You are on page 1of 19

1

Situação da ética hoje


A. Situação da Ética hoje: falta e busca

1. Falta de Ética
Na sociedade de hoje impera o relativismo dos valores. Cada qual faz suas opções de modo subjetivo:
"Você decide". Na base deste relativismo está o individualismo moderno. Cada um busca sua
felicidade pessoal, segundo a "lei de Gérson: "tirar vantagem em tudo". A mídia é um potente difusor
dessa falta de uma ética sólida.
Não haveria normas objetivas, nem propriamente decisões, mas apenas preferências pessoais, como
num supermercado. Com o tempo o relativismo leva ao indiferentismo moral ou a-moralismo e
finalmente ao niilismo: "Ser imperador do mundo ou bêbado - dá tudo no mesmo" (Sartre, O ser e o
nada).
O certo é que hoje há uma des-orien-tação geral, sobretudo da parte da juventude frente aos perigos do
sexismo, das drogas e da violência. Os pais se queixam: "Não se sabe mais o que é certo e o que é
errado". Há confusão entre o bem e o mal (Is 5,20). Figura do "homem moderno" é Pilatos,
perguntando perplexo: "Que é a verdade?" (Veritatis Splendor = VS 84).
Na sociedade brasileira em particular, como afirma a CNBB (Ética: Pessoa e Sociedade = EPS, 41-
42), reina uma mentalidade que dificulta a criação de uma Ética pública consistente e que se exprime
nas formas seguintes:
 o ethos autoritário que se exprime em frases como: "você sabe com quem está falando", "para os
amigos tudo, e para os inimigos a lei" e "quem pode, pode" - restos da mentalidade "Casa-Grande e
Senzala";
 e a filosofia do "jeitinho", que pode ir até à conhecida malandragem.
Logicamente, o ethos relativista e egoísta de hoje, ou seja, a moralidade frouxa de nossa sociedade, só
faz reforçar as desgraças sociais já existentes: a injustiça social (desigualdade e exclusão), a corrupção
administrativa, as mentiras dos políticos e da mídia, a violência urbana, etc. (VS 98).
Contudo, em reação ao relativismo moderno, levanta-se hoje outro extremo: a rigidez moral, expressa .
2. Demanda de Ética
Busca-se cada vez mais hoje uma "bússola ética" que guia nosso agir. Sinais dessa busca são, entre
outros:
 as numerosas publicações sobre Ética;
 as "comissões de ética" e de "códigos de ética" (deontologia) de que estão se dotando muitas
Instituições, como empresas, partidos, o Congresso, o Governo;
 o apelo eficaz que se faz na vida pública a "Carta dos Direitos Humanos" e a outros documentos,
como o "Estatuto da criança e do adolescente", a "Carta da Terra", etc.;
 os grupos que cultivam a "solidariedade" social: igrejas, Ongs, o "povo de Seatle", etc.
B. Esclarecimentos terminológicos
1. Diferença entre Ética e Moral. No geral, se equivalem, até pela etimologia: ética é palavra grega
que corresponde à latina moral. Mas hoje tende-se a distingui-las:
 Ética: falaria dos princípios ou dos fundamentos, como "faça o bem!". Tem a forma de um apelo
interior, de uma exigência ou aspiração íntima. Supõe convicção, "senso" de justiça, solidariedade,
compaixão, etc.
 Moral se referiria a normas concretas, como "não matarás!". Teria a forma de uma obrigação mais
ou menos imposta. Aí age-se "por dever" ou "por lei".
Contudo, uma pede a outra: a Ética guia e inspira a Moral e esta concretiza a Ética. Naturalmente, esta
última é que é mais importante e deve ter sempre a primazia.
Às vezes, na linha de Hegel, distingue-se Moral como coisa privada, subjetiva; e Ética como coisa
pública, objetiva. Ética seria superior à Moral (cf. CNBB, Ética: Pessoa e Sociedade = EPS, 18).
2. Moral descritiva e moral prescritiva. Às vezes são confundidas, mas sem razão:
 Moral descritiva. É a que as pessoas praticam de fato e que se pode inclusive pôr em estatística.
São os costumes reais de um povo (e q o V , ethos = costume, hábito). É a "Ética vivida" (Ethica

Fr. Clodovis M. Boff, osm


2
utens). Assim o ethos brasileiro do "jeitinho", que pode ser usado para o bem (em geral, entre os
Pobres) e para o mal (entre os Poderosos).
Moral prescritiva. Corresponde aos valores que um povo se propõe idealmente realizar (h q o V ,
êthos = caráter e também morada). É a "Ética a se viver" e "a se ensinar" (Ethica docens). É o que se
deve fazer e não apenas o que "se faz" normalmente, como na Ética descritiva.
C.Ética: desabrochar de nosso ser profundo
1. Fundamentação da Ética. Hoje se discute muito sobre os fundamentos ou a refundação da ética.
Nesse ponto, a grande reflexão filosófico-teológica nos fornece duas grandes tradições:
a. Deontológica, representada por Kant (+1804). Esta funda a Ética na idéia do "dever", sob a forma
do "imperativo categórico", incondicional. Aqui Ética é o que se impõe, o que "temos de fazer".
Embora suponha uma concepção limitada, já é coisa grande ser "ético" por amor sincero da lei moral,
e não só por temor da lei positiva ou da sanção do Estado ("legalidade").
Conhecemos assim pessoas "íntegras", "de caráter", que buscam sempre seguir a "pequena voz
profunda", ressoando em sua alma (Gandhi), mesmo às custas do próprio interesse imediato. Tais
pessoas, quando interrogadas por que fazem o bem, responderão: Porque a consciência ou o dever lhes
manda fazer isso.
b. Ontológica, representada por Aristóteles e Sto. Tomás. Baseia a Ética no próprio ser humano
entendido como projeto, caminho, aspiração à plenitude, à felicidade, à salvação. Aqui a Ética "faz
parte" do humano: o dever-ser moral atualiza as exigências do ser real. Essa tradição é mais larga que
a primeira, por isso pode integrá-la. Atrás do "dever" ela coloca o "ser" e sua vocação profunda. Nesse
nível, a razão que move a fazer o bem é a "exigência profunda do ser", é finalmente a "própria
realização superior".
Como se pode ver, a Ética "engancha" finalmente na ontologia humana. "O agir segue o ser." Ser
bom é seguir o dinamismo interno do próprio ser. Tanto para o pensamento bíblico como para o grego,
o Ser é bom. Ética então significará respeito e obediência à nossa verdade mais íntima. Parte-se aqui
do princípio que, no fundo, no fundo, todo o ser humano é bom. Toda pessoa tem um fundo bom, que
pode estar "ferido", mas não "corrompido", como dizia o Concílio de Trento contra Lutero.
Ética é, pois, fazer o que está em harmonia com nosso ser fundamental. Esse é o sentido de "viver
segundo a natureza" do Estoicismo e de "seguir a razão" de Aristóteles/Sto. Tomás. Ética parece às
vezes contrariar impulsos básicos (ira, sexo), quando na verdade ela apenas os controla e os orienta e
os realiza num nível superior.
E os sistemas ou códigos éticos? Não seriam algo de exterior à consciência, impondo-se a ela? Não.
Eles nada mais são do que a experiência moral acumulada pela humanidade ao longo dos tempos.
Parecem exteriores, mas de fato não são, pois buscam sempre traduzir as exigências mais profundas do
humano.
2. Ética: desabrochamento pleno de nossa humanidade. Só quando a liberdade responde ao seu
dever-ser é que o ser humano se aperfeiçoa e chega à sua plenitude. Ética é exigência ontológica, mais
que consciente, do próprio ser. É o desdobramento de nosso "humano" como tal. É o desabrochar de
suas potencialidades mais profundas. Pela Ética a pessoa se humaniza plenamente. Ela é caminho de
auto-realização. O "homem realizado" será o homem justo, generoso, solidário, compassivo, amoroso.
Uma pessoa sem Ética é uma planta que não floriu nem frutificou. Em suma, Ética é
"desenvolvimento da imagem de Deus" em nós (VS 13, 72s, 92, 111).
"Sê o que és": esse verso de Píndaro é uma definição concisa de Ética. "Ética é a ciência do que o ser
humano deve ser em razão do que é" (Vercors). O imperativo (moral) segue o indicativo (ontológico):
és imagem de Deus, comporta-te como tal; és filho de Deus, vive como filho de Deus. É a lógica do
pensamento de S. Paulo: "Outrora éreis trevas, agora sois luz: vivei como filhos da luz" (Ef 5,8).
3. Ética e felicidade. Evitar o sofrimento e gozar da felicidade e da paz é o desejo humano mais
profundo, como diz a Bíblia: "Qual é o homem que ama a vida e deseja longos dias para gozar de
felicidade? Aparta-te do mal e faze o bem, busca a paz e vai ao seu encalço" (Sl 34,13.15). Ora, só a
virtude leva finalmente à felicidade e à paz. Assim anunciou Jesus nas Bem-aventuranças. Assim
ensinou Buddha. E essa era também a grande mensagem de Platão, como inscreveu seu melhor
discípulo, Aristóteles, na inscrição do "Altar da Amizade": "Foi ele que nos ensinou, mais com a vida
do que com razões, que se pode ser ao mesmo tempo virtuoso e feliz". Nisso, portanto, convergem as
três grandes tradições: a cristã, a budista e a grega clássica.

