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Mano - Amor Fraterno
Mano - Amor Fraterno
v.40-3, p.91-104
Resumo Palavras-chave
O principal objetivo desse artigo é refletir e ger. A psicologia arquetípica surge em um novo psicologia
apontar para os possíveis horizontes episte- contexto “pós-junguiano” que busca substituir arquetípica,
mológicos e ontológicos da psicologia arquetípi- uma atitude interpretativa, unívoca e metafísica, fenomenologia,
epistemologia,
ca de James Hillman ao aproximá-la de uma pos- por uma atitude fenomenológica em relação as
poiesis,
sível relação com a fenomenologia. Para cumprir imagens da alma. A base mito-poética e o “ficar James
com tal intento, torna-se necessário delimitar com a imagem”, noções centrais em sua psico- Hillman.
dois pontos de partida, sendo eles: (1) O lema logia, constituem a base dessa possível atitude
central da psicologia arquetípica de “ficar com fenomenológica em seu pensamento. ■
a imagem” (stick to the image) e sua possível
relação com a noção fenomenológica de “voltar
às coisas mesmas”. (2) O postulado de uma
base mito-poética para a psique humana e a
possível aproximação com a noção de poiesis tal
como apresentada na fenomenologia de Heideg-
abstrações conceituais e/ou “explicações” me- Sonhos, Reflexões, correspondendo ali as suas
ramente teóricas, lógicas, espirituais, atendo-se personalidades número 1 e número 2, cada qual
à experiência simbólica da alma a partir de seu com suas próprias necessidades, seu próprio
próprio significado e sentido, algo muito próxi- modo de ser e ver o mundo (Weltanschauung)
mo ao lema central da fenomenologia o “voltar (BROOKE, 2009, p. 21-24; JUNG, 2016, p. 99;
às coisas mesmas” (BROOKE, 2009; 2000). SAMUELS, 2008).
Além da possível relação da psicologia ana- Segundo Samuels (2008), essa dupla pers-
lítica de Jung com a perspectiva fenomenológica pectiva fomentará o surgimento de uma grande
a partir do método sintético-construtivo, poderí- variedade de práticas e produções teóricas em
amos apontar para uma segunda possível rela- psicologia analítica desde a morte de Jung em
ção com a perspectiva fenomenológica em Jung 1961, entre elas a escola pós-junguiana da psi-
a partir do seu estilo de pensamento poético cologia arquetípica de James Hillman. Ademais,
(BROOKE, 2009; SAMUELS, 1989). o estilo poético de pensamento virá à tona a par-
De acordo com a análise de Brooke (2009), tir da ênfase de Jung na experiência sensível e
o estilo poético do pensamento de Jung está no significado da experiência subjetiva da alma,
possivelmente relacionado à ontologia poética sendo que a linguagem poética aparecerá em
proposta por Heidegger, tendo em vista a asser- seus escritos sobre religião, filosofia, mitologia
tiva do filósofo alemão de que a modernidade e alquimia, correspondendo diretamente a fi-
assiste a “fuga dos deuses”, relacionando assim gura da personalidade número 2 em Memórias
as figuras míticas à ideia de esquecimento do (BROOKE, 2009; JUNG, 2016).
Ser na modernidade. Na concepção de Heideg- Em última análise, segundo Hillman (2019),
ger, apenas o poeta seria capaz de encontrar os o estilo poético de pensamento se dá por metá-
“rastros dos deuses fugitivos”, sendo a poiesis foras, de forma poética e imaginativa, entendido
a atividade necessária diante do esquecimento por ele como um modo mais “acurado” de alcan-
do Ser no interior do racionalismo e do materia- çar as profundezas da alma humana. O estilo po-
lismo insurgente na modernidade (HEIDEGGER, ético de Jung será a base para o postulado pos-
1936, p. 94 apud BROOKE, 2009, p. 29). terior de uma base mito-poética para a psique.
