição da ainda que gagueje um pouco! É na tramitação
imagem” (CALVINO, 2010, p. 109), permitiram desse tempo, ao mesmo tempo apressado e
um jogo entre a palavra e a imagem que acabou demorado, que o sujeito é capaz da asserção
por “retardar” sua concentração na palavra es- subjetiva que o localizará como leitor (e escri-
crita. Atraso atribuído a esse tempo anterior à tor). É essa tramitação que o autorizará ao jogo
das letras – como teremos ocasião de construir
6 “Pensatempo” é uma expressão preciosa de Mia Couto, e
que é título do livro Pensatempos (COUTO, 2005), coletânea
ao retomarmos o trabalho de Lacan (1998b)
de pensamentos do autor e seu modo de ver o mundo. acerca do tempo lógico.
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Ver o invisível do letramento
A narrativa docente conta muitas histórias cesso interrompido, muitos dos relatos dos
sobre crianças que parecem estar aprendendo professores eram carregados de angústia e,
a ler mas, em seguida, esquecem tudo como muitas vezes, paralisia e adoecimento, numa
num passe de mágica. São, muitas vezes, luta constante contra os ponteiros do relógio
narrativas angustiadas que buscam logo uma do ano letivo. Ao não localizarem o “por quan-
solução. Enredos que não tomam o tempo do anda a cabeça do aluno?”, os professores
necessário para se debruçarem sobre o que pareciam orientar o olhar para uma lógica do
poderia estar acontecendo, leitura que não é déficit: “falta uma vitamina”, “falta um clique”,
circum-navegacional, contendo as idas e vindas “lê, mas falta a compreensão”; lógica que, su-
indispensáveis a que uma nova posição diante punham, precisaria adicionar àquilo que falta
do problema possa advir. A angústia e a dificul- ao aluno para que ele retomasse seu processo
dade de leitura docente – sim, também se trata de letramento. Na maioria das vezes, o psicó-
de um impasse que se cifra do lado da posição logo, era citado como o profissional capaz de
de leitores dos professores – parece agudizar se ocupar desses déficits.
quando os alunos atracam neste tempo em que Para que avancemos na direção de oferecer
sabem e não sabem, leem e não leem, escrevem suporte à angústia – e não apaziguamento – dos
e não escrevem. docentes que testemunham o que se visibiliza
Parece ser especialmente difícil acompa- como uma parada na travessia rumo ao letra-
nhar a criança quando ela anuncia que precisa mento, e que se invisibiliza como os rodeios
de um tempo mais alargado para jogar com a necessários à assunção de uma nova posição na
língua, com a forma das letras, com as cores e linguagem, nos deteremos no trabalho de Lacan
os números, com os suportes para a escrita. A (1998b) com o tempo lógico. Nosso convite ao
oscilação da criança nesse momento de um ina- leitor é para que percorra a retomada das letras
cabamento quanto a uma posição letrada acaba de Lacan guiados pela pergunta sobre o lugar
por causar muitos impasses na escola, tamanha do tempo – em suas detenções – na assunção
é a demanda para que ela dê provas de habitar de uma posição letrada por parte da criança.
esse outro tempo que insiste (e persistirá) em
pulsar de acordo com o Outro social. Esta pres- Tempo para compreender e
sa pode levar o docente a valorizar unicamente
aquilo que se apresenta como cumprimento letramento
de uma demanda cognitiva dirigida à criança, Estruturar-se como sujeito letrado não é
aquilo que pode estar sob seu olhar, visível, a uma construção que se faz no tempo como
alfabetização em sua manifestação concreta de quem acumula tijolos para construir uma edi-
um bem-fazer com as letras. Os cursos de “ca- ficação, o que não significa, contudo, que o jogo
pacitação continuada”, termo usado pela rede temporal lhe seja dispensável. Aceder à posição
de ensino desta pesquisa, eram proposições, na letrada implica uma operação que, se dadas as
maioria das vezes, massificadas e bastante ins- condições de tramitação no tempo em duração,
trumentalistas relativas ao processo de alfabe- se dará por um ato, por uma precipitação que
tização e letramento, apresentando operadores levará à emergência em uma nova posição na
de leitura que não fariam mais do que contri- trama simbólica de que somos efeito. Um modo
buir para que os docentes soubessem detectar de ver e nomear os processos temporais sin-
a presença de sinais de alfabetização em seu gulares de que o letramento se faz, para além
vértice de uma positividade, índices daquilo da lógica binária “alfabetizado ou não alfabe-
que já se mapeou previamente do processo de tizado”, pode ser buscado ao desdobrarmos a
letramento de modo geral. Quando o esperado afirmação de Lygia Clark, destacada por Rivera
não acontecia, ou se apresentava como pro- (2008), de que “se fazer é tempo”.
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Lacan (1998b), para avançar sobre a questão costas de cada um dos prisioneiros. Durante
do tempo em psicanálise, parte da formulação o jogo, não poderiam comunicar-se com os
freudiana do a posteriori como temporalidade demais, mas poderiam olhar as costas de seus
que rege a processualidade do trabalho de companheiros. O primeiro que deduzisse a cor
elaboração psíquica (FREUD, 1969b): só depois em suas costas deveria sair pela porta pro-
tem-se a possibilidade de se ver decantar o clamando o resultado de sua dedução lógica.
sentido daquilo que estava antes. No esquema Aceito o desafio, nas costas de cada um dos três
do a posteriori (Figura 1), simplificado a se- prisioneiros foi colado um disco branco, sem
guir, percebemos de que forma o tempo opera utilizarem os pretos. Após terem se observado
como retroação, permitindo que o trabalho de por certo tempo, os três saíram pela porta e, em
rememoração seja sempre um trabalho de (re) separado, revelam a mesma dedução:
escrita do passado. Sou branco, e eis como sei disso. Dado que
meus companheiros eram brancos, achei que,
Figura 1 – Esquema do a posteriori
se eu fosse preto, cada um deles poderia ter in-
ferido o seguinte: ‘Se eu também fosse preto, o
outro, devendo reconhecer imediatamente que
era branco, teria saído na mesma hora, logo,
não sou preto.’ E os dois teriam saído juntos,
convencidos de ser brancos. Se não estavam
fazendo nada, é que eu era branco como eles. Ao
que saí porta afora, para dar a conhecer minha
conclusão. (LACAN, 1998b, p. 198).
Cada um dos três prisioneiros deduz ser
branco apenas olhando o disco aderido nas
costas dos demais e calculando seus movimen-
tos em direção à porta. A urgência em concluir
primeiro produz um aumento de tensão na
Fonte: Fröhlich (2014, p. 96). prova e o jogo de olhares entre os prisioneiros
passa a ser bússola para realizarem a leitura da
A temporalidade em que o depois se faz an- cor de si e afirmarem “eu sei”. Esse apólogo é,
tecâmara para o antes é trabalhada por Lacan para Lacan (1998b), um modo de figurar a as-
(1998b) por meio de um problema de lógica, serção subjetiva em sua absoluta dependência
um sofisma, por ele nomeado como “o apólogo da posição que o O/outro ocupa na – e confere
dos três prisioneiros”. Nessa proposição, Lacan à – trama simbólica. É a coreografia que advém
(1998b) apresenta o “tempo lógico” como uma da visão da cor que o outro carrega em si que
tramitação por três diferentes instâncias lógi- prepara e dispara, no adensamento do tempo,
cas – instâncias cujo atravessamento permite a urgência em se lançar à enunciação de um
que um sujeito se precipite, num ato, em uma saber sobre si.
nova posição na trama simbólica. O sofisma é No desdobramento da solução do sofisma
como um jogo temporal e posicional. Vejamos estão alinhadas três modalidades temporais:
seu enunciado. instante de ver, tempo de compreender, mo-
O diretor de uma prisão propôs a três pri- mento de concluir – acontecem duas escan-
sioneiros que iria libertar aquele que antes sões suspensivas dos prisioneiros diante da
descobrisse qual cor estaria colada em suas porta, isto é, os prisioneiros, ao se olharem,
costas. Dentre cinco discos – três brancos e dois vacilam em duas paradas e duas partidas de
pretos –, três foram escolhidos e colados nas seus lugares, antes da dedução final. É nesses
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Ver o invisível do letramento
dois movimentos, nessas duas escansões, no incluirá duas escansões suspensivas: tempo de
tempo de compreender, que gostaríamos de objetivação e tempo de meditação.
nos deter: possivelmente nessas hesitações é O tempo de objetivação é operado pela reci-
que encontramos a chave para abrir a possibi- procidade. Nele, o prisioneiro A faz a hipótese
lidade de armar condições, na escola, para ler de ter um disco preto nas costas. Então, A
(em antecipação) onde parece que nada está imagina o que B pensaria se essa possibilidade
escrito, perceber onde parece que nada está fosse efetiva. A, então, coloca-se no lugar de B
acontecendo relativo à alfabetização. Dessa e pensa: B, se estivesse vendo um A preto, e
leitura pode resultar a percepção, por parte do acreditando ele também ser preto, já teria visto
professor, do jogo espaço-temporal em que o C sair pela porta, mas C não sai do lugar. Eis que
aluno está imerso. Acompanhemos, novamen- A começa a pensar-se branco, e imagina B su-
te, o movimento dos prisioneiros nomeados pondo-se preto, logo C (vendo um branco e um
como A, B e C, para que possamos decantar, do preto) também não deixaria a sala. Assim, A se
trabalho com esse apólogo, elementos que nos dá conta de que tomar-se por branco não é uma
permitam construir um bom lugar de leitura. boa hipótese de partida e volta a se conceber
como preto – hipótese que mesmo que se veri-
fique falsa seria a única que permitiria chegar
Instante de ver a uma conclusão (PORGE, 1998). O prisioneiro
O que logo o sofisma revela é a ideia de que então retoma seu raciocínio: A é preto, B o vê
avistar dois discos pretos nas costas dos pri- preto, se C não sai é porque C vê um branco e
sioneiros faz supor de imediato que se tem um um preto. Entretanto também pensa: se B se
disco branco colado às costas. Essa seria uma pensa branco (e vê A como preto), B não pôde
evidência, dada a priori, que conduziria uma tirar a conclusão de que é branco a partir da
exclusão lógica, orientando todo o movimento. não saída de C. Ora, se B não sai é porque não
Entretanto, não é essa a combinação de cores me viu – A – preto, então a hipótese de ser preto
que eles avistam. Na escola, na angústia em é falsa e devo ser branco. É o fato de B e C não
ver, na constatação que o instante propicia, terem saído imediatamente, e terem se demo-
aquilo que se espera, dois discos pretos, ou rado, que permitirá a cada um pensar-se como
seja, a alfabetização em seu desdobrar como branco. Assim, cada um deles tendo feito esse
decifração do código, conduz seus docentes a primeiro raciocínio, de colocar-se no ponto de
se precipitarem em concluir que nada acontece. vista do pensamento do outro, adianta-se em
É preciso sustentar que a abertura a um tempo direção à porta.
intermediário há de ser feita. Emerge o tempo de meditação operado por
escansões suspensivas. Ao ver B e C precipita-
rem-se junto a ele rumo à porta, A volta a sus-
Tempo de compreender peitar de que pode ter sido visto com um disco
Sem enxergar os dois discos pretos que preto nas costas e para – primeira escansão
precipitariam uma decisão de forma direta, o suspensiva –, envolvendo-se numa retomada do
prisioneiro A deduz: se eu fosse preto, os dois raciocínio. Como cada um está na mesma situa-
brancos que estou vendo não tardariam a se ção que A, cada qual se depara com a mesma
reconhecer como sendo brancos. O sujeito aqui dúvida, no mesmo momento. Nesse tempo de
já aparece num jogo de intuição pelo qual ele vacilo, A inclui em seu raciocínio que os outros
objetiva algo mais do que os dados de fato de também pararam, encontram-se com a mesma
cuja aparência lhe é oferecida nos dois brancos: dúvida, pois se fosse mesmo preto – como
esse é o tempo do raciocínio (PORGE, 1998), voltou a pensar –, B e C teriam prosseguido. A
da subjetivação de um sujeito recíproco – e então pensa que é por verem-no como branco
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que os demais também vacilam, então toma a de experienciar a consistência de uma certeza.
iniciativa de sair afirmando-se branco. Pelas E é como se o tempo de compreender se prolon-
mesmas razões de antes, todos tornam a partir. gasse após o momento de concluir, pois é fora
O movimento de todos faz A hesitar mais da sala – e às vezes literalmente fora da sala de
uma vez e ele passa a refletir numa segunda aula – que o sujeito pode refazer seu caminho
escansão suspensiva. Ele pergunta: será que e formular sua dedução fundada na hesitação
realmente posso fundar minha certeza nos do outro. É quando o momento de concluir
movimentos de B e C? Será a mesma coisa que retroage sobre o tempo de compreender, va-
recomeça? Quanto tempo isso ainda vai durar? lendo-se do só-depois freudiano. Entretanto,
(PORGE, 1998). O progresso lógico decanta- paradoxalmente, foi preciso primeiro concluir
do dessa escansão precedente faz A assumir pela tramitação no tempo de compreender,
o ponto de vista de B e imaginar o trajeto, e para depois refletir.
suas paradas, sobre o que ele supunha ver Em trabalhos anteriores, junto à formação
nas costas de A, e pensa: se B se achou branco de docentes de escolas públicas do Rio Grande
indo em direção à porta ao ver um preto em A, do Sul, o núcleo de pesquisa ao qual as autoras
e se ele raciocinou o mesmo que A, ao mesmo deste artigo estão vinculadas muito se ocupou
tempo, e parou novamente, então: A pensa que em sublinhar a importância do momento inter-
se B via nele um preto e imaginou tudo aqui- mediário do tempo lógico. Temos constatado
lo no momento da primeira hesitação, seria que, no território da escola, o calendário do ano
impossível ter parado novamente. E se B está letivo e a pulsação de um tempo social fazem
parando é porque vê em A um branco, e não as vias de acelerar o olhar de muitos docentes
um preto. E como se baseou em B, dessa vez A que buscam logo encontrar sinais em seus
infere que a única forma de alcançar a certeza alunos de que a alfabetização esteja em seu
seria recuperar esse atraso diante dos outros curso. Pressa que faz com que rapidamente
e concluir antes que B o faça. A única maneira concluam – saltando do instante de ver ao
de alcançar a certeza seria se apressar em dizer momento de concluir – que no aluno nada está
que é branco. acontecendo. Na estruturação de uma posição
letrada, há uma pressa que nos interessa, mas
esta não é a que acelera e atropela as condições
Momento de concluir do concluir, suprimindo o tempo de tramitação
Assim, o prisioneiro A finalmente conquista intermediária.
a terceira evidência: apresso-me a me afirmar Se nosso percurso permite localizar no
como branco, para que esses brancos, assim tempo de compreender a duração necessária
considerados por mim, não me precedam, reco- à armação das condições para que o sujeito se
nhecendo-se pelo que são. Esse momento marca precipite, no momento de concluir, em uma
o que Lacan (1998b) chamou de asserção sobre nova posição na linguagem – eu sou leitor! –,
si, tempo em que o sujeito conclui sobre quem será também de uma duração temporal que
ele é a partir da coreografia que protagonizou decantará a condição de derivar, contradizendo
junto aos outros. No jogo, como cada um é A, vai a rápida conclusão contida no instante de ver, a
concluindo sobre sua posição ao mesmo tempo. surpreendente constatação de que uma figura
O sentimento de pressa vai aumentando ao topológica, como a banda de Moebius (Figura
longo do jogo, dando densidade à tensão que, 3), contém uma única face. É somente se nos
em seu ponto máximo, acaba por precipitar a permitirmos durar na experiência com a banda
conclusão para cada um dos prisioneiros. Sair e percorrê-la fazendo nela duas voltas que po-
pela porta afirmando-se branco é um ato em deremos concluir de modo a desmentir o que
que o sujeito “se joga porta afora” mesmo antes intuitivamente percebemos quando do instante
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Ver o invisível do letramento
de ver: não estamos diante de duas faces, mas são superfícies topológicas sobre as quais La-
de apenas uma que se tece em continuidade e, can (2003) se debruçou para pensar a forma
com isso, produz a experiência de um espaço – a estrutura – de emergênciado sujeito. Modo
em que verso e avesso não se relacionam de for- de “pegar com os olhos” aquilo que é difícil de
ma descontínua. Mais uma experiência potente apreender. A leitura cuidadosa dos contornos
para localizar as coordenadas da posição em desses objetos topológicos, suas transforma-
que se encontram, durante uma duração tem- ções, extravia qualquer tentativa de estabelecer
poral singular, aqueles que fazem a travessia da um dentro (íntimo) em descontinuidade com
oralidade rumo ao letramento: alfabetizados e um fora (exterior) como topos da emergência
não alfabetizados. do sujeito. Sua apreciação permite figurar um
território matizado pela extimidade, expres-
são utilizada por Lacan (1997), traço afeito
Topologia e superfície: a às características constitutivas da emergência
paradoxal localização do sujeito do sujeito. Se existisse uma planta possível do
em letramento êxtimo, esta não saberia ser geométrica, sugere
Porge (2009); ela requereria uma topologia.
A topologia é um ramo da matemática que Em trabalhos anteriores, debruçamo-nos so-
ficou conhecido como a “ciência da borracha”. bre como a experiência com o literário poderia
Nesse campo, não importa a forma nem a se converter em um convite para operar com
extensão das figuras; importa, sim, se de sua as palavras – por jogos de letras, alteridade e
construção deriva uma estrutura capaz de ser identificação – de forma a contribuir para que
transformada através de homeomorfismos, o sujeito encontrasse as vias de delinear o que
sem que se utilize rasgar ou pregar (VÍCTORA, nomeamos como uma topografia para si, uma
2010). Para a topologia interessa o movimento espacialidade em que ele pudesse emergir
de transformação de uma figura em outra, suas como sujeito da leitura e da escrita. Se antes
deformações e (de)efeitos. Conforme Víctora pensávamos em termos de topos-grafia, ou seja,
(2010), Lacan encontrou na topologia uma em um jogo de letração (KUPFER, 1999)7 como
forma de enunciar questões próprias a seu causa do sujeito da leitura e da escrita, a partir
campo, como as relações que se estabelecem de Lygia Clark (RIVERA, 2008) começamos a
entre eu e outro, entre interior e exterior, bem pensar num sujeito que no ato de se fazer é tem-
como modos de cadenciar uma temporalidade po. Espaço e tempo imbricados constituem esse
não cronológica. No escopo deste trabalho re- sujeito que, com Lacan (1998b), passaremos a
tomaremos a superfície topológica da banda pensar não somente a partir de uma “topogra-
de Moebius, estrutura mínima em que veremos 7 Inspiradas em Kupfer (1999) e nos jogos de espaçamento
realizada a máxima de Rimbaud, o “eu é um de Milmann (2013), além do trabalho com crianças no
outro” – ou, dito de outra forma, o dentro é o Ateliê de Criação, desdobramos a ideia de que o jogo de
letração era o brincar que emergia nesse espaço como
fora (LACAN, 1985). Para tanto, vale situar uma necessidade de jogar com as letras, inicialmente de seus
ressalva inicial: superfícies topológicas não são nomes próprios, depois com as palavras que surgiam no
compartilhamento, e de profaná-las: atando, unindo, se-
propriamente metáforas do sujeito, no dizer parando, escandindo... Jogos que tinham um liquidificador
de Porge (2009). Assim como o apólogo dos no qual as palavras em transformação eram jogadas para,
ao ligar o aparelho, verificar que outras conformações
três prisioneiros, essas figuras topológicas são as letras lhes reservavam. Jogos com as letras, em sua
modos que nos levam a conduzir o pensamen- dimensão gráfica, mas também tínhamos no horizonte do
trabalho o jogo com a letra na concepção lacaniana, como
to sobre a maneira como o sujeito emerge no traço esvaziado de sentido, marca em estado de ruína, resto
campo do Outro. como pegada sem significado no corpo e que pode evocar,
A banda de Moebius, assim como a garrafa ou não, o trabalho de produção de sentido. Nesse tempo
da experiência, tínhamos a lógica do espaço em relevo para
de Klein (da qual não trataremos neste artigo), conduzirmos o trabalho com as letras; uma topos-grafia.
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fia de si”, mas também numa “topologia de si”: com o espaço se faz a topologia, mas também
topologia que nodula, de modo inextrincável, da inclusão de uma dimensão temporal na
espaço e tempo. produção da imagem; dimensão esta que opera
Como mencionamos antes, Escher, com por uma passagem da antecipação à retroação.
sua arte, dedicou-se a desenhar espaços cuja Essa temporalidade pode redundar numa expe-
estrutura prescindisse de descontinuidades riência do tempo distinta do sequenciamento
claras e estáveis, com continuidades fluídas e cronológico linear, implicando o surgimento
fronteiras borradas. Conforme Ernst (1991), de um instante que pode parecer não terminar
Escher mostra-nos como uma coisa pode ser ou ainda de horas que podem passar como
ao mesmo tempo côncava e convexa; que as um instante. Um dos desenhos de Escher que
suas figuras podem andar no mesmo momento aqui nos interessa de sobremaneira é o que ele
e no mesmo lugar, tanto escadas acima quan- intitulou Banda de Moebius II.
to escadas abaixo, que as coisas podem estar
Figura 3 – Banda de Moebius II
ao mesmo tempo tanto dentro quanto fora.
Escher não é um surrealista que, como por
encanto, apresenta-nos uma miragem; mas é
um construtor de mundos impossíveis, que dá
contornos ao invisível rigorosamente segundo
as leis e de tal forma, que qualquer um que
saiba apreciá-lo pode compreender (ERNST,
1991). Suas obras convocam o olhar a abrir a
perspectiva do paradoxo e aos múltiplos traje- Fonte: Escher (1963).
tos possíveis de percorrer.
Figura 2 – Dia e noite Uma banda ou fita de Moebius é um objeto
topológico que pode ser facilmente construído
com uma tira de papel. Para formá-la, parte-
se de uma tira de papel retangular, superfície
euclidiana que se caracteriza por conter uma
frente e um verso. Com essa dupla face, move-
mos na intenção de unir suas extremidades,
mas antes de colá-las operamos uma meia
torção, de 180º, em uma de suas pontas, para
Fonte: Escher (1938). então fecharmos a estrutura. Essa meia torção
nos catapulta ao espaço topológico em que o
Nas linhas e sinuosidades de Escher não que aparentemente contém duas faces passa
está implicada somente a noção de espaço. Há a ser experienciado como contendo apenas
uma temporalidade outra a que somos con- uma. Para fazermos essa experiência basta que
vocados a partir de suas curvas e contornos. acompanhemos a formiga de Escher em seu
Para apreciarmos o quadro Dia e noite, é pre- trajeto pela fita. Se ela a percorrer por duas
ciso contarmos com o tempo, deslocando-nos voltas e com suas patas for deixando marcas
e procurando habitar modos diferenciados sobre a superfície, ao final das voltas veremos
de apoiar o olhar e de deixá-lo navegar. Isso toda a fita manchada. Essa impregnação de
que experienciamos ao contemplar a obra de toda a fita seria impossível se ela tivesse sido
Escher dá materialidade ao lugar que a di- unida sem que uma meia torção fosse feita. Se
mensão temporal ocupa na estruturação das assim fosse, resultaria do passeio da formiga
superfícies topológicas. Não somente do trato apenas uma das faces manchada. É dessa expe-
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Ver o invisível do letramento
riência no tempo com a fita, após duas voltas para percorrer a fita que permite diferenciar
por ela, que decanta o desmantelamento da o direito e o avesso. A fita de Moebius permite
ilusão que o instante de ver poderia imprimir inscrever a temporalidade numa estrutura que,
no observador: a fita não tem duas faces, mas a princípio, poderia indicar somente o espaço.
apenas uma. No dizer de Granon-Lafont (1990, p. 26):
Encontramos aqui o ponto de cruzamento Apenas um acontecimento temporal diferencia
entre a experiência do espaço moebiano e a o avesso e o direito, uma vez que eles estão se-
travessia do tempo para compreender contido parados pelo tempo que se leva para fazer uma
no apólogo dos três prisioneiros. Assim como volta suplementar. A dicotomia entre as noções
no apólogo a asserção, por parte de um dos de avesso e direito não comparece senão ao
preço da intervenção de uma nova dimensão
prisioneiros, da posição subjetiva que o localiza como a do tempo. O tempo, como um contínuo,
na linguagem (tenho em minhas costas o cír- é que faz a diferença entre as duas faces. Se não
culo branco – sou leitor/escritor) só é possível há mais duas medidas para a superfície, mas
a partir de uma tramitação temporal que, em somente uma margem, o tempo então se impõe
sua duração, inclui os avanços e as duas para- para dar conta da banda.
das produzidas por obra da coreografia que se A topologia da banda não é para Lacan
estabelece entre os detentos rumo à porta, o (2003) uma forma de representar o sujeito do
momento de concluir, em que, como formigas, inconsciente. O modo como é engendrada, e
deslocamo-nos sobre apenas uma face, ainda como a percorremos, mostra-se como uma es-
que tenhamos a ilusão de duas, depende do trutura. Uma estrutura que é o próprio sujeito
atravessamento de duas voltas e a duração que do inconsciente enquanto estruturado como
esse deslocamento implica. No apólogo e na uma linguagem. Lacan (2003) sublinha esse
Banda de Moebius II, temporalidade e espaço ponto. A topologia não nos guia na estrutura,
se conjugam de forma singular para produzir ela é estrutura, refere Pereira (2008). Assim, o
o topos no qual uma asserção subjetiva poderá sujeito do inconsciente faz cair a ideia de inte-
ter lugar. rior e exterior, de dentro e fora, evidenciando a
Acompanhando professores preocupados proposição lacaniana de que “o eu é um Outro”,
com o andamento do processo de alfabetiza- em que o sujeito se constrói numa extimidade,
ção de seus alunos, percebíamos como essa exteriorizado no interior do Outro. Essa inusi-
“falácia de olho enganador” (ANDRADE, 2002), tada localização em coordenadas que rompem
que teimava em manter no horizonte do visí- com o binarismo dentro/fora foi registrada por
vel apenas a vista de um ponto, acomodava o Lygia Clark (1963) numa obra (Figura 4) em
olhar, tornando invisíveis muitos movimentos que ela deforma a superfície de uma lata para
do aluno que ainda se encontrava na duração fazer uma banda de Moebius, superfície em que
de um tempo para compreender. “o dentro é o fora”.
A experiência topológica da banda requer
Figura 4 – O dentro é o fora
esse passo para trás, para uma visibilidade do
fenômeno. Precisamos de certo afastamento
do objeto e do tempo para podermos produ-
zir o momento de concluir. Como dissemos,
se acompanhássemos uma das formigas de
Escher e com ela percorrêssemos a superfície
da fita de Moebius, somente depois da segunda
volta completa é que estaríamos novamente
no ponto de onde a formiga partiu, seu ponto
de origem. É somente o tempo que se leva Fonte: Lygia Clark (1963).
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Cláudia Bechara Fröhlich; Janniny Gautério Kierniew; Simone Zanon Moschen
Nesse jogo da superfície, interior e exterior permitem novos olhares para os alunos, novas
estão contidos um no outro, e a ideia de pro- possibilidades de leitura.
fundidade do sujeito é posta em questão, pois Um significante significa alguma coisa num
não há nada sobre ele oculto nas profundezas dado momento, num certo contexto de discur-
de um inconsciente que precisa vir à tona, so, mas não saberíamos dar seu significado no
ser revelado. Podemos conceber a cadeia in- mesmo instante, pois o significado não cessa de
consciente no “avesso” da cadeia consciente. deslizar pelo avesso e, no final das contas, uma
A unilateralidade da superfície explica que as vez que uma volta completa foi efetuada, já é
formações do inconsciente se produzem no um outro significante, dessa vez pelo direito,
discurso consciente sem transpor nenhuma que vem definir o primeiro (GRANON-LAFONT,
borda; os lapsos, os esquecimentos, produ- 1990).
zem-se no interior do discurso (DARMON, Ainda um último efeito paradoxal sobre
1994). Jogo de superfície discursiva em que a estrutura de Moebius, e que colabora para
significante e significado se relacionam de avançarmos um pouco mais sobre como o su-
forma ímpar. Mesma consideração de Calvino jeito letrado – pensando-o como a emergência
(2010), ao referir que se a profundidade está de uma posição na linguagem – se faz no tempo,
escondida, é na superfície. diz respeito ao corte na fita. Todo o trabalho
As relações entre significante e significado com o objeto topológico inclui atar, dobrar,
– e a subversão lacaniana da proposição de unir e também cortar. É no momento de um
Saussure8 – também é um paradoxo que acom- corte na figura topológica, ali onde uma marca,
panhamos na banda de Moebius. Um signifi- uma fissura se faz, é que vemos surgir o sujeito
cante não significa a si mesmo, um significante do inconsciente. É o corte que faz com que o
representa um sujeito para outro significante.9 inconsciente seja produzido como um avesso,
Para Granon-Lafont (1990), a fita subverteu num rápido reviramento de direito e avesso.
esta oposição significante-significado, inscrita Esse corte é um ato no tempo, que Lacan (2003)
sobre as duas faces de uma folha, uma vez que situa na linguagem como ato analítico, como
nela direito e avesso estão em continuidade, interpretação.
um no outro. Significante e significado não Esse corte é a interpretação, é o ato: o corte no
estão articulados um ao outro na forma cara tempo em que ele se realiza, mostra a superfície
ou coroa. “A volta temporal, a volta além que é da banda e ao mesmo tempo vai destruindo-a. O
preciso fazer no avesso, para voltar ao ponto de espaço se apresenta, se revela ao desaparecer,
se ‘esfumaçar’ enquanto tal. Momentaneamente
partida no direito, permite redefinir relações
ocorre a cisão, aparece o desejo do analisando
entre significantes e significados” (GRANON- [...] que justamente ao se revelar já se desfaz,
LAFONT, 1990, p. 34). Assim, um fator tem- pois não está mais como inconsciente. (PEREI-
poral marca o deslizamento dos significados RA, 2008, p. 109).
numa cadeia significante. Deslizamentos que Desse modo, o corte no tempo, interrupção,
8 Para demonstrar que o inconsciente é estruturado como marca da escansão, assinala a emergência do
uma linguagem, Lacan (1998a), em “A instância da letra
no inconsciente ou a razão desde Freud”, apropria-se do
sujeito do desejo. “Trata-se aí deste tempo,
conceito de signo formalizado por Saussure, e subverte-o, segundo Lacan, ignorado e incontável como tal
privilegiando o significante sobre o significado. Ao traço antes da operação” (GRANO-LAFONT, 1990, p.
que coloca o significante “sobre” significado, Lacan dá
valor de barra, dando ao significante uma primazia em 40). Assim, Pereira (2008) ressalta a importân-
detrimento da ordem do significado. cia de pensar a torção da banda com o corte,
9 É no Seminário 9, A identificação, que Lacan (2003)
apresenta a fita de Moebius para fundamentar a lógica do com isso que “não fecha” e que é da ordem de
inconsciente enquanto estruturado como uma linguagem. um real que sustenta sua superfície. No dizer
Vale-se da fita para enunciar as duas regras do significan-
te: o significante não pode representar a si mesmo e um
de Melman (2005), Lacan teria elegido a banda
significante representa um sujeito para outro significante. de Moebius como suporte do sujeito, uma vez
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Ver o invisível do letramento
que essa figura é instaurada por uma perda, tamente ao redor desse vazio, desse real (como
pelo corte operado sobre o plano projetivo impossível), desse ponto não especularizável,
desse objeto, que marca ali um buraco próprio que se estrutura o simbólico do desenho. É ao
à organização, um vazio ao redor do qual uma redor desse silêncio, num tempo da estrutura
rede de significantes se arma. O corte, o vazio que é aparentemente invisível, que as letras do
que se forma a partir dele, e a memória desse sujeito estão sendo armadas. É um ajuste de
buraco que veio constituí-lo são as próprias foco do professor que pode permitir que uma
coordenadas do sujeito. A memória da falta antecipação disso que ele não vê seja colocada
como oferecendo condições para que a lingua- em jogo, antecipação como temos trabalhado,
gem surja no lugar da coisa. que é sempre do campo da linguagem.
Acompanhamos pelas gravuras de Escher Nesses anos de trabalho, na companhia de
espaços moebianos em que jogos de espelhos docentes nas escolas da rede pública, perce-
dão contornos ao impensado e ao paradoxal. bemos o modo como o letramento se consti-
Nelas, o espaço e o tempo se entrelaçam por tuiu como um processo de contínuo jogo das
meio das dobras e ondulações que forçam o letras – tabuleiro de jogo que se estabelece
constante deslocamento do olhar e, por vezes, com o outro e a partir da palavra doada pelo
convocam a que nos desloquemos dando al- outro – que não termina com os anos da es-
guns passos para trás e nos perguntemos: onde colarização, e que tem menos relação com a
e quando estou? decifração das letras do que com uma imersão
no mundo que elas abrem. Foi nos encontros
Figura 5 – Galeria de artes
formativos, em que a literatura convidou/
desafiou os professores a narrarem sobre os
impasses com os alunos que aparentemente
não davam mostras de sua alfabetização, que
contornos discursivos acerca do invisível/
mudo/inaudível na passagem da oralidade
ao letramento das crianças puderam emergir.
Percebemos que na ampliação das condições
narrativas num espaço estabelecido por uma
horizontalidade de saberes, esse tempo mudo
e gerador de angústia nos professores – ao não
se localizar de imediato o sujeito das letras –
tornou-se passível de ser escutado e conside-
rado para o trabalho com crianças que ainda
não conquistaram a possibilidade da assertiva
Fonte: Escher (1956). “sou letrado”. Ao aprender a acolher os para-
doxos, próprios das idas e vindas do tempo
Em Galeria de artes, obra de 1956 (Figura de compreender, trabalhados neste artigo por
4), Escher (1956) mostra, por uma dobra es- meio das gravuras de Escher e do tempo lógico
pacial, a continuidade interior e exterior entre lacaniano, é possível abrir mão de uma lógica
as obras da galeria e a própria galeria. No cen- binária e navegar pelos interstícios de uma
tro do desenho há um ponto cego, um vazio, lógica ternária. Lógica inusitada no campo da
que é impossível para o artista representar escola, na qual, por um exercício de ver/ler o
graficamente. Isso o leva a deixar um espaço que ainda não está ali, é possível localizar o
em branco, um buraco que se faz necessário aluno na posição de letrado e não letrado, ao
como condição para a estrutura da obra. É jus- mesmo tempo, como um tempo de passagem.
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Cláudia Bechara Fröhlich; Janniny Gautério Kierniew; Simone Zanon Moschen
Em uma das primeiras reuniões do Ateliê de seu caderno, nada parecia acontecer. Enquanto
Laboratórios encontramos a professora Sílvia Sílvia tentava dar conta de seu fascínio e horror
e testemunhamos a sua aflição: “Não vai dar... de ter Ernesto no laboratório, as reuniões pa-
Não sei o que fazer com ele, não consigo ver reciam ajudá-la a separar-se do vivido e tentar
uma saída, ele não quer fazer nada que pro- dar contornos à experiência. Enquanto contava
ponho”. A angústia crescia e, a cada encontro, sobre o aluno e suportava a escansão que se
tínhamos a mesma notícia: “Venho aqui, falo, produzia entre uma reunião e outra, alguma
escuto ideias e parece que vou embora mais coisa se inscrevia. Em um de nossos encontros,
angustiada. E na escola já não sei mais o que narrou algo um pouco diferente:
fazer com a pressão para que ele escreva!”. Nou- Tudo o que me ocorria era tentar desviar o olhar
tra reunião, Sílvia tenta colocar em palavras a dele daquele esqueleto e focar nos jogos. Em vão!
fonte de seu mal-estar: “Ele não me olha, nem Já sabia. Por um instante, o que consegui foi que
para os jogos que ofereço, fica olhando para ele se interessasse pelo caderno e o lápis. Então
escreveu algo que eu só lia assim: eram cinco
um esqueleto que tem na sala”. Conhecíamos o letras, um número, um sinal de x, um número e
esqueleto, e ele foi colocado na sala de labora- três letras. Repetiu essa sequência até o fim da
tório por não ter outro lugar na escola. Rirmos folha. Eu reconhecia que eram letras e números,
com Sílvia ajudou que ela continuasse narrando mas nada conseguia ler ali.
esse encontro com o aluno: “Nada do que eu Mia Couto, Fernando Pessoa e Manoel de
faça tira ele daquele esqueleto, nenhum jogo Barros deram o tom para muitas reuniões
capturou Ernesto como aquele esqueleto. Eu depois dessa, emprestando diferentes modos
sei que tenho que fazer alguma coisa com isso, de olhar o mundo e de habitar a linguagem,
mas não achei o caminho. Tô com raiva desse Sílvia participou mais silenciosamente. Contou,
esqueleto!”. Sílvia já tinha como hipótese que muito tempo depois, que seus pensatempos
retirar o objeto da sala não garantiria a atenção nessa época “davam voltas”, e em muitas dessas
do aluno para onde ela gostaria que ele olhasse. reuniões pensou em desistir.
Enquanto Ernesto ficava tomado em espelho Até que uma torção moebiana precipitou
pelo esqueleto da sala, Sílvia ficava fixada ima- outro modo de ver e acompanhar Ernesto. Logo
ginariamente num a priori, em seu esqueleto/ no início de uma reunião, Sílvia toma a palavra
esquema de como deveria ser ensinar num afoita, sem deixar ninguém mais falar: “Olhem,
laboratório. Ainda que presa nesse esquema, olhem, olhem! Olhem como as coisas são! Estou
em que insistia em encontrar dois discos pretos muito feliz”. Não bastava que escutássemos, ela
nas costas dos prisioneiros (o a priori), o que convocava nosso olhar, queria que víssemos
não lhe permitia mover-se do instante de ver, ela dizer algo. Contou que não se conformou
desconfiava que seu papel era fazer uma inves- em não conseguir decifrar as letras de Ernesto
tigação, por meio do brincar, sobre o momento colocadas no papel pela primeira vez. Levou
em que Ernesto se encontrava diante da leitura para casa, para o ônibus, e nada de ler. Passou
e da escrita, algo que pudesse quantificar ou algumas semanas. Ernesto repetia o tal escrito.
qualificar para dar notícias à escola: afinal, por Então levou o papel para passear pela escola.
onde andaria sua cabeça? Na posição em que No recreio encontrou uma colega professora,
se encontrava, tomava o brincar como instru- que estava distraída juntando as bolas de fute-
mento para que ele “exercitasse” aquilo que bol, para quem mostrou o enigma que tanto a
viria a ajudá-lo nessa travessia da oralidade atormentava. A colega sorriu e logo leu: “Inter
para o letramento. Enquanto entendia o brincar 1 X 0 Cru”. Era a tabela do campeonato brasi-
de uma forma instrumental e utilitária, man- leiro! E fazia todo o sentido porque Ernesto era
tendo expectativas de ver as letras do aluno torcedor do Internacional. Sílvia sabia disso e
brotando em linearidade espaço-temporal de lamentava-se: “Como eu não vi isso? Como eu
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 191-210, out./dez. 2020 207
Ver o invisível do letramento
não li isso? Era óbvio demais. Tava lá, de forma das formações, ou “capacitações continuadas”
desordenada as letras, de modo espaçado, só instrumentalistas, a pesquisa acompanhou o
estavam fora do lugar...” modo como os professores narravam a sua prá-
Após vacilos, recuos e hesitações, Sílvia tica docente diante dos impasses no processo
parece ajustar o foco do olhar e assume uma de letramento de seus alunos.
nova posição de leitura em relação ao aluno, e Era nas reuniões semanais – formativas – do
passa a ver e supor muito mais ali onde o nada Ateliê de Laboratórios que muitas das angústias
parecia tomar conta dos encontros. Uma espé- docentes surgiam na tentativa de responder à
cie de pressa-demorada, uma abertura para o comunidade escolar se seus alunos estavam al-
tempo de compreender, fez-se necessário para fabetizados ou não alfabetizados. Percebemos
que no jogo dos olhares Sílvia visse e pudesse que essa pergunta somente era possível de ser
armar condições para que o jogo das letras respondida pelo exercício de deslocamento de
acontecesse para Ernesto. O futebol, suas re- uma lógica binária – do letrado ou não letrado
gras, o movimento dos colegas, ganhos e perdas – para uma lógica ternária, em que o aluno
fizeram as vias de tabuleiro de jogo, zona de poderia estar letrado e não letrado, ao mesmo
passagem para o mundo letrado. Ao darmos tempo. Como efeito desse deslocamento, era
relevo ao tempo de compreender como passa- possível ver/localizar um tempo intermediário
porte temporal para as letras, sublinhamos que nas narrativas dos professores, em que o aluno
há uma pressa que importa, mas na medida em sabia e não sabia ler, tempo de compreender
que ela está inserida nesse campo de jogo com que acompanhamos com o tempo lógico pro-
o outro, e não se confunde com a pressa como posto por Lacan (1998b). Para conseguir ver
acelerador da passagem do instante de ver ao e dar passagem a um aparente invisível na
momento de concluir. Este implica a conquista, construção do mundo letrado dos estudantes
ao longo do tempo de compreender, de uma é preciso que uma proposição formativa in-
independência em relação ao tempo apressado clua as condições de possibilidade para que
da demanda do Outro. os docentes vivenciem, eles mesmos, o tempo
No fim daquele ano letivo, Sílvia dizia: de compreender, e que suas narrativas sejam
A gente conversa muito e me despreocupei validadas como potentes exercícios de colocar
totalmente com o caderno dele. Nem sei dizer em foco visões de olhos fechados, no dizer de
quando isso aconteceu. Ele parece muito inte- Calvino (2010), jogo de antecipar aquilo que
ligente, só ainda não sei dizer como sei isso... E
ainda não está, mas que é preciso supor, ima-
ainda não sei como explicar isso para a escola,
que as conversas e as histórias que lemos juntos ginar. Desse modo, buscando coordenadas que
aqui ajudam. ajudassem a guiar os docentes por um tempo
que não se enfileira na cronologia do relógio
e de um espaço que não é mapeável pela geo-
Considerações finais
metria intuitiva, encontramos na duração do
Enquanto Piglia (2013) aposta que as Seis tempo de compreender – nos avanços e volteios
propostas de Calvino (2010) ainda serão lidas que lhe caracterizam – um operador que pode
no futuro como um antigo manual de estratégia dar contornos à angústia dessas passagens.
que será usado para sobreviver em tempos difí-
ceis, temos a intuição de que sua proposta cen-
tral, por ser um reiterado convite a navegarmos Referências
pelos paradoxos, suspendendo as lógicas biná- ANDRADE, Carlos Drummond de. A paixão medi-
rias, já tem contribuído no empréstimo para a da. Rio de Janeiro: Record, 2002.
configuração de uma ética do olhar na docência ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São
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Ver o invisível do letramento
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
210 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 191-210, out./dez. 2020
Cristiana Carneiro; Raisa de Paula Fernandes da Silva
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p211-226
RESUMO
O artigo tem como objetivo discutir entraves na escolarização a partir de
um estudo de caso realizado com uma adolescente diagnosticada com
Transtorno Opositivo Desafiador (TOD), Transtorno do Déficit de Atenção com
Hiperatividade (TDAH) e dificuldade de aprendizagem.1 Para isto, buscamos
aprofundar o tema das dificuldades de aprendizagem a fim de tecer uma
reflexão sobre o diagnóstico de Ana no que se dirige ao aprender. Discutimos
a diferença entre a preponderância do organismo em detrimento do corpo nas
leituras sobre entraves no aprender e sua relação com a patologização. Termos
como mal-estar, estilos cognitivos e de aprendizagem foram utilizados para
ampliar o debate sobre as dificuldades em estar na escola e responder às suas
demandas. Esta ampliação permitiu uma nova compreensão sobre o aprender
e sua relação com a escola.
Palavras-chave: Dificuldades de aprendizagem. Medicalização. Estudo de caso.
Mal-estar. Educação.
ABsTRACT
ANA, TEENAGER GRADE 10? REFLECTIONS ON THE
PATHOLOGIZATION OF LEARNING
The following article aims to understand what they are learning difficulties
from a case study of an adolescent diagnosed with Oppositional Defiant
Disorder (ODD), Attention Deficit Disorder with Hyperactivity (ADHD) and
learning disabilities. For this we seek to deepen on the subject in order to
better understand how learning disabilities are defined / reputable, so we could
review the case and make sure that it would set up this diagnosis. Discusses the
difference between the preponderance of the body over the body in the readings
* Pós-doutorado pela Universidade de Paris VII. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Professora Associada Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). E-mail: cristianacarneiro13@gmail.com
** Professora de Ensino Fundamental I da rede municipal do Rio de Janeiro. E-mail: raisadepaula@gmail.com
1 Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A pesquisa Infância, adolescência e mal-estar na
escolarização: estudo de casos em psicanálise e educação (CARNEIRO; COUTINHO, 2016), sob protocolo 28671414.1.0000.5243,
teve aprovação no comitê de ética nº 789.946
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 211-226, out./dez. 2020 211
Ana, adolescente nota dez? Reflexões sobre a patologização do aprender
RESUMEN
ANA, ¿ADOLESCENTE DE 10º GRADO? REFLEXIONES SOBRE LA
PATOLOGIZACIÓN DEL APRENDIZAJE
El artículo tiene como objetivo discutir los obstáculos en la escolarización
a partir de un estudio de caso realizado con un adolescente al que se le
diagnosticó Trastorno de Oposición Desafiante (TDA), Trastorno de Déficit
de Atención e Hiperactividad (TDAH) y problemas de aprendizaje. Para ello,
se buscó profundizar en el tema de las dificultades de aprendizaje para tejer
una reflexión sobre el diagnóstico de Ana en lo que se refiere al aprendizaje.
Discute la diferencia entre la preponderancia del cuerpo sobre el cuerpo en las
lecturas sobre las barreras al aprendizaje y su relación con la patologización. Se
utilizaron términos como “malestar”, “estilos cognitivos y de aprendizaje” para
ampliar el debate sobre las dificultades para estar en la escuela y responder a
sus demandas. Esta expansión permitió una nueva comprensión del aprendizaje
y su relación con la escuela.
Palabras clave: Dificultades de aprendizaje. Medicalización. Estudio de casos.
Malestar. Educación.