Fr. Clodovis M. Boff, osm


3
Assim, a Ética "vale a pena" para esta vida e não só para a outra. Ela dá satisfação profunda: nada
como a consciência em paz! É bom ser bom" - repetia João XXIII. Sermos éticos "vale a pena" mesmo
se não houvesse uma recompensa no além. Vale por nós mesmos: para nossa paz interior, para um
relacionamento harmonioso com os outros, para nossa própria saúde e até para a própria reputação.
Pois, "a virtude é sua própria recompensa" - sentenciava Cícero.
Nesse sentido, o homem "imoral", mais que ser inimigo dos outros, é inimigo de si mesmo. A Ética
sempre traz mais vantagem para nós que para os outros. A falta de Ética prejudica a nós mesmos, à
nossa realização e felicidade. "A injustiça rebaixa mais quem a pratica do que quem a sofre" (GS 27;
já Platão). Sócrates na Apologia: "Meus acusadores podem me matar, mas não me prejudicar".
D. Consciência
1. "A voz de Deus no íntimo do homem" (V. Hugo). O Concílio fez uma bela descrição da
consciência moral (GS 16). Trata-se de uma "lei não escrita, inabalável" (Antígona de Sófocles),
apenas "inscrita no coração" (Rm 2,15). É o "arauto que proclama o edito do Rei" (S. Boaventura: VS
58).
É aí que ressoa a voz do "dever", essa ordem incondicional, valendo sempre e em toda parte, mesmo
sem lei, polícia ou qualquer outra cobrança. Mesmo quando estamos sozinhos, sentimos que a
consciência nos chama a evitar tudo o que é indigno e a querer só o que é nobre e elevado.
2. A lei mais elementar da consciência ética. Essa pode ser formulada de diversas maneiras:
 "Faze o bem e evita o mal" (Am 5,14-15);
 "Não faças aos outros o que não queres que os outros façam a ti". Ou em positivo: "Tudo o que
quiserdes que os outros vos façam, fazei-o vós a eles" (Mt 7,12). É a "regra de ouro", conhecida em
todo o mundo antigo;
 "Amarás a teu próximo como a ti mesmo" (Lc 10,27; Rom 13,8-10);
 Seja sempre solidário - diríamos hoje;
 Ou, como diz o Iluminado: "Olhe sempre o mundo com olhos de compaixão";
 Ou simplesmente, como faz o Vaticano II: "Ame sempre" (GS 16);
Kant deu desse princípio geral as seguintes formulações: "Aja como se todos pudessem fazer o
mesmo"; "Proceda como se você fosse o legislador universal"; "Trate o ser humano como fim, nunca
como meio".
Como se pode notar, a ética arranca do "princípio da alteridade". Ela começa quando se leva em conta
o "outro", superando o próprio egoísmo. A dinâmica da alteridade, porém, supera o simplesmente
"outro", para se abrir ao "Grande Outro", incluindo, portanto, o amor a Deus.
3. Consciência: não déspota, mas só juiz. Ela não decide arbitrariamente o certo e o errado, mas
ajuíza ou discerne apenas o acerto de nossas ações, aprovando o bem e censurando o mal (VS 55). Ela
não inventa o certo e o errado, só o descobre. Está se enraíza no coração, mas não provém apenas do
coração.
Portanto, a consciência não é fonte última da Ética, mas sua mediação: ela transmite a Lei eterna de
Deus (VS 42-44). É como o selo ou ao marca que o anel do Rei (a Vontade divina) imprimiu em nosso
coração (Sto. Agostinho, ap. Catecismo da Igreja Católica = CIC 1955).
Contudo, essa voz pode deixar de ressoar:
quando uma pessoa se acostuma a fechar-lhe os ouvidos , ocorrendo então a cegueira ou o
"endurecimento do coração";
ou como efeito de uma educação deficiente ou de um ambiente pervertido.
4. De onde vem e como se forma a consciência ética. Discute-se se a consciência moral é inata ou se
depende do ambiente. A resposta é: as duas coisas. A consciência ética é inata em sua raiz. Mas seu
conteúdo concreto é mediado - e condicionado - pelo contexto psicológico e social (família, cultura). É
como a nossa capacidade de falar: nascemos com ela, mas fala-se nesta ou naquela língua por causa do
ambiente. Portanto, a consciência moral não tem sua origem última nas influências do contexto, nem
se reduz a elas, como pensaram os psicólogos (Freud: superego) e os sociólogos (Marx, Durkheim:
"voz da sociedade").
Mesmo assim, deve-se reconhecer que a consciência é histórica, no sentido de se formar e crescer ao
longo da história (VS 53). Assim, o que era permitido ontem, pode ser crime hoje (ex. inquisição,
guerra de conquista, etc.); o que é lícito numa cultura, pode ser proibido numa outra (por ex. a

Fr. Clodovis M. Boff, osm


4
poligamia no mundo africano ou indígena). Observemos que essa relatividade moral (não relativismo)
só vale num nível derivado (ética do 3º círculo), como veremos. Resumindo: a consciência não é
"formada" pela história, mas é certamente "conformada" por ela.
5.Norma imediata do agir. "O que fazer?" R/ "O que manda a consciência" e não outra coisa: o
sentimento, a lei exterior, etc. O Card. Newman tinha razão: "Primeiro um brinde à consciência,
depois ao Papa!" Por isso, a consciência deve, em geral, ser seguida, mesmo quando equivocada (GS
16). Nunca se deve agir contra a própria consciência e as próprias convicções (Vat. II, DH 1). "Tudo o
que se faz contra a consciência edifica para a geena" (IV Conc. de Latrão, 1215).
Contudo, a consciência é norma só imediata ou última, não suprema. É "norma normada", não "norma
normante". De fato, ela deve se regular pela Verdade, que no fim é Deus mesmo e sua Vontade
amorosa. Dessa Verdade ela é eco e reflexo. Daí a necessidade da ...
E. Formação da consciência moral
1. Consciência aberta. A Consciência é sempre "consciência-de": ela busca naturalmente a verdade
das coisas (Aristóteles). Daí a estrutura: Verdade ® Consciência ® Ética. É só quando está sintonizada
com a Verdade que a Consciência responde ao seu próprio dinamismo interior e se satisfaz.
Na verdade, a Consciência não é nem totalmente "heterônoma" (faz o que uma instância exterior
manda), nem totalmente "autônoma" (faz o que bem entende), mas precisamente "teônoma" (faz o que
Deus lhe segreda no íntimo). Daí a necessidade de ser regulada e iluminada.
2. Necessidade de formação. Se Ética é o desabrochar do nosso eu profundo, ela pressupõe que
devamos saber qual é esse eu profundo. Além de ouvir a voz "espontânea" da própria consciência, é
preciso ainda educar-se na Ética, estudando, refletindo, escutando quem é melhor do que nós: os pais,
os mestres, as pessoas realmente honestas (o s p o u d a i o V de Aristóteles). É preciso também se
informar das normas estabelecidas. Elas normalmente sedimentam a sabedoria moral dos séculos e são
eficaz pedagogia para nossa formação ética (EPS 103).
Por sua parte, o cristão precisa ouvir o Magistério da Igreja e, mais ainda, a Palavra de Deus. Mas não
basta saber, é preciso sentir ou estar imbuído de sua luz. Os bons propósitos (de manhã) e o exame de
consciência (à noite), a correção fraterna, a direção espiritual, a lectio divina e especialmente a
confissão são práticas tradicionais que ajudam a educar a própria consciência ética.
A formação ética é tanto mais necessária quanto mais surgem problemas novos no campo da biologia
(bioética), da sexualidade, da economia e da ciência em geral. Esses problemas complexos exigem um
discernimento cuidadoso, sempre em diálogo com os vários especialistas e moralistas de outras
filosofias e religiões (EPS 105-107).
3. "Ética da ignorância" e ignorância da Ética. Ficar na ignorância para não se "carregar" de
obrigações (o "VIII sacramento" - como se diz) é como ter uma doença e preferir fechar os olhos. A
"ignorância ética" sobre os próprios deveres morais, especialmente sobre os do próprio estado
(casados, empresários, políticos, etc.) deixa a pessoa diminuída, atrofiada. Além disso, a ignorância
moral pode ter efeitos sociais devastadores, como quando se "apela para a ignorância".
Existe uma "ignorância invencível" ou "crassa", não culpada, fruto do meio ou da educação; mas
existe também a "ignorância culpável", fruto da própria negligência. Esta ignorância não só é pecado,
mas leva também a cometer mais pecados (Suma Teológica de Sto. Tomás = ST I-II, q. 72, a. 1 e 2).
Agora, se temos dúvidas morais, o dever é esclarecê-las; se persistem, então se está livre de agir desta
ou daquela maneira (in dubiis, libertas).
4. "Consciência crítica". É preciso, em particular, desenvolver a "consciência crítica" a respeito das
estruturas sociais. Pode-se chamar também de "consciência política" (no sentido alto de "política") ou
a "consciência da cidadania". É aqui precisamente que mais se impõe o estudo, a reflexão e o diálogo.
Pois as estruturas da sociedade moderna são complexas e suas implicações ou conseqüências morais,
difíceis de discernir.
Seja como for, "os problemas de consciência não devem ocultar a consciência dos problemas" (Sartre).
Por ignorância ou "ingenuidade política", às vezes uma pessoa, com a melhor boa vontade, apóia
projetos sociais iníquos (ex.: operário iludido vota em político explorador; freira educa, com imensos
sacrifícios pessoais, futuros opressores do povo, etc.).
Por isso, cada pessoa deve, como cidadã, se perguntar sempre, por ex. quando vai votar: "A pedra que
tu carregas é para construir uma casa ou uma prisão?" (Jacques Loew). Mais adiante, voltaremos a isso
("Ética aberta ao social").