Segundo Jung, no interior da perspectiva mo- Sobre esse ponto específico, Hillman (2019, p.
derna “os deuses tornaram-se doenças” (JUNG, 163) comentará: “Sua teoria das imagens anun-
2002, p. 43), isto é, as narrativas mito-poéticas ciou uma base poética da mente, e a imaginação
vestem uma nova roupagem racionalista e diag- ativa a colocou em prática, mesmo enquanto
nóstica, perdendo de vista a realidade metafó- Jung continuou usando linguagem científica e
rica da alma e a perspectiva de que as imagens teológica para suas explicações1”.
são alusivas e não realidades concretas e literais O pensamento poético remonta a palavra gre-
(BROOKE, 2009, p. 29-39). ga poiesis que significa o ato da criação, sendo
Na concepção de Brooke (2009) e Samuels essa a perspectiva poética que possibilita o en-
(2008), o estilo poético de pensamento em volvimento sensível com o mundo em sua ma-
Jung está relacionado a um dos dois horizontes terialidade. O estilo poético de pensamento em
epistemológicos de sua obra. Por um lado, um Jung aponta para um entrelaçamento e/ou trans-
horizonte científico e natural de entendimento, formação entre psique e matéria, alma e corpo,
empírico e voltada aos “fatos”, por outro lado, opondo-se assim a uma concepção cartesiana e
uma perspectiva poética, imaginária, mitológica. afastada do mundo (BROOKE, 2009, p. 27).
Poderíamos aproximar essa tensão epistemoló-
gica da questão da dupla personalidade de Jung
mencionada em sua autobiografia Memórias, 1
Tradução livre.
Em última análise, a perspectiva poética que visa os padrões da imaginação e como eles
dará as caras primeiro em Jung desdobrando-se se manifestam tanto na subjetividade quanto na
posteriormente até o pensamento da psicolo- cultura, tornando-se assim uma cosmovisão que
gia arquetípica de James Hillman. O trabalho da abrange todos os planos da vida humana como
poiesis implicará em um retorno a uma relação imaginais, estando para além da estrita prática
imediata e fenomenológica com o mundo, sen- psicoterapêutica no interior dos consultórios e
do uma forma de apropriação das temáticas a clínicas de psicologia (Idem, Ibidem).
partir de um trabalho com a imaginação. Como Como visto anteriormente, aquela dupla pers-
veremos posteriormente, a base poética da men- pectiva no pensamento junguiano entre o estilo
te buscará elucidar aquela experiência arque- poético, imaginário e metafórico, por um lado, e
típica e primordial, sendo a poiesis a condição o estilo científico, empírico e natural, por outro,
para acessar as imagens arquetípicas da psique terá repercussões nas práticas e produções te-
(HILLMAN, 1988, p. 28). óricas em psicologia analítica após a morte de
Jung em 1961. Podemos considerar aqui que o
A Psicologia Arquetípica de James Hill- estilo poético, a ênfase de Jung no significado
man e a Fenomenologia da experiência singular da alma, a linguagem
Apesar de a Psicologia Arquetípica de Hill- metafórica e imaginária que corresponderia ao
man ter suas raízes na Psicologia Profunda de mistério da personalidade número 2 em Memó-
Jung, ainda assim ela terá suas próprias nuances rias, será retomado por Hillman ao postular uma
e características singulares. Sobre as aproxima- base mito-poética da psique como ponto funda-
ções e diferenças possíveis entre a psicologia de mental para sua própria compreensão de psique
Hillman e Jung, podemos mencionar em especial (BROOKE, 2009; SAMUELS, 1989; JUNG, 2016;
o fato de que a psicologia arquetípica se volta HILLMAN, 2019).