Introdução
Partindo de um diagnóstico entendido por O artigo se originou da interlocução entre
nós como enigmático, pois era estranho à uma pesquisa de campo e um de seus deri-
realidade vivida e observada das pesquisado- vativos, um trabalho monográfico realizado
ras com a adolescente, nos voltamos para as na Faculdade de Educação da Universidade
questões que envolviam o mal-estar de Ana em Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Teve como
relação à escola e suas demandas. O objetivo objetivo principal refletir sobre o diagnóstico
não foi dar um novo diagnóstico ou ratificar o de dificuldade de aprendizagem dado a uma
já dito, mas pô-lo em questão, no bom sentido adolescente de 15 anos, a partir de um estudo
do termo. Justamente no sentido da Resolução de caso. Este estudo se deu num contexto maior
nº 177 (BRASIL, 2015) do Conselho Nacional de pesquisa, pois foi parte da pesquisa Infân-
dos Direitos da Criança e do Adolescente (CO- cia, adolescência e mal-estar na escolarização:
NANDA), que assegura o direito de crianças e estudo de casos em psicanálise e educação (CAR-
adolescentes não serem submetidos à excessiva NEIRO; COUTINHO, 2016). A partir do interesse
medicalização, entendendo por isso a redução em discutirmos os entraves de aprendizagem
inadequada de questões de aprendizagem, e a possível patologização do aprender, surgiu
comportamento e disciplina a patologias. Moti- também o interesse em buscar alternativas de
vadas, então, por uma ampliação das questões compreensão para aqueles que não aprendem
que levaram Ana a um serviço de saúde mental de acordo com o padrão, com o que se espera
da infância e adolescência, voltamo-nos para o deles. Após apresentarmos um recorte desta
aprender e seus percalços. discussão no presente texto, trazemos o caso,
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Cristiana Carneiro; Raisa de Paula Fernandes da Silva
onde foi importante escutarmos o que a própria o nível desejado. Para além de uma aprendi-
adolescente disse sobre seu processo de esco- zagem mecânica, é importante entender que
larização e o aprender. Numa pesquisa onde cada aluno possui um estilo cognitivo (KUPFER,
a voz do sujeito foi compreendida como seu 2012) e, portanto, um ritmo de aprendizado
fundamento, escutar e mapear este lugar foi um diferente do outro, bem como uma forma de se
dos objetivos centrais da pesquisa-intervenção. relacionar com o conhecimento que será muito
Não obstante, também visou entender como particular. O que, com uma certa frequência,
sua família viu esse processo e ouvir os pais, não se procura saber são os fatores envolvidos
bem como os especialistas, que no caso foram na causa da chamada “dificuldade”. Causa esta
um psiquiatra e uma psicóloga. Compreender, que pode ser pensada como múltipla, gerada
ainda, o que a escola dizia sobre a adolescente por diversos aspectos, por exemplo, o tempo
no meio escolar, sobretudo em relação à apren- que cada um tem para aprender, o significado
dizagem. Desta forma, o artigo segue os quatro que a família dá ao aprender e à escola, os
eixos que foram trabalhados durante o tempo significados atribuídos ao aprender pela insti-
de pesquisa, os discursos da adolescente, dos tuição escolar e pela comunidade que o aluno
pais, da escola e dos especialistas, mostrando frequenta.
suas convergências, divergências e paradoxos. O problema neste texto se configura a partir
A metodologia utilizada na pesquisa amplia- de um questionamento: será que a aprendi-
da foi o estudo de casos múltiplos (CARNEIRO, zagem esperada pela escola, muitas vezes em
2018), aliado à pesquisa-intervenção, indicado um modelo homogeneizador e rígido, poderia
ao estudo de fenômenos complexos e em tempo estar produzindo a chamada dificuldade de
real, no sentido de que a pesquisa se deu ao aprendizagem de Ana? Qual o papel da família
mesmo tempo que a intervenção. O estudo de e da própria Ana nessa nomeação? Para iniciar
Ana foi realizado durante dois anos, conjunta- nossa resposta, discutimos dificuldades de
mente a mais um adolescente e três crianças, aprendizagem, pois o termo é muito falado e
ainda que no presente trabalho só a ela nos talvez pouco debatido para quem fala e para
dedicaremos. O material foi construído a partir quem o tem como diagnóstico. Além disso, tam-
de reuniões com os pais da adolescente, a pró- bém questionamos brevemente o movimento
pria adolescente, a escola onde ela estudou e os contemporâneo de medicalização da educação
especialistas que a atenderam no Instituto de e se a nomeação de dificuldade de aprendiza-
Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de gem, no referido caso, poderia se relacionar a
Janeiro (IPUB-UFRJ). A construção do material esse ethos, impactando seu desempenho e suas
foi feita a partir dos áudios gravados e de trans- relações com o conhecimento e com os pares
crições das falas dos sujeitos, bem como do na escola.
prontuário de Ana. Também foram utilizados Para começar, fazemos uma breve discussão
relatórios de visita à escola feitos pelos pes- sobre dificuldades de aprendizagem e fracasso
quisadores e relatórios de entrevistas clínicas escolar. Depois o artigo discorre sobre o apren-
realizadas pelas pesquisadoras coordenadoras. der e o não aprender na grande diferença de os
Dependendo da forma que se aprende, a pensar como substratos de funções cerebrais
escola pode nomear os alunos como portadores ou como marcas da trajetória de cada um com
de dificuldades, muitas vezes sem questionar o Outro, num enfoque onde o relacional é seu
seu próprio papel na formação dos modos de substrato.
aprender. Isso ocorre porque a escola está, Por fim, apresentamos o caso Ana trazendo a
com frequência, preocupada em homogeneizar discussão e análise embasada nos quatro eixos
o aprendizado sem muitas vezes entender o formadores da pesquisa (sujeito-família-espe-
processo que cada um desenvolve até atingir cialista-escola). A partir do caso, apontamos as
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Ana, adolescente nota dez? Reflexões sobre a patologização do aprender
noções de estilos cognitivos (KUPFER, 2012) e aquilo que a própria escola acaba por produzir.
mal-estar (FREUD, 2011) como saídas menos No entanto, ainda que essa crítica tenha tido um
biologizantes ao termo de dificuldades de impacto importante no final do século passado,
aprendizagem. o século XXI assiste a um amplo ressurgimento
da patologização do “fracasso” como sintoma
Contextualizando as individual. Proliferam-se os rótulos dados ao
“aluno-problema” e uma série de classificações
dificuldades patológicas começam a surgir para explicar
O debate sobre fracasso escolar é antigo no os entraves na aprendizagem e os problemas
Brasil, e envolve sobretudo uma busca sobre de comportamento. A medicalização surge e
as causas da não aprendizagem e da não per- se insere rápida e intensamente no contexto
manência de alunos na escola. Enquanto con- escolar brasileiro, passando a caracterizar o
ceito, é mutável e situado em um determinado sujeito como se ele fosse uma simples soma de
período histórico. Entende-se como fracasso características biológicas e comportamentais
escolar não somente o não aprender do aluno, (CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015).
mas também a legitimação, o reconhecimento Na tentativa de intervir sobre os alunos que
oficial do lugar daquele que não aprende, ou teriam dificuldades de aprendizagem, também
melhor, refere-se também ao que diz a escola surgiram a patologização e a rotulação daque-
sobre esse aluno ou o que faz a respeito (NU- les que não avançavam, sobretudo ancoradas
NES; SILVEIRA, 2009). em modelos de desenvolvimento mais uni-
Com a ampliação da escola, e o desenvol- versais. Após anos de repetência, muitos dos
vimento das sociedades a partir dos séculos alunos evadiam ou acabavam sendo mandados
XIX e XX, surgiram também as dificuldades para classes ou escolas especiais, pois se acre-
de aprendizagem. No Brasil, um país em cres- ditava que suas dificuldades eram algum tipo
cimento onde a democratização passou a ser de deficiência (SANTIAGO; SILVA, 2014).
uma meta, a expansão do ensino teve também É também sob essa ótica que surgem me-
que se haver com o lema “para todos”. Com a todologias específicas, às vezes consideradas
ampliação e a obrigatoriedade do ensino, a ideais no sentido de atender a todos. A lógica
escola se deparou com um quantitativo grande universalizante exclui o contexto e o próprio
de alunos e encontrou o desafio de lidar com sujeito da produção de determinadas ações.
a diversidade. Nesta ótica, aquele aluno que Numa espécie de ilusão psicopedagógica
antes era excluído fora da escola por não ter (LAJONQUIÈRE, 1999), acredita-se na possibi-
oportunidade de acesso, passa a ser excluído lidade e necessidade de ajustar e adequar a in-
dentro dela, pois não consegue responder satis- tervenção adulta às capacidades e habilidades
fatoriamente ao esperado. É com este processo da criança, de tal forma que um bom método
de ampliação que vão se verificar os processos per se redundaria em boas aprendizagens.
de “produção do fracasso escolar” e da “peda- Acreditando na eficiência cabal do método, o
gogia da repetência” (OLIVEIRA, 2007). sujeito fica esmaecido e os que não aprendem
No célebre livro A produção do fracasso es- apresentam déficits individuais.
colar: histórias de submissõa e rebeldia, Patto Nesse contexto, o termo dificuldade de
(1996) chama a atenção para a importância do aprendizagem passa a ser disseminado no ce-
debate histórico que considere o que a própria nário escolar. Nos anos 1960, as definições de
escola produz, fazendo uma crítica contunden- dificuldades de aprendizagem se deram a partir
te à atribuição das causas do fracasso apenas de dois autores, Samuel Kirk e Barbara Bate-
a aspectos extraescolares. Individualizar o man, que mais tarde serviram de apoio para
problema seria uma forma de atribuir à criança as definições posteriores (CORREIA, 2007).
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Kirk (1962 apud CORREIA, 2007, p. 157) as considerado um déficit de substância neuronal
definiu como: e entrando em cena, de modo compensatório, a
[...] um atraso, desordem ou imaturidade num ou medicação (DUNKER, 2014, p. 93). Para o Na-
mais processos da linguagem falada, da leitura, tional Joint Committee on Learning Disabilities
da ortografia, da caligrafia ou da aritmética, (1988 apud FONSECA, 1995), por exemplo, as
resultantes de uma possível disfunção cerebral dificuldades de aprendizagem se associam a
e/ou distúrbios de comportamento e não de- um distúrbio que está ligado ao sistema ner-
pendentes de uma deficiência mental, de uma
voso, podendo ocorrer durante a vida toda.
privação sensorial, de uma privação cultural ou
de um conjunto de factores pedagógicos. Compreender a dificuldade, sobretudo por um
viés organicista, não é sem consequências, já
Ainda que Fonseca (1995) aponte a falta de que se considera prioritária a estrutura bioló-
uma teoria sólida e consistente para a defini- gica que sustenta um sistema, mais do que o
ção de dificuldade de aprendizagem e de uma sujeito e suas relações. Nesta ótica, quanto mais
taxionomia mais detalhada e compreensível, o orgânico ganha destaque, menos o subjetivo é
vemos que a ideia de disfunção cerebral e/ou levado em conta (GUARIDO; VOLTOLINI, 2009).
desordem neurobiológica residem como pano Fernandez (1991) fala da dificuldade de
de fundo. Por exemplo, podemos notar, a partir aprendizagem atravessando um corpo pul-
da citação de Kirk (1962 apud CORREIA, 2007), sional, portanto de um corpo que se constitui
que a ideia de imaturidade sugere um processo e está em permanente relação com o Outro.
individual, muitas vezes apoiado sobre uma Não há em sua teoria a negação do orgânico,
disfunção cerebral. Neste sentido, ainda que pelo contrário, já que ele se presentifica por
haja uma clara distinção entre dificuldade de suas fraturas, no entanto não há um orgânico
aprendizagem e deficiência mental, o subs- que não seja regido por um corpo, já que “pelo
trato orgânico parece ter destaque. Faz-se corpo nos apropriamos do organismo” (FER-
importante ressaltar que quando uma criança NANDEZ, 1991, p. 58). Do início ao fim, a apren-
e/ou um adolescente são diagnosticados, ou dizagem passa pelo corpo, “o corpo coordena
indicados, como apresentando dificuldades e a coordenação resulta em prazer, prazer de
no aprender, sempre entrará em questão o domínio” (FERNANDEZ, 1991, p. 59). Domi-
mal-estar. Este pode estar predominantemente nar seria, então, uma forma se se apropriar. O
situado ao lado da escola, que muitas vezes se organismo, com seus ritmos e metabolismos
sente impotente para lidar com a situação, ou já codificados para além de nós próprios, com
mais ligado à família, que pode se sentir fra- sistemas independentes, passa a ser um corpo
cassando na educação do filho, e, também, na representado e a representar.
própria criança e adolescente. Nesse sentido, No “Discurso de Roma”, Lacan (1998, p. 165)
a produção desse incômodo, que se faz entre o diz que “a linguagem não é imaterial. Ela é cor-
sujeito e o mundo circundante, deve levar em po sutil, mas corpo”. Sendo corpo, nos indica
conta essas múltiplas articulações. A questão é que ela é forma, é através dela que podemos
que, no contemporâneo, a supremacia da com- pensar no psíquico como um espaço. O que
preensão orgânica das causas daquilo que não Freud (1980) já havia sinalizado ao pensar o
vai bem na escola muitas vezes compreende o psíquico como um dispositivo, ou seja, um apa-
problema como sendo apenas do aluno. relho que se forma como um escudo de defesa,
Contemporaneamente, algumas formas de um escudo protetor diante de uma avalanche
compreender as dificuldades selam definitiva- energética excessiva, com pressão constante.
mente sua articulação ao orgânico. A ideia de O espaço constituído coloca “barreiras de con-
distúrbio se associa à de transtorno, nome que tato” à inquietude excessiva da força (FREUD,
aparece ao longo dos manuais diagnósticos, 1980, p. 399).
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de conhecimento, a criança vai contemplar o por exemplo, um aluno pode sentir-se mal
Outro neste exercício, assim ela irá construir pois sente que não consegue responder a
e se construir em seu estilo (KUPFER, 2012). determinada demanda, assim: “[...] o sentem
Ou seja, o aluno quando contempla o profes- como um doloroso mal-estar, uma espécie de
sor dentro desse processo vai construir e se angústia, quando se veem impedidos de exe-
construir no seu estilo próprio de aprender. cutar determinadas ações” (FREUD, 2011, p.
É na relação que ele faz com o professor que 82). Este trecho de Freud articula mal-estar
esse estilo vai sendo gerado e ganhando cada a uma “espécie de angústia”, no entanto este
vez mais autenticidade por ser dele e de mais termo freudiano – que não é um conceito me-
ninguém. tapsicológico – aparece associado ao longo de
O que o professor transmite é o como, e é sua obra a outros conceitos. O importante aqui
nessa relação com o objeto que vai ser trans- é compreendermos que participar da escola
mitido seu próprio estilo, para ser “esvaziado” enquanto instituição que exige a vida em co-
pelo aluno e ser novamente “preenchido” com mum sempre envolverá pontos de mal-estar.
o estilo do aluno que estará em construção Outro aspecto importante é sabermos que o
(KUPFER, 2012). O estilo de cada aluno pas- mal-estar não se liga necessariamente a algo
sará pela relação que ele tem com o professor negativo, pois se constitui nas relações que
e com o estilo deste professor. Ou melhor, a temos com os outros, com os pares, e às vezes
construção de seu estilo próprio passa pela pode ser impulsor para o sujeito se subjetivar,
relação com o Outro, a partir de um modelo encontrar formas de fazer com ele.
identificatório com aquele que ensina. Nas Sob esta ótica, podemos enfatizar a impor-
brechas da identificação, ou seja, justamente tância de pensarmos a causalidade do apren-
no espaço da falta entre o eu e o outro, é que der de forma sobredeterminada. Quando se
o sujeito poderá criar sua específica forma de pensa o que não vai bem no aprender tendo
aprender. O estilo, então, é um saber-fazer a causa “numa possível disfunção cerebral e/ou
partir da falta do Outro, sendo paradoxalmente distúrbios de comportamento” (KIRK, 1962
uma forma de a obliterar (ORNELLAS, 2018). apud CORREIA, 2007, p. 157), localiza-se no
Se aprendemos a partir do Outro, a partir do neurobiológico a causa e entende-se “o déficit”
afeto e da identificação com o professor, no dis- como um distúrbio, no modelo da doença. A
curso que nos oferece a cultura, é justamente doença como uma matriz de compreensão da
para subverter esse já dado. Temos, então, que realidade vai para além do espaço médico, e ga-
pensar em estilos de aprender, diferentemente nha terreno nos diversos especialismos como
de problema, fala mais de formas singulares de psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos,
relações com o saber. Se estas formas trazem “daí a substituição do termo medicalização
problemas, podemos perguntar para quem, em por um outro mais abrangente – patologização
qual contexto. –, uma vez que o fenômeno tem-se ampliado,
Como já sublinhado, participar da cultura fugindo dos limites da prática médica” (COL-
é necessariamente ter que lidar com um cer- LARES; MOYSÉS, 2015, p. 26). Compreender o
to desconforto que as renúncias necessárias aprender na lógica binária da saúde/doença,
à vida em comum nos exigem. O mal-estar tendo o biológico como substrato, diminui não
(FREUD, 2011) está referido à relação com o só a participação da escola na sua produção,
outro, seja a relação com pares ou com seu como do próprio sujeito. A fala, neste modelo,
ideal. Esse mal-estar, inerente às relações so- não é tida como um instrumento central no
ciais, pode ser enunciado de diversas formas diagnóstico, muito menos de cura.
no que diz respeito à escolarização. Ao não É sob esse pano de fundo que trazemos a
corresponder a certo ideal de aprendizagem, história de Ana, diagnosticada com dificuldade
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Ana, adolescente nota dez? Reflexões sobre a patologização do aprender
cognitivo, pois ela enunciou que o fato de ter marcar um lugar para ela diante do grupo que
repetido o ano escolar foi por não saber lidar não só acha graça, mas a percebe corajosa.
com a implicância de seus colegas de turma, O assunto das notas é sempre muito falado
assim partia para a briga. pelos pais e Ana diz como a mãe reagiu quan-
Ana tinha uma boa relação com o pai, mas do foi contar para o pai sobre a nota da prova:
nem tanto com a mãe. Em uma das reuniões “Tava olhando pra cara do meu pai, né, dana-
feitas com ela, quando a pesquisadora per- da. Ela ficou olhando pra cara do meu pai. Eu
guntou sobre o pai e por que ele se importava falei pra ele que tirei nota boa, ela ficou assim:
tanto com os estudos, ela respondeu: “Meu pai ‘Duvido, duvido’.”
é um pai coruja.” A mãe fala que as notas boas ela mostra, mas
Já com a mãe as coisas eram mais complica- que as ruins ela nem fala, e Ana rebate dizendo
das, e a menina disse que: que contou, sim, para o pai a nota baixa que
Ela não gosta muito de vir aqui [se referindo tirou em Ciências.
ao SPIA/IPUB/UFRJ], não gosta de buscar o Mas eu falei pro meu pai que tirei nota baixa,
boletim, não gosta de ir na minha escola. [...] É também falei pra ele que tirei nota baixa em
tanta reclamação, que ela prefere nem mais ir. Ciências. A professora falou que tô me dando
[...] Na época... quando eu tava nessa escola eu bem na matéria, só que eu não consegui pe-
descia muito [pra direção, coordenação], já fui gar direito. Porque quando ela tava fazendo a
três vezes pra T., duuuuuas... acho que umas sete averiguação no quadro eu tava respondendo
vezes pra T., três pra V. e pra diretoria. direito, mas quando eu fui fazer a prova eu senti
dificuldade. Mas ela falou que vai fazer trabalho
Esse era o motivo para reclamarem muito bimestral do livro.
dela, o fato de sempre estar na sala da direção
ou da coordenação. A mãe, exausta pelas recla- Ana fala de uma dificuldade com Ciências,
mações, deixou de participar da vida escolar mas não fica claro em sua fala se isso seria algo
da filha. recorrente ou se foi apenas um episódio de
A menina relatou que o professor de Geogra- determinado conteúdo ou ansiedade por estar
fia uma vez a mandou ficar de cara para parede sendo avaliada, pois quando respondeu para a
do “nada” e ela não ficou, por isso a mandou professora na aula estava indo bem.
descer e, assim, começou a ganhar fama de A leitura é presente na vida de Ana. A mãe
bagunceira. Ela fez uma música zombando do diz que ela lê um livro em dois dias. A pesqui-
professor que repercutiu tanto que ela diz que sadora pergunta à menina sobre o assunto do
o professor se demitiu por causa dela. último livro que tinha lido: “Era um livro sobre
mitologia. Eu gosto de ler, é bom.”
O professor de Geografia me pegou e me colocou Ana diz estar gostando de ler coisas sobre
virada de cara pra parede e disse que eu não po-
psicose e maníacos: “Você tem que ter uma
dia mais sair de lá. Aí eu fui e disse: ‘Professor, eu
não fiz nada’. Aí eu fui sentar na minha cadeira, mente aberta pra ler o livro. Imagina você ler
aí ele foi e me mandou descer. [...] Aí na aula dele um livro sobre drama, se você não entende o
eu comecei a zoar ele e foi aí que eu ganhei essa papel da pessoa, da vítima, você não consegue
fama de garota bagunceira. Eu fiz ele se demitir. entender o livro. [...] Eu tô fazendo um livro.”
[...] Eu fiz uma música, aí ele ficou com raiva e Para uma menina que tinha um diagnóstico
passou pra turma da manhã. Xingou uma menina
de “transtornos” e dificuldade em aprender,
de lésbica e foi demitido.
o aprofundamento interpretativo dessa frase
Nessas falas, Ana se sente poderosa por chama a atenção. Não só ela se diz capaz de se
achar que ela fez o professor se demitir. Quando colocar no lugar do outro, a vítima, como está
alguém faz algo que não a agrada ela devolve escrevendo sua própria história. Os livros de
não respeitando e faz bagunça para atingir o vampiros, terror e sangue que ela gostava não
outro. A “fama” de Ana como bagunceira parece eram reconhecidos nem pela escola nem pela
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família. Se o livro sugerido pela escola era Diá- que o grupo realizou com os pais, falou de como
rios de uma Princesa, como legitimar isso com a filha estava no colégio e disse que ela tinha
o qual ela justamente se opunha? falta de atenção, não conseguia se concentrar:
Em uma das reuniões que tivemos com Ana Vocês vão ter oportunidade de conversar com
ela fala da possibilidade de trocar de escola e a Ana. Vocês vão ver que ela é normal, se tiver
diz que tem uma que é muito ruim e quebrada que ser uma pessoa louca, sou eu. Porque todo
e a outra onde só tem arrumadinho. Quando mundo fala: ‘a Ana é normal’. A Ana só é aquela
perguntamos o que ela acha da escola, Ana diz: criança que faz o que quer. Mas eu falo para ela,
isso não é normal, o mundo não é assim. Aí eu
Um saco. Escola não é pra ser legal, nenhuma falo para ela que quando a gente faz só o que
escola é legal. quer, tem que estar preparado para receber, por-
[...] que toda ação tem uma reação. Você não pensa
que vai estar preparada para o mundo já. A gente
Tem matéria que eu gosto e professor que é tenta colocar isso na cabeça dela, mas... não dá!
‘macumbado’, a maioria é de encher o saco do
que legais. Tem matéria preferida, tem! Tem Nessa fala, o pai diz que a filha é normal,
gente que eu não gosto, tem! Tem inspetores depois ele traz a fala de pessoas de fora que
que enchem o saco, tem! Tem diretora que é também dizem que a menina é normal. É como
legal com você, tem! Tem a que enche o seu saco, se estivesse tentando aceitar isso e não o con-
tem! Tem, tem tudo.
trário, como se trazendo a fala de pessoas de
Pelas falas de Ana podemos perceber que fora reforçasse o que disse anteriormente, que
há uma reclamação em relação à escola. A me- a filha é normal, e para ele isso é importante e
nina sempre reclamou da escola nas reuniões, faz com que aceite essa ideia e não outra. Con-
de estar sempre a mesma coisa ou o mesmo tudo, esta fala também aponta para uma certa
“porre”. Todavia, ao mesmo tempo, tem maté- dúvida: ela é normal?
ria preferida e diretora legal, indicando que a As reclamações escolares sobre o compor-
escola, assim como a vida, vai ser marcada por tamento de Ana são frequentes e o pai fala:
tensões e ambivalências. “Sempre aquele negócio. Ela é inteligente, mas
não tem atenção.”
Há um reconhecimento do pai em relação à
Eixo família filha quando o assunto é a escola, mas há algo no
Este eixo abarca as falas dos pais de Ana, comportamento da menina que faz com que ela
de como eles viam a filha em seu processo não consiga obter o que é esperado dela. Para
de escolarização. As falas foram retiradas de Francisco, a menina não precisa de remédio.
reuniões feitas com os pais de Ana para que Quando força a barra com ela, ela faz o que tem
eles pudessem falar o que os incomodava em que fazer. E diz que: “Eu só quero que a Ana gos-
relação à filha e à escola. O objetivo deste eixo te de estudar, porque o que leva as pessoas pra
foi de proporcionar um espaço de fala e de frente é o estudo, nada mais. [...] Não esquento
troca entre os pais, para que situações que os de bagunça, só com as notas dela.”
incomodavam pudessem ser resolvidas e fa- As notas são sempre um assunto recorrente
ladas. Algumas vezes foram feitas entrevistas nos discursos do pai e da mãe. Em todas as
individuais, justamente para se trabalhar com reuniões o pai falou sobre isso, e a mãe, Ro-
aquilo que gerava mal-estar e discordância berta,3 também falou dessa questão. Disse que
entre o casal. Outras vezes, eles participaram Ana mostra as provas boas e as que tira nota
do grupo de pais, junto com os demais pais do baixa nem toca no assunto: “Quando ela tirava
projeto. nota boa em redação, por que eu sei que ela
O pai de Ana, Francisco,2 na primeira reunião é boa nisso, ela trazia, ficava mostrando, mas
2 Nome fictício. 3 Nome fictício.
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Ana, adolescente nota dez? Reflexões sobre a patologização do aprender
não falava pra gente que tava tirando zero em Em termos da intervenção, essa fala do pai é
Matemática.” importante, pois demonstra certo deslocamen-
Para o pai, a questão que mais o incomoda to discursivo. Com os encontros e as conversas
são as notas. Ele teve que trabalhar quando talvez ele tenha podido perceber que a filha
criança, o que segundo ele o atrapalhou nos nem sempre iria corresponder às expectati-
estudos. Como economicamente sua filha não vas dele nem da mãe a todo o momento. Para
precisa trabalhar, ele não compreende porque além do aspecto interventivo, hipotetizamos
não tira dez. Francisco insiste na ideia de que que a angústia dos pais diante das notas e da
a filha precisa tirar dez em tudo na escola, pois distância entre a filha real e a imaginada tenha
como ela só estuda, ele diz que é possível tirar interferido muito na trajetória de especialis-
a nota máxima. E fala para a filha: “Ana, o que mos que Ana teve. Na dúvida entre a filha “ser
eu quero de você, eu só peço a você que você normal” ou não para aprender, a busca por
estude. Essas notas ruins aí, até falei: ‘Oh, oito, um especialista que, enfim, a fizesse tirar boas
nove e dez. Eu prefiro dez’.” Então a mãe fala: notas mobilizou uma longa caminhada. Nessa
“Não, mas nove tá bom.” Ele diz: “Não, nove caminhada, alguns profissionais a compreen-
tá bom de quem trabalha, pra quem trabalha, deram como “transtornada”, outros não, como
nove, oito, sete, mas quem não trabalha é dez.” leremos a seguir.
As notas são sempre um assunto recorrente
nos discursos do pai e da mãe. Para esta família,
o sucesso na escola seria garantido pelo dez?
Eixo especialista
Todas as vezes que a filha não obtivesse esta Neste eixo os sujeitos participantes foram
nota estaria fracassando no olhar dos pais? O os psicólogos e psiquiatras que atenderam
mal-estar gerado pela não correspondência da Ana no SPIA. As falas foram retiradas do
filha ao que esperavam poderia estar remetido prontuário de Ana e também de reuniões
também ao que falhavam? Ou seja, também eles realizadas com os especialistas. O objetivo foi
não seriam pais nota dez? ampliar a discussão sobre o mal-estar. Aqui
Ao longo dos dois anos de intervenção, a é importante ressaltar que quando ela chega
fixidez do dez pareceu ter esmorecido um na instituição, já havia passado por outras, e
pouco, ainda que as notas sempre apontassem os diagnósticos já trazidos (tanto ditos pela
para um certo mal-estar. Numa reunião do ano escola, como por outros especialistas) foram
seguinte o pai disse: “Eu desisti do dez.” narrados pelos pais.
A mãe confirma e diz que desistiram do dez O primeiro especialista que atendeu Ana foi
há muito tempo. Roberta fala que a nota que Arnaldo,4 psiquiatra do IPUB, que fala da meni-
Ana tira não é para ser dos pais. O pai precisa na como uma pessoa que não tem uma dificul-
entender que aquilo não é uma moeda de tro- dade de aprendizagem efetivamente, mas que
ca. A mãe fala de a menina seguir seu próprio o seu problema seria mais uma dificuldade de
caminho e entende o que precisa fazer quando convivência. Por todas as escolas que passou,
diz: “Quando ela repetir, repetiu e pronto!” Ana é tida como muito inteligente, mas no ano
Francisco, ao final do segundo ano de nossos de 2012 ficou em quase todas as dependências.
encontros, parece flexibilizar o dez dizendo: Enquanto o pai vê discrepância no que dizem e
Já vi que não vai sair dez mesmo, o dia que sair o que realmente acontece, Arnaldo não vê nada
tá bom. Se sair tá bom, se não sair também tá de muito grave em relação ao aprender.
bom. Eu amo minha filha assim que tire dez, Arnaldo não concorda com o diagnóstico
que tire zero. Eu amo, eu só quero o melhor pra de TDAH, mas que ela é uma criança eminen-
ela. Só isso que eu quero. Quando a gente quer
temente motora:
que um filho estude, não quer que o filho estude
pra gente. 4 Nome fictício.
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Cristiana Carneiro; Raisa de Paula Fernandes da Silva
Eu acho que pela menina ter uma coisa de outro mau, e dependendo do dia, um está mais
agitação, ela é muito motora, eu não sei se eu presente que o outro. Marta fala para a menina
classificaria, pelo o que eu tô vendo aqui, como dizer mais especificamente que raiva é essa e ela
TDAH, mas ela é uma criança eminentemente
motora. Talvez, uma coisa que a gente vê muito,
responde que não pode porque explode e fica
quanto menos verbal, mais motora. Então, por rude. Ana diz que a ida à psicóloga era de início
ela não falar muito, ela transfere isso pra coisa para controlá-la, mas depois achou que era para
motora. Ela prefere brincadeiras e jogos muito entendê-la e agora acha que é para ajudá-la.
de corrida, ela prefere atividades físicas muito
motoras.
A ação aqui descrita poderia estar mos-
Eixo escola
trando justamente um esforço do corpo para Neste eixo o material foi construído a partir
representar? Ou seria uma forma mais direta do que havia no prontuário de Ana, que são
de escoamento do afeto como descarga? O fato alguns relatórios da escola e também das idas
é que, ao brincar, ainda que de corrida, temos à escola, onde foram entrevistados alguns pro-
um Outro com o qual disputamos, um bom fessores da menina e a orientadora pedagógica.
uso da aceleração do tempo que precisamos O objetivo deste eixo é entender o motivo de
aprender, um domínio de movimentos. Ana, tantas queixas e reclamações da menina e dia-
através da ação, parece também escrever sua logar com a escola a partir do que encontramos
particular história no aprender. em todos os outros eixos de análise.
Depois de ser atendida por Arnaldo, Ana fica Em 23 de agosto de 2012, a professora I. faz
um tempo sem ir ao IPUB para atendimentos e uma reclamação via formulário para a orienta-
em 2014 volta com a psicóloga Marta.5 Em seu ção pedagógica da escola L. C., onde Ana estuda:
primeiro dia, Marta relata a chegada da menina “Aluna indisciplinada, provocando tumulto e
perguntando se ela sabia o motivo de estar lá: falta de vontade de acompanhar a aula, se ra-
“A. disse que é por causa de comportamento, biscando, batendo no colega, levantando o dedo
disciplina e mentalidade.” para outro colega e uivando na sala.”
A menina fala de uma tentativa de mudança Em mais um relatório, sem identifica-
em seu jeito, que ficou mais estudiosa e mesmo ção nem data, nenhuma mudança em seu
assim ficou para recuperação, mas como não comportamento.
teve reconhecimento, desistiu: “A. diz que é
A aluna apresenta um comportamento agitado,
impulsiva, repulsiva, mentirosa e que é assim não realiza tarefas solicitadas, na maioria do
por causa da sua história.” tempo mantém-se distraída com outras coisas,
Ana fala de brigas na sala de aula, e que se como, por exemplo: pintar alguma coisa de for-
a professora não gostasse, isso seria mais uma ma aleatória no caderno. A mesma apresenta
coisa pra sua ficha. Marta pergunta o que tem dificuldade no relacionamento com os colegas,
sendo complicado uni-la a outros colegas para
na ficha e ela diz que tem expulsões, brigas com
realização de trabalho em grupo. Quanto ao re-
a professora. Ana diz que isso tudo acontece lacionamento com o professor, a aluna algumas
por causa da sua raiva e porque todos na escola vezes não aceita a solicitação do mesmo e desa-
gostam de irritar. “Pergunto por que ela tem cata, quando em aula, algumas vezes verbaliza
raiva e A. diz que é tipo um dom, já é dela, da algo que não faz parte do contexto da mesma e
personalidade [...] A. diz que tem faltado aula e acha graça ao fazê-lo.
tido ‘mau comportamento’, responde aos pro- O termo agitação é usado em todos os
fessores. Pergunto por que e A. diz que precisa relatórios, mas em nenhum deles há a espe-
descontar a raiva que ela imprime”. cificação do que eles entendem por agitação.
A menina fala que tem dois lados, um bom e Nos relatórios, que foram anexados junto com
5 Nome fictício. seu prontuário no IPUB, há sempre a mesma
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Ana, adolescente nota dez? Reflexões sobre a patologização do aprender
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Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
226 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 211-226, out./dez. 2020
Luciana Santos
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p227-245
RESUMO
Este artigo procura compreender o ideal da excelência escolar e a relação entre
esse ideal e a história singular do estudante. Considera alguns conceitos da
Psicanálise, sobretudo eu ideal, ideal do eu e supereu, para analisar os conflitos
vividos pelos alunos diante das demandas idealizadas presentes em escolas de
alto rendimento. Neste sentido, entre os esforços de adaptação ou a resistência
aos modelos impostos, interessa-nos questionar a naturalização e o “peso” do
ideal de excelência para a formação subjetiva do estudante de classes populares.
Priorizamos a vivência daqueles que podem estar em posição inferiorizada,
devido a um suposto distanciamento entre o capital cultural herdado da família
e a cultura escolar. A partir da metodologia de levantamento bibliográfico,
refletimos em torno da polissemia e da não consensualidade acerca do conceito
de excelência escolar, de modo a ponderar como esse ideal contribui para
promover uma espécie de vigilância social na escola. Por fim, consideramos a
plasticidade da influência desses ideais, bem como acreditamos nos diferentes
destinos subjetivos que podem ser dados à idealização escolar.
Palavras-chave: Ideal da excelência escolar. Instâncias ideais. Idealização.
Alunos de classes populares. Escolas de alto padrão acadêmico.
ABSTRACT
THE IDEAL OF THE SCHOOL EXCELLENCE AND THE CONFLICTS LIVED
BY THE POPULAR CLASS STUDENT
This article seeks to understand the ideal of school excellence and the relationship
between that ideal and the student’s unique history. It considers some concepts
of Psychoanalysis, above all, the ideal self, the ideal of the self and the superego,
to analyze the conflicts experienced by students in face of the idealized demands
present in high-performance schools. In this sense, among the adaptation efforts
or the resistance to the imposed models, we are interested in questioning the
naturalization and the “weight” of the ideal of excellence for the subjective
1 A elaboração do presente artigo se origina no contexto de pesquisa de doutorado em Educação, em estágio de desenvolvi-
mento. O trabalho ora apresentado observa, por meio da realização de investigação de cunho bibliográfico, os procedimentos
éticos de ineditismo e autoria.
∗ Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Psicopedagoga no Instituto Superior de Educação
(ProSaber) e pedagoga da rede municipal de Educação de Niterói. E-mail: lucinedu@gmail.com
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O ideal da excelência escolar e os conflitos vividos pelo aluno de classes populares
RESUMEN
LO IDEAL DE EXCELENCIA ESCOLAR Y LOS CONFLICTOS VIVIDOS
POR EL ESTUDIANTE DE CLASE POPULAR
Este artículo busca comprender el ideal de excelencia escolar y la relación entre
ese ideal y la historia única del estudiante. Considera algunos conceptos del
psicoanálisis, sobre todo, el yo ideal, el ideal del yo y el superego, para analizar los
conflictos experimentados por los estudiantes frente a las demandas idealizadas
presentes en las escuelas de alto rendimiento. En este sentido, entre los esfuerzos
de adaptación o la resistencia a los modelos impuestos, estamos interesados en
cuestionar la naturalización y el “peso” del ideal de excelencia para la formación
subjetiva del alumno de clase popular. Priorizamos la experiencia de aquellos
que pueden estar en una posición inferior, debido a una supuesta distancia
entre el capital cultural heredado de la familia y la cultura escolar. Con base en
la metodología de la encuesta bibliográfica, reflexionamos sobre la polisemia
y la falta de consenso sobre el concepto de excelencia escolar, para considerar
cómo este ideal contribuye a promover un tipo de vigilancia social en la escuela.
Finalmente, consideramos la plasticidad de la influencia de estos ideales, así
como creemos en los diferentes destinos subjetivos que se pueden dar a la
idealización escolar.
Palabras clave: Ideal de excelencia escolar. Instancias ideales. Idealización.
Estudiantes de clases populares. Escuelas académicas altas.
Introdução
A passagem pela escola pode nos levar a pode exercer sobre a trajetória educacional de
refletir acerca da excelência escolar, sobretudo muitos estudantes.
quanto às consequências que esta narrativa Diante disso, este artigo pretende proble-
provoca e, portanto, como um ideário a ser matizar o ideal da excelência escolar e a relação
problematizado, ante a existência de mecanis- entre esse ideal e a história singular do estu-
mos que reforçam as desigualdades sociais no dante. Considera alguns conceitos da Psicaná-
conjunto da própria escola. No contexto das lise, tais como eu ideal, ideal do eu e supereu,
demandas pela democratização da educação para analisar os conflitos vividos pelos alunos
básica, não há como não ponderar as implica- diante das demandas idealizadas presentes em
ções que a prerrogativa da excelência escolar escolas de alto rendimento.
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Luciana Santos
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O ideal da excelência escolar e os conflitos vividos pelo aluno de classes populares
a condição de classe popular traz ao aluno ao que ou a quem carrega a excelência. Enquan-
um sentimento fatalmente de inferioridade to uma marca de distinção, a excelência pode,
no que tange aos demais estudantes, mesmo ainda, resultar em diferença de tratamento
quando se trata de escolas de alto rendimento para com os portadores da excelência, ou seja,
acadêmico. os excelentes. Neste sentido, o excelente, cuja
Dessa forma, é cabível ponderar que, diante etimologia advém do latim excellente, seria “o
das “coisas como são” – e o sofrimento psíquico que está no alto, o que se destaca”, “o que se
que essas exigências podem gerar àqueles que eleva”, por extensão “o que é muito bom”. A
mais se veem afastados dos ideais almejados gênese da palavra vem do excellere, “subir, ser
por todos –, como elas poderiam ser transfor- colocado no alto”, constituído por ex-, “fora,
madas em tentativas de reinvenção? sobre” e cellere, “subir”. A origem indo-europeia
Para tanto, por meio de uma metodologia reporta ao radical kel-, “elevar” (NASCENTES,
de cunho teórico, consideramos a contribuição 1955; ORIGEM DA PALAVRA, 2005).
que a Psicanálise pode trazer para pensar o Já a palavra ideal tem origem no latim ideale,
fazer educativo, na medida em que auxilia a o que significa “por via erudita” (NASCENTES,
ampliar a perspectiva acerca do lócus escolar 1966, p. 270). No âmbito filosófico, o termo
como um ambiente não apenas de elaboração ideal assume ambiguidade e “designa tanto
e transmissão de saberes, mas, sobretudo, de o não material como o perfeito. Exemplos: os
criação de subjetividades. Nesse sentido, o números são objetos ideais; o conhecimento
campo psicanalítico ajuda a compreender de ideal seria perfeito; a conduta ideal seria inata-
forma aprofundada os processos de idealização cável” (BUNGE, 2002, p. 51). Nesta perspectiva,
subjetiva do aluno quando ele está diante de o ideal também
determinadas demandas, como é o caso das
[...] se refere a uma ideia e não a uma realidade
imposições suscitadas pelo ideal da excelência empírica. Ex.: o ponto geométrico é uma entida-
escolar. Para tanto, o presente trabalho busca de ideal. Possui o sentido de uma aspiração ou
compreender as bases narcísicas dos estudan- de um limite, acessível ou não: o estado ideal,
tes – no nível do “eu ideal”, do “ideal do eu” e tendo por vezes uma conotação negativa, no
do “supereu” – em relação a esse ideal. sentido de algo irrealizável: uma solução ideal.
(JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p. 102).
A definição de ideal pode levar a diversas
O ideal da excelência escolar conotações, dentre as quais:
e a dimensão subjetiva do 1) como uma projeção de uma ideia; 2) como o
processo educativo modelo, jamais atingido, de uma realidade; 3)
como o perfeito no seu gênero; 4) como uma
A palavra excelência tem origem no latim exigência moral; 5) como uma exigência da razão
excellentĭa, “por via semierudita”, o que signi- pura; 6) como a forma de ser de umas certas
fica “grandeza, elevação, excelência, superio- entidades. Aqui trataremos especialmente dos
dois últimos sentidos. (MORA, 1978, p. 158).
ridade”. Desta forma, o substantivo (nome)
excelência quer dizer: “qualidade do que é Como demanda da razão pura, o ideal ou
excelente; qualidade muito superior”, podendo idealismo não ocorre, de acordo com Kant
ser ainda “tratamento que se confere a pessoas (2001), na seara da experiência. Os ideais têm
das camadas mais altas da hierarquia social” um fundamento padronizador, ao servirem
(MARINHEIRO, 2009). de regras para a ação e o juízo, guiando e en-
Portanto, a excelência de algo ou de alguém caminhando a razão. Já como modo de ser de
remete a uma ideia de superioridade em rela- determinadas entidades, o termo ideal é usado
ção aos demais, o que conferiria certo destaque para qualificar certo objeto, os denominados
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“objetos ideais”, dentre os quais as entidades de qualidade e, para além disso, sobre a não
matemáticas e as lógicas (MORA, 1978). neutralidade desse processo, em quais são os
Contudo, o desenvolvimento deste artigo fatores (intra e extraescolares) componentes
permite recorrer à acepção de ideal que se da qualidade que mais reforçariam as desigual-
refere a uma exigência de perfeição. Assim, dades sociais. A partir disso, então, pode-se
para nós, o ideal da excelência escolar portaria interpretar os elementos que estariam mais a
a premissa de uma experiência escolar per- favor da elaboração de uma educação de qua-
feita, com base nas solicitações da escola e da lidade para todos, convergentes com intentos
sociedade em geral, que seriam incorporadas em torno da diversidade em comparação àque-
pelo aluno, por sua vez, o excelente, como um les ideais traumáticos e incapacitantes. É este
modelo superior a ser alcançado, ainda que não horizonte (da diversidade social) que também
necessariamente seja atingido. vai sustentar a reflexão acerca da problemática
Considerando que a questão da excelência da excelência escolar.
escolar dialoga não somente com fatores in- Além da extensão do contexto educacional
traescolares mas também extraescolares, ela se brasileiro e da pluralidade organizacional
relaciona ao contexto das discussões em torno dos sistemas de ensino, há a questão da
da qualidade da educação. O horizonte teórico- desigualdade regional em combinação com
conceitual do tema da qualidade aponta para as desigualdades educativas, o que leva a
uma amplitude de significados e possibilida- certa dificuldade na definição de referências
des, a depender das demandas sociais. Desta de qualidade e no atendimento mais justo e
maneira, Dourado e Oliveira (2009) tratam da igualitário para a população. No âmbito das
qualidade considerando que, apesar da mul- políticas educacionais, o que se pôde consta-
tiplicidade de definições acerca da temática, tar, ao longo do tempo, foi certa tentativa de
qualquer noção do que seria uma escola de ampliação de ofertas educacionais, através
qualidade deve ser socialmente referenciada. da implementação de níveis e modalidades
Para esses autores: educativas, sem se efetivar, entretanto, o pa-
radigma da qualidade requerida. Diante deste
Compreende-se então a qualidade com base
panorama, debates que tratem dos fatores que
em uma perspectiva polissêmica, em que a con-
cepção de mundo, de sociedade e de educação deveriam constituir a qualidade, bem como
evidencia e define os elementos para qualificar, da multiplicidade de compreensão em torno
avaliar e precisar a natureza, as propriedades e da excelência escolar, podem contribuir para
os atributos desejáveis de um processo educa- qualificar o perfil de educação a ser oferecido,
tivo de qualidade social. (DOURADO; OLIVEIRA, e não somente para ampliar as oportunidades
2009, p. 202).
sem um cunho qualitativo sobre o tipo de es-
Assim, se a percepção de mundo e o contexto colarização que se busca garantir e o tipo de
social contribuem para definir o que seria ou sujeito que se pretende “formar”.
não uma escola de qualidade, isso diz respeito A princípio é importante marcar que, da
às especificidades e necessidades suscitadas mesma forma como ocorre com a qualidade
em cada sociedade e de acordo com cada pe- da educação, não há um consenso sobre o que
ríodo histórico. Portanto, não se pode acreditar seria a excelência escolar. Depende de cada
que haveria um único ideal de qualidade, que contexto histórico, de cada sociedade e das
atravessaria o tempo e as diferentes conjuntu- finalidades para a escolarização postas em jogo
ras sociais, e que este seria consoante com os pelos alunos e suas famílias. Assim, parte-se
supostos anseios da maioria no que se refere à do pressuposto de que, de acordo com o ponto
busca pela escolarização. Cabe pensar, diante de vista e as exigências sociais, variados atri-
da polissemia sobre o que seria uma escola butos podem estar envolvidos na formação da
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O ideal da excelência escolar e os conflitos vividos pelo aluno de classes populares
formada pelo capital cultural, mas é qual a escolarização se desenvolve, bem como
[...] também uma questão de sentimentos (de se- as origens do sujeito, também não se pode des-
gurança ou de insegurança, de dúvida de si ou de merecer a vertente da singularidade, ou seja,
confiança em si, de indignidade ou de orgulho, o modo como o aluno tece escolhas, desenha
de modéstia ou de arrogância, de privação ou de estratégias e investe no processo educativo.
domínio...), e a influência, na escolaridade das Como já dito, a condição de classe popular não
crianças, da ‘transmissão dos sentimentos’ é im-
necessariamente traz ao aluno uma posição
portante, uma vez que sabemos que as relações
sociais, pelas múltiplas injunções preditivas que forçosamente inferiorizada em relação aos
engendram, são produtoras de efeitos de crenças demais, mesmo quando se trata de escolas de
individuais bem reais. (LAHIRE, 1997, p. 172). alto rendimento acadêmico.
Com isso, pode-se depreender que, mesmo
que os pais tenham vivido uma escolarização O ideal da excelência escolar
precária, ao reviverem a experiência escolar
por meio dos filhos, podem transformar a rela-
e seus efeitos na trajetória
ção pessoal humilde com a cultura escolar em singular do estudante
sentimento de superação. Uma vez que isso seja
Entre “propriedades singulares e papéis
comunicado à criança, pode ser incorporado
preestabelecidos” (FOUCAULT, 2013, p. 37)
por ela como um sentimento de superioridade
para os integrantes da comunidade escolar,
que, por sua vez, passa a ser sua crença singular
em sua capacidade, com a qual pode angariar a narrativa da excelência porta uma carga de
resultados objetivos mais favoráveis. seletividade, no sentido de sobre quem se fala e
Contudo, “[...] o ‘sucesso escolar’ como uma para quem fala. É por meio de alguns mecanis-
necessidade interna, pessoal, um motor inte- mos de seleção (exames de admissão, técnicas
rior” (LAHIRE, 1997, p. 285) pode resultar de de inibição dos reprovados, jubilamentos2)
um conjunto de apropriações, de dispositivos 2 “Instituído pela Ditadura Militar para combater os cha-
materiais e simbólicos por parte do sujeito mados ‘alunos profissionais’, que ficavam na universidade
para participar do movimento estudantil, o jubilamento
acerca do valor da escolarização. Em alguns é, ainda hoje, um tema controverso. O mecanismo deixou
casos, o sucesso escolar pode ser improvável, de ser previsto pela legislação nacional com o advento da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de
mas não impossível. 1996, já que a nova legislação revogou expressamente a
Diante disso, pode-se refletir que outros norma que trazia a obrigatoriedade do jubilamento.” (CA-
BRAL, 2010). Não há mais um fundamento legal para se
fatores influenciam a relação do aluno com a desvincular os estudantes, no caso da Educação Superior,
educação que dão conta não apenas do sucesso com a justificativa de um prazo limite para o término do
escolar como resultado do esforço individual curso nos quais estariam matriculados. Entretanto, como
um argumento para posicionamentos contrários ao jubi-
ou do fracasso como resultado da falta de talen- lamento, defende-se que este teria a ver com a autonomia
to e desse esforço. Portanto, não se deve igno- universitária e seria uma resposta ao cumprimento de uma
função social: referente ao investimento da universidade
rar que, para alguns, pode haver um empenho no aluno e a formação que se espera desse, em retorno. Ou
especial com que tratam o próprio processo de seja, segundo essa perspectiva, o jubilamento ainda pode
ser uma regra constante no regulamento da instituição.
escolarização, por vezes a despeito de origens Em consequência, essa também foi a motivação de muitos
econômicas, étnicas, raciais, culturais e/ou CAPs – Colégios de Aplicação vinculados às universida-
religiosas. Esse empenho pode ter a ver com a des. E aí a problemática se intensificou, uma vez que tais
colégios representam instituições que gozam das mesmas
dimensão singular do sujeito, que precisa ser características administrativas e regulamentares do ensino
ponderada juntamente às outras vertentes que superior, mas têm a finalidade de atender à educação bási-
ca. Contudo, uma alusão que pode enfraquecer o argumento
atravessam o processo educativo. Assim, há de cunho econômico em favor do jubilamento (que vê este
que se reconhecer que a dimensão subjetiva in- como uma resposta aos gastos com o estudante, que se
encontra em defasagem quanto ao tempo de conclusão
fluencia de modo contundente o ato educativo. do curso) tem relação com as diversas deliberações que
Se não se pode ignorar a seara contextual na concebem o jubilamento em si como desperdício dos fun-
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utilizados por escolas de alto padrão acadêmico desenhadas para estes estudantes e parecem
que o ideal da excelência vai se delineando e ter mudado muito pouco no sentido de garantir
passa a sustentar o status das elites escolares, a permanência deles em seu interior, colocan-
como algo de difícil alcance, o que justificaria do-os em condição de vilipêndio, quando eles
que somente uma minoria poderia atingi-lo, percebem que tais estabelecimentos não os têm
fazendo com que ele fique tão envolvido por como público-alvo. Portanto, nesses espaços
uma carga simbólica e de distinção (PER- estariam em posição subordinada, ou seja,
RENOUD, 2010). E, a partir disso, ao mesmo não seriam cúmplices dos ideais regulatórios
tempo em que os estudantes podem se sentir de uma instituição de prestígio, por não se
impulsionados a alcançar a excelência escolar, sentirem identificados com o conhecimento
moldando toda a sua trajetória educacional que ali circula e com as práticas pedagógicas
em prol desse fim, na medida em que alguns que lhe são próprias. Estas são padronizadas
não se veem representados em tais discursos, e massificantes (ARREGUY, 2011), fazendo
percebendo no contexto da própria escola os com que esses alunos transitem nas brechas
mecanismos de exclusão, pode haver, entre e permaneçam nas fronteiras escolares como
outras questões, incidências na sua relação “outros”, aqueles com os quais a escola não
com a aprendizagem. consegue lidar.