Fr. Clodovis M. Boff, osm


5

Elementos da Ética
A. Valor ou bem
1. Que é valor. A sociedade capitalista reduz cada vez mais o valor das coisas ao seu "valor
monetário" (o preço): é a "mercantilização geral" da vida. Mas o valor intrínseco ou ontológico das
coisas é sua dignidade, sua grandeza, excelência. É o "esplendor da verdade" das próprias coisas e de
nosso próprio ser. É como a irradiação ou o perfume que emana do coração mesmo das coisas. É mais
simplesmente a "bondade" das coisas. "Valor" é termo moderno para o "bem" dos clássicos.
Em verdade, "valor" ou "bem" é o objeto ou termo de nossa vontade, de nosso desejo. Daí a atração
que os valores (justiça, caridade, etc.) exercem sobre nós: são desejáveis, amáveis, fascinantes. Eles
movem o coração humano. Por isso mesmo, a Ética se apresenta como um "saber dinâmico" e não
como uma doutrina abstrata, idealista.
2. Tipos de valores. Segundo a tradição clássica, são três:
a.valor-fim. É o bem-em-si (bonum honestum). Por ex. a justiça, a caridade, a verdade, a fé em Deus, a
coragem e toda e qualquer outra virtude moral. Esses são valores que "valem por si mesmos";
b.valor-meio. É o bem-para (bonum utile). Por ex. o dinheiro, a saúde, a vida biológica, a beleza
exterior, o poder político, o saber cultural, etc. Esses são "valores médios": vale em função de outros
valores;
c.valor agradável (bonum delectabile). Por ex. o prazer da mesa e do sexo, o prazer estético (música,
poesia, pintura, etc.) e todas as formas de lazer: praia, futebol, passeios, etc. Diz-se que o segredo da
educação é "unir o útil ao agradável". Esses valores só "valem realmente", ou seja, só são "eticamente
bons" quando acompanham os outros valores. Assim, o prazer da mesa vale realmente quando
favorece a saúde; e o sexo quando promove o amor autêntico.
3. Bens ilusórios. Quando agimos, somos conduzidos sempre por algum bem ou valor, mesmo quando
fazemos o mal. É impossível "amar o mal" como tal. O mal só pode ser amado "sob as espécies" ou
"sob os véus" do bem. Nesse caso, se trata de um bem aparente, ilusório, falso (maia indiano).
4. Hierarquia de valores. Jesus insistiu muito nisso, especialmente contra os fariseus que igualavam
todos os preceitos da Lei (313). Para Ele havia o "primeiro e maior mandamento": amar a Deus; e
depois, o "segundo, semelhante ao primeiro": amar ao próximo" (cf. Mt 22,34-40). Punha o amor do
irmão sobre tudo, inclusive sobre os deveres do culto: "Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que
pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do cominho, enquanto descuidais do que há de mais grave na
Lei: a justiça a misericórdia e a fidelidade... Vós filtrais o mosquito e engolis o camelo" (Mt 23,23-
24). "Quero a misericórdia e não (= mais que) os sacrifícios" (Mt 9,13 e 12,7). Para Jesus, o ser
humano vale mais que qualquer lei, estrutura ou sistema: "O sábado foi feito para o homem e não o
homem para o sábado" (Mc 2,27).
Por princípio, o valor-em-si é o mais importante, sendo por isso o "qualificador" objetivo dos outros
tipos de bem. Ex.: 1) O bem útil "dinheiro" é bom quando serve para "fazer o bem", e ao contrário; 2)
o bem agradável "sexo" é bom quando acompanha o "amor fiel", e o contrário. É o que veremos
melhor abaixo, falando das "fontes da moralidade".
5. Conflito de valores. Ética é corresponder à "natureza humana". Essa, porém, não é simples, mas
complexa: compreende corpo e alma, impulsos e liberdade. O instinto é natural, mas a razão também o
é, e mais ainda. Diz-se que a pulsão sexual é "natural", mas "mais natural" ainda é o respeito pelo
outro e por seu corpo.
Ora, quando há "conflito de valores", os valores maiores passam adiante dos menores. Assim, a vida
biológica é boa, mas pode ser sacrificada por um bem maior: o "amor pelos amigos" (Jo 15,13) ou a fé
em Cristo, como fizeram os mártires (Mt 10,28; VS 91). Também, o amor conjugal e/ou familiar é
santo, mas pode ser preterido pelo serviço do Evangelho (Mc 8,35; Mt 19,12).
B.As virtudes
 Definição. São mais que atos; são atitudes estáveis ("hábitos bons") que se adquirem pela
repetição dos atos bons e que tornam a prática do bem espontânea e agradável. O que importa mesmo
é "ser bom" (ter uma atitude constante de bondade) e não tanto "fazer o bem" (praticar atos
esporádicos de bondade). Entre as "virtudes", costuma-se distinguir:

Fr. Clodovis M. Boff, osm


6
1.as virtudes teologais: têm a Deus como origem, termo e motivação. São: fé, esperança e caridade
(agapé). O amor agápico, cantado por S. Paulo (1Cor 13) é a "alma" de todas as virtudes (Sto. Tomás)
ou sua "rainha das virtudes" (S. Francisco de Sales). Toda a Ética cristã pode se resumir no amor: os
atos valem pelo quanto de agapé resta neles incorporados;
2. as virtudes cardeais: são virtudes-eixo, que agrupam a seu redor todas as outras (generosidade,
sinceridade, honestidade, etc.). Vêm de Platão, mas foram assumidas na Bíblia (Sb 8,7):
a. Prudência: fazer o certo aqui e agora. Virtude dos "chefes". Implica também a virtude da "epikéia",
que consiste em saber aplicar, com coragem e criatividade, o princípio moral a um caso particular - no
que insistiu muito o grande moralista B. Häring.
b. Justiça: dar a cada um o seu; é o respeito pelo direito do outro, especialmente dos pobres. É virtude
central na vida em sociedade;
c. Fortaleza: resistência às provas, o que exige às vezes heroísmo e até o martírio. Supõe serenidade e
sobretudo constância - o contrário do pós-moderno "eterno enquanto dura";
d.Temperança: autocontrole no uso dos bens materiais e dos prazeres sensíveis. Fala-se também em
moderação, medida ou equilíbrio. Não é repressão, mas auto-contenção consciente e motivada. A
temperança é virtude hoje muito esquecida, mas é muito importante numa sociedade consumista e
hedonista como a nossa (cf. CIC 1806-9).
- Bibl.: E. Yunes - M. C. Bingemer (org.), Virtudes, Coed. PUC/Loyola, Rio/S. Paulo, 2001; AA.VV., Plenos pecados,
Coleção, Ed. Objetiva, Rio 1998- (há um livro para cada vício capital: soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça).
C. A liberdade moral
1. Que é liberdade. É a capacidade de escolher entre alternativas. É autodeterminação. A liberdade ou
livre arbítrio se enraíza em nossa vontade. "Deus pôs nas mãos do ser humano suas próprias decisões"
(Sir 15,14).
A liberdade é o campo próprio da Ética. Esse não é o campo do "fazer" puramente produtivo ou
executivo. Também não é o campo do mero "sentir" espontâneo. É precisamente o campo do "agir"
consciente e voluntário, o campo das intenções e do querer livre.
Notar que, à diferença da "liberdade divina", absoluta e criadora, nossa liberdade é sempre "situada" e
relativa. Devemos, contudo, repetir: isso "condiciona" a liberdade, mas não a "determina". O
imperativo moral como tal desconhece conjunturas e recusa determinações anteriores ou exteriores. É
fundamentalmente determinação interior (Sartre).
2. Obstáculos à liberdade. Há fatores que atenuam e até anulam a liberdade e a responsabilidade
moral, como:
 a violência,
 o medo,
 a psicose e outros bloqueios psicológicos,
 a miséria e outros condicionamentos sociais.
3. Você tem sempre a última palavra. Contudo, o contexto nunca é completamente determinante. É
sempre a liberdade que decide se obedece à voz do instinto ou às pressões e condicionamentos. Estar,
pois, bem consciente de que o contexto tem "direito de voz", mas não "de voto". Só em ¼ somos
"produto do meio"; em ¾ somos produto de nossa liberdade. "Por nossas escolhas, nós somos pais de
nós mesmos" (S. Gregório de Nissa, ap. VS 71).
Quem "fecha", pois, uma ação é nossa liberdade. A última determinação de nossa ação e do sentido de
nossa vida em geral está em nossas mãos (V. Frankl). "O que importa não é o que os outros fizeram de
você, mas o que você faz com aquilo que os outros fizeram de você" (Sartre, ap. EPS 74).
Às vezes, porém, por temor ou por comodidade (é sempre uma luta e uma "angústia" tomar decisões:
Kierkegaard), nós "renunciamos à liberdade" e deixamos que outra coisa (a "vida", os "outros, o
"coração") decida por nós e diga a "última palavra". Mesmo assim, a própria omissão ou demissão já é
uma escolha ou decisão: a de não fazer nada. Ora, muitos são os pecados de "omissão".
4. O mundo dos sentimentos. A moral se ocupa com ações voluntárias e livres. Só estas merecem o
nome de ações "humanas", enquanto que as que não dependem de nós (respirar, sentir frio, desgosto,
etc.) são meras ações "do homem". O mundo dos sentimentos, afetos ou emoções (raiva, medo,
atração sexual, paixão, etc.) é em si mesmo "amoral" porque é a esfera do involuntário, daquilo que
"acontece" em nós e conosco, sem ser realmente nosso (CIC 1762-75).

Fr. Clodovis M. Boff, osm


7
O filósofo estóico Epíteto, na abertura de seu "Manual", insistia na distinção entre o que "não depende
de nós", como a idade, o sexo, a nacionalidade, a meteorologia, etc. (coisas de que deveríamos "nos
desligar" completamente, se quisermos manter a serenidade) e o que "depende de nós", como o pensar,
o decidir, o amar (e é disso que deveríamos fazer o maior caso, se quisermos ter paz).
Os sentimentos, contudo, podem ser integrados em nossa vontade livre, que lhes dá então um sentido
determinado. Não se trata de extirpá-los (a-patia estóica), mas de orientá-los para objetos bons (eu-
patia agostiniana). Os dinamismos ou pulsões que geram sentimentos ou paixões são forças
construtivas ou destrutivas, dependendo como nós, em nossa vontade livre, lidamos com eles.
Efetivamente, a qualificação moral dos sentimentos e dos desejos vem da vontade e do objeto para o
qual a vontade os direciona. Serão bons se seus objetos são bons. Ex.: a raiva contra o pecado é boa,
contra o pecador é ruim. O desejo sexual pela pessoa certa é bom, mas pela pessoa errada (se for
consentido e buscado), é errado. O sentimento, como tal, sendo involuntário, não é mau em si; só se
torna mau com o consentimento da vontade. O mesmo ocorre com a paixão amorosa: o que conta é
como vem administrada e orientada livremente pela vontade.
5. O sentimento: perfeição ou acabamento do agir. Bem orientados nossos afetos aperfeiçoam o que
fazemos. São como o toque final dos atos bons, assim como a beleza é o arremate da juventude. Diz
Sto. Tomás que só fazemos bem uma coisa, quando a fazemos com prazer ou "com paixão" (não
apenas "por prazer" ou "por paixão"). Goethe afirmou: "Nada de grande se fez neste mundo sem uma
grande paixão".
De fato, as pulsões vitais são como caudais poderosos, mas que é preciso canalizar para se obter deles
energia (aliás, a "virtude" é uma espécie de energia, de força: implica coragem moral).
Tal "canalização" ou "sublimação" é uma tarefa por certo não fácil, porque o mundo dos sentimentos e
dos desejos foi vulnerado (embora não deformado) pelo Pecado, mostrando-se um tanto rebelde à
"domesticação". Mas com o esforço persistente de nossa vontade pode-se avançar, embora
gradualmente. E além do mais, existe a energia maior da Graça, que sana e eleva nossa natureza e seus
dinamismos. Como veremos, os dois últimos mandamentos do Decálogo tocam essa esfera.
6. Verdade, o Bem: medida da liberdade. A liberdade nos faz "senhores" de nossos atos. Nesse
sentido, somos, de certo modo, "reis" (S. Gregório de Nissa, ap. VS 38). Pelo exercício de nossa
liberdade reforçamos nosso "eu régio" e submetemos nosso "eu inferior".
Somos, contudo, reis só "até certo ponto", porque dependemos sempre do Senhor Deus e a Ele
devemos responder por nossos atos (GS 36). Como para a Consciência, há um laço íntimo entre
Liberdade e Verdade: Liberdade, sim, mas qual? A Liberdade "verdadeira" é a que se deixa guiar pela
Verdade, pelo Amor. Portanto, a Liberdade é regrada pela Verdade e pelo Bem. É só assim que ela
realiza sua vocação genuína.
O NT insiste muito na Liberdade verdadeira: "É para a liberdade que Cristo vos libertou" (Gl 5,1). "Se
o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres" (Jo 8,36). "Só a verdade liberta" (Jo 8,32). "Quem
peca é escravo do pecado" (Jo 8,34).
7. Sinceridade sim, mas também objetividade. Ser sincero não basta, é preciso também estar certo,
isto é, ter razão. Uma liberdade sem compromisso com a Verdade e o Amor aparece como um
absoluto, na verdade falso e torna-se então um ídolo escravizador. É o que queriam Nietzsche e Sartre
e antes ainda Adão, que pretendeu "determinar o bem e o mal". E é também o que pretendem os
"modernos", especialmente os jovens.
Para ser "autêntico", não basta ser convicto e sincero. É preciso ainda estar no lado certo (VS 31-34,
55, 84, 61, 84). A "veracidade" não dispensa a "verdade". Hitler era sincero, mas estava errado.
Aludindo a ele, afirmou uma de suas vítimas, o teólogo Bonhöffer: "A estupidez é mais perigosa que a
maldade". O mesmo se pode dizer dos terroristas suicidas de hoje. "Nunca se faz o mal de modo mais
perfeito do que quando se faz com boa intenção" (Pascal).
8. Liberdade com responsabilidade. Pelo que se disse, fica claro por que a verdadeira liberdade é
sempre "liberdade com responsabilidade": é a liberdade que "responde" pelo que faz diante do tribunal
da Verdade, que é Deus mesmo. Diz-se de uma pessoa que é "irresponsável" quando, sem pensar nas
conseqüências negativas de seus atos, não cumpre as tarefas que se espera dela: a mãe, cuidar dos
filhos; o patrão, pagar os salários e os impostos; o político, zelar pelo bem-estar do povo.
Ser "responsável-de" supõe "ser responsável-diante". Ora, uma ação responsável é a que "responde",
com sucesso, pelo que efetuou diante de um tribunal. Pode ser o tribunal visível da sociedade, mas