em primeiro lugar à imaginação, à imagem e à A psicologia arquetípica fundamentará seus
manifestação dessas imagens na própria cultu- pressupostos naquela perspectiva poética in-
ra, enfatizando assim uma perspectiva imaginal trínseca ao pensamento junguiano, o que se tor-
em relação a ideia clássica de inconsciente, as- na cada vez mais evidente, por um lado a partir
sim como a manifestação das imagens na cultu- de sua relação com o imaginário, ao considerar
ra em relação a dinâmica inconsciente no indi- a linguagem metafórica e mito-poética como
víduo (TACEY, 1998, p. 219). Deve-se mencionar constituintes básicas da psique, assim como ao
que, em relação à psiquiatria moderna do sécu- levarmos em consideração as críticas de Hillman
lo XIX, a psicologia de Hillman opõe-se à uma a uma linguagem literalista em psicologia, ex-
perspectiva estritamente médica e empírica que cessivamente científica, concreta e materialista,
confinaria a psique às manifestações da ciência em especial sua crítica ao reducionismo do as-
positiva (HILLMAN, 1983, p. 22). pecto imaginal da psique à physis, palavra grega
Ainda sobre as diferenciações em relação à para natureza, isto é, a oposição a uma redução
psicologia analítica clássica de Jung, o termo “ar- daquela apreensão poética à uma literalização
quetípico” substituirá o “analítico” já que, como excessivamente objetiva e física em psicologia
bem pontuará Hillman (1988, p. 21), a noção de (BROOKE, 2009, p. 21-24; SAMUELS, 1989, p. 82;
arquétipo refletirá a “profundidade teórica dos HILLMAN, 2010).
últimos trabalhos de Jung, os quais tentam re- Entre as possíveis relações com a fenome-
solver os problemas psicológicos para além dos nologia poderíamos citar brevemente a com-
modelos científicos”. Em segundo lugar, porque preensão de Hillman de “arquetípico” como
a ênfase no arquetípico está relacionada a um uma visada fenomenológica sobre os fenôme-
movimento próprio da psicologia arquetípica nos (TACEY, 1989). Apesar das nuances e dife-
das por uma perspectiva fenomenológica, pela impor-lhes seus preconceitos, presumin-
ideia de movimento e continua transformação do saber exatamente como elas deveriam
(Idem, Ibidem). aparecer2 (p. 16-17).
A Psicologia Arquetípica de James Hillman
é uma psicologia orientada pelo pós-moder- Por outro lado, como escreve Casey (2016),
nismo hermético, remetendo ao Deus grego Hillman dará à fenomenologia, como ele a enten-
Hermes, sendo assim uma psicologia que de, sua própria “flexão” (o termo original em in-
substitui substantivos por verbos, ideias de glês é twist), afirmando que o método fenomeno-
substância por “estilo”, fixação por mudança, lógico deverá dar total atenção ao modo como a
noções de progresso e desenvolvimento por percepção, a imaginação, a cultura e a histórica
uma ideia de contínuo e infindável refino da apresentam-se em si mesmas. Hillman definirá
alma, o “cultivo da alma” (soulmaking). Em es- sua própria atitude fenomenológica como noti-
pecial, vale mencionar, a substituição de uma tia, isto é, uma atitude de total atenção as qua-
concepção metafísica em psicologia por uma lidades das coisas como elas se apresentam,
perspectiva fenomenológica frente as imagens para então formar uma verdadeira noção sobre
da alma (Idem, Ibidem). as coisas a partir delas mesmas. Nas palavras do
Por outro lado, a presença de uma perspec- próprio Hillman:
tiva fenomenológica em James Hillman não apa-
recerá em sua obra de forma objetiva e sistema- Trata-se de prestar atenção às coisas de
tizada, sendo apenas comentada e ilustrada em maneira escrupulosa e solícita, esco-
algumas passagens. Como em Philosophical Inti- lhendo suas características apresenta-
mations volume 8 das obras completas (Uniform das tal como aparecem. O que está em
Edition) de James Hillman, em que Casey (2016) jogo aqui é uma apreensão do que está
delineia a presença cada vez mais notável da fe- lá e do que há lá - e fazê-lo sem nenhum
nomenologia de Husserl e Heidegger nas noções sacrifício de precisão (HILLMAN apud CA-
e ideias de James Hillman. Ele descreve como SEY, 2016, p. 16-17).