Diante desse cenário, preocupam as conse- A questão da fronteira cultural foi elucida-
quências perversas que a desigualdade social da por Bhabha (1998) como uma situação de
mais geral vem exercendo ao reverberar na hibridismo cultural vivida intensamente pelo
seara escolar e, mais especificamente, na vida sujeito em certa conjuntura nos moldes de uma
desse aluno. Isto se torna ainda mais flagrante espécie de entrelugar, fenda a partir da qual
quando este é oriundo de classes populares e as diferenças se manifestariam no reconheci-
vivencia a escolaridade em escolas de prestígio. mento das colisões culturais. No contexto aqui
Estas instâncias que, a princípio, não foram tratado, a escola, considera-se como fronteira
dos públicos. Trata-se de uma contra-argumentação pelo
cultural a experiência que o aluno vive por fazer
próprio viés econômico. Neste sentido, defende-se que, parte de dois “universos” mais do que distintos,
quando, após longo período de investimento do capital,
interrompe-se a alternativa de encerramento do curso,
distantes. O aluno pode advir de uma configu-
isto não resulta em qualquer ganho social, mas somente ração familiar cujas experiências culturais não
obstáculo à formação do aluno. Por fim, pela vertente do correspondem e não dialogam com as formas
combate às desigualdades sociais, no que compete aos fins
da Educação Nacional, a Constituição de 88 prevê, em seu de aprendizagem encontradas na escola, tam-
artigo 205, que o ensino é direito de todo cidadão visando pouco preparam-no para a vivência escolar.
o seu pleno desenvolvimento, o preparo para o exercício da
cidadania e a qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988). Neste sentido, Lahire (1997) fala em conflito
Em consonância a isto, a Lei de Diretrizes e Bases da Edu- cultural e como este pode ser vivido em dois
cação Nacional, Lei nº 9.394/96 (BRASIL, 1996), deixou de
presumir o jubilamento e estabeleceu, ao contrário, política aspectos pela criança:
de igualdade, tolerância e empenho na recuperação de
Enquanto ser socializado pelo grupo familiar,
alunos de menor rendimento escolar, ao dispor:
Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes ela transporta para o universo escolar esque-
princípios: mas comportamentais e mentais heterônimos
I - Igualdade de condições para o acesso e permanência na que acabam por impedir a compreensão e criar
escola; uma série de mal entendidos: esse é o primeiro
[...]
IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;
conflito. Mas, vivendo novas formas de relações
[...] sociais na escola, a criança, qualquer que seja
Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as seu grau de resistência para com a socialização
normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a escolar, interioriza novos esquemas culturais
incumbência de:
que leva para o universo familiar e que podem,
[...]
V - prover meios para a recuperação dos alunos de menor mais ou menos conforme a configuração fami-
rendimento. liar, deixá-la hesitante em relação a seu universo
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O ideal da excelência escolar e os conflitos vividos pelo aluno de classes populares
de origem: esse é o segundo conflito. (LAHIRE, nas possibilidades de outra escola, que surja da
1997, p. 171). articulação com a realidade e com os anseios
Essa situação nos remete ao “entrelugar” de dos dominados. E, ainda, considerar o prisma
Bhabha (1998) que pode ser vivido pelo estu- dos excluídos também pode ser um caminho
dante, como o fato de não se sentir pertencente para se repensar e desnaturalizar o ideal da
a um determinado lugar onde é requerida a sua excelência escolar, levando-se em considera-
presença (a escola), mas também viver uma ção os conflitos experimentados pelos alunos
espécie de desapropriação do seu contexto de diante dos processos de idealização subjetiva
origem (o meio familiar). O aluno pode viven- formados na escola. Esse é o pano de fundo a
ciar a sensação de estar situado em um cenário partir do qual este trabalho passa a enfocar
do “nem cá, nem lá”. em como a busca pelo ideal da excelência recai
Essa experiência pode ser interessante, sobre o processo de subjetividade dos alunos
dependendo da fase da vida e das demandas de classes populares.
que podem levar a trocas culturais (trabalho,
continuidade dos estudos, lazer), consideran- As instâncias ideais e o ideal da
do que vivemos um contexto já favorável aos
hibridismos culturais, especialmente devido excelência escolar
ao intenso contato com as tecnologias da in- Tratar da excelência escolar como um
formação e da comunicação e, com isso, com ideal que atravessa as atividades normativas
diferentes realidades e culturas. Todavia, em massificantes que configuram a rede escolar
etapas mais remotas do desenvolvimento, o (ARREGUY, 2011) faz-nos conceber o quanto
sujeito pode lidar de uma maneira mais com- a escola contribui com certas tentativas de
plicada com conjunturas de fronteira cultural. padronização. Com isso, a aproximação entre
Principalmente quando o entrelugar se forma a Psicanálise e a Educação se centra nas contri-
na intersecção entre duas redes sociais de in- buições do campo psicanalítico para refletir os
terdependência, de intervenção durável e mais processos de idealização subjetiva envolvidos
frequente para a criança, como são os casos na produção da subjetividade do aluno pobre
da família e da escola. Estas são configurações no contexto de escolas de alto rendimento.
quase inescapáveis ao sujeito, e lidar com uma Sobretudo a interação entre Psicanálise e
experiência de não pertencimento de um lado Educação, ao considerar a posição do sujeito,
(na escola) e desapropriação de outro (da vislumbra que
cultura familiar de origem) pode ser um tanto
[...] o encontro do jovem com a escola e com a
prejudicial para a trajetória escolar.
Educação envolve bem mais do que a aquisição
Com isso, pode-se perceber o quanto a es- do conhecimento, possibilitando o estabeleci-
cola vem ignorando os conflitos vividos pelos mento de redes sociais e afetivas, bem como a
alunos de classes populares, cujas raízes po- ampliação dos horizontes culturais e humanos
dem ser muito profundas e, igualmente, muito que constituem a subjetividade consciente e
traumáticas. Por um lado, podemos pensar que inconsciente. (COUTINHO, 2011, p. 6).
a estagnação deste cenário e as poucas refle- Por outro lado, o questionamento do ideal
xões em torno do tema tem a ver com o fato de em torno da excelência escolar à luz da sub-
a camada dominante não se empenhar na mu- versão das práticas pedagógicas normativas
tação histórica da escola, uma vez que se dedica (ARREGUY, 2011), mas, paradoxalmente,
à manutenção de seu status social, investindo desiguais na escola, leva a refletir sobre
em instrumentos de adaptação que escapem às como foi conduzido o fazer educativo duran-
mudanças. Por isso mesmo, priorizar a posição te um longo tempo. Isso é relevante para se
dos dominados pode ser profícuo para pensar repensar o que fora requerido sistematica-
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mente ao sujeito que aprende. Segundo uma populares diante das demandas idealizadas
perspectiva centrada prioritariamente na presentes em escolas de alto rendimento.
racionalidade, inaugurada na Modernidade Considera-se que a Psicanálise tem a con-
(COUTINHO, 2011), a aprendizagem escolar tribuir para um olhar significativo para a
ocorria principalmente pela escuta de uma posição do sujeito, e talvez esse possa ser um
aula expositiva. Esperava-se que o estudante, caminho para algumas mudanças.
visto como passivo em sua própria atividade Quando, em 1914, Freud (2014) tratou
de aprender, recebesse informações “de fora das questões em torno do narcisismo e do
para dentro”, sem mobilizar as experiências autoerotismo em Sobre o narcisismo: uma
advindas de sua cultura de origem. O ensino introdução, considerou que o ego é uma uni-
se completava nos exercícios de demons- dade que precisa ser desenvolvida, na medida
tração a partir dos conteúdos trabalhados, em que este não se encontra formado desde o
correspondendo a uma cisão entre a raciona- nascimento. Para esse autor, o recalcamento
lidade e a subjetivação dos alunos (AMARAL, se origina do ego; ele advém do amor próprio
2007). A memória era reduzida a treinos de do ego. Então, o que pode significar desejos
repetição. Com isso, as vivências e interesses e impulsos para um sujeito, pode não ter a
do aluno não tinham lugar. Segundo Vascon- mesma conotação para outro, na medida em
cellos (1992, p. 2): que a constituição do eu está estreitamente
Do ponto de vista político, o grande problema ligada à produção de um ideal em si mesmo. É
da metodologia expositiva é a formação do a constituição desse ideal que vai operar como
homem passivo, não crítico, bem como o papel medida ao ego, uma vez que o ideal seria a
que desempenha como fator de seleção social, entidade para a qual se destinaria o amor por
já que apenas determinados segmentos sociais si próprio vivenciado pelo eu real da infância.
se beneficiam com seu uso pela escola (notada-
mente a classe dominante, acostumada ao tipo Desta forma, o eu ideal emerge em lugar do
de discurso levado pela escola, assim como ao eu infantil, buscando reviver a plenitude do
pensamento mais abstrato). narcisismo perdido. Com isso:
No contexto da metodologia expositiva, A esse ideal do Eu dirige-se então o amor a si
própria da vertente tradicional do ensino, as mesmo, que o Eu real desfrutou na infância. O
narcisismo aparece deslocado para esse novo
dimensões afetivas e relacionais eram, de certo Eu ideal, que como o infantil se acha de posse
modo, excluídas do processo de construção do de toda preciosa perfeição. Aqui, como sempre
conhecimento escolar. Desta forma, como atri- no âmbito da libido, o indivíduo se revelou in-
butos da educação tradicional, destacavam-se capaz de renunciar à satisfação que uma vez foi
a neutralidade e a objetividade das práticas desfrutada. Ele não quer se privar da perfeição
narcísica de sua infância, e se não pôde mantê
pedagógicas, sob o intento de se abarcar o
-la, perturbado por admoestações durante seu
maior número possível de sujeitos. Entretan- desenvolvimento e tendo seu juízo despertado,
to, a escola, por meio dessas metodologias, ao procura readquiri-la na forma nova do ideal
desconsiderar as particularidades numa ten- do Eu. O que ele projeta diante de si como seu
tativa de abranger o todo e ao não incentivar ideal é o substituto para o narcisismo perdido
o desenvolvimento da criticidade, contribuiu da infância, na qual ele era seu próprio ideal.
(FREUD, 2014, p. 27).
para a exclusão de muitos.
Assim, para a problematização da escola e Em seguimento, o ideal do eu se constitui atra-
do ideal de excelência escolar, como já dito, vés dos primeiros interditos vivenciados pelo
o campo psicanalítico passa a ser cotejado, sujeito diante da observância crítica dos pais,
sobretudo a partir dos conceitos de eu ideal, junto aos quais, posteriormente, atuam outros
ideal do eu e supereu, para se analisar os personagens (educadores, guias, autoridades)
conflitos vividos pelos alunos de classes e o julgamento coletivo. A consciência passa a
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O ideal da excelência escolar e os conflitos vividos pelo aluno de classes populares
agir como um tipo de vigia, capaz de descortinar no tocante ao objeto, do mesmo modo que o faz,
e de censurar não somente nossas ações, mas realizando seu ideal.
também nossas intenções. Deste modo: Com isso, podemos considerar que os ideais
A instituição da consciência moral foi, no fundo, não somente exercem uma função de enqua-
uma corporificação inicialmente da crítica dos dramento em torno do que seria requerido
pais, depois da crítica da sociedade, processo socialmente, contribuindo para uma aproxima-
que é repetido quando nasce uma tendência
ção do sujeito aos regramentos culturais, mas
à repressão [recalque] a partir de uma proibi-
ção ou um obstáculo primeiramente externos. também são fundamentais no próprio processo
(FREUD, 2014, p. 29). de constituição do eu. De certa forma, como é
muito difícil recuperar o estado do narcisismo
Em 1921, Freud (1969a) também trata do
primário, com a sua vivência de plenitude, uma
ideal do eu como uma das subdivisões do eu,
vez formado, o eu encaminha o sujeito para ou-
aquela que atua como vigilante da outra parte.
tras formas de satisfação no que corresponde
Essa instância ideal se refere à consciência, um
a determinados objetos e aos investimentos
operador crítico no interior do eu. Sendo capaz
libidinais que estes demandam.
de se segregar do restante do eu, por vezes
Como já dito, a princípio, o ideal do ego
essa instância é conflitante em relação ao eu,
havia sido elucidado como distanciamento do
que se configura por aspectos conscientes e
narcisismo primário (FREUD, 2014). Poste-
inconscientes. Assim, um dos papéis do ideal
riormente, no desenvolvimento de sua obra,
do eu condiz com “[...] a auto-observação, a
Freud buscou relacionar essa instância ideal,
consciência moral, a censura dos sonhos e a
desdobrada na formulação do conceito de su-
principal influência na repressão” (FREUD,
pereu (Überich) com a superação do complexo
1969a, p. 19).
de Édipo (FREUD, 1969b). Por meio dessa
Freud (1969a) considera que essa instância
superação, a satisfação do sujeito se daria em
ideal tem por gênese o narcisismo primário,
investimentos não sexuais na relação com
no qual o eu infantil gozava de uma satisfação
os demais membros de um grupo (FREUD,
sem igual. Nesse processo, a constituição do
1969a). Desta forma, os vínculos ocorreriam
eu ocorreria na medida em que houvesse um
e os grupos poderiam ser formados.
distanciamento do narcisismo original, o que
Neste caso, a definição de supereu surge
abre brechas a intensos esforços de regenera-
nos escritos de Freud quase que simultanea-
ção desse estado. Entretanto, aos poucos, o eu
mente à de ideal do eu. Reforça-se a hipótese,
vai se abrindo para as sugestões do entorno e
ensaiada em 1921, de que o ideal do eu e o
às imposições que este lhe suscita. Haja vista
supereu seriam gradações no eu, uma espécie
que nem sempre o eu consegue atender a tais
de diferenciação dentro dele (FREUD, 1969b).
exigências, o indivíduo, não satisfeito, pode
Segundo Freud (1969b), o surgimento do ideal
ainda descobrir alguma compensação no ideal
do eu tem por fundamento a primeira e mais
do ego que se destacou do ego. Ou seja, o afas-
significativa identificação de alguém, que ainda
tamento do narcisismo infantil é gerado pelo
não se referiria ao fruto de uma escolha objetal.
movimento da libido no sentido de um ideal do
Condiz com
ego trazido de fora, agora sendo a satisfação
resultante do atendimento a esse ideal. Assim, [...] uma identificação direta e imediata, e se
efetua mais primitivamente do que qualquer
para Freud (2014, p. 33): investimento no objeto. Mas as escolhas objetais
Ao mesmo tempo, o ego emite os investimentos pertencentes ao primeiro período sexual e rela-
objetais libidinais. Torna-se empobrecido em cionadas ao pai e à mãe parecem normalmente
benefício desses investimentos, do mesmo modo encontrar seu desfecho numa identificação des-
que o faz em benefício do ideal do ego, e se enri- se tipo, que assim reforçaria a primária. (FREUD,
quece mais uma vez a partir de suas satisfações 1969b, p. 18).
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O ideal da excelência escolar e os conflitos vividos pelo aluno de classes populares
dade escolar de prestígio, de forma a vincular a cuja repetição ao longo da história do sujeito
todos, fazendo o coletivo escolar se reconhecer é tão desejada. Diante dessa abordagem sobre
enquanto um grupo em torno de um objeto de a idealização, esse processo estaria mais pró-
desejo? De antemão, o que se pode considerar ximo de uma relação estreita com o objeto a
é que a conciliação entre a felicidade individual partir de uma tentativa de retorno à completu-
e as solicitações grupais pode se dar na medida de da infância proporcionada pela experiência
em que o indivíduo assume para si os ideais narcísica neste período. Assim posta, a ideali-
coletivos como um objetivo próprio. Entre- zação se configura no vínculo com o objeto em
tanto, assumir um ideal coletivo como sendo a sua totalidade, investindo-se neste como um
própria fonte individual de felicidade não é algo substituto do narcisismo primário.
que se abranda facilmente no eu. Além disso, se De outro lado, quando a relação com o objeto
esse ideal resguarda um tanto de exigências e é ordenada por meio do ideal do eu, renuncia-
vigilância, a aproximação dele pode significar se às pretensões onipotentes embasadas pelas
um afastamento do Isso, implicando em agressi- ilusões narcísicas, uma vez que o ideal do eu
vidade do superego devido ao abafamento des- é aquele que revela traços mais amenos da
ses impulsos, o que pode coadunar num forte experiência narcísica, além da superação da
julgamento e ainda em penalidade do sujeito experiência edípica (ROCHA, 2007). As identi-
para consigo mesmo, quando não alcança tais ficações, por sua vez, emergem como principal
demandas. Por isso, não há como não refletir aparato na relação com o objeto. Essa forma
sobre o quanto a tentativa de aproximação ao de aproximação ao objeto não nega o pano
ideal da excelência escolar produz neuroses de fundo que configura a realidade, com seus
e, nas tentativas de desvios de tais demandas conflitos, frustrações e com a própria condição
subjetivas em favor do ideal coletivo, sobre o de desamparo. Isto abre o caminho para a supe-
quanto o sentimento de culpa pode se tornar ração das ilusões narcísicas primárias e a sua
imperativo, na medida em que esse ideal não tentativa de plenitude. E é aí que o ideal do eu
é atingido. conduz o sujeito à vivência da alteridade (MAR-
TINS, 2016). Todavia, é importante salientar
que ainda que associemos o ideal da excelência
Processos identificatórios com escolar a um processo identificatório, isso não
o ideal da excelência escolar implica num abandono das ilusões. A busca por
esse ideal não finaliza outras buscas do eu no
A partir dessas considerações sobre o eu contexto escolar, diante do reconhecimento da
ideal, o ideal do eu e o supereu, chega-se à falta que nos constitui. Mesmo que, mais adian-
conclusão de que talvez seja mais apropriado te, a relação com o ideal da excelência escolar
falar em identificação com o ideal de excelência possa se desdobrar em uma série de identifica-
escolar do que, propriamente, em idealização ções, antes, é necessário o motor do desejo para
da excelência escolar. que a busca por esse e outros ideais aconteça.
Segundo Rocha (2007), a idealização do
objeto suscitada pelas demandas do eu ideal “mas o complemento libidinal do egoísmo do instinto de
se embasa na ilusão de que o investimento em autopreservação, que, em certa medida, pode justificavel-
mente ser atribuído a toda criatura viva” (FREUD, 2014, p.
um objeto restauraria a vivência de plenitude 10). Neste sentido, pode-se ponderar que a libido do eu não
primária, específica do narcisismo infantil,3 desaparece ao longo da vida, ainda que possa se perceber
uma oposição entre esta e a libido objetal. Quanto mais uma
3 Freud acreditava que, primeiramente, estabelece-se um in- é solicitada, mais a outra se enfraquece. Há ainda os casos
vestimento libidinal do ego, para então, secundariamente, em que, mesmo que o investimento seja no objeto, este é
este ser direcionado a objetos, ainda que o investimento visto como um substituto do que seria um investimento no
narcísico (no ego) persista e não desapareça diante das pos- eu, sendo capaz, portanto, de remontar à experiência de
teriores investidas objetais (FREUD, 2014). Assim sendo, plenitude narcísica dos primeiros investimentos libidinais
ele não considerava o narcisismo primário uma perversão, da infância.
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E o desejo pode ser sustentado pelas ilusões. a idealização retrata algo que corresponde ao
Neste sentido, “[...] para viver em sociedade, o objeto, enquanto a sublimação elucida algo que
ser humano necessita de regras e interdições, diz respeito à pulsão de saber. Neste sentido,
mas também, mais do que isso, necessita de a sublimação “[...] é, não só, mas também um
ilusões que sustentem a incomensurabilidade destino pulsional, um mecanismo de defesa, um
do desejo” (COSTA; ARREGUY, 2017, p. 156). objeto e/ou um ideal culturalmente valorizado,
Sustentado na abertura para a alteridade, e, além de tudo, um parâmetro de cura” (CAM-
o ideal do eu se constitui na incorporação dos POS, 2013, p. 466). Como destino pulsional, a
padrões e normas devido ao amor e medo de sublimação se destacaria como um processo
perda do amor advindo do objeto (FREUD, de transformação da pulsão, quando esta se
1969c, 1996). É por isso que o desenvolvimento distancia do seu objetivo sexual. Portanto, a
dessa instância ideal se faz fundamental para sublimação pode aparecer tanto como uma
a constituição do sujeito, através da qual as defesa em relação às ameaças e impossibili-
relações ganham um cunho intersubjetivo (RO- dades ligadas à sexualidade direta, quanto,
CHA, 2012), em que as trocas com o outro se porventura, atrelada à formação de ideais e às
tornam mais potentes, devido à superação das alternativas de cura encontradas pelo sujeito.
interações narcísicas da infância. Neste sentido, Diante dessas considerações, é cabível afir-
Rocha (2012) aponta distinções entre a idea- mar que a relação que o sujeito estabelece com
lização e a identificação. Como já dito, aquela o ideal da excelência escolar não estaria isenta
surge como uma engrenagem protagonista na dos conflitos e frustrações fomentados pelo
formação do eu ideal, por meio de relações de ideal do eu. Ao contrário, pode haver o reco-
cunho mais totalitário com o objeto e com a nhecimento da “aspereza” dessa relação, mas,
tentativa de completude que essa relação pode ainda sim, o desejo por esse objeto idealizado.
conferir ao indivíduo. No que se refere ao ideal A excelência escolar, propriamente, seria um
do eu, as identificações surgem, trazendo à tona traço de perfeição dessa vivência escolar que o
a sublimação, uma vez que esta, para ocorrer, sujeito buscaria, não sob o intento da comple-
deriva de uma identificação com o objeto em tude do narcisismo primário, mas como uma
lugar do anterior investimento libidinal maciço forma legítima de satisfação do ideal do eu no
aos moldes do “eu ideal”. Assim, se as ilusões contexto escolar. Por isso é coerente falar em
produzidas pelo eu ideal assumem um caráter identificação com a excelência escolar, porque
defensivo em relação à realidade, as sublima- mesmo tão proeminente para o aluno e suas
ções, vinculadas ao ideal do eu, podem indicar famílias, trata-se de um ideal cultural que fora
atuações criativas e novos caminhos, tais como construído e sustentado por meio de regras e
aqueles que levariam à formação dos ideais normas sociais ao longo da história.
culturais, que seriam desdobramentos mais Como já mencionado, a partir da noção de
refinados da civilização (ROCHA, 2007, 2012). alteridade, o eu pode se abrir para os ideais
Desta forma, quando as pretensões narcísicas culturais. Nesse processo pode ocorrer que
do eu ideal predominam, parece haver o esta- estes se tornem extremamente contundentes
belecimento da idealização; ao contrário, quan- para o sujeito, como um super ideal, seja do
do é o ideal do eu que se sobreleva, abrem-se lado narcísico ou do lado cultural, quando o
as brechas para as sublimações. supereu coletivo é extremamente severo. Além
Assim, a idealização é um mecanismo que disso, a imposição desse ideal pode trazer con-
se refere ao investimento maciço no objeto. sequências complicadas nos enfrentamentos
Através dela, esse objeto, sem qualquer mu- cotidianos, que podem reverberar na sensação
dança em sua condição, é enaltecido na mente de realização ou no sentimento de culpa, aquele
do sujeito. Com isso, pode-se considerar que que “[...] também pode ser entendido como
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O ideal da excelência escolar e os conflitos vividos pelo aluno de classes populares
uma expressão da tensão entre o ego e o ideal naquilo que obtém do outro. Ora, Paulo Freire
do ego” (FREUD, 1969a, p. 28). (1996), mesmo sem ser psicanalista, parecia
Contudo, entre o triunfo ou a culpa, a apro- vislumbrar essa questão ao criticar a educação
ximação com o outro pode gerar a transforma- conteudista.
ção do ego pela via da identificação com uma Entretanto, é importante ressaltar que nem
qualidade já estabelecida nesse outro e que se sempre esse contato com o outro ocorre sem
incorporou em si, ou alternativas de invenção, conflitos. Em algumas situações e contextos,
a partir do reconhecimento da falta como cons- essa relação pode ser, inclusive, traumática.
tituinte do eu. Essa concepção pode modificar Neste sentido, não é incoerente pensar que,
a relação que temos com o saber, com o sujeito em alguns casos, a percepção da não disposi-
que aprende e, consequentemente, contribuir ção dialógica entre as fronteiras culturais na
para ressignificar o ideal da excelência escolar. escola e da condição de ser outro pode gerar
Assim, a possibilidade da criação de um saber um recalcamento violento no indivíduo. Além
que falta no eu através da convergência com o disso, devido ao temor da castração, da perda
ponto de falta no saber do outro provoca o redi- do objeto e da posterior perda do amor, alguns
mensionamento dos ideais subjetivos frente ao sentimentos, como a angústia, podem ser sen-
ideal coletivo massificante. O reconhecimento tidos intensivamente pelo eu, antecedendo e
de uma falta em si e da importância do outro produzindo o processo de recalcamento se-
cundário desencadeador de psicopatologias,
[...] confere a abertura para que a aprendizagem
possa não se exaurir em modelamento que diz
diferentemente do recalcamento primário,
de uma dimensão idealizante muito frequente- cuja função é ser estruturante (GARCIA-ROZA,
mente encontrada no campo educacional e para 1995). Assim, quando o estudante, por algum
que o sujeito possa se sentir causado a colocar motivo, percebe a desvalorização de suas ori-
algo de seu naquilo que recebe do Outro. (COR- gens culturais por parte da escola, inconscien-
RÊA, 2011, p. 800). temente, fica submetido ao recrudescimento de
Assim posto, se o ideal é aquilo que busca recalques, levando, inclusive, à possibilidade
enquadrar o sujeito dentro dos moldes sociais, de sintomas.
certa dose de idealização é fundamental para
que o processo educativo ocorra. Entretanto
tudo não pode se resumir a esse modelamento,
Considerações finais
na medida em que o sujeito precisa da falta e da O quanto esse modelo de excelência, uma
liberdade para se constituir e criar caminhos vez introjetado na escola e na vida de cada
singulares. É o reconhecimento da necessidade um, influencia a consciência, em seus atos e
de algo que não está em si, mas se percebe no intenções? O quanto esse ideal atravessa as
outro, que promove o encontro entre o eu e escolhas do sujeito e, dentre outros fatores que
esse outro e faz a aprendizagem ocorrer, não estão presentes no cotidiano escolar (exames
como uma cópia de um ideal externo, mas como e avaliações, comparações e competições),
uma recriação a partir desse contato. Essa via, a contribui para promover uma espécie de vigi-
da singularidade, acaba sendo importante para lância social na escola? Como cada sujeito, em
o desenvolvimento da criatividade e de pers- sua singularidade, escapa ou paralisa diante
pectivas críticas. Diante das trilhas definidas do desses ideais? Neste sentido, numa espécie
conhecimento já produzido pela humanidade, de consciência superegoica coletiva, diferen-
pode haver muito mais do que a reprodução cia-se os bons e os maus estudantes. E, como
copista em cada sujeito, mas a releitura e re- consciência individual alinhada a um modelo
criação do saber, quando o ego se deixa instigar geral (o da excelência escolar), faz cada su-
a uma contribuição particular e sui generis jeito entender e incorporar o que condiz com
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os ideais do bom ou do mau aluno, e a partir é algo a se ponderar. Quanto mais próximo se
disso situar seu “Eu ideal” de estudante? É com está desse ideal, mais adequado se estaria do
essa consciência, que vai se tornando cada vez modelo idealizado de aluno requerido pelo
mais clara por meio da rotina e dos rituais da contexto escolar. Mais perto se está, inclusive,
escola, que o sujeito vive, ante ao risco da perda dos moldes do aluno perfeito. Entretanto, há
de amor do SuperEu e os seus castigos, ante a de se considerar que tanto a aceitação quanto
possibilidade de triunfo ou culpa. a subversão dos padrões escolares geram so-
Enfim, não podemos deixar de pensar no frimento psíquico relacionado às demandas
aluno diante do ideal da excelência escolar. culturais (COSTA; ARREGUY, 2017).
Quais seriam as consequências da tentativa por Nesse sentido, faz-se mister refletir o quanto
uma trajetória escolar perfeita, sem ranhuras, a escola tem contribuído para a repetição de
a partir da conformação de um ideal? Há uma determinados ideais e formas de vida, sem
exigência de que os alunos representem um abrir espaço para outras possibilidades menos
padrão a ser seguido, o que pode incidir em idealizadas. Diante do ideal inatingível do aluno
uma posição subjetiva vinculada a um impe- perfeito, pode haver situações em que o aluno
rativo de substituição da realidade, segundo assuma para si o modelo idealizado da excelên-
os moldes da neurose. Nos processos neuróti- cia, “colando” esse ideal à sua vivência escolar,
cos ocorre que, “[...] uma porção da realidade como se sua vivência não pudesse ser outra
pulsional é evitada, o que é evidenciado na coisa fora desse ideal. A tentativa de adequação
fuga de parte daquilo que seria a vida real, ou ao ideal da excelência escolar e, consequente-
seja, numa tentativa de negar essa porção da mente, ao eu idealizado configura uma condição
realidade” (COSTA; ARREGUY, 2017, p. 143). social patologizante que pode ser chamada de
Nesse quesito, estaríamos submetidos a uma “pedagogia da excelência” (COSTA; ARREGUY,
série de modelos normativos e conservadores, 2017), configurada pelos “[...] imperativos de
seja no contexto da casa, da escola, do trabalho uma educação voltada para o sucesso absoluto,
e/ou das relações. Esses âmbitos, com suas para a fama, o espetáculo, o lucro e o estilo de
demandas “normóticas” (COSTA; ARREGUY, vida consumista exibicionista como principais
2017, p. 153), vão compondo a trama da vida valores da vida” (COSTA; ARREGUY, 2017, p.
ordinária e induzindo a uma gama de neuroses, 142). Isso, por sua vez, pode se desdobrar na
que podem desembocar não apenas em uma culpa pelo fracasso do ideal (FERENCZI, 2011),
seara da vida, mas em vários espaços, uma vez uma vez que nem a escola, nem qualquer ou-
que as neuroses não apresentam “[...] conteúdo tro espaço da vida sustentam tais imperativos
psíquico característico, específico e exclusivo” com facilidade e de modo durável. Contudo, se
(FREUD, 1995, p. 99). podemos considerar a “plasticidade da sub-
Entretanto, mesmo diante do recalque do jetividade na relação intersubjetiva” (COSTA;
Isso (neurose), pode haver uma impossibilida- ARREGUY, 2017, p. 151), também podemos
de de se lidar com o que configura a realidade considerar a plasticidade da influência dos
escolar, enquanto parte da realidade compar- ideais que nos cercam, dependendo das inte-
tilhada coletivamente, pois as designações rações em que estamos envolvidos, e da crítica
escolares sobre os estudantes – de perfeição, que se pode fazer a esse modelo idealizado de
de seguirem exemplos heroicos e de que de- aluno, de escola e de sociedade. Deste modo,
vem fazer algo de extraordinário – podem vir podemos ponderar a escola como um espaço de
a formular uma imposição superegoica sem li- trocas intersubjetivas mais potentes em meio
mites, um ideal inalcançável. Deste modo, o que ao encontro de determinações simbólicas que
uma possível introjeção totalitária do modelo levem ao reconhecimento da falta e das imper-
imposto pela escola pode provocar nos alunos feições. Se pudéssemos lidar conosco e com os
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O ideal da excelência escolar e os conflitos vividos pelo aluno de classes populares
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Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
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LinguÍstica, psicanÁlise, educação e os falantes de uma lÍngua de sinais
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p246-258
LinguÍstica, psicanÁlise,
educação e os falantes de uma
lÍngua de sinais
Cristóvão Giovani Burgarelli (UFG)*
https://orcid.org/0000-0002-1060-0005
RESUMO
Tomando como aporte teórico tanto o reconhecimento quanto a subversão a que
Lacan promove a linguística saussureana, tomarei como objetivo, neste artigo,
introduzir algumas questões que considero pertinentes para pensar a educação
dos falantes de uma língua de sinais. Para dialogar com a linguística, vou dar
atenção especial às elaborações de Jean-Claude Milner, em seu livro O amor da
língua, e, para a questão mais específica da língua de sinais, vou recorrer ao livro
Des mains pour parler, des yeux pour entendre: la voix et les enfants Sourds, de
André Meynard. Proponho que, para avançar com as questões aqui apresentadas,
deve-se privilegiar a elaboração lacaniana em torno de uma teoria da escrita,
sinalizando para a afirmação de que a experiência educativa com os falantes
de Libras não pode deixar de interrogar-se a respeito das condições de fala dos
educandos nela envolvidos.
Palavras-chave: Linguística. Psicanálise. Língua de sinais. Experiência educativa.
ABSTRACT
Linguistics, psychoanalysis, educaTION And the sign
language speakers
Assuming as theoretical contribution the recognition and subversion to which
Lacan promotes the linguistics of Ferdinand de Saussure, the goal of this article
is to introduce some questions that I consider pertinent to think about the
education of the speakers of a sign language. In dialogue with linguistics, I will
pay special attention to the elaborations of Jean-Claude Milner, in his book For
the love of language, and for the most specific question of sign language I will
turn to the book Des mains pour parler, des yeux pour entendre: la voix et les
enfants Sourds, by André Maynard. I propose that, in order to move forward with
the questions presented here, one should focus on Lacanian elaboration around
a theory of writing, signaling to the assertion that the educational experience
* Pós-doutorado em Ciências da Educação pela Universidade Paris 8, Vincennes-Saint-Denis. Doutor em Linguística pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Psicanalista. Professor titular da Faculdade de Educação e do Programa
de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Coordenador do Grupo de Estudos, Pesquisa e
Extensão dos Fundamentos Litorais entre Linguagem, Psicanálise e Educação (Entraste/UFG) e membro do Grupo Centro
de Pesquisa: Psicanálise entre Ciência e Arte (Outrarte/Unicamp). Membro do Grupo de Trabalho Psicanálise e Educação da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). E-mail: crgiovani@gmail.com
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Cristóvão Giovani Burgarelli
with the speakers of LIBRAS (Brazilian Sign Language) can not refrain from
questioning the speaking conditions of the students involved in it.
Keywords: Linguistics. Psychoanalysis. Sign language. Educational experience.
RESUMEM
LingÜística, psicOanálisIS, educaCIÓN Y Los HaBlantes de
uNa lEngua de SEÑALES
Tomando como aporte teórico tanto el reconocimiento como la subversión a
que Lacan promueve la lingüística saussureana, tomaré como objetivo, en este
artículo, introducir algunas cuestiones que considero pertinentes para pensar
la educación de los hablantes de una lengua de señales. Para dialogar con la
linguística, daré atención especial a las elaboraciones de Jean-Claude Milner,
en su libro O amor da língua, y, para la cuestión más específica de la lengua
de señales, recurriré al libro Des mains pour parler, des yeux pour entendre: la
voix et les enfants Sourds, de André Meynard. Propongo que, para avanzar con
las cuestiones aquí presentadas, se debe privilegiar la elaboración lacaniana
en torno de una teoría de la escritura, apuntando hacia la afirmación de que
la experiencia educativa con los hablantes de la Lengua Brasileña de Señales –
LIBRAS no puede dejar de interrogarse a sí misma acerca de las condiciones de
habla de los educandos en ella implicados.
Palabras clave: Linguística. Psicoanálisis. Lengua de señales. Experiencia
educativa.
Introdução
Embora boba, a pergunta “de qual linguística própria, a língua não mais será instrumento
estou falando?” parece-me muito importante. para ajudar a agir, pensar ou interagir, mas sim
Tentarei responder a ela no decorrer desta uma instância (histórica) em que tais fazeres
minha elaboração, porém adianto aqui algumas humanos se fundam.
pinceladas, que poderão servir de orientação Nessa mesma linha de raciocínio cabe tam-
ao leitor. O ponto principal é mesmo considerar bém perguntar “o que é a psicanálise?”, ou seja,
que Saussure (2006), no Curso de linguística uma vez que existe o inconsciente freudiano,
geral, pratica o gesto de autoria que inaugura como fica a dinâmica da língua estabelecida por
uma nova ciência, sendo que nova aqui quer Saussure como um sistema de signos em que
dizer que ele põe em questão tanto as bases a combinação entre significado e significante
da filosofia clássica quanto as de toda uma – embora puramente diferenciais se tomados
tradição em torno da concepção de signo. em separado – constitui-se como “uma coisa
Língua não será mais, portanto, representação [fato] positiva em sua ordem” (Saussure, 2006,
(nem de um mundo natural nem de um saber p. 139)? Se Freud, guiado por questões outras,
unívoco, nem das ideias ou pensamentos de se aventurou a escrever o aparelho psíquico
um eu, em sua univocidade). Não será mais, a partir da instância “signos de percepção”
também, nomenclatura, que estabeleceria (Wahrnehmungszeichen), para marcar a sua
uma relação biunívoca entre um nome e uma concepção de uma memória inconsciente,
coisa (ou ideia). Trata-se, então, ainda, de uma com traços a serem retomados num só depois,
guinada com relação à psicologia, que acabava Saussure pôde, por sua vez – e isso porque con-
de nascer como ciência, pois, em sua ordem tou com “devoção de alguns seus discípulos”
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LinguÍstica, psicanÁlise, educação e os falantes de uma lÍngua de sinais
(Lacan, 1998a, p. 500) –, estabelecer a língua eu prefiro denominar, no nosso caso, como
como objeto e fundar a linguística com o esta- falantes de Libras. Para tal, buscarei situar-me
tuto de uma ciência. Contudo, “o que é a língua diante das discussões que venho travando na
se a psicanálise existe?” O modo como Milner minha experiência como professor no âmbito
(2012) desenvolve essa pergunta ajuda-nos, de uma Faculdade de Educação e, mais especi-
sem dúvida, a entender essa discussão, prin- ficamente, no curso de Pedagogia, cujo projeto
cipalmente quando nos diz que o método ad- tem como objetivo principal “a formação de
vindo do próprio conceito de inconsciente não professores para o magistério da Educação
pode ser outro senão partir do que comparece Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Funda-
como resto, ou desvio, no que pôde advir como mental” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS,
constituído, assimilável ou, nos seus próprios 2015). Quanto a isso, é importante frisar a
termos, calculável por e para uma ciência. função da área da linguagem na abrangência
Para nosso terceiro passo, a pergunta mais dessa proposta educacional, pois os vários anos
importante talvez seja “o que os falantes de uma de ensino, pesquisa e extensão, desenvolvidos
língua de sinais podem nos ensinar a respeito a partir desse lugar, ensinaram-me, sobretudo,
da inter-relação entre linguística, psicanálise e a importância de fundamentos mais radicais
educação aqui proposta?” Para desenvolvê-la, (o que quer dizer retirados da própria área)
tomarei como exemplo a elaboração de Mey- para abordar os seus diversos componentes
nard (2016), no livro Des mains pour parler, des – educação infantil, alfabetização, ensino de
yeux pour entendre: la voix et les enfants Sourds Língua Portuguesa, Libras, a relação entre
(Mãos para falar, olhos para ouvir: a voz e as linguagem e inclusão, linguagem e educação
crianças Surdas). Nesse trabalho, esse autor, a especial, educação de adultos, patologias, entre
partir de um conhecimento aprofundado tanto outros – primeiramente como uma questão
da Língua de Sinais Francesa (LSF) quanto do subjetiva e dependente de um encadeamento
sistema político-jurídico-medical da França, linguístico-discursivo.
contrapõe-se radicalmente aos discursos
oficiais cuja tônica é antecipar, na infância, o
diagnóstico de surdez1 e tratar os surdos como
O que aprender com a
deficientes. Além disso, embasado tanto no es- linguística?
tabelecimento pela linguística de que a língua
Vou dar meu pimeiro passo, portanto, com
de sinais é uma língua, quanto na descoberta
a linguística, e, como eu disse, vou recorrer ao
freudiana, a do inconsciente, Meynard (2016)
percurso teórico-prático que venho trilhando;
nos convoca ao reconhecimento da condição de
percurso iniciado, propriamente, em 1995,
falantes dessas crianças; um reconhecimento
quando coincidem a minha entrada, pouco
que pode levá-las a tomar a palavra na Língua
tempo após eu ter concluído o mestrado em
Francesa de Sinais e, portanto, habitar tanto o
Letras e Linguística, para a área de linguagem
campo da linguagem quanto o das formações
de um curso de Pedagogia e a defesa da tese O
do inconsciente.
quebra-cabeça: a instância da letra na aquisi-
Com esse percurso, pretendo, por fim, tra-
ção da escrita (MOTA, 1995), de Sonia Borges,2
zer alguns desdobramentos que considero
no doutorado em psicologia da educação da
pertinentes e fundamentais a uma prática
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
educativa com os denominados surdos, que
(PUC-SP), sob a orientação de Cláudia Lemos.
1 Conforme Meynard (2016), trata-se de uma doença no
âmbito da saúde pública, inventada pelos expertos da Alta Não só ironias fazem parte do destino, mas
Autoridade de Saúde (Haute Autorité de Santé – HAS), também oximoros. Creio que este seja um.
a qual se chama Surdez Permanente Neonatal (Surdité
Permanente Néonatal – SPN), e deve ser diagnosticada no 2 Como houve mudança no nome dessa autora, nas referên-
segundo dia de vida. cias finais deste artigo dirigir-se a Mota (1995).
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Cristóvão Giovani Burgarelli
Uma tese defendida num programa de pós- cada, trata-se não de transpor para esse campo
graduação em Psicologia da Educação, mas o sujeito psicológico ou, em outras palavras, o
com todas as coordenadas para consolidar-se sujeito consciente, senhor de suas represen-
como o marco inicial, no âmbito da aquisição tações, mas sim de dar lugar ao falante, que se
da linguagem escrita e da alfabetização, de uma constitui, se forma, devido à sua inserção na
abordagem radicalmente contrária à Psicologia própria experiência da fala. É, portanto, consi-
da Educação. derando o conceito de língua tal como fundado
Recorrendo a vários textos de Cláudia Le- por Saussure, ou seja, pensando-a como uma
mos, entre eles Sobre a aquisição de linguagem materialidade significante que, ao ser enca-
e seu dilema (pecado) original (DE Lemos, deada, determina significados e valores, que
1982), Borges (2006) discute – desde o início é possível perguntar pelos efeitos formativos,
de seu trabalho, e posteriormente buscando constitutivos, nos atos discursivos concretos
haver-se com as consequências – o erro de de um falante nos seus diversos momentos de
tomar como ponto de partida a possível con- relação com uma língua determinada.
ciliação de compromissos entre a Psicologia, a Nesse sentido, o reconhecimento de que
Linguística e os dados empíricos3 referentes à uma língua em seu conjunto estrutural precede,
aquisição da linguagem (oral e escrita). Ela diz: historicamente, ao falante e às suas capacida-
“o mencionado compromisso obriga a maioria des intelectivas (que vão permitir a posteriori
dos investigadores a considerar a relação da um certo saber sobre essa língua e sobre o
criança com a linguagem como conhecimento seu uso), impede que o linguista e, por que
e a descrever as transformações qualitativas não dizer, o educador embasado numa teoria
em sua linguagem em termos de categorias e da linguagem transponham para o campo de
de estruturas definidas a partir da linguagem suas experiência a noção de um falante ideal,
do adulto” (Borges, 2006, p. 36).4 Disso resulta que já saberia, naturalmente, dirigir-se a tal
uma consequência gravíssima: conforme Bor- objeto e utilizá-lo como meio de expressão e
ges e Lemos, essa cegueira para o dado impos- comunicação. Estou falando aqui, então, de
sibilita “aos estudiosos da área de Educação de uma concepção de linguagem da qual as insti-
entender as peculiaridades da fala da criança tuições escolares podem lançar mão, tanto para
em constituição” (Borges, 2006, p. 36). teorizar quanto para praticar com a criança,
Eis o ponto principal para a nossa questão ou outros aprendizes, a sua entrada, ou o seu
aqui. Fundamentalmente, De Lemos (1982), do aprimoramento, na fala, na leitura e na escrita.
ponto de vista da linguística, ensina-nos a não Especificamente quanto ao fato de que as
“projetar teorias construídas a partir da análise línguas de sinais são línguas, faz-se necessário
de objetos – homogeneizados e abstraídos de considerar, como De Lemos (1982) nos ensina,
sua relação com o sujeito – sobre a atividade que a produção inicial de alguém que está cons-
linguística desse mesmo sujeito” (DE LEMOS, tituindo-se falante nessa língua (e por causa
1982, p. 120). O desafio proposto, portanto, é dela) é feita mesmo a partir de fragmentos
tomar como objeto de estudo a linguagem, “en- combinados e recombinados, articulados, de
frentando assim a indeterminação, a mudança um modo que geralmente vão comparecer para
e a heterogeneidade desse objeto que se refaz a o adulto como indeterminados, se comparados
cada instância de seu uso” (DE LEMOS, 1982, p. com a língua instituída. Já com Borges (2006),
120). Diferentemente do que fazem a psicolin- podemos presumir que, se tais articulações se-
guística, a sociolinguística e a linguística apli- guem as leis de um funcionamento linguístico
3 Nesse caso, essa acepção não tem a ver com o empirismo, e que dizem respeito tanto à oralidade quanto
sim com o inédito a que pode nos remeter uma experiência. à escrita, então falar, ouvir, ler e escrever
4 Basicamente, a tese de 1995 foi publicada neste livro: O
quebra-cabeça: a alfabetização depois de Lacan. põem-se, primeiramente, na dependência de
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LinguÍstica, psicanÁlise, educação e os falantes de uma lÍngua de sinais
uma experiência que decorre da imersão do canismos de câmbio (DE LEMOS, 1992), lançou
aprendiz, infans, no jogo que se abre, como um mão do seguinte procedimento: semelhante
quebra-cabeça, a partir de tais leis. Imersão, ao propósito de Lacan, de retornar a Saussure
portanto, no jogo dos significantes e das letras para avançar com a Psicanálise, é importante
encadeadas. Contudo, o que seria o significante retornar a Freud e a Lacan para avançar com as
no caso de uma língua de sinais? Como na lín- questões da linguística. Vale também a pena re-
gua portuguesa, ou qualquer outra, cada traço cordar, nesse momento, um debate que esteve
distintivo em sua unicidade. E o que seria a muito presente no meio acadêmico nos anos de
letra? Igualmente, como nas demais línguas, 1990, qual seja, aquele que indagava se Freud
cada suporte ali estruturalmente localizado seria um linguista, o qual sinalizou, no mínimo,
que permitirá o enganchamento de outras para o fato de que o aparelho psíquico pensado
letras, devido ao apagamento dos traços que por Freud é, ao mesmo tempo, um aparelho de
permitiram fundar o significante em sua pura linguagem: “a tese de que a memória não se
diferença. faz presente de uma só vez, mas se desdobra
À frente, pretendo explicitar melhor como em vários tempos; [de] que ela é registrada
isso pode ocorrer quando se trata de falar com em diferentes espécies de indicação” (FREUD,
as mãos e ouvir com os olhos, mas adianto que, 1977, p. 317).
a meu ver, é nesse ponto que culmina a con- Não foi à toa que mencionei acima, na in-
firmação da não-complementariedade entre trodução, a pergunta a partir da qual Milner
Saussure e Lacan, a qual pudesse, talvez, fazer desenvolve, em 1978, o seu livro O amor da
da psicanálise uma linguística aprimorada. Não língua (MILNER, 2012), que teve sua primeira
mesmo, pois aqui já se encontram passagens publicação no Brasil em 1987, no qual a articu-
teóricas importantes (subversões), como, por lação entre linguística e psicanálise toma como
exemplo, as noções de significante, de letra, passo fundamental a consideração tanto do
de sujeito e de objeto, que são basicamente os que é uma língua para a linguística, quanto das
elementos de uma teoria da escrita em Lacan consequências para uma reflexão sobre língua
(principalmente em seu seminário A identifi- e linguagem a partir da descoberta freudiana
cação (LACAN, 2020), de 1961-1962), que se do inconsciente. Conforme a sua elaboração,
constitui, sem dúvida, numa (re)formulação trata-se de interrogar pela possibilidade não
que se desloca, definitivamente, do edifício só de reter do ser falante o que concerne a um
saussureano. objeto material, cuja substância (fônica, sintáti-
ca, lexical etc.) pode ser descrita, mas também
O que aprender com a de pensar os desdobramentos de que, ao ser
habitada por quem fala, a linguagem constitui
Psicanálise? o campo onde se articula gozo e sexualidade.
Neste segundo passo, acredito que, pri- Ali ele nos diz que, se por um lado a linguística
meiramente, devo esclarecer por que, neste escolheu perpetuar um instante instável e, por
texto, eu inverto a ordem dos acontecimentos, isso, permanecer na posição de descrever uma
colocando a linguística antes da psicanálise. É língua, por outro, Lacan forjou o termo lalíngua
por causa de Lacan, que promoveu o retorno a (lalangue), por considerar que, na estrutura da
Saussure para livrar a letra de Freud dos redu- fala, está em jogo a dimensão do gozo.5
cionismos, principalmente aqueles tributários 5 Pode ser importante mencionar aqui, pelo menos, duas
das intervenções que esta minha elaboração recebeu dos
a uma psicologia do eu. É por causa também de pareceristas que avaliaram publicá-la ou não neste perió-
Cláudia Lemos, que, na sequência de seu texto dico, quais sejam, a necessidade de recorrer à Análise do
acima mencionado, principalmente em Los Discurso para me livrar da “ideia bastante equivocada dos
campos da linguística e da psicologia”, ou ainda a sugestão
processos metafóricos e metonímicos como me- de sanar tais equívocos com a leitura de outras publica-
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Cristóvão Giovani Burgarelli
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LinguÍstica, psicanÁlise, educação e os falantes de uma lÍngua de sinais
à fenda que ele abre no edifício do “sujeito falar, olhos para ouvir: a voz e as crianças
clássico, detentor e provedor de unidade” (LE Surdas)7 propõe-se a questionar o que é des-
GOUFEY, 2018, p. 13), ao proferir e perseguir mentido, negado, e culturalmente instituído
a sua estranha proposição de que há represen- quanto à dimensão linguageira, discursiva, a
tações inconscientes, mas também um retorno qual os Surdos podem habitar e na qual podem
à tradição filosófica quanto à questão do signo tomar a palavra, isto é, dimensão em que eles
em relação ao mundo e aos falantes. A ele será, podem ouvir e falar, e, portanto, tal como os
portanto, necessário (des)ler, não sem Freud, demais parlêtres,8 convocar pesquisas tanto
tanto o tempo-chave do cogito cartesiano quan- no domínio da linguística quanto no da clínica
to “a articulação interna do patamar significan- psicanalítica e no das experiências educativas.
te [...] fora do signo” (LE GAUFEY, 2018, p. 13), Para caminhar com sua proposta, Meynard
o que não permitiu a Saussure pensar a língua (2016) busca distinguir, na história do movi-
senão como um fato positivo, ou seja, como mento psicanalítico, aqueles que se implicaram
uma combinação “arbitrária” entre significado radicalmente com essa questão, recusando-se
e significante (BURGARELLI, 2020). à confusão entre sonoro e significante, bem
como propondo um “Outro texto” aos efeitos
O que aprender com os falantes nefastos de tal “desmentido”. Nesse sentido,
esse autor considera Françoise Dolto e Bernard
de uma língua de sinais? This como os dois precursores de um trabalho
Nesta parte do trabalho, considerando a de abertura do inconsciente freudiano, devido
questão apresentada desde o título, vou trazer, a seus posicionamentos, incisivos, a favor da
com base em Meynard (2016), um pouco da Língua Francesa de Sinais (LSF).
história sobre como os fundamentos da psi- A respeito de Françoise Dolto, Meynard
canálise puderam contribuir para o reconhe- (2016) resgata os principais marcos históricos
cimento das línguas de sinais, tomando como que testemunham sua implicação com o campo
exemplo a Língua Francesa de Sinais (LSF) e, dos praticantes da Língua de Sinais Francesa
na sequência, mostrar como uma experiência (LSF) e sua insistência de que “a verdade não
analítica com falantes de línguas de sinais pode está do lado dos especialistas” (MEYNARD,
fazer avançar esses próprios fundamentos. 2016, p. 143), mas sim do lado do desejo, que
Também tentarei pensar, a partir desse con- é inconsciente. Trata-se de um trabalho teórico
texto, algumas questões importantes ao que -prático constante em seu percurso, que, longe
interessa neste momento específico de minha de constituir uma simples posição militante,
pesquisa, qual seja a articulação entre linguís- advém dos alicerces da descoberta freudiana
tica, psicanálise e educação, principalmente no a respeito do que concerne, de fato, o ato de
que diz respeito a uma prática educativa com tomar a palavra, isto é, entrar na experiência
os falantes da Língua Brasileira de Sinais (Li- de constituir-se como falante em uma língua. A
bras), sem excluir dessa experiência o sujeito do partir do histórico organizado cuidadosamente
inconsciente. Tentarei marcar que esse sujeito para marcar, segundo ele, uma distinção entre aqueles
deverá ser concebido como efeito da operação diagnosticados, medicalmente, como surdos e aqueles que
inconsciente, cuja estrutura, à semelhança do se fazem de surdos a essa problemática.