Fr. Clodovis M. Boff, osm


8
também o tribunal invisível da consciência e enfim o tribunal escatológico de Deus, do qual ninguém
poderá escapar e nem apelar. Na verdade, nunca se faz o mal impunemente já nesta vida, quanto mais
na outra.

D. Fontes ou elementos constitutivos da moralidade


1. Tripé constitutivo da moralidade. O que faz uma ação ser "boa"? São 3 elementos:
1. a natureza da ação em si,
2. a intenção com que é feita,
3. as circunstâncias em que é feita.
2. Elemento principal: a natureza. É, sobretudo, a natureza ou o conteúdo de uma ação que constitui
sua "moralidade". É concretamente sua retidão intrínseca. E, ao contrário: o que faz um ato ser "mau"
é sua perversidade intrínseca (cf. VS 74-83). Tais ações más, fazem, por si mesmas, violência à
verdade profunda do ser humano, independentemente das intenções da pessoa ou das circunstâncias
em que é feito.
Atos bons "por si mesmos" são, por ex., como a misericórdia, a justiça, a solidariedade. E, ao
contrário, entre os atos maus "por si mesmos" podemos contar a calúnia, a tortura, o estupro, o
genocídio. Estas são ações "intrinsecamente perversas" (GS 27 e VS 79-83).
3. Elementos secundários: intenção e circunstâncias. A moralidade de um ato depende ainda dos
seguintes princípios ou critérios:
Intenção. Para um ato ser plenamente bom precisa ser acompanhado de "boa intenção". A mente deve
sintonizar com a natureza da coisa. Pode-se fazer uma "boa ação" com "má intenção". Ex. os fariseus
oravam, jejuavam e davam esmola só "para serem vistos pelos homens" (Mt 6). Tal político ajuda os
pobres, mas com o olho no voto deles. O orgulho em particular tem um poder particular de "bichar"
atos bons, tal o orgulho de ser profeta, virgem ou mártir... Pode acontecer também o contrário: fazer
coisas ruins com boas intenções. Ex. Robin Hood que rouba para ajudar os pobres. A boa intenção só
não basta para "justificar" uma ação;
Circunstâncias: deve-se fazer o bem no momento ou no lugar certos. Corrigir um filho em si é bom,
mas corrigi-lo fora de hora ou fora de lugar já é errado. "Não basta fazer boas coisas; é preciso fazê-las
bem" (Sto. Afonso, ap. VS 78). "Fazer o bem, bem" (S. Gregório Magno).
Alguns teólogos moralistas de hoje acrescentam um outro elemento: as conseqüências de uma ação
como qualificadoras éticas desta ação. Contudo, as conseqüências podem se entender como fazendo
parte das circunstâncias. Ex.: certas ajudas podem ter como conseqüências levar os pobres à
passividade e a abusos (ex. compra de cachaça). Excessiva confiança num filho ou aluno resulta na
perda da necessária autoridade e disciplina. "A misericórdia sem a justiça é a mãe da dissolução" (Sto.
Tomas). "Bom sim, mas não bobo". Portanto, para que uma ação seja ética em todos os seus aspectos,
é preciso ver também as conseqüências a que ela pode levar. Não se pode cair simplesmente no duro
pereat mundus, fit justitia (o mundo pode se acabar, mas a justiça tem que ser feita).
4. "Os fins justificam os meios". O tríplice critério de moralidade acima apresentado permite criticar
a falsa idéia "os fins justificam os meios". É em geral invocada para "justificar" o uso de meios
perversos a pretexto de um "fim bom". Ex.: mentir ou comprar votos para ganhar eleições "legítimas";
conquistar a mulher do outro (ou o homem da outra) para ter o "direito à própria felicidade"; torturar
por razões de "segurança nacional" ou para "encontrar o culpado", etc.
Claro: tudo isso está errado. S. Paulo é terminante: "Não é lícito fazer o mal para obter o bem" (Rm
3,8). A máxima acima é a essência do maquiavelismo. Gandhi, retomado por Garaudy, afirmava: "Não
se pode pretender colher trigo, semeando joio. Os meios nada mais são que o fim em ação".
Duas ilustrações:
1. Epaminondas se recusou a participar, com o amigo Pelópidas, de uma conjuração para assassinar o
tirano de Tebas com o objetivo de libertar a pátria.
2. Pedro Aleixo, vice-presidente do Brasil, católico, quando se tratou de votar, em dez. de 1968, o
terrível AI5, foi o único voto contra (FSP 4/8/01), enquanto J. Passarinho votava a favor, depois de ter
dito: "Sr. Presidente, às urtigas com a consciência".

Fr. Clodovis M. Boff, osm


9
A máxima "os fins justificam os meios" só é válida no caso em que os meios sejam em si mesmos
neutros, quando então recebem sua "justificação" do fim. Ex. usar a força para deter um assassino, a
boa aparência para obter emprego ou arranjar namorado, o dinheiro para ajudar os pobres. Mas isso é
evidente e para isso não precisa apelar para Maquiavel...
Moral aberta ao Social
A.A existência ética
1. Superar o individualismo atual. O individualismo é a ideologia dominante na sociedade de hoje. É
a lei do "cada um por si" e do "salve-se quem puder". Mas a existência moral começa quando se vive a
"lei de ouro", que é a "lei do outro": "Não faça aos outros...". A GS 30 encarece a dimensão
comunitária e social da Ética.
E a razão é simples: o eu é intrinsecamente social (no sentido largo). A Ética é essencialmente aberta,
voltada para a compaixão, o amor e a solidariedade (EPS 78). Quando aparece o "rosto", aparece o
apelo ético, quer isso ocorra no nível "micro", quer no "macro". É a cultura do "I care": eu me
importo, me comprometo com o bem-estar dos outros; faço-me "próximo", mesmo dos "distantes";
quero ser "guarda de meu irmão" (Gn 4,9).
2. Favorecer a "ética da comunhão". É o antídoto à "ética da exclusão" que domina no mundo de
hoje, globalizado nos moldes do neoliberalismo. A moral do amor compassivo leva sempre à
identificação com o outro.
De resto, essa identificação pode ir até à "comunhão de destino" para a salvação e a perdição, como
deram prova Moisés, S. Paulo e sobretudo Cristo. Assim também, sabe-se da crença mahayanista no
"Buda de compaixão" (Bodhisattva), o qual se recusa a entrar no Nirvana até que o último sofredor
esteja libertado - figura profética que Jesus encarnou na história.
B. Dimensão especificamente "social" da Ética
1. Ética privada e ética pública. Ter uma ética privada no sentido de sair do egoísmo e abrir-se à
alteridade (o outro, o próximo) já é um grande passo. Mas pode-se ficar ainda na "esfera privada",
onde dominam as relações interpessoais, "relações curtas": círculo fechado da família, da vizinhança,
do trabalho. Esse é o nível ético da "micro-caridade", feita ajuda imediata, misericórdia e assistência,
em benefício de pessoas cujos nomes sei e cujos rostos conheço. Aqui, eu amo o "próximo", o
"irmão".
É preciso, porém, dar um passo a mais e estender a Ética em direção à "esfera pública", aquela social,
civil, política. Esse é o mundo das "relações longas" entre eu e minha classe, meu povo, meu mundo -
todos agrupamentos de pessoas cujo nome e rosto não conheço, mas com as quais estou ligado por
laços "funcionais" de companheirismo, cidadania ou responsabilidade política. Esse é o nível ético da
"macro-caridade", feita de justiça e solidariedade. Aqui eu amo o "povo" dos pobres", meu país, meu
mundo.
Se chamarmos de "Moral" o primeiro círculo e de "Ética" o segundo (na linha de Hegel), então
podemos dizer que há gente que tem Moral mas pouca Ética. Bons como pessoas privadas, mas
péssimos como pessoas públicas. Nesse sentido, fala-se hoje em "desprivatizar" o agir pessoal, não
para reduzi-lo ao sócio-político, mas para torná-lo também sócio-político.
2. Duas dimensões entrelaçadas da Ética. Os "modernos" tenderam a separar Moral e Política.
Levaram ao danoso divórcio entre "vida privada" e "vida pública". Valorizaram tanto a esfera da
política que:
ou a liberaram totalmente a Política de toda Ética, como fez Maquiavel e em seguida sua larga
progênie;
ou estabeleceram para ela uma Ética própria, independente, como Hegel, que falava da adjudicava à
esfera pública a "Eticidade", a qual seria diferente da "Moralidade", reduzida à esfera privada; ou,
como M. Weber, que chamava a ética política de "Ética da responsabilidade", que seria distinta da
"Ética da convicção", reservada à vida privada.
A verdade é que há uma Ética só (EPS 109, 128, 161). O Evangelho não serve só para a vida pessoal,
mas também para a vida social, como ensina o Magistério da Igreja. O que pode haver são duas
dimensões da Ética: a "micro-ética" e a "macro-ética". Mas as duas são tão profundamente
entrelaçadas como o são os aspectos individual e social na constituição do humano.