o pensamento de Hillman emergirá aos poucos
como fenomenológico a partir de sua “sutileza Neste sentido, a fenomenologia, no modo
descritiva” das imagens, da profunda distinção como Hillman a compreende, substitui a asso-
entre as imagens que examina, “descrevendo ciação livre da psicanálise de Freud, sendo que
cuidadosamente suas semelhanças e diferenças sua prescrição se torna um “atentar-se ao mun-
em filigrana” (CASEY, 2016, p. 16). Além disso, do em sua apresentação imediata”, sendo essa
aproxima essa “escuta” atenta das imagens atenção ao que se apresenta de imediato a con-
a partir de si mesmas à fenomenologia de Hei- dição para acessar o fenômeno de forma precisa
degger tal como apresentada em Ser e Tempo, e genuína, para apreender o que está lá, tal como
apontando para o lema “stick to the image” da aparece, a assim explorar suas dimensões psi-
psicologia arquetípica como um chamado para cológicas profundas (CASEY, 2016, p. 17). Tendo
uma descrição fenomenológica do fenômeno a como ponto de partida que as imagens são ati-
partir dele mesmo. Nas palavras de Casey: vidades sui generis da alma e a própria psique
manifestando-se a partir de si mesma, isto é, “a
Seu shibboleth anterior, “ficar com a ima- psique na sua visibilidade imaginativa” (HILL-
gem”, já era um chamado à descrição fe- MAN, 1988, p. 27). Compreendendo que as ima-
nomenológica: ao paciente delineamento gens são os dados primordiais da alma, então,
das imagens tal como elas se apresen-
tam, seguindo seu exemplo em vez de 2
Tradução Livre.
não deveríamos interpretá-las, dar-lhes um sig- mensão psicológica da vida. Para Casey (2016),
nificado “externo” a sua própria apresentação. somente com essa postura fenomenológica
Será nesse sentido que a psicologia arquetípica diante dos fenômenos nos tornarmos “íntimos”
prescreve a total atenção ao mundo em sua apa- psicologicamente das coisas do mundo. Ora, a
rição imediata, é essa a diretriz que fundamenta noção de “intimidade psicológica” com as coi-
seu lema central, o “ficar com a imagem” (stick sas e o mundo ressoa a concepção de Hillman
to the image). de que o mundo é “almado”. Em outras palavras,
A imagem arquetípica “não tem referente ao “almar” o mundo, a psique não se restringe
além de si mesma”, ela não representa nada, ao interior do sujeito, mas se dá na relação com
não pode ser lida como significando outra coisa, o mundo. Segundo Casey (2016), o conceito de
senão somente a si mesma. Nada aguarda “sob” anima mundi aproxima-se da concepção feno-
a imagem para ser “desocultado”, a imagem é menológica de Husserl de “mundo da vida” (Le-
irredutível (HILLLMAN, 1988, p. 27). A imagem benswelt), assim como da concepção de Heide-
não é uma substância, mas antes uma perspec- gger de “Ser-no-mundo” (Dasein). Nas palavras
tiva, o próprio ato de imaginar, a maneira como de Casey (2016, p 17): “Com a noção de alma do
se vê e não uma “coisa-em-si” (HILLMAN, 2010, mundo, fenomenologia e psicologia profunda
p. 27). Neste sentido, o “ficar com a imagem”, unem forças [...]”.
lema central do que poderíamos chamar de um A fim de ilustrar a relação fenomenológica
possível “método” em psicologia arquetípica, com as imagens e como o “ficar com a imagem”
buscará ater-se fiel a própria imagem como uma aparece na prática clínica, iremos tomar como
perspectiva possível, uma maneira de se imagi- exemplo uma imagem do sonho de um pacien-
nar o mundo e as coisas. te. A. sonhou que estava em uma mansão antiga
Em outras palavras, pode-se afirmar que o com vitrais “medievais” que pareciam mosaicos
“ficar com a imagem” será compreendido preci- com diversas cores. A mansão estava totalmente
samente como aquela descrição atenta e focada escura a não ser pela única luz que entrava por
na imagem, como aquela atitude fenomenoló- esses vitrais. A escuridão causava no sonhador
gica de notitia elaborada pelo próprio Hillman, uma dupla sensação de angústia, “sufocamen-
como comentado por Casey (2016), enquanto to”, mas ao mesmo tempo mistério.