7 No presente artigo, para todas as citações desse livro,
que ocorre com o advento de uma língua, só incluindo os trechos em que ele cita outros autores, como
pode ser abordada a partir de um ponto de Lacan, Françoise Dolto e Bernard This, as traduções são
minhas.
desconhecimento. 8 Retomado por Meynard, “parlêtre” é um termo de Lacan
Des mains pour parler, des yeux pour enten- para dizer que, diferente da filosofia, a psicanálise não trata
do ser, mas sim do falante (parlêtre = parle + être). Daí,
dre: la voix et les enfants Sourds6 (Mãos para
tem-se como elaboração básica que não existe ser senão
6 Meynard (2016) grafa com maiúscula a palavra Sourds aquele que advém pelos efeitos encarnados da linguagem.
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por Meynard (2016), os anos de 1972 e de 1981 numa “língua de signos” antes de falar a língua
constituem dois momentos fortes em que Dolto de referência. Em síntese, Dolto argumenta que,
propõe, sólida e politicamente, a descoberta na vida dos humanos, uma língua intervém des-
freudiana ao invés da maldade e da violência de o início, pois seus gestos – como perceber ou
engendradas aos “fisicamente surdos” pelas procurar o olhar da mãe, sentir ou não sentir
tomadas de posição dos oralistas. o corpo da mãe, chorar ou sorrir devido a uma
Em seu texto “Au jeu du désir les dés sont ação do outro etc. – não podem ser tomados
pipés et les cartes truqués” (No jogo do desejo como necessidades senão simbólicas, ou seja,
os dados são viciados, e as cartas marcadas), numa dimensão significante, capaz de cortar a
apresentado em 22 de abril de 1972, na Socie- relação dual, incestuosa, e abrir o jogo do dese-
dade Francesa de Filosofia, Dolto (1981 apud jo, engenhoso e inventivo (MEYNARD, 2016).
Meynard, 2016, p. 149-150) afirma: No que diz respeito a Bernard This, Meynard
[…] a função simbólica, específica do ser huma- (2016) retoma principalmente estas duas con-
no, permite substituir o prazer de um circuito ferências: L’envie de parler (A vontade de falar),
curto do desejo, sensual, imediato, por um de 1975, e La voix in utero (A voz no útero), de
circuito mais longo, que mediatiza pulsões e 1989. A primeira foi apresentada no colóquio
permite retardar a obtenção do alvo primeiro, da Association Nationale des Parents d’Enfants
para que se obtenha um novo prazer, a descobrir.
Déficients Auditifs (ANPEDA), realizado na es-
O circuito curto é a simbiose prolongada teira das leis para a integração dos “portadores
do filho com a mãe, e também a posição de de deficiência” no sistema educativo padrão e
deficiente que os especialistas de diversos considerado por Meynard (2016) como o ponto
campos lhe atribuem no jogo das relações com de virada para integrar sistematicamente os
os outros. Já o circuito mais longo consiste, so- chamados surdos no meio ordinário. Contra-
bretudo, em “falar à criança”, isto é, ofertar-lhe pondo-se radicalmente a esse movimento,
como “alternativa civilizadora” sua inserção no que pode ser entendido como a passagem da
campo simbólico. proibição ao desmentido, This propõe a escuta
É justamente nesse ponto que Dolto, em da dimensão desejante do inconsciente e a
abril de 1981, baseia sua carta enviada ao mi- importância da triangulação estruturante como
nistro da saúde, na qual ela reafirma e explicita a única possibilidade de evitar o risco de um
sua reivindicação quanto à “necessidade incon- gozo incestuoso. Ao contrário do discurso dos
tornável” de que a língua de sinais seja propos- expertos, que querem, o mais cedo possível,
ta à criança surda, o mais cedo possível, a fim diagnosticar que “uma criança seja surda”, ele
de “nutrir a função simbólica continuamente defende o argumento de que, incontestavel-
em atividade entre os humanos” (DOLTO, 2005 mente, ela escuta, “ela escuta, e com todo seu
apud Meynard, 2016, p. 154). Também, em sua corpo” (THIS, 1985 apud MEYNARD, 2016, p.
conferência, em junho desse mesmo ano, no 135). Em síntese, ele pontua a dimensão fan-
Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris tasmática em que a criança poderá permanecer
(INJS), a sua tônica é a mesma, porém mais alienada ao desejo da mãe e convoca, portanto,
bem especificada: “Que a criança seja ouvinte a função paterna, como um terceiro elemento,
ou surda, a língua de sinais precede à língua capaz de descolá-la dessa posição mortífera,
de referência, Língua de Signos ou língua oral” de puro objeto. Já em sua conferência La voix
(DOLTO, 1989 apud MEYNARD, 2016, p. 157). in utero, pronunciada no colóquio d’Ivry, em
Em vez do pressuposto perverso de que o gesto 1989, ele vai destacar, recorrendo ao texto de
seja inimigo do som, Dolto parte do fundamen- Lacan “Função e campo da fala e da linguagem
to de que todas as crianças – não somente as em psicanálise”, o efeito sujeito, que, advindo
fisicamente surdas – encontram-se inseridas do tecido significante, movimenta o desejo in-
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prática, engajados numa ação transformadora daí, possa deslocar-se nas suas identificações.
e de inclusão dos fisicamente surdos na socie- De modo mais específico, quanto a uma edu-
dade, ao desafio de não arredar o pé dos fun- cação com crianças que inclua os fisicamente
damentos necessários para tal empreitada. Do surdos, a questão que considero principal
mesmo modo que De Lemos (1982) e Borges é passar de uma concepção naturalizada de
(2006) alertaram os linguistas e os educadores infans para a consideração de uma articulação
a não serem cegos diante do que comparece, significante primordial capaz de estruturar a
nos dados referentes à fala inicial da criança, fala. Conforme nos alerta Lacan (1999), trata-se
como estranho e resistente à significação, e do de não supormos o estado de infans como “puro
mesmo modo que Meynard (2016) criticou as orgânico” ou como um vazio no sentido ontoló-
instituições políticas, educacionais e de saúde gico ou existencial, pois a questão primordial
quanto à sua surdez à condição de falantes e que aí encontramos é que, no campo da lingua-
de ouvintes daqueles diagnosticados como sur- gem, devido à função da fala, estamos diante
dos, inclusive negando-lhes o acesso à língua de uma estruturação em que gozo e linguagem
de sinais, eu insisto, nesta parte do meu texto, (em sua dimensão desejante) encontram-se
para que não caiamos na armadilha, talvez até intrincados; em que saber sistematizado e
benfazeja, de uma educação surda. saber inconsciente comparecem literalmente10
Para tentar uma amarração com o que trago articulados, o que não nos permite pensar nem
de axial nessa discussão, pode valer a pena, o puro orgânico, nem o sexual como a priori.
neste momento, citar algumas expressões das Portanto, para explicitar como essa estrutu-
teorias da linguagem das quais os educadores ração ocorre, também quando se trata de falar
lançam mão para embasar ou iluminar as suas com as mãos e ouvir com os olhos, a noção
práticas. Para tal, lembro-me, sobretudo, das lacaniana de letra, articulada à de significan-
categorias conceituais de sujeito, de objeto te, terá que ser tomada como essencial a uma
e de outro, que geralmente comparecem na teoria da escrita. Nessa teoria, segundo Lacan
experiência bem intricados ao papel do texto (2009, p. 139), trata-se da escrita que “provê de
(a materialidade linguística encadeada na qual ossos todos os gozos que, por meio do discurso,
o aluno está sendo imerso) e ao do papel do mostram abrir-se ao ser falante”.
professor. O que costumo ouvir? “Um sujeito Ao lhes dar ossos, ela [a escrita] sublinha o que
que pensa”, “um sujeito de direito”, “sujeito decerto era acessível, porém estava mascarado,
surdo”, “cultura surda”, “identidade surda”, ou seja, que a relação sexual falta no campo da
“identidade bilingue”, “o surdo deve adaptar-se verdade, visto que o discurso que a instaura
ao mundo dos falantes”, “o professor (e tam- provém apenas do semblante, por só abrir cami-
nho para gozos que parodiam – essa é a palavra
bém a família e a escola) deve adaptar-se ao
adequada – aquele que é efetivo, mas que lhe
mundo dos surdos”, “dificuldades psíquicas do permanece alheio. (LACAN, 2009, p. 139).
surdo”, “defasagem educacional dos surdos em
relação aos ouvintes”, “o surdo é uma pessoa Caminhando, então, para uma síntese, a
como qualquer outra”. E o que eu posso escu- primeira baliza que se faz necessária para al-
tar disso tudo, considerando principalmente a guns passos nessa direção é uma explicitação
minha enunciação neste texto? As concepções teórica radical dos conceitos de inconsciente e
de língua e de linguagem ainda comparecem aí de linguagem tomados como estrutura, em con-
como secundárias e, portanto, não capazes de traposição a todos e quaisquer revisionismos
promover um movimento rumo a uma prática 10 “Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há litoral, que
que, de fato, situe esse aprendiz na dimensão só vira literal quando, essa virada, vocês podem tomá-la, a
mesma, a todo instante. É somente a partir daí que podem
linguístico-discursiva, na qual ele possa ouvir tomar-se pelo agente que a sustenta.” (LACAN, 2009, p.
e falar numa língua de sinais, para que, a partir 113).
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LinguÍstica, psicanÁlise, educação e os falantes de uma lÍngua de sinais
que, tradicionalmente, os apanham, pelo viés educadores, bem como para outros psicana-
de um método empírico, como gênese. Vale a listas, freudianos. Quiçá eu tenha conseguido
pena lembrar, para isso, o argumento de Althus- fazer valer esse esforço, livrando-me do her-
ser (1993) em seu manifesto de retorno aos metismo, mas, ao mesmo tempo, não caindo
fundamentos de Freud e Lacan, extremamente num reducionismo. Resta-me, no entanto,
importante para os que pretendem situar-se no além de dizer que a densidade dos conceitos
campo próprio da psicanálise, em contraposi- aqui trazidos poderá ser melhor elucidada
ção radical aos que, mais comumente, tendem em outras ocasiões e contextos, uma última
às idealizações e ao modo de resolução das vias investida para explanar estes dois pontos a
estabelecidas, antes de Freud, pelos domínios respeito das proposicões com que me referi ao
seja da biologia ou da etologia, seja da psico- signicante, à letra e ao gozo: primeiro, quando
logia ou da sociologia. disse significante e letra na colocação em ato
Assim, torna-se primordial a esta discussão de uma língua de sinais, isso implica consi-
– e isso porque no percurso de minhas pesqui- derar que o traço distintivo a ser apagado e
sas me senti obrigado a colocar a psicanálise encadeado – portanto, o significante que será
no meio dos campos aqui abordados (linguís- suportado pela letra – encontra-se, material-
tica e educação) – não abrir mão do que Lacan mene, nos gestos, cujos elementos ganharão
(1999, p. 90) chamou de “o nó que une o uso estatuto de unidades linguísticas capazes de
do significante e aquilo que podemos chamar ser articuladas, nomeadas e significadas de
de uma satisfação ou um prazer”.11 É aí que se acordo com seus diferentes valores. Segundo,
situa o que se tem a desenvolver a respeito do quando disse gozo foi para me referir à relação
conceito de sujeito. Freudianamente falando: entre os objetos pulsionais e o corpo falante,
um complexo de “representações”, ao contrário e, no caso de uma língua de sinais posta em
de se fechar, não faz senão manter-se, pela via uso, é muito importante destacar, entre es-
da repetição, num circuito de insistência. Tra- ses objetos, o objeto voz, que Lacan (2005, p.
ta-se de pulsão, cujo circuito marca a distinção 279), relacionando-o ao supereu, chama de “o
entre a estrutura da fala e a função orgânica mais original na função do desejo”, o que nos
que ela habita. Com Lacan, podemos dizer que possibilita pensar que o eco da materialidade
o inconsciente, diferentemente do que é língua linguageira que ressoa no corpo não se encon-
para Saussure, é um saber de gozo que não se tra intrinsecamente ligado ao sonoro, mas sim
sabe por si mesmo. Ele funciona de tal modo a uma “voz desligada de seu suporte” (LACAN,
que limita o gozo e ao mesmo tempo o causa. 2005, p. 298).
Recusa-o, para que ele seja atingido na escala Vale a pena retomar, agora, o ponto em torno
do desejo. do qual gira a proposta de Meynard (2016, p.
81):
Caminhando para uma […] propor às crianças Surdas, o mais precoce-
mente possível, a possibilidade de se exprimir
conclusão na LSF12 e permitir, paralelamente, às crianças
ouvintes familiarizar-se com uma tal expres-
Tentei escrever este texto não só para são linguageira implica o reconhecimento do
lacanianos, mas também para linguistas e escutar pelos olhos e permite uma aculturação
civilizadora aberta sobre o escopo simbólico do
11 Ponho em questão o verbo unir que comparece nessa tradu-
ção, pois, se se trata de união, ela é imaginária, como bem gesto humano.
sinaliza minha discussão acima sobre a letra, que comparece
num litoral, e não numa fronteira. No texto em francês, esse Não pela via mitológica, que consistiria em
verbo não aparece. Lá encontramos o seguinte: “le noeud “devolver a palavra” àqueles que estariam dela
entre l’usage du signifiant et ce que nous pouvons appeler
une satisfaction ou un plaisir” (LACAN, 1998b, p. 86). 12 Língua de Sinais Francesa.
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LinguÍstica, psicanÁlise, educação e os falantes de uma lÍngua de sinais
pour entendre: la voix et les enfants Sourds. MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (org.). Introdução à
Toulouse: Érès, 2016. linguística: domínios e fronteiras. Vol. 2. São Paulo:
Cortez, 2001b.
MEYNARD, A. Soigner la surdité et faire taire les
Sourds: essai sur la médicalisation du Sourd et de MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (org.). Introdução à
sa parole. Toulouse: Érès, 2010. linguística: fundamentos epistemológicos. Vol. 3.
5. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
MILNER, J-C. O amor da língua. Tradução de
Paulo César de Souza Jr. Campinas, SP: Editora da SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Tradução
Unicamp, 2012. de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro
Blikstein. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
MORAES, M. R. S. Materna/estrangeira: o que
Freud fez da língua. 1999. 145 f. Tese (Doutorado em UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS. Faculdade de
Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Educação. Projeto pedagógico: curso de Pedagogia.
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), 2015. Disponível em: https://files.cercomp.
Campinas, SP, 1999. ufg.br/weby/up/2/o/2018PPC_Pedagogia_(1).
pdf?1518023839. Acesso em: 20 jul. 2020.
MOTA, S. B. V. O quebra-cabeça da escrita: a
instância da letra na aquisição da escrita. 1995. 271 WEEDWOOD, B. História concisa da linguística.
f. Tese (Doutorado em Psicologia da Educação) – Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola,
Programa de Estudos Pós-graduados em Educação, 2012.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), São Paulo, 1995.
MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (org.). Introdução à Recebido em : 25/07/2020
linguística: domínios e fronteiras. Vol. 1. São Paulo: Revisado em : 09/12/2020
Cortez, 2001a. Aprovado em : 11/12/2020
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
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Robert Levy
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p259-266
RÉSUMÉ
Doit-on aimer les enfants pour les éduquer et a fortiori pour les soigner ?
Comment penser la pratique de la pédagogie et de la thérapie avec les enfants
autrement qu’en les aimant ? Quelques occurrences de clinique psychanalytique
éclaireront cette question en reprenant ce que Lacan et Winnicott peuvent
théoriser. Nous examinerons l’impact que peut avoir le désir dans le fantasme
d’enfant et ses effets sur la fabrication du symptôme. Nous envisagerons
comment un enfant peut sortir de la place du fantasme, comment il peut vivre
autrement que dans l’excès d’amour, enfin comment il est bon d’ accepter la
‘hainamoration’ d’une mère. Autant de questions nécessitant un développement
que nous essayerons d’envisager à travers notre clinique.
Mots-clé: Clinique psychanalytique. Éducation. Amour parental.
RESUMO
TRÊS OCORRÊNCIAS DE AMOR PATOLÓGICO DOS PAIS?
Devemos amar as crianças para educá-las e, a fortiori, para cuidar delas? Como
pensar a prática da pedagogia e da terapia com as crianças de outro modo que
não seja as amando? Algumas ocorrências da clínica psicanalítica vão lançar luz
sobre essa questão, retomando o que Lacan e Winnicott podem teorizar sobre
como pode haver ou não adaptação no que diz respeito à relação dos pais ou
educadores com o amor que têm pelos filhos. Examinaremos o impacto que o
desejo pode ter na fantasia infantil e seus efeitos na construção do sintoma.
Vamos considerar como uma criança pode sair do lugar da fantasia, como ela
pode viver de outro modo que não seja no excesso de amor, finalmente, como
aceitar o “amoródio” de uma mãe. Tantas questões requerem desenvolvimento
e tentaremos considerá-las por meio de nossa clínica.
Palavras-chave: Clínica psicanalítica. Educação. Amor parental.
ABSTRACT
THREE INSTANCES OF PATHOLOGICAL PARENTAL LOVE?
Should we love children to educate them and, a fortiori, to take care of them?
How to think about the practice of pedagogy and therapy with children in a
* Docteur des Universités Aix Marseille. Psychanalyste, co fondateur de l’association Analyse Freudienne et Président actuel.
E-mail: robertlevy607@gmail.com
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Trois occurrences d’amour pathologique parental?
way other than loving them? Some occurrences of the psychoanalytic clinic will
shed light on this issue, returning to what Lacan and Winnicott can theorize
about how it can be adapted or not with regard to the relationship of parents
or educators with the love they have for their children. We will examine the
impact that desire can have on children’s fantasy and its effects on symptom
construction. Let us consider how a child can leave the place of fantasy, how
he can live in a way other than having too much love, finally how to accept a
mother’s «love and hate». So many issues require development and we will try
to consider them through our clinic.
Keywords: Psychoanalytic clinic. Education. Parental love.
RESUMEN
TRES OCORRÊNCIAS DE AMOR PATOLÓGICO DE LOS PADRES?
¿Debemos amar a los niños para educarlos y, a fortiori, para cuidarlos? ¿Cómo
pensar la práctica de la pedagogía y la terapia com los niños de otra forma que
no sea por el amor? Algunas ocurrencias de la clínica psicoanalítica arrojarán
luz sobre este tema, volviendo a lo que Lacan y Winnicott pueden teorizar
sobre cómo se puede adaptar o no em lo que respecta a la relación de los
padres o educadores com el amor que tienen por sus hijos. Examinaremos el
impacto que el deseo puede tener em la fantasía de los niños y sus efectos en
la construcción de síntomas. Consideremos como um niño puede dejar el lugar
de la fantasía, como puede vivir de outro modo que no sea el del demasiado
amor, finalmente como aceptar el “amorodio” de una madre. Tantos problemas
requieren desarrollo y trataremos de abordarlos a través de nuestra clínica.
Palabras clave: Clinica psicoanalítica. Educación. Amor de los padres.
Evidemment les parents font ce qu’ils ou l’enfant se prêterait il à recevoir cet amour
peuvent et surtout aiment leurs enfants comme tout azimut?
ils peuvent. Disons que le champ ‘éducatif ’ au sens
Ce qui depuis toujours se présente comme large du terme, puisque j’y inclue les parents,
une sorte de garantie envers le bon développe- se prête parfaitement à toutes les projections,
ment des enfants à savoir qu’ils soient aimés les réparations, que les adultes fabriquent et
peut, peut-être, être interrogé surtout si l’on qui préside bien souvent au choix d’un travail
considère qu’il ne peut y avoir de norme d’un avec les enfants ou encore à la procréation elle
‘bon amour’. même.
En revanche il peut y avoir cliniquement En première ligne, bien sûr les parents mais
quelque bémol à prendre pour évidence: qu’ pas que…
‘être aimé est bon pour les enfants’. Il serait bon déjà de distinguer le désir de
C’est une ritournelle qui traine un peu l’amour et il est évident que le fait d’avoir été
partout voire même dans le champ éducatif désiré pour un enfant se distingue déjà forcé-
et parfois thérapeutique puisque certains de ment d’avoir été aimé…
nos collègues, à leur insu, ne peuvent pas s’em- Lacan insiste beaucoup sur cette distinction
pêcher ‘d’aimer’ les enfants qu’ils traitent ou dans le champ psychanalytique et ceci dès
qu’ils éduquent. le premier séminaire: «l’amour se distingue
Serait ce un simple effet transférentiel, et/ du désir, considéré comme la relation-limite
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qui s’établit de tout organisme à l’objet qui le C’est dans les cas de séparation des parents
satisfait. Car sa visée n’est pas de satisfaction, que l’on rencontre le plus fréquemment ces
mais d’être. C’est pourquoi on ne peut parler injonctions négatives.
d’amour que là où la relation symbolique existe Autant dire qu’avec ces premiers repères
comme telle.» (LACAN, 1975, p. 420). d’une grande banalité somme toute on peut
La visée de l’amour est d’être... mais plus déjà pourtant soutenir que l’amour des parents
que cela l’amour vise l’être de l’autre: «le don est bien souvent réduit à ce que l’enfant n’en
actif de l’amour vise l’autre non pas dans sa soit que le vecteur à savoir, que cet amour ne
spécificité mais dans son être.» (LACAN, 1975, lui est pas adressé, il ne fait que passer par lui…
p. 420); alors que le désir lui vise la satisfaction. D’ailleurs faut-il aimer un enfant: un peu,
Nous recevons dans nos cabinets bon beaucoup, passionnément ou encore à la folie?
nombre de ces enfants qui, avec leurs parents, Bien malin celui qui apporterait une réponse
confondent ces deux registres, ce qui n’est précise à cette question d’autant que l’amour
certainement pas sans conséquence. porté à un enfant est toujours lié à la façon dont
La fabrication du symptôme le plus typique les parents ont été ou pas aimés eux mêmes
est sans doute celui qui consiste à produire par leurs propres parents et il est bien difficile
des symptômes somatiques lorsqu’un enfant de faire entendre dans nos consultations com-
a compris qu’il n’a d’amour auprès de ses pa- bien il est compliqué pour un enfant de devoir
rents que lorsqu’il est malade. Quelque chose assurer la réparation de l’amour dont les
dis -fonctionne alors dans ce ‘bel objet ‘que les parents eux-mêmes ont manqué de la part de
parents nous amènent, il est donc imparfait et leurs propres parents; thème que l’on retrouve
par conséquent il manque quelquechose à sa également dans le champ éducatif.
perfection. Mais pour continuer ma proposition sur ce
Ceci aura bien sûr des conséquences très repérage d’amour pathologique je vais me ser-
importantes à l’âge adulte si personne dans son vir de trois occurrences proposées par Lacan
entourage médical ne repère le rapport entre pour les deux premières et par Winnicott pour
les symptômes de l’enfant et l’intérêt que lui la dernière.
portent dans cette mesure ses parents et/ou La première à laquelle je vous convie c’est
ses éducateurs. celle qui se trouve dans les deux notes de
Mais ici le désir n’est pas encore de mise et Lacan à Jenny Aubry: ces deux notes, remises
bien souvent l’enfant considère l’intérêt que manuscrites par Jacques Lacan à Mme Jenny
ses parents portent à ses symptômes pour de Aubry en octobre 1969, ont été publiées pour
l’amour alors qu’il n’en est rien ou plutôt qu’il la première fois par cette dernière, dans son
s’agit d’une sorte d’indication inconsciente livre paru en 1986.
d’une destinée selon laquelle un sujet, en 1.– Dans la conception qu’en élabore Jacques La-
l’occurrence un enfant, n’a d’intérêt que pour can, le symptôme de l’enfant se trouve en place
autant qu’il est malade. de répondre à ce qu’il y a de symptomatique
Bien entendu on déclinera également toutes dans la structure familiale.
les figures identificatoires obligées dans les- Le symptôme, c’est là le fait fondamental de l’ex-
quelles un enfant ne sera ‘aimé’ que pour au- périence analytique, se définit dans ce contexte
tant qu’il s’identifiera à son père ou à sa mère et comme représentant de la vérité.
également l’inverse, c’est à dire qu’il ne pourra Le symptôme peut représenter la vérité du
être aimé si justement il présente quelques couple familial. C’est là le cas le plus complexe,
caractéristiques de l’un de ses parents; ce que mais aussi le plus ouvert à nos interventions.
l’on entend si souvent sous la forme: ‘ah quand L’articulation se réduit de beaucoup quand le
tu fais ça on dirait ton père’. symptôme qui vient à dominer ressortit à la
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Trois occurrences d’amour pathologique parental?
subjectivité de la mère. Ici, c’est directement d’une incarnation de la Loi dans le désir. (LACAN,
comme corrélatif d’un fantasme que l’enfant 1986, p. 13-14).
est intéressé.
Voila donc ce que je voudrais souligner tout
La distance entre l’identification à l’idéal du moi particulièrement: c’est l’ambiguïté de cette
et la part prise du désir de la mère, si elle n’a pas
question du fantasme de la mère car c’est à
de médiation (celle qu’assure normalement la
fonction du père) laisse l’enfant ouvert à toutes cette ambiguïté que nous sommes toujours
les prises fantasmatiques. Il devient l’ «objet» de confrontés en consultation c’est à dire que,
la mère, et n’a plus de fonction que de révéler la certes, l’enfant ne peut pas rester en place d’ob-
vérité de cet objet. jet dans le fantasme de sa mère mais que s’il
L’enfant réalise la présence de ce que Jacques n’y a jamais eu de place c’est peut-être encore
Lacan désigne comme l’objet a dans le fantasme. plus grave puisqu’alors il n’aura pas de place
Il sature en se substituant à cet objet le mode du tout comme sujet.
de manque où se spécifie le désir (de la mère), C’est très exactement ce que l’on rencontre
quelle qu’en soit la structure spéciale: névro- souvent dans les psychoses infantiles à savoir
tique, perverse ou psychotique. que certaines mères aiment leur enfant en tant
Il aliène en lui tout accès possible de la mère à qu’objet techniquement performant et elles
sa propre vérité, en lui donnant corps, existence, sont les meilleures mères pour s’occuper de
et même exigence d’être protégé.
lui au sens des besoins sans pourtant pouvoir
Le symptôme somatique1 donne le maximum accéder à un amour pour lui au delà de ses
de garantie à cette méconnaissance; il est la besoins, c’est à dire dans le désir.
ressource intarissable selon les cas à témoigner
Ce sont donc des mères qui ne parviennent
de la culpabilité, à servir de fétiche, à incarner
un primordial refus. pas à ‘particulariser’ les soins qu’elles pro-
diguent à leur enfant elles sont donc parfaites
Bref, l’enfant dans le rapport duel à la mère
lui donne, immédiatement accessible, ce qui et sans manques pour reprendre la remarque
manque au sujet masculin: l’objet même de de Lacan.
son existence, apparaissant dans le réel. Il en C’est bien ce qu’ il indique sous la forme
résulte qu’à mesure de ce qu’il présente de réel, suivante:
il est offert à un plus grand subornement dans
le fantasme. c’est directement comme corrélatif d’un fan-
tasme que l’enfant est intéressé. La distance
2.– Semble-t-il à voir l’échec des utopies com- entre l’identification à l’idéal du moi et la part
munautaires la position de Lacan nous rappelle prise du désir de la mère, si elle n’a pas de mé-
la dimension de ce qui suit. diation (celle qu’assure normalement la fonction
La fonction de résidu que soutient (et du même du père) laisse l’enfant ouvert à toutes les prises
coup maintient) la famille conjugale dans l’évo- fantasmatiques. Il devient l’ ‘objet’ de la mère, et
lution des sociétés, met en valeur l’irréductible n’a plus de fonction que de révéler la vérité de
d’une transmission – qui est d’un autre ordre cet objet. L’enfant réalise la présence de ce que
que celle de la vie selon les satisfactions des Jacques Lacan désigne comme l’objet a dans le
besoins – mais qui est d’une constitution sub- fantasme. Il sature en se substituant à cet objet
jective, impliquant la relation à un désir qui ne le mode de manque où se spécifie le désir (de
soit pas anonyme. la mère), quelle qu’en soit la structure spéciale:
névrotique, perverse ou psychotique. (LACAN,
C’est d’après une telle nécessité que se jugent 1986, p. 13-14).
les fonctions de la mère et du père. De la mère:
en tant que ses soins portent la marque d’un Il aliène en lui tout accès possible de la mère
intérêt particularisé, le fût-il par la voie de ses à sa propre vérité, en lui donnant corps, exis-
propres manques.
tence, et même exigence d’être protégé.
Du père: en tant que son nom est le vecteur Et c’est là que l’on rencontre l’investissement
1 Souligné par moi. du symptôme somatique chez certains enfants
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Robert Levy
tel que: «le symptôme somatique donne le « une constitution subjective, impliquant la
maximum de garantie à cette méconnaissance; relation à un désir qui ne soit pas anonyme. »
il est la ressource intarissable selon les cas à C’est à dire d’entrer avec un nom qui fasse
témoigner de la culpabilité, à servir de fétiche, «incarnation de la loi dans le désir».
à incarner un primordial refus.» (LACAN, 1986, C’est, en d’autres termes, ce qui peut être
p. 13-14). attendu d’une fonction d’autorité qui assume
Bref, l’enfant dans le rapport duel à la mère d’être à la fois un Auteur et en même temps
lui donne, immédiatement accessible, ce qui le référent d’une loi à laquelle nous sommes
manque au sujet masculin: l’objet même de tous soumis.
son existence, apparaissant dans le réel. Il en En sachant que cette place d’Autorité n’a de
résulte qu’à mesure de ce qu’il présente de réel, sens que si elle est transmise à partir de l’ex-
il est offert à un plus grand subornement dans périence de castration (manque) de celui qui
le fantasme. la soutient (qui l’énonce).
Ainsi Nous percevons également la difficulté Une Place donc qui au moment de la pro-
puisqu’il faut bien que l’enfant ait eu une place duction d’un acte d’autorité puisse risquer la
dans le fantasme de sa mère mais qu’il puisse perte de l’amour (qui est toujours le fantasme
en sortir. qui retient de ‘faire’ autorité), en l’occurrence
Comment donc peut-il en sortir? de l’enfant. C’est me semble-t-il une définition
C’est ce que propose Lacan grâce à ‘la mé- que l’on pourrait appliquer à tout intervenant
diation du père’ qui permettrait de ne pas éducateur.
laisser l’enfant «ouvert à toutes les prises Souvent nous rencontrons dans nos consul-
fantasmatiques». tations les difficultés, en particulier des pères
Il faut donc que «la distance entre l’identifi- (il faut bien le dire) à assumer cette place
cation à l’idéal du moi et la part prise du désir puisqu’ils imaginent qu’être Auteur d’autorité
de la mère» ait une médiation qui s’appelle la c’est risquer de perdre l’amour de leur enfant,
fonction paternelle. voire même de la mère de leur enfant dans
Comment travailler cette question dans certains cas lorsque celle-ci ‘fait corps’ avec
notre clinique ? Lacan nous en donne une indi- son enfant.
cation puisque: «le symptôme peut représenter Ils ne se rendent pas compte qu’à ne pas
la vérité du couple familial. C’est là le cas le assumer cette place de ‘transmettre un nom
plus complexe, mais aussi le plus ouvert à nos qui fasse incarnation de la loi dans le désir’ ils
interventions.» laissent l’enfant seul face à des angoisses qui
C’est dire si il s’agit clairement de l’invita- peuvent devenir parfois très envahissantes…
tion à un travail avec les parents puisque le On rencontre cela dans les questions de
«symptôme de l’enfant se trouve en place de difficultés à s’endormir des enfants qui re-
répondre à ce qu’il y a de symptomatique dans viennent sans cesse le soir au moment de se
la structure familiale». coucher pour ‘avoir un verre d’eau’, encore une
Il s’agira alors de pouvoir travailler à ‘repé- histoire, un dernier bisou; bref , des enfants qui
rer’ cet ‘objet ‘a’ enfant pour la mère pour en ne rencontrent pas cette limite que seul celui ou
faire différencier où plus exactement ressortir celle qui assume cette place de nom qui fasse
l’accès possible de la mère à sa propre vérité, incarnation dans le désir peut leur donner.
vérité qui lui était cachée par la prise dans le C’est une première définition que je retien-
corps du symptôme somatique de l’enfant… drai donc pour ce qui concerne en quoi consiste
La conséquence en sera forcément la sortie l’amour des parents pour un enfant; à savoir
possible de l’enfant comme objet si et seule- ce qui peut se transmettre d’un nom qui fasse
ment si l’analyste lui permet d’entrer dans incarnation de la loi dans le désir .
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Robert Levy
de la mère. Autrement dit les enfants paraissent Évidemment, et c’est tant mieux pour lui,
capables de faire face à la haine à leur égard et l’enfant n’est pas seulement un ‘faire valoir’
cela n’est, bien sûr, qu’une façon de dire qu’ils narcissique de sa mère, il peut aussi produire
peuvent affronter et utiliser l’ambivalence
que ressent et manifeste la mère. Ce qu’ils
une sorte de ‘désillusion’ qui se révèle généra-
ne peuvent pas utiliser de façon satisfaisante trice alors de haine.
dans leur développement affectif, c’est la haine La dépression dite du post partum en est une
inconsciente refoulée de la mère qu’ils ne ren- des figures les plus évidentes lorsque cet enfant
contrent dans leurs expériences vécues qu’à idéal de l’imaginaire n’est pas au rendez-vous
l’état de formations réactionnelles. Au moment de l’expérience réelle de sa naissance.
où la mère hait, elle manifeste une tendresse
particulière. Il n’y a aucun moyen pour un enfant
C’est la déception et le deuil qui prennent
de faire face à ce phénomène. alors le dessus pour la mère et à ce moment
il n’est pas rare de constater des poussées de
C’est en effet ce que nous pouvons accueillir haine chez les mères, haine de la différence
de plus extrême dans ce que l’amour au sens entre l’enfant idéal attendu et l’enfant réel
propre de la ‘hainamoration’ peut produire par accueilli ; et pour certaines mères redouter
rapport à un enfant. des passages à l‘acte violents. Ce que certains
C’est également ce qu’il y a de plus tabou obstétriciens connaissent bien puisqu’il n’est
car comment une mère pourrait-elle avouer pas rare que dans certains services hospitaliers
à quiconque qu’elle pourrait haïr son enfant, d’accouchement les médecins ferment très
avoir l’envie de s’en débarrasser quand toute vite les fenêtres lorsqu’ils perçoivent que la
la société judéo chrétienne n’a de cesse de ‘dépression post partum’ se révèle plus sévère
rappeler combien une mère se doit d’être qu’à l’habitude.
‘tout amour’. Mais ce n’est pas forcément un inconvé-
Mais ce sur quoi insiste le plus Winnicott nient voir même ce peut être une expérience
c’est sur le fait que certaines formes d’amour nécessaire pour un enfant de pouvoir sortir à
sont en fait des formations réactionnelles qui ce moment-là de la place du fantasme d’enfant
masquent la haine alors qu’elles se présentent idéal attendu; pour autant bien sûr qu’il n’en
sous la forme de la plus grande tendresse; et soit pas détruit.
c’est ce qu’il y a de plus grave à quoi un enfant Tout dépend en effet de la capacité de la
ne peut pas faire face. mère à pouvoir supporter la ‘hainamoration’
Ajoutons à cela que bien souvent ces mères en conséquence et ainsi permettre à son enfant
ignorent même leur désir inconscient, comme d’entrer dans la sphère de l’enfant réel qui peut
tout un chacun. en effet être très insatisfaisant par ses pleurs,
Pourtant c’est, je crois, un des éléments ses exigences énigmatiques et son écart par
majeurs de ce que la psychanalyse peut appor- rapport à l’enfant idéal espéré…
ter à une mère, à savoir la rassurer sur cette En conclusion Je retiendrai pour finir une
idée qu’elle peut aussi avoir envie de ne pas troisième forme d’amour parental:
s’occuper de son enfant voir même à certains C’est celui qui permet de haïr sans détruire (3)
moments où il ne fait que pleurer, le haïr. En rappelant les deux premières celui qui
Il faut entendre tout de même que cette introduit un manque pour faire désir (2)
haine est le résultat bien souvent d’un échec du Celui qui donne un nom qui fasse incarnation
narcissisme que l’enfant est supposé apporter de la loi dans le désir (1).
à sa mère.
En effet, l’attente d’un enfant suppose tou- Referências
jours une certaine forme d’espoir de complé- LACAN, J. L’Angoisse, Le séminaire, Livre X. Paris:
tude, en tout cas fantasmatique. Le Seuil, 1963.
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 259-266, out./dez. 2020 265
Trois occurrences d’amour pathologique parental?
LACAN, J. Deux notes sur l’enfant. Ornicar? Revue et autres situations cliniques. Paris: Gallimard,
du Champ freudien, n. 37, p. 13-14, 1986. 2000.
LACAN, J. Les écrits techniques de Freud, Le sé-
minaire, Livre I. Paris: Le Seuil, 1975.
Recebido em: 30/08/2020
WINNICOTT, D. W. La Crainte de l’effondrement Aprovado em: 10/12/2020
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
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ESTUDOS
Perspectivas interdisciplinares na educação a partir de Habermas, Freire e Santos
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p268-286
PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARES NA
EDUCAÇÃO A PARTIR DE HABERMAS,
FREIRE E SANTOS
Lúcio Jorge Hammes (UNIPAMPA)*
https://orcid.org/0000-0003-0658-4628
RESUMO
O artigo tem o objetivo de discutir os problemas centrais que a educação
contemporânea enfrenta em relação aos processos formativos, tais como: o perfil
dos egressos dos cursos em relação às necessidades e demandas da sociedade,
a urgência de um conhecimento interdisciplinar e a responsabilidade ética e
cidadã. A metodologia consiste num estudo bibliográfico, via hermenêutica
de textos. Os conceitos centrais que servem de aporte teórico para este estudo
compreendem as temáticas da Interdisciplinaridade, da Crise de paradigmas e
as Alternativas para o futuro em sociedade. Habermas, Freire e Santos são os
três autores que servem de horizonte na reflexão crítica sobre o tema e nos
inspiram na busca dos fundamentos para uma educação do futuro. O desafio
apontado é o de construir um novo modelo de formação cultural, que supere os
problemas mais profundos do mundo atual, tais como: a alienação, a exclusão
social, a banalização da violência e a crise ética da atualidade.
Palavras-chave: Crise ético-ambiental. Interdisciplinaridade. Educação. Novos
paradigmas.
ABSTRACT
INTERDISCIPLINARY PERSPECTIVES ON EDUCATION FROM
HABERMAS, FREIRE AND SANTOS
The article aims to discuss the central problems that contemporary education
faces in relation to the formative processes, such as: the profile of the graduates
* Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor da Universidade Federal do Pampa
(Unipampa), campus Jaguarão. Líder do grupo de pesquisa Cultura Escolar, Práticas Pedagógicas e Formação de Professores
(CNPq). E-mail: luciojh@gmail.com
** Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/UFRGS. Vice-líder do Grupo de Estudos sobre Universi-
dade – Inovação e Pesquisa (GEU-Ipesq/UFRGS). E-mail: jaime.jose@ufrgs.br
*** Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professor do Ensino Básico Técnico
e Tecnológico (EBTT) no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-riograndense (IFSUL) – Campus Lajeado
e do Mestrado do Programa de Pós-graduação em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) em Charqueadas. E-mail:
itamarh57@gmail.com
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Lúcio Jorge Hammes; Jaime José Zitkoski; Itamar Luís Hammes
of the courses in relation to the needs and demands of society, the urgency of
an interdisciplinary knowledge and the ethical and social responsibility. The
methodology consists of a bibliographical study through the hermeneutics of
texts. The core concepts that help theoretical support for this study, include
the themes of Interdisciplinarity, the Crisis of paradigms and the Alternatives
for the future in society. Habermas, Freire and Santos are the three authors
who base the horizon on the critical reflection on the theme and inspire us in
the search for the foundations for a future education. The aim is to build a new
model of cultural formation that overcomes the deepest problems in the world
today, such as alienation, social exclusion, the trivialization of violence and the
current ethical crisis.
Keywords: Ethical-environmental crisis. Interdisciplinarity. Education. New
paradigms.
RESUMEN
PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARIAS SOBRE EDUCACIÓN DE
HABERMAS, FREIRE Y SANTOS
El artículo tiene como objetivo discutir los problemas centrales que enfrenta
la educación contemporánea en relación con los procesos formativos, tales
como: el perfil de los graduados de los cursos en relación con las necesidades y
demandas de la sociedad, la urgencia de un conocimiento interdisciplinario y la
responsabilidad ética y social. La metodología consiste en un estudio bibliográfico,
a través de textos hermenéuticos. Los conceptos centrales que sirven de soporte
teórico para este estudio incluyen los temas de interdisciplinariedad, la crisis de
paradigmas y las alternativas para el futuro en la sociedad. Habermas, Freire y
Santos son los tres autores que sirven de horizonte en la reflexión crítica sobre
el tema y nos inspiran en la búsqueda de los fundamentos para una educación
del futuro. El objetivo es construir un nuevo modelo de formación cultural que
supere los problemas más profundos del mundo actual, como la alienación, la
exclusión social, la trivialización de la violencia y la actual crisis ética.
Palabras clave: Crisis ético-ambiental. Interdisciplinariedad. Educación. Nuevos
paradigmas.
Introdução1
O contexto em que vivemos hoje é paradoxal, soluções eficientes numa direção de reverter
pois estamos em um momento histórico pro- os graves problemas de destruição do planeta
fundamente desafiador em relação ao futuro da e de inviabilidade de uma vida digna para os
humanidade. As questões sociais e ambientais bilhões de humanos que hoje coexistem nessa
estão cada vez mais urgentes para que a socie- casa comum – o planeta Terra.
dade como um todo assuma compromisso com E, além da crise ambiental, vivemos na
1 Este é um estudo que trata de problemas da educação con- atualidade uma profunda crise ética e de in-
temporânea, relacionada aos processos formativos, desen- certezas em relação ao processo civilizatório
volvidos por uma metodologia de estudo bibliográfica. Os
autores buscaram cuidar das questões éticas relacionadas
mundial. A cada dia aumenta a banalização da
ao estudo da temática apresentado neste artigo. violência contra os humanos e contra a natu-
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Perspectivas interdisciplinares na educação a partir de Habermas, Freire e Santos
reza, na mesma proporção que se ampliam quadro? O que a educação pode fazer em médio
os impactos cada vez mais violentos sobre o e longo prazos para contribuir com uma nova
modo de vida dos humanos na sociedade. A atitude do ser humano em relação às questões
crise ética pode se constituir em outro modo ambientais e sociais?
de vida em curto prazo, mas, qual o futuro Nessa perspectiva, buscaremos apontar
da sociedade sem o cuidado e a vida prática, alternativas que possam contribuir com a
pautada na ética? Esse modo de vida seria elaboração de projetos viáveis na perspectiva
sustentável? da educação contemporânea, principalmente
Inspirados em Habermas, Freire e San- sobre os seguintes desafios: a interdisciplina-
tos, buscaremos discutir alternativas para a ridade na formação humana e profissional; a
superação da crise ética, que hoje demanda coerência entre teoria e prática nos processos
novos paradigmas para a formação humana. formativos da educação básica e na educação
E a educação é uma esfera importante para a superior e, igualmente, o desafio de cons-
superação da crise ética em que nos encon- truirmos alternativas à lógica do consumismo
tramos nos dias atuais. Através da educação desenfreado a partir da filosofia de vida do
é possível modificar as maneiras de pensar Bem Viver inspirado no ethos do cuidado, hoje
e agir. necessário e urgente para ser cultivado por
Nesse horizonte, para enfrentar os desafios todos os povos e culturas. As questões que
na construção de alternativas ao imediatismo ousamos responder nessa reflexão são: Qual
que hoje impera nas diferentes esferas da a contribuição do processo educacional para
sociedade, torna-se fundamental o cultivo da a formação de uma cidadania mais compro-
esperança na humanidade. E, nessa perspec- metida com os desafios futuros da vida em
tiva, precisamos repensar com profundidade sociedade? E que perfil de cidadão é necessário
sobre o sentido e as razões de toda e qualquer formar na atualidade?
ação prática no mundo. Pois, ao escolher algo
no quotidiano, mesmo que simples, a rigor es-
tamos escolhendo e decidindo sobre o futuro
Proposições de uma formação
da humanidade. interdisciplinar segundo
A sociedade contemporânea se encontra Habermas
numa grande encruzilhada. O ritmo de destrui-
ção do planeta é cada vez mais acelerado e as Habermas é considerado herdeiro da Teo-
consequências estão cada vez mais visíveis a ria Social Crítica, destacando-se como um dos
todos: aquecimento global, catástrofes climáti- grandes pensadores da contemporaneidade,
cas, incêndios gigantescos, secas ou enchentes buscando refletir sobre a crise da civilização
cada vez mais frequentes. Além disso, com e apontando caminhos alternativos para a
o grande crescimento do consumismo e as construção de uma nova sociedade, mais justa,
demandas por matérias-primas finitas, nosso humana e emancipada. Seu pensamento emer-
planeta não suporta por mais um século que ge da tradição filosófica que tem suas raízes
seja a destruição ambiental, o desequilíbrio que em Hegel e Marx e alcança sua expressão mais
leva ao caos e compromete os fundamentos do elaborada na Escola de Frankfurt. Com esta
sistema ecológico da Terra. perspectiva, Habermas busca revisar a tradi-
Neste contexto, estamos diante de uma bom- ção marxista à luz do contexto das sociedades
ba relógio. O que fazer frente à crise ambiental contemporâneas que se caracterizam pela com-
e social que avança rapidamente? Qual o futuro plexidade e dinamismo histórico (ZITKOSKI,
que deixaremos para as próximas gerações? 2003). A seguir, abordaremos alguns pilares
Qual nosso compromisso hoje diante desse do pensamento habermasiano.
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Perspectivas interdisciplinares na educação a partir de Habermas, Freire e Santos
guagem (Ética do Discurso e Razão Comunica- ção da ciência e da técnica, e o desprezo pela
tiva), tem proximidade com a Dialogicidade de vida subjetiva em suas relações interpessoais
Paulo Freire, bem como com as propostas de são formas ilustrativas da lógica intrínseca do
reconstruir o projeto social emancipatório via marxismo que, em última instância, reproduz
reabilitação da práxis transformadora. a racionalidade hegemônica da modernidade.