Fr. Clodovis M. Boff, osm


10
3. Especificidade da ética social. Embora entrelaçadas, a dimensão micro e a macro da Ética são
distintas e possuem certa autonomia. De fato, a Ética se aplica na esfera social segundo a natureza
desta esfera. De fato, o "amor pessoal" e o "amor social" apresentam formas diferentes: o 1º supõe
relações imediatas, enquanto que o 2º, relações mediatizadas por estruturas.
Hegel tem parte de razão com sua idéia de "eticidade": a liberdade moral não se reduz à consciência
imediata, mas precisa de instituições para se exercer: a Família, a Sociedade civil e o Estado.
Igualmente, Weber vê bem quando nota que a "ética da convicção" se concentra no "exame de
consciência" enquanto a "ética da responsabilidade" deve fazer também o "exame das conseqüências".
Há, em breve, interfaces entre estas duas esferas.
Seja como for, trata-se de duas dimensões complementares. O erro está seja numa Ética (puramente)
privada, que descuida das valores sociais, como querem os liberais; seja também numa Ética
(meramente) pública, que não considera os valores individuais, como querem militantes de esquerda.
4. A Ética, mesmo pessoal, tem repercussões sociais. Essas podem ser maiores ou menores. Nossas
ações privadas são como uma pedra jogada na água: fazem na sociedade círculos concêntricos cada
vez maiores, dependendo de seu tamanho.
O escândalo é o revelador, em negativo, da profunda solidariedade que vige entre os seres humanos,
especialmente no campo moral. Mostra como um pecado individual pode ter uma influência
devastadora sobre muitos (CIC 2284-7). "Ai daquele de quem provém o escândalo" (Lc 17,1). Quanto
mais em vista está a pessoa (políticos, artistas, padres) mais o escândalo é grave. E é especialmente
grave quando faz cair os fracos e indefesos: crianças, dependentes: "Seria melhor que pusesse ao
pescoço uma mó de moinho e se jogasse no fundo do mar" (Mt 18,6).
5. Leis injustas. A Ética tem a forma social do Direito e este toma corpo nas leis. Na Ética social se
distingue entre lei natural, expressão das exigências da natureza, e lei positiva, concretização do Bem
comum. Ora, as leis positivas nunca podem ser contra a lei natural, sob pena de perderem
legitimidade. Nem tudo o que é legal é legítimo (moral). Algo só é legal por ser bom, e não é bom
simplesmente por ser legal. As leis positivas só tem validade (legitimidade) quando combinam com a
lei moral ou pelo menos não a contradizem; do contrário representam violência disfarçada (Sto.
Tomás: CIC 1902).
Dois exemplos:
1. A "Lei de Segurança Nacional" era imoral, como mostraram as análises de Dom C. Padim e de J.
Comblin, e mais claramente ainda os próprios efeitos horríveis que tiveram (torturas, seqüestros,
assassinatos, etc.) e que foram denunciados pela CNBB, especialmente no "Documento do Brodoski"
(1972): "Não é lícito...", pela Regional de SP.
2. Contra o Estado nazista que, prevalecendo-se de seu poder, fazia leis em sua vantagem própria, Pio
XI apelou para Cícero: "Uma coisa é boa não por ser vantajosa, mas é vantajosa por ser boa" (Mit
brennender Sorge, VII). Sto. Agostinho denunciou: "Que é um governo sem justiça se não uma imensa
quadrilha de ladrões?" (EPS 134). E a Bíblia lembrou: "É sobre a justiça que o trono se firma" (Sl
16,20).
Ademais, a Igreja não admite, em moral, o mero "consensualismo" (é bom o que a maioria decide
democraticamente), mas defende o "jusnaturalismo" (existem leis naturais, que as leis do Estado não
podem contrariar). A Igreja magisterial está convencida de que o aborto, a eutanásia e outras decisões
deste gênero não se tornam morais só porque são decididos "democrativamente", isto é, por voto
majoritário.
6. Conflito entre lei e consciência. Quando a lei é injusta (adoração ao Imperador ontem, proibição
do culto hoje, suspensão das liberdades civis, leis de apartheid, etc.), a consciência (e não só cristã)
deve resistir, mesmo tendo de enfrentar perseguição e morte. É o drama de consciência descrito na
Antígona de Sófocles e vivido pelos Apóstolos: "Deve-se obedecer antes a Deus que aos homens" (At
5,29). É o que testemunharam muitos justos: mártires, profetas e revolucionários.
O conflito pode surgir também por questões de convicção pessoal, como no caso dos objetores de
consciência: ao serviço militar, a dar e receber sangue, a comer carne, etc. Mesmo que aí a convicção
careça de base moral objetiva (há veracidade, mas não verdade), a consciência pode e deve ser
seguida. O Estado deve fazer de tudo para respeitar tais convicções éticas, desde que não firam os
direitos dos outros.

Fr. Clodovis M. Boff, osm


11

C. Doutrina Social da Igreja


Eis os grandes princípios ou valores éticos que o Magistério da Igreja oferece no campo social:
1.a Pessoa humana como centro, critério e fim de toda ordem social. Aqui entram os valores da
liberdade, da participação, da iniciativa política e econômica das pessoas, etc.;
2. o Bem comum, ou seja, o bem das maiorias ou do "povo", como valor prioritário sobre o particular.
Hoje fala-se também do "Bem comum universal" (GS 26);
3.a Justiça social, como busca da satisfação das necessidades básicas e da igualdade proporcional, o
que implica a luta pela transformação das estruturas iníquas;
4.a Solidariedade, que é a fraternidade social, a "caridade social", expressa na partilha dos bens e na
colaboração em promover os irmãos mais desfavorecidos;
5.a Opção preferencial pelos pobres (CIC 1939-42), medida privilegiada da justiça social de uma
sociedade, etc.
Hoje é preciso acrescentar "novos valores": como os direitos da mulher, das culturas diversas, da
natureza (ecologia), etc.
Bibligrafia: Documentos sociais da Igreja: os de Roma (Papa e Sta. Sé em geral), os do Episcopado da AL e Caribe (CELAM) e os dos
Bispos do Brasil (CNBB ). Destes, ver especialmente Exigências cristãs de uma ordem política (1977) e Exigências éticas da ordem
democrática (1989).
D. "Pecado social" ou "estruturas de pecado"
1. Pecado social: que é isso? Trata-se de mecanismos sociais (situações, costumes, leis e instituições)
que são ao mesmo tempo fruto do pecado individual e fatores que incitam ao pecado individual
(Reconc. e Penit. 16; SRS 36; CIC 1868-9 e 2286). É quando o mal (a injustiça, a mentira ou o crime)
se organiza em "estruturas" e até em "sistema".
Ilustrações: prática da escravidão e do comércio de escravos, "guerra santa", regime do apartheid,
ditadura, nazi-fascismo, prática da tortura, quadrilhas de malfeitores, tráfico das drogas, venda de
armas, indústria da pornografia, rede de prostituição, aborto legalizado, lavagem de dinheiro, usura
financeira, regulamentos fraudulentos na esfera política ou empresarial, mídia habituada a distorcer
fatos e a degradar os costumes pela exibição complacente de pornografia e de violência, etc. Assim,
quando a população desespera e se revolta a culpa não recai principalmente sobre os Poderosos,
insensíveis ao seu sofrimento?
2. Níveis de "pecado estrutural". Podem-se distinguir 3 níveis básicos em que se dá o "pecado
estrutural":
1º. nível das empresas, onde vale uma moral deontológica, muitas vezes meramente "corporativa",
sem horizonte político maior (EPS 156);
2º. nível do Estado, a se fundar busca do "bem comum" da pólis;
3º. Nível global, dos grandes sistemas mundiais. Tal parece ser o caso do Capitalismo desregulado ou
selvagem de hoje, a atual Globalização excludente, o Mercado sem freios e a Ideologia neoliberal
podem ser considerados como "pecados macroscópicos" porque geram, em proporções gigantescas,
condições sociais de exclusão, de egoísmo (o não "amar ao próximo como a si mesmo"), de violência
e degradação moral dos povos. Criam uma espécie de "hamartiosfera" global, ou seja, de atmosfera
pecaminosa na qual todos vivem e respiram.
3. "Pecado social": indutor de pecados individuais. S. Paulo já entendia o "Pecado" como uma força
mais que humana, que "compele" o homem a pecar (Rm 5,12-21; 6,17-20). Mas essa força se encarna
na história na forma dessas estruturas, que chamamos justamente "pecado social" por favorecerem o
pecado de um número considerável de pessoas.
Mas atenção: essas estruturas pecaminosas "condicionam" em maior ou menor grau o comportamento
ético de cada uma dessas pessoas, mas não o "determinam" de modo absoluto. Essas, em geral,
mantêm sua liberdade e podem resistir, embora às vezes a preço de "heroísmo", como testemunharam
os mártires de ontem e de hoje frente ao poder estatal totalitário e como vive muita gente anônima do
povo, que mantém um alto nível moral mesmo dentro de um meio social extremamente degradado.
A cada um em particular vai o dito de Juvenal: "Mesmo ameaçado pelo touro de Fálaris, tenha por
infâmia suprema preferir a sobrevivência à honra e, por amor da vida física, perder as razões de viver"
(VS 94). Aqui vale o "navegar é preciso, viver não é preciso" (de Pompeu, retomado na canção de
Caetano).