uma atitude de total atenção ao fenômeno em Para colocar em prática o “ficar com a ima-
sua aparição imediata para uma descrição preci- gem” (stick to the image) devemos nos ater ao
sa de suas qualidades psicológicas. O “ficar com modo como as imagens aparecem nos sonhos
a imagem” pressupõe ater-se a própria perspec- sem interpretar seu “simbolismo”, mas antes
tiva imaginal anterior a qualquer interpretação nos perguntando sobre a “ação” e/ou modo
externa a imagem em si mesma, tal qual o lema como o sonhador se relaciona com essas ima-
fenomenológico de “voltar às coisas mesmas” gens no sonho. Deve-se pontuar que a imagem
buscará descrever o fenômeno a partir de si do sonho não se restringe apenas à “mansão
mesmo colocando “entre parênteses” quaisquer antiga” literalmente, mas antes a toda a cena
juízos e/ou conhecimento prévios a seu próprio onírica, isto é, cada um dos aspectos desse ce-
aparecer (ZAHAVI, 2015). nário imagético, atos, sensações e interações
Em última análise, é possível afirmar uma do sonhador, devem ser compreendidos como
relação com a fenomenologia no pensamento imagens. Neste sentido, tomaremos todo o con-
de Hillman através da atitude de estar atento, texto que envolve o sonho (inclusive a descrição
com cuidado, às coisas do mundo ao redor, con- do sonhador) como uma imagem, evitando uma
siderando assim o “ficar com a imagem” como postura interpretativa do significado “subjacen-
condição de possibilidade para aprofundar a di- te” à imagem (RUSSELL, 2013, p. 459-460).
A imagem do sonho da mansão antiga apon- Seu ponto de partida para a concepção de
ta para algo misterioso e enigmático, a sen- uma psique constituída de imagens é Jung, e
sação de que há algo oculto a ser revelado na podemos afirmar que seguirá seus passos a
psique do sonhador. Porém, a medida em que partir de duas afirmações centrais, sendo elas:
adentra a imagem, a emoção que emerge do a afirmação de que “psique é imagem” (JUNG,
escuro é o medo do que pode encontrar ali, o 2002, p. 55), portanto, deveríamos permanecer
medo do “desconhecido”. Os escassos pontos “fiel à imagem” (JUNG, 2011, p. 33). Essa dupla
de luz que se resumem aos vitrais medievais afirmação torna-se eixo central de um possível
lhe causam uma sensação de “sufocamento”, “método” em psicologia arquetípica, isto é, ter
além da angústia em relação à eminência de como ponto de partida a imagem e permanecer
que há algo no escuro. fiel àquele substrato imagético que constitui a
O cenário imaginal da mansão antiga parece alma (HILLMAN, 1988).
refletir com certa precisão a dinâmica da psique Por outro lado, notamos já em sua trajetória
do paciente em questão, já que ele se queixa histórico-biográfica que Hillman terá inúmeros
de uma grande dificuldade em ter uma postura contatos com a arte e a poesia, construindo as-
espontânea e criativa diante do mundo e da re- sim gradativamente sua perspectiva mito-poé-
lação com os outros, sentindo muitas vezes sua tica e estética da psique a partir dali. Podemos
vida como um “quadro em branco, sem cores”. mencionar aqui a experiência com as pinturas
É importante enfatizar que, assim como o medo de Van Gogh quando estudava literatura no Sor-
do desconhecido no escuro gera angústia no bonne em Paris, assim como a paixão por James
sonhador, o paciente A. apresenta episódios de Joyce que o levou a mudar-se para Dublin onde
ansiedade durante o dia seguidos de um pro- foi editor da Envoy, uma revista de literatura
fundo sentimento de falta de sentido e vazio, (RUSSELL, 2013).
principalmente nos momentos em que está so- É notória também a presença da literatura
zinho e sem “nada” para fazer. Podemos dizer e da arte, além da leitura dos filósofos e ro-
a partir da imagem do sonho que algo perma- mancistas que tratam da questão da beleza e
nece velado e/ou desconhecido na escuridão, da estética, como meio para estabelecer uma
na medida em que adentra esse lugar escuro é ponte entre verdade e beleza. Em seus anos de
subitamente tomado por aquele sentimento de estudo em Dublin terá contato com Shakespe-
angústia apontando para uma dificuldade em are, Platão e John Keats, desse último extrairá
olhar para e/ou aprofundar aqueles aspectos a celebre afirmação encontrada em Re-vendo
misteriosos de sua psique. a Psicologia “Chame o mundo se quiser, o
‘vale de fazer alma’” (HILLMAN, 2010, p. 25;
James Hillman e a Fenomenologia: RUSSELL, 2013).