O movimento de superação, inaugurado por Segundo Habermas (1992b), os limites
Habermas frente à herança marxista, recebi- básicos do marxismo, desde a sua origem,
do através do plano de trabalho da Escola de decorrem de seu contexto social, a partir do
Frankfurt e das teses da Teoria Social Crítica, qual a teorização ficou presa à lógica do indus-
o credencia como um dos destacados intelec- trialismo precoce e, consequentemente, à razão
tuais da atualidade no que se trata da revisão técnico-econômica. Por estas razões, as teses
do marxismo. A potencialidade de sua proposta marxistas (tanto do próprio Marx, quanto de
está no fato de que, ao assumir as críticas que seus seguidores mais próximos) caracterizam-
seus colegas frankfurtianos lançaram à filoso- se por limitações, dentre as quais destacamos:
fia iluminista (que desembocou no cultivo de a) As análises marxistas de sociedade estão pre-
uma racionalidade restrita, meramente técni- sas ao paradigma de sociedade fundada no
co-instrumental), não apenas busca elucidar trabalho. Essa análise prioriza o trabalho fa-
as causas da crise que afeta a civilização atual, bril como o maior potencial de transformação
mas aponta saídas concretas de superação social através da contradição capital-trabalho
e a consequente organização dos operários.
desta crise a partir da construção de uma nova
Há, portanto, em Marx uma suposição de
racionalidade – a Razão Comunicativa. que a concentração da força de trabalho nas
O problema da razão é a temática central fábricas oportunizaria a criação e fortaleci-
da reflexão filosófica de Habermas. Assim, ao mento da solidariedade entre os operários,
manter-se em sintonia com o programa do a conscientização e, consequentemente, a
marxismo através da problematização de seus ação revolucionária. Segundo Habermas, “Un
punto de partida tan productivista excluye la
aspectos fortes, tais como a alienação, a eman-
consideración tanto de los ambivalencias del
cipação, a crítica ao capitalismo, dentre outros, cresciente dominio sobre la naturaleza como
Habermas avança pelo seu esforço em mostrar del potencial de integración social dentro y
as consequências causadas pelo modelo de ra- fuera de la esfera del trabajo social”. (HABER-
cionalidade burocrática e técnica, que está no MAS, 1992b, p. 23).
alicerce dos sistemas modernos de organização b) O marxismo subestimou a capacidade de
social. Dessa forma, a crítica ao marxismo clás- reciclagem do capitalismo que, apesar de
sico atinge os próprios fundamentos racionais suas crises profundas, é capaz de renovar-se
em seus métodos e regras de funcionamento
deste, revelando suas teses que se inspiram na
mantendo intacta sua lógica da mais valia.
razão instrumental (funcionalista). A análise econômico-social do marxismo
Dessa forma, para Habermas (1998), o mar- previa que a acumulação de capital era
xismo incorre em uma contradição ao defender, uma ilusão do capitalismo, pois, se fossem
por um lado, um projeto emancipatório da adotadas regras de controle nacional da eco-
transformação social – que revolucione as ba- nomia, se extinguiriam as formas objetivas
da lógica capitalista (HABERMAS, 1992b).
ses do capitalismo e supere a alienação social,
No entanto, a história mostrou que o pla-
resultante da mercantilização da vida humana nejamento administrativo não conseguiu,
– e, por outro lado, reproduz a mesma racio- até o presente momento das estruturações
nalidade que fundamenta o próprio sistema sociais, substituir por completo as regras do
capitalista. Assim, o superdimensionamento mercado.
dos aspectos econômicos, a cosmovisão de um c) Outra limitação do marxismo se expressa no
progresso histórico linear, baseado na evolu- modo reducionista de analisar a sociedade
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Perspectivas interdisciplinares na educação a partir de Habermas, Freire e Santos
mentos que podem servir de complemento às Então, de acordo com o diagnóstico de Ha-
críticas de Freire. A problematização dos mode- bermas, a raiz última da crise é a fragmentação
los de racionalidade que sustentam as formas da própria racionalidade fundante da cultura
de organização social, a análise de sociedade contemporânea. Ou seja, na base de nossa
a partir da teoria social crítica e a proposta de atual cultura reside uma manifestação mais
reabilitação do projeto social emancipatório a restrita da racionalidade humana, que reduz
partir da razão crítica-comunicativa. e atrofia o potencial racional da humanida-
de. Esse déficit de racionalidade produz uma
c) Os desafios na construção de uma grande deficiência nos processos de comu-
nova racionalidade nicação entre os sujeitos sociais, que ficam à
A proposta de Habermas também converge mercê dos controles burocratizantes da razão
para o desafio de construir uma nova raciona- instrumental, representada pela visão técnica
lidade, como caminho de superação da atual dos especialistas e burocratas com interesses e
crise sociocultural que nos atinge. Segundo fins pragmáticos, para obtenção de resultados
Habermas (1990), a principal causa dessa previamente planejados por eles.
crise é o déficit de comunicação produzido A racionalidade instrumental, segundo
por um modelo de racionalidade que buro- Habermas (1992a), penetra nos poros da vida
cratiza a existência humana pelo controle dos humana e controla a existência concreta das
sistemas sobrepostos à vida em sociedade. A pessoas a partir das regras do sistema social
saída para a crise deve partir de uma nova (economia, política, leis etc.), forjando uma ló-
racionalidade, essencialmente crítica e eman- gica de controle social que aliena, despersonali-
cipatória, frente à herança sociocultural e os za e desumaniza. Por esta lógica, o ser humano
desafios de transformação da realidade social. é visto apenas como número, peça, ou objeto de
Tal racionalidade deverá cultivar o debate, a manobra. No entanto, o desdobramento prático
comunicação e a produção do entendimento da razão instrumental é o controle da vida em
como fundamento primeiro da vida humana sociedade e não a emancipação ou libertação
em sociedade. das pessoas, que sofrem as consequências
O diagnóstico habermasiano da atual crise negativas das contradições e problemas dos
sociocultural explicita que os próprios funda- sistemas estruturados. O controle ocorre pela
mentos da civilização ocidental foram abalados. organização do mundo do trabalho, da política,
Desse modo, a crise atingiu a própria ciência legislação, educação, produção cultural, mídia,
e a técnica como setores mais expressivos da ciência, técnica, entre outros mecanismos de
cultura moderna. Os conhecimentos técnico- reprodução do poder da razão instrumental.
científicos multiplicam-se em um curto período O poder que a mídia exerce hoje no mundo
de tempo e seguem acelerando cada vez mais ameaça a adequada comunicação humana que,
o ritmo de inovações. Entretanto, por outro por seu próprio dinamismo, deve se realizar
lado, tais saberes constroem-se em bases cada livre de qualquer coação externa. No entanto,
vez mais relativas e fragmentadas, implican- ao contrário do sentido emancipatório, a força
do uma crise e/ou indefinição dos próprios da mídia, articulada com a grande imprensa
rumos de sua autoprodução. Nesse sentido, a internacionalizada, faz com que as pessoas não
manifestação da crise não reside no aspecto se comuniquem, mas apenas recebam comu-
da quantidade de produção, ou no poder de nicados, informações ou visões previamente
domínio do mundo que essa produção detém controladas segundo os interesses de quem
em si, mas, ao contrário, nos fins racionais detém esse poder: “Los medios eletrónicos, que
intrínsecos ao produto científico ou técnico representam una substituición de lo escrito por
(HABERMAS, 1990). la imagen y el sonido [...], se presentam como un
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Perspectivas interdisciplinares na educação a partir de Habermas, Freire e Santos
Freire (1989) percebeu a “consciência dade em ambos. E aí está a grande tarefa huma-
opressora” presente em muitas pessoas e de- nista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si
nuncia a sua intencionalidade, seus propósitos e aos opressores. (FREIRE, 1989, p. 30).
enquanto ideologia dominante que pode ser Na sua proposta pedagógica afirma a res-
transmitida através da “educação bancária”, ponsabilidade social e política, caracterizadas
caracterizada por um modelo de educação em pela coerência e autenticidade. Dessa forma,
que se transmitem conhecimentos, evitando seria impossível “dar aulas de democracia e, ao
espaço para a problematização do método mesmo tempo, considerarmos como ‘absurda
e do conteúdo. Por isso propõe a educação e imoral’ a participação do povo no poder”
libertadora para contribuir com a libertação (FREIRE, 1967, p. 93).
das pessoas: “A educação como prática de
liberdade, ao contrário daquela que é prática b) A formação interdisciplinar atra-
de dominação, implica na negação do homem vés do tema gerador
abstrato, isolado, solto, desligado no mundo, Tema gerador faz parte do processo de edu-
assim também na negação do mundo como cação proposto por Paulo Freire e contribui
uma realidade ausente nos homens.” (FREIRE, para aprofundamentos, a partir do contexto e
1989, p. 81). do próprio processo que é analisado. É conce-
Segundo Freire (1989, p. 28), a desumaniza- bido como “algo a que chegamos através, não
ção é verificada “não apenas como viabilidade só da própria experiência existencial, mas tam-
ontológica, mas como realidade histórica”. bém de uma reflexão crítica sobre as relações
Todavia, é a partir desta constatação que é homens-mundo e homens-homens” (FREIRE,
possível perguntar sobre outra viabilidade: a 1989, p. 103).
de sua humanização, pois humanização e desu- Dessa forma, tema gerador se constitui
manização acontecem dentro da história, num meio importante para o desenvolvimento do
contexto de possibilidades em que as pessoas trabalho interdisciplinar, buscando a totalidade
se conhecem ou não como “seres inconclusos semântica com a participação de todos, valo-
e conscientes de sua inconclusão” (FREIRE, rizando as contradições vivenciadas. Favorece
1989, p. 30). a investigação que evidencia um “universo
O desafio é propor uma ação que possa temático mínimo”, por meio de uma metodolo-
contribuir para superar a situação da desuma- gia conscientizadora, que possibilita o conhe-
nização que, embora fato concreto na história, cimento e a reflexão crítica de pensarem seu
não é destino dado. Conforme, Freire (1989), a mundo (FREIRE, 1989).
desumanização é o resultado da injustiça pro- Essa proposta da educação por Tema Gera-
movida pelos opressores, gerando situações de dor possibilita conceber o conhecimento e a
violência que, por sua vez, podem levar à luta formação humana que articula dialeticamente
pela humanização, pelo direito ao trabalho, à a experiência da vida prática com a sistematiza-
desalienação e à afirmação das pessoas. ção rigorosa e crítica. Está comprometida com
A violência dos opressores que os faz também a troca de saberes num círculo, onde todos pos-
desumanizados, não instaura uma outra vocação sam “dizer a sua palavra” e sejam valorizados
– a do ser menos. Como distorção do ser mais, os saberes que trazem e compartilham. Esta
o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, perspectiva intersubjetiva para a construção
a lutar contra quem os fez menos. E esta luta
somente tem sentido quando os oprimidos, ao
e reelaboração do conhecimento possibilita
buscar recuperar sua humanidade, que é uma desdobramentos na pesquisa e nas discussões
forma de criá-la, não se sentem idealistamente pedagógicas que visam refletir a formação
opressores, nem se tornam, de fato, opressores levando em conta os desafios da reflexão e
dos opressores, mas restauradores da humani- inserção crítica na realidade.
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A educação freireana tem sua base no círculo Essas categorias ajudam a entender a pers-
e desenvolveu o círculo de cultura como ex- pectiva interdisciplinar da pesquisa e da educa-
periência fundante para a educação dialógica, ção freireana. Seu ensinamento chama a atenção
colocando sua referência na pedagogia do opri- para a ação interdisciplinar da equipe. Primeiro,
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Perspectivas interdisciplinares na educação a partir de Habermas, Freire e Santos
busca conhecer a realidade, pesquisando a si- ciências é Boaventura de Sousa Santos. Nascido
tuação das pessoas e, com “o universo temático, em Coimbra em 1940, publicou extensivamente
recolhido na investigação, devolvê-lo, como nas áreas de sociologia do direito, sociologia
problema, não como dissertação, aos homens política, epistemologia, estudos pós-coloniais,
de quem recebeu” (FREIRE, 1989, p. 120). Esta e sobre os temas dos movimentos sociais, glo-
perspectiva leva à conscientização e ao trabalho balização, democracia participativa, reforma
colaborativo para transformar a situação injusta. do Estado, direitos humanos, com trabalho de
Essa capacidade de ler o mundo e a palavra campo realizado em Portugal, Brasil, Colômbia,
permite conhecer melhor a realidade e encon- Moçambique, Angola, Cabo Verde, Bolívia e
trar alternativas que contribuam para pensar Equador.
juntos, de forma crítica, o próprio mundo, Esse autor defende que vivemos em um mo-
compreendendo melhor a situação das pessoas mento de transição entre o paradigma da ciên-
para alcançar os resultados esperados. E é isso cia moderna e um novo paradigma emergente,
que a sociedade contemporânea requer: uma o da ciência pós-moderna, a partir da consta-
leitura atenta do contexto, mantendo a abertu- tação de que a modernidade não cumpriu as
ra ao diálogo e respondendo adequadamente promessas que fez em relação aos grandes
às situações complexas que se apresentam. problemas da humanidade. Na pós-modernida-
A proposta de educação freireana parte do de, a formação interdisciplinar é uma de suas
processo de conscientização em que a leitura características principais, na medida em que
da palavra e do próprio contexto, aprofundado considera a diversidade, a multiplicidade e a
em grupos, num processo metodológico em heterogeneidade dos fatos, além dos sujeitos
que a “leitura do mundo precede a leitura da presentes nesta formação.
palavra, daí que a posterior leitura desta não
pode prescindir da continuidade da leitura a) O paradigma dominante ou o mo-
daquela. Linguagem e realidade se prendem delo da Racionalidade que preside a
dinamicamente” (FREIRE, 1989, p. 9). ciência moderna
O problema de pesquisa surge com o co- Para Santos (2018), o modelo de racio-
nhecimento da realidade apreendida com as nalidade que preside a ciência moderna
palavras dos educandos, destacando-se as constitui-se a partir da revolução científica
situações de opressão, como base da problema- do século XVI e foi desenvolvido nos séculos
tização da realidade, superando a compreensão seguintes basicamente no domínio das ciên-
estreita dos problemas. Assim é possível reco- cias naturais. Esta nova racionalidade cien-
nhecer as preocupações da comunidade que tífica nega todas as formas de conhecimento
revelam a temática a ser pesquisada e tratada que não se pautarem pelos seus princípios
de forma interdisciplinar, base do conteúdo epistemológicos e pelas suas regras meto-
programático para ser tematizado e vivido. dológicas. Distingue-se ostensivamente de
Ou seja, buscar-se-á conhecer o discurso para duas formas de conhecimento não científico:
reconhecer saberes necessário à prática edu- “o senso comum e as chamadas humanidades
cacional dialógica. ou estudos humanísticos” (SANTOS, 2018, p.
20). Um conhecimento que se fundamenta
Desafios de uma ciência/ na distinção entre conhecimento científico
formação interdisciplinar e senso comum, por um lado, e natureza e
pessoa humana, por outro.
segundo Santos Na ciência moderna a matemática ocu-
Além de Habermas e Freire, outro autor que pa um lugar central e fornece à ciência o
nos auxilia a pensar a interdisciplinaridade nas instrumento privilegiado de análise. Desta
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Perspectivas interdisciplinares na educação a partir de Habermas, Freire e Santos
ciência resultou no compromisso desta com os sejam eles reconstruir a história de um lugar, manter
centros de poder econômico, social e político. um espaço verde, construir um computador ade-
quado às necessidades locais, fazer baixar a taxa de
Esta industrialização da ciência manifestou-se mortalidade infantil, inventar um novo instrumento
tanto ao nível das aplicações como ao nível da musical, erradicar uma doença etc. A fragmentação
organização da investigação científica. Para pós-moderna não é disciplinar e sim temática. Os
temas são galerias por onde os conhecimentos
Santos (2018, p. 61).
progridem ao encontro uns dos outros. (SANTOS,
As bombas de Hiroshima e Nagasaki foram um 2018, p. 82).
sinal trágico, a princípio visto como acidental e
fortuito, mas hoje, perante a catástrofe ecológica
Sobre essa perspectiva, o conhecimento é
e o perigo do holocausto nuclear, cada vez mais total porque reconstitui os projetos cognitivos
visto como manifestação de um modo de produ- locais realçando sua exemplaridade. Desta
ção da ciência inclinado a transformar acidentes forma, incentiva os conceitos e as teorias
em ocorrências sistemáticas. desenvolvidas localmente a emigrarem para
outros lugares cognitivos, de modo a poderem
c) A emergência de um novo ser utilizados fora do seu contexto de origem.
paradigma, pós-moderno e Desta forma, o conhecimento pós-moderno
interdisciplinar é um conhecimento sobre as condições de
Para Santos (2018), a revolução científica possibilidade da ação humana projetadas no
que atravessamos é estruturalmente diferente mundo a partir de um espaço-temporal local.
da que ocorreu no século XVI. É uma revolução “Um conhecimento deste tipo é relativamente
científica que ocorre no interior de uma socie- imetódico, constitui-se a partir de uma plura-
dade revolucionada pela ciência, um paradigma lidade metodológica” (SANTOS, 2018, p. 83). A
científico prudente num paradigma social de ciência pós-moderna não segue um estilo uni-
vida decente. Este paradigma emergente pode dimensional, mas uma configuração de estilos
ser melhor explicado a partir de algumas teses. construída segundo o critério e a imaginação
Em primeiro lugar, “todo o conhecimento pessoal do cientista.
científico-natural é cientifico social”. O conhe- Em terceiro lugar, todo o conhecimento é
cimento não é dualista, nem se funda na supe- autoconhecimento. A ciência, como diz Santos
ração das distinções entre “natureza/cultura, (2018), não descobre, cria, e o ato criativo
natural/artificial, vivo/inanimado, mente/ protagonizado por cada cientista e pela co-
matéria, observador/observado, subjetivo/ munidade científica no seu conjunto tem de
objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa” se conhecer intimamente antes que conheça o
(SANTOS, 2018, p. 69). Como afirma Nunes que com ele se conheça do real. As nossas tra-
(2004, p. 66), as mudanças climáticas globais, jetórias de vida pessoais e coletivas e os valores
a biodiversidade humana, a primatologia, as e os prejuízos que transportam são a prova
ciências do ambiente ou as ciências cognitivas íntima do nosso conhecimento, sem o qual as
são exemplos de terrenos novos, cujos objetos nossas investigações laboratoriais ou de arqui-
são, ao mesmo tempo, naturais e sociais, que vo, os nossos cálculos ou os nossos trabalhos
têm levado a novas articulações de saberes e de campo constituiriam um emaranhado de
a colaborações e aproximações entre investi- diligências absurdas. No paradigma emergente,
gadores de áreas tradicionalmente separadas o caráter autobiográfico e autorreferenciável
pela grande separação das duas culturas. da ciência é plenamente assumido. Não nos
Em segundo lugar, todo o conhecimento é separamos pessoalmente do que estudamos,
local e total. Embora o conhecimento tenha mas nos aproximamos compreensivamente.
como horizonte a universalidade, constitui-se A incerteza do conhecimento que a ciência
ao redor de temas adotados por grupos sociais moderna sempre viu como uma limitação
concretos como projetos de via locais, técnica destinada a sucessivas superações
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tureza, produzido pelo modelo econômico e dar respostas aos problemas sociais, aos pro-
tecnológico predominantes em curso. Isso por blemas de desenvolvimento de tecnologias
que consumimos atualmente mais do que os apropriadas às formas de vida sustentáveis,
recursos naturais podem ser renovados. O de- aos problemas de saúde ou ambientais. No
sequilíbrio torna-se crescente e insustentável! plano local, encontra hoje uma diversidade de
Além disso, Habermas (1994) aponta que, experiências cuja riqueza está ainda em grande
para desarmar essa “bomba relógio”, é ne- parte por inventariar.
cessária a transição do paradigma moderno Também Freire (1997, p. 67) contribui para
(disciplinar) de formação humano para um desenvolver novas bases ao fundamentar uma
novo paradigma, fundamentado na perspec- nova relação com o meio ambiente e o cuida-
tiva interdisciplinar e ético-comunicativa. Ou do do planeta com uma “educação ambiental
seja, um novo perfil na forma de pensar e agir capaz de induzir dinâmicas sociais que levam
socialmente, em que todos se comprometem a a mudanças individuais e coletivas, locais e
discutir soluções coletivas, buscando o entendi- globais que provocam uma abordagem cola-
mento para a intervenção no mundo de forma borativa e crítica na busca da resolução dos
responsável diante do futuro da humanidade, problemas”.
do planeta e da sociedade, para o maior equi- A educação ambiental com uma abordagem
líbrio social, político e ambiental. colaborativa permite olhar para o planeta e
Conforme Santos (2018), o enfrentamento responsabilizar-se com o cuidado do meio
dos problemas ambientais exige uma forma- ambiente em que estamos inseridos. Este cui-
ção interdisciplinar. Por isso, alerta que todo dado é necessário para nós e para as futuras
conhecimento científico é científico-social. O gerações. Por isso, afirma: “Eu gostaria de ser
conhecimento não é dualista, nem se funda lembrado como alguém que amou o mundo, as
na superação das distinções entre “natureza/ pessoas, os bichos, as árvores, a terra, a água,
cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, a vida!” (FREIRE, 2001, p. 25).
mente/matéria, observador/observado, sub- Dessa forma, Freire ajudou-nos a compreen-
jetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/ der que o ser humano se desenvolve ao apren-
pessoa” (SANTOS, 2018, p. 69). der. E a educação ambiental pode encontrar na
A emergência de novos domínios e objetos teoria freireana contribuições significativas
de investigação exige a unidade entre socieda- para sua práxis libertadora, baseada em uma
de, natureza e tecnologia. Por isso, temas como ética da responsabilidade para com os outros
as mudanças climáticas globais, a biodiversida- e com o Planeta.
de humana, as ciências do ambiente ou as ciên-
cias cognitivas são exemplos de terrenos novos, 3º A questão social contemporânea:
cujos objetos são, ao mesmo tempo, naturais migrações, exclusão, violência etc.
e sociais e têm levado a novas articulações de Ao afirmar que todo o conhecimento é au-
saberes e a colaborações e aproximações en- toconhecimento, no qual os conhecimentos
tre investigadores de áreas tradicionalmente científicos são também autobiográficos e au-
separadas pela grande separação das culturas. torreferenciáveis, em que a forma de visão do
A pesquisa interdisciplinar, conforme mundo e a cultura dos investigadores (valores,
Santos (2018, p. 22), ajuda a compreender a crenças, representações) tornam-se parte da
urgência de somar forças para cuidar do meio explicação científica, Santos (2018) dá voz aos
ambiente, pois “todo o conhecimento é local marginalizados ou ignorados. Estes podem
e total”. Nesta perspectiva de produção de hoje fazer novas interrogações e são vozes
conhecimento há convergência de disciplinas críticas que surgem de quadrantes diversos,
ou áreas do saber em projetos que procuram como os movimentos indígenas, sem-terra e
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Perspectivas interdisciplinares na educação a partir de Habermas, Freire e Santos
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre 2003, Poços de Caldas, MG. Anais eletrônicos [...].
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de Freire e Habermas. In: REUNIÃO DA ANPEd, 26., Aprovado em: 15/12/2020
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
286 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 268-286, out./dez. 2020
Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p287-307
RESUMO
Em pesquisa realizada em 2016 e 2017, pretendeu-se conhecer os motivos,
os fatores influenciadores e as justificativas da infrequência das crianças na
educação infantil, na perspectiva das famílias e dos profissionais da educação
no contexto de três Escolas Municipais de Educação Infantil da Secretaria
de Educação de Belo Horizonte, MG, escolhidas conforme o Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal do bairro. Foram analisados os diários
de classe das turmas e aplicados 233 questionários aos familiares, os quais
também foram entrevistados juntamente com os profissionais da educação
(diretoras, coordenadoras, docentes e técnica educacional). Constatou-se que o
principal motivo da infrequência é o adoecimento da criança. Fatores impeditivos
relacionados às condições de moradia, ao emprego, à constituição das famílias
(chefiadas por mulheres, mães adolescentes) foram igualmente constatados,
evidenciando que a infrequência escolar é maior entre crianças vivendo em
situações de vulnerabilidade social.
Palavras-chave: Educação infantil. Frequência escolar. Vulnerabilidade social.
Escolas municipais de educação infantil. Belo Horizonte.
ABSTRACT
SCHOOL FREQUENCY IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION:
PERCEPTIONS OF FAMILIES AND EDUCATION PROFESSIONALS
In a survey conducted in 2016 and 2017, it was intended to know the reasons,
the influencing factors and the justifications for the infrequency of children
in early childhood education, from the perspective of families and education
professionals in the context of three Municipal Schools of Early Childhood
Education. Education of Belo Horizonte / MG, chosen according to the Municipal
Human Development Index of the neighborhood. The class diaries of the classes
1 Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Pesquisa da UFMG, sendo autorizada a sua execução.
* Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora da Educação Básica da rede municipal
de Belo Horizonte. E-mail: bia.ovsilva@hotmail.com
**
Doutora em Educação pela Universidade de Paris 5, Sorbonne. Professora Associada da Faculdade de Educação da Universi-
dade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: liviafraga59@gmail.com
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Frequência escolar na educação infantil: percepções das famílias e dos profissionais da educação
were analyzed and 233 questionnaires were applied to family members, which
were also interviewed together with the education professionals (principals,
coordinators, teachers and educational technique). It was found that the main
reason for the infrequency is the child’s illness. Impairing factors related to
housing conditions, employment, and the constitution of families (headed by
women, teenage mothers) were also found, showing that school attendance is
higher among children living in socially vulnerable situations.
Keywords: Early childhood education. School attendance. Social vulnerability.
Municipal schools of early childhood education. Belo Horizonte.
RESUMEN
ASISTENCIA ESCOLAR EN LA EDUCACIÓN INFANTIL: PERCEPCIONES
EM FAMILIAS Y PROFESIONALES DE LA EDUCACIÓN
En una investigación realizada en 2016 y 2017, se pretendía conocer los
motivos, factores influyentes y justificaciones de la poca asistencia de los niños
en la educación de la primera infancia, desde la perspectiva de las familias y
los profesionales de la educación en el contexto de tres Escuelas Municipales
de Educación Infantil de la Secretaría de Educación de Belo Horizonte/
MG, elegida según el Índice de Desarrollo Humano Municipal del barrio. Se
analizaron registros de clase de los grupos de estudiantes, se aplicaron 233
cuestionarios a miembros de la família, que tambien fueran entrevistados junto
con los profesionales de la educación (directores, coordinadores, maestros y
asistente educativa). Se encontró que la razón principal de la inasistencia es
por enfermedad en los niños. También se encontraron factores perjudiciales
relacionados con las condiciones de vivienda, el empleo, la constitución de las
famílias (encabezadas por mujeres, madres adolescentes), lo que demuestra que
la inasistencia a la escuela es mayor entre los niños que viven en situaciones
socialmente vulnerables.
Palabras clave: Educación infantil. Asistencia escolar. Vulnerabilidad social.
Escuelas municipales de educación infantil. Belo Horizonte.
Introdução
O princípio da igualdade de condições para urbanos, como direito das crianças e dever do
o acesso e permanência na escola é um dos Estado, atribuindo competência aos municí-
pilares para a garantia do direito à educação pios pela sua oferta, no escopo do regime de
no Brasil e nas democracias. Desde 2009, o colaboração dos entes federados.
dever do Estado com a Educação se estabele- Embora a oferta da educação infantil tenha
ceu, entre outras garantias, com a ampliação aumentado exponencialmente nos últimos 20
da obrigatoriedade escolar para pessoas de anos, a análise das estatísticas demográficas e
quatro a dezessete anos, abarcando a frequên- educacionais nos indicam inúmeras barreiras
cia estudantil da pré-escola ao ensino médio. de acesso, decorrentes das desigualdades re-
A Constituição Federal, promulgada em 1988, gionais e de renda, do pertencimento racial e
definiu a educação infantil em creches e pré-es- da localização (rural/urbana). Mostra-se que
colas, como direito de trabalhadores, rurais e as crianças mais pobres, cujas famílias perce-
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Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
bem menos que meio salário mínimo mensal para a infrequência escolar? Como os profis-
per capita, as negras e as que habitam áreas sionais da educação percebem os aspectos que
rurais e periféricas apresentam dificuldades envolvem a frequência escolar das crianças na
de usufruírem do direito à educação infantil. rotina da instituição?
Assim, a educação infantil ainda não se con- A fim de respondermos tais perguntas
figura como um direito que atinge a todas as optamos por realizar a pesquisa de campo na
crianças e famílias que manifestam por meios Região Norte do município de Belo Horizonte
diversos a necessidade e o desejo de disporem em três instituições, escolhidas conforme o
de serviços públicos para a educação e o cuida- Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
do compartilhado de filhos pequenos. (IDHM)3 do bairro em que estão localizadas, o
Para as crianças que puderam acessar o que resultou na seleção apresentada a seguir.
direito à creche/pré-escola, como acontece a EMEI A – Localizada em bairro com Alto
frequência à instituição de educação infantil? IDHM, foi construída em uma área que iniciou
Essa foi a principal questão que motivou a seu processo de ocupação a partir da década
pesquisa, cujos resultados apresentamos neste de 1950, como opção de moradia para os tra-
artigo. Buscou-se, nessa perspectiva, investigar balhadores que não tinham condições de morar
as concepções das famílias e dos profissionais no Centro da cidade. Apesar de pertencer à
da educação sobre a frequência escolar das regional Norte, o bairro sofreu a influência da
crianças matriculadas nas Escolas Municipais expansão da regional Venda Nova, que possui
de Educação Infantil2 (EMEI) da Secretaria de um importante centro comercial e de serviços,
Educação do município de Belo Horizonte. A in- e da regional Pampulha, que desde sua constru-
vestigação se justificou, em primeiro lugar, pela ção atraiu moradores devido à modernização
premissa de que o estudo da frequência escolar e à variedade de opções de lazer. Tais carac-
poderia apontar meios para compreendermos terísticas, aliadas à abertura de importantes
a concepção que os adultos envolvidos na roti- avenidas, fizeram com que o bairro fosse se
na das crianças possuem sobre a escolarização “constituindo por casas e apartamentos com
na primeira infância. Além disso, foi motivada bons padrões de construção” (BELO HORIZON-
pela necessidade de conhecer as configurações TE, 2011, p. 23).
que envolvem a frequência escolar das crianças EMEI B – Localizada em bairro com Médio
pequenas frente à implementação da Lei nº IDHM. O bairro está localizado em uma área
12.796/2013 (BRASIL, 2013), que estendeu considerada distante do Centro da capital,
a faixa de matrícula obrigatória a partir da anteriormente ocupada por sítios e fazendas.
pré-escola. Essa área, para acompanhar o desenvolvimento
As seguintes questões incitaram a pesqui- urbano e acomodar a população crescente, foi
sa: Quais são os motivos de infrequência das dividida em lotes na década de 1940. Entre-
crianças na Educação Infantil? Por que algumas tanto, situação recorrente na Regional Norte,
se tornam infrequentes mesmo após terem
encontrado dificuldade de conseguir vaga em 3 Em 2012, o Programa das Nações Unidas para o Desenvol-
vimento (PNUD Brasil), o Instituto de Pesquisa Econômica
instituição pública? Os motivos das faltas va- Aplicada (IPEA) e a Fundação João Pinheiro realizaram
riam conforme a localização das instituições na estudo visando adaptar a metodologia do Índice de De-
senvolvimento Humano (IDH) Global para calcular o IDH
cidade? Quais são as justificativas das famílias Municipal (IDHM) dos 5.565 municípios brasileiros. Pos-
terior ao IDHM dos municípios brasileiros, as três institui-
2 Em alguns trechos de entrevistas poderá aparecer a sigla ções empreenderam a tarefa de calcular o IDHM em nível
UMEI como referência às instituições públicas de atendi- intramunicipal das regiões metropolitanas do país – desta
mento à Educação Infantil em Belo Horizonte, tendo em vez, para as Unidades de Desenvolvimento Humano (UDH).
vista que até o ano de 2018, tais locais eram designados O IDHM brasileiro considera as mesmas três dimensões do
como Unidades Municipais de Educação Infantil. A nomen- IDH Global – longevidade, educação e renda. (PROGRAMA
clatura foi alterada pela Lei Municipal nº 11.132/2018. DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2013).
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 287-307, out./dez. 2020 289
Frequência escolar na educação infantil: percepções das famílias e dos profissionais da educação
a ocupação foi marcada pela falta de planeja- mações: o número de crianças matriculadas
mento e auxílio do poder público (BELO HO- nas unidades por faixa etária; as taxas de infre-
RIZONTE, 2011). quência; em qual turno as crianças apresentam
um maior número de faltas; em qual idade a
EMEI C – Localizada em bairro com Baixo
frequência escolar é maior e menor; em que pe-
IDHM. O bairro é considerado um aglomerado ríodo do ano ocorre a maior incidência de faltas,
subnormal4 pelo Instituto Brasileiro de Geo- e, também, se tais ocorrências são coincidentes
grafia e Estatística (IBGE) e foi criado a partir nas três instituições.
da transferência de famílias de baixa renda 2 – Elaboração, pré-teste, aplicação e análise
oriundas de acampamentos que estavam loca- dos questionários destinados às famílias, cujo
lizados em outras partes da cidade. No mesmo objetivo foi o de investigar a relação entre os
território situa-se uma ocupação urbana, que motivos de falta das crianças e as variáveis: lo-
teve início no ano de 2013, onde também ha- cal de moradia, cor, escolaridade, configuração
familiar e gênero.
bitam crianças que frequentam a EMEI C.
A região administrativa Norte sofreu e sofre Na terceira seção são apresentados fragmen-
processo de ocupação irregular e desordenada tos das entrevistas realizadas com as famílias e
(BIZOTTO, 2015), apresentando bairros com profissionais da educação, o que se constituiu
boa infraestrutura, habitados por pessoas de na terceira etapa da pesquisa. A realização das
maior poder aquisitivo e outros com estrutura entrevistas visou complementar informações
mais precária, cujos moradores possuem me- que permitissem um entendimento contextual
nor renda (BELO HORIZONTE, 2011). Mesmo dos dados quantitativos apurados nos diários
com a proximidade do ponto de vista geográ- de classe e nos questionários respondidos por
fico dos bairros, as condições sociais e econô- familiares.
micas dos moradores não são equitativas no
interior das regiões administrativas da cidade
de Belo Horizonte, o que resulta em índices Frequência escolar em creche e
distintos de frequência escolar apresentados pré-escola: base legal
pelas crianças, como se mostrará a seguir.
Para apresentar uma análise dos indicado- O estudo da frequência escolar na educação
res que possibilitaram tal constatação, orga- infantil pode ser considerado uma novidade no
nizamos o artigo em três seções. A primeira campo de pesquisas em educação, tendo em
apresenta uma breve fundamentação teórica vista a ausência de estudos que abordem esta
e legal a respeito da temática. A segunda seção temática na área. De acordo com a legislação
apresenta dados coletados nas fases da pesqui- vigente, a educação infantil é a primeira etapa
sa, nas quais se utilizou a abordagem quantita- da Educação Básica (BRASIL, 1996), e, a par-
tiva, cujos procedimentos foram os seguintes: tir da implementação da Lei nº 12.796/2013
(BRASIL, 2013), passou a ser constituída por
1 – Leitura e análise dos diários de classe, nos
duas subetapas com regras distintas quanto
quais se pretendeu levantar as seguintes infor-
à obrigatoriedade de matrícula e frequência
4 O termo “Aglomerados Subnormais” surgiu em 1987,
quando o IBGE iniciou uma reflexão a respeito das ca-
escolar: creches, definidas como instituições
racterísticas de áreas conhecidas no Brasil por diversos que atendem crianças de zero a três anos, cujas
nomes, como favela, comunidade, grotão, vila, mocambo, matrículas devem ser efetivadas conforme
entre outros. A partir deste estudo, o conceito foi definido
como sendo “o conjunto constituído por 51 ou mais unida- opção da família; pré-escolas, instituições que
des habitacionais caracterizadas por ausência de título de atendem crianças de quatro a cinco anos, com
propriedade e pelo menos uma das características abaixo:-
irregularidade das vias de circulação e do tamanho e forma matrícula compulsória por parte das famílias.
dos lotes e/ou-carência de serviços públicos essenciais A despeito da novidade da legislação no
(como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia
elétrica e iluminação pública) (INSTITUTO BRASILEIRO DE
que se refere à obrigatoriedade de matrícu-
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2012). la das crianças na pré-escola por parte das
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Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
famílias, cumpre salientar que o acesso à pelo IBGE e pelo Censo Escolar demonstram
educação infantil é direito da criança desde o que a oferta de vagas para atendimento às
nascimento e deve ser garantido pelo Estado crianças pequenas no país ainda está distante
conforme registrado no artigo 208 da Consti- do necessário para atender à demanda, sobre-
tuição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). tudo em relação à creche, conforme informa-
Entretanto, os dados oficiais apresentados ções apresentadas no Quadro 1.
Quadro 1 –Taxa de escolarização das pessoas de 0 a 5 anos de idade, por grupos de idade na Educação
Infantil, segundo Grandes Regiões, nos anos de 2017 e 2018 (%)
4 e 5 anos
Brasil e Grandes Regiões De 0 a 1 ano 2 a 3 anos
2017 2018 2017 2018 2017 2018
Brasil 12,8 12,5 51,1 53,8 91,7 92,4
Norte 2,1 3,0 30,3 31,1 85 86,4
Nordeste 4,4 4,6 52,0 54,2 94,8 95,4
Sudeste 18,5 17,7 57,9 61,3 93 93,8
Sul 25,0 21,6 53,8 55,2 88,9 90,0
Centro-Oeste 10,3 11,4 39,5 43,0 86,9 86,3
Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo com base em dados obtidos na Pesquisa Nacional por Amostra de Do-
micílios Contínua. Educação 2018 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019).
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 287-307, out./dez. 2020 291
Frequência escolar na educação infantil: percepções das famílias e dos profissionais da educação
Importa registrar que esse dado possibilitou É possível perceber também pelos resul-
a refutação de uma hipótese inicial apresentada tados apresentados na Tabela 1 que existiu
pelas autoras de que os índices de frequência uma maior média de faltas entre as crianças
escolar seriam maiores na EMEI C por atender a matriculadas no turno Integral nas EMEI C
população mais vulnerável. Todavia, como será e A e uma média superior de faltas no turno
discutido adiante, os resultados demonstraram da manhã nas três EMEI. Chama a atenção,
que as famílias atendidas por esta EMEI enfren- novamente, a quantidade superior de faltas
tam situações cotidianas inerentes à condição na EMEI C, exceto para a idade de dois a três
social e econômica que dificultam uma presen- anos, em que a média maior de faltas se en-
ça efetiva e continuada das crianças. contra na EMEI A.
Tabela 2 – Média de faltas por idade, nos turnos de atendimento parcial – manhã e
parcial – tarde, segundo EMEI, Belo Horizonte, 2017
Idades EMEI C EMEI B EMEI A
MANHÃ TARDE MANHÃ TARDE MANHÃ TARDE
3 anos 36 35 41 25 36 23
4 anos 47 32 35 35 34 31
5 anos 36 35 38 27 42 27
Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo com base em dados da pesquisa (SILVA, 2018).
5 O Diário de Classe é um instrumento utilizado para re- Quando consideramos apenas os turnos
gistrar diversos aspectos relacionados à organização da Parcial Manhã e Parcial Tarde (Tabela 2), po-
rotina de cada turma, tais como: os nomes das crianças;
dados pessoais; data de matrícula; quantidade de dias demos constatar que, em todas as EMEI e para
letivos mensais; data de desligamento da criança, quando todas as idades, a média de faltas tende a ser
for o caso; chamada diária das crianças, a qual é feita pela
professora que apura ausentes e presentes; a proposta
de trabalho anual para a turma, considerando a idade 6 Embora a análise dos diários de classe tenha sido realizada
das crianças; planejamento mensal de atividades; dados durante os meses de junho a agosto de 2017, foi necessário
pessoais das crianças; datas de ingresso e transferência e tomar os índices de frequência do ano anterior, tendo em
relatório de desenvolvimento individual (SILVA, 2018). vista que importava o resultado total anual de cada turma.
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Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
superior no turno da manhã. A idade em que a entrevistados foi essencial por que, a despeito
média alcançou o maior índice foi a de quatro de ser um instrumento de coleta de dados
anos na EMEI C, turno da manhã (47 faltas por quantitativos, proporcionou uma aproximação
criança), e a idade em que alcançou o menor corpo a corpo com as famílias e, consequente-
valor foi a de três anos na EMEI A, turno da mente, uma maior compreensão das tarefas
tarde (23 faltas por criança). cotidianas que vivenciam, dentre as quais as
Os resultados apresentaram a média geral que se referem à dinâmica necessária para
de faltas, ou seja, são o quociente da divisão garantir a presença da criança na instituição
entre a quantidade de faltas anuais pelo total dia após dia.
de crianças matriculadas. Não foi possível alcançar com os questioná-
Ressalte-se que, durante a análise dos diá- rios a totalidade do público atendido nas três
rios de classe, houve um dado que apresentou instituições, pois optamos pela abordagem
relevância considerável e que merece ser ci- pessoal e mais próxima, com o intuito de tentar
tado. Trata-se da quantidade de crianças que minimizar algumas limitações do uso deste
apresentam uma quantidade superior à média instrumento, conforme apresentadas por Gil
geral, não conseguindo alcançar o índice de (2008, p. 122). Dentre os prováveis entraves,
60% de frequência estipulado pela legislação tentamos agir de tal forma que fosse possí-
para a pré-escola (BRASIL, 2013), ou seja, apre- vel: possibilitar o preenchimento até mesmo
sentaram mais de 80 faltas anuais. A Tabela 3 pelas pessoas que não sabiam ler e escrever;
apresenta tais números e é possível perceber auxiliar as pessoas que porventura não com-
que na EMEI C também foi superior a quanti- preendessem as questões; ter consciência das
dade de crianças nessa situação. circunstâncias em que os questionários foram
respondidos e assegurar que a maioria das
Tabela 3 – Quantidade de crianças com mais de pessoas devolvesse o instrumento preenchido
60% de faltas anuais, em 2016, segundo EMEI de forma completa.
EMEI Quantidade de crianças Contudo, é possível afirmar que alguns
impedimentos para que um maior número de
EMEI C 45
questionários fosse preenchido foram ocasio-
EMEI B 16
EMEI A 14 nados pela organização da rotina dos familiares
e da própria instituição, tendo em vista que,
Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo com base
em dados da pesquisa (SILVA, 2018). conforme notas registradas no caderno de
campo, muitas pessoas não puderam respon-
Os resultados encontrados nos Diários de der sob a alegação de estarem atrasadas para
Classe serviram para realizar um mapeamen- o trabalho ou para buscar crianças em outras
to inicial da frequência escolar e suscitaram instituições, ou, ainda, para preparar refeições
diversos questionamentos, dentre os quais e/ou outros afazeres domésticos. Além disso,
o mais potente refere-se à necessidade de se era comum ocorrer a dificuldade do preenchi-
compreender os motivos da ocorrência de uma mento por familiares que estavam carregando
maior quantidade de faltas entre as crianças ao colo as crianças pequenas.
da EMEI C. Para tanto, a aplicação dos ques- Diante de tais justificativas, e da observação
tionários7 por meio de contato pessoal com os de alguns comportamentos durante a entrada e
saída dos turnos, pode-se inferir que a dinâmi-
7 Os questionários foram aplicados para os familiares das
três instituições pesquisadas entre os meses de novembro horário, totalizando doze oportunidades de aplicação.
e dezembro de 2017. Foram abordadas as pessoas que Dessa maneira, foi possível alcançar familiares de crianças
levavam e buscavam as crianças durante a entrada e saída, dos dois turnos parciais e do turno integral em cada EMEI,
nos horários da manhã – às 07 e às 11h30 - e tarde – às totalizando o preenchimento de 75 questionários na EMEI
13h e às 17h30 – tendo sido realizada uma visita em cada A, 81 na EMEI B e 77 na EMEI C.
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 287-307, out./dez. 2020 293
Frequência escolar na educação infantil: percepções das famílias e dos profissionais da educação
ca de organização dos horários de entrada e saí- este tipo de tabulação “consiste na contagem
da dos turnos é marcada pela impessoalidade, das frequências que ocorrem juntamente em
tendo em vista que, nesses momentos, parece dois ou mais conjuntos de categorias”, tendo
não haver espaço para maiores interações, pois sido os resultados organizados em tabelas.
os familiares, em sua maioria, demonstraram Nesse sentido, as respostas aos questionários
a necessidade de levar e buscar as crianças de possibilitaram conhecer o perfil social da popu-
forma rápida para dar conta de outras tarefas. lação atendida por cada instituição segundo as
Para a análise dos questionários foi realiza- variáveis: Cor (Tabela 4), Escolaridade (Tabela
da uma tabulação cruzada, utilizando o soft- 5), Composição familiar (Tabela 6) e Sexo do
ware SPSS. De acordo com Gil (2008, p. 159), respondente (Tabela 7).
Os índices apresentados na Tabela 4 re- demais, tendo em vista que, nessa instituição,
ferem-se à variável Cor, a qual, seguindo o tal categoria abarca 80% dos casos (20,0%
formato adotado pelo IBGE, foi definida por preta e 60% parda). Esse resultado confirma a
autodeclaração dos respondentes ao questio- constatação de Motta (2017), o qual, ao realizar
nário. Os resultados demonstram uma predo- um estudo sobre a desigualdade socioespacial
minância da cor parda nas três EMEI, aspecto que atinge a população dos aglomerados sub-
que tem sido tendência no país, pois, conforme normais de Belo Horizonte, pode verificar que
dados da PNAD Contínua de 2016, entre os [...] cerca de 74% dos moradores de favelas em
anos de 2012 e 2016, o percentual de autode- Belo Horizonte são negros (pretos ou pardos)
clarados brancos caiu de 46,6% para 44,2%, e estudos indicam que há ainda um diferencial
enquanto o índice de pardos aumentou de de renda provindo de um mercado de trabalho
45,3% para 46,7% e o de pretos, de 7,4% para segmentado e discriminatório contra esse grupo
racial, principalmente do sexo feminino. (MOT-
8,2% (INTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA
TA, 2017, p. 11).
E ESTATÍSTICA, 2017).
De acordo com Gomes (2011, p. 110) os Na Tabela 5, sobre a escolaridade dos respon-
dados demográficos referentes à cor são passí- dentes, os índices demonstram uma diferença
veis “de diferentes interpretações econômicas, significativa de resultados, reforçando o fato de
políticas e sociológicas”. Conforme essa autora, existir uma distância social entre as três UMEIs,
a interpretação defendida pelo Movimento Ne- tendo em vista que a escolaridade é um dos
gro é a de que o conjunto da população negra fatores que reforçam o quadro de vulnerabili-
no Brasil seja definido pela incorporação das dade social de uma população, que “de forma
categorias raciais “preto” e “pardo”. Nesse sen- indissociável relaciona-se com as dimensões
tido, podemos admitir que a maior parte dos econômicas e sociais” (XIMENES, 2010). Na
familiares respondentes nas três instituições EMEI A, o maior percentual encontra-se na
está no conjunto da população negra. opção Ensino Superior Completo. Na EMEI B,
Um aspecto que chama atenção é o número a maior parte dos respondentes assinalou ter
superior de negros na EMEI C em relação às Ensino Médio Completo e houve, também, um
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Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
Em relação à Composição Familiar, perce- irmãos, temos 2,9% na EMEI C, 4,7% na EMEI
bemos com os dados registrados na Tabela 6 B e um resultado nulo na EMEI A. A ocorrência
que prevalece, nas três UMEIs, o tipo nuclear da supremacia de famílias monoparentais fe-
(SZYMANSKY, 2002), tendo em vista que a mininas ocorre em todo o país, tendo em vista
maioria dos respondentes assinalou que a que, de acordo com IBGE, entre os anos 2000
criança mora com a mãe e o pai e com mãe, e 2010, tal composição passou de 15,3% para
pai e irmãos. É possível observar também que 16,2%, enquanto as masculinas se mantiveram
tal configuração está mais presente na EMEI nos mesmos patamares de 1,9% para 2,4%.
A (78,3%), seguida da EMEI B (70,3%) e da (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
EMEI C (51,4%). ESTATÍSTICA, 2012).
Quando observamos as composições fa- É necessário considerar que as famílias mo-
miliares monoparentais, percebemos que os noparentais femininas se encontram em situa-
maiores índices se referem aos casos de famí- ção de maior vulnerabilidade. De acordo com
lias chefiadas por mulheres nas três UMEIs, Babiuk (2015, p. 2), “as famílias monoparentais
com um número consideravelmente superior de mães sozinhas com filhos são mais vulne-
na EMEI C, pois, somados os índices de res- ráveis no plano econômico, no provimento de
postas aos itens “somente com a mãe” e “mãe víveres e nos cuidados prestados aos filhos”.
e irmãos”, temos o total de 40% nesta EMEI. Ainda de acordo com essa autora, as situações
Na EMEI B este percentual chega a 15,6%, e de vulnerabilidade são agravadas para esse
na EMEI A atinge 8,7%. Em relação às famílias tipo de família devido às múltiplas jornadas
monoparentais masculinas, somados os re- exercidas pelas mulheres ligadas ao sustento
sultados dos itens somente com o pai e pai e emocional e econômico das famílias.
Tabela 6 – Composição familiar – pessoas que moram com a criança (%), por EMEI
Somente a Mãe e Somente Pai e Mãe, pai e Outros
Mãe e pai
mãe irmãos o pai irmãos irmãos parentes
EMEI A 6,5 2,2 0,0 0,0 58,7 19,6 13,0
EMEI B 10,9 4,7 0,0 4,7 29,7 40,6 7,8
EMEI C 5,7 34,3 2,9 0,0 25,7 25,7 5,7
TOTAL 8,3 11,0 1,4 2,1 37,9 30,3 9,0
Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo com base em dados da pesquisa (SILVA, 2018).
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 287-307, out./dez. 2020 295
Frequência escolar na educação infantil: percepções das famílias e dos profissionais da educação
A Tabela 7 apresenta a distribuição dos res- e levá-las para a EMEI. Especialmente na EMEI
pondentes por sexo e os resultados mostram C, essas características reforçam o quadro de
a predominância das mulheres nas três EMEI, vulnerabilidade da população atendida. Con-
especialmente na EMEI C (91,4%). Assim, veri- siderando que o estudo dos diários de classe
fica-se que as mulheres são responsabilizadas apontou índices mais baixos de frequência
pelas tarefas de buscar e levar as crianças às escolar nessa instituição, a análise das variá-
instituições cotidianamente. veis demonstrou que para a população mais
vulnerável existem fatores que potencializam
Tabela 7 – Sexo do respondente (%), por EMEI
as dificuldades de acesso à educação, incidindo
Masculino Feminino
também sobre as possibilidades de permanên-
UMEI A 26,1 73,9
cia e frequência efetiva das crianças. Tal consta-
UMEI B 33,3 66,7
tação fica mais patente quando são analisados
UMEI C 8,6 91,4
os motivos das faltas apontados pelas famílias,
TOTAL 25,0 75,0
conforme será visto a seguir.
Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo com base
em dados da pesquisa (SILVA, 2018). Para compor o quadro que apresenta os
motivos de falta das crianças foi solicitado aos
As informações sobre a caracterização dos respondentes que assinalassem sim ou não
respondentes relativas às variáveis menciona- para cada provável situação que pudesse inter-
das (cor, escolaridade, sexo, arranjo familiar) ferir na frequência das crianças às instituições.
mostraram que a maioria é de mulheres, pre- Os resultados foram organizados na Tabela 8 e
dominantemente negras, que apresentam baixa enumerados em ordem decrescente, ou seja, os
escolaridade e se responsabilizam pelo cuidado motivos que mais receberam respostas positi-
das crianças e pela tarefa cotidiana de buscá-las vas aparecem nas primeiras posições.
Tabela 8 –Motivos de faltas das crianças por EMEI (%)
EMEI A EMEI B EMEI C
6 - Acompanhamento especializado
(terapeuta ocupacional, psicólogo, 13,0 87,0 15,6 84,4 17,1 82,9
fonoaudiólogo etc.)
296 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 287-307, out./dez. 2020
Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
9 - Incompatibilidade de horários em
17,4 82,6 9,4 90,6 14,3 85,7
relação ao trabalho dos pais
12 - Dificuldade de adaptação da
criança à EMEI. 2,2 97,8 9,4 90,6 5,7 94,3
Podemos observar que o adoecimento da Observa-se que, embora ainda seja indi-
criança foi apontado pelos respondentes como cado como motivo de falta, o adoecimento
principal fator que provoca a infrequência es- tende a diminuir conforme a idade da criança
colar, seguido do motivo tratamentos médicos. avança. Esse dado reitera os resultados en-
Tais resultados estão relacionados à condição contrados na análise dos diários de classe, os
de vulnerabilidade inerente à saúde das crian- quais indicaram um maior número de faltas
ças pequenas. O tratamento desta temática para as crianças que frequentam a creche.
foi identificado em estudos da área da saúde, O terceiro motivo a receber mais respostas
tais como Amorim e Rossetti-Ferreira (1999), positivas foi o relacionado às condições cli-
Maranhão (2008), Rapoport e Piccinini (2001) máticas. Interessante observar que o índice
e Pedraza, Queiroz e Sales (2014). foi maior na EMEI C, a que atende famílias
Um fator que chama a atenção é que o residentes na ocupação, as quais encontram
cruzamento das variáveis “idade da criança” dificuldades de acesso por residirem em local
e “adoecimento da criança” demonstrou que com infraestrutura ainda precária. Durante
este motivo foi apontado com mais frequência a aplicação dos questionários, as pessoas
pelos respondentes responsáveis pelas crian- nessa EMEI justificavam a opção afirmativa
ças menores, conforme pode ser conferido na para esse motivo, relatando que as ruas ficam
Tabela 9. com muito barro em períodos chuvosos, ou
que os barracões são atingidos pela chuva,
Tabela 9 Motivo de falta por adoecimento, de acor- molhando as mochilas, material e roupas
do com a idade da criança (%) das crianças, pois as paredes não recebem
Motivo de falta da criança: reboco.
Idade da criança
Adoecimento Além disso, em períodos com clima mais
Sim Não seco, as crianças adoecem com mais frequência,
1 ano 81,8 18,2 vítimas, em sua maioria, de doenças infecciosas
2 anos 93,3 6,7 respiratórias, conforme Amorim e Rossetti-
3 anos 87,5 12,5 Ferreira (1999).
4 anos 57,1 42,9 O motivo “Atraso em relação aos horários da
5 anos 60,5 39,5 EMEI” também demonstrou ser mais significa-
6 anos 45,5 54,5 tivo para os respondentes da EMEI C.
Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo com base A análise do quinto motivo, que consiste
em dados da pesquisa (SILVA, 2018).
na dificuldade de chegar à EMEI por falta
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 287-307, out./dez. 2020 297
Frequência escolar na educação infantil: percepções das famílias e dos profissionais da educação
298 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 287-307, out./dez. 2020
Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
Professora PA
Vice-diretora VDA
Professora PB
Vice-diretora VDB
Professora PC
Vice-diretora VDC
Gerente de Coordenação da
GECEDI/SMED G1
Educação Infantil
Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo com base em dados da pesquisa (SILVA, 2018).
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 287-307, out./dez. 2020 299
Frequência escolar na educação infantil: percepções das famílias e dos profissionais da educação
Em primeiro lugar, buscou-se apreender as mesmo entre o grupo de famílias das crianças
concepções inerentes à função da instituição consideradas infrequentes, demonstrando que o
pública de Educação Infantil e as expectativas elevado número de faltas não necessariamente
apresentadas por familiares e profissionais indica uma desvalorização do trabalho realizado
quanto às práticas de cuidado e educação reali- pelas instituições.
zadas nesses locais. Os depoimentos do grupo de Eu não tinha dinheiro de Bolsa Família, não tinha
familiares indicam que existe uma concordância dinheiro pra comprar as coisas pra ele em casa e
com relação ao caráter educativo que as insti- na UMEI eu sabia que ele ia ter uma alimentação
tuições exercem, demonstrando que passaram melhor do que em casa. (FC3).
a exercer junto às famílias a tarefa de partilha Então, quando eu descobri o diagnóstico da pa-
não apenas de guarda, mas também de promo- tologia do H. [criança], eu fazia acompanhamen-
to no S. [Hospital], e eles sugeriram matricular
ção do desenvolvimento das crianças pequenas,
o H. na escola, aí fizeram uma busca por escolas
conforme Chamboredon e Prévot (1986). As inclusivas e tal e o S. me orientou a procurar
falas a seguir ilustram tal argumento: a UMEI pela questão da inclusão. Então esse
Eu matriculei ela mais porque eu precisava é o principal motivo. Pra que ele conseguisse
trabalhar, e também porque eu achei que o desenvolver a questão social. Ainda tem muito
a ser desenvolvido, mas já colaborou bastante
desenvolvimento dela, ela necessitava. (FA1).
pra ele, assim, no dia a dia. (FA3).
[...] no começo ela foi pra escolinha, ela tinha um
Ela desenvolveu bastante, ela tem problema na
ano e sete meses. Quando ela foi pra escolinha,
fala... soltou a língua, mudou bastante, tá falando
era porque eu estava trabalhando. Depois que
muito fluente agora, era enrolado demais, era
eu saí não tinha porque ela sair, aí eu deixei ela,
muito enrolado, mudou pra melhor, graças a
eu preferi deixar, preferi deixar ela na escolinha,
Deus. (FC1).
só tirei do horário integral, deixei só a parte da
tarde. (FC2). Acho que a Educação Infantil é muito impor-
tante pra criança, pra ela inserir mesmo, tá
Então, no início foi mais pra conseguir um lugar socializando com outra criança, né, uma fase
pra ela ficar mesmo, né?! Depois a gente vai en- de aprendizagem e de crescimento pra criança,
tendendo a importância da Educação Infantil. O então eu acho muito importante a educação
meu filho não entrou tão cedo quanto ela aqui e infantil. (FB2).
ela, assim, todas as etapas dela foi mais avançado
que ele. Ela aprendeu cores mais rápido, a coor- As entrevistas permitiram constatar que
denação motora foi mais tranquila do que ele, existe um sentido de valorização da EMEI como
então, no início foi mais um lugar pra ela ficar, espaço educativo e de promoção do desenvol-
depois eu fui vendo a importância que tinha pra vimento infantil por parte dos familiares.
vida dela, sabe? (FC1).
Quando perguntadas a respeito da frequên-
Uma importante constatação refere-se ao fato cia escolar, todas as entrevistadas, incluindo as
de que os familiares entrevistados desejaram a mães dos dois grupos – o grupo das crianças
Educação Infantil para as crianças e as motiva- frequentes e o grupo das infrequentes –, foram
ções para a procura por uma instituição pública unânimes ao afirmar que a frequência escolar
foram diversas, tendo em vista que, além de se na Educação Infantil é importante e que, para
justificarem pela possibilidade de ter um local além de realizar a matrícula, é necessário que
seguro para as crianças ficarem enquanto as as famílias garantam que a criança esteja na
mães estivessem no trabalho, também foram instituição todos os dias. Interessante observar
citados o auxílio com o sustento da criança e in- que as justificativas para esta presença efetiva
dicação médica. Além disso, os depoimentos das foram bastante variadas. Conforme pode ser
famílias indicam um consenso sobre a relevância conferido nos trechos a seguir, perpassam pela
da atuação das EMEI para um desenvolvimento concepção a respeito da importância da Educa-
satisfatório das crianças em diversos aspectos, ção Infantil para o desenvolvimento integral da
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criança, para a preparação para o ensino fun- aprender a lidar com problema, dividir, aí a parte
damental e para a promoção da socialização. escolar, que você precisa de uma base pra você
começar, então eu acho que tudo isto é impor-
Eu acho que sim, porque é aí que se aprende a tante. Então antigamente... antigamente as mães
tomar gosto. Igual eu, sou formada cedo, for- tinham dez filhos e socializava dentro de casa
mei com dezoito anos, mas é porque meu pai porque tinha dez filhos, sete filhos. Hoje se tem
sempre insistiu, tanto eu quanto meus irmãos, um, eu tenho uma, então fica no mundinho. Ela
de frequentar a escola, desde bem novinha. E tá brincando ali, mas ela brincando com outra
não tenho que passar isto pra ela, né? Estes criança ela vai ser uma troca e as pessoas pre-
meninos de hoje em dia não tá estudando, tá cisam desta troca hoje, porque o mundo hoje tá
só indo na escola pra fazer bagunça. Tem que muito digitalizado. Muito! Então as pessoas, se
ir pra aprender. Ela desenvolveu bastante, ela
elas ficarem muito sozinhas, vão ser péssimos
tem problema na fala... soltou a língua, mudou
adultos, na minha concepção. Por isto que eu
bastante, tá falando muito fluente agora, era
acho importante socializar desde pequenininho.
enrolado demais, era muito enrolado, mudou
Principalmente no mundo de hoje, você precisa
pra melhor, graças a Deus. (FC1).
socializar, você tem que aprender as diferenças.
Ah, eu acho, não é o meu caso, né, mas eu acho (FA4).
que é a falta de comprometimento dos pais.
Talvez alguns pais não acreditem que estar na Quanto à concepção dos profissionais a
pré-escola seja tão importante. As pessoas pen- respeito da frequência escolar, foi possível
sam que ‘Ah, quando chegar lá no primeiro ano constatar que alguns deles consideram a fre-
ela se desenvolve’, e eu não vejo por este cami- quência escolar como concretização do direito
nho. Eu acho que a pré-escola é extremamente à educação e como possibilidade de proteção
importante para o desenvolvimento como um da criança frente às vulnerabilidades sociais.
todo, uma base. (FA3).
Nesse ponto, ressaltaremos as opiniões de
Pra não faltar de forma nenhuma eu acho que duas profissionais que atuam na EMEI C e que
exige muito do pai e da mãe. Porque se o pai e a
explicitaram de forma contundente a ideia de
mãe fazer isto pra ajudar os filhos, com certeza
vai ser muito bom pra criança, porque, realmen- frequência escolar como direito da criança,
te, eles não tem nem noção, né? Se o pai e a mãe sendo os adultos responsáveis por garantir
não fazerem isto, no meu caso é mãe, né? Porque sua efetivação.
quem fica com eles na verdade, cuida o tempo Olha, a presença com certeza é importante, é
todo, sou eu. Então eu acho que depende do pai e um momento que ela tem, é a oportunidade que
da mãe. Ali de quem cuida de verdade, né? (FB4). ela tem de frequentar, é um direito, acima de
Ah, eu acho que é pelo desenvolvimento... pra tudo, que ela tem de estar frequentando, estar
tornar frequente, esta percepção da importân- participando, de estar inserida na educação
cia, esta percepção que é importante a educação infantil. E acredito também que, pra nós, é um
infantil, vai ajudar na formação, vai ajudar o fun- desafio, porque a gente sabe que a criança não
damental também, o desenvolvimento no ensino tem um sindicato, não tem quem a defenda e
fundamental, é quando o pai também precisa nós somos o porta-voz desta criança, então é
trabalhar, não tem com quem deixar. (FB1). importante que elas estejam aqui até mesmo
pra gente saber o que tá acontecendo do outro
A frequência é importante porque ele [a criança]
lado. Porque a ponte que tem pra gente saber o
vai pra socializar. Principalmente nos dias de
que acontece com as famílias é a criança. Então
hoje, socializar é importantíssimo. Porque se
pra mim é fundamental, é essencial a presença
uma criança hoje fica tão introvertida, eu acho
dela, sim, na escola. (CPC).
que vai ser um ser humano que vai sofrer muito,
principalmente na fase adulta, na adolescência. Com certeza, pois a criança não é o foco do tra-
Hoje a gente vê esta super proteção, as crianças balho com a educação infantil?! Então a gente
ficam tão ali, naquele mundo delas, que quando acredita que a criança, ela precisa ter uma boa
ela chega na fase adulta ela se perde e a gente vê frequência na educação infantil para desen-
este tanto de coisa que acontece. Então eu acho volvimento do trabalho. Se a gente pensa nos
que desde pequeninho ela deve se socializar, projetos, se a gente pensa no desenvolvimento
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Frequência escolar na educação infantil: percepções das famílias e dos profissionais da educação
integral da criança, e tendo ela como foco, a família entender que aquela rotina na escola é
primeira coisa que a gente precisa pensar é a importante, então, eles podem chegar... Igual o
questão da frequência. Imagina? Se a gente co- caso dessa mãe adolescente que eu citei aí. Às
meça um trabalho e a gente não tem uma boa vezes chegar 8h30, 9h, ‘Ah, eu não dei conta de
frequência dos alunos, o trabalho não vai ser acordar.”, e aí? Não tem um adulto responsável,
bem desenvolvido. (VDC). o adulto não mora na casa, a irmã mais velha
está presa, então... você conversa, você explica:
Os depoimentos anteriores referem-se às ‘Você precisa colocar o celular pra despertar,
profissionais que trabalham na EMEI C, a que você precisa pôr esta criança pra dormir mais
atende a população mais vulnerável dentre as cedo.’ Você explica de todo jeito, mas... às vezes
três pesquisadas e que, durante a análise dos ela chega aqui: ‘Já sei o que você vai falar!’. Mas
diários de classe, foi a que apresentou o maior nem sempre se muda a realidade desta família,
deste cuidador, desta criança. (VDC).
número de faltas ao final do ano de 2016. As
profissionais demonstram ter consciência da A professora (PC) que atua nessa mesma
importância do atendimento para a população instituição também revelou preocupação com a
local e, apesar de ressaltarem a responsabili- situação social das crianças atendidas e enten-
dade familiar para que a criança tenha uma de a frequência escolar como forma de garantir
frequência escolar satisfatória, apresentaram a meios para proteger aquelas mais vulneráveis,
percepção de que as condições sociais e econô- ressaltando o direito de estarem na EMEI:
micas das famílias podem também influenciar Eu acho que é direito da criança, né? [a frequên-
para que os índices de frequência sejam mais cia escolar] eu prezo... Ainda mais o J, nosso
baixos que nas demais EMEI. Esse aspecto fica aluno, ele precisa muito estar aqui e é bom ele
evidente no seguinte trecho proferido pela estar aqui, tem criança que é mais segura na
vice-diretora: escola do que na família, né? Eu acredito assim,
não é o ideal, né? A família tem que ser o abrigo
Por que a gente que é mãe, a gente sabe a rotina, mesmo, o suporte, a base, o refúgio, mas tem
a organização pessoal que a gente tem que ter crianças que estão mais bem cuidadas aqui. (PC).
pra mandar o menino pra escola todos os dias
às 7 horas da manhã. Imagine pra uma família Essa assertiva coincide com o argumento
sofrida? Imagina pra uma família que não tem apresentado por Monteiro (2003) a respeito da
banheiro dentro de casa, que não tem as coisas relevância das medidas estatais para garantir a
direito dentro de casa, né, que não tem roupa promoção e a proteção do direito à educação,
às vezes direito, dependendo da estação do
especialmente nos casos em que as famílias são
ano... às vezes não tem roupa limpa, a gente tem
casos aqui! Como que você organiza a sua vida mais vulneráveis. De acordo com ele, o Estado
pra você todo dia ter aquela rotina de mandar é o principal responsável pela efetivação do
a criança pra escola? Pra gente já é difícil, né? direito à educação, em primeiro lugar porque
Com toda estrutura que a gente tem em casa, as famílias pobres não têm condições de efeti-
boa estrutura familiar... e eu não falo só de uma var meios para alcançá-lo, e em segundo lugar
família típica, mas eu falo de relações mesmo
porque o Estado deve garantir o “Bem Comum”.
funcionais dentro de casa. Pra gente já é difícil
todo dia manter uma rotina desta! Então, todo Nesse sentido, ele complementa que “A metade
dia sair às 13 horas e dar conta de fazer almoço das crianças do mundo cuja satisfação do direito
e dar almoço pras crianças, às vezes não tem à educação é prejudicada por obstáculos finan-
fogão, às vezes não tem gás... você imagina or- ceiros e as crianças de mais de 40 Estados onde
ganizar sua rotina pra que todos os dias naquele a escola primária ainda não é obrigatória nem
horário a criança esteja no horário. Então, é
gratuita, só podem ter esperança na responsa-
lógico que a gente não manda criança nenhuma
voltar pra casa, mas intima uma criança que está bilidade do Estado” (MONTEIRO, 2003, p. 770).
chegando todos os dias 8h30, 9 horas... Mas você Os depoimentos dos familiares ao apresen-
faz uma ‘pressãozinha’, você manda um livro tarem as justificativas para a infrequência esco-
de ocorrência, você cria um mecanismo pra lar são relevantes nessa análise ao oferecerem
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subsídios para afirmarmos que a garantia do Outra questão que eu acho, assim, eu vejo muito
direito à Educação Infantil ultrapassa a mera na experiência diária aqui é que os pais realmen-
disposição da vaga, pois esbarra em situações te, a princípio, não têm muito esta consciência
da frequência da criança, por ser criança, não
cotidianas que ameaçam a permanência da
tem notas, provas, avaliações, vamos dizer as-
criança na instituição, especialmente para as sim. Talvez os pais não dão tanta importância
famílias mais vulneráveis. à frequência, mas no nosso caso aqui, na nossa
O adoecimento infantil foi citado de forma UMEI, a frequência não é baixa não, ela é bas-
recorrente pelas famílias das três instituições tante razoável. (ASA),
como principal motivo de falta das crianças, E fora isto, tem aqueles casos mesmo de famílias
confirmando os dados encontrados durante a que: ‘Ah, não vou mandar porque tá chovendo,
aplicação dos questionários. Entretanto, para porque tá frio, ah, não tem problema faltar.’ Tem
as famílias da EMEI C, a qual está localizada na estas questões também. (VDA).
área mais vulnerável da Região Norte, tal con- Da família, com certeza, a grande maioria. Uma
dição é potencializada por fatores que incluem vez ou outra fala que a criança que não quis
dificuldade de acesso em dias chuvosos, doen- vir, mas na maioria das vezes é ‘não deu pra eu
ças causadas pelas condições das moradias e trazer’, ‘não tinha ninguém’. A maioria. Eu tenho
uma aluna que eu perguntei: ‘Por que você não
pelo aumento da poeira causada pela falta de veio?’ ‘Ah, não consegui acordar.’ Uma semana
pavimentação das ruas. Tais fatores aparece- de faltas porque não conseguiu acordar?! (PB).
ram de forma mais frequente nos depoimentos
Principalmente no turno da manhã, qualquer
dessas famílias que residem na área de ocupa- coisa é motivo pra criança não vir pra aula,
ção urbana e que são atendidas pela instituição, além das doenças que acontecem mesmo nesta
conforme os exemplos a seguir: fase, né?! Mas muitos não vêm porque, ah, por
Quando ela tá doentinha. Ou então, se tiver qualquer outro motivo. No turno da manhã. No
chovendo muito, muito, muito mesmo, porque turno da tarde é mais frequente. (CPB).
é longe pra vir, né? Eu não moro tão longe, mas É... O turno da manhã tem uma infrequência
é um morro, tem rua de terra, aí eu prefiro não. maior porque às vezes os pais não acordam, ou
Mas a chuva tem que tá bem forte mesmo, mas tá chovendo, tá fazendo frio, então eles acabam
quando não, ela tem que vir pra escola. (FC1). não trazendo, ou então a mãe tá de folga, não
Só por causa de doença, porque ela tem bronqui- vem, o pai tá de folga. Então a infrequência da
te. Inverno e período de chuva. E ela tem muito manhã é maior, da tarde não. E a gente percebe
problema, além da bronquite ela tem muita otite. uma infrequência maior também das crianças do
Então, direto eu tenho que buscar ela e ela fica parcial. As crianças do integral, que geralmente
alguns dias sem vir. (FA1). a mãe deixa aqui pra ir trabalhar, elas faltam
menos, mas as do parcial costumam ter uma
E, às vezes, quando tá chovendo bastante tam-
frequência menor, parece que os pais acham
bém de manhã, porque é muito barro, aí escorre-
que não tem importância a criança faltar. Temos
ga bastante pra vir pra cá. [...] eu fico com muita
muitas famílias que são preocupadas com esta
dó dele, de mandar ele debaixo de chuva. É... eu
frequência e elas ligam na escola, elas justifi-
já caí com ele, trazendo ele pra escola, ele tinha
cam, às vezes até trazem a criança doente com
um ano e eu caí com ele no barro. (FC3).
medo de perder a vaga, aí a gente explica como
Onde a gente mora é rua de terra. Quando chove, que funciona, que tem que justificar, trazer um
é muito difícil descer. (FC4). atestado médico... mas tem alguns também que
fingem que tão nem aí. (VDB).
O grupo de profissionais da educação indi-
cou de forma recorrente que a infrequência Diante de tais depoimentos é necessário
escolar na Educação Infantil está relacionada salientar que entre as familiares entrevistadas
à falta de valorização do trabalho educativo de- não houve menção à falta de valorização da
senvolvido nas instituições, conforme indicam EMEI como justificativa para as faltas, tendo
os depoimentos a seguir: em vista que, como já foi citado neste artigo,
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Frequência escolar na educação infantil: percepções das famílias e dos profissionais da educação
houve um consenso quanto ao reconhecimen- vezes por agressão, né? Medo de se expor, medo
to da importância do trabalho realizado pelas mesmo de encontrar com o agressor no meio do
instituições em favor do desenvolvimento in- caminho. Tem também criança filho de adoles-
cente que cumpre medida socioeducativa. Então,
fantil, mesmo nos casos em que a motivação da
você pensa bem: o adolescente está cumprindo
matrícula tenha sido a necessidade de guarda e medida seja por algum ato infracional, agora
assistência ou, ainda, naqueles em que existem imagina a responsabilidade dele com o filho,
outros impedimentos para uma frequência né? Muitas vezes é a avó, já de idade, que cuida;
escolar efetiva. criança abrigada... Estas medidas de proteção, a
Para a profissional que atua na GECEDI, gente sempre fala: ‘Pra nós é o CTI da infância.’
Criança que corre risco de morte. Corre risco
os motivos das faltas podem ser resultado de
de morte por quê? Muitas vezes pela própria
condições sociais distintas que influenciam a condição familiar, né? E o adoecimento é muito
organização da rotina diária das crianças e de grande, fragilidade, às vezes tem menino muito
suas famílias. Tal constatação é baseada em sua desnutrido. A gente vê menino, assim, que che-
experiência no acompanhamento da organiza- ga muito desnutrido na UMEI e que com pouco
ção do atendimento às crianças no município e tempo ele consegue uma saúde razoável, mais
estável, mas é assim, segunda ele chega péssimo,
indica que muitas das causas de infrequência
aí ao longo da semana ele vai se recuperando,
estão ligadas à situação de vulnerabilidade em aí ele vai pro final de semana, volta segunda de
que se encontram um número significativo de novo muito, com muita chieira, muita bronquite,
famílias atendidas. então ainda tem esta questão do adoecimento
A gente tem, por exemplo, problema de gangue, na educação infantil. A criança pequena tem
de facção, em aglomerados. Então tem época que esta questão destas doenças que são comuns
um aglomerado está em guerra com o outro, e na infância. (G1).
a família não pode transitar de um aglomerado Interessante observar que alguns desses
pro outro. E a gente tem que entender também
fatores foram citados por profissionais que
que, por exemplo, a matrícula é compulsória pra
crianças sob medida de proteção. O que é medi- trabalham na EMEI C, demonstrando o reco-
da de proteção na nossa política? Criança abu- nhecimento da situação de vulnerabilidade
sada sexualmente. Muitas vezes o abusador está das famílias locais. De acordo com a professora
em casa, né. Então, ele vai querer que a criança (PC), por exemplo, os problemas podem afetar
esteja na EMEI? Tudo isto é muito cuidado, se até mesmo as crianças que demonstram gostar
tem suspeita, se tem alguma coisa, que evidencie
do ambiente institucional.
alguma questão relacionada a isto, imediata-
mente a gente faz ficha de notificação, manda Assim, há infrequência, há uma grande infre-
pro Conselho, mas a gente tem esse problema na quência. Mas nos outros anos. O ano passado
rede. Criança explorada na mendicância, criança eu estava com a turminha de quatro anos, eu
explorada no trabalho infantil, então, quer dizer, achei que meus alunos eram bem frequentes.
é questão de sustento, né? Já teve uma UMEI Eles gostam muito de ir pra escola, pelo menos
em que a menina não tinha sapato, ela estava meus alunos do ano passado, mas a infrequência
indo sem sapato e estava fazendo muito frio. Aí aqui perpassa muito por isto, pela questão da
a diretora da UMEI falou com a mãe da menina: saúde, pela questão... às vezes, quando chove
‘Olha, tá fazendo muito frio, ela tá vindo sem muito, muitos moram na invasão, às vezes a
sapato, sem meinha.’ Aí a mãe falou: ‘Vamo fazer dificuldade de sair de casa, porque onde mora é
o seguinte: hoje eu vou pro sinal e vou comprar lugar... barranco, né? Tem muito barro. Tem pais
um sapato pra ela, vou com ela pro sinal pra ter que não tiram a criança de casa, tem outros que
dinheiro, pra ter dinheiro pra comprar um sapa- enfrentam mesmo as circunstâncias e vai. (PC).
to pra ela.’ Então, esses meninos, muitas vezes,
Em contrapartida, a vice-diretora da EMEI
eles significam recursos, dinheiro, né? Criança
filho de mulher que sofreu violência doméstica... A (VDA) demonstrou que tais situações não
Então às vezes a situação de violência na família são determinantes para a realidade local desta
é tão caótica que fica difícil até a mãe sair. Às instituição:
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Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
Olha, aqui na UMEI A, a gente não tem outras tam disparidades consideráveis em relação
[outras causas além do adoecimento], porque às variáveis, como renda, escolaridade, cor,
poderia pensar numa questão geográfica, né, moradia, configurações familiares e gênero, o
no sentido da moradia, mas não é o nosso caso
que acaba reverberando em índices distintos
aqui não. É igual eu falei pra você, quando cho-
ve é porque não quer mesmo tirar da cama, de frequência escolar. Os dados mostraram
né?! Porque não tem aquela questão, assim, de indicadores mais elevados de vulnerabilidade
alagamento, porque a criança não vem por uma social entre as crianças atendidas pela EMEI C,
questão mesmo do clima. Mas agora, no turno da que se situa próxima a território de moradia
manhã, eles são menos frequentes, justamente por ocupação. Nessa situação de vulnerabili-
por esta questão de ter que tirar da cama pra dade social é que foi encontrado um elevado
trazer pra escola, né?! E aí a gente tem muitos
índice de infrequência, conforme dados dos
atrasos e chegam 7h30. E os atrasos também a
gente procura registrar, até pra trazer mesmo diários de classe.
esta consciência deles. (VDA). Outro resultado interessante consiste no
contraponto encontrado entre os depoimen-
O contraponto entre os depoimentos dessas
tos de familiares e profissionais a respeito
profissionais reforça a constatação de que,
dos motivos de falta das crianças, tendo em
apesar de existir uma proximidade territorial
vista que os profissionais inferiram que uma
entre as três EMEI pesquisadas, elas apresen-
das principais causas da infrequência seria a
tam perfis bem distintos de público atendido, desvalorização por parte das famílias do traba-
confirmando os dados encontrados durante a lho educativo realizado pelas EMEI. Contudo,
análise dos questionários. Confirmam também durante as entrevistas, as famílias demonstra-
que as famílias mais carentes, mesmo aquelas ram reconhecer a contribuição das atividades
moradoras da área urbana, enfrentam não so- realizadas diariamente nas instituições para
mente dificuldades de acesso, mas também de um desenvolvimento infantil satisfatório. Em
permanência nas instituições de ensino. outras palavras, os depoimentos dos familiares
indicam que um elevado número de faltas não
Considerações finais significa, necessariamente, a desvalorização do
trabalho realizado nas instituições. As ausên-
Os resultados apresentados neste traba- cias estão mais relacionadas a uma variedade
lho indicaram que o acompanhamento da de causas, associadas ao adoecimento, às di-
frequência escolar não pode ser percebido ficuldades de acessibilidade pelas condições
como mero registro burocrático e mecânico urbanas de mobilidade e moradia e às formas
de presenças e ausências das crianças nas cre- de organização familiar.
ches e pré-escolas. Ainda que consideremos As conclusões da pesquisa apontaram, por-
as limitações e o caráter provisório que toda tanto, para a existência de situações diversas
investigação possui, uma conclusão inevitável que envolvem a vida das crianças e de suas
é a de que existe uma pergunta que deve ser famílias e que afetam diretamente os índices
feita diariamente pela instituição educacio- de frequência escolar. Além do adoecimento
nal: “Por que as crianças deixam de vir para infantil, o principal motivo para as faltas, assi-
a creche ou pré-escola?” nala-se a existência de condições que podem
Conforme foi verificado, as respostas não influenciar nos índices de frequência escolar
são únicas e simples. Não podem ser anali- das crianças, os quais demonstram ter relação
sadas sem considerar recortes sociais. Isso com variáveis referentes à situação econômica
se confirma pela constatação de que as três e social das famílias, tais como a escolaridade
EMEIs pesquisadas possuem proximidade em dos responsáveis, o local de moradia e as con-
relação à localização geográfica, mas apresen- figurações familiares
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 287-307, out./dez. 2020 305
Frequência escolar na educação infantil: percepções das famílias e dos profissionais da educação
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Maria Beatriz Vasconcelos Silva; Lívia Fraga Vieira
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
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Psicomotricidade relacional sob a ótica de conceitos teóricos de Vygotsky e Bronfenbrenner
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p308-321
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo apresentar a Psicomotricidade Relacional
(PR) por meio do diálogo entre a teoria sócio-histórica de Lev Semionovitch
Vygotsky e a teoria Bioecológica de Urie Bronfenbrenner. A PR tem por base os
aspectos lúdicos do brincar com movimento e expressões corporal/artística/
musical/verbal. Essas são as linguagens através das quais as crianças se
manifestam e se comunicam, estabelecendo pontes entre o real e o imaginário.
As relações na PR serão a tônica do diálogo conceitual estabelecido entre os
autores, enfatizando-se o poder das díades em Bronfenbrenner e os processos
de mediação semiótica em Vygotsky. Lançar o “olhar” sob o prisma destas duas
teorias permite ressaltar a relevância do papel do psicomotricista como propulsor
de interações de desenvolvimento com os participantes. A PR potencializa, por
meio das relações, a criatividade, a busca da autonomia e uma compreensão
maior de si mesmo, e pode projetar mudança de atitudes. Conclui-se que a PR
representa um diferencial no que se refere à sua metodologia potencializadora
de novas aprendizagens.
Palavras-chave: Psicomotricidade relacional. Bioecologia. Mediação semiótica.
ABSTRACT
RELATIONAL PSYCHOMOTRICITY FROM THE PERSPECTIVE OF
THEORETICAL CONCEPTS OF VYGOTSKY AND BRONFENBRENNER
This article aims to present Relational Psychomotricity (RP) through a dialogue
between the socio-historical theory of Lev Semionovitch Vygotsky and the
* Doutora em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora do Instituto de Educação da
Universidade Federal de Rio Grande (IE/FURG). E-mail: angelabersch@gmail.com
** Pós-Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora
permanente na Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO). Colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade La Salle (UNILASALLE) – Canoas, RS. E-mail: mamyunes@yahoo.com.br
*** Pós-doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente titular aposentada da Universi-
dade Federal do Rio Grande (FURG). E-mail: susanamolon@vetorial.net
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Ângela Adriane Schmidt Bersch; Maria Angela Mattar Yunes; Susana Inês Molon
RESUMEN
PSICOMOTRICIDAD RELACIONAL DESDE LA PERSPECTIVA DE LOS
CONCEPTOS TEÓRICOS DE VYGOTSKY Y BRONFENBRENNER
Este artículo tiene como objetivo presentar la psicomotricidad Relacional (PR) a
través del diálogo entre la teoría socio-histórica de Lev Semionovitch Vygotsky
y la teoría Bioecologica de Urie Bronfenbrenner. PR se basa en los aspectos
lúdicos de jugar con el movimiento y la expresión artística/musical/verbal
del cuerpo. Estos son los idiomas a través del cual los niños se manifiestan y
comunican el establecimiento de puentes entre lo real y lo imaginario. Relaciones
en PR será la nota clave del diálogo conceptual establecido entre los autores,
haciendo hincapié en el poder de las diades en Bronfenbrenner y los procesos
del mediación semiótica en Vygotsky. Mirar a través del prisma de estas dos
teorías permite hacer hincapié en la importancia del papel de las interacciones
de desarrollo psicomotor como empujador con los participantes. PR aprovecha
a través de relaciones, la creatividad, la búsqueda de la autonomía, una mayor
comprensión de sí mismo y puede diseñar a cambiar la actitud. De ello se deduce
que PR es un diferencial con respecto a su potenciación metodología de nuevas
aprendizaje.
Palabras clave: Psicomotricidad relacional. Bioecologia. Mediación semiótica.
Introdução
A Psicomotricidade Relacional (PR) tem por participantes, a PR pode propiciar: o exercício
base a construção de possibilidades de apren- do pensamento por intermédio do plane-
dizagens por meio de uma sistemática dialógi- jamento, elaboração e desenvolvimento de
ca. Negrine (1995), um dos precursores desta atividades concretas; a promoção da atenção,
prática no Brasil, esclarece que se trata de uma da verbalização e da escuta de si e dos demais
abordagem que oportuniza uma atitude ativa colegas; oportunidades de vivências corporais
dos participantes diante de possíveis conflitos concretas diversas e plurais; o comportamento
internos, por meio de atividades lúdicas e jogos cooperativo e agregador entre os participantes;
simbólicos, em um ambiente seguro e prazero- a criatividade, o desenvolvimento e o planeja-
so, acompanhado por um psicomotricista. Aos mento de temas teatrais e da dança.
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Psicomotricidade relacional sob a ótica de conceitos teóricos de Vygotsky e Bronfenbrenner
Ademais, Negrine (1995) esclarece aos pro- a pessoa é envolvida em interações face a face.
fessores que se dedicam à Psicomotricidade Os padrões de interação, conforme persistem
Relacional na escola que esta estratégia pode e progridem por meio do tempo, constituem
auxiliar a desenvolver uma atitude de escuta os veículos de mudança comportamental e de
e de ajuda à aprendizagem e desenvolvimento desenvolvimento pessoal. Igual importância é
das crianças. Tal possibilidade se dá graças atribuída às interações entre as pessoas pre-
à disposição corporal que se ajusta à criança sentes no ambiente, à natureza desses vínculos
como forma de interação e intervenção em relacionais e à sua influência direta e indireta
atividades lúdicas. Isso qualifica o processo de sobre a pessoa em desenvolvimento (BRON-
acompanhamento sistemático da evolução dos FENBRENNER, 1996, p. 18).
participantes nas sessões. Nesta perspectiva, o O mesossistema refere-se a inter-relações
professor ou psicomotricista observa e acom- entre dois ou mais ambientes nos quais uma
panha a aprendizagem e o desenvolvimento do pessoa participa ativamente, podendo ser
aluno durante as sessões, atuando no sentido constituído ou ampliado sempre que ela passa
de minimizar ou sanar os possíveis conflitos a fazer parte de novos ambientes. Em alguns
que a criança possa apresentar por meio de casos, por exemplo, esse sistema inclui os sis-
atividades lúdicas. temas das relações que uma criança mantém
Nessa linha de elaborações, pode-se dizer em casa, na escola, no clube e com amigos da
que é imprescindível para a ida a campo o vizinhança; em outros, apenas as relações
conhecimento do ambiente e a inserção do exclusivamente familiares e com membros da
pesquisador onde ele irá atuar. O propósito igreja, clube etc. da qual sua família faz parte.
é saber com quem estará atuando e quais A riqueza e a amplitude do mesossistema vai
as necessidades, carências, potencialidades, depender do número e da qualidade das inte-
a fim de conhecer seu contexto ecológico. rações nos microssistemas (YUNES; JULIANO,
Cecconello e Koller (2004) denominam esse 2010). No terceiro contexto, exossistema, a
processo metodológico de Inserção Ecológica, pessoa em desenvolvimento não é participan-
metodologia que se aproxima da investigação te ativa, mas, neste ambiente, podem ocorrer
qualitativa de cunho sócio-histórico. Conforme eventos que a afetem. Tais ambientes podem
Freitas (2002), esta última também prevê uma ser, para uma criança: o local de trabalho dos
aproximação ou uma imersão inicial no campo pais, a escola do irmão ou a rede de amigos
a ser investigado a fim de familiarizar-se com dos pais.
a situação e com os sujeitos a serem investiga- E, por fim, para ter claro as interconexões
dos. A inserção ecológica chama a atenção por entre os contextos sistêmicos, há o macrossis-
poder ser uma fonte de diálogo metodológico tema, que envolve todos os outros ambientes,
entre os modelos ecológico e sócio-histórico formando uma rede articulada (ou não) que
dos autores em questão. interage e diferencia-se de uma cultura para
Bronfenbrenner (1996, p. 18), ao abordar o outra. Para exemplificar questões macrossis-
modelo Ecológico, refere-se a quatro sistemas têmicas, pode-se citar a estrutura política e
conectados e articulados entre si: o primeiro cultural de uma família norte-americana de
é o microssistema que é definido como “um classe média, um sistema que difere enor-
padrão de atividades, papéis e relações in- memente de um grupo familiar de operários
terpessoais experienciados pela pessoa em brasileiros. Diferenças e discrepâncias que
desenvolvimento, num dado ambiente com se efetivam nas dimensões cultural, política,
características físicas e materiais específicos”. econômica e social. Aspectos que repercutem
Esse autor exemplifica através de ambientes na qualidade de vida e no desenvolvimento
tais como: a casa, a creche ou a escola, nos quais das pessoas.
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Ângela Adriane Schmidt Bersch; Maria Angela Mattar Yunes; Susana Inês Molon
Também é preciso esclarecer o que esse da Psicologia tradicional. Ademais, esse pressu-
autor entende por desenvolvimento humano: posto caracteriza a importância na construção
[...] mudança duradoura na maneira pela qual
e definição da abordagem sócio-histórica, pois
uma pessoa percebe e lida com o seu ambiente, é um norteador de todo o seu arcabouço teó-
[...] é o processo através do qual a pessoa de- rico-metodológico. O ser humano se constitui
senvolvente adquire uma concepção mais am- nas relações sociais e em contextos sociais,
pliada, diferenciada e válida do meio ambiente econômicos, políticos, ambientais e culturais.
ecológico, e se torna mais motivada e mais capaz A mediação semiótica como pressuposto
de se envolver em atividades que revelam suas
propriedades, sustentam ou restituíram aquele
da relação Eu-Outro, como condição sine qua
ambiente em níveis de complexidade semelhan- non da constituição do ser humano, explica os
te ou maior de forma e conteúdo. (BRONFEN- processos de apropriação, objetivação e subje-
BRENNER, 1996, p. 5). tivação; assim como das relações constitutivas
das funções psicológicas superiores1 a partir da
O ambiente ecológico é entendido por Bron-
superação das funções psicológicas inferiores.2
fenbrenner (1996) como um sistema de estru-
Além disso, potencializa as conexões e relações
turas agrupadas, independentes e dinâmicas.
interfuncionais que acontecem na consciência,
O primeiro nível está relacionado ao efeito de diferenciando os sujeitos.
influências proximais, ambientais e orgânicas Assim, a mediação semiótica é entendida
que advêm do interior do indivíduo, de suas como processo, porque não é o ato em que
características físicas e de objetos do ambien- alguma coisa se interpõe. A mediação não está
te imediato, que caracterizam a relação face a entre dois termos que estabelecem uma rela-
face. Conforme já mencionado, este nível mais ção, mas é a própria relação. Conforme afirma
interno é chamado de microssistema e, no caso Molon (2011), acontece por meio dos signos,
de nossa elaboração, refere-se à escola como das diferentes formas de semiotização, as quais
ambiente de prática de PR. possibilitam e sustentam as relações sociais,
Analisar a criança a partir do seu micros- pois é um processo de significação que permite
sistema escola, mas considerando o impacto a comunicação entre as pessoas e a passagem
dos demais sistemas – meso, exo e macro –, da totalidade às partes e vice-versa.
é o que Bronfebrenner (1996) denomina de Como já se afirmou,
“olhar ecológico”. Portanto, o educador deve A mediação não é a presença física do outro,
“exercitar” e aguçar este olhar atento à traje- não é a corporeidade do outro que estabelece a
tória lúdica da criança, ou seja, no que ela faz relação mediatizada, mas ela ocorre através dos
durante a sessão de PR, pois nestes momentos signos, da palavra, da semiótica, dos instrumen-
tos de mediação. A presença corpórea do outro
ela é autêntica, e revela seus conflitos, neces-
não garante a mediação. Sem a mediação dos
sidades, carências. Este “olhar ecológico” é signos não há contato com a cultura. (MOLON,
potente numa sessão de Psicomotricidade 2011, p. 102).
Relacional, permite fazer uma leitura do que
Essa noção de mediação semiótica é uma
ocorre no espaço e, a partir do comporta-
das maiores contribuições de Vygotsky, pois,
mento e das interações da criança, fazer as
ao conceber o fenômeno psicológico como
intervenções e futuras propostas no intuito de
1 São operações psicológicas qualitativamente novas e mais
promover sua aprendizagem e potencializar elevadas, como a linguagem, a memória lógica, a atenção
desenvolvimento biopsicossocial. voluntária, a formação de conceitos, o pensamento verbal,
a afetividade etc. (MOLON, 2011).
No que se refere a Vygotsky e sua obra, o 2 Caracterizam-se por serem imediatas, ou seja, reações
pressuposto da mediação é conceito central diretas a uma determinada situação, porém matizadas afe-
tivamente; são de origem natural e biológica, portanto são
(VYGOTSKY, 1996, 2000, 2001). Fato que o di- controladas pelo meio físico e social, consequentemente
ferenciou dos demais psicólogos de sua época e são inconscientes e involuntárias (MOLON, 2011).
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as ideias de Vygotsky e de Bronfenbrenner nos diversos aspectos que o constitui, nas di-
autenticam os princípios da PR. A teoria de ferentes relações colaborativas e significativas
Vygostky acentua que as construções da crian- estabelecidas e nos variados contextos educa-
ça com o meio e os objetos só terão sentido tivos em que participa (BERSCH; PISKE, 2020).
se houver o outro humano (SIRGADO, 2000), Assim, busca-se compreender o ser humano
e a de Bronfenbrenner apresenta os pro- de modo integral no conjunto das relações e
cessos proximais como interações humanas práticas pedagógicas e educativas, valorizando
significativas e motores de desenvolvimento as práticas significativas e as aprendizagens
e aprendizagens (MACHADO; YUNES; SILVA, colaborativas. Tais aprendizagens exigem a
2014). Desta forma, o mediador definirá a participação criadora dos sujeitos na resolução
qualidade de desenvolvimento da criança e a dos problemas, na tomada de iniciativa, na
condução das sessões é que poderá permitir apropriação de novos conceitos e novas habi-
o desenvolvimento dos participantes. lidades no processo de ensino-aprendizagem.
O conceito de processos proximais de Bron- Estudiosos da metodologia, como Vitor da
fenbrenner e Morris (1998) pode se justapor Fonseca (2004, p. 12), afirmam que:
à construção do conceito de zona de desenvol- A psicomotricidade constitui uma abordagem
vimento proximal de Vygotsky (1984). Esses multidisciplinar do corpo e da motricidade hu-
autores concebem o desenvolvimento e a mana. Seu objeto é o sujeito humano total e suas
aprendizagem humana como processos inter relações com o corpo, sejam elas integradoras,
emocionais, simbólicas ou cognitivas, propondo-
-relacionados, dependentes reciprocamente
se desenvolver faculdades expressivas do su-
um do outro. Rompem com a ideia bastante jeito, nas quais, por esse contexto, assume uma
difundida por alguns autores tradicionais da dimensão educacional e terapêutica original,
Psicologia de que o desenvolvimento é inde- com objetivos e meio próprios que se destacam
pendente da aprendizagem e de que o desen- de outras abordagens.
volvimento é sempre um pré-requisito para a O educador que adota a metodologia da
aprendizagem. Ou seja, é necessário o pré-re- Psicomotricidade Relacional promove uma
quisito da maturidade do desenvolvimento atitude de escuta e de ajuda à aprendizagem
para realizar a aprendizagem. e desenvolvimento dos alunos, em virtude da
Aprendizagem e desenvolvimento estão disposição corporal que se ajusta ao educando
inter-relacionados durante toda a vida: o como forma de interação e intervenção em ati-
aprendizado promove desenvolvimento e o vidades lúdicas (NEGRINE, 1995). Isso qualifica
desenvolver-se gera novas aprendizagens. o processo de acompanhamento sistemático da
Desse modo, Vygotsky (1984) é contrário ao evolução das crianças no decorrer das sessões.
estabelecimento de etapas, cronologias e es- O educador observa e acompanha a aprendiza-
tágios de desenvolvimento. Ele acredita que gem e o desenvolvimento do aluno durante as
existem dois níveis de desenvolvimento: o sessões e tem a responsabilidade de atuar a fim
nível de desenvolvimento real, que é aquele de minimizar ou sanar os possíveis conflitos
que a criança apresenta como já conquistado que a criança possa demonstrar por meio das
e consegue fazer sem ajuda (sozinha), e o nível atividades lúdicas propostas.
de desenvolvimento potencial, que é aquele Oportunizar a escuta, considerar e po-
que ela realiza com a orientação de um outro tencializar o diálogo entre o corpo e os as-
sujeito, ou seja, aquilo que ainda não é capaz de pectos psíquicos do ser humano, focalizar
conseguir sozinha. A Zona de Desenvolvimento na compreensão e na atividade dos núcleos
Proximal é a distância entre estes níveis. psicoafetivos são elementos constitutivos da
A potencialidade desses conceitos permite Psicomotricidade Relacional. A PR propicia
que o sujeito seja visto na sua complexidade, um espaço de jogo espontâneo e lúdico, o
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que favorece o incentivo e facilita a criança entre esses ambientes. Portanto, não se limita
a manifestar e expressar suas dificuldades apenas a um ambiente único e imediato, e deve
relacionais, suas necessidades e seus desejos. ser “concebido topologicamente como uma
Situação que potencializa a socialização por organização de estruturas concêntricas, cada
intermédio de uma decodificação simbólica uma contida na seguinte” (BRONFENBREN-
do comportamento natural e descontraído do NER, 1996, p. 18).
participante, por meio de uma leitura de seu
conteúdo comunicativo-simbólico, a fim de in-
tervir na estruturação e evolução da dimensão
Metodologia das sessões de
afetiva (AUCOUTURIER et al., 1986; LAPIERRE; Psicomotricidade Relacional
LAPIERRE, 2010; OLIVEIRA, 2014).
Planejamento prévio é fundamental para
A prática psicomotriz educativa tem como
que o psicomotricista realize um trabalho
eixo três alicerces, que são: a comunicação, a
que considere elementos de espaço, tempo,
exploração corporal e as vivências simbólicas,
material e as estratégias adequadas à faixa
caracterizadas com o favorecimento do movi-
etária a ser atendida. Portanto, cada sessão de
mento espontâneo da criança e a estrutura das
PR deve ter uma preparação, com dedicação e
aulas, que facilita a comunicação e a interação
responsabilidade para garantir a qualidade e
dos participantes (NEGRINE, 1995; LAPIERRE;
segurança dos envolvidos.
LAPIERRE, 2010). Uma das vantagens desta
prática psicomotriz pedagógica é a interação Quanto ao espaço, é importante prever
do educador como facilitador no desenvolvi- um ambiente considerando a faixa etária e o
mento dos envolvidos na proposta. Visto que número dos participantes. Vieira, Batista e
a Psicomotricidade Relacional é organizada Lapierre (2005) afirmam que o espaço deve
em estruturas e rotinas claras que facilitam permitir a movimentação e deslocamentos
ao professor o planejamento e a elaboração para as atividades corporais dos participan-
das atividades e estratégias para cada criança tes; o uso de materiais diversos proporciona
e, ao mesmo tempo, para o coletivo, por inter- novas emoções e vivências à criança, tornando
médio de diferentes materiais que favorecem a mais rico e variado seu jogo sensório-motor
evolução do comportamento dos participantes e simbólico. Múltiplos objetivos e atividades
dentro de um ambiente seguro (LAPIERRE; também favorecem a liberdade de expressão
AUCOUTURIER, 1984). e o desenvolvimento da criatividade.