Fr. Clodovis M. Boff, osm


12
4. Quem responde pelos "pecados sociais"? Os "pecados sociais" se reconduzem aos pecados
pessoais: são efeito acumulado destes e são em seguida causa indutora (apenas) dos mesmos. Portanto,
são as pessoas individuais que podem ser responsabilizadas por uma "injustiça institucionalizada",
mas isso segundo o grau de responsabilidade que tiveram no caso em questão, como veremos logo.
Não existira também um sujeito ético coletivo? Entidades coletivas (categorias, classes, povos, etc.)
não são, a rigor, responsáveis por pecados sociais. Coletividades não fazem injustiças por si mesmas,
mas somente através de seus membros. Uma estrutura social não comete homicídio. Por isso, não
existem "sujeitos coletivos" da moral.
Tomemos o caso do Nazismo: nem todo alemão pode ser condenado pelos "crimes estruturais" desse
regime nefando. Assim também, nem todo empresário é conivente com o sistema de exploração; nem
toda polícia, com o hábito da violência; nem todo político, com o vício da corrupção. E verdade que os
Profetas condenam pecados de nações inteiras (Babilônia, Nínive, Edom, Israel, etc.). Mas estas são
tomadas "em geral", enquanto se exime sempre um "resto".
O que pode haver são efeitos (castigos) sociais (que atingem a todos) dos "pecados sociais" que foram
praticados por alguns indivíduos representando uma coletividade, em geral os governantes. Em breve:
se não há, falando a rigor, "culpas sociais", há sim "penas sociais". Aqui vale a idéia "o justo paga pelo
pecador". Assim, numa guerra decidida por poucos políticos e generais, "sobra para todos". Idem no
caso de um regime ditatorial. Isso por causa dos laços profundos de solidariedade ontológica que
existe entre os seres humanos.
5. Graus de responsabilidade ético-social. Regra geral: quanto mais uma pessoa representa um todo
(chefe de família, padre, empresário, Presidente da Republica, etc.), mais arca com responsabilidade
ético-social. Mias em particular, poderíamos identificar três (3) graus de responsabilidade social:
1º. a participação direta;
2º. a colaboração ou cumplicidade (protegendo, aprovando, incentivando, mandando);
3º. a omissão (não impedindo ou não revelando) (CIC 1868).
E. O critério ético do "mal menor"
1. Dilemas éticos. Às vezes a pessoa se vê confrontada com uma situação moral "sem alternativa",
sendo obrigada a escolher entre dois males. Isso acontece na vida pessoal e mais ainda na vida social.
Nesses caso, escolhendo o "mal menor", a pessoa não merece censura.
Contudo, há falsos dilemas éticos. Mas atenção: isso vale só para os verdadeiros "dilemas éticos",
quando há tão-somente duas saídas. Mas havendo uma terceira saída (trilema), e essa positiva, então a
teoria do "mal menor" não vale. Assim, dizer "estupra mas não mata" é colocar um dilema falso, pois
há uma terceira saída, a correta: nem estuprar nem matar. Dizer: "É melhor transar com camisinha que
transar sem" é outro sofisma moral, pois existe aí uma alternativa: auto-controle (continência).
Contudo, na esfera social, não se pode exigir de todos uma alta moralidade. Aí o princípio do "mal
menor" tem uma aplicação bastante larga, donde o ponto seguinte.
2. Tolerância ética da autoridade pública. As leis sociais são para a multidão, que em sua maioria é
pouco dada à virtude. Por isso, a lei não procura impedir todas as faltas, mas as mais graves (ST I-II,
q. 96, a. 2). Não se pode, no campo social, cair no perfeccionismo moral ou moralismo, exigindo de
todos heroísmo ético. Sobretudo aqui, "o melhor é inimigo do bom."
Daí porque o Estado pode, para "evitar o pior", tolerar (sem aprovar) e mesmo legalizar (sem
legitimar) "males menores", como é o caso clássico da prostituição pública (Sto. Agostinho, ap. ST II-
II, q. 10, a. 11) ou, hoje, do fumo, do álcool e mesmo das drogas leves. Razão: a "dureza do coração"
(Mt 19,8). Pode-se perguntar se o argumento do "mal menor" poderia valer também para os
anticoncepcionais, os preservativos, o divórcio. O Magistério diz que não por ver aí uma "falsa
alternativa". O que é claro para a ética individual (mais idealista). Mas seria também para a ética social
(sempre mais realista)?
3. Limites para a tolerância moral: o intolerável. Seja como for, é inadmissível que o Estado
sancione diretamente o crime: o aborto, a eutanásia, a tortura, o seqüestro de cidadãos, etc. Por outro
lado, o Estado tem também um papel de educador moral do povo. Não deve ceder sempre às
tendências das maiorias (seria demagogia), mas saber exigir também o que o povo pode dar para se
elevar na escala moral, isso, porém, "não de repente mas gradualmente" (ST I-II, q. 96, a. 2, ad 2).

Fr. Clodovis M. Boff, osm


13

Conteudo da ética: O que fazer?


A. Três círculos concêntricos da Ética
1. Moral absoluta ou relativa? Olhando para os costumes dos povos, constata-se uma extrema
variedade de morais. Será que a moral depende de cada cultura? Será que a moral é uma questão
essencialmente relativa? Respondemos dizendo que em parte é relativa e em parte é absoluta.
2. Graus de absolutidade (ou de relatividade) da Ética. Quanto a Ética é relativa e o quanto é
absoluta? Por outras: quanto é particular e o quanto é universal? Podemos representar isso através de
graus. Esses graus podem ser expressos, na linha de Sto. Tomás (ST I-II, q. 94, a. 2 e 4), através de 3
círculos concêntricos, que vamos resumir aqui e logo depois explicitar:
 o círculo central representa o núcleo mais essencial, absoluto, permanente e universal da Ética.
Esse é o "grau 1 de Ética" - o grau mais primário e elementar;
 o segundo círculo representa uma primeira especificação desse núcleo, que continua em sua
substância absoluta, imutável e universal, mas não em sua formulação. Esse é o "grau 2 de Ética" -
grau intermédio, em que se mistura o absoluto e o relativo;
 por fim, o terceiro círculo, o mais exterior, representa as aplicações particulares que uma
sociedade faz dos valores expressos nos dois círculos anteriores. Aqui estamos decididamente na
esfera do relativo e do mutável. Essa é a "Ética de 3º grau". Vamos agora detalhar estes 3 círculos ou
graus de Ética.
 1º círculo da Ética (o mais estreito). Aqui temos um só (1) mandamento: "Faça o bem e evite o
mal", "Ame o próximo..." ou a "regra de ouro" conhecida por todos os povos: "Não faça aos outros...".
Pode-se formular esse núcleo central da moral através dois (2) mandamentos: "amar a Deus e amar ao
próximo", que Jesus uniu intimamente, colocou no topo da hierarquia de valores (Mc 12,28) e dos
quais fez "depender toda a Lei e os Profetas" (Mt 22,40, cf. paralelos na TEB).
Nesse nível mais fundamental, a Ética é universal e imutável. Ela é absoluta ou incondicional. Não há
povo que mande fazer o mal e evitar o bem, embora decline a seu modo o mal e o bem.
 2º círculo (o médio). Aqui aparecem os Dez mandamentos (VS 52). Esses são uma primeira
explicitação concreta dos 2 mandamentos acima. O Decálogo ("10 palavras": Ex 34,28) é "expressão
privilegiada da lei natural" (CIC 2080).
Em sua substância, os mandamentos são também universais e irrevogáveis (VS 52, 79-83). Nenhum
povo mandou "furtar", "mentir" ou "matar" sem mais. Contudo, em sua formulação os dez
mandamentos admitem variações ao longo da história (VS 53). A própria Bíblia já admite duas
versões diferentes do Decálogo: Ex. 20,2-17 e Dt 5,6-21. E entre as mesmas Igrejas cristãs (oriental e
ocidental) a formulação de Decálogo não é a mesma. Isso mostra que ele se adaptou aos tempos, não
porém em sua substância.
Em encontros recentes das grandes Religiões para encontrar uma "Ética mundial", chegou-se a 5
(cinco) mandamentos, correspondendo à 1ª tábua da Lei de Deus (a 2ª tábua fica por conta de cada
religião):
1º. Respeitar os pais, e os pais cuidar dos filhos (=IV Mandamento);
2º. Proteger a vida (=V Mandamento);
3º. Respeitar a corporalidade e a sexualidade de outrem (=VI e IX Mandamentos);
4º. Respeitar os bens dos outros (=VII e X Mandamentos);
5º. Dizer a verdade (=VIII Mandamento).
 3º círculo (o mais largo). É o mundo das "morais culturais", com suas normas extremamente
diversificadas. Estas são aplicações concretas dos mandamentos do Decálogo, inclusive através de leis
positivas (VS 53).
Aqui encontramos um grande pluralismo de morais concretas, com costumes às vezes contraditórios.
Nesse nível a Moral é variável, relativa e naturalmente particular.
Ilustrações: para os Germanos, era lícito "roubar" fora da própria tribo (como lembra Sto. Tomás);
para os Gregos antigos, a pederastia era permitida; os Romanos podiam abandonar e mesmo matar os
bebês defeituosos; para os Islâmicos, existe a poligamia; para algumas tribos indígenas, os pais velhos
são abandonados e morrem sós - o que não seria contra o IV Mandamento, mas precisamente uma
maneira, para nós estranha, de aplicá-lo.

Fr. Clodovis M. Boff, osm


14

B. Decálogo, "rocha da Ética cristã"


1. O decálogo é indestrutível. Alguns dizem que os 10 mandamentos estão superados. Pretendem
inventar novas tábuas, "adaptadas ao mundo moderno". Isso é como querer inventar a roda ou o pólo
magnético. Há bem mais de 3.200 anos que Moisés formulou a "rocha" sobre a qual fundar a Ética
(João Gerson, séc. XV).
O que falta é se confrontar hoje com esses mandamentos perenes, atualizá-los em suas aplicações
(veremos sua relevância e atualidade) e sobretudo praticá-los, especialmente em suas implicações
sociais (cf. VS 22-24 e 102-105). O de que se precisa não é propriamente de uma "Ética nova", mas
sim de uma "Ética renovada".
2. Sete vezes "não": por que? - O "não" dos mandamentos mostra o absoluto do mandamento, que
não admite qualquer "mas", valendo de modo incondicional: semper et pro semper.
Contudo, o "não" aqui indica apenas o "limite inferior" do campo ético, abaixo do qual abre-se o
abismo da perversidade e da perdição (como sete cartazes avisando: "abismo"). Acima deste limite,
porém, abre-se o caminho infinito para os píncaros do amor. Sto. Agostinho diz que o decálogo nos
alcança apenas uma "primeira liberdade", base para uma "liberdade plena", a perfeição que só o
Evangelho dá (VS 13-17 e 52).
3. E a "nova lei" de Jesus? Jesus não veio "abolir, mas "consumar" a Ética mosaica do Decálogo (Mt
5,17). O Monte das Bem-aventuranças completa o Monte Sinai. Como?
a. interiorizando as exigências do Decálogo. Daí o "primado da interioridade": "É do coração da
pessoa que saem as imoralidades..." (Mc 7,22-23). "Limpa primeiro o interior do prato" (Mt 23,25s).
Esse primado foi também sublinhado por Buda: "A ação segue a mente como a roda da carroça segue
a pata do boi";
b. radicalizando os mandamentos. A "lei nova" quer levar o dinamismo da antiga até o fim. Quer uma
prática inteira, total. Por ex., é pouco adulterar; não se deve nem lançar um olhar cúpido sobre uma
mulher. É pouco não matar; não se deve ofender o irmão nem mesmo com palavras pouco caridosas
(VS 15);
c. e, sobretudo, prometendo a graça do ES para praticar os mandamentos de modo fiel e com espírito
de amor. S. Paulo mostrou (Gl e Rm) que, sem a graça, o ser humano não consegue praticar de modo
constante os preceitos da Lei de Deus. A Igreja magisterial insistiu nisso. A "nova lei" é a "lei interior
do amor através da graça do ES" (Sto. Tomás).
4 - Atrás dos mandamentos: Deus e seu amor. Notar que o Decálogo abre com a afirmação que lhe
dá todo o sentido: "Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão"
(Ex 20,2; Dt 5,6). Isso mostra duas coisas:
1º) que Deus tem a iniciativa do amor: Porque eu vos amei e libertei, então segui meus mandamentos;
2º) que os mandamentos são de Deus e de sua vontade amorosa. Atrás de cada mandamento ressoa a
voz do Deus da Aliança, que nos quer felizes e salvos.
Sem essa visão personalista e amorosa cai-se facilmente no moralismo seco e opressivo ou nos frios
imperativos de Kant. É a fé e o amor que nos dão energia, nos motivam e capacitam para cumprirmos
os mandamentos. Daí a relação entre as "duas tábuas" (Dt 5,22): a "1ª tábua" (relação a Deus) sustenta
e anima a "2ª tábua" (relação com o próximo).
Explicaremos em seguida o Decálogo, mas na ótica do Evangelho e evidenciando suas implicações
sociais (cf. o CIC, III parte, seção II: n. 2052-2557).
1. Centralidade do amor. O 1º mandamento diz respeito às virtudes teologais, especialmente à maior:
o amor agápico.
A oração é a forma mais direta e clara do amor a Deus (CIC 2098). Mas a oração deve também ter
uma dimensão pública, pois religião, além de privada, é uma questão social (embora não estatal).
A perspectiva do amor a Deus, sobretudo quando inspirada no amor que Deus tem por nós, funda
todos os outros mandamentos e é a força mais poderosa que sustenta o agir ético.
2. É "justo" amar a Deus. O dever da Religião é uma "questão de justiça" (Cícero e Sto. Tomás). Só
uma pessoa religiosa é completamente "justa": dá a Deus o que é dele. Por ser Criador e Pai, Deus é
absolutamente o "amor maior", não naturalmente o único. Ele "merece" todo o nosso amor e nos lhe
"devemos" todo o nosso amor. É "justo", pois, amá-lo de todo o nosso coração e acima de tudo.
3. Patologia do 1º mandamento. É aqui tudo o que ofende a fé, a esperança e a caridade, como: o
ateísmo, a indiferença religiosa, a ingratidão ou a revolta contra Deus, a incredulidade, a dúvida, a