a base mito-poética da psique Entretanto, se quisermos compreender o pos-
A “base poética da mente” é uma tese apre- tulado de Hillman de uma base mito-poética da
sentada por Hillman em 1972 nas Terry Lectures psique, precisaremos antes nos ater a sua defi-
em Yale, estabelecendo a partir desse ponto nição de imagem como dado primordial e cons-
uma relação inextrincável entre psicologia e ima- tituição básica da psique mito-poética. As ima-
ginação. Pode-se afirmar que a base poética da gens são dados da fantasia, são “os materiais
mente se tornou uma necessidade da própria crus” e, ao mesmo tempo, “os produtos acaba-
natureza da psique. Será nesse mesmo sentido dos da psique”, assim como um “modo privile-
que podemos afirmar que um estudo profundo giado de acesso e conhecimento da alma” (HILL-
e fecundo em psicologia deve voltar-se para um MAN, 2010, p. 29). A atividade auto-originária de
trabalho com as imagens (HILLMAN, 1988, p. 32). imagens é como um órgão da psique, é isso o
que Hillman (2010) chama de base poética da poéticas, isto é, atos de criação espontâneas
alma, o “substrato imaginativo e autossustenta- gerando-se a si mesmas a todo o momento
do”, o “lugar interno”, a condição de possibilida- (Idem, p. 32)
de de toda subjetividade, experiência, ego e/ou Se como vimos a imagem da fantasia, em um
consciência (HILLMAN, 2010, p. 27). ato poético/criativo, constantemente gera-se a
A consideração de Hillman (1988, p. 28) de si mesma, então compreende-se que a própria
que “a mente está na imaginação em vez de a alma é constituída de uma atividade criadora de
imaginação estar na mente”, implica que as ima- poiesis, tal como encontraremos na fenomeno-
gens constituem o próprio movimento da psico- logia poética de Heidegger. A alma cria imagens
dinâmica, isto é, são elas mesmas as configura- a todo o momento, em outras palavras, o imagi-
ções da alma, elas são a própria perspectiva que nário poético constitui a própria estrutura da ex-
chamamos de realidade. Mesmo nossa subjeti- periência, tal como veremos na fenomenologia
vidade está calcada nas linhas do imaginal, as de Heidegger onde a poiesis será apresentada
imagens não podem ser reduzidas a meras “re- como um ato de criação do ser, isto é, um modo
presentações” do mundo, mas antes o substrato de expressão das profundezas do ser e a condi-
poético de nosso ser no mundo. ção de possibilidade “originária” de sua existên-
De acordo com Hillman, uma psicologia cia (HEIDEGGER, 2007).
das imagens operará uma mudança de locus Como vemos na fenomenologia de Heide-
no interior da própria disciplina psicológica, gger, a linguagem poética, do grego poiesis
deslocando-a de uma perspectiva antes funda- significando o ato de criar, será considerada
mentada no logos, isto é, em um tipo de ciência pelo filósofo alemão como um modo originá-
racionalista, causalista, mecanicista e materia- rio de expressão do ser, sendo assim a poética
lista, para então fundamentar no eros, tendo uma perspectiva fenomenológica par excellen-
em vista que uma psicologia do imaginário par- ce (BROOKE, 2009, p. 21-24; SAMUELS, 1989,
te primeiro do coração, como o “immagine del p. 82; HEIDEGGER, 2007).