Percebe-se, portanto, o ambiente escolar Nas sessões de PR, o corpo é o principal fio
como um lugar de mediações, interações e condutor da prática. O corpo do outro que brin-
evoluções. A atuação do professor no ambien- ca numa relação de parceria torna-se meio de
te escolar, por meio da estratégia pedagógica interação, sendo este composto por múltiplas
Psicomotricidade Relacional, é uma consistente relações: perceptivas, imaginárias e simbólicas,
possibilidade de educar pelas relações num favorecendo de maneira dinâmica o ato ao sen-
espaço enriquecido por símbolos e objetos, timento, ao pensamento, ao gesto, à palavra, e
numa inter-relação dos sujeitos com eles mes- o símbolo ao conceito (VIEIRA; BATISTA; LA-
mos, com o outro e com o próprio ambiente. PIERRE, 2005, p. 14). O participante de sessões
Lembramos que o ambiente ecológico de de- de psicomotricidade não encontra modelos de
senvolvimento humano, conforme nos ensina brincar ou brinquedos pré-estabelecidos, o que
Bronfenbrenner (1996), é um processo de aco- garante o seu protagonismo na ação.
modação mútuo, no qual a interação da criança Diferentemente das aulas dirigidas e com
com o meio ambiente é bidirecional, pautada movimentos, jogos e brinquedos pré-estabele-
pela reciprocidade, incluindo interconexões cidos, nas sessões de PR o improvável muitas
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Psicologia. Portanto, é fundamental encontrar outra pessoa, ou delas participa, existe uma
o significado das palavras, é por meio desse relação” (BRONFENBRENNER, 1996, p. 46).
significado que o pensamento se realiza e se A díade, explica Bronfenbrenner (1996), é
objetiva, ganha vida, materialidade e visuali- importante, em especial, por dois aspectos:
dade. Por isso, é necessário que o pensamento ela constitui um contexto crítico para o desen-
se realize nas palavras, que as palavras sejam volvimento e serve como um bloco construtor
compreendidas nos seus significados e múlti- básico do microssistema que potencializa a
plos sentidos, para que os pensamentos deixem formação de estruturas interpessoais maiores
de ser sombras e as palavras, sons vazios. As- – tríades, tétrades e assim por diante.
sim, podemos reconhecer, como diz Vygotsky Para que as díades tenham um poder de-
(2001), que é a base afetivo-volitiva, isto é, os senvolvimental e se justifiquem, devem ter
sentimentos, a vontade, o desejo e as necessi- certas propriedades que são comuns a todas
dades, que move os pensamentos humanos. as díades. Segundo Bronfenbrenner (1996),
Para Vygotsky, “o sentido da palavra é a as propriedades são: reciprocidade, equilíbrio
soma de todos os eventos psicológicos evoca- de poder e afetividade. Portanto, a estratégia
dos em nossa consciência graças à palavra. O de intervenção Psicomotricidade Relacional
significado é só uma dessas zonas de sentido, a possibilita ao educador um olhar sensível e
mais estável, coerente e precisa” (ZANELLA et uma prática pedagógica através da via cor-
al., 2007). O sentido de uma palavra modifica- poral, o que permite uma maior ludicidade
se tanto dependendo das situações como das aos participantes num relacionar-se, dialogar,
pessoas que o atribuem; por isso, é considerado perceber, sentir, o que motiva os participantes
quase ilimitado. Entretanto, os processos de e o educador, numa relação de reciprocidade.
significação, significados e sentidos são produ- No modelo ecológico, Bronfenbrenner
zidos e apropriados nas relações sociais. (1996) se debruçou a investigar a pessoa em
Nesse aspecto, Vygotsky e Bronfenbrenner desenvolvimento e focalizou as constantes
convergem, visto que ambos entendem que interações com os ambientes proximais e as
tanto os significados e os sentidos, como os relações estabelecidas entre os contextos mais
comportamentos são construídos pela pessoa distais. Contudo, numa análise mais profunda,
em suas relações considerando sua trajetória, ele constatou que era necessário um olhar
vivências e experiências dentro de um contex- cuidadoso e detalhado para as características
to social e cultural. De acordo com Bronfen- biopsicológicas da pessoa em desenvolvimen-
brenner (1996), esse contexto estará sempre to, o que deu origem ao modelo Bioecológico
imerso na interconexão dos quatro contextos (BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998). A par-
mencionados e descritos aqui: micro, meso, tir deste modelo, o termo desenvolvimento
exo e macrosistema. Os dois autores concor- é reconfigurado: “desenvolvimento refere-se
dam com a importância do elemento tempo à estabilidade e mudança nas características
(BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998) e com biopsicológicas dos seres humanos durante
o aspecto histórico (VYGOTSKY, 2000) na vida o ciclo de suas vidas e através das gerações”
das pessoas. (BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998, p. 995).
Além disso, a PR favorece as relações entre A partir desta nova ótica, Urie Bronfenbren-
criança e professor ou psicomotricista, rela- ner e Pámela Morris apresentaram um cons-
ções denominadas por Bronfenbrenner (1996) truto-chave denominado processo proximal
como díades que evoluem de observacionais (BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998). Os pro-
para primárias. Esse autor esclarece que ocorre cessos proximais são definidos como motores
uma díade “sempre que uma pessoa em um do desenvolvimento e, para que se efetivem,
ambiente presta atenção às atividades de uma é necessário que a pessoa esteja inserida em
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Psicomotricidade relacional sob a ótica de conceitos teóricos de Vygotsky e Bronfenbrenner
uma atividade; esta interação deve acontecer esta nova forma uma significação.” (SIRGADO,
efetiva, regular e reciprocamente, através de 2000, p. 55). A mediação semiótica está pre-
períodos prolongados de tempo; a atividade sente nas relações humanas, que faz acontecer
deve ainda ser progressivamente mais com- as conexões que são estabelecidas entre os
plexa; e os objetos e símbolos presentes no pares mesmo sem a presença física do outro,
ambiente imediato devem estimular a atenção, característica da díade primária postulada
a exploração, a manipulação e a imaginação da por Bronfenbrenner (1996). A díade primária
pessoa em desenvolvimento (NARVAZ; KOL- é possibilitada pela base afetivo-volitiva que
LER, 2004; YUNES; JULIANO, 2010). Vygotsky (2001) postulou e é compreendida
Portanto, os processos proximais podem ser pelos sentimentos, pela vontade, pelo desejo
potencializadores do desenvolvimento, mas é e pelas necessidades que movem os pensa-
preciso estar atento e observar as formas de mentos humanos. Os dois autores defendem a
interação da pessoa em desenvolvimento com importância das relações e interações no de-
os seus pares, com símbolos e objetos que senvolvimento e na aprendizagem, destacando
constituem o(s) espaço(s) no(s) qual(is) ela a vivência simbólica.
se encontra. Nesse movimento, é fundamental Nesse sentido, a criança, no processo de
compreender as complexidades das interações tornar-se um adulto, terá obrigatoriamente
diádicas – triádicas e intrafamiliares –, mas que relacionar-se, interagir e comunicar-se
também olhar com cuidado e com a mesma com outros seres humanos da sociedade por
intensidade as interações com outras pessoas meio da mediação semiótica, que é um sistema
em seus diferentes aspectos concretos e sim- complexo (SIRGADO, 2000).
bólicos que representam a rede de apoio social Conforme demonstrado, a PR potencializa
(YUNES; JULIANO, 2010). a criatividade, a busca da autonomia, uma
compreensão maior de si mesmo e pode pro-
jetar mudança de atitudes. Neste processo de
Considerações finais subsídio relacional, o ser humano é entendido
A intenção deste artigo foi promover um em sua totalidade e por intermédio de ex-
diálogo entre dois autores relevantes na com- pressões através do movimento, que traduz
preensão da PR como promotora de desen- emoções, sentimentos que advêm de conflitos
volvimento e de aprendizagem. Não houve a e necessidades internas. Na relação com o
intenção de priorizar um em detrimento de outro, promove-se a descoberta de potenciali-
outro, mas buscou-se apontar os conceitos das dades, muitas vezes, não reveladas até então.
teorias como significativas e suas aproxima- Considerando que o movimento é inerente às
ções e complementariedades para sustentação crianças, a PR representa um diferencial no
de algumas das práticas e procedimentos da que se refere à metodologia e como propulsor
PR. de aprendizagem.
Na elaboração das reflexões de similitudes Ao participarem das sessões de PR, as crian-
e complementariedades das duas teorias, en- ças podem vivenciar experiências corporais
contram-se alguns conceitos, tais como: media- diversas e com múltiplos objetos. Ao serem
ção, mediação semiótica, relação afetiva, base auxiliadas por seus pares e pelo psicomotri-
afetivo-volitiva, díade primária. Vygotsky traz cista, aprendem modelos novos, ampliando
como contribuição para esta reflexão a media- seu vocabulário motriz, além de provocar o
ção semiótica. “Se a mediação técnica permite simbolismo e a necessidade de comunicação
ao homem transformar (dar uma nova forma) entre os participantes. Considerando que a
à natureza da qual ele é parte integrante, é a aquisição dos processos mentais superiores
mediação semiótica que lhe permite conferir a ocorre pela interação com o meio, as vivências
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Ângela Adriane Schmidt Bersch; Maria Angela Mattar Yunes; Susana Inês Molon
lúdicas podem ser provocadoras de novas apenas o movimento, mas olhar para as ex-
zonas proximais (VYGOTSKY, 1984). Assim, a pressões imbuídas de simbolismo, que podem
PR que utiliza o movimento e a ludicidade no ser manifestadas por desejos, conflitos, repre-
processo pedagógico torna-se um ambiente sentações etc., presentes no imaginário dos
favorável e propício para a amplificação e o participantes. A dinâmica da PR consiste em
aprimoramento da aprendizagem. propiciar um espaço, objetos e movimentos
Nessa perspectiva, pode-se refletir sobre corporais às crianças com o intuito que esta
a PR e a potencialização dos processos pro- exteriorize desejos, carências, solucione pos-
ximais promotores da linguagem, do pensa- síveis conflitos, estabeleça confrontos com a
mento e de outras aprendizagens. O lúdico é realidade. E o papel do psicomotricista é de
o componente humano que amplia as possi- acompanhar a trajetória lúdica da criança,
bilidades de criatividade, de investigação, de oferecendo diversos objetivos, materiais, de-
curiosidade, de descoberta, de inter-relações safiar, provocando um jogo simbólico, sempre
e é elemento fundamental nas sessões de PR. com uma postura de escuta e de olhar para as
O psicomotricista, portanto, deve estar atento demandas dos participantes.
para promover as mediações e os processos A Psicomotricidade Relacional privilegia
proximais no decorrer dos encontros da o brincar livre e espontâneo. Fato que opor-
PR: envolver as crianças em atividades ora tuniza muitos participantes a manifestarem
individuais ora coletivas, agregadoras e de diversos sentimentos e emoções por meio
jogos cooperativos; estabelecer interrelações da ludicidade e do brincar: a agressividade,
entre os participantes; propiciar atividades, a inventividade, a criatividade, a afetividade
brincadeiras, jogos, movimentos progressi- e outros aspectos inerentes ao desenvolvi-
vamente mais complexos; oferecer objetos mento psicomotor. Nesta ótica, percebemos a
alternativos que possam estimular a imagi- capacidade criativa e interativa das crianças
nação, criatividade, inventividade e atenção com materiais não estereotipados que po-
dos participantes. tencializam o imaginário delas, salutar para
Como Vygotsky e Bronfenbrenner nos ensi- o desenvolvimento.
nam, as aprendizagens provocadas numa ses- Essa proposta oferece às crianças ricos
são de PR não irão ocorrer somente nas sessões momentos e vivências diversas, tornando-as
ou no ambiente em que esta estiver acontecen- ativas frente a situações de conflito e possibi-
do, mas também após o encerramento dela, litando ações sobre os possíveis prejuízos que
visto que as aprendizagens ocorrem a partir possam acarretar. Neste sentido, as atividades
das interações com o meio externo e entre as lúdicas e jogos simbólicos podem significar
pessoas, de forma interpsíquica mas também uma condição de proteção e favorecer aprendi-
intrapsíquica. Esta última pode ocorrer depois zagens significativas e melhores condições de
das sessões. Explicando de outra forma, po- desenvolvimento biopsicossocial. “Olhar” esta
demos tomar como exemplo um jogo ou uma metodologia sob a ótica da teoria de Bronfen-
brincadeira da qual a criança tenha participado brenner e de Vygotsky permite-nos a confir-
durante uma sessão. As emoções provocadas mação da importância do professor, mediador
a partir das interações com o outro ou com o ou do psicomotricista que orienta, acompanha
objeto podem fazer parte do pensamento desta e potencializa as mediações da criança com o
criança por muito tempo. Este é o elemento profissional, com ela mesma, com seus pares
construtor dos processos proximais, das día- e com os objetos. E, sobretudo, permite inferir
des, da mediação e da mediação semiótica. que a Psicomotricidade Relacional pode ser
O psicomotricista deve olhar com cuidado promotora de desenvolvimento e de múltiplas
para a atividade das crianças e não enxergar aprendizagens.
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 308-321, out./dez. 2020 319
Psicomotricidade relacional sob a ótica de conceitos teóricos de Vygotsky e Bronfenbrenner
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Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
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Quando “ser professor” servia às elites: a escola normal Ignácio Azevedo do Amaral (1950-1970)
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p322-344
RESUMO
Este artigo tem por objetivo abordar o tema da formação de professores como
interesse das elites cariocas, tomando por base a história da instalação da Escola
Normal Ignácio Azevedo do Amaral, no bairro da Lagoa, Zona Sul, entre os anos
de 1950 e 1970. Trata-se de uma análise com base nos periódicos O Cruzeiro e
Diário Carioca, aliada ao estudo de uma bibliografia específica que aborda o jogo
político que envolveu a criação de uma unidade para o atendimento exclusivo das
moradoras da região mais rica da cidade. Na esteira do que escreveram Louro
(1997) e Werebe (1968) sobre serventia do ensino normal para as mulheres
de classes sociais mais altas, concluímos que a depreciação salarial, a perda de
status e a queda do privilégio de acesso automático ao serviço público afastaram
os grupos sociais citados da profissão docente.
Palavras-chave: História da educação. Formação de professores. Escola Normal
Ignácio Azevedo do Amaral.
ABSTRACT
WHEN “TEACHER” SERVED ELITES: THE IGNÁCIO AZEVEDO DO
AMARAL QUALIFICATION SCHOOL (1950-1970)
This article aims to address the theme of teacher education as an interest of the
carioca elites, based on the history of the establishment of the Ignácio Azevedo
do Amaral Qualification School, in the Lagoa district, South Zone, between 1950
and 1970. It is based on an analysis based on the journals O Cruzeiro and Diário
Carioca, allied to the study of a specific bibliography that deals with the political
game that involved the creation of a unit for the exclusive care of the residents
of the richest region of the city. In the wake of what Louro (1997) and Werebe
(1968) wrote about the usefulness of normal education for women of higher
social classes, we conclude that wage depreciation, loss of status and the fall
of the privilege of automatic access to public service, removed the mentioned
social groups from the teaching profession.
Keywords: History of education. Teacher training. Ignácio Azevedo do Amaral
Normal School.
* Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor de História da Educação na Faculdade
de Educação da Universidade Federal do Amazonas (FACED/UFAM). E-mail: fabiosouzaclima@gmail.com
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Fábio Souza Lima
RESUMEN
CUANDO EL “MAESTRO” SIRVE ELITE: LA ESCUELA NORMAL
IGNÁCIO AZEVEDO DO AMARAL (1950-1970)
Este artículo tiene como objetivo abordar el tema de la formación docente como
un interés de las élites cariocas, basado en la historia del establecimiento de la
Escuela Normal Ignácio Azevedo do Amaral, en el distrito de Lagoa, Zona Sur,
entre 1950 y 1970. Se basa en un análisis basado en las revistas O Cruzeiro y
Diário Carioca, aliadas al estudio de una bibliografía específica que trata sobre el
juego político que involucró la creación de una unidad para el cuidado exclusivo
de los residentes de la región más rica de la ciudad. A raíz de lo que Louro (1997)
y Werebe (1968) escribieron sobre la utilidad de la educación normal para las
mujeres de clase alta, concluimos que la depreciación salarial, la pérdida de
estatus y la caída del privilegio del acceso automático al servicio público, eliminó
los grupos sociales mencionados de la profesión docente.
Palabras clave: Historia de la educación. Formación de profesores. Ignácio
Azevedo do Amaral Escuela Normal.
Introdução
A capital brasileira do final dos anos 1950 à condição de Instituto de Educação (IE). Por
ainda mantinha um ritmo de crescimento po- conta dessa exclusividade, concentrada apenas
pulacional considerável desde os anos 1920. na região do Centro da cidade, frequentemente
Cinquenta por cento das pessoas que viviam os alunos do terceiro ano dessa unidade eram
no Estado do Rio de Janeiro escolhiam estar convocados para trabalhar como professores
mais próximas do centro de poder brasileiro, na rede de ensino na tentativa de cobrir as
isto é, o Distrito Federal (INSTITUTO BRASI- necessidades do sistema (LOPES, 2013). Essa
LEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019). estrutura de apenas um curso de formação de
Paralelamente, o desenvolvimento do aparelho professores normalistas foi mantida até 1946,
educacional no Brasil apresentava um cres- com a criação, sob muitos protestos e resistên-
cimento que pode ser ilustrado pelo índice cias, da Escola Normal Carmela Dutra (ENCD),
de analfabetismo de jovens com até 15 anos, no subúrbio da cidade (LIMA, 2017).
que passou de 50,6% em 1950 para 39,7% Tal Curso seguia o critério de formação
em 1960 (PINTO; BRANT; SAMPAIO, 2000). de alto padrão em que os filhos das elites,
Tratava-se da realização do que o historiador embora estudantes de uma unidade pública,
Rui Canário (2008) assinalou como “Os trinta frequentemente eram retratados como alu-
gloriosos” (1945-1975) anos em que os países nos de uma espécie de “clube”. Em variados
do ocidente experimentaram uma explosão na artigos encontrados na revista O Cruzeiro,
procura das famílias por bancos escolares para era possível encontrar narrativas e imagens
seus filhos. em que a vida social das jovens normalistas
Mesmo com esse avanço, o corpo de profes- parecia ter mais importância do que os es-
sores do sistema de ensino da capital brasileira tudos. Na edição de 22 de outubro de 1959,
era sustentado apenas por um curso de forma- em meio a um conjunto de cerca de 40 ima-
ção de professores normalistas, a antiga Escola gens veiculadas entre as páginas 13 e 20,
Normal da Corte, transformada em Escola Nor- era possível encontrar referências às alunas
mal do Distrito Federal por ocasião da criação como “rainha da primavera”, “24 horas com
da República e, mais tarde, em 1932, elevada as garotas mais bonitas da cidade”, “quando
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Quando “ser professor” servia às elites: a escola normal Ignácio Azevedo do Amaral (1950-1970)
elas passam, uniformizadas, pelas ruas do “brotinho em flor”, “Normalista Linda”, “se-
Rio, chamam as atenções de centenas de reias com maiô negro”, “Juventude e Beleza”,
admiradores de todas as idades”, “garota “[...] É uma família de normalística do Rio.
cinematograficamente magnética”, “bonita e Família esplêndida”, entre outras (FUNDAÇÃO
educada’, “fica bem em qualquer fotografia”, BIBLIOTECA NACIONAL, 2019a).
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Fábio Souza Lima
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Quando “ser professor” servia às elites: a escola normal Ignácio Azevedo do Amaral (1950-1970)
lhe conferia status na construção dessa nova Art. 24. O provimento em qualquer cadeira,
sociedade. guardadas as regras precedentes, será consi-
derado vitalicio, depois de 5 annos de effectivo
[...] à futura professora, aqui tenho o que, em um serviço. (BRASIL, 1854).
bello relatório, escreveu o eminente Senador da
República, Dr. Ruy Barbosa (lê): ‘Estabelecer os Embora o parágrafo quarto do artigo 23
melhores methodos, prover o mais completo acenasse para a contratação de profissionais
material clássico a todas as escolas, rodear o com a titulação superior em qualquer área de
magistério das mais altas vantagens sociaes,
instrução, devemos destacar que grande parte
tudo será improfícuo e vão se não organizarmos
a educação do mestre.’ (LEITE RIBEIRO, 1914, desses novos servidores públicos não tinha a
p. 7). formação adequada para atuar em sala de aula.
Nesses casos, como podemos depreender dos
Aquilo que se mostraria mais tarde como
demais parágrafos do mesmo artigo, os pro-
uma das “mais altas vantagens” a que se refe-
fessores eram pessoas de notório saber que
re Ruy Barbosa já fazia parte da formação de
haviam sido escolhidos para assumir os cargos
professores desde o Império, pois ao descrever
do magistério nas comarcas em que residiam
a criação e implementação da Escola Normal
por toda a vida.
na capital brasileira do século XIX, Sonia Lo-
A fim de mudar essa situação, ainda segundo
pes (2012) observou que já existia no seio do
Lopes (2012), o artigo 19 do novo Regulamento
Império a ideia de “civilizar” o povo da capital.
de Ensino publicado em 18 de janeiro de 1877
Decorrente dessa ideia, transformar a carreira
afirmava que os professores adjuntos efetivos
do magistério em uma ocupação um pouco
ou interinos deveriam, obrigatoriamente, cur-
mais atraente já ocupava as políticas públicas
sar a Escola Normal da Corte para permanecer
antes mesmo da República. Nesse contexto, foi
no exercício do magistério primário. Aqueles
desenvolvido um procedimento que garantiu o
que não o fizessem, ou que ficassem repro-
acesso automático de professores ao serviço
vados nos exames por duas vezes, poderiam
público. Assim, nos artigos 22 a 24, o Decreto
ser destituídos de suas funções de servidores
1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, versava
públicos. Para essa autora, essa ação do gover-
sobre a nomeação de docentes da seguinte
no aumentou a demanda pela Escola Normal
maneira:
pública. A sua avaliação era que ser professora
Art. 22. A nomeação dos professores publicos ou se manter como professora no Município
será feita por Decreto Imperial. da Corte, apesar de agora estar condicionada
Art. 23. Em igualdade de circumstancias prefe- a uma formação longa e sistemática, passava a
rirão para o provimento nas escolas: ser interessante porque seus custos funciona-
§ 1º Os professores das do primeiro gráo para vam às expensas do Estado e o seu emprego,
as do segundo, tendo leccionado com distincção garantido por Lei, assegurava um salário vita-
por três annos. lício. Ainda assim, mesmo com essa formação
§ 2º Os professores adjuntos que ainda não es- institucionalizada, professores continuavam
tiverem nas circumstancias do Art. 39 [exames sendo formados “pela prática”, isto é, iniciavam
de finais realizados pelo Inspetor Geral], mas a carreira como auxiliares dos professores
houverem praticado satisfactoriamente por
efetivos e a partir desse contato com a prática
três annos.
docente tornavam-se adjuntos interinos, che-
§ 3º Os professores particulares que por mais gando ao serviço público vitalício por meio do
de 5 annos tenhão exercido o magisterio com
reconhecida vantagem do ensino.
parágrafo 3º da Lei de 1854.1
Em 1888, por fim, com o Decreto nº 10.060,
§ 4º Os Bachareis em letras, e os graduados
em qualquer ramo da instrucção superior do 1 Sobre esse tipo de formação, ver os trabalhos de Heloisa de
Imperio. Oliveira Villela, em especial Villela (1990).
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Fábio Souza Lima
de 13 de outubro, o Império determinou a ne- Curso Normal das escolas públicas altamente
cessidade da passagem desse profissional pela concorridos.
Escola Normal da Corte:
Art. 166. Receberá o título de habilitação para
professor ou professora das escolas públicas
A campanha: O sofrimento das
e instrução primária do município da Corte o elites
alumno-professor que obtiver aprovação no exa-
me de que trata o art. 142 [aptidão pedagógica]. Alinhado ao crescimento populacional,
estava a necessidade pela formação de mais
Os títulos de habilitação serão passados confor-
me o modelo anexo ao presente Regulamento. professores, um parecer assinado por Lourenço
Filho e Anísio Teixeira (FUNDAÇÃO BIBLIO-
Art. 167. Esses títulos darão às pessoas habili-
tadas pela Escola [Normal da Corte] o direito
TECA NACIONAL, 2019b) que atestava a ne-
de serem exclusivamente providas, indepen- cessidade de construção de mais unidades de
dentemente de concurso, nas cadeiras púbicas Escolas Normais na cidade, além dos interesses
de instrução primária do município da Corte do das famílias que preparavam suas filhas em
1º ou do 2º grau, e nos respectivos logares de cursinhos pré-normais esperando, se não um
professores adjuntos. (BRASIL, 1888). crescimento social, uma maior segurança para
Tornava-se, assim, obrigatória a passagem o futuro delas. Grupos de educadores ligados
pela Escola Normal para os postulantes à à perspectiva de manutenção da centralização
carreira do magistério público primário. O do ensino chegaram a se manifestar contraria-
regulamento de 1888 ainda trazia, em anexo, mente à criação de novas unidades. Entre esses
o modelo de requisição do título, com o qual o grupos, os diretores do Instituto de Educação e
professor aprovado no exame pedagógico do da Escola Normal Carmela Dutra2 chegaram a
último ano de formação estaria habilitado a se manifestar radicalmente contrários à criação
exercer o magistério nas escolas públicas de de novas unidades (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA
instrução primária do Município da Corte. NACIONAL, 2019c).
O “seguro de vida” ao qual se referiu Werebe Diante da resistência de grupos ligados ao
(1968), usado caso falhasse o plano de casa- IE e à ENCD, uma ação astuciosa do vereador
mento imediatamente após a formação, era, Miécimo da Silva (Partido Social Progressista
portanto, o diploma de professora normalista. – PSP), aliado ao vereador Frederico Trotta
(Partido Social Democrático – PSD), que
Mais do que isso, com a formação profissional,
por sua vez encabeçou o projeto, garantiu a
a normalista garantia relativa independência
aprovação de uma Lei para criação de mais
e, em uma possível falta do marido, um salário
três unidades. Miécimo incluiu no projeto de
para o atendimento da família até o fim da vida.
Lei, cujo caput era “Determina a distribuição
O funcionamento desse privilégio oferecido
de lotes gratuitos aos favelados, soluciona o
aos professores da Escola Normal da Corte se
problema das favelas, e dá outras providên-
manteve mesmo após o fim do Império, atuali-
cias” (DISTRITO FEDERAL, 1957), artigos que
zando-se na Escola Normal do Distrito Federal
criavam uma Escola Normal na região de sua
e, posteriormente, no Instituto de Educação base eleitoral, o bairro de Campo Grande. No
e, mais tarde, chegando às demais unidades mesmo projeto, camuflados no meio de outros
de formação de professores da cidade. Conse- artigos sobre a distribuição de terras a fave-
quentemente, a boa preparação para os papéis lados, a proposta de criação de duas Escolas
de esposa, mãe e professora, o status social 2 A ENCD ficou submetida administrativamente e pedagogi-
como fruto de uma sociedade que buscava a camente ao IE até 1953, funcionado como uma espécie de
modernização pela educação, além da segu- posto avançado no bairro de Madureira, que à época, era
relacionada no zoneamento da cidade como zona subur-
rança financeira, tornaram os concursos para bana remota e de difícil acesso (LIMA, 2016).
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 322-344, out./dez. 2020 327
Quando “ser professor” servia às elites: a escola normal Ignácio Azevedo do Amaral (1950-1970)
Normais, uma na Zona Sul, região mais rica ção com algum prestígio e outros políticos que
da cidade, onde estavam os bairros da Lagoa, quisessem entrar no movimento. Entretanto, o
Botafogo, Flamengo, Leme, Leblon, Copacaba- jornal não deixou de destacar o vereador Fre-
na, São Conrado, Ipanema, Gávea, Humaitá, derico Trotta (PSD) como líder do movimento.
Laranjeiras, entre outros, e a outra unidade Em troca, nesse jogo político, Trotta conseguiu
a ser construída na Zona da Leopoldina, que que a Câmara dos Vereadores concedesse ao
na época cobria vários bairros suburbanos jornal Diário Carioca o título de benemérito
do Norte, do Caju (região portuária) até o da cidade do Rio de Janeiro na figura do seu
Cachambi. Depois de uma negociação com ou- presidente-diretor Horácio de Carvalho Júnior
tros parlamentares que buscavam votos para (RÉMOND, 2003).
uma obra no Maracanã, o Projeto nº 32, de O vereador Frederico Trotta não aparecera
1952, da Comissão de Economia e Finanças, no estratagema político de Miécimo da Silva
tornou-se a Lei nº 906, de 26 de dezembro de para a criação da Escola Normal de Campo
1957 (LIMA, 2017). Grande (além dos vagos artigos que criavam
LEI N.º 906 – DE 16 DE DEZEMBRO DE 1957 outras unidades) por acaso. Trotta, que tinha
um passado militar, como Major – e, poste-
Determina a distribuição de lotes gratuitos aos fave-
lados, soluciona o problema das favelas, e dá outras riormente, Coronel – do Exército, havia sido
providências. escolhido pelo presidente Eurico Gaspar Dutra
[...] para ser o governador do Território Federal do
Art. 15. Ficam igualmente criadas mais duas Escolas Iguaçu durante o ano de 1946, e, depois, gover-
Normais, sendo uma na zona sul e outra na zona nador do Território Federal do Guaporé entre
suburbana da Leopoldina. Devendo ser enquadradas os anos de 1947 e 1948.3 Com um programa
como suas congêneres, nas bases da Lei Orgânica
de governo que, em parte, focava na educação,
do Ensino Normal, com a direção subordinada à
Secretaria Geral de Educação e Cultura, obedecendo na saúde e nas comunicações, Frederico Trotta
ao mesmo regime. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIO- criou o primeiro Curso Normal Regional, sendo
NAL, 2019d). homenageado pela primeira turma da unidade
Embora Miécimo, conhecido como o verea- (SILVEIRA, 2008).
dor das bicas d’água, desde então estivesse Além de militar e político, Trotta havia se
a colher os frutos da Lei nº 906 em sua base formado em Direito e foi certificado a dar
eleitoral, tornando-se deputado estadual da aulas de história, português e matemática
primeira legislatura do recém-criado Estado (TROTTA, 2017). Também foi poeta e jor-
da Guanabara (1960-1975), Frederico Trotta, nalista, trabalhando em vários periódicos,
por outro lado, demoraria mais para inaugurar como O Jornal, Manhã, A Tarde e Diário do
a Escola Normal da Zona Sul. Povo (WEST, 2011). Havia neste personagem
Num período histórico em que a busca por histórico para as Escolas Normais, portanto,
cadeiras escolares ganhava força, a retórica um passado que relacionava ensino, política
política de criação de escolas era forte. Nesse e mídia em sua trajetória, algo essencial para
sentido, a atuação de Trotta foi respaldada por compreendermos o desenvolvimento do jogo
uma verdadeira cruzada realizada pelo jornal político que envolveu esse modelo educacio-
Diário Carioca, que iniciou uma campanha nal (RÉMOND, 2003).
com uma série de reportagens sobre a neces- O Diário Carioca, por sua vez, havia sido
sidade de uma Escola Normal na Zona Sul do
3 O Território Federal do Guaporé foi criado pelo Decreto-Lei
Rio de Janeiro. As manchetes da nova unidade, lei n.º 5.812, de 13 de setembro de 1943, através da Lei
presentes nas primeiras páginas do periódico, Ordinária nº 2731, de 17 de fevereiro de 1956 transformou-
se em Território Federal da Rondônia e posteriormente
envolveram representantes de associações de em Estado. Frederico Trotta foi o seu último governador
bairros da zona sul, além de nomes da educa- (PRIORI et al., 2012).
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fundado em 1928, por José Eduardo Macedo Gávea, Jardim Botânico, Ipanema e Leblon, além de
atender o bairro mais populoso dessa capital, Copa-
Soares, entretanto, passara às mãos de Horácio
cabana. [...] É um erro supor que Copacabana e os
de Carvalho Júnior, em 1932. Neste período, se- bairros da Zona Sul não tem direito ao ensino gratui-
gundo Carlos Eduardo Leal, ao escrever verbe- to. É preciso olhar para eles e ver que ali mora uma
tes para o Centro de Pesquisas e Documentação maioria de pais de famílias de nível médio e mesmo
de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), pobre. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019e).
“Tudo que interessava à elite econômica do país Figura 2 – Foto da reportagem “População da Zona
em geral era encampado pelo jornal de Mace- Sul pede Escola Normal”, do Diário Carioca de 20
de abril de 1959
do Soares, decorrendo daí sua posição fluida
e imprecisa” (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS,
2017a). Benício Medeiros (2011), na série Ca-
dernos da Biblioteca Nacional, aponta que os
esforços dos proprietários tinham a intenção
de transformá-lo em um periódico nacional, o
que quase aconteceu, pois na década de 1950
ele chegou a ser publicado com 72 páginas.
Segundo esse autor, “o DC era um jornal de
elite, de poucos leitores, relativamente, mas
de enorme influência [...]” (MEDEIROS, 2011,
p. 10).
Dessa maneira, como aponta a historiadora
Tânia Regina de Luca (2006), a imprensa não
é simplesmente mais um simples receptáculo
de informações e textos, mas também um ob-
jeto de investigação. Nesse sentido, conhecer
melhor as origens e interesses desse periódico Fonte: Fundação Biblioteca Nacional (2019e).
é necessário para utilizá-lo com a criticidade Para atender aos interesses dos moradores
necessária (LUCA, 2005). da Zona Sul carioca – onde, segundo o Diário
A aproximação de Trotta e do Jornal Diário Carioca, também viviam as classes médias e os
Carioca cumpria o interesse de ambos em aten- pobres –, o periódico desenvolveu uma série
der as suas bases e aumentar a circulação de de reportagens em 1959 buscando mobilizar
seus nomes. O meio para que isso acontecesse diferentes setores sociais. Em sequência, todos
foi a adoção do interesse das famílias da Zona na primeira página, era possível ler manchetes
Sul do Distrito Federal como bandeira política. como: “Literatos a favor da Escola Normal na
Assim sendo, o Diário Carioca iniciou o movi- ZS.” (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL,
mento com uma pergunta retórica: “Por que a 2019f); “Leblon e Lagoa pedem Escola Normal
Zona Sul tem de ser sacrificada?” (FUNDAÇÃO na ZS.” (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL,
BIBLIOTECA NACIONAL, 2019e), enquanto 2019g); “Urca vai lutar por Escola Normal.”
mostrava Frederico Trotta a aplaudir sua pró- (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019h);
pria campanha. “Escola Normal pode ser instalada logo.”
Temos na Praia Vermelha o terreno da Escola Pri- (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019i);
mária Minas Gerais, local aprazível e de fácil acesso “Moças de Copa apoiam Escola Normal na ZS.”
durante o dia. Também poderiam se aproveitados os (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019j);
terrenos que a Prefeitura possui na Gávea. O melhor,
“Gávea Aplaude [...] SACI [Sociedade dos Ami-
porém, seria o grande terreno na Praça do Lido, que
além de ser em zona central, pode ser facilmente gos de Copacabana e Ipanema] a favor.” (FUN-
alcançado pelos moradores do Flamengo, Botafogo, DAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019k).
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Quando “ser professor” servia às elites: a escola normal Ignácio Azevedo do Amaral (1950-1970)
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ra – onde funcionam as escolas normais – e isto – ‘Tudo às avessas’, suspirou. Afinal uma escola
devido à dificuldade de condução e outros obs- normal na Zona Sul acabaria em pouco tempo
táculos. [...] Por que a Zona Sul é tão desprote- com o sacrifício de centenas de alunas. (FUNDA-
gida a ponto de não possuir uma só, enquanto a ÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019n).
Zona Norte tem três? (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA
NACIONAL, 2019g). Interessante considerar que as regiões fora
dos centros urbanos recebem tradicionalmente
Dias depois, ao entrevistar uma mãe, o Diá- no Distrito Federal uma classificação distinta
rio Carioca deu destaque: do que originalmente se propõe para “subúr-
[...] declarou a sra. Iluminata Portuni, residente bio”. Diferente do que é considerada uma região
em Copacabana <<Se vitoriosa, prosseguiu, ela de descanso para as elites sociais ou demais
virá acabar com o sofrimento de milhares de classes que quisessem escapar do estilo de
mães que se veem obrigadas a viver separas de
suas filhas durante quase todo o dia. Por acaso
vida da cidade, como era em Roma, como é no
sabem as autoridades que uma normalista que caso dos Estados Unidos e em alguns países
cursa a Escola Normal Carmela Dutra, no perío- europeus, o “subúrbio carioca” recebeu uma
do da manhã, precisa levantar-se às 5 horas para conceituação ligada ao estrato social que habita
ali chegar às 8? E que com as aulas encerrando- a localidade. Essa parte da cidade foi – e ainda
se às 12 horas, ela só poderá retornar ao lar às é – desenhada como desorganizada, com pouca
15 horas? Que disposição para estudar terá a
estudante depois dessa longa maratona? Como
estrutura de atendimento público, empobreci-
mãe, finalizou d. Iluminata, espero ver a vitória da, violenta e incivilizada (FERNANDES, 2011).
da campanha, que trará a tranquilidade a todas O discurso adotado pelo periódico para aten-
nós, possíveis mães e futuras normalistas>>. der a Zona Sul associava a pobreza ao perigo,
(FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019j). classicamente, expondo um conceito que ficou
Em outra ocasião, em tom ainda mais dra- conhecido como “classes perigosas”,4 usado
mático, o jornal afirmou que encontrou apoio historicamente para processos de remoções
dentre as alunas do Instituto de Educação, en- de favelas, também identificadas como lócus
volvendo também a Escola Normal Sarah Kubits- de doenças de todo o tipo durante o século XX
chek (ENSK) e a Escola Normal Carmela Dutra (MATTOS, 2009).
(ENCD), ao afirmar que “todos” apoiavam a ideia. A srt. Talita Franco, estudante de medicina,
– Tenho uma amiguinha, acrescentou, que mora em declarações ao DC, afirmou: ‘[...] Achamos
em Copacabana e que foi obrigada a matricular- formidável a campanha, pois ela resolverá,
se em Campo Grande, na ‘Sarah Kubitschek’. além de outros problemas, os choques que se
produzem entre alunas da Zona Sul, em núme-
– O sr. Já pensou, indagou ao repórter, quantos ro inferior, com as da Zona Norte, numa escola
quilômetros vai andar essa criaturinha até nesta última localizada.’ Estas foram as palavras
chegar a se formar professora? Além de tomar das estudantes o Colégio Andrews, srtas. Marta
duas conduções perigosíssimas, lotação e trem, Pacheco Marques e Sônia Regina Guimarães.
é obrigada diariamente a fazer um percurso de Para a primeira, a iniciativa deste jornal alegrou
ida e volta de 130 quilômetros. No fim do curso extremamente, pois sua irmã, que em breve irá
ela teria feito, sem dúvida, a volta ao mundo al- cursar a Escola Normal, não precisará deslo-
gumas vezes. A viagem é de ‘matar’. Uma escola car-se para a Zona Norte, a fim de realizar sua
normal na Zona Sul resolveria o problema dela vocação. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL,
e de muitas outras. 2019j).
[...]
– Seria tão bom se o Instituto pudesse ficar mais 4 O conceito surgiu no Brasil no século XIX. Para o Historiador
vazio... Rômulo Mattos, o cerne dessa conceituação é a indistinção
entre pobreza e banditismo. “Os pobres carregavam vícios, os
Vera Lúcia mora no Catete, mas tem uma irmã vícios produzem os malfeitores, os malfeitores são perigosos
que estuda na ‘Carmela Dutra’, em Madureira. à sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a noção
de que os pobres são, por definição, perigosos” (MATTOS,
[...] 2009, p. 166).
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Quando “ser professor” servia às elites: a escola normal Ignácio Azevedo do Amaral (1950-1970)
O ponto alto da campanha para a unidade instrução. A Escola Normal foi o curso que pare-
da Zona Sul, entretanto, foi a promoção feita ce ter satisfeito mais as aspirações educacionais
pelo Diário Carioca de um debate ocorrido na das jovens brasileiras, oriundas não apenas
das classes médias inferiores e superiores, mas
TV-Rio, em que o “Prefeito Sá Freire Alvim, o também das famílias mais abastadas. Tanto as-
secretário da Educação e Cultura da Munici- sim, instalarem-se cursos normais nos colégios
palidade, prof. Américo Jacobina Lacombe, o mais tradicionais, frequentados por moças das
vereador Frederico Trotta e um representante famílias mais ricas. (WEREBE, 1968, p. 216).
do DIÁRIO CARIOCA” (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA
NACIONAL, 2019o) realizaram debates sobre A instalação da unidade e o
a Escola Normal da ZS no horário considerado
nobre, isto é, às dezenove horas e vinte e cinco atendimento exclusivo às elites
minutos. Em abril de 1959, as autoridades e os jor-
Realizado o debate, e sob o consenso de que nais falavam da instalação da Escola Normal
as jovens da Zona Sul sofriam demais com o da Zona Sul na Praia Vermelha, bairro da Urca,
deslocamento, foi noticiado no dia 13 de junho onde também fica o principal campus e sede
de 1959: “Prefeito dará em 60 Escola Normal da da reitoria da Universidade Federal do Rio de
ZS [...] CONSUMADO” (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA Janeiro (UFRJ), antes do início das atividades
NACIONAL, 2019p). acadêmicas do campus do Fundão, na Ilha do
VITÓRIA Governador, nos anos 1970. Outra proposta
A campanha visando instalar uma escola normal na apontava para um terreno na Gávea ou, ainda,
Zona Sul (a fim de que as moças ali residentes, e que um terreno na Praça do Lido, em Copacabana
desejavam ser professoras, não sejam mais obrigadas (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019r).
a um longo percurso, diariamente, para estudar em
estabelecimento idêntico na Zona Norte), foi objeto, Comentou-se, também, sobre a instalação na
este ano, de intensa campanha promovida por este Rua Prudente de Morais, em Ipanema (FUNDA-
jornal – campanha essa que culminou com um pro- ÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019s). Contudo,
grama na TV-Rio, onde o prefeito Sá-Freire Alvim e
a professora primária Olga Dias (FUNDAÇÃO
o Sr. Jacobina Lacombe empenharam sua palavra de
que dariam cumprimento à lei 906-57, do vereador BIBLIOTECA NACIONAL, 2019t), escolhida
Frederico Trotta, sancionada naquele ano, mas com para proceder nos estudos para a instalação
sua execução protelada inexplicavelmente. (FUNDA- da escola, apenas quinze dias depois de sua
ÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019q).
nomeação escolheu um prédio que considerou
Com o argumento de que as jovens da Zona especial, na Lagoa Rodrigo de Freitas.
Sul não seriam mais obrigadas a seguir longas Embora já tenhamos apontado a região da
viagens em direção à Zona Norte, a Escola Nor- Zona Sul como mais bem estruturada e onde
mal da Zona Sul fora criada para atender um se encontram os bairros com metro quadrado
público diferenciado das suas congêneres su- mais caros da cidade ainda nos dias de hoje, a
burbanas de Madureira, de Campo Grande e da construção da unidade atendeu a critérios de
Penha. Afinal, conforme já analisamos, o curso celeridade graças a uma pressão dos grupos
de formação de professores normalistas, para que buscavam seu atendimento (LIMA, 2017).
além da função precípua da instituição de for- Olga Dias, nesse sentido, afirmou publicamente
mar e conformar profissionais para atuar nas que apesar de o prédio ser pequeno e possuir
redes de ensino particular e pública, também rachaduras, receberia as reformas necessárias
oferecia uma gama de outras possibilidades para receber o Curso Normal. Segundo o jor-
para as jovens que optavam pelo curso normal. nal Diário Carioca, que continuava a cobrir o
As transformações operadas no País determi- passo-a-passo do evento, Olga receava apenas
naram mudança no status social da mulher, ter que remover os alunos da escola primária
ampliando as suas reivindicações no campo da que já funcionava no local. Tal preocupação,
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Fábio Souza Lima
no entanto, pareceu não se estender à Escola da Zona Sul visava o atendimento exclusivo das
de Aplicação da Faculdade de Filosofia (FUN- jovens da sua região. Em um tempo em que o
DAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019u), que Túnel Rebouças ainda não tinha sido construído5
também dividia o uso do prédio. Dessa forma, e o acesso entre as duas regiões era difícil e de-
a unidade foi instalada provisoriamente em um morado, instalar uma unidade longe das linhas
prédio de educação primária, onde funcionava férreas mostrava a intenção de isolar a escola.
a Escola Pública Ignácio Manuel Azevedo do Segundo a geógrafa Therezinha Soares, a
Amaral, na Rua Batista da Costa, nº 55, Lagoa. relação entre o subúrbio no Rio de Janeiro e
Ao apontar que “o curso normal da Zona o uso dos trens é tão profunda que, nos anos
Sul abrigará as moças daquela parte da cidade, 1960, essa autora chegou a apontar que não
estando as inscrições previstas para janeiro eram chamados de subúrbios os bairros que
daquele ano, conforme manda a lei” (FUNDA- não tivessem estações de trens. Soares também
ÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019u), o jornal apontou, em conformidade com o que também
também trouxe à tona a vitória dos Educadores já escrevemos, que o conceito carioca de “su-
da Escola Nova, quanto ao processo de des- búrbio” se concentra na relação entre o espa-
centralização dos sistemas de ensino, pois o cial e o social, e que essa ideia nada mais era
Secretário de Educação Américo Jacobina La- do que uma maneira ideológica de dominação
combe fez questão de confirmar a autonomia daqueles que moravam na Zona Sul (SOARES,
da unidade frente ao Instituto de Educação: “O 1962 apud FERNANDES, 2011). Assim, ao
texto legal não fala em anexo e sim em Escola contrário das outras cinco unidades,6 a Escola
Normal, nos moldes, portanto, da ‘Carmela Normal da Zona Sul, cercada pela cadeia de
Dutra’ ou da ‘Sarah Kubitschek’” (FUNDAÇÃO elevações conhecida como Maciço da Tijuca por
BIBLIOTECA NACIONAL, 2019n). um lado, também ficou distante do tradicional
Há ainda um outro bom argumento para e histórico meio de transporte suburbano do
ressaltar que a construção da Escola Normal Rio de Janeiro.
Fonte: Elaborado pelo autor deste artigo com base em Google Maps (2017).
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simples e direta às jovens estudantes: “Por que fessores primários estavam cada vez menos
preferiam a Escola Normal?” Como resultado, o atrativos. Tornava-se cada vez mais fácil en-
estudo apresentou números que ainda estavam contrar jornais cariocas que traziam manchetes
de acordo com o que Werebe (1968) e Louro como: “Problemas da normalista chegam com
(1997) já haviam apontado. Trinta e cinco por a formatura” (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NA-
cento das jovens haviam escolhido o curso por CIONAL, 2019w); “Ao Mestre, com sacrifício”
conta da “Boa formação geral”. Vinte e sete por (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019x);
cento escolheram como preparação para o ca- “Grandeza e Decadência de uma profissão”
samento, enquanto 24% escolheram o curso (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019y);
por considerarem que as preparava bem para o “Professora perde encanto pela profissão que já
magistério. A partir daí os números apontaram lhe deu prestígio e bons salários” (FUNDAÇÃO
um desinteresse na profissão que tinha raiz BIBLIOTECA NACIONAL, 2019z).
nos baixos salários da classe. Dez por cento Aquela normalista cuja trajetória de boa
das alunas preferiam o curso como meio de formação terminaria com um casamento
acesso a outra profissão, 3% viam o diploma de perfeito com um cadete da Escola Militar nos
normalistas como um meio de segurança eco- anos 1940, então formada professora e atuan-
nômica e 1% atribuíam sua procura pelo curso te na rede municipal de ensino, apresentava
à qualidade do meio social que encontrariam a seguinte composição salarial inicial frente
(FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019w). a um segundo tenente, cargo ocupado pelo
A pesquisa fora estimulada por uma per- cadete também já formado entre os anos 1960
cepção de que o status e os salários dos pro- e 1970 (Tabela 1).
Tabela 1 – Tabela Salário Mínimo Nacional/ Salário da Prof. Primária (Normalista) da GB/ Soldo do 2º
Tenente do Exército
Soldo
Sal. Mínimo Salário da Professora Relação Relação
Ano $ 2º Tenente
Nacional (SMN) Normalista Prof./SMN 2ºTen./SMN
Exército
Estarrecimento maior causou a revista O capa da sua edição de setembro de 1969 uma
Cruzeiro, que havia representado a normalista jovem com broche da Escola Normal Ignácio
no final dos anos 1940 como uma espécie de Azevedo do Amaral, apresentou de forma direta
jovem socialite a frequentar um curso de elite, o questionamento que muitas famílias já faziam
e no final de 1960 apresentava um perfil bem sobre a formação naquela unidade: “Ser ou não
diferente da normalista carioca. Ao colocar na ser professora [?]”
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Figura 6 – Foto interna da revista O Cruzeiro mos- Sonha com o vestido e baile, os convites para a
trando professora normalista trabalhando como formatura, a valsa com o namorado firme, e até
frentista mesmo com o salário e NCr$ 130,00 [Professora
Primária Estagiária] mensais que o Estado lhe
dará para ir diariamente à para ir diariamente à
zona rural lecionar durante quatro horas e vol-
tar para casa, onde corrigirá provas e trabalhos
durante outras quatro e dedicará mais duas à
preparação da aula no dia seguinte.
O professor, quanto aceita trabalhar nas zo-
nas rurais, como fase de provação, ambiciona
chegar aos centros maiores, fazendo com que
os pedidos de remoção atinjam proporções
impressionantes. [...] O êxodo dos professores
formados e a ascensão dos leigos se devem,
principalmente, ao fato de ser a remuneração do
magistério insignificante, levando a profissão a
um status social baixo.
[...]