Fr. Clodovis M. Boff, osm


15
superstição (ocultismo, etc.), o descuido da escuta da Palavra e da oração, o descumprimento dos
votos, também os "públicos" (dos Religiosos e Religiosas).
4. Contra os ídolos, inclusive os modernos. A formulação original diz: "Não terás outros deuses ao
lado de mim. Não farás para ti imagem..., porque eu sou um Deus ciumento" (Ex 20,3-5). A proibição
das imagens do divino permite criticar os "ídolos" modernos, ou seja, os falsos absolutos ou
"incondicionais" criados por nós: dinheiro, poder, fama, sexo, ciência, arte ou alguma pessoa, enfim,
tudo o que ocupa o lugar de Deus e a que nos entregamos totalmente.
5. E para quem não "tem fé"? O 1º mandamento manda buscar a Verdade e o "sentido da vida" -
questões vitais cuja negligência espantava tanto Pascal: "Só há duas espécies de gente razoável: os
que, conhecendo a Deus, o servem de todo o coração; e os que o procuram porque não o conhecem"
(Pensamentos, 194 ed. Brunschwicg).
1 - "Senso do sagrado". O 2º mandamento preceitua, em positivo, o "sentido do Mistério", o temor
reverencial frente à presença divina. Condena, por outro lado todo uso abusivo da religião em função
da mentira, da injustiça e da opressão.
2 - Quando a Religião adoece. Além dos pecados da blasfêmia, de rogar praga e de jurar "por Deus"
à-toa, existem alguns pecados extremamente atuais nesse tempo de busca febril de religiosidade:
 magia e feitiçaria, entendidas como controle de poderes ocultos,
 adivinhação sagrada, como através dos búzios, do horóscopo,
 simonia, que é o comércio ou a mercantilização do sagrado,
 charlatanismo, como exploração da "crendice" ou da ingenuidade popular",
 lavagem cerebral e outras manipulações da consciência religiosa,
 instrumentalização social da religião para alienar o povo (religião-ópio), etc.
1. Por que dias de festa? Para celebrar nossa liberdade e nossa libertação por obra do Senhor
ressuscitado. É dia de pensar nas coisas essenciais da vida: nossa dignidade, o sentido da existência,
nosso destino último (cf. JP II, Carta Apost. Dies Domini, 1998).
O domingo tem também um potencial profético de denúncia. É "dia de protesto contra a escravização
ao trabalho e o culto do dinheiro" (CIC 2172). É contestação ao ativismo e à ganância, reinantes hoje.
2. Que é "santificar o domingo"?
 É participar do culto, à palavra e à oração.
 É repousar, refazer as forças físicas e mentais.
 É dedicar-se mais à família.
 É servir os pobres, enfermos e idosos (CIC 2186).
3. Dias de preceito no Brasil. São quatro: Mãe de Deus (1º jan.), Corpo de Cristo (Vª feira depois SS.
Trindade), Imaculada Conceição (8 dez.) e Natal (25 dez.). Os outros dias de preceito passaram para o
domingo seguinte. A Sexta-feira santa, o dia dos Finados (2 nov.) e a festa de N. S. Aparecida (12
out.) são apenas feriados civis e não festas de preceito.
1. Que é "honrar"? É respeitar e obedecer "no Senhor". É amar e assistir. Esse mandamento quer
proteger a harmonia da família em torno da autoridade amorosa e firme dos pais.
2. E os deveres dos pais? Põe-se hoje aqui a recíproca, ou seja: a obrigação moral de os pais
alimentarem os filhos e de educá-los, inclusive nas virtudes sociais (justiça, amor aos pobres, etc.) e
também na fé cristã.
A educação implica correção, pois o verdadeiro amor é exigente: quer ver o outro crescer. Mas corrigir
sempre com amor e com medida: "Pais, não exaspereis vossos filhos, para que não desanimem" (Cl
3,21).
3. Deveres do cidadão. O IV mandamento se desdobra nos deveres para com toda autoridade
legítima: padre, professor, governante e outras figuras de direção (Rm 13,1; GS 74,1). Em particular,
frente ao Estado o cidadão tem alguns deveres, como pagar os impostos e taxas, manter o respeito (Rm
13,7), obedecer aos códigos sociais (trânsito, etc.).
Deve, contudo, recusar obediência quando as ordens são imorais (At 5,29; Ap 13); e se o regime é
ditatorial, deve se auto-defender e resistir à opressão (CIC 2238-43), como já vimos.
4. Deveres das Autoridades. Reciprocamente, estas têm a obrigação de "cuidar" dos que estão a eles
confiados: garantir seus direitos sociais básicos e as liberdades civis.

Fr. Clodovis M. Boff, osm


16
Particular cuidado devem ter as Autoridades para com os membros mais fracos da Sociedade: pobres,
crianças, idosos, etc. É assim que o Estado faz a "opção pelos pobres", dever ligado à lei natural.
1. Mensagem positiva: "escolher a vida" (Dt 31,19). O V mandamento ordena o "respeito pela vida",
como valor primário, embora não supremo (cf. JP II, Evangelium Vitae). Nada mais atual que o "não
matar" numa cultura antilife e numa sociedade violenta como a nossa.
Mais positivamente, a promoção da vida exige uma mentalidade "não violenta" e uma "cultura da
paz", entendida esta como "fruto do amor e da justiça".
O Evangelho vai ainda mais fundo quando exige um amor que, não só não mate, mas que sequer se
encolerize e até "ofereça a outra face" (Mt 5,39).
2. Atentados contra a vida:
os conhecidos: assassinato (salvo legítima defesa), aborto (penalizado com excomunhão: Cód. Dir.
Can. c. 1398), eutanásia (não é obrigatório o uso de meios extraordinários para prolongar a vida),
suicídio (no mais das vezes efeito de descontrole psíquico);
 atentados à integridade física: tortura, seqüestro, terrorismo, guerra, armamentismo;
 atentados mais "modernos": indução à violência na mídia, venda e uso de drogas, excessos que
põem em perigo a vida, como em relação ao álcool, ao fumo, aos medicamentos, à velocidade no
tráfego;
 atentados de tipo social: favorecer ativa ou passivamente condições sociais miseráveis que matam
os pobres pela fome e doença ou nada fazer contra elas (CIC 2269).
3 - Ética da vida (biofilia). O "não matar" traz à baila a questão atual da Ecologia. O respeito ativo
pelo ambiente é expressão de "amor ao próximo" - de hoje e de amanhã (auto-sustentabilidade). Daí o
"cuidado" com a água, a terra, o ar e para com todo o ser vivo (fazer sofrer animais é "crueldade").
A máxima ético-ecológica poderia soar: "Viva de tal maneira que os do futuro também possam viver".
"Veneração pela vida": era a base e o resumo de toda a Ética para A. Schweitzer (+1965, Nobel da Paz
1952). Lembrar da mensagem dos grandes "profetas da vida": Francisco de Assis, Buda ("Deponha o
bastão") e Mahavira (respeito até à vida vegetal).
1. Ética sexual. Concentra-se na virtude da "castidade", como disciplina da pulsão sexual para que
seja "linguagem do amor" autêntico e fonte de vida. O sexo genital só mantém sua verdade própria no
quadro de um amor exclusivo e definitivo (= amor conjugal).
O que está em questão neste mandamento é a "verdade do amor humano" (cf. Cons. Pont. para a
Família, Sexualidade humana, 1995, Vozes ou Paulinas). O VI mandamento está em função da
dignidade da sexualidade (do varão e da mulher), do casamento e da família.
2. Ofensas ao sentido da sexualidade, especialmente:
 à dignidade do matrimônio: relações extra-matrimoniais (adultério, fornicação), divórcio,
recasamento;
 à sexualidade na esfera pessoal: masturbação (a discernir), pedofilia (sempre), homossexualismo
(como prática, não a homosexualidade como tendência);
 à sexualidade na esfera social: indústria do sexo, acompanhada da cultura do erotismo:
pornografia, prostituição, comércio de mulheres, turismo sexual (CIC 2376-7);
 à vida dissociada da sexualidade: fecundação artificial, quer "in vitro", quer com sêmen, óvulo ou
ventre "emprestados" (CIC 2373-79);
 à dignidade da mulher: preconceitos e discriminações da mulher (cultura patriarcal ou machista).
3. Como superar esses pecados:
 promovendo o respeito aos outros em seu corpo sexuado;
 velando sobretudo pela raiz da sexualidade e do amor humano que é o "desejo" ou o eros, como
veremos no IX Mandamento: "Não desejar..."
Portanto, não será tanto por uma "estratégia direta" de combate à luxúria (o que pode levar ao
puritanismo e ao farisaísmo), mas por uma "estratégia indireta", favorecendo a virtude da castidade e
finalmente a caridade.
1. O social e o privado. O horizonte maior deste mandamento e a "destinação universal dos bens". É
só a partir dela que se legitima a "propriedade privada". Esta é expressão e função daquela. É a
"hipoteca social" da propriedade privada de que falou JP II. É que o "direito à vida" vem antes do
"direito de propriedade"; o bem comum está acima do bem privado (CIC 2402-06).