cuor de Michelangelo” (HILLMAN, 2010, p. 64). Na concepção de Heidegger a linguagem
Ao pressupor uma base mitopoética para a psi- poética (poiesis) é a “habitação da essência do
cologia, suas raízes tornam-se o coração, a emo- homem” (HEIDEGGER, 2005, p. 38). Neste senti-
ção, o eros e a imaginação, partindo-se da pre- do, há uma diferenciação entre uma linguagem
missa de que “a imaginação não é meramente “cotidiana” com seu valor de signo, fonemas,
uma faculdade humana”, mas antes a fonte que ritmo, estrutura sintática, gramatical e lógica, e
promove a atividade criativa de imagens da alma a linguagem poética enquanto, nas palavras de
(HILLMAN, 1988, p. 29). Heidegger (p. 28): “advento iluminador-velador
A imagem deixa de ser mera representa- do próprio ser”. O poeta enquanto praticante da
ção dos sentidos e torna-se “atividade sui poiesis torna-se o “pastor do ser”, assim como
generis da alma” (Idem, p. 29), a imagem não o pastor “guarda” as ovelhas, o dizer poético
é um mero produto da “arte”, mas a própria (poiesis) desvelará o ser, habitando entre os
condição dela, não sendo passível de uma divinos e os mortais, os deuses e os homens
análise empírica, muito menos de ser progra- (Heidegger, 2005, p. 355).
mada, controlada ou “interpretada”, já que A poesia não é considerada aqui uma ex-
as imagens são elas mesmas significativas e pressão abstrata e retórica, muito menos uma
expressivas (Idem, p. 31). Em última análise, mimesis. Pelo contrário, o dizer poético expressa
a imagem não deve ser reduzida a elementos, o indizível das coisas, sendo um modo de falar
estruturas básicas limitadas pela consciência, profundo e autêntico sobre a realidade do ho-
mas antes pensadas como essencialmente mem. Neste sentido, a poiesis é um projeto de
clarificação do Ser do ente, em outras palavras, nomenológica em James Hillman a partir de dois
ela torna possível a realização do ser o desocul- pontos específicos, sendo eles: (1) O lema cen-
tando e o lançando no mundo como forma. Por- tral da psicologia arquetípica “ficar com a ima-
tanto, a poiesis relaciona-se com a verdade do gem” (stick to the image), isto é, aquela atenta
ente, ela é o projeto de abertura do Ser dos entes descritividade das imagens que tem como fim re-
(HEIDEGGER, 2007, p. 58-59). encontrar a profundidade psicológica do mundo
Em última análise, a linguagem poética é ori- e das coisas, e a possível relação com a noção
ginária e possibilita o desocultamento do senti- central à fenomenológica de “voltar às coisas
do do ser. Em outras palavras, a poiesis está na mesmas”; (2) O postulado de uma base mito-po-
própria essência da linguagem, sendo que essa ética para a psique, isto é, a concepção de que
última, se considerada apenas a partir de sua uma linguagem poética, metafórica e imaginal, é
função “cotidiana”, enquanto linguagem técnica a condição de possibilidade para acessar as pro-
e científica, torna-se “inautêntica”. Vemos que fundezas da alma, e a possível relação com o ato
essa mesma distinção aparece também em Hill- criador da poiesis enquanto modo originário de
man, na medida em que propõe uma linguagem expressão da verdade do ser na fenomenologia
poética, imaginal e metafórica como condição de Heidegger.
de possibilidade para acessar as profundezas Se a alma é constituída essencialmente por
da alma, em oposição a uma linguagem literal, imagens e perspectivas imagéticas, então a psi-
estritamente lógica e cientificista (Hillman, 2010 cologia arquetípica adotará como lema o “ficar
HEIDEGGER, 2005). com a imagem” (stick to the image), isso porque,
Portanto, uma psicologia da imagem afasta- ao contrário de ser uma postura interpretativa
-se de um tipo de psicologia causalista, empi- que buscará desvelar um sentido ‘oculto’ da
rista e/ou descritivista, adotando em seu lugar alma, ou mesmo definir o que ‘é’ a imagem subs-
um olhar através do “coração” (HILLMAN, 1988, tancialmente, o “ficar com a imagem” guarda a
p. 29), isto é, um pensamento do coração, nome intenção de dar total atenção a uma descrição
de sua obra Pensamento do Coração de 1981, das imagens a partir de seu próprio modo de
correspondendo também aquilo que Hillman ser. Essa postura diante das imagens será de-
nomeará em outros lugares de “epistemologia finida aqui como uma atitude fenomenológica
do coração” ou “pensamento do sentimento”, de notitia em Hillman que terá como finalidade
como um modo singular de acesso as imagens a descrição precisa das qualidades psicológicas
da alma (HILLMAN, 2010, p. 65). A concepção de do fenômeno a partir de uma atenção focada nas
que a Poesia é ontologicamente fundamental ao imagens a partir de si mesmas, tal qual a noção
ser humano, não apenas para expressar seu ser básica da fenomenologia de “voltar as coisas
mas também para dar lhe um sentido e signifi- mesmas” através do “colocar entre parênteses”
cado, tal como escreve Heidegger (2007), parece (epoché) dos juízos e interpretações externos ao
ser a base ontológica de uma abordagem que vê fenômeno ele mesmo.