É exatamente aí, no último ano do curso, que
Maria Álvares Campos descobre a realidade:
que, para dar formação a uma criança, terá
que morrer de fome, pedir carona, tirar do pai
o pouco que ele não tem. Por demagogia ou
real necessidade, o Estado decide ampliar o
número de matrículas. Faltam professoras. E
Fonte: Fundação Biblioteca Nacional (2019aa). as alunas do último ano do Curso Normal são
chamadas a lecionar – ‘Para que estejam bem
Rio, sete da manhã. Dona Maria Álvares Campos, preparadas’. [...] Em fevereiro do ano seguinte,
de mini-saia amarela, calça as botas vermelhas e chamam-na para ‘escolher’ a escola. Em março,
cano longo, dá os últimos retoques nos cabelos e mandam-na para a que menos queria, e só em
no batom, e põe o anel de professora, que ganhou abril pagam-lhe o primeiro salário – em níveis
do pai ao diplomar-se no Instituto de Educação. do ano anterior. E Maria Álvares Campos, com
Beija a mãe, que levantou cedo para servir-lhe o dinheiro, compra um jornal, lê um anúncio e
o café, e sai para o trabalho – de recepcionista começa a trabalhar como recepcionista do posto
num posto de gasolina. [...] Maria Alvares Cam- de gasolina em junho. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA
pos tinha doze anos quando terminou, no Rio, o NACIONAL, 2019aa).
curso de admissão. Filha de funcionário público,
Com a salário já mostrando ser insuficiente
logo sentiu que não poderia continuar os estu-
dos, a menos que fizesse o ginásio por conta do para o sustento da própria professora, o segun-
Governo. [...] Decidido que Maria Alvares Campo do impacto na carreira docente e no interesse
iria para a Escola Normal, ela, durante um ano das elites sobre o Curso Normal, conforme
inteiro, frequentou um cursinho preparatório também aponta a reportagem, foi a perda do
para o exame de admissão, com aulas aos sába- status social. No início dos anos 1970, tendo as
dos, domingos, feriados e até mesmo no Natal. E,
liberdades civis submetidas pelo Ato Institucio-
em janeiro, com outras dez mil, concorreu a uma
das duas mil vagas abertas fazendo um exame nal nº 5, de 13 de dezembro de 1968 (BRASIL,
quase que de adivinhação. 1968), foi outorgada a Lei nº 5.692, de 11 de
agosto 1971 (BRASIL, 1971), obrigando toda
Aprovada e classificada, matriculou-se no pri-
meiro ano do 1º ciclo, que corresponde ao giná- formação de nível médio a se tornar ao menos
sio. A família dá uma festa, para, mais uma vez, uma habilitação técnica. Dessa maneira, o Cur-
tomar a decisão. [...] Aos 18 anos, a última série. so Normal, ao lado de cursos como Auxiliar de
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 322-344, out./dez. 2020 337
Quando “ser professor” servia às elites: a escola normal Ignácio Azevedo do Amaral (1950-1970)
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Fábio Souza Lima
advertências por parte dos diretores de todas Art. 1º – A Secretaria de Administração pro-
as escolas normais oficiais no sentido de que moverá, através da Escola de Serviço Público
se abstenham de dar entrevistas à imprensa ou do Estado da Guanabara, no prazo de 30 dias, a
mesmo de participar de reuniões ou movimen- abertura de concurso público para o provimento
tos que reivindiquem o ingresso no magistério das vagas da classe de professor primário.
público primário sem a prestação de concurso Art. 2 – A Secretaria de Educação e Cultura fica
público. autorizada a contratar os professores formados
Os Círculos de Pais e Mestres das escolas nor- pelas escolas normais oficiais do Estado, no ano
mais do Estado estão distribuindo circulares de 1969, sob o regime da legislação trabalhista.
em todas as turmas do normal ‘aconselhando’ Parágrafo 1º – Os professores contratados na
suas alunas a não tomarem medidas precipita- forma deste artigo serão inscritos <<ex-officio>>
das visando a conseguir aquela reivindicação. no concurso público a que se refere o artigo
Prometeram ainda comunicar às alunas todos primeiro.
os movimentos de três advogados que foram
contratados para livrar aquelas que se formam Parágrafo 2º – Os contratos em conformidade
este ano, da prestação do concurso, conforme com o presente decreto serão celebrados por
prazo determinado e considerados extintos no
ficou estipulado depois que o STF considerou
término do corrente ano letivo de 1970. (FUN-
‘inconstitucional’ o inciso ‘b’, do artigo 73 da
DAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 2019ad).
Constituição do Estado da Guanabara, que
garantia o direito de nomeação para o serviço Diante desse quadro, um dos certames mais
público a todas àquelas que se formassem pe- concorridos do antigo Distrito Federal e agora
las escolas normais. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA
Estado da Guanabara apresentou uma queda
NACIONAL, 2019ab).
nunca antes vista na procura em todas as uni-
Enquanto o caso ainda estava no Supremo dades. Em 1969 foi preciso realizar três vezes
Tribunal Federal, por meio do Decreto “E” o concurso para que as vagas fossem cobertas.
3.700, de 26 de janeiro de 1970 (FUNDAÇÃO Em 1970, enquanto a unidade suburbana de
BIBLIOTECA NACIONAL, 2019ac), foi anun- Madureira começava a se recuperar, o ENIAA
ciado que as formandas das Escolas Normais chegou a ter menos candidatos do que vagas.
Públicas do ano de 1969 do Estado da Guana- A profissão de professor deixava, definitiva-
bara, contratadas ex-officio, permaneceriam mente, de contar com qualquer interesse das
nas escolas até o fim do ano de 1970, e que por classes mais abastadas, mas continuaria como
volta desse mesmo período seria realizado o uma realização pessoal ou como um símbolo de
primeiro concurso público para o provimento crescimento social para as classes mais pobres
de professores primários do Estado. da cidade.
Tabela 2 – Relação candidato/vaga da ENCD entre as décadas de 1960 e 1970
ENCD
67 68 69 - 1º 69 - 2º 69 - 3º 70 71 72 73
Candidatos totais
--- 2687 2407 1125 583 917 1687 1608 ---
Vagas totais
--- 175 238 76 51 280 112 105 ---
Candidato/vaga
--- 15,35 10,11 14,80 11,43 3,28 15,06 15,31 ---
Fonte: Elaborada pelo autor deste artigo com base em Lima (2017).
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Recebido em: 20/01/2020
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Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
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Andreia Martinazzo Braga; Nadiane Feldkercher
DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p345-363
RESUMO
Alfabetizar envolve a apropriação das práticas de leitura e de escrita pelos
aprendizes, o que determina tanto a formação quanto as práticas pedagógicas
dos professores alfabetizadores. Neste trabalho objetivamos identificar e
analisar quais aspectos da formação do Pacto Nacional Pela Alfabetização na
Idade Certa (PNAIC) fazem parte das práticas alfabetizadoras das professoras
após as etapas desta formação. A investigação teve uma abordagem qualitativa,
com procedimentos de coleta de dados por meio de entrevistas com seis
professoras alfabetizadoras. Os dados coletados foram trabalhados a partir da
análise de conteúdo. Os resultados apontam que a formação do PNAIC trouxe
contribuições para as práticas, incluindo o aprofundamento de teorias, a melhor
compreensão da avaliação dos níveis de escrita dos alunos, a ampliação do uso
da ludicidade, a importância do planejamento e o melhor entendimento da
função social da leitura e da escrita. Evidenciamos que o PNAIC foi relevante
para as professoras alfabetizadoras, sendo significativo para seus processos de
formação docente e para a ressignificação de suas práticas.
Palavras-chave: Professoras alfabetizadoras. Práticas de alfabetização. PNAIC.
ABSTRACT
RELATIONS BETWEEN PNAIC TRAINING AND LITERACY PRACTICES
Literacy involves the appropriation of reading and writing practices by learners,
which determines both the training and pedagogical practices of literacy
teachers. In this paper, we aim to identify and analyze which aspects of the
formation of the National Pact for Literacy at the Right Age (PNAIC) are part of
the teachers’ literacy practices after the stages of this formation. The research
* Mestre em Educação pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Professora alfabetizadora da Rede Municipal
de Piratuba, SC. Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa Formação Docente e Práticas de Ensino do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina (PPGEd/UNOESC). E-mail: andreiamartinazzobraga@
gmail.com
** Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade do Oeste de Santa Catarina (PPGEd/UNOESC). Líder do Grupo de Pesquisa Formação Docente e Práticas de
Ensino do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina (PPGEd/UNOESC). E-mail:
nadiane.feldkercher@unoesc.edu.br
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 345-363, out./dez. 2020 345
As relações entre a formação do pnaic e as práticas de alfabetização
RESUMEN
LAS RELACIONES ENTRE LA FORMACIÓN DE PNAIC Y LAS PRÁCTICAS
DE ALFABETIZACIÓN
La alfabetización implica la apropiación de las prácticas de lectura y escritura
por parte de los alumnos, lo que determina tanto la educación como las prácticas
pedagógicas de los maestros de alfabetización. En este artículo pretendemos
identificar y analizar qué aspectos de la formación del Pacto Nacional para
la Alfabetización en la Edad Adecuada (PNAIC) son parte de las prácticas de
alfabetización de los docentes después de las etapas de esta formación. La
investigación tuvo un enfoque cualitativo con procedimientos de recolección
de datos a través de entrevistas con seis maestros de alfabetización. Los datos
recopilados se trabajaron a partir del análisis de contenido. Los resultados
muestran que la formación del PNAIC aportó contribuciones a las prácticas,
incluida la profundización de las teorías, una mejor comprensión de la evaluación
de los niveles de escritura de los estudiantes, el uso más amplio del juego, la
importancia de la planificación y una mejor comprensión de la función social
de la lectura y de la escritura Evidenciamos que el PNAIC fue relevante para los
maestros de alfabetización, siendo significativo para sus procesos de formación
docente y para la resignificación de sus prácticas.
Palabras clave: Alfabetización docente. Prácticas de alfabetización. PNAIC.
Introdução1
No decorrer do ciclo de alfabetização, di- de aula. Essas decisões apresentam aspectos
versas práticas educativas são desenvolvidas relacionados com os enfoques epistemológi-
pelos professores. Tais ações incluem tanto cos a serem utilizados, os materiais didáticos
decisões dentro da sala de aula como decisões de suporte e os métodos que devem ser prio-
que a transcendem. Para Franco (2012), a rizados. Essa autora cita haver decisões que
prática pedagógica de alfabetização convive extrapolam a sala de aula e que a prática de
com decisões que antecedem a prática de sala letramento supõe esforço familiar e social para
1 Essa pesquisa foi desenvolvida conforme Resolução CNS vivência de práticas de leitura de mundo. Neste
nº 466/12 e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sentido as práticas alfabetizadoras tendem a
da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), sob
CAAE número 07389118.4.0000.5367 e parecer número
se adequar com a realidade do contexto social
3.174.249, em 27 de fevereiro de 2019. apresentado.
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Andreia Martinazzo Braga; Nadiane Feldkercher
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As relações entre a formação do pnaic e as práticas de alfabetização
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Andreia Martinazzo Braga; Nadiane Feldkercher
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As relações entre a formação do pnaic e as práticas de alfabetização
para interagir com as crianças, dinamizando o social, vemos o surgimento de algumas polí-
processo pedagógico e promovendo situações ticas públicas educacionais que reconhecem
lúdicas de aprendizagem; 3) ser assíduo e a alfabetização como uma prioridade para o
pontual, evidenciando compromisso com os país. Ainda que com essa importância e reco-
processos pedagógicos; e 4) ter sensibilidade nhecimento, o trabalho de alfabetizar não é
para lidar com a diversidade social, cultural, de uma tarefa fácil. A partir de nossa experiência
gênero e etnia. Nestes requisitos verificamos como professoras alfabetizadoras, identifica-
a necessidade do professor de compreender mos alguns desafios dessa tarefa, a saber: 1) o
a alfabetização enquanto um processo que diagnóstico e a caracterização do nível de escri-
deve integrar a aprendizagem do Sistema de ta da criança; 2) a adequação do planejamento
Escrita Alfabética (SEA) aos conhecimentos e para trabalhar com a diversidade de uma sala
habilidades que venham a favorecer a conexão de aula de alfabetização; 3) a alfabetização na
das crianças com os textos orais e escritos que perspectiva do letramento; e 4) a avaliação do
circulam no meio social. Neste sentido, a escola processo de ensino e aprendizagem no ciclo
precisa dispor de variados recursos didáticos de alfabetização – os quais exploramos na
pedagógicos que, ao mesmo tempo, venham a sequência.
favorecer a reflexão sobre a língua e também O diagnóstico e a caracterização do nível de
possibilitar a realização de atividades de pro- escrita no qual a criança se encontra auxilia o
dução e compreensão destes textos orais e professor na organização das prioridades pe-
escritos. A atuação do professor alfabetizador dagógicas a serem desenvolvidas no decorrer
exige domínio de conteúdo, habilidades didá- do processo de alfabetização. Portanto, cabe
ticas-pedagógicas para aproximar-se de seus ao professor identificá-lo. Segundo os estudos
alunos e sensibilidade para perceber as reais da psicogênese da língua escrita de Ferreiro
necessidades que o meio educativo apresenta. e Teberosky (1979), os aprendizes passam
Diante dessas demandas de ensino, os pro- por quatro períodos nos quais têm diferentes
fessores necessitam atualizar-se continuamen- hipóteses de como a escrita alfabética funcio-
te, para estarem preparados para enfrentar na, a saber: 1º período: nível pré-silábico; 2º
esses desafios. Soares (2008) enfatiza que a período: nível silábico; 3º período: nível silá-
formação do alfabetizador tem uma grande bico alfabético; e 4º período: nível alfabético.
especificidade, exige uma preparação do pro- Conforme essas autoras, para se alfabetizar, a
fessor que o leve a compreender todas as face- criança precisa perceber que o que a escrita
tas (psicológica, psicolinguística e linguística) alfabética registra no papel são os sons das
e todos os condicionantes (sociais, culturais, partes orais das palavras e que o faz conside-
políticos) do processo de alfabetização. Essa rando segmentos sonoros menores que a síla-
autora argumenta que esse profissional neces- ba. Compreender com propriedade todo esse
sita, a partir dessas facetas e condicionantes, processo de construção da aprendizagem do
operacionalizar os métodos e procedimentos sistema de escrita alfabética tende a auxiliar
para promover a alfabetização, o que envol- o professor alfabetizador a ter maior clareza
ve elaboração e uso adequados de materiais de quais metodologias são necessárias para
didáticos. Destaca ainda que o papel do alfa- auxiliar as crianças a avançar de um nível de
betizador exige uma postura política diante escrita para o outro e consolidar o processo de
das implicações ideológicas do significado alfabetização.
atribuído à alfabetização. Para Soares (2003), o professor deverá orga-
Certamente o trabalho do professor alfabe- nizar o processo de construção da leitura e da
tizador é importante e significativo. Devido à escrita de forma sistemática e metodológica. É
importância da alfabetização para o câmbio importante que as atividades planejadas para
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Andreia Martinazzo Braga; Nadiane Feldkercher
serem desenvolvidas com os alunos das turmas uma nova realidade social, em que não basta
de alfabetização possam facilitar o acesso às prá- apenas saber ler e escrever, é preciso saber
ticas sociais de leitura e de escrita, assim como fazer uso do ler e do escrever, saber respon-
permitir que as técnicas do sistema de escrita der às exigências de leitura e de escrita que a
alfabética sejam aprendidas, pois são capacida- sociedade faz continuamente.
des indispensáveis para a formação de crianças Já Correa (2017) enfatiza que letrar alfa-
leitoras e produtoras de textos orais e escritos. betizando ou alfabetizar letrando seria uma
Entendemos que por meio do planejamento possibilidade de garantir aos alunos a apren-
o professor pode organizar, didática e peda- dizagem do sistema alfabético e ortográfico da
gogicamente, o trabalho a ser desenvolvido língua escrita ao mesmo tempo em que ocor-
e o tempo a ser destinado para cada ação al- reria a inserção destes nas práticas sociais da
fabetizadora. Essa tarefa exige dedicação do cultura escrita. Um dos maiores desafios dos
professor e ao mesmo tempo compreensão da professores alfabetizadores é atingir o objetivo
responsabilidade de contemplar em cada etapa de ensinar a ler para transformar informações
de elaboração, aplicação, avaliação e readequa- em conhecimento, conciliando a apropriação
ção do planejamento as dimensões teóricas e do sistema alfabético/ortográfico e a plena
práticas que irão possibilitar superar as ne- condição do uso da língua nas práticas sociais
cessidades apresentadas pelo contexto hete- de leitura e escrita.
rogêneo de uma sala de aula de alfabetização. Entrelaçado aos desafios já citados, encon-
A alfabetização na perspectiva do letra- tra-se o desafio da avaliação do processo de en-
mento é outro desafio que identificamos na sino e aprendizagem no ciclo de alfabetização.
prática alfabetizadora. Para Soares (2006, p. Nossa concepção de avaliação vai além da visão
47), “teríamos alfabetizar e letrar como duas tradicional, que focaliza o controle externo
ações distintas, mas não inseparáveis, ao con- do aluno e é evidenciada através de notas ou
trário, alfabetizar letrando seria ensinar a ler e conceitos. Compreendemos a avaliação como
a escrever no contexto das práticas sociais da parte integrante e intrínseca ao processo edu-
leitura e da escrita, de modo que o indivíduo cacional. Ainda entendemos que a avaliação
se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e não deve se restringir ao julgamento sobre
letrado”. Isto é, para essa autora, o conceito le- sucessos ou fracassos do aluno.
tramento pode ser definido como resultado da As avaliações diagnósticas – a qual abor-
ação de ensinar e aprender as práticas sociais damos no desafio um – são utilizadas para
de leitura e escrita, ou, em outras palavras, o detectar quais saberes as crianças já dominam,
estado ou condição que adquire um grupo so- tornando-se um ponto de partida para o pla-
cial ou indivíduo como consequência de ter-se nejamento de estratégias para envolvê-las nos
apropriado da escrita e de suas práticas sociais. processos de ensino e de aprendizagem. Para
Soares (2003) evidencia que, no Brasil, os Santiago (2015), quando tratamos de uma ava-
conceitos de alfabetização e letramento se liação na esfera diagnóstica objetivamos ante-
mesclam, sobrepõem-se e, frequentemente, cipar o modo pelo qual a alfabetizadora deverá
confundem-se. Para essa autora isso não é encaminhar, através do planejamento, a sua
bom, pois os processos de alfabetizar e letrar ação educativa visando a uma aprendizagem
são específicos. Alfabetizar é ensinar o código mais eficaz. Essa avaliação diagnóstica auxilia
alfabético, letrar é familiarizar o aprendiz com na definição de estratégias, considerando o
os diversos usos sociais da leitura e da escrita. tempo previsto para as aprendizagens. A partir
Soares (2003), ao explicar o surgimento da pa- dessa avaliação diagnóstica cabe ao professor
lavra letramento no vocabulário dos educado- desenvolver um plano de trabalho para que
res brasileiros, menciona que hoje vivenciamos cada aluno se alfabetize.
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apropriação significativa dos conteúdos, uma Em sala de aula, uma das dificuldades da
vez que o trabalho com crianças das turmas de leitura é o fato de os alunos não conseguirem
alfabetização envolve o universo imaginário da decifrar as letras, não organizarem as ideias
infância. Além disso, do ponto de vista didático para pronunciar as palavras, pois não basta a
“as brincadeiras promovem situações em que simples articulação de sons da fala para que
as crianças aprendem conceitos, atitudes e uma pessoa entenda o que está sendo dito.
desenvolvem habilidades diversas, integrando Cagliari (1993) ressalta que, quando lê, uma
aspectos cognitivos, sociais e físicos.” (BRA- pessoa precisa, em primeiro lugar, arranjar
SIL, 2012b, p. 7). Para tanto, sugere-se que as ideias na mente para montar a estrutura
as metodologias levem em consideração as linguística do que vai dizer em voz alta ou sim-
características da idade das crianças, em todos plesmente passar pelo seu pensamento. Esse
os sentidos, para que os processos de ensino autor cita que, em ambos os casos, a passagem
e aprendizagem sejam significativos e efica- pela estrutura linguística é essencial e sem isso
zes. Dessa forma, o trabalho com elementos não existe linguagem, e, portanto, não pode
concretos e lúdicos otimiza a compreensão e existir fala nem leitura de nenhum tipo.
a aprendizagem. Segundo Ferreiro (1988), é possível acei-
Oliveira (2016, p. 96) ainda destaca que tar que nenhuma aprendizagem começa do
o lúdico “constitui-se como um instrumento zero e, assim sendo, a bagagem de esquemas
didático que facilita e motiva a construção do interpretativos da criança é determinante no
conhecimento significativo que auxilia no de- processo de assimilação da informação. Isto
senvolvimento de habilidades e do pensamento é, a necessidade de estudar as atividades de
da criança”. Segundo essa autora, a proposta interpretação e processamento dos diversos
lúdica deve contemplar “as necessidades dos textos, antes do processo de alfabetização,
estudantes de modo que eles possam aprender, visa valorizar os conhecimentos prévios que
a partir de jogos e brincadeiras, a leitura, a as crianças possuem.
escrita e a ampliar suas referências culturais” Mais um aspecto envolto às práticas de alfa-
(OLIVEIRA, 2016, p. 96). Evidenciamos que a betização é mencionado por Soares (2008), ao
ludicidade pode desenvolver a criatividade e abordar que é primordial entender o papel da
mobilizar o processo de aprendizagem a partir alfabetização dentro do processo de luta contra
das interações entre as crianças. a discriminação e as injustiças sociais. Ainda
A prática educativa na alfabetização precisa que não seja imprescindível ao exercício da ci-
considerar o ato de leitura como um processo dadania, a alfabetização é um instrumento para
de coordenação de informações de diversas que a população conquiste os seus direitos,
procedências. Na visão de Cagliari (1993), ler tanto sociais quanto políticos e civis. Portanto,
é decifrar e buscar informações. Para esse au- o docente, como promotor da alfabetização,
tor, o segredo da alfabetização é a leitura, pois deve outorgar ao aluno ferramentas para que
alfabetizar é, na sua essência, ensinar alguém ele se aproprie verdadeiramente da leitura e es-
a ler, ou seja, a decifrar a escrita. Assim, escre- crita e, consequentemente, se integre à cultura
ver ocorre em decorrência da leitura, e não o letrada, destacando neste caso a importância
inverso. Cagliari (1993) ainda menciona que, de não apenas oportunizar alfabetização, mas
na prática escolar, parte-se sempre do pressu- também letramento às crianças.
posto de que o aluno já sabe decifrar a escrita, Ressalta-se, assim, a necessidade de consi-
por isso o termo “leitura” adquire outro sentido derar os aspectos sociais e políticos que con-
e trata-se, então, da leitura para conhecer um dicionam a aprendizagem da leitura e escrita,
texto escrito. Na alfabetização, a leitura como a partir da marca de discriminação em favor
decifração é o objeto maior a ser atingido. das classes socioeconômicas privilegiadas, que
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As relações entre a formação do pnaic e as práticas de alfabetização
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Andreia Martinazzo Braga; Nadiane Feldkercher
Para Libâneo (2012), a reflexividade é uma dos docentes, considerando como exemplo a
característica dos seres racionais conscientes prática de outros professores. Assim, a prática
que consiste em uma autoanálise sobre as suas não se situa apenas no final do curso, por exem-
próprias ações. Esse autor ainda propõe três plo, com o desenvolvimento do estágio. Entre-
significados diferentes para esta noção. O pri- tanto, é necessário ressaltar que a prática deve
meiro é a reflexividade como consciência dos ser refletida, que venha auxiliar o professor
meus próprios atos, isto é, como o ato de pensar nas mais diversas situações que os contextos
sobre mim mesmo, sobre o conteúdo da minha educativos possam vir apresentar. Essa autora
mente (reflexão interior). O segundo menciona ainda salienta que a prática reflexiva deve ser
a reflexão como uma relação direta entre a mi- contextualizada, pois se trata da aquisição de
nha reflexividade e as situações práticas, neste uma postura crítica, isto é, de uma reflexão
caso, a reflexividade é vista como algo imanente coletiva que incorpore a análise dos contextos
à minha ação, sem ser retrospectiva. E o tercei- e tenha um compromisso de transformação
ro é a reflexividade vista desde uma reflexão das desigualdades sociais, considerando outros
dialética, em que uma realidade independente grupos da comunidade e o que eles têm a dizer
pode ser captada pela minha reflexão. sobre os problemas educativos. Em se tratando
Segundo Libâneo (2012), cada um desses da alfabetização, a reflexão também assume
sentidos da reflexividade gera diferentes destaque nas práticas pedagógicas. Para tanto,
entendimentos do seu papel no trabalho dos o professor alfabetizador constrói sua essência
professores, ao reconhecer que de forma geral pessoal e profissional nos fazeres diários e na
o papel da reflexão na prática docente está prática constante de refletir ao ensinar e ao
vinculado ao entendimento da escola como aprender enquanto ensina.
uma comunidade crítica de aprendizagens e ao
aprimoramento do trabalho. Ainda a respeito
do lugar da reflexividade na formação inicial e A repercussão da formação
continuada de professores e, portanto, no seu do pnaic nas práticas
desenvolvimento profissional, Libâneo (2012,
p. 65) aponta que “o cerne da reflexividade
alfabetizadoras
está na relação entre o pensar e o fazer, entre Para pesquisar, segundo as professoras,
o conhecer e o agir”. quais aspectos da formação do PNAIC fazem
Por sua vez, Pimenta (2012) esclarece que parte de suas práticas alfabetizadoras, em
a expressão “professor reflexivo” torna-se, du- nossa coleta de dados solicitamos que as
rante o início dos anos 1990, um movimento professoras fizessem uma comparação entre
teórico de compreensão do trabalho docente. suas práticas desenvolvidas antes e depois do
Isso se evidencia a partir dos postulados de PNAIC. No Quadro 1 apresentamos suas res-
Schön, que vieram contribuir com a valorização postas referentes à caracterização das práticas
da prática desde os primeiros anos da formação anteriores ao PNAIC.
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As relações entre a formação do pnaic e as práticas de alfabetização
Em relação às práticas alfabetizadoras antes Para Correa (2017, p. 27), letrar “alfabeti-
da participação no PNAIC, duas professoras zando ou alfabetizar letrando seria uma possi-
argumentaram que utilizavam pouco a ludici- bilidade de garantir aos alunos a aprendizagem
dade: “Antes, falando da minha experiência, eu do sistema alfabético e ortográfico da língua
era até mais técnica [...]. A gente não se dava escrita ao mesmo tempo em que ocorreria a
conta do tanto que a gente poderia ampliar inserção destes nas práticas sociais da cultura
para a ludicidade trazendo aquele determina- escrita”. Em análise às respostas, compreende-
do conteúdo.” (ANA); “[O PNAIC] trouxe muito mos que a partir da formação que tiveram no
a questão lúdica, lógico que tive muito que PNAIC, por meio dos textos estudados e dos
aprender. Digamos que eu era menos lúdica ou contextos vivenciados, as professoras pude-
menos pautada, menos enriquecida nesses cri- ram relacionar o conceito de letramento aos
térios da alfabetização até o conhecimento de seus fazeres docentes. Compreendemos que
todo esse processo [apresentado pelo PNAIC].” tal procedimento pedagógico oportunizará à
(BRENDA). criança aprendizagens mais significativas, em
Parece-nos, com base nos posicionamentos que a leitura e a escrita terão relação com o
das professoras, que suas práticas alfabeti- contexto ao qual se ensina e se aprende.
zadoras antes do PNAIC estavam condicio- Uma das entrevistadas expôs que, antes de
nadas a um ensino mais técnico, ao qual não participar da formação continuada do PNAIC,
incluíam efetivamente o uso da ludicidade. não explorava a leitura e a escrita com função
Talvez essa característica se tornasse um social:
aspecto limitante à ação de aprender dos A formação do PNAIC trouxe uma discussão
alunos. Entendemos que as atividades lúdicas para os professores que é da função social da
se relacionam aos jogos e ao ato de brincar, leitura e da escrita. Uma visão minha de pro-
fessora alfabetizadora há alguns anos atrás era
os quais são elementos importantes para a
de que a decodificação, o reconhecimento dos
aprendizagem, uma vez que, do “ponto de sons das letras, o reconhecimento das palavras
vista didático, as brincadeiras promovem e uma letra bonita eram fundamentais para a
situações em que as crianças aprendem con- alfabetização. (ISABELA).
ceitos, atitudes e desenvolvem habilidades Compreendemos, a partir da resposta da
diversas, integrando aspectos cognitivos, alfabetizadora, que há algum tempo ela asso-
sociais e físicos” (BRASIL, 2012b, p. 7). Por- ciava o ensino da alfabetização à decodificação
tanto, a ludicidade aplicada aos processos e pouco refletia sobre a função social da leitura
de ensinar e aprender na alfabetização pode e da escrita. Para Soares (2008), a alfabetização
desenvolver conhecimentos e a criatividade, se desenvolve no contexto de e por meio de
inclusive mobilizando a interação e a cons- práticas sociais de leitura e escrita, através de
trução de saberes entre as próprias crianças. atividades de letramento. Já o letramento só se
Duas professoras argumentaram ter, antes desenvolve no contexto da e por meio da apren-
da formação do PNAIC, pouca compreensão dizagem das relações fonema/grafema, ou seja,
sobre a alfabetização na perspectiva do letra- em dependência com a alfabetização (SOARES,
mento: “[O] conceito do letramento passou a 2008). Compreendemos que o ensinar a ler e
entrar de forma muito incisiva nas formações a escrever, sem oportunizar aos alunos uma
do PNAIC e fazia com que a gente analisasse as aproximação com o mundo letrado – dando
nossas práticas.” (ISABELA); “O PNAIC trouxe ênfase à língua como um sistema e não como
muito a fala da alfabetização na perspectiva do um bem cultural/social –, caracteriza-se por
letramento, [trouxe a compreensão de que] o privar as crianças de conhecimentos/informa-
letramento é mais amplo do que o ler e escrever ções significativas, que podem oportunizar o
propriamente dito.” (BRENDA). acesso ao meio social letrado.
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Outro argumento de uma das professoras a alfabetizadora, “com o PNAIC a gente apren-
foi que, anteriormente aos estudos do PNAIC, deu muito essa parte de ter um registro, ter
ela pouco compreendia os níveis de escrita: “O uma parte que você possa ver: aqui meu aluno
PNAIC conseguiu deixar muito mais claro essa avançou, aqui está a dificuldade, aqui eu tenho
questão dos níveis de escrita.” (GABRIELA). que voltar, replanejar e continuar” (FABIANE).
A compreensão dos níveis de escrita é con- Evidenciamos, a partir do posicionamento
dição fundamental para os alfabetizadores dessa professora, que o registro do processo
potencializarem metodologias que permitem de alfabetização é importante e necessário
um trabalho coerente com a aprendizagem para nortear a prática docente. A partir da
de cada criança. Ferreiro e Teberosky (1979), avaliação diagnóstica, do acompanhamento
quando tratam da Psicogênese da Língua Es- diário do desenvolvimento das aprendizagens
crita, referem que a criança passa por níveis de de cada aluno, o professor pode fazer registros
apropriação do sistema de escrita alfabética, que irão direcioná-lo para a elaboração de
que consiste em supor que é necessária uma planejamento mais coerente. Santiago (2015,
série de processos de reflexão sobre a lingua- p. 62) enfatiza que “quando tratamos de uma
gem para passar a uma escrita. Esses níveis são avaliação na esfera diagnóstica objetivamos
estruturados em 1º período: nível pré-silábico, antecipar o modo pelo qual a alfabetizadora
2º período: nível silábico, 3º período: nível deverá encaminhar, através do planejamento,
silábico alfabético e 4º período: nível alfabé- a sua ação educativa; estabelecer os limites
tico. Dado o exposto, após a identificação dos para tornar o processo de aprendizagem mais
níveis de escrita de cada estudante, o desafio eficaz”. Ao alfabetizar, o professor segue uma
principal do professor alfabetizador é eleger e sequência de ações pedagógicas que favorece o
diversificar as atividades conforme cada nível avanço de cada criança para o próximo nível de
de aprendizagem. Une-se a isso a ideia de que leitura e escrita. Nessa sequência de ações está
a criança “é o ponto de partida de toda apren- também o processo avaliativo que permite ao
dizagem.” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1979, p. professor evidenciar as aprendizagens alcança-
32). Identificar o que a criança já sabe e o que das e as aprendizagens a serem desenvolvidas
ela ainda não sabe é uma questão referencial pelos alunos.
para sequenciar as próximas metodologias de Todas as professoras relataram que, após a
ensino, tendo em vista a alfabetização. Segundo participação no PNAIC, efetivaram mudanças
a professora Gabriela, antes da participação do em suas práticas. Algumas das limitações reco-
PNAIC ela não possuía clareza desses distintos nhecidas nas práticas das docentes, anteriores
períodos do processo de apropriação da língua às suas formações do PNAIC, evidenciaram-se,
escrita de seus alunos – o que poderia estar consequentemente, como aprendizagens de-
limitando suas práticas alfabetizadoras. correntes do processo formativo. No Quadro
Uma das entrevistadas enfatizou que, antes 2 apresentamos suas respostas referentes à
de sua formação no PNAIC, pouco registrava do caracterização de suas práticas posteriores ao
processo de alfabetização dos seus alunos. Para PNAIC.
Quadro 2 – As práticas alfabetizadoras posteriores ao PNAIC
Unidades de análise Incidências
Contribuições da teoria para a prática 3
Avaliação dos níveis de escrita dos alunos 3
Maior uso da ludicidade 2
Importância do planejamento 1
Compreensão da função social da leitura e da escrita 1
Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo com base em dados da pesquisa.
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Oliveira (2016, p. 96) também pesquisou para que eu não fique somente sendo técnica na
os desdobramentos do PNAIC na formação de alfabetização. (ISABELA).
professoras alfabetizadoras e, em seu trabalho, Percebemos no relato da professora que,
destacou que o lúdico “constitui-se como um após sua participação no PNAIC, ela passou a
instrumento didático que facilita e motiva a atribuir uma maior importância ao planeja-
construção do conhecimento significativo que mento do seu trabalho pedagógico, evidencian-
auxilia no desenvolvimento de habilidades e do um olhar mais amplo ao processo de ensino.
do pensamento da criança”. Além disso, para O planejamento é uma necessidade para o
essa autora, a proposta lúdica de trabalho desenvolvimento das estratégias didáticas,
pedagógico – contemplado no PNAIC – é uma que irão viabilizar o processo de alfabetização
estratégia de ensino que pode contemplar as das crianças. Com respaldo em Soares (2003),
necessidades dos estudantes, permitindo que compreendemos que o professor deverá orga-
eles, a partir de jogos e brincadeiras, apren- nizar o processo de construção da leitura e da
dam a ler e escrever, bem como ampliem suas escrita de forma sistemática e metodológica.
referências culturais. Evidenciamos, nos posi- Cabe ao docente perceber que planejar deve
cionamentos das professoras, que pós-PNAIC ser uma atividade consciente e que incorpore
suas práticas incluíram mais ludicidade. A a previsão das ações pedagógicas referenciadas
resposta da professora Ana, quando expressou em uma didática concreta. Frente ao exposto,
“rebuscou” e “refrescou a nossa memória”, faz- é inegável a responsabilidade do professor ao
nos pensar que as professoras já conheciam a elaborar seu planejamento, responsabilidade
proposta lúdica, mas não estavam explorando essa assumida pela professora Isabela.
essa possibilidade na prática. Sabemos que Outro argumento citado pela professora Isa-
as atividades lúdicas, enquanto metodologia bela foi que a formação continuada do PNAIC
alternativa, permitem que, por meio dos jogos oportunizou uma melhor compreensão da
e das brincadeiras, os alunos aprendam de função social da escrita:
maneira mais interativa.
O que eu compreendi depois do PNAIC foi a fun-
Após a formação do PNAIC, a professora ção social da escrita. [...] Durante as formações
Isabela também relembrou a importân- a gente leu relatos de outros professores de
cia do planejamento para as suas práticas como que uma prática que era bem fechada –
pedagógicas: por exemplo, decorar uma lista de palavras com
uma determinada sílaba – ficou completamente
[...] toda vez que a gente vai planejar alguma diferente quando se colocou esse texto a serviço
coisa a gente tem consciência de que essa ati- de uma função social – como fazer uma lista de
vidade que eu estou planejando não tem uma compras pra ir ao mercado, redigir um bilhete
função somente de exercitar uma letra ou um para enviar alguma informação, receber alguma
som de uma letra. Logo em seguida eu vou sem- informação da direção da escola ou da outra tur-
pre pensar alguma coisa que possa inserir uma ma ou mesmo um texto que fosse literário e que
função de comunicação para aquilo que eu estou a gente pudesse transformar esse texto em um
fazendo. Então eu vou sair somente daquele contexto que tivesse uma função social, que es-
caça-palavras ou cruzadinha ortográfico ou de tive além da simples decodificação. (ISABELA).
sílaba e eu vou transformar isso numa leitura
que tenha significado ou vou buscar uma forma O posicionamento da alfabetizadora trouxe
comunicativa daquele texto, de maneira que a importância de vincular o processo de alfa-
as atividades que os alunos fazem não sejam betização às necessidades reais dos educan-
só para a professora corrigir, elas passam a ter
dos. Vieira (2015, p. 38) lembra que o PNAIC
também um significado para aquela criança.
[...] Eu vejo que tem que haver muito cuidado defende que a aprendizagem de ler e escrever
na hora do planejamento. Ele é levado mais “requer considerar as práticas culturais de
em consideração por mim na hora de planejar, leitura e escrita, observando que o estudante
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As relações entre a formação do pnaic e as práticas de alfabetização
Percebemos nas respostas das professoras objetivos o trabalho para alcançá-los” (OLIVEI-
que a participação delas no PNAIC trouxe RA 2016, p. 71). Parece-nos que, a partir da
impactos na aprendizagem de seus alunos. participação no PNAIC, as professoras Ana e
Algumas delas consideraram que a formação Brenda esclareceram seus compromissos com
oportunizou entender com clareza os direitos o respeito e a garantia dos direitos de aprender
de aprendizagem, das crianças em proces- de seus alunos.
so de alfabetização. Duas das professoras Duas das professoras entrevistadas argu-
comentaram: mentaram que a organização da rotina da
[O PNAIC] trouxe para nós toda aquela questão alfabetização, incitada pelo PNAIC, pode ter
bem mais pontuada dos direitos de aprendiza- contribuído para com as aprendizagens de
gem e isso foi fundamental, fazendo com que a seus alunos:
gente refletisse mais sobre o nosso dia a dia. [...]
A rotina que eu fazia não era elaborada, dentro
Assim: ‘Hoje esse conteúdo atingiu os direitos
de uma ordem, dentro de uma organização que
de aprendizagem dele?’ ‘O que que eu fiz ou
poderia ter feito para que ele atingisse esses todo dia precisava acontecer. Então, a partir
direitos?’ (ANA). do PNAIC eu comecei a ter essa nova visão. [...]
Você analisa eles no início do ano e você tem
O PNAIC trouxe muito dos direitos de aprendiza- um objetivo para o final de ano [...] e você vê a
gens dos alunos, o direito de aprender do aluno. progressão deles, a evolução deles no dia a dia
A gente precisa valorizar o crescimento do aluno com um o trabalho bem pautado, bem organi-
no dia a dia de sala de aula nesse processo de zado, bem dentro da rotina [...] isso foi muito
alfabetização. (BRENDA). bom. (BRENDA).
Em seus estudos, Oliveira (2016) também Como eu sou alfabetizadora há alguns anos, lá
enfatiza que o PNAIC apresentou para os atrás, quando eu comecei a trabalhar unidades
professores alfabetizadores os direitos de e dezenas, por exemplo, vamos dizer que era
aprendizagem. Esses direitos tratam dos co- meio estagnado, era um momento de trabalhar
unidades e dezenas. Com a formação do PNAIC,
nhecimentos que a criança “precisa aprender
passei a ter um olhar diferente, passei a traba-
a cada ano, o que auxilia a organização das
lhar com isso desde o início do ano, do primeiro
práticas pedagógicas do alfabetizador que dia da data, a partir do calendário, das fichas
ao verificar quais direitos ainda não foram escalonadas que trabalham a composição dos
apropriados pelos alunos, estabelece em seus números. (GABRIELA).
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As relações entre a formação do pnaic e as práticas de alfabetização
362 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 345-363, out./dez. 2020
Andreia Martinazzo Braga; Nadiane Feldkercher
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em Xaxim/SC. 2016. 181 f. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Programa de Pós-graduação em Recebido em: 10/03/2020
Educação, Universidade Estadual do Oeste do Aprovado em: 15/12/2020
Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.
Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, p. 345-363, out./dez. 2020 363
TEMAS E PRAZOS DE SUBMISSÕES
PRÓXIMOS DOSSIÊS – 2020/2021
DOSSIÊ PRAZO
61-2021.1
(até)
Sandra R.M.Araujo (UNEB) 15 de novembro 2020
Mônica C. Molina (UnB)
62-2021.2
(até)
Maria A. J. Oliveira (UNEB) 15 de fevereiro 2021
Eliana S.D.Debus (UFSC)
63-2021.3
(até)
Liege Sitja (UNEB) 15 de março 2021
Lia M. F. Fialho (UECE)
64-2021.4
(até)
Mary Valda Sales (UNE) 15 de abril 2021
Vani M. Kenski (USP)
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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
I – PROPOSTA EDITORIAL
A Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, seguindo as diretrizes nacionais de periódicos
qualificados, a partir de 2016, passa a ser quadrimestral, mantendo na sua estrutura uma seção Temática e uma seção
Estudos, em ambas publicando artigos inéditos, de natureza científica, resultantes de pesquisas que contribuam
para o conhecimento teórico, metodológico e prático no campo da Educação e em interação com as demais Ciências
Sociais, relacionando-se com a comunidade regional, nacional e internacional. Aceita trabalhos originais, que analisam
e discutem assuntos de interesse científico-cultural. Está organizada nas seguintes seções:
• Temática
• Estudos
• Documentos
Nas seções Temática e Estudos cabem ensaios (estudos teóricos, com análise de conceitos) e resultados de
pesquisa (artigos baseados em pesquisas finalizadas ou em andamento), sendo que na primeira caberão artigos
articulados necessariamente com a temática específica do número (informação sempre disponível na página web),
e na segunda, artigos atinentes a diversas temáticas dentro da proposta editorial da revista e recebidos em fluxo
contínuo. A seção Documentos está aberta à publicação de resenhas (revisão crítica de uma publicação recente),
entrevistas (com cientistas e pesquisadores renomados); estudos bibliográficos (análise crítica e abrangente da
literatura sobre tema definido) e análises críticas de Projetos e Diretrizes da Área de Educação.
Os trabalhos devem ser inéditos, não sendo permitido o encaminhamento simultâneo para outros periódicos.
A titulação mínima para os autores é o mestrado. Mestrandos podem enviar artigos desde que em coautoria com
seus orientadores.
A revista recebe artigos redigidos em português, espanhol, francês e inglês, sendo que os pontos de vista
apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores. Os originais em francês e inglês poderão ser
traduzidos para o português, com a revisão realizada sob a coordenação do autor ou de alguém indicado por ele.
Os autores e coautores que tiverem artigos publicados devem ficar, no mínimo, com um intervalo de dois números
sem publicar. Os textos não devem exceder a três autores.
A Revista recebe artigos em fluxo contínuo e direcionados para a Seção Temática (temas dos futuros números
e os prazos para a entrega dos textos são publicados nos últimos números da revista), assim como no site www.
revistadafaeeba.uneb.br
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Após a revisão gramatical do texto, a correção das referências e a revisão dos resumos em língua estrangeira,
o(s) autor(es) receberão o texto para uma revisão final no prazo de sete dias, tendo a oportunidade de introduzir
eventuais correções de pequenos detalhes.
366 Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 60, out./dez. 2020
13-26, jan./jun. 2002.
f) Artigo de jornais:
SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. O Globo, Rio
de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.
g) Artigo de periódico (formato eletrônico):
TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira de História,
São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago. 2000.
h) Livro em formato eletrônico:
SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://www.bdt.
org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.
i) Decreto, Leis:
BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para despacho
de aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./
mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.
j) Dissertações e teses:
SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
– Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
k) Trabalho publicado em Congresso:
LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridades brasileiras,
no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE: história da educação,
13., 1997, Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.
IMPORTANTE: Ao organizar a lista de referências, o autor deve observar o correto emprego da pontuação, de
maneira que esta figure de forma uniforme.
5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data, de acordo com a NBR 10520 de 2003. As
citações bibliográficas ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entre aspas ou, quando ultrapassa três
linhas, em parágrafo com recuo e sem aspas, remetendo ao autor. Quando o autor faz parte do texto, este deve aparecer
em letra cursiva e submeter-se aos procedimentos gramaticais da língua. Exemplo: De acordo com Freire (1982, p.
35) etc. Já quando o autor não faz parte do texto, este deve aparecer no final do parágrafo, entre parênteses e em
letra maiúscula, como no exemplo a seguir: “A pedagogia das minorias está à disposição de todos” (FREIRE, 1982,
p. 35). As citações extraídas de sites devem, além disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a
data de acesso. Para qualquer referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo, no rodapé
das páginas do texto devem constar apenas as notas explicativas estritamente necessárias, que devem obedecer
à NBR 10520, de 2003.
6. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como os agradecimentos,
apêndices e informes complementares.
7. Os artigos devem ter, no máximo, 70 mil caracteres com espaços e, no mínimo, 45 mil caracteres com espaços;
as resenhas podem ter até 30 mil caracteres com espaço. Os títulos devem ter no máximo 90 caracteres, incluindo
os espaços.
8. As referências bibliográficas devem listar somente os autores efetivamente citados no corpo do texto.
Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no processador Word for Windows ou equivalente:
• letra: Times New Roman 12
• tamanho da folha: A4
• margens: 2,5 cm
• espaçamento entre as linhas: 1,5;
• parágrafo justificado.
Os autores são convidados a conferir todos os itens das Normas para Publicação antes de encaminhar os textos.
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NORMS FOR PUBLICATION
I – EDITORIAL GUIDLINES
Created in 1992, the FAEEBA: Education and Contemporaneity Journal, in keeping with national guidelines
governing qualified periodicals, in 2016, it will be published quarterly, while continuing to maintain its present
structure with both a Thematic section and one devoted to Studies. Both will feature original, previously unpub-
lished articles of a scientific nature, based on research that contributes to theoretical, methodological, and practical
knowledge in the field of Education. Our aim is to stimulate dialogues between various areas of the Social Sciences
while forging relationships between regional, national, and international communities. The journal accepts original
works that analyze and discuss issues of scientific and cultural interest. It is organized into the following sections:
• Thematic
• Studies
• Documents
The Thematic and Studies sections feature essays (theoretical studies, with analysis of concepts) and study results
(articles based on ongoing or finalized research). For submissions to the Thematic section, articles must necessarily
coincide with the specific topic chosen by that issue (information is available on the journal’s web site). For the
Studies section, articles exploring various topics that fall within the journal’s editorial guidelines can be submitted
at any time. The Documents section is open to the publication of reviews (critical reviews of recent publications);
interviews (with recognized scientists and researchers); bibliographic studies (comprenhensive, critical analysis
of literature on a defined theme) and critical analyses of Projects and Guidelines in the Area of Education.
Submitted works should be unpublished and should not be submitted simultaneously to other journal. Papers
written in Portuguese, Spanish, French and English are received. Views published remain their authors’ responsi-
bility. Texts originally in French and English may be translated into Portuguese and published after a revision made
by the author or by someone he has suggested. Authors who published in this journal should wait two volumes to
become newly authorized to publish. No paper should have more than 3 authors.
The Journal accepts article submissions throughout the year for the Thematic Section (themes and submission
deadlines for future issues are listed in recently published issues as well as on the site: www.revistadafaeeba.uneb.br
III – COPYRIGHTS
Submitting text to the journal means authorizing for publication. Accepting a text for publication imply the
transfer of copyrights to the journal. Whatever complete or partial reproduction (more than 500 hundreds words)
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requires the written authorization of the editorial committee. Papers’ authors should assume juridical responsibility
for divulging interviews, photographies or images.
Texts approved by the FAEEBA: Education and Contemporaneity Journal will be published in the Thematic or
Studies sections; the number of articles in each section will be determined by available space in each issue. Articles
may be approved, but not published in an upcoming issue. In this case, they with be kept in an “article bank” and may
be published in a future issue. After one year, if there is no concrete possibility of a text’s being published, authors
may request permission to publish it in another periodical.
The main author of a paper will receive three copies of the volume in which his paper was published. The author
of an abstract or a review will receive one.
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mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.
j) Thesis:
SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade
de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
k) Congress annals:
LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridades brasileiras,
no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE: história da educação, 13,
1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.
IMPORTANT: Organizing references, the author should take care of punctuation correct use, so as to preserve
uniformity.
5. This journal use the author-date quote system, according to the NBR 10520 de 2003. Bibliographical quotes
or quotes from on-line publications, if inserted into the text, should appear between quotation marks or if the
quotation is more than three lines long, distanced and without quotation marks with author reference. Examples:
1- According to Freire (1982: p.35), etc. 2-Minority pedagogy is for all (Freire, 1982, p.35). On-line quotes should
indicate the URL and access date. Footnotes should only contain explanatory notes strictly necessary respecting
the NBR 10520, of 2003.
6. Texts can contain footnotes, thanks, annexes and complementary informations.
7. Articles must have a minimum of 45,000 characters and a maximum of 70,000 characters (with spaces).
Reviews can be up to 30,000 characters (with spaces). Titles should have no more than 90 characteres including
spaces. Reviews are limited to 5 pages. Thesis abstracts should contain no more than 250 words and should include
title, number of page, author data, key-words, name of the director and university affiliation, as well as the date of
the defense and the English translation of text, abstract and key-words.
Look out: texts will only be accepted formated in Word for Windows or equivalent:
font: Times New Roman 12
paper dimension: A4
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line spacing: 1,5;
paragraph justified.
Authors are invited to check the norms for publication before sending their work.
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