Fr. Clodovis M. Boff, osm


17
É por isso que apropriar-se de um bem privado em caso de "necessidade urgente e evidente" não tem
razão de roubo, não sendo, pois, pecado (ICI 2408). Por ex. o "roubo famélico" é contemplado e é
escusado no Código Penal Brasileiro. De fato, "em extrema necessidade, tudo é de todos" (GS 69).
2. O roubo e suas mil faces. Sob esse mandamento, além dos roubos comuns, estão também os
"roubos sociais":
 enganar na venda de produtos e na prestação de serviços (trabalho mal feito),
 elevar arbitrariamente preços e taxas,
 sonegar impostos,
 falsificar cheques e faturas, pagar salários injustos (embora legais),
 apropriar-se do dinheiro público (corrupção administrativa),
 fraudar instituições de prestação de serviços (companhias de seguro, bancos, etc.),
 praticar especulação financeira e comercial,
 manter trabalho escravo,
 comprar votos (corrupção eleitoral),
 mas também desperdiçar dinheiro com festas de luxo, jogos, loteria, animais de estimação, etc.
Para obter a remissão desses pecados, exige-se reparação (cf. Lc 19: Zaqueu).
3. Capitalismo neoliberal: "sistema de roubo"? Mais globalmente, aqui é condenado o
Neoliberalismo privatizante, gerador de uma Globalização não-solidária e promotor de um Mercado
excludente, que tira dos que têm pouco para dar aos que já têm muito.
Sem um "sólido enquadramento jurídico" e ético (CA 42), um modelo econômico não passa de um
sistema de rapina. Como vimos, a responsabilidade moral nesse campo depende do maior ou menor
grau de participação no sistema.
4. Justiça social. Não basta ser honesto e íntegro, é preciso ser justo e mesmo misericordioso.
No fundo, é preciso moderar a raiz do roubo, que é "cobiçar as coisas alheias", como veremos no X
mandamento e adotando, em positivo, um teor de vida simples, sem luxo, segundo a "pobreza
evangélica".
Além disso, é preciso "fazer sua parte" para mudar as estruturas injustas que criam ou mantém a
miséria.
5. Opção pelos pobres. Fechar os ouvidos ao grito do pobre sem partilhar os próprios bens é "roubá-
los e matá-los" (S. João Crisóstomo: CIC 2446). Como mostra a parábola do Rico e de Lázaro (Lc 16),
não basta não roubar; é preciso ainda ser solidário com o pobre através:
a. das obras de misericórdia, quer as 7 corporais, quer as 7 espirituais;
b. da solidariedade social, participando de suas lutas legítimas;
c. do empenho sócio-político, inclusive através do voto e da atividade política em geral, objetivando
construir uma sociedade que promova e liberte os pobres.
1. Transparência da palavra. O positivo deste mandamento está na palavra de Jesus: "Que vosso
falar seja sim-sim, não-não" (Mt 5,36). A virtude correspondente é a veracidade ou sinceridade, que é
a correspondência entre a palavra e o pensamento. Lembremos: nada foi mais detestado por Jesus que
a hipocrisia e falsidade.
2. Abusos da palavra:
a. mentiras de vários gêneros;
b. juízos temerários ou infundados;
c,ofensas ao bom nome de outrem, seja através da calúnia (inventar faltas graves, o que exige
reparação), seja através da maledicência ("falar mal", pondo a público faltas não conhecidas,
incluindo-se aqui as fofocas e as ironias malévolas);
d.bajulação (ou puxa-saquismo), na medida em que significa cumplicidade com os vícios,
especialmente dos Poderosos;
e. fanfarronice ("contar vantagem").
3. Mentiras das instituições sociais:
 da Mídia, quando abusa da liberdade de informação para fazer propaganda enganosa, iludir o
público, demolir a boa fama de alguém, "plantar" notícias, "esconder o jogo" dos grandes, degradar os
costumes sociais, manipular a opinião pública, legitimar regimes políticos injustos;

Fr. Clodovis M. Boff, osm


18

 da Política, quando usa a palavra mais para esconder que para revelar a verdade - o que hoje já
virou "vício" (EPS 141);
 da própria Igreja, quando faz "jogo de bastidores" em questões que envolvem diretamente o Povo
de Deus e que este tem direito de saber.
4. O dever do silêncio. Às vezes deve-se, não "deformar" a verdade (mentir), mas escondê-la, por
amor às pessoas e à sua privacidade. É o caso do sigilo confessional, do segredo profissional e da
reserva sobre confidências pessoais.
Isso vale em termos. Pois quando o silêncio prejudica a terceiros, então ele se torna abusivo. É o caso
do sigilo bancário para políticos ladrões ou do silêncio em tribunal para criminosos.
1. de nossos atos: os nossos desejos profundos. Eles tocam dois desejos poderosos: o sexual e o de
possuir coisas. Passa-se aqui dos atos externos para as atitudes interiores. Tomemos o primeiro,
referente ao IX Mandamento.
2. "Ordenar nossos amores" (Sto. Agostinho). Esse mandamento visa "governar nosso coração",
moderando seus sentimentos, recordações, sonhos e devaneios e possivelmente o inconsciente.
Concerne em particular o "desejo sexual" e a "paixão erótica". A tradição fala em concupiscência
(cobiça), enquanto desejo veemente ou mesmo paixão - impulso que, por causa do pecado, tende à
descoordenação e ao desequilibrado.
Por isso o IX Mandamento ordena a "disciplina do desejo amoroso", a fim de evitar o consenso e a
complacência, que criam apegos, subjugam o coração e tiram a serenidade. "Quem olhar para uma
mulher, com desejo de possuí-la, já cometeu adultério em seu coração" (Mt 5,28).
3. Paixões irresistíveis? Não há paixão humana tão avassaladora que atropele de todo a liberdade,
última determinação do agir. Só há "mulher fatal" ou "homem irresistível" se começamos por ceder
aos apelos de um eros ilegítimo. O mesmo vale para o "crime passional". Daí a sabedoria dos
Provérbios: "Cuida com toda a vigilância do teu coração, pois nele estão as fontes da vida" (Pv 4,23).
Assim mesmo, "a carne é fraca". Daí que só com a força da graça a pessoa consegue dar conta de seus
impulsos e paixões. Experimentou-o Sto. Agostinho: "Confiava em minhas próprias forças. Tolo! Não
conhecia ainda a Escritura que diz: Ninguém será continente se o Senhor não lhe concede a graça"
(Conf. VI, 11,20).
4. Mandamento contracultural. O "não desejar" (quer a mulher, quer o homem "comprometidos")
vai na contramão da atual "cultura do erotismo", cuja permissividade explora o impulso sexual sob as
formas mais sofisticadas e extremadas ("libertação sexual"). O resultado disso é, na verdade,
profundamente decepcionante: é banalizar o sexo e torná-lo desinteressante (quando o sexo precisa de
"tabus" para se valorizar: Freud).
A Ética cristã da sexualidade pede um respeito reverente pelo corpo, pela sexualidade, pela figura da
mulher, pelo casamento e finalmente pela família.
5. Virtude positiva: a pureza: "Felizes os puros de coração" (Mt 5,3). Esses são os "limpos de
mente" em face do outro sexo, disciplinando a imaginação e a vista (mídia, internet, etc.). Pureza é
uma atitude mais fina e interior que a mera continência ou mesmo que a castidade. Ela vê sempre no
outro e na outra uma pessoa, com nome, rosto e coração, sem coisificá-lo/a, reduzindo-o/a a mero
objeto fruitivo. Mais, chega a ver na corporalidade do varão ou da mulher a beleza e a sabedoria do
Criador.
6. Pudor: virtude anexa à castidade. Sinal e fator da pureza é o pudor ou a modéstia, como virtude
delicada que trata o sexo como algo de íntimo e precioso e não como algo de provocante, e que
mantém a discrição ou reserva da vista, do aspecto, da fala e dos gestos - isso tudo, porém, segundo os
hábitos de cada povo. Tal delicadeza, contudo, não deve levar à afetação do puritanismo rígido e da
"tabuização" sexual envergonhada, que é o extremo oposto, igualmente condenável, do permissivismo
desabusado de hoje. O pudor é o grau extremo do caminho que vai da Continência à Castidade, desta à
Pureza e da Pureza justamente ao Pudor.
1. Possessividade. Como o mandamento anterior, esse também desce no porão da alma humana para
atacar o "mundo do desejo", agora numa outra frente: o "desejo de possuir" bens materiais. Essa
ganância insaciável e desordenada é raiz dos pecados do VI Mandamento: roubo, exploração
econômica, etc. "O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males" (1Tm 6,10).
O que está, em positivo, por trás do X Mandamento é a "pobreza de coração", como desapego das
coisas e liberdade interior frente aos bens materiais e procura pelo "tesouro espiritual" (Mt 13,44). O

Fr. Clodovis M. Boff, osm


19
Iluminado foi mestre na disciplina do desejo, causa de todo "apego doloroso", da escravidão e da
inquietude interior.
2. Na contramão do Capitalismo sem freios. O X Mandamento é atualíssimo no atual mundo
capitalista, cujo ideal é ter cada vez mais. Os mais expostos a este pecado são precisamente os
capitalistas de vária espécie: banqueiros, comerciantes, industriais. Eles chegam a se alegrar com as
crises, porque podem acumular mais.
Mas a mentalidade materialista cerca a todos, tentando suscitar no povo falsas necessidades e ideais
ilusórios. Ademais, com a ganância, vem a inveja, tristeza pelos bens ou pelo sucesso dos outros,
assim como a alegria maligna pela desgraça alheia. E para completar o "circo dos desejos
enlouquecidos", aparece também a ambição de poder, como desejo imoderado de domínio, fama e
glória, que leva por sua vez à vaidade e à dominação sobre os outros.
- Bibliografia: James KEENAN (sj), Os dez mandamentos: a rocha da ética cristã, Loyola, São Paulo 2001; Carlos H. CONY, Os dez
mandamentos, Bertrand do Brasil, Rio de Janeiro 2001.

Fr. Clodovis M. Boff, osm

You might also like