a alma como constituída originalmente por um Além disso, a alma, tal como compreendida
tipo de atividade mito-poética. por Hillman, possui uma base mito-poética, as
imagens são o substrato originário da experiên-
Considerações Finais cia humana. Sendo assim a psique só poderá ser
A possível relação da psicologia arquetípica compreendida a partir de uma linguagem igual-
de James Hillman com a fenomenologia não deve mente poética, metafórica, imaginal. Será nesse
se restringir apenas àqueles pontos enfatizados sentido que a poiesis surgirá como a condição
nesse artigo. Entretanto, demarcamos aqui uma par excellence para expressão genuína da pro-
possível aproximação com uma perspectiva fe- fundeza da alma.
A linguagem poética (poiesis) possui seu lo- da psique e suas bases arquetípicas, então uma
cus no coração, a imaginne del cuor de Miche- ontologia poética, tal como encontraremos na
langelo, como condição de possibilidade para fenomenologia de Heidegger, torna-se condição
apreender seu movimento imaginal, o devir da de possibilidade para acessar a dinâmica imagé-
alma. Se apenas uma linguagem poética é capaz tica da alma. ■
de expressar genuinamente as perspectivas ima-
géticas da alma, revelar a dinâmica psicológica Recebido: 03/08/2022 Revisado: 07/12/2022
Abstract
James Hillman and Phenomenology: the poetic basis of psyque
The main objective of this article is to re- ic basis for the human psyche and the possible
flect and point to the possible epistemological approach to the notion of poiesis as present-
and ontological horizons of James Hillman’s ed in Heidegger’s phenomenology. Archetypal
archetypal psychology by approaching it to a psychology emerges in a new “post-Jungian”
possible relationship with phenomenology. In context that seeks to replace an interpretive,
order to fulfill this intention, it is necessary to univocal and metaphysical attitude with a phe-
delimit two starting points, namely: (1) The cen- nomenological attitude towards images of the
tral motto of archetypal psychology of “stick to soul. The mytho-poetic basis and “stick to the
the image” and its possible relationship with image”, central notions in his psychology, con-
the phenomenological notion of “back to things stitute the basis of this possible phenomeno-
themselves”. (2) The postulate of a mytho-poet- logical attitude in his thinking. ■
Resumen
James Hillman y la Fenomenología: la base poética de la psique
El objetivo principal de este artículo es re- para la psique humana y el posible acercamiento
flexionar y señalar los posibles horizontes episte- a la noción de poiesis tal como se presenta en la
mológicos y ontológicos de la psicología arquetí- fenomenología de Heidegger. La psicología ar-
pica de James Hillman acercándola a una posible quetípica surge en un nuevo contexto “pos-jun-
relación con la fenomenología. Para cumplir con guiano” que busca reemplazar una actitud inter-
esta intención, es necesario delimitar dos puntos pretativa, unívoca y metafísica por una actitud
de partida, a saber: (1) El lema central de la psi- fenomenológica hacia las imágenes del alma.
cología arquetípica de “adherirse a la imagen” La base mitopoética y el “adherirse a la imagen”,
(stick to the image) y su posible relación con la nociones centrales en su psicología, constituyen
noción fenomenológica de “volver a las mismas la base de esta posible actitud fenomenológica
cosas”. (2) El postulado de una base mitopoética en su pensamiento. ■
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